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A Ditadura de Segurana Nacionaln o R i o G r a n d e d o S u l
1 9 6 4 1 9 8 5Histria e Memria
Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964
Volume 1
A DITADURA DE
SEGURANA NACIONAL
NO
RIO GRANDE DO SUL
(1964-1985):
HISTRIA E MEMRIA
Enrique Serra Padrs
Vnia M. Barbosa
Vanessa Albertinence Lopez
Ananda Simes Fernandes
MesaPresidente: Deputado Ivar Pavan (PT)
1 Vice-presidente: Deputado Luciano Azevedo (PPS)
2 Vice-presidente: Deputado Francisco Appio (PP)
1 Secretrio: Deputado Giovani Cherini (PDT)
2 Secretrio: Deputado Nlson Hrter (PMDB)
3 Secretrio: Deputado Paulo Brum (PSDB)
4 Secretrio: Deputado Cassi Carpes (PTB)
1 Suplente de Secretrio: Deputado Miki Breier (PSB)
2 Suplente de Secretrio: Deputado Raul Carrion (PCdoB)
3 Suplente de Secretrio: Deputado Marquinho Lang (DEM)
4 Suplente de Secretrio: Deputado Ado Villaverde (PT)
Escola do LegislativoPresidente: Dep. Ado Villaverde
Direo: Vnia M. Barbosa
Coordenao da Diviso de Publicaes: Vanessa Albertinence Lopez
Organizadores
Assembleia Legislativado Estado do Rio Grande do Sul
A DITADURA DE
SEGURANA NACIONAL
NO
RIO GRANDE DO SUL
(1964-1985):
HISTRIA E MEMRIA
Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964
Volume 1
Corag
Porto Alegre
2009
D615
CDU 981.651964-1985(093)
CDU: edio mdia em lngua portuguesaResponsabilidade: Biblioteca Borges de Medeiros Bib. Dbora Dornsbach Soares CRB-10/1700
Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985) : histria e memria. / organizadores Enrique Serra Padrs, Vnia M. Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simes Fernandes. Porto Alegre : Corag, 2009. v. 1 ; 272 p. : il.
ISBN 978-85-7770-087-5
Contedo: v. 1. Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964 v. 2. Represso e Resistncia nos "Anos de Chumbo" v. 3. A Conexo Repressiva e a Operao Condor v. 4. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratizao.
Realizao: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Escola do Legislativo.
1. Ditadura Rio Grande do Sul. 2. Golpe civil-militar (1964) Rio Grande do Sul. 3. Grupo dos Onze. 4. Movimento Poltico. 5. Brasil Presidente (1961-1964 : Joo Belchior Goulart). I. Padrs, Enrique Serra (org.). II. Barbosa, Vnia M. (org.). III. Lopez, Vanessa Albertinence (org.). IV. Fernandes, Ananda Simes (org.). V. Ttulo: Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964. VI. Represso e Resistncia nos "Anos de Chumbo". VII. A Conexo Repressiva e a Operao Condor. VIII. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratizao.
CopyrightCapa - Projeto grfico - Diagramao - Dado Nascimento Equipe tcnica de apoioAlessandra GasparottoClaci Maria GasparottoGraciene de vilaMarcos MachryMariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpo
Reviso de Lngua Portuguesa
Superviso TcnicaSnia Domingues Santos Brambilla - CRB 10/1679Dbora Soares - CRB 10/1700Diviso de Biblioteca
Endereo para correspondnciaEscola do Legislativo Deputado Romildo BolzanPraa Marechal Deodoro, n 101 Solar dos CmaraCEP 90010-900 Porto Alegre/RS - BrasilOs conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade dos autores. permitida a reproduo parcial ou total, desde que citada a fonte e mantido o texto original.
Andr Rousselet Sard, Dado Nascimento, Bernardo BertonAndr Rousselet Sard, Dado Nascimento, Bernardo Berton
Dornsbach
Departamento de Taquigrafia da Assembleia Legislativa RSGabinete de Consultoria Legislativa da Assembleia Legislativa RSEscola do Legislativo
da Assembleia Legislativa RS
Dados Internacionais de catalogao na fonte (CIP Brasil)
Dedicamos esta obra aos que ontemlutaram contra a ditadura
e, tambm, aos que hoje lutam por Verdade e Justia.
Quero dizer teu nome, Liberdade,quero aprender teu nome novamentepara que sejas sempre em meu amor
e te confundas ao meu prprio nome.Deixa eu dizer teu nome, Liberdade,
irm do povo, noiva dos rebeldes, companheira dos homens, Liberdade,
teu nome em minha ptria uma palavraque amanhece de luto nas paredes.
Deixa eu cantar teu nome, Liberdade,que estou cantando em nome do meu povo.
Thiago de Mello1966
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,a poesia agora responde a inqurito policial-militar.
Digo adeus ilusomas no ao mundo.
Mas no vida,meu reduto e meu reino.
Do salrio injusto,da punio injusta,
da humilhao, da tortura, do horror,
retiramos algo e com ele construmos um artefato
um poemauma bandeira.
Ferreira Gullaragosto de 1964
Apresentao da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.......................................................Ivar Pavan
Apresentao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul............................................................Temstocles Amrico Corra Cezar
Prefcio...............................................................................................Luis Fernando Verissimo
Prefcio...............................................................................................
Vnia M. BarbosaVanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes
Introduo 1964: O Rio Grande do Sul no olho do furaco...........................................Enrique Serra PadrsRafael Fantinel Lameira
O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, "celeiro" do Brasil...............................................Claudia Wasserman
Ausncias e presenas da resistncia na ditadura................................Raul Pont
"Capito, vamos trabalhar juntos?".. ..................................................Emlio Neme
SUMRIO
15
17
19
21
33
51
71
93
Enrique Serra Padrs
Grupos dos Onze: lembranas que contam a verdade histrica..............................................................................Srgio Gonzalez
Meu primeiro comcio .....................................................................Wladimyr Ungaretti
Memrias de um comunista...............................................................Joo Aveline
Lies de 1964....................................................................................Pedrinho Guareschi
Sobre Joo Goulart.............................................................................Christopher Goulart
Mximas e mnimas: os ventos errantes da mdia na tormenta de 1964..............................................Luiz Cludio Cunha
Cronologia O Rio Grande do Sul e o golpe civil-militar..........................................................................Graciene de vilaMarcos MachryMariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpo
Lista de abreviaturas e siglas...............................................................
Anexo I Deputados estaduais do Rio Grande do Sul cassados (1964-1966)..........................................
Anexo II Grande Expediente 45 anos do golpe 31 de maro de 2009..........................................................................
..
97
109
115
145
175
179
223
239
247
251
Tem dias que a gente se senteComo quem partiu ou morreu
A gente estancou de repenteOu foi o mundo ento que cresceu...
A gente quer ter voz ativaNo nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda vivaE carrega o destino pra l...
Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio
O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...
A gente vai contra a correnteAt no poder resistir
Na volta do barco que senteO quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultivaA mais linda roseira que h
Mas eis que chega a roda vivaE carrega a roseira pra l...
Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio
O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...
Chico Buarque, 1967Roda Viva
A roda da saia mulataNo quer mais rodar no senhor
No posso fazer serenataA roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativaViola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda vivaE carrega a viola pra l...
Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio
O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...
O samba, a viola, a roseiraQue um dia a fogueira queimou
Foi tudo iluso passageiraQue a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativaFaz fora pro tempo parar
Mas eis que chega a roda vivaE carrega a saudade pra l...
Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pio
O tempo rodou num instanteNas voltas do meu corao...
APRESENTAO DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SULIvar Pavan*
* Presidente da Assembleia Legislativa-RS no ano de 2009.
Democracia e valorizao do Parlamento constituem um dos
eixos de atuao da Assembleia Legislativa durante esta gesto em 2009.
Destacar importantes datas como a dos 30 anos da Anistia, dos 20 anos
da Constituio Estadual e dos 45 anos do golpe de 64 so diretrizes das
aes do Poder Legislativo gacho.
Esta obra resultado de um importante esforo de
sistematizao de pesquisa, testemunhos e reflexes sobre as condies,
consequncias e perspectivas instauradas no Brasil desde o golpe de 1964
at o perodo reconhecido como de transio democrtica.
A riqueza da abordagem devida tanto diversidade de
enfoques produzidos por competentes e comprometidos estudiosos e
ativistas de direitos humanos como organizao em temas que
destacam e detalham: o golpe em si; a represso e a resistncia; a
Operao Condor; a anistia e a abertura polticas.
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
apresenta, com esta coletnea, mais uma expresso de seu compromisso
com a construo da democracia.
15
APRESENTAO DAUNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE DO SUL
O Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul sente-se honrado em
apresentar ao pblico o resultado da primeira ao da parceria com a
Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado do Rio
Grande do Sul.
A participao de professores e alunos dos cursos de graduao,
mestrado e doutorado deste Instituto, na coletnea de livros intitulada A
Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985):
Histria e Memria, confirma o crescente envolvimento dos cursos do
IFCH com a histria recente do Brasil e do Rio Grande do Sul.
Nos ltimos anos, a UFRGS tem contribudo significativamente
na produo de conhecimento especfico sobre a temtica relacionada
com o perodo da ditadura. De forma concreta, isso pode ser aferido pelas
inmeras pesquisas transformadas em dissertaes de mestrado e teses de
doutorado e publicaes individuais ou coletivas. Por outro lado, essa
produo vem acompanhando tanto as atividades de ensino quanto as de
extenso, atravs de eventos regulares oferecidos para a comunidade
gacha em geral.
Temstocles Amrico Corra Cezar*
* Diretor do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas/UFRGS.
17
Temas como "A Abertura dos Arquivos Repressivos", "o Golpe
de 64", "Os Expurgos da UFRGS", "O 68", "O Sequestro dos
Uruguaios", "O AI-5", "A luta pela Abertura Poltica e pela Anistia" e "A
Operao Condor", entre outros, tm sido contemplados nas atividades
desenvolvidas pela nossa comunidade. Especialistas como Carlos Fico,
Marcelo Ridenti, Maria Aparecida Aquino, Jessie Jane V. de Souza, Selva
Lpez e lvaro Rico ministraram cursos e conferncias. E a casa acolheu,
ainda, sistematicamente, depoimentos de Suzana Lisboa, Cludio
Gutirrez, Joo Carlos Bona Garcia, Jair Krischke, Guillermo Rallo,
Aurlio Gonzalez, Ignz Serpa, Luiz Cludio Cunha, Aveline Capitani e
Universindo Rodrguez Daz, entre tantos outros.
Neste sentido, trata-se de obra coletiva que articula o resgate de
memrias, atravs da voz e do texto dos prprios protagonistas, anlise
de especialistas, oferecendo um panorama diverso, rico em lembranas,
sensibilidades e experincias, escritas sob forte rigor cientfico. Cumpre,
ainda, uma funo vital que um compromisso do IFCH: a divulgao
social do conhecimento produzido dentro do mbito acadmico.
Assim, o IFCH, cujo nome lhe foi atribudo em 1970 pelo
decreto da ditadura militar que fragmentou a universidade em diversas
unidades, cumpre, como herdeiro que da antiga Faculdade de Filosofia
da UFRGS, seu papel de protagonista na resistncia poltica e intelectual
a todas as formas autoritrias de governo e de sociedade.
18
A Histria, segundo um surrado e cnico adgio, sempre a
verso dos vencedores. Uma mentira oficial se instala e se institucionaliza
e com o tempo vira verdade. Mas o tempo nem sempre colabora. Com o
tempo vem a resignao e a opo por no turvar guas passadas ou
reabrir velhas feridas - mas tambm vem a distncia necessria para
reexaminar mentiras estabelecidas. O tempo perdoa ou condena,
confirma ou desmente. O tempo traz o esquecimento - ou agua a
memria. E nada ameaa mais a verso dos vencedores do que memrias
aguadas.
Depois do fim do regime militar instaurado em 1964 vivemos,
no Brasil, num curioso estado de faz-de-conta, exemplificado pela anistia
geral dada a vencidos e vencedores. Buscava-se um "desarmamento dos
espritos" (frase muito usada na poca, mas inadequada: no foram
exatamente espritos armados que nos dominaram durante 20 anos), mas
o verdadeiro objetivo era fingir que nada tinha acontecido. Assim os
militares voltaram para as casernas sem remorso ou desculpas, os civis que
os apoiaram continuaram suas carreiras polticas sem atos de contrio, as
vtimas sobreviventes do regime refizeram suas vidas e - a ideia era esta -
PREFCIO
Luis Fernando Verissimo*
*Luis Fernando Verissimo jornalista e escritor.
19
no se falava mais nisso. Mas havia as memrias. Durante estes ltimos
anos o pas conviveu com duas histrias, a oficial, a do deixa pra l, e a da
memria das pessoas. Com o tempo este desencontro se agravou. A
memria aguada - assim como a cobrana dos que reivindicam a
verdade apenas para saber onde algum foi enterrado - exige o fim do faz-
de-conta.
E afinal, mesmo aceitando-se a realidade que so os vencedores
que contam a histria, a exigncia no muda. O fim do regime militar foi
uma vitria de uma democracia imperfeita e at agora no consolidada,
mas democracia. O que se quer a verso democrtica da histria do
Brasil.
20
PREFCIO
I.
Este projeto foi, para ns, um percurso singular iniciado no dia
31 de maro de 2009, quando relembramos, por meio da exibio do
filme Jango, de Silvio Tendler, e do Seminrio 45 Anos do Golpe de 64 A
Noite que Durou 21 Anos, a data de 1 de abril de 1964, comeo de um
perodo que manchou de sangue e vergonha a democracia brasileira. O
evento se completou com uma mesa temtica que debateu o Golpe e suas
implicaes.
Participaram do evento os historiadores da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) Carla Simone Rodeghero, Caroline
Silveira Bauer, Claudia Wasserman e Enrique Serra Padrs, alm da
historiadora da Universidade de So Paulo (USP), Maria Aparecida de
Aquino.
A boa acolhida por parte do pblico presente, bem como a
avaliao do registro ainda incipiente sobre a histria recente do Rio
Grande do Sul, foram fatos fundamentais para amadurecer a
possibilidade de um novo desafio: a publicao das intervenes dos
professores convidados com a complementao de alguns depoimentos
que marcaram presena naquele evento original. Aps inmeras
reunies e avaliaes sobre o material disposio, surgiu a ideia de uma
21
Enrique Serra PadrsVnia M. Barbosa
Vanessa Albertinence LopezAnanda Simes Fernandes
coletnea de textos que pudesse apresentar ao pblico, em geral, uma
viso panormica de uma diversidade de manifestaes do que foi o
embate poltico no Rio Grande do Sul, entre 1964 e 1985.
Surgiu, assim, o projeto A Ditadura de Segurana Nacional no Rio
Grande do Sul (1964-1985): Histria e Memria, constitudo de quatro
volumes: 1) Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964; 2)
Represso e Resistncia nos "Anos de Chumbo"; 3) A Conexo
Repressiva e a Operao Condor; 4) O Fim da Ditadura e o Processo de
Redemocratizao.
Esta coletnea de livros torna-se uma espcie de certido, na
medida em que possibilita a compreenso sobre a vida dos gachos, cujo
destino foi alterado por um "suposto acaso histrico", um desvio
inesperado que, por uma combinao de foras de poder, tornou-nos
estranhos no prprio pas.
A obra rene artigos cientficos escritos por especialistas no
tema, textos testemunhais redigidos pelos prprios protagonistas e
depoimentos orais obtidos por meio de entrevistas, transformando-os
em fontes preciosas. claro que h evidentes lacunas e faltam muitos
protagonistas essenciais. Desde j agradecemos, humildemente, toda
colaborao que nos ajude a sanar possveis imprecises e at algum
equvoco; do ofcio, sobretudo quando se parte de uma base de
conhecimento ainda no sistematizada, pouco conhecida e restrita
especificidade da pesquisa acadmica ou memria individual. Mas um
primeiro esforo no sentido de comear a pensar coletivamente,
respeitando a singularidade das trajetrias e as perspectivas das anlises, a
experincia traumtica do perodo discricionrio sobre a populao do
Rio Grande do Sul, suas instituies e seu cotidiano.
Assim, da construo da coletnea, participaram mulheres e
homens que foram generosos ao aceitar o desafio de, com
22
desprendimento e coragem, contribuir para desvendar e lembrar um
perodo da nossa histria que no pode se repetir jamais. E, claro, para o
enriquecimento do nosso projeto tivemos a sorte de contar, tambm, com
a colaborao de pessoas e instituies que nos permitiram acesso a
arquivos privados ou disponibilizaram fotos e documentos.
II.
Em relao ao perodo da ditadura civil-militar, o Rio Grande do
Sul apresenta as suas peculiaridades em termos das grandes anlises de
conjunto construdas desde o centro do pas. Em primeiro lugar, pelo fato
de ter uma forte tradio trabalhista, o que ajudou a configurar um
grande apoio s Reformas de Base do governo de Joo Goulart. Em
segundo, a marca deixada no imediato pr-golpe, pela Campanha da
Legalidade, fundamental para reverter o quadro golpista deflagrado em
1961, quando da renncia de Jnio Quadros.
Alm disso, naquele contexto, a condio de ser um estado
fronteirio da Argentina e do Uruguai foi uma particularidade que gerou
cinco tipos de dinmicas, no necessariamente simultneas em termos
cronolgicos:
primeiro, referente ao fato de constituir uma espcie de base de
projeo da influncia brasileira sobre o espao platino
(lembrando, por exemplo, a preparao da "Operao Trinta
Horas" e a construo de uma infraestrutura rodoviria ligando
estrategicamente o centro do pas com o extremo sul do estado);
segundo, vinculada percepo geopoltica de fronteiras
nacionais ameaadas tanto pela mtua rivalidade e desconfiana
da Argentina, quanto pela presena de "ameaadoras" foras
subversivas, nacionais ou estrangeiras (com a consequente
23
militarizao da regio e a conformao dela como rea de
segurana nacional);
terceiro, pela configurao do territrio estadual como corredor
para o trnsito da resistncia ("pombos-correio" de Brizola,
esquemas para retirar ou reintroduzir perseguidos polticos) e da
represso;
quarto, o reconhecimento de que o Uruguai, pas vizinho, virou
santurio preferencial do exlio brasileiro entre 1964-1968,
enquanto que o Rio Grande do Sul tornou-se uma rea acessada
por organizaes perseguidas naquele pas e na Argentina desde
o final dos anos 1960 e durante a dcada de 1970 o que deu
especial conotao ao estado dentro da lgica da Segurana
Nacional;
finalmente, o Rio Grande do Sul foi alvo especial da ao da
Operao Condor contra cidados uruguaios e argentinos.
III.
A memria, na medida em que se relaciona com o passado,
constitui um elo indiscutvel entre o presente e esse passado (que pode ter,
inclusive, uma temporalidade difcil de precisar). Trata-se de uma espcie
de ponte que conecta, articula e relaciona elementos temporais, espaciais,
identitrios e, tambm, histricos. Deve-se salientar ainda que, assim
como a histria no neutra, tambm no h neutralidade nos registros
da memria. As lembranas no so registros passivos ou aleatrios da
realidade.
Alm disso, a memria no sinnimo de histria ou de
realidade histrica passada. Entretanto, a importncia da memria para a
histria no pequena, pois ela constitui significativa fonte para o
trabalho dos historiadores; as lembranas e reminiscncias da memria
24
1 LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 1996.2 BURKE, Peter. Variedades de histria cultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.
coletiva auxiliam ao historiador que, com o rigor da sua metodologia de
trabalho, as transforma em valiosas fontes para a produo do
conhecimento cientfico. Ou seja, a histria identifica, contextualiza e
analisa as memrias como fonte; entretanto, elas tambm podem ser o
seu objeto de estudo.
importante destacar que, assim como a histria, a memria
lugar e objeto de disputa nas relaes de poder em confronto na realidade
social. Jacques Le Goff esclarecedor quando afirma que: "Tornarem-se
senhores da memria e do esquecimento uma das grandes
preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que dominaram e
dominam as sociedades histricas. Os esquecimentos e os silncios da
histria so reveladores desses mecanismos de manipulao da memria 1coletiva".
A anlise da temtica da memria implica em reconhecer que h,
como contrapartida, o esquecimento, os silncios e os no ditos. O
esquecimento pode ser uma opo de restringir ao essencial certos fatos
ou informaes a respeito deles. Mas tambm pode ser o resultado de
uma ao deliberada de ocultamento. Diante dessa dupla possibilidade,
pode ser til a proposta de Peter Burke de "examinar a organizao social
do esquecer, as regras da excluso, supresso ou represso e a questo de
quem quer que quem esquea o qu e por qu". Essa a frmula, para ele, da 2amnsia social, dos atos de esquecimento. Na disputa pelo que lembrar,
possvel pensar em memrias subterrneas, que surgem e se mantm nos
interstcios dos espaos compreendidos entre o esquecimento e a
memria social. Elas expressam as memrias dos excludos, dos
esquecidos da memria oficial.
Sendo a memria coletiva uma construo social e um fator de
identidade de uma comunidade, ento, como viver com esquecimentos
25
impostos? Como lembrar ou esquecer o que no se permite conhecer?
Como conviver diante do apagamento (desmemria)? Para uma dada
coletividade, quais os prejuzos implcitos nesse acesso ao (des)conhecido
passado bloqueado? Os responsveis pelos anos de chumbo latino-
americanos sabem que o desconhecimento impede o posicionamento
consciente; sabem, tambm, do potencial de inrcia que possui o
esquecimento coletivo. "A impunidade filha da m memria. Sabiam disso
todas as ditaduras militares de nossas terras", bem disse Eduardo Galeano.
Na Amrica Latina do ps-ditaduras, as instituies do Estado,
boa parte do setores polticos e empresariais, as Foras Armadas e
importantes segmentos da economia internacional e da poltica externa
norte-americana tm conspirado fortemente contra o lembrar. Se no
fosse a resistncia pelo resgate da memria e da histria, por parte de
determinados setores poltico-sociais, a tendncia vitoriosa teria sido a da
imposio de um esquecimento acelerado.
Os processos de anistia no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina
no s pouparam os vencedores das ditaduras de Segurana Nacional
como os recompensaram. E as "redemocratizaes" fragilizaram-se
diante da manuteno do entulho autoritrio que ainda hoje permanece
fortemente arraigado ao poder. A institucionalizao do silncio oficial e
a supresso da memria coletiva foram fundamentais para
desresponsabilizar os culpados e impor o anestesiamento e a amnsia do
silncio final. Diante de tamanha manipulao, pode-se coincidir com
Yosef Yerushalmi, quando afirma que, em determinadas situaes, a
anttese da palavra esquecimento e da palavra silncio talvez no seja 3memria, seno, justia.
O conhecimento sobre os acontecimentos das ltimas dcadas
no Cone Sul latino-americano exige o trabalho de resgate das memrias
3 YERUSHALMI, Yosef H. et al. Usos del olvido. Buenos Aires: Nueva Visin, 1989.
26
individuais e de elaborao de uma memria coletiva, mas tambm de
recuperao da prpria histria. Tanto a recuperao da elaborao da
memria contra o apagamento/esquecimento induzido/desmemria,
quanto a procura da verdade do que foi dito que nunca ocorreu, so
compromissos da histria e responsabilidade dos historiadores. Isto
implica, tambm, em apurar, cada vez mais, a importncia do papel da
memria na dinmica temporal onde o passado sempre objeto e motivo
de reflexo para o presente e at para o futuro. Da mesma forma, isso
tambm se configura para a afirmao do papel que a memria
desempenha como matria-prima sobre a qual o historiador pode
produzir, com seus mtodos de trabalho, o conhecimento histrico.
IV.
Nessa incurso foi preciso levantar, incansavelmente, o vu do
esquecimento que paira sobre a vida dos brasileiros ao longo da histria.
Mas esse trabalho de investigao nos serviu de estmulo para enfrentar
os limites e desafios que, como era de se esperar, o longo trajeto nos
imps.
Eis aqui nossa coletnea aberta e intensa porm ainda
incompleta, porque faltam muitos registros. Outras obras muito
revelaram e com certeza outras viro, muito aprimoradas, com a incluso
de novos fatos, crticas e contribuies. E para elas estaremos de braos
abertos, firmes no nosso propsito de apoiar todo projeto voltado
promoo dos direitos humanos.
Deixamos aqui a nossa humilde contribuio; um pequeno gro
de areia diante de tudo o que falta por fazer. Uma obra que foi tomando
corpo durante a caminhada que se tornou muito especial. Caminhada
marcada pela generosidade dos que socializaram suas experincias de luta
e resistncia vividas e da solidariedade de todos os que se engajaram em
27
este trabalho coletivo. Caminhada... como aquela cantada em outra
lngua pelo poeta de outro tempo e de outro lugar; caminhada fraterna
dos caminhantes que lutaram e lutam pela igualdade social e por um
mundo realmente melhor:
Caminante, son tus huellas el camino,
y nada ms;caminante, no hay camino,
4se hace camino al andar.
V.
O presente livro traz uma srie de depoimentos e textos que nos
permitem acessar o cenrio brasileiro e gacho no momento do Golpe de
1964 e refletir sobre tal acontecimento, seus antecedentes, protagonistas
e desdobramentos.
De incio, o texto da professora do Departamento de Histria e
do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Claudia Wasserman, apresenta uma anlise
aprofundada das contradies e disputas que estavam em curso no
momento anterior ao Golpe, traando um panorama das lutas polticas
em curso no pas e, especialmente, no Rio Grande do Sul. A autora traz
uma srie de elementos que nos permitem compreender o cenrio
poltico gacho da poca, marcado tanto pela atuao de Ildo
Meneghetti, eleito governador em 1962 e apoiado pelas foras
conservadoras, como pelo protagonismo poltico de Leonel Brizola e seu
projeto nacionalista. Alm disso, a autora discorre sobre a histria do Rio
Grande do Sul no momento posterior ao Golpe, comentando sobre os
diferentes governos estaduais que se seguiram, e discute sobre a produo 4 Antonio Machado (Sevilla, 1875 Collioure, 1939). Proverbios y Cantares. Campos de Castilla
(1912).
28
historiogrfica recente, enfatizando a importncia dos novos estudos
para a compreenso de nossa histrica recente.
O deputado estadual Raul Pont apresenta algumas reflexes e
memrias que abarcam importantes momentos. Recuando no tempo at
a morte de Getlio Vargas, em 1954, Pont traa uma anlise sobre
questes significativas para a compreenso do contexto que levou ao
Golpe de 1964, como a Guerra Fria, o anticomunismo presente nos
meios militares, as tentativas anteriores de golpe no Brasil e a falta de
preparao, por parte da esquerda, para enfrentar o golpe. O ex-prefeito
de Porto Alegre tambm discute sobre a resistncia contra a ditadura e
seus limites, bem como as transformaes vividas pelos grupos e
organizaes de esquerda no ps-abertura e a constituio do Partido dos
Trabalhadores.
O depoimento do Coronel Reformado da Brigada Militar
Emlio Neme retrata um dos momentos mais marcantes da recente
histria poltica gacha a Campanha da Legalidade. Em seu texto ele
narra como se constituiu, dentro da Brigada Militar, a rede de apoio que
garantiu ao ento governador Leonel Brizola as condies de resistir
tentativa de impedir a posse de Joo Goulart em 1961. Neme, que
tambm foi chefe de Segurana de Brizola e estava junto a ele no
momento do Golpe, traz alguns apontamentos sobre a trajetria do ex-
governador a partir daquele episdio, especialmente sobre a perseguio
que sofreu e sua partida para o exlio.
Srgio Gonzalez apresenta algumas reflexes acerca dos Grupos
dos Onze, organizados em torno da figura de Leonel Brizola a partir de
1963. Gonzales busca problematizar a forma como tem sido lembrada a
trajetria e a atuao dos Grupos dos Onze no pas e traz algumas
memrias de suas vivncias enquanto integrante de um dos grupos.
29
Wladymir Ungaretti narra sua participao no grande comcio
na Central do Brasil, em maro de 1964, e o comeo de sua militncia
poltica. O jornalista estava ento iniciando sua participao no PCB, e
aquele foi o seu primeiro comcio. Ungaretti relembra alguns episdios da
poca, discorrendo sobre as utopias, os companheiros de militncia e as
experincias que vivenciou.
Apresenta-se, tambm, uma entrevista com Joo Aveline,
jornalista e um dos mais destacados militantes do Partido Comunista
Brasileiro no Rio Grande do Sul. Realizada em junho de 2005, meses
antes de seu falecimento, a entrevista compreende diferentes momentos
da histria de vida de Aveline, perpassando o incio de sua trajetria
poltica e o ingresso no PCB, a militncia sob o governo Vargas, o
processo que levou ao Golpe, sua atuao como jornalista, o
recrudescimento da represso e sua priso em 1975, e o posterior
processo de abertura poltica. O jornalista tambm traou um panorama
das principais lutas travadas no campo da esquerda ao longo do sculo
XX, oferecendo uma srie de subsdios para que possamos refletir sobre
os partidos e organizaes de esquerda, suas prticas e projetos em nossa
histria recente, especialmente no ps-1964.
O texto de Pedrinho Guareschi, intitulado "Lies de 1964",
traz algumas relembranas do autor sobre o perodo e reflexes que nos
ajudam a compreender o complexo processo que culminou com a queda
de Jango. Guareschi atenta para as dificuldades que temos para perceber
certos processos quando estamos no turbilho dos acontecimentos,
discute o que significa pensar no Golpe mais de quarenta anos depois e
quais as lies que podemos tirar desse episdio. Para o autor, preciso
perceber que a anlise daquele momento histrico pode nos auxiliar a
compreender os desafios que se impem nos dias atuais.
30
Para que no se esquea
Para que nunca mais acontea!
Os organizadores
Christopher Goulart apresenta algumas consideraes acerca da
biografia e da trajetria poltica do ex-presidente Joo Goulart. O neto de
Jango conta sobre sua peregrinao pelo estado, atravs do Instituto Joo
Goulart, com o objetivo de resgatar a histria de seu av, debatendo com
a sociedade sobre o seu governo, sua postura de conciliao e o projeto
reformista que foi derrotado em 1964.
Por fim, o texto de Luiz Cludio Cunha traz algumas
consideraes sobre o papel desempenhado por setores da grande
imprensa no processo que levou ao Golpe de 1964. O jornalista analisa
diferentes veculos de comunicao no perodo, buscando evidenciar a
participao da grande imprensa na divulgao de ideias anticomunistas
e na oposio a Joo Goulart, bem como seu apoio no momento do Golpe
e sua posterior adeso ao projeto ditatorial. Cunha tambm discute sobre
as campanhas patrocinadas pelo complexo IPES/IBAD (Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ao Democrtica),
disseminadas pela imprensa escrita, rdio e televiso, e seu papel no
sentido de manipular a opinio pblica contra Jango.
31
s 18horas e 10 minutos do dia 3 de abril de 1964, o ento
governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, fazia sua entrada na
capital do estado, em pose triunfal, acompanhado do recm-nomeado
comandante do III Exrcito, general Mrio Poppe Figueiredo, que ainda
trajava seu uniforme de campanha. Ambos retornavam de Passo Fundo
em um veculo militar de combate frente de um "aprecivel cortejo" de
viaturas militares e de nibus que conduziam foras militares do Exrcito
e da Brigada. Chegaram juntos, a estes, o comandante da Brigada Militar
coronel Otvio Frota, o chefe da Casa Civil do governo, Plnio Cabral, e o
chefe da Casa Militar, coronel Orlando Pacheco. O tom triunfal marcado
pela cena apotetica do simbolismo militar ficava por conta do xito do
Golpe civil-militar que derrubou o ento presidente constitucional do
Brasil, consumado no estado do extremo sul brasileiro apenas s 11 horas
e 45 minutos do dia 2 de abril, quando o presidente Joo Goulart retirou-
se de Porto Alegre. Ali havia estabelecido sua ltima tentativa de
resistncia, no bem-sucedida. Partiu rumo ao exlio no Uruguai, de onde
jamais retornaria em vida. Ficava mascarado o incmodo fato de que,
dois dias antes, o prprio Meneghetti tivera que fugir de Porto Alegre
INTRODUO
1964: O RIO GRANDE DO SUL NO OLHO DO FURACO
Enrique Serra Padrs*Rafael Fantinel Lameira**
* Professor do Departamento de Histria e do PPG-Histria/UFRGS.** Mestrando em Histria/UFRGS. Est desenvolvendo a dissertao Os movimentos sociopolticos liberal-conservadores na construo e consolidao da ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul. Do Golpe de 1964 ao AI-5.
33
diante do temor mobilizao das foras de oposio ao Golpe. Mas esta
uma histria que precisa ser contada desde o comeo.
No dia 1 de abril de 1964, em meio ao clima de apreenso e do
desencontro, e at mesmo ausncia de informaes, noticiava-se a
deflagrao de um movimento sedicioso, partindo de Minas Gerais sob o
comando militar do general Mouro Filho, e poltico, do governador
Magalhes Pinto. De imediato, o comandante do II Exrcito, general
Amauri Kruel, compadre e amigo do presidente, aderiu revolta. Na
justificativa destes, o "movimento" se dava pela preservao da liberdade
e da democracia, contra a conspirao dos comunistas que
"conspurcavam a ptria" e o prprio governo. Os acontecimentos j so 1bastante narrados e conhecidos.
A deflagrao do movimento militar foi a culminncia e a parte
mais visvel de um amplo movimento civil-militar que no pode ser
considerado de forma simplista ou com base em binmios explicativos.
Em termos conjunturais, pode ser pensado como um contragolpe
preventivo, deflagrado contra a ascenso das lutas dos movimentos
sociopolticos, baseados, majoritariamente, em um programa
nacionalista e reformista. No jargo poltico destes movimentos, o
objetivo era realizar reformas sociais para tornar o capitalismo mais
humano e democrtico. Entretanto, esta viso no pode limitar a
percepo de que se tratou tambm de um movimento sociopoltico que
aglutinou amplos setores liberais e conservadores em nome de um
projeto poltico baseado nas formulaes da Doutrina de Segurana
Nacional e Desenvolvimento. Outra dimenso fundamental do Golpe de
1964 est vinculada relao com as estruturas que lhe do significado;
nesse sentido, ele tambm faz parte do contexto de radicalizao poltica
da Guerra Fria, agravada, ainda, nas Amricas, pela Revoluo Cubana.
1 Correio do Povo, Porto Alegre, 3 abr. 1964.
34
Assim, o Golpe de 1964 constituiu um evento que, simultaneamente,
toma significado a partir das estruturas sociais do sculo XX, na mesma
medida em que confere significado s estruturas sociais brasileiras e sul-
rio-grandenses, quais sejam: o elitismo e o conservadorismo polticos
daqueles que se percebem como "responsveis pela ptria" e a constante
identificao de democracia com ordem e harmonia social. Dentro dessa
perspectiva, possvel compreender como o Golpe contou com total
apoio e colaborao do governo dos Estados Unidos, atravs do
embaixador Lincoln Gordon. Tal apoio no era somente poltico, mas
tambm militar, consubstanciado num plano de contingncia que previa
apoio logstico e de tropas aos setores golpistas, expresso na famosa
Operao Brother Sam, caso houvesse resistncia. Tal plano contou com
planejamento conjunto entre militares brasileiros e o governo dos EUA,
atravs de seu Departamento de Estado. Sabe-se tambm da ampla
participao desta potncia estrangeira na campanha de desestabilizao
e na conspirao contra Goulart, junto com as entidades das classes 2 conservadoras do Brasil. Compreender este ponto fundamental para
entender a relao entre o Golpe de Estado no Brasil e o contexto mais
amplo da Guerra Fria, no qual tal conflito se situa. No se trata de pensar
numa grande conspirao internacional, nem de imputar o protagonismo
nem os males da nossa sociedade ao "outro", ao estrangeiro, mas
compreender o processo histrico em sua totalidade, para no falsear a
realidade ou isolar elementos importantes e complementares para
entender como o Brasil mergulhou em mais de 20 anos de ditadura de
Segurana Nacional.
Frente deflagrao da movimentao militar do movimento
golpista, Goulart nomeou o general legalista Ladrio Pereira Telles para
2 FICO, Carlos. O Grande Irmo: da Operao Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008.
35
assumir o comando do III Exrcito, que abarcava a regio sul (os estados
do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran); seu Quartel-General
era em Porto Alegre. Goulart pretendia estabelecer a sua resistncia na
mesma cidade que lhe havia garantido a posse a partir da Campanha da
Legalidade, em 1961, comandada pelo ento governador Leonel Brizola.
Ladrio Telles chegou a Porto Alegre nas primeiras horas do dia 1 de
abril, onde foi recepcionado pelo prefeito da capital, Sereno Chaise, do
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo momento em que o
general Jair Ribeiro, recm-operado, reassumiu o Ministrio da Guerra.
Ao chegar, o novo comandante lanou uma proclamao pblica,
concitando o III Exrcito a permanecer fiel legalidade e ao mandato
constitucional do presidente, juntamente com o povo e a resistncia civil.
O governador do estado, Ildo Meneghetti, do Partido Social
Democrtico (PSD), adversrio poltico declarado do PTB, fazia parte
do movimento golpista, sendo uma das lideranas nacionais. Requisitou,
por decreto, as emissoras de rdio e televiso sediadas na capital, sob a
justificativa de "evitar a sua utilizao para a difuso de pronunciamentos
que possam, de qualquer modo, perturbar a tranquilidade reinante no
nosso estado", procurando evitar que se repetissem fatos como os de
1961. Afirmou tambm que, diante da crise, manteria a ordem em todo o 3Rio Grande do Sul. O objetivo de Meneghetti era muito claro: evitar a
reorganizao da Cadeia da Legalidade. Portanto, na prtica, imps a
censura e o controle estatal, a fim de evitar a reao e rearticulao das
foras contrrias ao Golpe no estado. No plano militar, o governo colocou
a Polcia Militar e a Polcia Civil de prontido. A guarnio da sede do
governo foi reforada e a rea adjacente ao Palcio Piratini foi interditada
ao trnsito. Veculos policiais e militares foram colocados em prontido,
3 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1964, p. 11.
36
4 na necessidade de utiliz-los para deslocar tropas. A sede do governo foi
novamente transformada em quartel-general, protegido por barricadas,
s que, desta vez, a favor do Golpe e contra a ordem constitucional,
embora o discurso dos sediciosos dissesse o contrrio. Apesar do governo
afirmar que as medidas eram apenas preventivas para assegurar a calma
no estado, as mesmas visavam represso rpida dos focos de resistncia.
Tanto o governador como todos os partidos e polticos que
compunham o bloco da Ao Democrtica Popular (ADP), que
comandavam o governo do estado (PSD, UDN, PL, PRP, PDC),
vinham participando da campanha de desestabilizao do governo
Goulart. Meneghetti participava de articulaes nacionais e locais. Foi
assim que, no 22 de maro de 1964, recebeu o governador de So Paulo,
Adhemar de Barros, para discutir a situao poltica nacional e os termos
de um manifesto a ser redigido em conjunto pelos governadores da
oposio. Nessa ocasio, em Porto Alegre, Adhemar de Barros afirmou 5que haveria eleies em 1965, mas tinha dvidas se Goulart as presidiria,
indicando uma clara posio desestabilizadora. J em 24 de maro,
tornou-se pblico o manifesto dos generais, alertando para os perigos
representados pelo presidente da Repblica. Ainda antes, em 16 de
maro, o mesmo Meneghetti enviou um telegrama ao presidente do
Senado, Auro de Moura Andrade, com cpias ao presidente da Cmara,
Ranieri Mazzilli, e a todos os governadores do pas. O telegrama
alcanou repercusso nacional e "definiu" sua posio em face "situao
nacional" e ao comcio da Central do Brasil, marcando sua adeso pblica
conspirao em andamento. O texto, um pouco longo, merece ser citado
pela gravidade do compromisso assumido:
4 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1964, p. 11.5 Correio do Povo, Porto Alegre, 22 mar. 1964, p. 48.
37
Neste momento em que a nao assiste alarmada e inquieta a tantos e to graves ataques s instituies dirijo-me a Vossa excelncia para hipotecar em nome do Rio Grande e em meu prprio irrestrita solidariedade ao Congresso Nacional que agora reabre seus trabalhos. A adoo das medidas que visem a modificar a estrutura econmica do pas a fim de que ela possa atender aos legtimos anseios do povo, pode e deve ser feita ao amparo das leis e da constituio, pois a democracia constitui exatamente o meio e o caminho para a soluo de todos os conflitos. [...] ante os ataques ao Congresso Nacional, lamentavelmente feitos na presena de autoridades responsveis pela salvaguarda da lei e da legalidade, no posso deixar de exprimir minha indignao e o protesto do povo rio-grandense. Assim como em mais de uma oportunidade, defendi a legitimidade integral do mandato do senhor presidente da Repblica, quando esta foi questionada, agora defendo com a mesma firmeza, o direito, as prerrogativas, e a dignidade do Congresso Nacional. A inquietao e a insegurana, que vm solapando a todos os setores da vida nacional, pem em grave risco as instituies democrticas. [...] Reafirmo a Vossa Excelncia que o Rio Grande do Sul, fiel a suas tradies, reagir a qualquer atentado constituio, parta de onde partir, e defender a legitimidade dos mandatos seletivos em qualquer circunstncia e por
6qualquer meio a seu alcance. [...]
No Rio Grande do Sul, os partidos da ADP e as
autodenominadas Classes Produtoras foram protagonistas na construo
das condies polticas para o Golpe. Vale ressaltar que a ao poltica
destes havia iniciado, veladamente, ainda em 1961, mas se intensificou no
final de 1963. Seu envolvimento concreto no Golpe foi inquestionvel.
Logo nas primeiras horas da noite, aps a declarao de
Meneghetti, Plnio Kroeff e Fbio de Arajo Santos, presidentes,
6 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.
38
respectivamente, da Federao das Indstrias do Estado do Rio Grande
do Sul (FIERGS) e da FEDERASUL, foram ao palcio Piratini para
apoiar o governador, em nome dos setores que representavam. Segundo
eles, a mensagem do governador "expressa com fidelidade o pensamento
das classes produtoras do Rio Grande do Sul". Da mesma forma, o
governador recebia muitas manifestaes de apoio de entidades, polticos 7e militares de todo o Brasil.
Os setores empresariais, no dia seguinte, divulgaram um
manifesto central no processo de combate aberto ao governo Goulart.
Nele, indicavam que as entidades dos setores empresariais, conscientes de
suas responsabilidades como "foras vivas da nao, sentiram-se no dever
de se manifestar frente generalizada apreenso" em funo das medidas
tomadas pelo governo federal. Manifestaram
seu veemente protesto contra o clima de agitao provocado em todos os setores da vida pblica nacional, criando situao de intranquilidade, incerteza, e, sobretudo, de insegurana que impede o normal desenvolvimento de todas as atividades e consequentemente, pe em risco, no s a prosperidade da nao, como a prpria sobrevivncia das suas instituies [].
As entidades afirmavam, ainda no mesmo documento, que
nunca se haviam negado a colaborar na resoluo dos problemas
nacionais, mas que, em sua opinio, era preciso uma nova ordem e agir
contra os que "procuram solapar o regime atravs da subverso". O
Manifesto foi assinado pelos presidentes da FIERGS e do CIERGS,
Plnio Kroeff, da Federao das Associaes Comerciais do Rio Grande
do Sul e da Associao Comercial de Porto Alegre, Fbio Arajo dos
Santos, da Federao das Associaes Rurais do Rio Grande do Sul,
7 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.
39
Oscar Carneiro da Fontoura e do Sindicato dos Bancos do Rio Grande 8do Sul, Joo da Costa Ribeiro.
Quanto ADP, em 20 de maro, divulgou o manifesto conjunto
dos partidos que a compunham, propondo um "estado de alerta para
evitar o golpe". Seu contedo denunciava que o governo Goulart
demonstrava "inadaptao ao sistema constitucional e legal que
disciplina as instituies democrticas brasileiras" e, ao no conseguir
cumprir suas obrigaes bsicas, nem conter a inflao, fugia das suas
responsabilidades para atribu-las a outrem. O documento apontava,
ainda, que:
as greves comandadas por organismos esprios e insuflados por agentes do prprio governo, afetando servios pblicos essenciais, decretadas por motivos polticos e paralisando a vida da nao; a agitao dos meios rurais, com o desestmulo da produo, a organizao dos grupos de guerrilha revolucionria, ostensivamente proclamada e tolerada pelo governo; a pregao aberta ao fechamento do congresso, feita em comcio frente as mais altas autoridades da repblica; as ameaas de controle, supresso ou monopolizao dos meios de publicidade e comunicao, [...] esto a indicar um processo subversivo das nossas instituies. H, incontestavelmente, uma infiltrao comunista em todos os setores do governo.
O manifesto finalizava com uma declarao contundente: "Na
defesa intransigente das instituies, os partidos polticos, que somam a
maioria esmagadora da opinio pblica rio-grandense, unem seus
esforos, sob uma nica bandeira, e conclamam seus correligionrios 9resistncia at o ltimo sacrifcio".
8 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.9 Correio do Povo, Porto Alegre, 20 mar. 1964, p. 7 e 16.
40
Desta forma, os caminhos para os ataques ao governo estavam
inteiramente abertos. O jornal Correio do Povo assumiu uma crtica
violenta, acusando Goulart de agitador, violador da democracia,
demagogo e de querer instalar um "neoperonocastrismo" no Brasil (seja l o
que isso quisesse dizer). Adotava uma linha de questionamento como a
que vinha sendo utilizada por Lacerda e a imprensa do centro do pas nos
ataques tanto ao governo federal quanto ao prprio Brizola. Tratava-se
de uma referncia explcita aos planos de instalar no Brasil um regime
comunista aos moldes "caudilhescos" e populistas dos pampas; em
decorrncia, uma mistura de Pern e Fidel Castro, dois dos maiores 10pesadelos das direitas latino-americanas.
A partir de ento, a crise poltica passou a ser objeto de todos os
debates e discursos na Assembleia Legislativa. Enquanto a Ao
Democrtica Popular atacava Goulart e as reformas, o PTB e a Ao
Republicana Socialista (ARS) faziam a sua defesa. A polarizao poltica
era uma realidade. Na Assembleia Legislativa a bancada da ADP, por
iniciativa do deputado Paulo Brossard, tentou votar um requerimento,
manifestando solidariedade ao Congresso Nacional e contra o presidente
Goulart, nos termos j colocados pelo governador. J o PTB, a ARS e o
Movimento Trabalhista Renovador (MTR), em contraposio, tentaram
colocar em votao um requerimento pedindo ao Congresso para ser
sensvel s dificuldades do povo e necessidade de aprovao das
reformas sociais de forma democrtica e popular. Na radicalizao, no
debate e nos subterfgios regimentais, nenhum dos dois requerimentos
foi votado. Em outra sesso, no entanto, a moo da ADP foi vitoriosa 11por 27 votos a 26. O resultado confirma o delicado equilbrio
institucional entre as foras polticas dos dois campos. Isto indica que a
10 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 4. 11 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 mar. 1964, p. 7; Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1964, p. 7.
41
propalada superioridade conservadora , no mnimo, um exagero do
discurso poltico partidrio. Deputados e lderes polticos da ADP
passaram a fazer constantes pronunciamentos em defesa da "unio dos
democratas para salvar a democracia do comunismo e da demagogia". O
presidente e as foras reformistas eram constantemente atacados por
"criar uma situao que paralisava atividades vitais", numa srie de
ultimatos que faziam parte de uma campanha aberta contra as
instituies. O governo e as esquerdas teriam feito, segundo o discurso
conservador/golpista, um ultimato democracia e isso no podia ser 12 tolerado. Nesse sentido, o pronunciamento do deputado Alexandre
Machado, do PSD, na Assembleia Legislativa, foi exemplar. A defesa da
interveno armada foi categrica.
O deputado declarou abertamente que:
a situao nacional chegou a seu ponto mais crtico. Ou reagimos agora ou seremos tragados pelos comunistas, hoje em nossa ptria, chefiados pessoalmente pelo presidente da Repblica. [...] Marchamos para a expropriao de tudo, em nome do povo, tudo se estatizar. [...] o golpe s instituies est iminente. [...] os inimigos da ptria, corruptos e corruptores, esto se preparando para dar o golpe final nas instituies democrticas, e pisaram, eles, fundo no acelerador da revoluo. Vamos agora, eles ou ns, para o abismo. [...] Sei que o governo do estado defender com as armas ao seu alcance a vigncia do regime que os totalitrios querem destruir e ultrajar. Estaremos ao lado do nosso governador, bem como dos governadores de Santa Catarina, Paran, So Paulo, Guanabara e tantos outros, que esto dispostos a dar suas vidas antes de permitirem, o criminoso, brbaro, ilegal, arbitrrio atentado s liberdades e democracia. [...] desejo dos rio-grandenses defenderem seus lares, suas esposas e seus filhos, contra os assassinos e inimigos da ptria, com as armas na mo, dispostos a tudo.
12 Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1964, p. 22.
42
Precisamos pr em arma todos os homens de bem. [...] o Rio Grande no trata de candidaturas. Trata da Salvao
13Nacional.
A Igreja Catlica tambm representou papel ativo e importante
durante todo o processo de tentativa de construo do consenso poltico
em torno do projeto conservador e contra as reformas sociais,
principalmente atravs do arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente
Scherer, que, atravs de sua atividade pblica, missas, jornais e seu
programa de rdio A voz do pastor, associava as reformas ao avano do
"comunismo materialista e ateu", contrrio tradio catlica e crist do
pacfico povo brasileiro. O recado era claro. O arcebispo tambm
inspirou e apoiou a formao, em 9 de maro de 1964, da Ao
Democrtica Feminina (ADF), entidade liderada por Ilda Baumhardt e
Ecilda Haensel, e que se definia "apartidria, sem preconceito de religio
e de raas". Seu programa inclua: "Ensinar a amar a ptria, ajudar os
jovens para que se tornem cidados conscientes, combater a demagogia, a
subverso e a desordem e reformar o que est errado dentro da disciplina 14da ordem e da lei [...]".
A ADF do Rio Grande do Sul era uma das entidades femininas
catlicas e conservadoras que o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES) financiava e orientava politicamente na desestabilizao e 15conspirao contra as foras nacionalistas e Joo Goulart. Por outro
lado, cabe registrar que o IPES tinha uma seo Rio Grande do Sul, a
IPESUL, fundada em maro de 1962, em Porto Alegre. Em meio a esta
efervescncia social que vivia o estado, o IPES passava a ser
propagandeado como uma "entidade plural" que defenderia a "reviso
13 Correio do Povo, Porto Alegre, 26 mar. 1964, p. 7. 14 Correio do Povo, Porto Alegre, 10 mar. 1964, p. 4.15 DREIFUSS, Ren. 1964: a conquista do Estado: ao poltica, poder e golpe de classe.Petrpolis/RJ: Vozes, 1981. p. 295.
43
integral dos padres sociais vigentes", "defensor das tradies
democrticas, crists e ocidentais". Seus organizadores admitiam que a
criao do Instituto na cidade era uma articulao anterior de homens do
comrcio e afirmavam a necessidade das reformas "dentro da
democracia". Entretanto, o IPES foi, junto com o Instituto Brasileiro de
Ao Democrtica (IBAD), o grande organizador da conspirao contra 16Goulart no Brasil. O primeiro presidente da seo gacha (IPESUL)
foi lvaro Coelho Borges, que, na sua posse, declarou que a organizao
era uma aspirao de empresrios, profissionais liberais e democratas, na
convico da necessidade de agir "para melhorar a vida do povo sem 17exigir a perda da liberdade". lvaro Coelho Borges era, tambm,
presidente da FEDERASUL e da Associao Comercial de Porto
Alegre (ACPA), fato que indicava, assim, a estreita ligao entre os
setores empresariais do estado e as atividades golpistas desenvolvidas
pelo IPES em nvel nacional e estadual. Embora a atuao do IPESUL
tenha sido discreta (assim como a matriz nacional), a sua participao
poltica na conspirao golpista foi altamente estratgica.
Diante da profuso de manifestos dirigidos "Nao", entre os
quais os de Mouro Filho, Juscelino Kubitschek, Magalhes Pinto, bem
como os editoriais de jornais de grande circulao no pas, exigindo a
deposio do presidente, chama a ateno, no Rio Grande do Sul, a
tomada de posio do Correio do Povo. Assumindo um tom de
dramaticidade latente, publicou em suas pginas um editorial intitulado
"Pela Lei e Pela Ordem", atravs do qual afirmava que frente aos "graves
acontecimentos de carter poltico militar" deveria se manifestar.
16 . 17 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1962.
DREIFUSS, op. cit
44
Este jornal, fiel a linha que traou seu fundador Caldas Junior, como rgo independente, sem filiaes partidrias, nem vinculao de nenhum tipo, com grupos ou organizaes de qualquer natureza, segue, no entanto, acima de qualquer injuno uma impessoal postura programtica: a defesa das instituies democrticas e da ordem constitucional que as exprime. Mas da verdadeira ordem constitucional, daquela que est no apenas na letra, mas tambm e mais importante e decisivamente, no seu esprito e no seu exato e profundo significado, o qual no se compadece com atentados ou insuflamentos de atentados prpria dignidade das Foras Armadas e prpria autenticidade do regime, pela inverso da hierarquia e pela quebra de disciplina, com projeo na prpria ordem institucional estabelecida.
Clamava, ainda, para que as Foras Armadas cumprissem sua
"histrica misso", de serem "sustentculos da lei e da ordem", sob o
esprito de sua vocao histrica, o cristianismo e o democratismo-
liberal. O encerramento no poderia ser mais categrico: "O caminho a
seguir nesta hora de deciso no comporta dvidas ou vacilaes: o do
saneamento tico das cpulas polticas e administrativas e da anulao
dos inimigos da ptria e da democracia, que se encastelaram
funestamente na prpria cidadela do poder". O discurso golpista
transparecia com toda a fora e justificava a necessidade de infringir a
Constituio "pelo seu prprio bem e pela manuteno da ordem". O
fundo poltico dos conspiradores estava explcito. Nessa perspectiva, a
legalidade precisava estar a servio daqueles que realmente deviam
decidir o que era a "verdadeira ordem constitucional". Tais posies pem
por terra o argumento da suposta neutralidade da imprensa e confirmam
sua tomada de posio inequvoca e responsabilidade na deflagrao do
Golpe.
45
Retomando o contexto imediato do golpe, a situao do
governador Meneghetti se agravou ainda mais; soube, do ento
comandante do III Exrcito, general Galhardo, que este estava disposto a
apoiar o movimento golpista e prender o general Ladrio Pereira Telles,
quando se apresentasse no Rio Grande do Sul. No entanto, quando este
ltimo assumiu efetivamente o Comando do III Exrcito, ocupou
emissoras de rdio, com tropas fiis legalidade, dando oportunidade
para que setores civis organizados em apoio a Joo Goulart dessem incio
ao processo de levante popular, sob liderana de Leonel Brizola e do
prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, tentando repetir a Campanha
da Legalidade de 1961. Um grande nmero de populares marchou para a
Praa da Matriz, a fim de depor o governador e entregar o governo a
Leonel Brizola. O clima no Palcio Piratini era de extrema tenso. A
tropa de choque da Brigada Militar foi acionada e tomou posio
defensiva. O impasse foi atenuado quando Sereno Chaise convocou a
populao a acompanhar o desenrolar dos acontecimentos no Pao
Municipal.
De posse das rdios gachas, a Cadeia da Legalidade foi
reeditada, divulgando notas e proclamaes de entidades, conclamando o
povo resistncia contra o "golpe dos gorilas". O movimento culminou
com a realizao de um comcio no Largo da Prefeitura que contou com
oradores como Leonel Brizola, lvaro Ayala, Vilson Vargas, Floriano
D'villa e o prprio Sereno Chaise. Todos pediram a unio das foras
populares contra o golpe s instituies. Segundo o Correio do Povo, o
prefeito Sereno Chaise permaneceu em seu gabinete desde o incio da
crise, atento ao desenrolar dos acontecimentos, cercado por seus
auxiliares e "elevado nmero de populares", que se colocaram em frente
da prefeitura. Inmeras organizaes e entidades manifestaram apoio ao
prefeito e ao presidente Goulart: Comando de Reivindicaes dos
46
Servidores do Estado, Comando Nacionalista de Guaruj, Frente
Nacionalista do Magistrio Gacho, Conselho Sindical Feminino,
Comando dos Servidores Federais do Rio Grande do Sul, Comisso dos
Profissionais Liberais, Sindicato dos Empregados no Comrcio
Hoteleiro e Similares de Porto Alegre, funcionrios da Prefeitura
Metropolitana, do MASTER, Sindicato dos Oficiais de Barbeiros e
Similares, da Associao dos funcionrios da CEEE e do Sindicato dos
Trabalhadores de Energia Eltrica em Porto Alegre, entre tantas outras.
A sorte da limitada democracia brasileira estava sendo decidida, em
grande medida, no Rio Grande do Sul, onde a resistncia depositou suas
ltimas esperanas.
O governador Meneghetti percebeu que fracassara a manobra de
requisitar as emissoras de telecomunicaes (j ocupadas pelas tropas do
III Exrcito leais a Goulart), e que se encontrava com pouca base social de
apoio em Porto Alegre. Assim, no 1 de abril, sob presso do III Exrcito
e do movimento civil pela legalidade, transferiu a sede do governo para
Passo Fundo, na sede do 3 Batalho de Caadores da Brigada Militar.
Desse local, conclamou o povo gacho contra Goulart e os inimigos da
democracia.
No dia 2 de abril, diante da notcia de que Goulart abandonara
Braslia, anunciava-se a vitria do movimento "rebelde". O presidente
desembarcou em Porto Alegre, acompanhado por ministros e auxiliares,
entre os quais o general Assis Brasil. Cerca de duzentas pessoas o
recepcionaram com "vivas ao presidente do Brasil". Depois de ser
cumprimentado pelo comandante do III Exrcito, Ladrio Pereira
Telles, pelo prefeito Sereno Chaise e pelo deputado Leonel Brizola, bem
como por diversos deputados estaduais, Goulart foi escoltado at a
residncia do comandante do III Exrcito. Especulava-se que o
47
presidente vinha para o Rio Grande do Sul, regio onde contava com 18expressiva base poltica e militar para lutar pela retomada do poder.
Entretanto, a situao militar no III Exrcito mostrava fissuras
importantes. Embora o quartel-general anunciasse que exercia controle
sobre todo o estado, os jornais informavam que tropas da Diviso de
Cavalaria, em Uruguaiana, da 3 Diviso de Cavalaria, em Bag, e da 3
Diviso de Infantaria, em Santa Maria, estavam sublevadas. Mais
preocupante ainda para a resistncia, a 5 Regio Militar que controlava o
Exrcito no estado do Paran, subordinada ao III Exrcito, tambm se
sublevou, declarando adeso ao movimento golpista da mesma forma
que as tropas sediadas em Santa Catarina, as quais aderiram ao comando
do 5 Distrito Naval, cerrando fileiras com o levante. E se a 5 Zona
Area, comandada pelo brigadeiro Othelo Ferraz, declarou-se fiel ao III
Exrcito e Constituio, a Brigada Militar, que em 1961 foi de
fundamental importncia na resistncia da Legalidade, agora, em 1964,
colocava-se ao lado do governador Meneghetti e rejeitava a requisio da
tropa feita pelo general Telles.
Apesar da forte mobilizao popular e do controle de boa parte
do Rio Grande do Sul, o presidente Goulart avaliou que no teria
condies de resistir ao Golpe, dadas as condies militares existentes.
Recusou-se, por sua vez, a distribuir armas populao que estava
disposta a resistir, como fizera Brizola em 1961. Logo a seguir, agradeceu
publicamente a lealdade do povo gacho e das foras do III Exrcito na
defesa da legalidade e da democracia. Ao final da manh do 2 de abril,
voou de Porto Alegre para o exlio no Uruguai, de onde no retornaria em
vida, tornando-se o nico presidente brasileiro a morrer fora do pas.
Anunciada a vitria do Golpe, os sediciosos desencadearam
"aes de limpeza". Mesmo assim, durante os dias 3 e 4 de abril,
18 Correio do Povo, Porto Alegre, 2 abr. 1964.
48
ocorreram movimentos de resistncia, mas, como amostragem do que
viria a seguir, foram duramente reprimidos. Com o controle da situao,
Meneghetti voltou para Porto Alegre junto com o novo comandante
nomeado para o III Exrcito, o general Poppe de Figueiredo. Os
apoiadores e partidrios de Meneghetti, ento, comearam a aparecer e
foi organizada a "festa da vitria da democracia", consubstanciada num
comcio realizado pelo governador e pelas autoridades militares. O
arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, a maioria da imprensa
e as entidades empresariais manifestaram apoio reorganizao e
"limpeza" da nao.
Imediatamente aps o Golpe, a nova fase poltica, que marcaria o
Brasil, comeou a tomar contornos. Centenas de pessoas foram presas,
inclusive o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, mesmo sob
veementes protestos de vereadores e deputados. Leonel Brizola teve de
fugir e se esconder. Ministros de Goulart, lideranas de esquerda e
opositores do Golpe foram presos. A regio do Vale do Rio dos Sinos foi
colocada sob interveno militar, com vrias pessoas presas, a fim de
evitar "desordens". Em nvel nacional e estadual, teve incio o perodo de
acusaes, expurgos e perseguies polticas. O clima de triunfalismo dos
golpistas era evidente. Sob os louros e louvores de uma pretensa "nova
democracia" iniciava-se, assim, a ditadura civil-militar de Segurana
Nacional.
O Golpe de Estado contra o governo do presidente Joo Goulart
s pode ser compreendido dentro do contexto histrico da Guerra Fria e
da polarizao poltico-ideolgico dela decorrente. A compreenso do
Golpe s pode ser efetiva se percebermos a complexa luta poltica entre os
dois projetos de sociedade naquele momento: o projeto nacional-
reformista e o liberal-conservador. Diante da poltica de reformas,
resposta parcial s demandas de uma populao historicamente
49
esquecida e de um projeto de pas autnomo e soberano, os setores
dominantes, atravs dos seus mais diversos mecanismos de dominao, e
o capital internacional a eles associados, desestabilizaram e conspiraram
abertamente contra a administrao Goulart. De qualquer forma,
independentemente das contradies ou dos equvocos desta
administrao e da radicalizao das esquerdas, houve um Golpe de
Estado que foi perpetrado pelo amplo e variado campo da direita. Em
nome do capital, da propriedade privada, da tradio, da famlia e do
mundo ocidental, um governo democraticamente eleito foi derrubado, a
Constituio virou letra morta, atos institucionais foram impostos,
partidos polticos foram proibidos, o Congresso foi depurado, eleies
foram canceladas, milhares de cidados foram vtimas de represso
estatal e expurgos, censura, prises polticas, tortura e desaparecimentos
se tornaram marcas profundas de um regime discricionrio que imergiu o
Brasil em uma longussima noite... uma noite de 21 anos de arbtrio e
autoritarismo.
50
Assim como os bravos farroupilhas lutaram dez anos sem esmorecer, os gachos tambm sabero lutar at a vitria final, oferecendo seu sangue generoso pela causa da Ptria e a Constituio. Soldados e oficiais do bravo terceiro exrcito, soldados e oficiais da gloriosa Brigada Militar! A vs apelo neste momento para que participeis da nossa luta, irmanando-nos aos bravos companheiros de Minas, Gois, Mato Grosso, So Paulo e de todo o norte, que neste momento marcha para libertar a nossa Ptria da demagogia, da inflao e da misria poltica em que nos encontramos.Fragmento do Manifesto de Ildo Meneghetti, em Passo Fundo, dia 1 de abril de 1964
Esse apelo aos gachos foi pronunciado pelo governador do
estado do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, no dia 1 de abril de
1964. Meneghetti j havia sido governador entre 1955 e 1959 e foi eleito
para um segundo mandato em 1962. Representava as foras
conservadoras no Estado, capitaneadas pelos partidos da Unio
Democrtica Nacional (UDN), o Partido Libertador (PL) e o Partido
Social Democrtico (PSD). Desde 1945, o principal enfrentamento
poltico, ideolgico e partidrio no Rio Grande do Sul desenrolava-se
entre os "trabalhistas", liderados por Leonel Brizola, com filiao ao
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e os "conservadores", liderados por
O GOLPE DE 1964: RIO GRANDE DO SUL, "CELEIRO" DO BRASIL
Claudia Wasserman*
* Professora do Departamento de Histria e dos PPG-Histria e Relaes Internacionais/UFRGS.
51
Ildo Meneghetti. Foram quatro embates eleitorais desde 1950 at 1962, a
ltima eleio estadual do perodo democrtico. Entre 1951 e 1955, foi
governador do estado Ernesto Dornelles, que representava o
trabalhismo; entre 1955 e 1959, Ildo Meneghetti, representante dos
conservadores, teve seu primeiro mandato no governo estadual; e, entre
1959 e 1963, foi a vez de Leonel Brizola, lder dos trabalhistas, ocupar o
governo do estado. A conspirao que preparou o golpe de 1964 comeou
com a vitria de Ildo Meneghetti nas eleies estaduais de 1962.
As eleies estaduais de 1962 foram como um divisor de guas na
histria regional da ditadura civil-militar brasileira. Depois de negociada
a soluo parlamentarista para a posse de Joo Goulart, o desfecho da
crise foi praticamente transferido para os resultados eleitorais nos
estados, em 1962. As campanhas de candidatos anti-Jango foram
financiadas pelos Estados Unidos, atravs da Aliana para o Progresso,
num valor aproximado de quatro milhes de dlares, e por intermdio do
Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD), que teria investido
aproximadamente dois milhes de dlares em candidaturas de deputados
e governadores em vrios Estados, inclusive no Rio Grande do Sul.
O Rio Grande do Sul apresentava-se como particularmente
importante nas disputas polticas nacionais por causa da liderana de
Leonel Brizola. Alm de ter sido responsvel pela campanha da
Legalidade (1961), que permitiu a posse de Joo Goulart depois da
renncia de Jnio Quadros, Brizola teve um governo (1959-1963)
marcado pela nacionalizao e estatizao de empresas estrangeiras
(telefonia, eletricidade e transportes), por assentamentos rurais e por
vultuosos investimentos na educao pblica e nas reas estratgicas para
o desenvolvimento econmico da regio. Brizola representava as foras
nacionalistas do Pas, uma vertente poltica que preconizava o
52
desenvolvimento autnomo do capitalismo brasileiro e que era
hostilizada pelos defensores da integrao econmica do Pas aos centros
hegemnicos do capitalismo.
Ao lado dos nacionalistas estavam as classes populares e os
partidos de esquerda, inclusive o Partido Comunista Brasileiro (PCB). 1 Por isso, a Doutrina de Segurana Nacional (DSN), que recomendava
resguardar o Ocidente da ameaa comunista, no distinguia entre aqueles
que eram socialistas de fato e os defensores do nacional-
desenvolvimentismo. Mercedes Cnepa, em seu estudo sobre os partidos
e a representao poltica no estado, observa a "tentativa de alguns
deputados (PSD) em estabelecer ligaes de Brizola e de algumas
lideranas do PTB [...] com o 'movimento bolchevista internacional',
alertando ao Rio Grande do Sul e ao Pas do perigo representado por
falsos democratas que se utilizavam de postos de comando para promover 2o caos social".
O golpe de 1964 foi desferido supostamente contra o
comunismo. Mas, alm dos comunistas, alvos dos Estados Unidos e dos
seus aliados no contexto da Guerra Fria, o golpe tambm foi desferido
contra o governo de Joo Goulart e contra os polticos que defendiam o
projeto nacionalista, como o ex-governador do Rio Grande do Sul
Leonel Brizola, e o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, cujo
apoio a Francisco Julio, fundador das Ligas Camponesas, era visto como
inadmissvel pelas foras conservadoras.
1 A Doutrina de Segurana Nacional pode ser definida como um projeto intelectual produzido a partir dos Estados Unidos e reinterpretado pelos setores conservadores das elites civis e militares da Amrica Latina, que serviu para justificar os golpes de Estado nas dcadas de 1960/70.2 CNEPA, Mercedes Maria Logurcio. Partidos e representao poltica: a articulao dos nveis estadual e nacional no Rio Grande do Sul (1945/ 1965). Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005. p. 299.
53
Neste sentido, no que tange aos estudos sobre a ditadura, no
mais possvel ignorar o papel das diversas foras estaduais brasileiras no
golpe de 1964. Est mais do que na hora de ultrapassarmos o estgio da
generalizao em nossos estudos sobre a ditadura civil-militar
implantada a partir de 1964 no Brasil e nos voltarmos para anlises
especficas das diversas regies do Pas a partir dos estados. O Rio
Grande do Sul teve um papel bastante importante e pouco estudado at
hoje no desenrolar dos acontecimentos que culminaram com a deposio
de Goulart e o sucesso do golpe civil-militar de 1964.
O fato de presos polticos serem tratados pelos guardas em
prises e quartis do Rio Grande do Sul como "tupamaros" exemplifica a
necessidade de aprofundamento das pesquisas regionais a respeito do
perodo. O exemplo fornecido por Jorge Fischer Nunes, no livro O riso
dos torturados. Em suas memrias, o autor conta sobre um episdio no
qual um tenente queria encerrar uma conversa com um preso e teria dito:
"Tupamaro bom, tupamaro morto", ao que podemos estabelecer uma
longnqua conexo com a frase do general Philip Sheridan, que, ao
participar do processo da conquista do Oeste dos Estados Unidos, no
sculo XIX, teria dito: "os nicos ndios bons que j vi estavam mortos".
Assim como nos Estados Unidos tratava-se da conquista de uma
fronteira, no caso do Rio Grande do Sul tambm estvamos diante de
uma situao em que a proximidade com o Uruguai provocava a confuso
entre as denominaes dos militantes, guerrilheiros e revolucionrios de
ambos os lados. Esse exemplo singelo retrata bem a pertinncia de
estudos regionais para o caso da ditadura civil-militar implantada no Pas
a partir de 1964.
54
O ltimo governador do estado eleito atravs de sufrgio
universal e democrtico foi Ildo Meneghetti, apoiado por uma sigla que
reunia todos os partidos conservadores do estado, a Ao Democrtica
Popular (ADP). O conservador Meneghetti assumia o comando do
Executivo estadual, enquanto o Executivo federal se encontrava nas mos
do PTB de Jango e Brizola. Por isso, o governador do Rio Grande do Sul
conspirou para derrubar Joo Goulart desde o primeiro dia de seu
mandato, em maro de 1963.
O secretrio de Segurana de Meneghetti, deputado udenista
Poty Medeiros, mantinha encontros sistemticos com o comandante do 3III Exrcito, general Benjamim Galhardo, e com o general comandante
da 6 Diviso, Adalberto Pereira dos Santos, que em 1973 seria vice-
presidente do general Ernesto Geisel. O Crculo Militar, comandado
pelo coronel Ib Ilha Moreira, que se tornou secretrio da Segurana de
Meneghetti depois do golpe, tambm fazia parte da conspirao que se
reunia em um apartamento alugado na Av. Salgado Filho. O
relacionamento entre civis e militares conferiu ao ato golpista,
posteriormente, uma significativa coeso dos dois ambientes, ao menos,
entre os setores reacionrios de um e outro meio.
No final de 1963, em 14 de dezembro, Meneghetti se posicionou
publicamente atravs de um manifesto, onde alertava para "os riscos da
comunizao do Pas", pela fragilizao do quadro poltico e a conivncia
de Jango com os comunistas. Mais contundente que o Manifesto do
governador foram as respostas que alguns deputados da base aliada a
3 Em artigo sobre o Servio Federal de Informaes e Contrainformao (Sfici), Wilson Machado Tosta Jnior faz a seguinte observao sobre o general: "o Conselho de Segurana Nacional, a cuja Secretaria-Geral era subordinado o Sfici, se ops nomeao de um oficial: o general Benjamin Galhardo, em 1963, para o Sul do Pas. Aconselhado pelo ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, o prprio Goulart foi contra a opinio do CSN e o nomeou para o posto. Segundo Corseuil disse a Carvalho, "a escolha era a pior do mundo" e, se em lugar de Galhardo tivesse sido nomeado o general Ladrio Telles, "o III Exrcito no teria se revoltado".
55
Meneghetti deram nos dias seguintes. Um trecho da carta da bancada da
UDN, lida na Assembleia Legislativa do estado pelo deputado Artur
Banchini, constitui exemplo do clima no Rio Grande do Sul:
Quando assistimos estarrecidos desenvoltura com que os esquerdistas ameaam impunemente as instituies e a tranqilidade da famlia brasileira, querendo, a pretexto de decantadas reformas, implantar no solo ptrio o regime fidelista, a palavra corajosa repulsa do governante rio-grandense ostensiva conspirao em marcha o toque de alerta aos democratas para que, unidos, se apresentem para luta, em defesa das instituies democrticas e das tradies
4crists de nossa terra.
Desde o incio do governo, Meneghetti teve o apoio da maioria
do Legislativo a partir de um acordo realizado logo no comeo do ano,
fruto de uma coalizo parlamentar que se propunha a lutar contra a 5bancada do PTB. O apoio parlamentar auxiliou nas medidas repressivas
e autoritrias do governante que visava conter a mobilizao popular
estimulada pelo governo anterior de Leonel Brizola. A Brigada Militar
foi atuante e conivente com o poder Executivo estadual na represso aos
movimentos populares rurais e urbanos. Um episdio exemplar foi a
represso ao acampamento do movimento dos agricultores sem-terra em
Passo Feio-Nonoai, no dia 4 de fevereiro: os sem-terra foram expulsos,
seus ranchos incendiados e as lideranas sindicais foram presas. Depois
deste episdio, muitos outros se seguiram dentro dos mesmos padres
repressivos, na direo de outros acampamentos em diversas regies do
estado, mas tambm contra os sindicatos urbanos, movimentos de
trabalhadores contra os aumentos de passagens de nibus, movimento
estudantil, entre outros. Neste sentido, Meneghetti antecipava, em nvel
4 Artur Banchini, Anais da Assembleia Legislativa, v. 172, p. 220.5 CNEPA, op. cit., p. 393.
56
regional, um modelo de comportamento repressivo na direo dos
movimentos sociais que se repetiria a partir de 1964 no resto do Pas.
No incio do ano de 1964, a situao do Rio Grande do Sul era
to tensa quanto a conjuntura do restante do Pas, com o agravante da
existncia de uma bancada parlamentar pr-Jango bastante significativa
no estado, o que representava crticas contundentes a cada ato repressivo
do governo estadual. Denncias da iminncia de golpe contra o governo
Goulart, por exemplo, foram constantes neste comeo de 1964 e partiam
do prprio governo do estado. Depois do Comcio da Central do Brasil,
realizado no Rio de Janeiro no dia 13 de maro, sob os auspcios de Joo
Goulart e que reuniu todas as foras do Pas favorveis s reformas de
base, o governador Ildo Meneghetti encontrou-se em Porto Alegre com
os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de So Paulo,
Adhemar de Barros, para articular uma ao poltica contra o governo
federal.
Outro fator que parecia pesar bastante na diviso poltica dos
gachos estava relacionado questo da economia do estado. O Rio
Grande do Sul vinha enfrentando uma baixa produtividade, alm de
dificuldades estruturais, decorrentes da escassez de transportes, energia e
comunicaes. A atividade agropastoril sofria com os melhores
rendimentos do centro do Pas, onde o setor era mais desenvolvido
tecnologicamente. O xodo rural tambm comeava a criar problemas na
precria estrutura urbana gacha, alm de refletir questes relacionadas
concentrao de terras e reforma agrria.
Aliado aos problemas rurais, o desenvolvimento da indstria, do
comrcio e dos servios, ainda que em ndices inferiores ao padro
nacional, tornava possvel a organizao dos trabalhadores industriais e
de servios, como professores e policiais, no sentido de elaborarem suas
57
reivindicaes e de realizarem greves e manifestaes. Estes
trabalhadores pressionavam os representantes da sociedade a dirigirem
suas aes em prol de medidas progressistas. O PTB de Brizola
encampava estas reivindicaes e, mesmo que nem toda movimentao
desses setores significasse necessariamente uma adeso a qualquer ideal
mais progressista, revolucionrio ou "comunista", esta sinalizao foi
suficiente para servir de pretexto aos golpistas de que estava na hora de
bloquear estas atividades reivindicatrias, consideradas subversivas.
Alguns outros episdios revelam o ambiente social e poltico no
comeo dos anos 1960 no Rio Grande do Sul, tais como: a recusa do
comando militar do Exrcito do estado em receber a visita de uma misso
comercial sovitica na Base Area de Canoas; a vinda de Francisco Julio
ao Estado, em 1961, e a polmica que se criou com o cardeal Dom
Vicente Scherer a respeito da reforma agrria; a intensa atividade cultural
de contedo social em Porto Alegre, como aquelas realizadas no Clube de
Cultura e pelo Teatro de Equipe, assim como os movimentos de
estudantes do Colgio Estadual Jlio de Castilhos (o "Julinho") e da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); a formao dos
"Grupos de Onze Companheiros" de Brizola, para defender as reformas
de Jango; o descontentamento de comandantes militares com a quebra da
disciplina e com o incitamento "desordem" social, com destaque para o
general Mouro Filho, que fora comandante da mesma unidade de Santa
Maria que o general Poppe de Figueiredo sublevaria contra Jango, em
1964; os encontros ocorridos entre o mesmo general Mouro Filho e a
FARSUL para apoiar a candidatura de Meneghetti nas eleies estaduais
de 1962; as relaes do governo Meneghetti com o embaixador
estadunidense Lincoln Gordon. Isso tudo s para ficar em alguns
exemplos relacionados ao Rio Grande do Sul, eventos que testemunham
no estado gacho a repercusso de questes que ecoavam em todo o Pas.
58
O Rio Grande do Sul tambm no ficou de fora das articulaes
do dia do golpe, quando Mouro Filho, comandante da IV Regio
Militar, deslocou suas tropas de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro,
instituindo o primeiro ato do golpe de 1964 e obtendo apoio do 1 e 2
Exrcitos. No mesmo dia, o governador Ildo Meneghetti deu incio
Operao Farroupilha: na tarde de 31 de maro, reforou a segurana do
Palcio Piratini e isolou a Praa da Matriz para evitar manifestaes
populares; decretou feriado bancrio e escolar at o dia 3 de abril;
requisitou todas as emissoras de rdio para evitar outra rede da
Legalidade e se dirigiu para Passo Fundo, onde ficaria durante trs dias e
de onde lanaria o manifesto de apoio ao golpe.
O III Exrcito estava dividido e os clculos militares indicavam
possibilidades de luta intensa, devido principalmente influncia do ex-
governador do estado Leonel Brizola. O general Ladrio Pereira Teles,
comandante do III Exrcito, leal ao presidente, determinou que suas
tropas entrassem em "prontido rigorosa". Tudo parecia indicar que um
ncleo de oficiais legalistas comandaria a reao contra os golpistas. A
ao militar "golpista" foi, entretanto, bastante significativa. Teve como
chefes principais os generais Poppe de Figueiredo, da 3 Diviso de
Infantaria, em Santa Maria; o general Adalberto Pereira dos Santos, que
assumiu o comando militar em Cruz Alta; o general Joaquim
Camarinha, comandante da 2 Diviso de Cavalaria, em Uruguaiana, e o
general Hugo Garrastazu, comandante da 3 Diviso de Cavalaria, em
Bag.
A capital do estado, Porto Alegre, seria o ltimo ponto de parada
do presidente Joo Goulart antes de deixar o Brasil, onde esteve reunido
com Brizola, Ladrio Pereira Telles e outros oficiais fiis ao governo.
Nesta reunio, Jango ouviu avaliaes a respeito da situao e da
59
convenincia de resistir ao golpe ou de partir para o exlio no Uruguai.
Jango acabou optando por deixar o Brasil e evitar assim uma possvel
guerra civil.
Na madrugada do dia 1 de abril de 1964, o governador Ildo
Meneghetti transferiu a capital para Passo Fundo e foi de l que enviou
aquela mensagem aos gachos. A mensagem ainda completava: "Eu no
poderia, nesta hora, fugir ao meu dever. Frente aos atentados autonomia
do estado do Rio Grande do Sul, frente ameaa clara e aberta de
interveno, cujo processo est em marcha, s tenho um caminho, que
incorporar-me queles que agora, em todo o Brasil, lutam para restaurar a
Constituio e o Direito, livrando nossa Ptria de uma ditadura 6comunista". Meneghetti tentava evitar uma tentativa de sua deposio
pelas foras de resistncia ao golpe, fiis ao presidente Joo Goulart, que
se articulavam em Porto Alegre. Trs dias mais tarde, quando foi
anunciado o exlio de Jango no Uruguai, Meneghetti voltou para Porto
Alegre, escoltado por uma fora combinada da 3 Diviso de Infantaria
do Exrcito, de Santa Maria, e por tropas da Brigada Militar.
Ao longo dos trs dias, enquanto o governador esteve em Passo
Fundo, o chefe de polcia Armando Prates Dias ficou como a principal
autoridade da capital e responsvel por inibir as manifestaes populares.
Dois pequenos protestos foram reprimidos. No dia 1, a Brigada teve que
dispersar manifestantes nas proximidades do abrigo da Praa XV e, no
dia 2 de abril, nas proximidades do Mercado Pblico. No dia 4 de abril, o
Exrcito e a Brigada ocupavam ostensivamente as ruas do centro da
capital. As mais consistentes manifestaes contra o golpe se
concentraram defronte prefeitura de Porto Alegre, onde o prefeito da
capital, Sereno Chaise, do PTB, prometia resistir. N