A Ditadura Militar e a Proletarização Dos Professores

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    1159Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 97, p. 1159-1179, set./dez. 2006Disponvel em

    Amarilio Ferreira Jr. &Marisa Bittar

    A DITADURA MILITAR E A PROLETARIZAODOS PROFESSORES

    AMARILIOFERREIRAJR.*

    MARISABITTAR**

    RESUMO:Este artigo aborda as transformaes ocorridas no magis-trio durante o regime militar (1964-1985), mostrando que a suaorigem deixou de ser exclusivamente as classes mdias urbanas efraes das elites, passando a constituir-se tambm das camadas po-pulares. Ocorreu, assim, um processo de mobilidade tanto ascen-dente quanto descendente, pois os que tinham origem nos de cimase proletarizaram enquanto os de origem popular ascenderam a umaprofisso da classe mdia. A nova categoria, formada por essas duasfraes, foi submetida a condies de vida e de trabalho determina-das pelo arrocho salarial. Analisamos este fenmeno tomando por

    base a Confederao dos Professores Primrios do Brasil, que, porfora das reformas educacionais da ditadura, cresceu numericamentee se transformou na Confederao dos Professores do Brasil. A pro-fisso, em decorrncia dessa rpida e profunda transformao, passoua sofrer uma crise de identidade a meio caminho da proletarizaoe do exerccio intelectual.

    Palavras-chave: Ditadura militar. Professores. Sindicalismo.

    THEMILITARYREGIMEANDTEACHERSPROLETARIANIZATION

    ABSTRACT: This paper explores the transformation suffered by theteacher category during the military regime (1964-1985). It showsthat teachers did not originate exclusively from the urban middleclasses and fractions of the economical elite, but also from popularclasses. An ascendant and descendant social mobilization process

    * Doutor em Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP

    ) e professor do Departamentode Educao da Universidade Federal de So Carlos (UFSCAR). E-mail: [email protected]

    ** Doutora em Histria Social pela USPe professora do Departamento de Educao da UFSCAR.E-mail: [email protected]

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    thus took place: those who originated from upper classes becameproletarianized, while those from popular origin rose to a middle

    class profession. This new category, made up by these two sections,was submitted to standards of life and work determined by salarytightening. The analysis of this phenomenon is here carried out tak-ing as a starting point the Confederation of Brazilian Primary Teach-ers, which, due to the dictatorships educational reforms, grew nu-merically and transformed itself into the Confederation of BrazilianTeachers. Owing to this quick and profound transformation, theprofession suffered, from then on, an identity crisis moving to-wards the proletarianization of intellectual practice.

    Keywords:Military dictatorship. Teachers. Unionism.

    Introduo

    stamos completando vinte anos da conquista do Estado de Direi-to democrtico, mas os efeitos da ditadura militar sobre a educa-o brasileira ainda no desapareceram. Se considerarmos como

    trao distintivo da nossa histria a descontinuidade sem ruptura, ou seja,

    a passagem de uma ordem institucional para outra, conservando elemen-tos estruturais da anterior, possvel que encontremos a a explicao paradeterminadas permanncias. Pelo fato de que o presente ainda conservaelementos daquele passado, que voltamos a este tema da pesquisa edu-cacional brasileira.

    Remontando criao do Instituto Nacional de Estudos Pedag-gicos (INEP), em 1938, e, portanto, bem anterior sua implantao nombito das universidades, a pesquisa educacional no Brasil registra te-

    mas e perodos cujos estudos j atingiram um nvel elevado de conhe-cimento. Sem exagero, podemos afirmar, por exemplo, que o caso daEscola Nova, que tem se revelado um campo no qual a maturidade e acontinuidade dos estudos so marcantes. Outros perodos no tm des-pertado o mesmo interesse. A ttulo de ilustrao, examinando o rol detrabalhos apresentados nos encontros bienais da Sociedade Brasileira deHistria da Educao, verificamos que so bastante reduzidos os estu-dos sobre a educao no Brasil colonial, situao um pouco diferente

    para o perodo do sculo XIX.De modo geral, a Repblica o perodo sobre o qual tem reca-do a maioria dos estudos, sendo que, no seu interior, constata-se a exis-

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    tncia de temas ou polticas mais presentes no universo da pesquisaeducacional, como assinalamos a propsito dos ideais da Escola Nova,

    enquanto outros assuntos, como a educao sob a ditadura militar, ob-jeto deste artigo, ainda esto longe de serem esgotados.

    Dessa forma, completados quarenta anos do golpe militar, em2004, pensamos ser oportuna a reflexo sobre o impacto da ditadura naeducao brasileira, notadamente na escola pblica, a mais atingida peloautoritarismo. Foi ela tambm a mais sujeita ideologia tecnocrticasubjacente s polticas educacionais emanadas pelo Estado a partir da des-tituio do presidente Joo Goulart e da derrocada do nacional-

    populismo, desfecho traumtico do processo que se desenrolava desde1930.

    A poltica educacional do regime militar abrangeu, ao longo dosseus vinte e um anos de durao, todos os nveis de ensino, alterando asua fisionomia e provocando mudanas, algumas das quais visivelmen-te presentes no panorama atual. Pautado pela represso, o Estado edi-tou polticas e prticas que, em linhas gerais, redundaram no tecnicis-mo; na expanso quantitativa da escola pblica de 1 e 2 graus s

    custas do rebaixamento da sua qualidade; no cerceamento e controledas atividades acadmicas no interior das universidades; e na expansoda iniciativa privada no ensino superior. Reexaminando o conjuntodessas polticas, podemos afirmar que a educao, tal como ocorrera naditadura Vargas (1937-1945), porm, em maior escala, foi totalmenteinstrumentalizada como aparelho ideolgico de Estado. Sob uma dita-dura que perseguiu, prendeu, torturou e matou opositores, a escola foium dos meios mais eficazes de difuso da ideologia que respaldou o

    regime militar.Entre os vrios aspectos que marcaram a educao brasileira nes-

    se perodo, abordaremos aqui o impacto da poltica educacional do re-gime militar (1964-1985) sobre a categoria dos professores pblicosestaduais, realando dois aspectos que, interligados, determinaram umatransformao radical na sua trajetria e composio: a) o seu cresci-mento numrico; b) o arrocho salarial a que foi submetida durante todaa vigncia da ditadura.

    Numa sociedade que se modernizava pela via autoritria, essesdois fatores, conjugados entre si, atuaram no sentido de torn-la a mai-or categoria profissional do pas e de conferir-lhe uma identidade de

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    oposio ao prprio regime. Neste sentido, ela se distingue dos traosque a caracterizavam at ento, sobretudo a de ter sido uma categoria

    profissional pequena, com origem social proveniente das camadas mdi-as e at da elite, no afeita organizao sindical. Tomamos como objetoprivilegiado de estudo a Confederao dos Professores Primrios do Bra-sil (CPPB), criada em 1962, que ilustra bem esses dois momentos, na me-dida em que, por fora das prprias reformas educacionais da ditadura,transformou-se em Confederao dos Professores do Brasil (CPB), abran-gendo os docentes do antigo ginsio e os do 2 grau, criado pela reformade 1971.

    O termo proletarizao ser tratado ao longo do texto de modo amostrar a condio socioeconmica a que foi submetida a nova catego-ria docente pelas polticas da ditadura militar.1Se no passado os pro-fessores da escola pblica brasileira provinham das classes mdias e al-tas, a situao atual bastante distinta e lembra a definio de WrightMills (1979, p. 147), para quem os professores, especialmente os doprimrio e secundrio, so, do ponto de vista econmico, os proletriosdas profisses liberais. No caso brasileiro, entretanto, a proletarizao

    do professorado no significou apenas o empobrecimento econmico,mas tambm a depauperao do prprio capital cultural que a antigacategoria possua, ou seja, a velha formao social composta de profissi-onais liberais como advogados, mdicos, engenheiros, padres etc. constitua um cabedal cultural amealhado em cursos universitrios deslida tradio acadmica. Ao contrrio, as licenciaturas institudas pelareforma universitria do regime militar operaram um processo aligeira-do de formao com graves conseqncias culturais.

    As reformas educacionais do regime militar e o novo perfil do pro-fessorado brasileiro

    A situao do magistrio brasileiro na primeira metade dos anosde 1960, de modo geral, apresentava os mesmos contornos sociais dasdcadas anteriores, particularmente quanto ao fato de que essa catego-ria continuava sendo um reduto feminino (Loureno Filho, 1945, p.

    400). A conjugao entre perfil feminino e padro de ensino seletivoera um dos traos dos anos dourados da educao brasileira, cujo augefoi exatamente a dcada de 1960.

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    Quanto formao das professoras, as Escolas Normais, chama-das por Jorge Nagle de ginsios para moas, atraam, principalmente,

    jovens das classes mais abastadas. A tendncia de constituir-se numaprofisso feminina vinha do incio do sculo XX. Em 1929, para23.808 alunos matriculados [no ensino pedaggico], 3.041 eram dosexo masculino; quanto origem social, o mesmo autor assinalou quea escola normal era uma instituio destinada educao das moasburguesas (Nagle, 1985, p. 269). Apesar da preponderncia dos pro-fessores primrios, entretanto, uma frao residual de docentes pbli-cos estaduais com formao universitria j dava mostras de seu cresci-

    mento. Depois, a partir de 1970, eles constituiriam a base do magistriopblico estadual de 1 e 2 graus.Assim, a passagem da dcada de 1960 para a de 1970 foi marcada

    por mudanas estruturais no sistema nacional de educao. O regime mi-litar, embalado pelo milagre econmico,2estabeleceu claramente umavinculao entre a educao e o modelo autoritrio de modernizao dasrelaes capitalistas de produo, tal como ficou explcito na mensagemde 31 de dezembro de 1970, do general-presidente Emlio Garrastazu

    Mdici:Creio que 1971 ser um ano de marcante expanso industrial, incenti-vada pelo programa siderrgico que dentro de poucos dias apresentarei Nao (...). Sinto que a grande revoluo educacional vir agora, napassagem da velha orientao propedutica da escola secundria a umarealstica preparao para a vida, que atenda carncia de tcnicos de n-vel mdio, problema dos mais crticos na arrancada do nosso desenvolvi-mento. (Mdici, 1971, p. 34)

    Visando atingir os objetivos propostos, o regime militar imple-mentou duas reformas jurdicas no campo educacional. A Lei n. 5.540,de 28 de novembro de 1968, que reorganizou o funcionamento do ensi-no superior e sua articulao com a escola mdia(Saviani, 1987, p. 99);e a Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971, que reestruturou os antigosprimrio e ginsio, criando o ensino de 1 e 2 graus(idem, ibid., p.133). Em outras palavras: da juno dos quatro anos do ensino primriocom os quatro do ginsio foi criado um nico ciclo de oito anos, o cha-

    mado 1 grau de ensino, que passou a ser obrigatrio. Quanto aos trsanos do antigo ensino colegial, passaram a constituir o 2 grau. Dessasreformas educacionais comeou a emergir a nova configurao profissio-

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    nal do professorado pblico de 1 e 2 graus. A primeira lei, no seuartigo 30, estabelecia que: A formao de professores para o ensino de

    segundo grau, de disciplinas gerais ou tcnicas, bem como o preparode especialistas destinados ao trabalho de planejamento, superviso, ad-ministrao, inspeo e orientao no mbito de escolas e sistemas es-colares, far-se- em nvel superior (idem, ibid., p. 103).

    A reforma universitria de 1968, por intermdio desse artigo, abriua possibilidade para que uma parte do magistrio de 1 grau portanto,no s de 2 grau fosse formada em cursos do ensino superior, ao con-trrio da Lei de Diretrizes e Bases da Educao, de 20 de dezembro de

    1961, que estipulava uma distino, nos seus artigos de n. 52 a n. 65(So Paulo, 1971, p. 62), entre a formao do professor primrio, efeti-vada nas escolas normais ou institutos de educao, e a do professor se-cundrio, realizada nas faculdades de Filosofia, Cincias e Letras.

    A Lei n. 5.692/71, na esteira de 1968, foi mais enftica quanto formao do professor de 1 e 2 graus. Entre outros motivos, porqueduplicou, de quatro para oito anos, a obrigatoriedade do ensino funda-mental a cargo do Estado. O ento ministro da educao, coronel Jarbas

    Gonalves Passarinho, na sua exposio de motivos, quando da apresen-tao do anteprojeto de lei ao general-presidente Emlio GarrastazuMdici, afirmou:

    Outro captulo de extrema importncia o dos professores e especialistas(...). No que toca formao, previu-se graduao superior, de duraocurta e plena, para o exerccio at o 1 e 2 graus, respectivamente, e ha-bilitao de 2 grau para exerccio at a metade do 1. Para o preparo su-perior de curta durao, reforando a rede existente, concebeu-se um tipo

    novo de faculdade, mais modesta, a surgir nas comunidades menores.No h dvidas de que este esquema permanente s a longo prazo po-der ser implantado em mbito nacional. (Passarinho, 1971, p. 19)

    Essa poltica acabou engendrando uma outra composio da ca-tegoria profissional dos professores pblicos de 1 e 2 graus. JooMonlevade (1996, p. 144), analisando as conseqncias inauguradascom a Lei n. 5.692/71, afirmou que, na dcada de 1990, (...) maisde 50% [num total de 1,5 milho] dos professores regentes de classetm formao de nvel superior. Quando da decretao da Lei n.5.692/71, a professora Thereza Noronha de Carvalho, presidente daCPB (1972-1978), assinalou que talvez pela primeira vez em nossa

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    Histria, [ocorrer] uma verdadeira profissionalizao do magistriobrasileiro (CPB, 1964-1976, p. 51).

    Nesse novo contexto da educao brasileira, a CPBcentrou a suaao no Estatuto do Magistrio. que a Lei n. 5.692/71 previa no seuartigo 36 que cada sistema de ensino teria um Estatuto que estruturassea carreira dos professores pblicos de 1 e 2 graus(So Paulo, 1971, p.9). Com a finalidade de dar cumprimento ao referido artigo, o governodo general Emlio Garrastazu Mdici preceituou o Decreto n. 71.244,de 11 de outubro de 1972, estabelecendo normas para a concesso deauxlio do tesouro federal aos sistemas estaduais e municipais de educa-

    o(Brasil, 1972, p. 9.186). A medida jurdica adotada pelo regime mi-litar vinculava este ltimo ao artigo 54 da Lei n. 5.692/71, que estipula-va as vrias formas de ajuda financeira da Unio para os estados emunicpios. Portanto, para que os sistemas estaduais e municipais deeducao tivessem acesso s verbas do governo federal era necessrio queelaborassem os seus respectivos Estatutos do Magistrio.

    Entre o final dos anos de 1970 e incio dos de 1980, os profes-sores pblicos estatuais de 1 e 2 graus j se constituam numa cate-

    goria profissional consolidada, perfazendo um contingente numricosuperior a um milho de membros (Milhomem Neto, Documento, B.80. AO. J). Foi no mbito do ensino de 1 grau que se registrou o seumaior desenvolvimento orgnico, em decorrncia do ensino de oito s-ries obrigatrias. Estudo publicado pela Fundao Carlos Chagas davaconta de que o Brasil possua em 1982, segundo dados da PNAD, exclu-indo a zona rural da Regio Norte, 899 mil professores de primeiro grau.Destes, 730 mil (81%) residiam na zona urbana e 169 mil (19%), nazona rural(Barreto, 1991, p. 13). Nesse perodo, a remunerao mdiamensal dos professores do ensino de 1 grau (pblico e privado), levan-do em considerao o nvel de instruo e a mdia salarial nacional emdlares, era de US$ 182,58 (idem, ibid., p. 36).

    Nota-se, assim, que nessa poca, o professorado j no portava operfil do passado, numericamente inferior e com origem nas camadasmdias urbanas e nas prprias elites. Agora, em decorrncia das mu-danas estruturais do pas e das reformas educacionais citadas, ele pas-sava a ser uma categoria muito pouco assemelhada anterior e subme-tida a condies de vida e de trabalho bastante diversas. Em sntese: ocrescimento econmico acelerado do capitalismo brasileiro durante aditadura militar imps uma poltica educacional que se materializou,

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    em linhas gerais, nas reformas de 1968 e de 1971, cujos efeitos engen-draram uma nova categoria docente e, por conseguinte, no exerccio da

    profisso em parmetros distintos dos anteriores. Os professores forma-dos nos cursos de licenciaturas curtas das faculdades privadas noturnassubstituram a pequena elite intelectualizada das poucas escolas pbli-cas antes existentes. A extenso da escolaridade obrigatria de quatropara oito anos ocasionou a rpida expanso quantitativa da escola fun-damental, exigindo, para o seu atendimento, a clere formao dos edu-cadores, o que se deu de forma aligeirada. A combinao entre cresci-mento quantitativo, formao acelerada e arrocho salarial deteriorou

    ainda mais as condies de vida e de trabalho do professorado nacionaldo ensino bsico, tanto que o fenmeno social das greves, entre asdcadas de 1970 e 1980, teve como base objetiva de manifestao aprpria existncia material dos professores pblicos estaduais de 1 e2 graus.

    O arrocho salarial foi uma das marcas registradas da poltica eco-nmica do regime militar. No conjunto dos assalariados oriundos dasclasses mdias, o professorado do ensino bsico foi um dos mais atingi-

    dos pelas medidas econmicas que reduziram drasticamente a massa sa-larial dos trabalhadores brasileiros. O processo da sua proletarizaoteve impulso acelerado no final da dcada de 1970 e a perda do poderaquisitivo dos salrios assumiu papel relevante na sua ampla mobiliza-o, que culminou em vrias greves estaduais entre 1978 e 1979. MarianoEnguita, estudando os fatores responsveis pela proletarizao dos profes-sores do ensino bsico, considerou que:

    A categoria dos docentes (...) compartilha traos prprios dos gruposprofissionais com outras caractersticas da classe operria. Para suaproletarizao contribuem seu crescimento numrico, a expanso e con-centrao das empresas privadas do setor, a tendncia ao corte dos gastossociais, a lgica controladora da Administrao pblica e a repercusso deseus salrios sobre os custos da fora de trabalho adulta. (Enguita, 1991,p. 49)

    Um dos aspectos mais relevantes do processo de proletarizaovivido pelo magistrio brasileiro que ele desmistificou as atividades

    pedaggicas do professor como ocupao especializada pertencente aocampo dos chamados profissionais liberais, ocorrendo, de forma acen-tuada, a paulatina perda do seu status social. A partir desse momento,

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    teve incio a construo da nova identidade social do professorado doensino bsico, ou seja, a de um profissional da educao submetido s

    mesmas contradies socioeconmicas que determinavam a existnciamaterial dos trabalhadores. Estavam plasmadas, assim, as condies queassociariam o seu destino poltico luta sindical dos demais trabalha-dores.

    A transio de uma situao objetiva para outra acarretaria tam-bm uma mudana na forma de pensar e agir dos professores. o quepoderamos chamar de novos processos mentais. Antonio Gramsci, ana-lisando os elementos que interferem nessas transformaes da

    autoconscincia e organizao dos grupos sociais, afirmou que:

    O primeiro e mais elementar o econmico-corporativo: (...) sente-se aunidade homognea do grupo profissional e o dever de organiz-la, masno ainda a unidade do grupo social mais amplo. Um segundo momen-to aquele em que se adquire a conscincia da solidariedade de interes-ses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo mera-mente econmico. Neste momento j se coloca a questo do Estado, masapenas visando a alcanar uma igualdade poltico-jurdica com os grupos

    dominantes: reivindica-se o direito de participar da legislao e da admi-nistrao e, talvez, de modific-las, reform-las, mas nos quadros funda-mentais j existentes. Um terceiro momento aquele em que se adquirea conscincia de que os prprios interesses corporativos, no seu desenvol-vimento atual e futuro, superam o crculo corporativo, de grupo mera-mente econmico, e podem e devem tornar-se os interesses de outrosgrupos subordinados. Esta a fase mais abertamente poltica, que assi-nala a passagem ntida da estrutura para a esfera das superestruturas com-plexas; a fase em que as ideologias germinadas anteriormente se trans-formam em partido, entram em choque e lutam at que uma delas, oupelo menos uma combinao delas, tende a prevalecer, a se impor, a se ir-radiar em toda a rea social, determinando, alm da unidade dos finseconmicos e polticos, tambm a unidade intelectual e moral. (Gramsci,1978, p. 49-50)

    O comportamento social que caracterizava os movimentos gre-vistas da categoria dos professores pblicos estaduais de 1 e 2 graus,no final da dcada de 1970, era do tipo que j engendrava uma cons-cincia da solidariedade de interesses gestada entre todos os membros

    do grupo social e que questionava, ainda que do ponto de vista econ-mico, as bases jurdicas do Estado ditatorial brasileiro. Provavelmente,apenas as vanguardas da categoria, em unidades federativas como So

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    Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paran ePernambuco (Ferreira Jr., 1998, p. 89 passim), tinham atingido o tercei-

    ro momento descrito por Gramsci, isto , a fase mais abertamente pol-tica; e alcanado, portanto, o amadurecimento social necessrio para cri-ar as condies organizativas e de direo poltica para as lutas levadas acabo pelos professores nacionalmente.

    Do ponto de vista da extrao social, a nova categoria dos profes-sores pblicos do ensino bsico resultou, fundamentalmente, de duasvertentes da estrutura de classes da sociedade brasileira contempornea.A primeira foi constituda por aqueles que sofreram um processo de mo-

    bilidade social vertical descendente, ou seja, pertenciam a certas camadasda burguesia ou das altas classes mdias e foram proletarizados econmi-ca e socialmente no curso da monopolizao que as relaes de produocapitalistas tomaram nas ltimas dcadas. J a segunda originou-se dedeterminadas fraes das classes mdias baixas ou das camadas dos traba-lhadores urbanos que se beneficiaram da expanso da educao universi-tria,3a partir dos anos de 1970, e efetivaram uma mobilidade verticalascendente na pirmide da estrutura social. Assim, esta ltima realizou

    uma trajetria social inversa da primeira, ou seja, teve uma ascenso noseu statussocial. Para Perseu Abramo, esse fenmeno de mobilidade soci-al apresentou implicaes ideolgicas em relao ao mundo da educaono qual estavam inseridos os professores, que foram analisadas assim:

    Essa segunda [vertente] para quem ser professor significa quase o apo-geu na escala de ascenso social passa a ter, diante dos problemas da edu-cao e dos problemas da sua corporao profissional, uma atitude bastan-te diferente da primeira, que se proletarizou no trabalho. A segunda cama-

    da, que talvez hoje, em certos centros urbanos do pas, constitua a maio-ria, tem-se mostrado, de certa forma, conservadora e pouco afeita lutapor modificaes e transformaes na educao e na sociedade. (Abramo,1986, p. 78-79)

    Poder-se-ia pensar que a presena da primeira vertente na com-posio social dos professores ainda pudesse ser suficiente para mantera profisso no rol dos ofcios liberais. Todavia, esse amlgama social os de cima (franjas burguesas e extratos das classes mdias altas), de

    um lado, e os de baixo (camadas pauperizadas das classes mdias e se-tores do operariado urbano), do outro no impediu que se instauras-se um processo perverso e contnuo de proletarizao da categoria pro-

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    fissional dos professores pblicos estaduais de 1 e 2 graus, tal comoficou enfatizado neste estudo:

    Atores de uma sociedade moderna, onde a escolarizao um elementocentral do processo de desenvolvimento e a institucionalizao das rela-es de trabalho uma conquista datada, os professores tm sido, nos l-timos anos, obrigados a se empenhar em uma luta mortal pela preserva-o de direitos trabalhistas que, para outras categorias, podem ser consi-derados como j adquiridos. Ao mesmo tempo foram, talvez, mais inten-samente afetados pela proletarizao do que qualquer outra categoria detrabalhadores urbanos no Brasil. (Peralva, 1990, p. 158)

    O assunto tambm foi objeto de preocupao de Luiz AntnioCunha, que, estudando a evoluo salarial dos professores do ensino b-sico em dois dos principais estados da Federao, constatou elementosconcretos do processo de proletarizao da categoria. Segundo ele,

    O professor primrio da rede estadual de So Paulo tinha o salrio mdiopor hora equivalente a 8,7 vezes o salrio mnimo, em 1967. J em 1979,esta mdia havia baixado para 5,7 vezes (...). No Rio de Janeiro, de onde

    se dispe de sries mais longas, o salrio eqivalia (no Distrito Federal ouna rede estadual situada no municpio da capital) a 9,8 vezes o salrio m-nimo em 1950, despencando para 4 vezes em 1960 e atingindo 2,8 ve-zes em 1977 (...). Treze anos depois, desceu ainda mais: 2,2 salrios mni-mos. (Cunha, 1991, p. 75)

    Premida pelo achatamento salarial e pela rpida queda no seu pa-dro de vida e de trabalho, a categoria profissional dos professores p-blicos de 1 e 2 graus foi desenvolvendo uma conscincia poltica que

    a situava no mago do mundo do trabalho, tal como j estava postapara a classe operria fabril. Em outros termos: incorporou a tradioda luta operria nos marcos da expresso sindical e transfigurou-senuma categoria profissional capaz de converter as suas necessidades ma-teriais de vida e de trabalho em propostas econmicas concretas. MiguelArroyo, estudando esse processo social, afirmou que:

    Nos novos elementos incorporados se destacam aqueles que configuram osprofessores como trabalhadores, como fora de trabalho submetida lgicamercantil (...). O movimento de professores desvelou uma realidade que odiscurso educativo ultrapassado tentava encobrir, uma grande conquista quetem de ser creditada aos professores e suas lutas. (Arroyo, 1991, p. 156)

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    para a retomada do crescimento econmico, quanto para a adoo depadres de distribuio mais igualitrios. Efetivamente, confirmou-se a

    democratizao da sociedade brasileira no campo poltico, mas ainstitucionalizao das liberdades democrticas no foi suficiente paraestabelecer a retomada do crescimento econmico e muito menos parainstituir uma poltica de redistribuio de renda. A manuteno e o recru-descimento de traos estruturais do passado, na nova ordem institucionalinaugurada com o fim da ditadura militar, impediram que a democra-tizao ultrapassasse os limites do mbito poltico. Ao contrrio, a totalsubordinao da poltica macroeconmica brasileira aos ditames do Con-

    senso de Washington (O Estado de S. Paulo, 1994, p. 2) resultou no agra-vamento das condies de vida e de trabalho dos professores pblicosbrasileiros.

    O movimento sindical do magistrio do ensino bsico, organiza-do pela Confederao dos Professores do Brasil, anlogo a um conjuntode outras agncias da sociedade civil que se opunham ao regime mili-tar, saiu ganhando no geral, mas perdeu no particular. Ou seja: os pro-fessores pblicos estaduais ajudaram a conquistar a democracia e, por-

    tanto, foram protagonistas importantes do cenrio poltico nacional,mas no tiveram o seu rol de reivindicaes especficas atendido pelanova ordem institucional estabelecida.

    Posto desse modo, o incio do processo de democratizao da so-ciedade brasileira na primeira metade dos anos de 1980 significou apossibilidade histrica da socializao da poltica, isto , a incorpora-o de milhes de brasileiros no processo decisrio das grandes ques-tes nacionais.4Entre esses milhes encontrava-se a categoria social dosprofessores pblicos estaduais de 1 e 2 graus.

    A propsito, interessante notar que foi a prpria dinmica so-cial reivindicatria desse movimento sindical que inseriu a categoria dosprofessores pblicos de 1 e 2 graus no mundo da poltica nacional.Logo aps o golpe de Estado de 1964, os professores ainda guardavamsua feio social anterior, isto , de extrao das classes mdias e altas eno afeitos organizao sindical. Nossa pesquisa mostrou que a Con-federao dos Professores Primrios do Brasil (CPPB), a mais importanteentidade docente da poca, tinha carter mais associativista e recreativodo que propriamente sindical e, inicialmente, apoiou o regime militar(Ferreira Jr., 1998, p. 49 passim). Depois, porm, comeou a transitarpara a oposio, tornando-se, no final da dcada de 1970 e j transfor-

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    rados e que o principal motivo continuava sendo o baixo salrio(Correio do Estado, 1995, p. 8). Enquanto isso, no estado de So Paulo,

    onde o magistrio j foi reduto das mocinhas endinheiradas nos anos50, conforme noticiava a grande imprensa, a poltica salarial espanta-va os futuros candidatos a uma vaga de professor, revelando perda deglamour medida que o ensino pblico caa em descrdito:

    Hoje em dia a maioria desses cursos [de magistrio] recebe apenas garotasde classe mdia baixa que, entre trabalhar de balconista em uma loja ouensinar a cartilha no primrio, optam pela sala de aula mesmo com salri-os que, em geral, no passam dos R$ 230,00 para iniciantes. So elas, mes-mo sem grande preparo, que daro aulas na rede pblica. (O Estado de S.Paulo, 1997, p. 7)

    Finalmente, na cidade do Rio de Janeiro, vamos encontrar a pr-pria figura do professor evadido da profisso devido s condies de vidae de trabalho. Daremos voz a Jorge Souza Santos, um desses ex-profes-sores, cujo depoimento se justifica pela capacidade de sntese sobreuma situao social herdada do regime militar e pelo sentimento defrustrao, que, certamente, no s dele:

    As escolas do Rio de Janeiro perdem diariamente sete professores. Os bai-xos salrios, a falta de interesse dos alunos e as pssimas condies de tra-balho afastam os professores da rede escolar. No dia 10 de maio [1994] eufui um dos sete professores a abandonar o magistrio. Quando comecei adar aulas, em 1953, eu tinha orgulho da minha profisso. Era uma carrei-ra difcil e disputada. At quem sonhava ser professor primrio tinha deenfrentar os disputados concursos para o Instituto de Educao. O statusdo professor era elevadssimo (...). Eu ganhava bem e tinha uma vida

    nababesca comparada que um professor do municpio tem hoje. Tinhaduas empregadas, pude comprar um carro e construir uma casa. Essa boavida comeou a ruir no final da dcada de 70. A migrao para as grandescidades gerou uma carncia de colgios. O ingresso s escolas pblicas, atento difcil, foi facilitada para atender a populao mais pobre. Como arede do governo passou a atender as classes menos favorecidas, as autori-dades comearam a relegar as escolas a segundo plano e a diminuir cada vezmais o salrio dos professores. A profisso ficou desprestigiada, gerando de-sinteresse nos jovens da classe alta e mdia alta. O nvel do magistrio caiu

    social e economicamente. Quem se habilita a dar aulas atualmente so pes-soas de mais baixa renda, que no tm vivncia nem experincia paralecionar. O despreparo cultural dos novos professores estarrecedor. (San-tos, 1994, p. 122)

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    Defrontando-nos com depoimentos como este e remetendo-nos histria da educao brasileira, vm-nos mente as esperanas esboadas

    pelo Manifesto dos Pioneiros, de 1932, texto muitas vezes criticado pelasua dose de idealismo, pela posio liberal de seus signatrios, ou mesmopela prpria concepo de educao que defendeu, mas que, ao mesmotempo, postulou bandeiras como a da escola pblica, estatal e laica paratodas as crianas e jovens dos sete aos quatorze anos, que, decorridos maisde setenta anos, ainda no foi concretizada. Infelizmente, esta no anica batalha sem vitria da nossa educao. Conclumos com um excertodo prprio Manifesto para estabelecer o contraste entre o que foi postu-

    lado, no incio dos anos de 1930, por um grupo de intelectuais liberais,no mbito de uma sociedade marcada pelas relaes agrrias de produ-o, e a situao a que, objetivamente, foi relegada a categoria dos profes-sores setenta anos depois:

    Todos os professores, de todos os graus, cuja preparao geral se adquirirnos estabelecimentos de ensino secundrio, devem, no entanto, formar oseu esprito pedaggico, conjuntamente, nos cursos universitrios, em fa-culdades ou escolas normais, elevadas ao nvel superior e incorporadas s

    universidades. A tradio das hierarquias docentes, baseadas na diferencia-o dos graus de ensino, e que a linguagem fixou em denominaes dife-rentes (mestre, professor e catedrtico), inteiramente contrria ao princ-pio da unidade da funo educacional, que, aplicado s funes docentes,importa na incorporao dos estudos do magistrio s universidades, e,portanto, na libertao espiritual e econmica do professor, mediante umaformao e remunerao equivalentes que lhe permitam manter, com a efi-cincia no trabalho, a dignidade e o prestgio indispensveis aos educado-res. (Azevedo et al., 1960, p. 123)

    A possibilidade da libertao espiritual e econmica do professor,mediante uma formao e remunerao que lhe confira dignidade eprestgio, distanciou-se na linha do horizonte quando as polticas da di-tadura militar provocaram sobre a categoria docente todo o seu efeito de-vastador e tiveram seqncia com as polticas neoliberais adotadas a par-tir do incio da dcada de 90 do sculo XX.

    Concluso

    Podemos concluir, inicialmente, que a ditadura militar, por meiodas duas reformas educacionais aqui tratadas, colocou em extino a

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    antiga carreira (profissionais liberais) e criou a atual categoria dos profes-sores do ensino bsico. Este processo foi acompanhado do rebaixamento

    das condies econmicas, bem como da formao acadmica dos pro-fessores, combinao perversa que vem se constituindo em um dos prin-cipais problemas da escola pblica.

    O arrocho salarial a que foram submetidos os professores duranteo regime militar, aliado expanso quantitativa das antigas escolas p-blicas de 1 e 2 graus, levou a categoria a transformar as suas associaesprofissionais, at ento de marcante carter recreativo, em verdadeiros sin-dicatos que passaram a formular e organizar a luta por melhores condi-

    es de vida e de trabalho. A maior expresso desse fenmeno foram asgreves de milhares e milhares de professores, a partir do fim da dcadade 1970, em quase todos os estados da Federao. Esse tipo de movi-mento, pelo seu ineditismo poca, chamou a ateno da sociedade, que,a despeito de guardar da profisso uma imagem associada abnegao eao sacerdcio, apoiou as suas mobilizaes.

    Do ponto de vista poltico, as greves, como expresso da democra-cia participativa da categoria dos professores, representaram, naquele con-

    texto, um instrumento de conquista das liberdades democrticas, porquepossibilitavam questionar de forma concreta o Estado ditatorial impostoem 1964. Depois, o problema a ser enfrentado passou a ser de outra na-tureza, porque, aps a derrota da ditadura, em 1985, e a promulgaoda Constituio de 1988, a sociedade brasileira conquistou as liberdadespolticas, mas, ao mesmo tempo, no foi capaz de compatibilizar essasmesmas liberdades com uma poltica macroeconmica que se pautassepela distribuio de renda. Com o agravamento da crise econmica naci-onal, que se arrastou ao longo da dcada de 1980, as greves dos professo-res no conseguiram obter dos governos estaduais e municipais uma po-ltica salarial condizente com o seu exerccio profissional. A propsito, nasegunda metade da dcada, o movimento associativista reivindicava dosgovernos ps-regime militar o estabelecimento do piso salarial nacionalpara a categoria baseado em trs salrios mnimos. Mas esta foi uma ba-talha perdida, porque a maioria dos governos estaduais era composta pe-las foras retrgradas que haviam apoiado a ditadura militar durante vin-te anos e que haviam trocado de lado na ltima hora, no tendo como

    princpio, portanto, o comprometimento com a democracia e com as po-lticas pblicas. Data da o incio do esgotamento das greves, que se re-petiam, se alongavam, mas no alcanavam o seu objetivo salarial.

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    O movimento associativista protagonizado pelos professores duran-te a chamada transio democrtica, entretanto, pode ser classificado

    como um dos principais fatos da histria da educao brasileira contem-pornea. Ele teve o mrito de chamar a ateno para a nova realidade daescola pblica engendrada pelas polticas educacionais da ditadura mili-tar. O principal corolrio decorrente dessas reformas foi, sem dvida ne-nhuma, a queda brutal da qualidade de ensino, se comparado com a de-nominada idade de ouro da escola pblica, aquela que perdurou,aproximadamente, at a dcada de 1960. A nova composio social dacategoria dos professores que emergiu da poltica de expanso quantitati-

    va da escola pblica, aps 1971, e a conseqente luta sindical por me-lhores condies de vida e trabalho foram a mais evidente materializaodas profundas mudanas que a educao havia sofrido. A manifestaodesse fenmeno significou a entrada definitiva da escola pblica brasilei-ra na poca da educao de massas.

    Recebido em novembro de 2005 e aprovado em maio de 2006.

    Notas1. Sobre o processo de proletarizao a que foi submetido o professorado do antigo 1 e 2

    graus, consultar tambm Ferreira Jr. & Bittar (2006).

    2. Termo cunhado pelo prprio general-presidente Emlio Garrastazu Mdici, quando afir-mou que nestes seis anos de ao inflexvel em favor do futuro do Brasil, logramos o mi-lagre de reduzir a inflao quatro ou cinco vezes menos, aumentando simultaneamente oritmo do nosso crescimento, a ponto de chegarmos taxa entre 7 e 9% (Mdici, 1970,p. 68).

    3. O ndice de escolaridade de nvel superior no Brasil um dos mais baixos da Amrica

    Latina, estando ainda bem inferior s potencialidades e necessidades do pas. Ele resultado crescimento que se iniciou na dcada de 1960, que registrava apenas cem mil estudan-tes matriculados. A grande expanso concentrou-se nos anos de 1970, atingindo, no finaldessa dcada, 1,4 milhes de alunos. Hoje, mais de 70% dos estudantes do ensino supe-rior esto matriculados em instituies privadas ( INEP, Censo da Educao Superior,2004).

    4. O mais emblemtico episdio poltico desse perodo foi o movimento das Diretas-J(1984), cujo objetivo era eleger, pela via direta, o presidente da Repblica. Duas opini-es, situadas em pontos opostos do espectro ideolgico brasileiro, confirmam a posio as-sumida no corpo do texto: (A) Golbery do Couto e Silva asseverou que os comcios e asmarchas foram um magnfico espetculo de civismo. Foram manifestaes raras e empol-

    gantes, com entusiasmo, alegria de humor. (...) sem dvida, essa campanha mobilizou omaior nmero de pessoas j visto no pas (Couto e Silva, 1984, p. 8). E (B) WanderleyGuilherme dos Santos afirmou: mais do que uma demanda poltica de circunstncia, omovimento, porque foi irreprimvel, decretou o fim da ditadura. Por esse ngulo, o

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    Diretas-J no fracassou; antes, deu origem a um excepcional perodo de mobilizao eparticipao (Santos, 1994, p. 7).

    5.

    Em 1989, a Confederao dos Professores do Brasil realizou um congresso extraordin-rio (juntamente com o congresso de outras entidades do magistrio), objetivando a unifi-cao dos vrios sindicatos docentes dos estados sob uma mesma entidade federativa, quepassou a denominar-se Confederao Nacional de Trabalhadores em Educao (Ribeiro &

    Joia, 1992, p. 19). Note-se que a unio no se restringiu aos sindicatos docentes, pois otermo trabalhadores, em substituio a professores, expressou a concepo sindicalhegemnica naquele momento, aspecto que foi bastante polmico.

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