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A dura vida dos navegantes Nas caravelas dos descobrimentos, a busca por aventura, fama e fortuna fazia os marinheiros passarem por maus bocados Fome, sede e doenças, eram apenas algumas das condições enfrentadas no cotidiano dos navegantes nos séculos XIV e XV . Fugindo de uma vida dura na Europa, centenas de homens embarcaram nas caravelas dos descobrimentos. Eram atraídos pela brisa do mar e pela aventura, encontrando uma existência repleta de surpresas nem sempre agradáveis. Dentre os obstáculos que precisaram ser vencidos para desbravar os mares, nenhum supera a dureza do cotidiano nas caravelas. Os tripulantes eram confinados a um espaço que impedia qualquer tipo de privacidade. Os hábitos de higiene eram precários. Proliferavam insetos parasitas: pulgas, percevejos e piolhos. O mau cheiro se acumulava, tornando-se insuportável em pouco tempo. Além disso, havia o perigo constante de naufrágio. Não foram poucos os escudeiros e simples marujos que, por mérito, acabaram agraciados com títulos de nobreza pelo rei de Portugal nos séculos XV e XVI. Foi o caso de João Afonso de Aveiro, um simples marinheiro que se tornou fidalgo e capitão de uma caravela, recebendo terras e um brasão do rei D. João II, por volta de 1585. Mas o risco constante de motim fazia com que os marinheiros fossem submetidos a uma rígida disciplina militar. Para garantir a ordem, cada capitão era obrigado por lei a ter duas peças de artilharia em seu camarote e a portar duas armas de fogo e uma espada. Amotinados eram presos a ferros no porão, onde permaneciam até o fim da viagem. Quando em terra, não eram julgados, mas perdiam direito ao soldo e tinham os nomes incluídos numa lista negra que impedia que fossem admitidos em outro navio. Em certa ocasião, por exemplo, o capitão João Pereira Corte Real, tendo enfrentado um tumulto entre os marujos, enforcou dois homens e matou outro com estocadas do cabo de sua espada. O rei de

A Dura Vida Dos Navegantes

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Trata-se de pequeno relato, tratando a dura realidade ds navegantes da época.

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A dura vida dos navegantes

Nas caravelas dos descobrimentos, a busca por aventura, fama e fortuna fazia os marinheiros passarem por maus bocadosFome, sede e doenas, eram apenas algumas das condies enfrentadas no cotidiano dos navegantes nos sculos XIV e XV . Fugindo de uma vida dura na Europa, centenas de homens embarcaram nas caravelas dos descobrimentos. Eram atrados pela brisa do mar e pela aventura, encontrando uma existncia repleta de surpresas nem sempre agradveis.Dentre os obstculos que precisaram ser vencidos para desbravar os mares, nenhum supera a dureza do cotidiano nas caravelas. Os tripulantes eram confinados a um espao que impedia qualquer tipo de privacidade. Os hbitos de higiene eram precrios. Proliferavam insetos parasitas: pulgas, percevejos e piolhos. O mau cheiro se acumulava, tornando-se insuportvel em pouco tempo. Alm disso, havia o perigo constante de naufrgio. No foram poucos os escudeiros e simples marujos que, por mrito, acabaram agraciados com ttulos de nobreza pelo rei de Portugal nos sculos XV e XVI. Foi o caso de Joo Afonso de Aveiro, um simples marinheiro que se tornou fidalgo e capito de uma caravela, recebendo terras e um braso do rei D. Joo II, por volta de 1585. Mas o risco constante de motim fazia com que os marinheiros fossem submetidos a uma rgida disciplina militar. Para garantir a ordem, cada capito era obrigado por lei a ter duas peas de artilharia em seu camarote e a portar duas armas de fogo e uma espada.

Amotinados eram presos a ferros no poro, onde permaneciam at o fim da viagem. Quando em terra, no eram julgados, mas perdiam direito ao soldo e tinham os nomes includos numa lista negra que impedia que fossem admitidos em outro navio. Em certa ocasio, por exemplo, o capito Joo Pereira Corte Real, tendo enfrentado um tumulto entre os marujos, enforcou dois homens e matou outro com estocadas do cabo de sua espada. O rei de Portugal Filipe II, o mesmo que governava a Espanha por meio da Unio Ibrica , quando soube do ocorrido, julgou-o merecedor de uma recompensa.

O ambiente de permanente tenso era gerado, em parte, pelo aperto a bordo. As caravelas tinham dimenses modestas. Desenvolvidas a partir de uma confluncia de tradies, havia uma grande variedade de tipos, com dimenses entre sete e 18 metros de comprimento, tendo uma largura de um para trs. Isto significa que a chamada caravela latina, a mais utilizada nas viagens de explorao da costa africana, com 16 metros de comprimento, teria cerca de cinco metros de largura.

Alm do convs, que ficava a cu aberto, qualquer tipo de caravela tinha no mximo mais dois pavimentos inferiores. Este espao era lotado com canhes, plvora, munio e, principalmente, gua e alimentos necessrios para enfrentar o alto-mar, deixando pouco espao para os marujos.

O nmero de tripulantes variava entre 12 e 120, muitas vezes envolvendo, alm de marinheiros, bombardeiros responsveis pelo manuseio dos canhes e soldados que deveriam garantir a segurana no desembarque em praias lotadas de nativos potencialmente hostis.

Nos pavimentos inferiores, o ar e a luz eram extremamente escassos, fornecidos apenas por fendas entre os ripados de madeira, que tambm deixavam passar gua, tornando os pores abafados, quentes e midos. Nesse ambiente insalubre, apinhado de carga, os marinheiros ficavam amontoados em um nico cmodo.

Cada marujo possua um ba para guardar seus pertences, alojado embaixo do catre inferior, uma espcie de beliche de trs ou quatro pavimentos de madeira que servia de cama, sem o conforto dos modernos colches. Ali os tripulantes se revezavam para descansar.

Devido ao aperto nos navios, o abastecimento e a alimentao constituram um problema permanente. Os gneros embarcados tinham sempre uma pssima qualidade. Estavam frequentemente deteriorados ainda no incio da viagem e terminavam apodrecendo em pouco tempo.

O rol dos produtos oficialmente embarcados inclua carne vermelha defumada, peixe seco ou salgado, favas, lentilhas, cebolas, vinagre, banha, azeite, azeitonas, farinha de trigo, laranjas, biscoitos, acar, mel, uvas-passas, ameixas, conservas e queijos. Tambm eram transportados barris de vinho e gua, embora, depois de algumas semanas, o vinho se transformasse em vinagre e a gua, em um ftido criadouro de larvas.

Para garantir a presena de alimento fresco, iam a bordo alguns animais vivos, principalmente galinhas, e, por vezes, bois, porcos, carneiros e cabras, brindando os embarcados com muito esterco e urina, que contribuam para agravar o quadro de doenas entre os humanos.

Mesmo assim, raramente havia carne vermelha fresca, e, quando existia, uma arroba era fornecida, por ms, para cada homem o equivalente a 2,510 quilos. Receber esta regalia era raridade. O embarque de animais de grande porte no era recomendado, tomava muito espao, consumia vveres e gua, deixava o ambiente ainda mais insalubre. Com sorte, peixe seco, cebolas e alho podiam ser fornecidos. Muitas vezes, na falta de lenha, peixe e carne eram consumidos crus.

Em viagens longas, passado um ms, o que sobrava para comer era uma espcie de biscoito duro e seco, ento j todo rodo por ratos e baratas. Nestas condies, a rao era distribuda trs vezes ao dia, praticamente nunca excedendo uma poro de biscoitos, meia medida de vinho e uma de gua. Diante da iminncia da fome, muitos traziam seu prprio estoque de comida, outros optavam por tentar pescar nos perodos de calmaria ou caar os muitos ratos presentes a bordo.

A dieta pobre em vitaminas explica diversas doenas que se tornaram corriqueiras nos navios, com sintomas como disenteria, febre, fraqueza extrema e desnutrio. A principal era o escorbuto, chamado na poca de mal das gengivas ou mal de Luanda, provocado pela falta de vitamina C. Causava inchao das gengivas e perda dos dentes, dilataes e dores nas pernas, conduzindo a uma lenta, horrvel e dolorosa morte.

Ironicamente, no caso do consumo de ratos o animal sintetiza a vitamina C a partir dos alimentos que consome , os infortnios vividos pelos mareantes em desespero, sem que soubessem, terminavam evitando o aparecimento do escorbuto.

A ausncia de hbitos bsicos de higiene piorava os estragos causados pelo alto grau de deteriorao dos vveres. No era costume, por exemplo, lavar as colheres, as gamelas e os pratos usados. Estes utenslios eram compartilhados, sendo de uso coletivo entre os tripulantes. Alm disso, piolhos, pulgas e percevejos saltavam dos animais transportados e encontravam nas pessoas um farto terreno para proliferar.

Os tripulantes precisavam conter sua repugnncia diante dos companheiros de viagem, que arrotavam, vomitavam, soltavam ventos e escarravam perto dos que comiam sua escassa refeio. No havia instalaes sanitrias a bordo. Eles faziam as necessidades se debruando no costado da nau, na borda do navio, voltados para o mar. Alguns caam enquanto buscavam alvio e nunca mais eram vistos. Aqueles que podiam, valiam-se de bacios, cujo contedo ftido era depois despejado em qualquer canto.

Tudo em meio ao convvio com gente que havia embarcado fugindo de desafetos ou da Justia. Apesar de muitos buscarem redeno pelos pecados, outros estavam procura de oportunidades de arranjar mais encrenca, cometer estupros ou atirar o companheiro ao mar para se apoderar de seus pertences.

Embora obstculos como esses desestimulassem o sonho mercantilista e cristianizador, nada pde impedir que o esprito de aventura fosse efetivado. Cada dificuldade serviu de lio para a etapa seguinte, possibilitando o domnio, pelos europeus, dos mares por desbravar.