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Revista de Direito, Santa Cruz do Sul, n. 5, out. 2014
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A DIVERSIDADE CULTURAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E SUA
INTRÍNSECA RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS
Roberta da Silva1
RESUMO O presente texto trata daefetivação dos direitos humanos frente a diversidade cultural.Utilizou-se para tanto o método de estudo bibliográfico, buscando analisar fontes de pesquisa que versem sobre a temática. Constatou-se que a sociedade globalizada clama pela concretização dos direitos humanos e, em contrapartida, com a diversidade cultural visualizam-se incessantes disputas pelo reconhecimento de identidades particulares. A abordagem leva à conclusão que a universalidade dos direitos humanos está incitada a mediar os limites entre a igualdade e a diferença nas relações culturais, como limite ético para o reconhecimento das particularidades e para a afirmação das igualdades que não homogeneízem e não sufoquem a humanidade presente na experiência de cada homem isoladamente. Palavras-chave: Diversidade cultural. Identidade. Direitos humanos. ABSTRACT This paper deals with the realization of human rights against cultural diversity. Was used for both the method of literature research, trying to analyze research sources that deal with the issue. It was found that the global society calls for the realization of human rights and, in return, with cultural diversity visualize yourself ceaseless struggles for recognition of particular identities. The approach leads to the conclusion that the universality of human rights is urged to mediate the boundaries between equality and difference in cultural relations, as an ethical threshold for recognizing the particularities and the affirmation of equality that does not homogeneízem and not stifle humanity Gift experience of each man alone. Keywords: Cultural diversity. Identity.Humanrights.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A humanidade vivenciou uma intensa luta pela promoção e reconhecimento
dos direitos humanos. Na Modernidade os direitos humanos representaram, pela
1Mestranda em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa registrado no CNPQ: Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos. Especializanda em Direito Penal e Orientação Educacional pela Universidade Leonardo da Vinci – UNIASSELVI. Advogada. Professora da rede pública de educação básica do Município de Santo Ângelo. Contato: [email protected]
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primeira vez, um limite ao poder soberano e estabeleceram uma pauta objetiva de
proteção do indivíduo.Assim, só é possível falar em direitos humanos a partir da
Modernidade, do nascimento do Estado Moderno. A Declaração Universal de 1948
surge como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo, inovou
extraordinariamente a gramática dos direitos humanos ao instituir a proteção do
homem em âmbito universal.
No alvorecer do século XXI os direitos humanos permanecem na agenda
internacional, porém isso não impede que ocorram em qualquer cultura constantes
agressões à dignidade da pessoa humana e aos direitos básicos do indivíduo.Dessa
forma, torna-se necessária a proteção universal do indivíduo. Entretanto, as
demandas identitárias e comunitaristas reclamam seu lugar no mundo, incitando o
debate acerca da desconsideração das diferenças culturais em nome dos direitos
humanos. Nesse âmbito, o multiculturalismo e os direitos humanos remetem à
questão da igualdade e da diferença, do limite de diferenças que a igualdade suporta
na sociedade democrática contemporânea.Nessa perspectiva, não é possível mais
falar em igualdade, deixando de abranger a questão da diversidade e da diferença.
2. IDENTIDADES: O DESPERTAR PARA A DIFERENÇA
É possível vislumbrar que na antiguidade a relação de identidade, de
individualidade é uma decorrência da própria condição da vida feliz na Polis, isso
porque, o indivíduo depende da organização coletiva para existir.Em oposição ao
período pré-moderno, durante a Modernidade as identidades tornaram-se uma
construção, resultado de um processo. A Modernidade inaugurou um novo período,
transformando a identidade numa questão de realização (BAUMAN, 1998).
Dessa forma, “quando a Modernidade substituiu os estados pré-modernos
(que determinavam a identidade pelo nascimento e assim proporcionavam poucas
oportunidades para que surgisse a questão do “quem sou eu?”) pelas classes, as
identidades se tornaram tarefas que os indivíduos tinham de desempenhar (...) por
meio de suas biografias” (BAUMAN, 2005, p. 55).
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As transformações associadas à Modernidade libertaram o indivíduo de seus
apoios estáveis nas tradições e estruturas, as quais, anteriormente, se acreditava
que fossem divinamente estabelecidas, portanto, o status, a classificação e a
posição de uma pessoa na “grande cadeia do ser”, a ordem secular e divina das
coisas, predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um
indivíduo soberano, assim, o nascimento do “indivíduo soberano” ocorreu entre o
Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII e
representou uma ruptura importante com o passado (HALL, 2011).
O individualismo moderno afirmou-se, com efeito, como individualismo liberal,
ou seja, como reivindicação dos direitos do indivíduo em relação à intervenção do
Estado Absoluto. Assim, “o reconhecimento do indivíduo isoladamente considerado
e sua proteção contra as intervenções arbitrárias do Estado é um traço marcante do
estatuto político e jurídico da Modernidade. A ideia de que o indivíduo é portador de
direitos que lhe são inerentes é determinante no surgimento do Estado moderno”
(LUCAS, 2012a, p. 5).
Na Modernidade surgiram na visão de Hall (2011),algumas concepções de
identidade, incialmente a identidade do sujeito do iluminismo, a qual estava baseada
numa concepção individualista do sujeito e de sua identidade, caracterizada pelo
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de razão, de consciência e de ação,
desse modo, o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa,que emergia
do nascimento e por toda sua vida, permanecendo totalmente o mesmo (HALL,
2011).
Assim, a figura do indivíduo como sujeito autoconsciente de sua própria
individualidade e identidade só vai ganhar relevo na Modernidade, sendo a
identidade compreendida como produto da consciência, ou seja, a forma como o
sujeito autoconsciente se percebe, já que é na consciência que se processam as
modificações que realmente importam para o indivíduo compreender-se como é
(LUCAS, 2012b).
Nesse contexto, “o estudo do indivíduo e de seus processos mentais tornou-
se o objeto de estudo especial e privilegiado da psicologia” (HALL, 2011, p. 31), da
descoberta do inconsciente por Freud e estudos de outros pensadores
psicanalíticos. Entretanto, a sociologia localizou o indivíduo em processos de grupo,
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desenvolvendo uma explicação alternativa do modo como os indivíduos são
formados subjetivamente por meio de sua participação nas relações sociais e de sua
contribuição pelo papel desempenhado, em outras palavras, a teoria da socialização
é constituída pela internalização do exterior no sujeito e pela externalização do
interior, por essa reciprocidade estável (HALL, 2011).
O primeiro nome moderno dado à identidade foi subjetividade (SANTOS,
1994), a qual foi constituída a partir do termo subjetivo, designando aquilo que
pertence a consciência individual, ao pensamento humano, porém, a subjetividade é
cruzada pela alteridade, já que o indivíduo, como ser autoconsciente, só será
possível se assentado na comunidade a que pertence, pelo sentimento de
pertencimento.
Desse modo, ainda era possível, no século XVIII, imaginar os grandes
processos da vida moderna como estando centrados no indivíduo sujeito da razão,
mas à medida que as sociedades modernas se tornaram mais complexas, elas
adquiriram uma forma mais coletiva e social, emergindo, então, o sujeito sociológico,
que reflete a complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo
moderno não era autônomo e autossuficiente, mas, formado na relação com o outro,
que é mediador da cultura, do mundo habitado (HALL, 2011).
Dentro do conceito de sujeito sociológico a identidade é formada da interação
do eu e da sociedade, num diálogo contínuo com o mundo cultural, que costura o
sujeito à estrutura, ao mesmo tempo em que são internalizados seus significados e
valores, são alinhados os sentimentos subjetivos no mundo social e cultural que
habita (HALL, 2011).
Antes de qualquer coisa, o indivíduo desenvolve suas capacidades
caracteristicamente humanas em sociedade, sendo essa uma condição necessária
para o desenvolvimento da racionalidade. Nesse diapasão, a identidade cultural do
indivíduo moderno apresentava-se estável, localizada, naturalizada, sendo que era
vivenciada de maneira horizontal, compartilhando uma identidade unificada e
comum em torno de uma cultura nacional que primava pela homogeneidade e pela
igualdade.
No final do século XX houve muitos argumentos de que se estava no limiar de
uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder o que está levando a
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sociedade para além da própria Modernidade (GIDDENS, 1991). Inicia-se de tal
modo, a pós-Modernidade.Num mundo instável, numa sociedade de risco (BECK,
2003), numa Modernidade líquida (BAUMAN, 2001), o que se encontra na
atualidade foge do controle humano, parece um mundo em descontrole, já que se
supunha que o progresso da ciência e da tecnologia iria tornar a vida mais segura e
previsível e ocorreu exatamente o oposto (GIDDENS, 2007).
A discussão acerca da identidadepassou a ter maior relevância quando se
tornou desestabilizada, instável, transformando-se no foco das discussões
contemporâneas.Nesse líquido mundo moderno, “identificar-se com” significa dar
abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos
controlar (BAUMAN, 2005).
Nesse cenário, a identidade se tornou o “papo do momento, um assunto de
extrema importância e em evidência” (BAUMAN, 2005, p. 23), assunto que, há
algumas décadas atrás, não era o centro dos debates, era apenas objeto de
meditação filosófica, isso porque, o próprio conceito de identidade “é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido
na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova” (HALL,
2011, p. 8).
Para alguns teóricos, as velhas identidades estão em declínio, fazendo surgir
novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, abalando a ideia que tem
de si próprio como sujeito integrado, visto até então como um sujeito unificado,
abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social, causando uma perda de sentido de si (HALL, 2011). As
identidades modernas estão sendo descentradas, isto é, deslocadas ou
fragmentadas, estão entrando em colapso, constituindo-se uma crise de
identidade(HALL, 2011).
Na Modernidade a diferença começou a fazer parte do conceito de identidade,
já que deixa de ser considerado como um valor negativo e passa a ser considerado
um valor positivo (LUCAS, 2012a).Parece que, na pós-Modernidade,o maior
problema se constitui em qual das identidades escolher dentre as disponíveis, isso
porque a construção da identidade se tornou uma experimentação infindável, sendo
possível assumir uma identidade num momento, deixando de escolher uma
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infinidade existente delas, enquanto outras ainda estão para serem inventadas
(BAUMAN, 2005).
A pós-Modernidade ou Modernidade tardia é apocalíptica porque introduz
riscos que gerações anteriores não tiveram de enfrentar, se tornando cada vez mais
comum a influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos e sobre a
intimidade do eu (GIDDENS, 2002). O indivíduo pós-moderno enfrenta
problemasrepresentados pela perda do eu, pelo sentimento de vazio, pela
insegurança, pela monotonia, pela inutilidade, pela infelicidade, pela crise de
autoestima e pela perda do sentido da vida (BAUMAN, 2001).
O sujeito pós-moderno, surgiu como uma concepção de identidade muito
diferente e muito mais perturbadora, que é produzida pelo processo de identificação
que se tornou mais provisório, variável e problemático, com a identidade sendo
formada e transformada continuamente, sendo que o sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, pelas suas identificações estarem sendo
continuamente deslocadas (HALL, 2011).
Nesse sentido, “quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam
parecer natural, predeterminada e inegociável, a identificação se torna cada vez
mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um nós a que
possam pedir acesso” (BAUMAN, 2005, p. 30).A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro dos indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é preenchida a partir do exterior, pelas formas por meio das quais
imagina ser vistos por outros(HALL, 2011, p. 39).
A “identidade tem se transformado numa categoria essencial para a
compreensão dos conflitos contemporâneos” (LUCAS, 2012b, p. 125).Sobretudo, na
pós-Modernidade é possível dizer que o indivíduo “é o que é por não ser outra coisa”
(LUCAS, 2012b, p. 132), assim, a característica principal da identidade “é qualquer
coisa de próprio que é tal porque pertence ao conjunto ou que é tal porque existe o
seu oposto” (RESTA, 2014, p. 24).
Desse modo, “a identidade não faz concessões e mediações. Ela afirma sua
existência em contraposição ao seu oposto. Nega para poder ser o que é” (LUCAS,
2012b, p.149). O sujeito é precisamente, porque não pode ser consciência absoluta,
porque algo constutivamente estranho o confronta(HALL, 2003), algo diferente. Para
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Dubar “laidentidad es la diferencia” (2002, p. 11), e é, sobretudo porque a
identidade é em si mesma e negação em relação àquilo que não é (HÖFFE,
2000).
O indivíduo somente é numa relação com o todo (LUCAS, 2012a). E nessa
necessidade do caráter relacional Honneth (2003)desenvolve uma teoria a partir do
conceito de reconhecimento, segundo o qual a compreensão pessoal do indivíduo
seria obtida por meio do reconhecimento do outro, de modo que a família, a
sociedade e o Estado seriam considerados fatores constitutivos da essência do
indivíduo. Para Honneth a base da interação é o conflito e sua gramática a luta por
reconhecimento (LUCAS, 2013).
Na visão de Taylor a questão do reconhecimento passa a ser vista como
“uma necessidade humana vital,” (1994, p. 45), já que a formação das identidades
está ligada diretamente ao reconhecimento. De acordo com Resta “a identidade é a
sua diferença (...). O espaço da identidade está sempre em percurso que vai de uma
coisa a outra, que necessita do outro para se realizar como identidade” (2014, p. 24),
em outras palavras, a identidade reclama o seu externo. E nesse contexto Resta
(2014) é categórico ao afirmar que uma existe porque tem a outra, é tal porque
existe o seu oposto.
Desse modo, “a identidade é sempre marcada pela diferença; sua
conformação é relacional, pois ela somente pode ser percebida como tal quando
relacionada ou comparada com outras culturas que não ela mesma (...), outras
serão sempre a base de sua diferença” (LUCAS, 2012a, p. 165).A identidade é um
ser que é em si e que também o é por não ser outra coisa, ou seja, a negação de
seu oposto é a condição de sua unidade, em outras palavras, separa para unir,
inventa ligações artificiais que impedem o reconhecimento dos traços de
humanidade comum em cada particularidade, alimentando diferenças excludentes
(LUCAS, 2012b).
Nos tempos pós-modernos, as fronteirasque tendem a ser ao mesmo tempo
mais fortemente desejadas e mais agudamente despercebidas são as de uma justa
e segura posição na sociedade, de um espaço inquestionável da pessoa, onde
possa planejar a sua vida com o mínimo de interferência, desempenhar seu papel
num jogo em que as regras não mudem da noite para o dia e sem aviso prévio,
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assim, é característica dos indivíduos contemporâneos, viverem constantemente
com o problema da identidade não resolvido, e sofrerem de uma crônica falta de
recurso para construírem uma identidade verdadeiramente sólida e duradoura,
ancorá-la e suspender-lhe a deriva (BAUMAN, 1998).
3. CULTURA, IDENTIDADE E DIFERENÇA
Na sociedade multicultural, as identidades culturais começaram a reclamar
seu lugar diante do mundo globalizado, que reclamam o reconhecimento e
afirmação de sua diferença. Tudo ο que identifica o indivíduo, não é simplesmente
fruto das escolhas individuais, mas acima de tudo, ο fruto dos laços que o ligam a
diversas instituições sociais como a família, a tribo, a nação, se consubstanciando
numa espécie de legado, ponto de partida moral. Portanto, dificilmente se pode
encontrar a identidade para fora do vínculo de pertença ou desligando-se desta.
A cultura é uma criação humana, fruto da capacidade do homem de organizar
seu modo de vida. Igualmente,“é uma elaboração comunitária mediante a qual os
indivíduos se reconhecem, se autorrepresentam e assinalam significações comuns
ao mundo que os rodeia” (SIDEKUM, 2003, p. 18).
A noção de cultura é altamente problemática em termos de sua definição,
entretanto, pode ser considerada “todo o conjunto de saberes, representações,
símbolos, costumes e formas de vida compartilhadas, elaboradas comunitariamente,
por uma coletividade de indivíduos e que a difere de outros grupos, reproduzindo
uma concepção particular de sociabilidade” (LUCAS, 2013, p. 166).
Nesse sentido, as culturas são modos particulares de vida, modos movidos
pelo princípio universal da vida humana de cada sujeito em comunidade (DUSSEL,
2002), igualmente “seriam todos os comportamentos, costumes, imagens, regras e
saberes que possibilitam definir os laços de lealdade e de pertença para com o outro
semelhante, capaz de estabelecer as diferenciações com outros não integrantes de
um mesmo grupo” (LUCAS, 2013, p. 166). Para que se possa conceituar cultura, é
necessário levar em conta a comunidade imaginada, as memórias do passado, o
desejo de viver em conjunto e a perpetuação da herança (HALL, 2011).
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No entendimento de Sidekum, “pelo fato de ser natureza, o sujeito é definido,
determinado, mas sempre como realidade singular livre, ele se distancia da
natureza, é mais que natureza, possuindo abertura para os valores. É uma
indeterminação a determinar-se no processo cultural” (2003, p. 244), e Sidekum
acrescenta que essa é a “natureza humana um ser cultural e intercultural” (2003, p.
244).
O ser humano no decorrer da evolução da espécie, adaptou-se ao meio
ambiente e transformou-se, porém, mais importante do que isso é considerar que as
pessoas são seres sociais e, que esta adaptação ao mundo depende das relações
construídas por esta espécie que necessita, impreterivelmente, de seu grupo, da sua
comunidade, para se humanizar (ANGELIN, 2010).
Assim, torna-se imperioso destacar que a cultura é como uma lente por meio
da qual o homem vê o mundo. A cultura fornece o vínculo entre o que os indivíduos
são intrinsicamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, dito de
outro modo, o ser humano é um ser individual, mas sob a direção dos padrões
culturais modela como indivíduos separados (GEERTZ, 2008).Para além de suas
preferências individuais o indivíduo se confronta com as convenções sociais e
culturais para que possa adquirir um sentido pleno da sua própria identidade.
A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência (WOODWARD,
2013), assim, parece óbvio que a cultura não é uma entidade alheia ou separada
das estratégias de ação social, muito pelo contrário, a cultura é uma resposta, uma
reação à forma como se constituem e se desenvolvem as relações sociais,
econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados (FLORES, 2004).
Por meio da identidade surgem as noções de classe, gênero, grupo, etnias,
nacionalidades, sendo possível a construção da noção de pertencimento.
A identidade é marcada por meio de símbolos (WOODWARD, 2013),
símbolos estes caracterizados pela cultura por meio da socialização, dos ritos
religiosos, da alimentação, do trabalho, da legislação, das artes, da linguagem, dos
costumes, das concepções filosóficas e ideológicas, ou seja, tudo o que identifica
uma identidade.
Nesse sentido, diante das distintas identidades culturais, apresentam-se
sociedades cada vez mais multiculturais que estão em constantes transformações,
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minimizando-se as relações de alcance geográfico, porém extremamente
engrandecidas as questões culturais, históricas, econômicas e políticas. Na visão de
Kymlicka (1995), o multiculturalismo designa as diferenças nacionais e étnicas, sem
incluir as minorias e grupos sociais que estiveram excluídos historicamente, como
mulheres, gays, lésbicas, portadores de necessidades especiais, que passam a
fazer parte dos novos movimentos sociais.
Os indivíduos tendem a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao
longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, uma identidade cultural,
comunitária, nas quais sãodefinidos e defendidos interesses comuns, a vida é de
algum modo compartilhada e um novo significado pode ser produzido (CASTELLS,
2003).Diante das comunidades as identidades se referem como sendo as entidades
que as definem (BAUMAN, 2005). Na concepção de Dubar as comunidades são
“consideradas como sistemas de lugares y nombrespreasignados a los indivíduos y
que se reproducen identicamente a lo largo de lasgeneraciones” (2002, p. 13).
De tal modo, “cada nova geração começa a sua vida no mundo dos objetos e
fenômenos criados pelas gerações precedentes” (LEONTIEV, 1980, p. 45), sendo
que, a comunidade não se resume numa simples conglomerado de indivíduos, muito
pelo contrário, a comunidade somente subsiste pela participação ativa e pelo
envolvimento de cada indivíduo, formando sua identidade cultural exclusivae
singular, diferenciando-se das demais. Entretanto, é necessário lembrar que “a
criação das condições de igualdade dentro da comunidade são, também, as
condições de diferença para fora dela” (LUCAS, 2012b, p. 2).
Nesse cenário, isso só ocorre porque toda a atividade racional do homem é
uma luta pela existência, isto é, uma luta para que todos os indivíduos possam
satisfazer suas necessidades, para que não conheçam carências, fome ou
extenuação (LEONTIEV, 1980), o que só será possível a partir do outro, até porque,
“o indivíduo só pode se constituir como sujeito autônomo por meio do
reconhecimento do Outro” (TOURAINE, 1998a, p. 81). Assim, o indivíduo vive
sempre sob o olhar do outro (TOURAINE, 2009).
E “reconhecer o Outro não consiste nem em descobrir nele, como em mim
mesmo, um Sujeito Universal, nem aceitar sua diferença, mas reconhecer que nós
fazemos, com materiais e em situações diferentes, o mesmo tipo de esforço para
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combinar instrumentalidade e identidade” (TOURAINE, 1998a, p. 82). Desse
modo,“as batalhas de identidade não podem realizar a sua tarefa de identificação
sem dividir tanto quanto, ou mais do que unir. Suas intenções includentes se
misturam com (ou melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar,
isentar e excluir” (BAUMAN, 2005, p. 85).
É possível perceber, dessa forma, que se vive neste século uma problemática
jamais vivida com tanta magnitude no contexto da existência humana: de um lado a
igualdade, e por outro lado a questão das diferenças. É impensável e injustificável,
no atual estágio civilizatório que a humanidade se encontra, pensar na igualdade
sem trazer à tona a questão da diversidade e da diferença, até porque a diversidade
cultural é o conjunto de diferenças que reclamam por reconhecimento.
O mosaico das diferenças tende a aumentar toda vez que as particularidades
culturais, religiosas ou nacionais se chocam umas com as outras, reclamando cada
uma delas, reconhecimento e respeito as suas formas históricas de produção de
pertença. Não há pertença ou perspectiva identitária que não seja, ao mesmo
tempo, uma forma específica de estabelecer os limites da igualdade e da diferença
que separa o outro semelhante, do outro diferente (LUCAS, 2013).
A diversidade cultural refere-se à multiplicidade de culturas ou de identidades
culturais, assim sendo, as diversas culturas ao se aproximarem, estranham-se e
passam a olhar para si mesmas de forma diferente.Diante da diversidade cultural,
que traz intrinsecamente diversos olhares e formas de compreensão do mundo, o
multiculturalismo surge com a preocupação com o reconhecimento e proteção das
identidades, preocupação com as lutas pela dignidade, pela inclusão social, pela
autodeterminação, pelo direito das minorias, entre outros.
Devido a isso, para Benhabib (2006) o multiculturalismo não pode entender as
culturas como totalidades unificadas, holísticas e autoconsistentes,já que a defesa
cultural aprisiona o indivíduo e reduz suas intenções a estereótipos culturais.Na
verdade, o multiculturalismo não é uma única doutrina, há multiculturalismos
bastante diversos, o multiculturalismo, não caracteriza uma estratégia política, não
representa um estado de coisas já alcançado e não é uma forma de disfarçada de
endossar algum estado ideal ou utópico (HALL, 2003). Enfim, o multiculturalismo
discute o problema da identidade e seu reconhecimento (SEMPRINI, 1999).
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O multiculturalismo, segundo Abellán, “hace referencia, tanto enla teoria como
enlapractica, a lareivindicación de un modelo de sociedade que ceorganice de
maneracohrente com ele hecho de laexistencia em la sociedade de grupos humanos
culturalmente diversos” (2003, p.18). Sendo assim, o multiculturalismo pode
designar na atualidade, um complexo de problemáticas que remite a presença de
universos culturais diferentes (GALLI, 2006), produzindo a reivindicação do
reconhecimento das diferenças (AVILÉS, 2005).
Nesse viés, o multiculturalismo não é, consoante Parekh, “ni una doctrina
política conuncontenido programático, ni una teoría filosófica sobre elhombre y el
mundo, sino simplesmente una perspectiva sobre la vida humana” (2005, p.
491).Entretanto, para configurar-se o multiculturalismo necessita sempre de duas
características principais, a de reconhecer a natureza dialógica de todas as
identidades e a de discernir quais valores de cada cultura poderá ser aceitos ou não
(BAUMANN, 2001), já que apenas“o reconhecimento do outro não basta para
assegurar a comunicação, o debate, e, portanto, o acordo ou o compromisso com o
Outro” (TOURAINE, 1998a, p. 62)
Esse é um fenômeno inquietante e desafiador da contemporaneidade,
destacando-se como mais um desafio a sociedade contemporânea. Com a
globalização as tensões também afetam os modos de vida e as culturas tradicionais.
Assim,a cultura de uma comunidade choca-se com as múltiplas diferenças que
caracterizam outras culturas e que formam o entorno de sua própria condição
individual (LUCAS, 2013).
Desse modo, “não importa o quanto tentemos estender a nossa imaginação, a
luta da humanidade por autoafirmação não parece fácil, muito menos uma conclusão
inevitável. Sua tarefa não é apenas repetir mais uma vez um feito realizado muitas
vezes ao longo da história da espécie humana: substituir uma identidade mais estrita
por outra, mais inclusiva, e afastar a fronteira da exclusão. O tipo de desafio
enfrentado pelo ideal de “humanidade” (BAUMAN, 2005, p. 86).Nesse sentido, é
preciso estabelecer um novo paradigma no entendimento sobre a questão do
reconhecimento das identidades, já que defender o reconhecimento à diferença para
Lucas, “é defender o encontro do homem com ele mesmo, a busca do indivíduo por
seu lugar no mundo” (2013, p. 273).
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4.DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS: A GLOBALIZAÇÃO E
SUAS TENDÊNCIAS HOMOGENEIZANTES
Na pós-Modernidade, o mundo e a vida humana tem sido moldados pelas
tendências em conflito da globalização e da identidade. Nesse cenário, “torna-se
cada vez mais difícil definir os limites de cada povo e de cada cultura e aqueles
entendimentos lastreados em conceitos como “os de fora” e “os de dentro”,
estrangeiro e nacional, tendem a ser substancialmente relativizados” (LUCAS, 2013,
p. 167), assim, “a fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida
e muito menos mantida” (BAUMAN, 2003, p. 19).
É preciso “voltar a olhar as tendências que hoje ganham especial atenção sob
a palavra-chave globalização” (HABERMAS, 2007, p. 143). A globalização“pode não
ser um fenômeno revolucionário da sociedade contemporânea, mas é especialmente
desafiadora das formas tradicionais de produzir pertença e identidade” (LUCAS,
2013, p. 16). Isso porque, num mundo globalizante, todos estão regularmente em
contato com outros que pensam e vivem de maneira diferente de si (GIDDENS,
2007).
O termo globalização “significa que o Estado não tem mais o poder ou o
desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação” (BAUMAN, 2005, p.
34), traz uma nova e complexa relação entre o geral e o particular, o universal e o
singular. Isso porque, “o fechamento dos Estados em torno de si mesmos é, para a
globalização, uma realidade tão intensa e necessária quanto a sua capacidade de se
abrir às relações exteriores” (LUCAS, 2013, p. 167).
A globalização não é um fenômeno recente, mas se acelerou a partir da
segunda metade do século XX, envolvendo a ideia crescente de mundo sem
fronteiras, tem a ver também com a tese de que agora vivem todos num mesmo
mundo (GIDDENS, 2007). É, com toda certeza, a palavra mais usada, abusada,
nebulosa e mal compreendida e a menos definida dos últimos e dos próximos anos
(BECK, 1999), podendo ser considerada “nossa irreversível dependência mútua”
(BAUMAN, 2005, p. 96), já que “os seres humanos não vivem sozinhos, e suas
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condições de vida dependem das condições de vida dos outros” (TOURAINE, 2009,
p. 191).
Bauman acerca da globalização e da realidade do mundo contemporâneo traz
o exemplo de um cartaz espalhado pelas ruas de Berlin em 1994 que anunciava que
“Seu Cristo é Judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia,
grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas
letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro” (2005, p. 33). O que demonstra que as
identidades estão sendo deslocadas pelos processos de globalização (HALL, 2011,
p. 50).
Em nome da identidade visa-se restaurar um mundo idealizado de
simplicidade de vida, durabilidade, proximidade e confiabilidade das relações
interpessoais,contradizendo as tendências desestabilizadoras e a incertas da
contemporaneidade. Muito embora,no bojo da ideia de comunidade remetendo a
segurança e a estabilidade, sempre há um custo. Para Bauman (2003), o preço é
pago em forma de liberdade, autonomia, direito à autoafirmação e à identidade, ou
seja, por trás das sensações acolhedoras, o comunitarismo abrange processos de
exclusão daqueles que não compõe a comunidade.
À medida que o indivíduo se define por seu pertencimento a uma comunidade
julga o outro diferente como bárbaro, o que só pode se transformar numa guerra
cultural ou uma completa segregação (TOURAINE, 1998a).À medida que se busca
refúgio na identidade ou na comunidade homogênea acaba-se inevitavelmente por
rejeitar o outro, cuja diferença logo aparece como uma ameaça, trazendo consigo o
apeloà homogeneização, a unidade, reduzindo sua relação com o resto da
sociedade (TOURAINE, 1998b).
Muito embora os indivíduos vivam um pouco junto em todo o planeta, ao
mesmo tempo em que, fusionados e separados, é igualmente verdadeiro que por
toda a parte se reforçam e se multiplicam os grupos de identidade, as associações
baseadas na pertença comum, parecendo que as sociedades voltaram a ser
comunidades, reunindo-se estreitamente num mesmo território e essa volta traz
consigo o apelo à homogeneidade, à pureza e à unidade (TOURAINE, 1998b).
Mas ocorre que, na pós-Modernidade, as comunidades não têm como
manterem instransponíveis as fronteiras que separam o “dentro” e o “fora”. Para
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Bauman (2003) essa se transformou na “comunidade do entendimento comum”, que
por sua vez, mesmo se alcançada, permanecerá frágil e vulnerável, necessitando de
constante vigilância. Nessa comunidade, toda homogeneidade, toda unidade precisa
ser construídas e estarão sempre sujeitas a contestação, discussão e reflexão.
Os processos de globalização fazem surgir uma nova articulação entre o
global e o local e produzindo, simultaneamente novas identificações globais e locais
(HALL, 2011), assim, “em vez de as diferenças desaparecem no meio da
homogeneidade cultural perpetrada pela globalização, que influencia a um só tempo
todas as realidades particulares do planeta, novas formas identitárias passam a
conviver com as identidades nacionais em declínio, ou até mesmo assumem o seu
lugar” (LUCAS, 2013, p. 172).
A homogeneização cultural pode ser considerada “o grito angustiado
daqueles/as que estão convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as
identidades e a unidade das culturas nacionais” (HALL, 2011, p. 77), isso porque,
“nada está mais distante do multiculturalismo do que a fragmentação do mundo em
espaços culturais, nacionais ou regionais estranhos uns aos outros, obsediados por
um ideal de homogeneidade e de pureza que os sufoca” (TOURAINE, 2009, p. 197).
A maior interdependência global leva a um colapso das identidades
tradicionais, ligadas ao local, e produz uma diversidade cada vez maior de estilos e
identidades (HALL, 2011). Isso porque, “como outros processos globalizantes, a
globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas compreensões
espaço-temporais, impulsionada pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre a
cultura e o lugar” (HALL, 2003, p. 36). Assim, ocorre também, “uma globalização das
biografias, uma reinvenção do global e do local que afeta diretamente a
individualidade de cada um” (LUCAS, 2013, p. 168).
A globalização está tendo efeitos em toda a parte, um efeito pluralizante sobre
as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades, tornando as
identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas e
unificadas (HALL, 2011).É possível estar razoavelmente seguro de que as forças
globais tendem a “elevar as nossas identidades ao nível mundial – ao nível da
humanidade” (BAUMAN, 2005, p. 96). Para Hall (2011) as identidades flutuam
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livremente e se pode verificar uma certa homogeneização cultural, sinalizando para
um senso comum planetário.
O paradoxo que se vislumbra no mundo contemporâneo reside no fato de que
a abertura para novas possibilidades de acesso e trocas não significa que se
conseguiu formar uma aliança harmônica e solidária em projetos comuns. Para Hall
(2011) o futuro depende da faculdade que o homem terá para transcender os limites
das culturas individuais.
Quanto mais a vida social se torna mediada pelos processos de globalização,
mais as identidades se tornam desvinculadas, desalojadas e parece flutuar
livremente uma gama de diferentes identidades, mas que ficam reduzidas e
traduzidas a uma espécie de língua franca internacional, fenômeno conhecido como
homogeneização cultural (HALL, 2011). E a diversidade é percebida,
frequentemente, como disparidade, como pluralidade, contrária a ideia de
uniformidade e de homogeneidade.
Nesse mesmo sentido, juntamente com as tendências homogeneizantes da
globalização, há a proliferação das diferenças, tratando-se de um paradoxo da
globalização, já que culturalmente as coisas pareçam mais ou menos semelhantes
entre si e concomitante há a proliferação das diferenças (HALL, 2003). O
reconhecimento das diferenças tornou-se condição indispensável à participação
social das minorias, dos excluídos, ao fim das desigualdades, a não discriminação e
não submissão de uns pelos outros, a prevenção do sofrimento humano.
Diante disso, a luta pelo reconhecimento da diferença, se impõe na sociedade
globalizada, e é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e
social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e se encontra inserida
no processo histórico. É, sobretudo, importante lembrar que a construção da
identidade respeitando as diferenças é um processo bastante complexo,
principalmente se considerado que a tendência da maioria dos grupos sociais é a de
colonizar o outro, buscando criar uma monocultura (ANGELIN, 2010).
A diversidade cultural é um dado da realidade e acompanha o processo de
globalização. Nesse mundo contemporâneo globalizado surge o intenso debate
acerca da diversidade cultural e dos direitos humanos, entre as teorias universalistas
e relativistas, haja vista que se desponta como necessário o reconhecimento da
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diversidade cultural, da necessidade de aprender a conviver com as diferenças, com
as diferentes culturas, mas, de forma que não se mitigue o reconhecimento de
proteção da própria condição humana, da humanidade que é inerente ao homem.
A universalidade se apresenta como uma das características básicas da
chamada concepção contemporânea dos direitos humanos, produto do movimento
de internacionalização, muito recente na história, que teve como marco o fim da
Segunda Guerra Mundial (PIOVESAN, 2004).Fundamenta-se na igualdade e na
dignidade, sendo incompatível com práticas de uma pretensa superioridade fundada
em raça, religião, sexo ou qualquer outro elemento.
Dessa maneira, a universalidade dos direitos humanos reconhece a
humanidade alguns valores comuns que devem ser partilhados por todas as
culturas. Ocorre que, mesmo diante de seu caráter universal, os direitos humanos
não estão sustentados em unanimidade de entendimento no contexto global. Na
pós-Modernidade houve uma atitude crítica em relação aos valores universais que a
Modernidade afirmou e definiu, nomeadamente em relação à universalidade dos
direitos humanos.
A diversidade cultural encontrada nas tradições dos povos se choca com a
ideia universalista de igualdade, por confrontar os valores universais
àsparticularidades das culturas, o que fez surgir a tese do relativismo cultural.
Entretanto, ao mesmo tempo, que essa tese pode significar proteção às minorias, às
diferenças culturais, igualmente pode representar a complacência com costumes e
práticas que atentem contra os direitos humanos.
Nesse viés, o multiculturalismo e a efetivação universal dos direitos humanos
remetem à questão da igualdade e da diferença.Assim sendo, “são as zonas de
igualdade e diferença existente entre as culturas que interessam para o debate entre
pluralismo cultural e a universalidade dos direitos humanos” (LUCAS, 2012a, p.
165). A universalidade dos direitos humanos não se contrapõe ao direito à diferença,
podendo, inclusive, ser a condição de possibilidade para que as diferentes
manifestações humanas possam se expressar e conviver em igualdade e sem
aviltamentos, impedindo que a universalidade seja confundida com homogeneização
e a diferença com desigualdade.
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O grande desafio do mundo contemporâneo é o de quejá não se pode mais
deixar de lado a questão da proteção aos direitos humanos a qualquer ser humano
independente do lugar onde se encontre.Isso porque, antes de ter uma identidade
cultural que lhe dá uma perspectiva de estar no mundo, uma identidade e uma
pertença, o homem é refém de sua própria condição humana universal
(FERNÁNDEZ, 2003).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema da contemporaneidade não consiste na capacidade humana de
assimilação da cultura ou de dar a sua contribuição para o progresso, mas sim, na
capacidade humana de destruir os efeitos monstruosos que a divisão, que a
segregação produz, para que todos os homens possam marchar pelo caminho do
desenvolvimento integral e harmônico, sem quaisquer limitações. Assim, os direitos
humanos se destacam como um porto seguro, uma âncora, diante das tempestades
impelidas pelo ódio, pela intolerância, pela discriminação e pelo desrespeito à
diferença.
A universalidade dos direitos humanos está contemporaneamente incitada a
mediar os limites entre a igualdade e a diferença nas relações culturais, baseada na
humanidade do homem enquanto tal, como limite ético para o reconhecimento
dasparticularidades e para a afirmação das igualdades que não homogeneízem e
não sufoquem a humanidade presente na experiência de cada homem isoladamente
considerado, assim, o ponto crucial é saber identificar o limite entre a aceitação e a
assimilação, compondo a noção de universalidade com as características comuns e
necessárias de cada cultura (LUCAS, 2013).A universalidade dos direitos humanos
é, acima de tudo, um dever pertencente ao projeto inacabado de tornar o homem
verdadeiramente humano.
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