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A ELEGIA, O TANGO E A CONDIÇÃO LATINO-AMERICANA. SOARES, Teresinha Rodrigues Prada , CAMPOS, Helen Luce,
SANTOS, Rita de Cássia Domingues dos
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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A ELEGIA, O TANGO E A CONDIÇÃO LATINO-AMERICANA
SOARES, Teresinha Rodrigues Prada
Professora do Programa em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT
CAMPOS, Helen Luce
Estudante de doutorado do Programa de Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT [email protected]
SANTOS, Rita de Cássia Domingues dos Estudante de doutorado do Programa de Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT
RESUMO O texto trata de duas obras musicais brasileiras ligadas à situação política e social da América Latina nos anos finais sob ditatura militar. Elegia Violeta para Monsenhor Romero (1980), de Jorge Antunes, e O
Último Tango em Vila Parisi (1987), de Gilberto Mendes, são obras oriundas do meio erudito, cujo
conteúdo aborda a repressão, a miséria, o poder econômico e ideológico e a violência, denunciando, cada uma à sua maneira, aqueles momentos vividos. O objetivo é refletir como a arte pode questionar
a subjetividade capitalística e gerar processos de singularização e micropolíticas. A metodologia
usada foi a análise das duas obras com o apoio do referencial teórico baseado em Dussel (1984) sobre a posse e o uso da terra; Guattari e Rolnik (1986) quanto à subjetividade capitalística, e aspectos
biográficos dos dois compositores, por meio de Valle (2003) e Mendes (1994).
Palavras-chave: Arte. Música. Política.
ABSTRACT The paper deals with two Brazilian musical works linked to the political and social situation in Latin America in the last years on military dictatorship. Elegia Violeta para Monsenhor Romero (1980) by
Jorge Antunes and O Último Tango em Vila Parisi (1987) by Gilberto Mendes are works coming from
the erudite area, which content approaches repression, misery, the economic and ideological power and violence, denouncing, each in its own way, those moments lived. The aim is to think over how can art
confront the capitalistic subjectivity and generate processes of singularity and micropolitics. The methodology used was the analysis of the two works supported by the theoretical framework based on
Dussel (1984) about the possession and use of the land; Guattari and Rolnik (1986) concerning the
capitalistic subjectivity, and biographical aspects of the two composers, through Valle (2003) and Mendes (1994).
Key-words: Art. Music. Politics.
INTRODUÇÃO
Partindo de expressões artísticas que resgatam a memória de situações vividas,
refletimos como a arte pode questionar instâncias político-sociais sem se desprender de sua
carga estética, ou seja, como reúne gestos poéticos e politicamente engajados. Em um
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continente onde a memória sofre agressões constantes, artistas como Jorge Antunes (1942, RJ)
e Gilberto Mendes (1922, SP) insistem em nos lembrar de acontecimentos ainda recentes, que
retratam a sociedade latino-americana.
Este trabalho analisa duas obras emblemáticas desses compositores contemporâneos:
Elegia violeta para Monsenhor Romero (1980) e O Último Tango em Vila Parisi (1987) que
primaram pela crítica social e dilemas que a América Latina enfrentou nas décadas de 1970 e
1980, e a relação do homem com seu habitat, imersos numa subjetividade capitalística, segundo
Guattari e Rolnik (1986). Como o compositor contemporâneo cria micropolíticas e reage a
imposição do sistema? Segundo eles, cada artista desenvolve seus processos de singularização
para lograr a subversão desta subjetividade.
As duas obras contemplam ainda questões relacionadas ao uso indevido da terra,
visando lucro e poder (DUSSEL, 1984). A análise das obras faz parte de pesquisas em
andamento do Núcleo de Estudos de Composição e Interpretação da Música Contemporânea
(ECCO/UFMT), sendo escolhidas para esta comunicação devido à motivação eminentemente
contestatória que alavancou seus processos de criação artístico-musical.
1. ELEGIA VIOLETA PARA MONSENHOR ROMERO
1.1. A Inspiração
A América Latina padece de um mal próprio dos povos dominados e oprimidos: a falta
de memória. Cremos que uma das maiores contribuições da perspectiva teológica a partir do
pobre foi resgatar a importância e a necessidade da história, da memória e, por consequência, a
busca e afirmação de uma identidade.
Quando vemos expressões artísticas que resgatam a memória, devemos permitir a
natural busca da reflexão sobre o sentido e a origem da condição que se vive. Em um continente
onde a memória “deve” ser esquecida, artistas como Jorge Antunes insistem em nos lembrar de
acontecimentos recentes, que retratam a sociedade latino-americana, como aconteceu em sua
música Elegia Violeta para Monsenhor Romero.
Mas, quem foi Monsenhor Romero? Oscar Ranulfo Romero nasceu no dia 15 de agosto
de 1917, na Ciudad Barrios, no departamento de San Miguel, em El Salvador. Ele foi o segundo
de uma família de oito filhos, sendo seis meninos e duas meninas.
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Os habitantes mais velhos da cidade se lembram de Romero como uma
criança séria, estudiosa e piedosa. ...frequentou a escola pública nas três primeiras séries e depois teve aulas com uma preceptora da localidade, Anita
Iglesias, até os doze ou treze anos de idade. Durante esse período, Romero foi
aprendiz do pai, primeiro como carteiro, e depois como operador de telégrafo. ...adorava música, especialmente música de marimba, paixão que carregou
consigo a vida inteira. (SCOTT, 2011, p. 30).
Romero teve uma preocupação pastoral muito acentuada com os menos favorecidos,
sempre dando assistência a estes através de visitas em suas casas. Em sua paróquia, foi um
pregador preocupado em anunciar as boas-novas contidas na Bíblia, como forma de
proporcionar esperança aos que estavam desanimados.
No seu papel de pregador, Romero adotou o manto de um profeta: tornou-se a voz daqueles que não tinham expressão, condenando a morte lenta pela
opressão e a morte rápida pela repressão em uma nação marcada por extremos
de riqueza e pobreza, e também pela violência. (SCOTT, 2011, p. 20).
O panorama era de extremo conflito, com os mecanismos de repressão e a negação da
vida aos despossuídos, espoliados, justamente estes, que a história oficial tantas vezes tem
ignorado, utilizados somente quando há interesse político ou mercadológico.
Diante desse quadro latino-americano, infelizmente comum, o ato artístico nos obriga,
justamente por sua localização geográfica, a olharmos para Israel. Formado por judeus vindos
dos guetos europeus oriundos do regime nazista, se firmou na ocupação das terras em poder de
outros que, de forma legal e/ou ilegal, foram desterrados. Com isso, a opressão e o extermínio
foram trasladados. O artista, assim como o profeta antigo, novamente é chamado a ver, ouvir,
julgar e assim, agir, denunciando, através da música – e foi o que fez Jorge Antunes, ao
descobrir a morte de Monsenhor Romero.
Jorge é movido pela necessidade imediata da luta contra as injustiças. O fato
acaba de ocorrer, ou de lhe chegar ao conhecimento, e ele necessita posicionar-se publicamente, na tentativa de participar de forma positiva na
construção do que chama de utopia de um mundo melhor. Muitas vezes, com
isso, suas obras referem-se a fatos que o atormentavam no momento, e que, no decorrer de alguns anos já não estão mais registrados na memória comum das
pessoas. Como que, com isso, seu posicionamento quisesse sacudir o público
que atinge ante os fatos iminentes.... (VALLE, 2003, p. 180).
1.2. O Compositor
Jorge Antunes nasceu no Rio de Janeiro, em 1942, porém, mora em Brasília desde 1973,
onde foi professor da Universidade de Brasília (UnB), dirigiu o Laboratório de Música
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Eletroacústica e ensinou Composição e Acústica Musical, atuando hoje como Pesquisador
Colaborador Sênior na pós-graduação em Música da UnB.
Cursou Bacharelado em Violino, Composição e Regência na Escola Nacional de
Música, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É considerado o precursor da
música eletroacústica no Brasil e possui pesquisas no campo da correspondência entre sons e
cores, desenvolvendo uma técnica de composição a que dá o nome de Música Cromofônica.
Suas primeiras obras são da década de 1960, quando ainda bem jovem; eram para orquestra:
Sarau (1962), Sarau nº 2 (1963) e Seresta pra Juvenil (1966).
Desde cedo, já no tempo do colegial, teve posicionamentos contrários às atitudes
tomadas pelo governo brasileiro, ante as injustiças sociais. Sua postura política se firmava nas
questões básicas populares.
Diante de cada necessidade de luta pela Justiça, ele se posiciona. E sua arte
carrega essa luta, projetando-a em níveis que a torna visível ao público a que
se dirige, tendo ao mesmo tempo a preocupação com a contemporaneidade de
expressão. (VALLE, 2003, p. 175).
O século XX, desde seu início, foi marcado, no campo das Artes, por vários manifestos,
em busca de uma transformação da estética das artes, e Antunes participou ativamente desse
processo de renovação. Entre os anos de 1978 e 1989 realizou em Brasília intensa atividade
cultural e política. Participou de movimentos populares e de intelectuais pela democratização
do país. Desse período destacamos as obras: Elegia Violeta para Monsenhor Romero (1980);
Tô tô tô Funaro (1983); Sinfonia das Diretas (1984); Olga (1987), dentre outras, escritas a
partir de acontecimentos da época.
É nesse contexto que Jorge Antunes iria despontar, sendo, ao mesmo tempo, o
mais contestador dos vanguardistas brasileiros e, de certa forma, encontrando
uma linguagem própria de resgate a uma comunicabilidade com o público e com o seu tempo. (VALLE, 2003, p. 174).
Durante este mesmo período, coordenou projetos musicais na UnB (Núcleo de
Pesquisas Sonológicas, Orquestra de Câmara da UnB, Festivais de Música contemporânea etc.)
e realizou várias viagens no Brasil e exterior para participar de Festivais e reger concertos.
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1.3 A Obra
Em 1980 ocorreu em Israel o Festival da Sociedade Internacional de Música
Contemporânea – SIMC, com um concurso internacional. Antunes participou, e foi um dos três
compositores escolhidos, como convidado especial do Festival e da Liga de Compositores de
Israel. A proposta era que ele passasse quatro meses em Israel compondo uma peça, que seria
estreada no Festival. Nesse período, ficou dois meses em Jerusalém, e os outros dois meses em
um Kibutz, no deserto de Neguev.
Durante os quinze primeiros dias não seria exagero dizer que me entreguei à terra, me entreguei à pedra, me entreguei à contemplação do tempo gravado
na pedra. Em cada pedra da Velha Jerusalém eu senti a violência e a dor
milenares do homem. Aquela dor e aquela violência milenares do homem ali
documentadas só me fizeram imbuir-me mais ainda da necessidade da luta permanente em favor da dignidade humana e das condições de defesa da gente
oprimida. (JORGE ANTUNES, in:VALLE, 2003, p. 183).
Após esse período de quatro meses de trabalho, estava concluída a peça Elegia violeta
para Monsenhor Romero, composta para duas crianças cantoras solistas, coro infantil, piano e
orquestra de câmara. “A obra homenageia, segundo declaração do autor, os mártires de ontem e
de hoje que lutam ou lutaram em favor da dignidade humana e da justiça social”. (VALLE,
2003, p. 181). Sua estreia ocorreu em Jerusalém, no dia 3 de julho de 1980, no Concert Hall do
Conservatório de Música de Beer-Sheva, e a manifestação do público presente ao concerto foi a
melhor possível.
Elegia Violeta para Monsenhor Romero é uma composição contemporânea, de viés
erudito, fundada no martírio de Dom Romero, onde se celebram a morte, a opressão e o anseio
de liberdade e esperança. Em um só episódio artístico, realidades se misturaram: a opressão
latino-americana, a libertação dos judeus da dominação nazista, e o martírio palestino. Tudo
isso em conjunto com a Bíblia através dos Salmos de Davi, o construtor do reino antigo de
Israel e antecessor físico e ideológico do Cristianismo – por ser antecedente de Jesus –,
juntamente com o poeta palestino Naji Alush. Tudo isso na voz de crianças, as eternas
mensageiras da paz e da esperança, obrigando-nos a um processo de reflexão.
Toda essa atmosfera de aglutinação de forças, de súplica, de protestos, de
esperanças, foi guia para a escolha dos textos que ecoariam através das vozes
infantis: Salmos de Davi, trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, frases de Che Guevara, máximas de Dom Romero, versos de Naji
Alush. (VALLE, 2003, p. 184).
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Memória histórica. Já se disse que a teologia não pode prescindir da história, pois é nela
que as coisas se registram, os acontecimentos, as causas, as origens:
Fala-se de teo-logia, de teó-logo, isto é, de um logos sobre Deus (theos). Um
logos que seria compreensão, mas compreensão no sentido de abarcar,
colecionar ou reunir. Compreendo o que abarco. Mas, parece que é impossível compreender algo sobre Deus. Como o finito e o humano há de compreender o
infinito inabarcável? Devemos, pois, indicar um primeiro problema: É
possível um logos de Deus? E, se é possível, em que condições é possível? Só é possível, quando se dá a condição de que Deus se re-vele, se des-vele, tire o
véu que o oculta e se faça compreensível ao que é finito. Ele, o infinito, vai ser
compreensível por sua revelação e tal como tenha querido outorgá-la. É bem
sabido que esta revelação é histórica: e só histórica. O único lugar da revelação é a história. O único “lugar teológico” é a história: a história
concreta que vivemos cada dia. (DUSSEL, 1984, p. 11).
O que a música celebra? A memória mais recente do nosso viver concreto: No se mata
la Justicia!, frase esta dita por Dom Romero a um jornalista em San Salvador, poucos dias antes
de seu assassinato, “quando aquele lhe perguntou se não temia as constantes ameaças de morte
que vinha recebendo ultimamente, por seu posicionamento em defesa do povo insatisfeito”.
(VALLE, 2003, p. 184).
Todo o sentido da obra é de afirmação político-sentimental ante estados de
coisas que se passam pelo mundo no final dos anos 70, início dos 80. Mas, a origem brasileira se manifesta por entre os cantos em hebraico e desesperos de
afirmação do padre salvadorenho assassinado por radicais de direita em março
de 1980, D. Oscar Ranulfo Romero: “No se mata la Justicia!”. (VALLE, 2003, p. 180).
A pergunta, no entanto, permanece, ontem, e hoje. Também no espaço, na América
Latina e no Oriente Médio: Por quê? Qual o papel de conhecimentos científicos, estratégicos,
que são ministrados, mas mascarados, com o objetivo de dominar? Lembramos de que estamos
diante de uma obra artística, que no seu bojo carrega um conhecimento necessário de teologia,
religião, cultura, história e geografia, esse em particular, muito importante para considerarmos
a compreensão da dominação.
Cremos que a pista está na relação do homem com seu habitat. Essa relação se define
pela consciência que o ser humano possui do planeta em que vive, a ideia de propriedade e de
convivência com os outros seres, principalmente, a acumulação, pois esta encontra-se na raiz do
conflito humano. Bem assinalou Dussel:
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Deus criou o céu e a terra e a deu em posse aos homens. Esta posse comum é a
primeira e Tomás de Aquino diz explicitamente que é direito natural. Nós somos os administradores do cosmos e não os proprietários. Todos os homens
temos posse comum do cosmos, mas não posse privada, que é exclusiva.
Exclusiva quer dizer que do “todo” excluo a todos ”disto”, e “isto” não é só
“meu”. Mas por que alguém há de possuir algo com exclusividade? Não é isso o fruto do egoísmo privatizante? ...Mas, de que tenho direito natural privado?
Daqueles meios necessários para meu fim. Todo homem tem por fim a
felicidade, para falar escolasticamente, e tem certos meios “necessários” para atingir este fim: comer, vestir, ter cultura, casa, carro, televisor etc. E aquelas
coisas que não são “necessárias”, como por exemplo ter dois automóveis, ter
cinquenta ternos, ter um castelo? Sobre essas coisas não tenho direito natural,
porque não são necessárias para meu fim. (DUSSEL, 1983, p. 102 - 103).
Esse desejo de propriedade do espaço, vai gerar toda uma nova forma de se organizar e
viver, delimitando a ação humana, ocasionando conflitos, alianças, tudo na tentativa de
aumentar o tempo de vida, influência e transformação do seu espaço geográfico conquistado,
quer pela modificação de sua fauna e flora, quer pelo exercício da violência.
A terra, como mera matéria explorável, destrutível sem limite, causa do
crescimento da taxa de lucro – e também da mera produção – é um momento a
mais da ação dominadora do homem. Esta mudança de atitude da pessoa-natureza culmina com a revolução industrial e chega a projeções
alucinantes no atual estágio do capitalismo transnacional, sociedade
agressivo-destrutiva da ecologia natural, que corrompe a natureza como um
momento interno do processo de dominação sobre os outros homens: os pobres, as classes dominadas, os países periféricos. (DUSSEL, 1986, p. 216).
Outra constatação importante é que o conhecimento das condições climáticas, dos
terrenos, suas elevações, cursos d’água, locais de melhor acampamento ou mesmo
estabelecimento de cidades, lugar para santuários, fontes de materiais como pedra e outros
elementos, fertilidade, florestas, ou habitat de animais para a caça, deveria ser dominado pelo
homem.
Desta terra o homem toma, como dissemos, a madeira que, pela invenção do
fogo, é calor, segurança, luz. Nesta terra descobre a caverna como casa; a
pedra como porta; seus frutos como alimento; os animais que um dia chegará a pastorear para repor proteínas ou para usar sua pele como roupa. Terra
nutriz, acolhedora, protetora, materna. É a bela terra do esplendor da aurora e
do entardecer; dos riachos e das montanhas; do canto dos rouxinóis; do furor dos mares; do perfume das rosas.... (DUSSEL, 1986, p. 216).
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A posse de tais informações dava mais vantagens em momentos de disputa. Talvez seja
por isso que pensadores antigos tenham se ocupado de entender aspectos geográficos, sem no
entanto, sistematizar este saber. Percebem-no estratégico.
Dominar o espaço do outro e tomar suas preciosidades carecem de convencer aqueles
que vão tomar parte na empreitada que o que vai ser feito é correto, pois os dominados são
considerados de natureza diferente, inferior, mais feios e incapazes. Nasce o discurso
etnocêntrico, muito bem exemplificado nos relatos de Ferdenand Nijs (TRUBILIANO, 2012,
p. 33-45), que descreve uma sociedade a partir de sua perspectiva colonial, imperialista, de um
europeu que não compreende a diferença cultural, nem entende como seres humanos iguais,
aqueles que transforma em objeto de suas análises. Disso também nos dá testemunho Enrique
Dussel:
Desde o século XVI, para não irmos mais longe ainda, a cultura hispânica ou lusitana, e depois a inglesa, a francesa, etc., e recentemente a norte-americana
expandiram-se pela conquista e pela colonização sobre as culturas periféricas
(astecas, incas, bantos, da Índia, da China, etc.); dominaram-nas, em alguns casos as aniquilaram totalmente, em outros parcialmente, em outros casos as
situaram no nível da barbárie, da selvageria, da bestialidade. Seus deuses
eram demônios, seus símbolos eram feitiçaria, suas tradições mentira e ignorância, suas danças indecência e imoralidade. (DUSSEL, 1986, p. 220).
Tal discurso foi o que motivou, ideologicamente, missionários, expedicionários,
aventureiros, governos e entidades a não somente darem o seu aval, mas patrocinarem
verdadeiros massacres sociais e culturais em nome de uma “transformação para melhor”,
daqueles que deveriam ser, futuramente, consumidores da expansão capitalista do século XIX.
As cristandades moderno-europeias (católicas e protestantes) deram à história humana do Terceiro Mundo o testemunho escandaloso de destruir as
culturas alheias, do próximo, do Outro, em nome do cristianismo. Escândalo
universal que ainda não foi julgado, culpado e sua culpa remida. (DUSSEL, 1986, p. 220).
É preciso deixar claro a importância da ciência geográfica, naturalmente, discutida e
refletida criticamente. Através dela, podemos nos dar conta de como somos ignorantes da
manipulação do nosso espaço imediato; conhecedores de uma geografia inútil e manipulada
para o dia-a-dia; educados a vivenciar a realidade, divorciados do espaço. Este é
compreendido aqui, como o habitat humano, com todas as suas amplitudes e complexidades,
que via de regra, vem sendo deixado de lado, como objeto de reflexão e como parte de nós
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mesmos. Isso é feito de forma intencional, pois o seu conhecimento, a consciência de sua
importância, dificulta a manipulação.
2. O ÚLTIMO TANGO EM VILA PARISI
2.1. A Inspiração
Vila Parisi foi fundada em 18 de janeiro de 19571, pela Prefeitura de Cubatão (SP).
Antes do loteamento, era um imenso bananal pertencente a Silvestre Mendes. Comprado pelos
irmãos Helládio e Celso Parisi, o antigo sítio foi loteado para permitir a construção de uma
"pequena cidade para os futuros trabalhadores da Cosipa", (Companhia Siderúrgica Paulista).
Em lugar de trazer a sonhada riqueza, e, posteriormente, as fábricas de fertilizantes e cimento
que se instalaram em torno da vila, incorporaram à paisagem dos migrantes nordestinos um
novo flagelo: a poluição.
Este bairro era localizado em Cubatão perto de Santos, cidade do compositor Gilberto
Mendes, no sudeste do Brasil. Em 1960, era inaugurado o Posto da Vila Parisi do Pronto
Socorro Municipal no município de Cubatão. Era um bairro residencial operário, encravado
bem no meio do polo industrial, e justamente na época de maior descontrole da poluição
provocada pelas indústrias. No “Vale da Morte”, como era conhecido, uma mortalha sulfurosa
muitas vezes pairava no ar, escondendo um inferno tóxico abaixo. Rios fétidos com peixes
cegos e mutantes, bebês nasciam sem cérebro. Siderúrgicas gigantes bombeavam para o ar
alguns 875 toneladas de gases tóxicos, 473 toneladas de monóxido de carbono, e 182 toneladas
de óxido sulfúrico. Quando, em 1982, o Governo Federal decidiu intervir indiretamente em
Cubatão (na realidade, o Município era, desde 1967, área de segurança nacional), na busca de
saídas para os problemas ecológicos, a situação se mostrava alarmante. Um estudo sigiloso da
Cetesb (provocado por cientistas da Organização Mundial da Saúde - OMS e protestos da
ONU, dez anos depois da Conferência de Estocolmo) provava que cada morador da Vila Parisi
estava sendo castigado diariamente por 12,5 quilos de uma mistura de quase 100 compostos
químicos.2
1 Dados obtidos no site: http://www.novomilenio.inf.br/cubatao/ch014f.htm
2 Maiores informações na dissertação da PUC-SP, de autoria de Sueli Alves da Costa Desenvolvimento Ético sob a Égide da responsabilidade Sócio Ambiental disponível no site
http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp063480.pdf
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Vila Parisi, em Cubatão, vinha resistindo à extinção, num processo que começou em
1985. Nessa época, moravam na área encravada no polo industrial cubatense cerca de 6 mil
pessoas, chegando a causar espanto aos técnicos da OMS. No período de 86 e 87, mais de mil
famílias foram transferidas para o Jardim Nova República, conjunto habitacional construído
pela Prefeitura de Cubatão defronte à interligação Anchieta-Imigrantes. Fato que já servia para
antecipar o fim da Vila Parisi.
No final de 91, permaneciam na Vila Parisi 180 famílias e 55 pessoas solteiras. Pessoas
que tiveram, no último inverno deste bairro, seu modo de vida bastante abalado, passando pelo
rigor de um estado de emergência e dois estados de alerta, ocasião em que a poluição do ar
contribui para a morte de crianças e idosos, por causa de doenças pulmonares. O dia 24 de maio
de 1992 entrou para a história do município de Cubatão, quando se decretou oficialmente o fim
de bairro Vila Parisi e o início de um novo ciclo. Com a extinção, o bairro de Vila Parisi foi
incorporado à área industrial, para a construção de um terminal rodoferroviário privado de
cargas.
Gilberto Mendes optou por morar definitivamente em Santos por ter asma, e presume-se
que toda esta questão ambiental abalou profundamente seu âmago. Por outro lado, participou
nesta época (década de 1970) de cursos onde ministrava aulas de composição. Num destes
cursos, no Uruguai, criou a obra coletiva com seus alunos O Último Tango em Piriápolis3 que
foi bastante elogiada pelo compositor alemão Dieter Schnebel, que sugeriu que ele a
desenvolvesse, o que o levou a criar O Último Tango em Vila Parisi, em 1987. Assumindo que
o título da obra é alusivo ao filme de Bertolucci, Mendes narra em seu livro:
A peça tem uma pouco de “abertura trágica” orquestral, à la Brahms, mas apenas na expectativa do que vai acontecer. Na verdade é um divertimento
mozartiano em torno do menage à trois, entre um violinista, uma violinista e o
regente; um grande teatro musical durante o qual, como regente, convidado, fui ao mesmo tempo o regente, ator e dançarino, à frente da Orquestra de
Teatro Municipal de São Paulo. A mensagem da peça é que, diante da
completa falta de uma perspectiva para os trabalhadores, para o povo brasileiro, só nos resta tocar um tango argentino, conforme receitou o médico
no poema “Pneumotórax”, de Manuel Bandeira. (MENDES, 1994, p.207)
Segundo o próprio compositor, esta é uma obra repetitiva composta somente com um
acorde orquestral estático, soando dois minutos, seguido de uma frase musical do tipo
3 Piriápolis, que tem seu nome derivado de seu fundador, é uma cidade-balneário uruguaia localizada ao sul de Punta del Este e a 97 km da capital Montevidéu.
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introdução a um tango, também muitas vezes repetida, sobre a qual se desenvolve o teatro
musical (happening - música teatro). Observa-se nesta obra contaminação do movimento
Fluxus4.
2.2 O Compositor
Gilberto Ambrósio Garcia Mendes (1922), compositor santista com mais de 170 peças
catalogadas, para variadas formações, participou na década de 60 dos cursos de Darmstadt, que
contaram com a presença de compositores de destaque da vanguarda como Messiaen, Berio,
Boulez e Stockhausen, dentre outros. Neste período escreveu junto com outros signatários o
Manifesto Música Nova e posteriormente criou o festival “Música Nova”.5.
Segundo Buckinx em seu livro O Pequeno Pomo, Gilberto Mendes:
(...) Traz já do início todo tipo de informação: big-band, jazz, musicals,
Villa-Lobos, recusas de limites hierárquicos entre alta e baixa cultura, uma mistura de serialismo e Brigitte Bardot (Cidade, de 1964, para vozes,
instrumentos, aparelhos eletrodomésticos). A partir dos anos 80 a sua obra
sofrerá mudanças radicais. É quando ele opta por uma música de compreensão mais imediata (BUCKINX, 1984).
De acordo com Francato (2003), podemos dividir seu percurso composicional em três
fases: Formação, de 1945 a 1959; Experimentalismo, de 1960 a 1982; e Pós-Tudo, de 1982 até
os dias atuais. Apesar de ser a terceira fase que tem como mote a impureza, características do
pós-modernismo são encontradas também na primeira fase, como a utilização de formas
clássicas e a releitura (citação) da Sonata em Dó Maior K.545 (Mozart) presentes na sua
Sonatina (1951).
Nesta terceira fase podemos destacar a mistura de procedimentos composicionais em
obras como Vento Noroeste (1982 - piano); Gregoriana (1983 - trompa em F); Três Contos de
Cortázar (1985); O Último Tango em Vila Parisi (1987 - orquestra sinfônica); Ulysses em
Copacabana Surfing with James Joyce and Dorothy Lamour (1988 - flauta, clarineta, trompete,
4 Fluxus foi um movimento artístico de cunho libertário, caracterizado pela mescla de diferentes artes,
primordialmente das artes visuais, mas também da música e literatura. Teve seu momento mais ativo entre
a década de 1960 e década de 1970, se declarando contra o objeto artístico tradicional como mercadoria e se
proclamou como a antiarte. Este movimento foi informalmente organizado em 1961 pelo lituano George
Maciunas (1931-1978) através da Revista Fluxus se estendendo para os Estados Unidos, Europa e Japão, com a
organização de John Cage, Yoko Ono e Marcel Duchamp, dentre outros. Maiores informações em NYMAN,
Experimental Music: Cage and beyond, 1981 e HIGGINS, Fluxus Experience, 2002. 5 Maiores informações em PRADA (2010) e SANTOS (1997).
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sax alto, 2 violinos, viola, violão contrabaixo e piano); Um Estudo? Eisler e Webern caminham
nos mares do Sul (1989-piano); Tempo Tempo (1991 - coro a capela); Für Anette (1993 - para
piano), dentre outras. Porém observa-se também em seus procedimentos um gosto pelo
repetitivo, como afirmou:
Estas minhas últimas peças para piano tem caráter minimalista, mas não inteiramente, porque quase sempre introduzo uma parte B, desenvolvida, para
quebrar o repetitivo. Esse “repetitivo” de minha recente música sempre
esteve, de certo modo, presente em minhas obras antigas, um pouco mais estendido. Um gosto meu pela estrutura estática, repetitiva. (MENDES, 1994,
p.213)
Por outro lado, conforme Zeron afirma (1991) que o próprio “questionamento dos
códigos” já é uma postura política, verificamos esta atitude em todas as fases composicionais de
Gilberto Mendes, gerando micropolíticas de acordo com Guattari e Rolnik p.23, “...os
agenciamentos de produção semiótica, em todos esses níveis artísticos, as criações de toda
espécie implicam sempre, correlativamente, micropolíticas e macropolíticas.” (GUATTARI e
ROLNIK, 1986, p.23). Gilberto Mendes, comunista assumido6, já havia composto várias obras
de caráter eminentemente político nos anos 50 como Lamento (sobre um velho texto chinês de
Tchu Luan), e Fala Inicial do Cancioneiro da Inconfidência (texto de Cecília Meireles). O
compositor declara:
Não sou propriamente um compositor de música engajada como o foram, por
exemplo, Hans Eisler, Cornelius Cardew. Mas sou uma pessoa politicamente
engajada. E minha música, sempre que tomo uma posição política, reflete em parte essa atitude. (MENDES, 1994, p. 271)
Sua obra Motet em Ré menor (1967 – sobre o texto de Decio Pignatari Beba Coca Cola)
envolve uma denúncia contra essa multinacional. Segundo Guattari e Rolnik, observa-se a
ruptura com a subjetividade capitalista através da arte quando é promovida
Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade de modo a
permitir um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o
próprio coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés de denuncia-la. Isso quer dizer que, ao invés de pretendermos
a liberdade (...), temos que retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando
6 Segundo Diósnio Neto: Formado em um dos momentos mais intensos do século XX, Gilberto Mendes permanece fiel às convicções humanitárias que o ligaram ao comunismo, e nele construiu a consciência de que o
artista é, sim, um porta-voz da sociedade. In: Revista Resonancia (IMUC-PUC-Santiago de Chile), nº20 Nº ISSN
0717-3474 Resonancias Nº 20 MAYO 2007 Publicación semestral del Instituto de Música.
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subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam desmoronar.” (GUATTARI, ROLNIK, 1986, p. 30)
O compositor santista cria esta subjetividade delirante ao usar a impureza em seus
procedimentos composicionais, misturando teatro, dança com música de concerto, conforme
veremos a seguir na análise da obra O Último Tango em Vila Parisi (1987).
2.3 A Obra
O Último Tango em Vila Parisi possui a forma musical de uma Abertura,7 com duração
de aproximadamente quatro minutos, para regente, uma violinista, um violinista e orquestra,
composta pelas seguintes partes: Prólogo –A-B-B’-C-D (coda). A formação pedida para a
orquestra é a seguinte: uma flauta piccolo, duas flautas transversais, dois oboés, dois clarinetes
em si bemol, dois fagotes, um contrafagote, dois trompetes em si bemol, três trombones, quatro
trompas em Fá, harpa, celesta, marimba, vibrafone, violão, piano, tímpano, violinos, violas,
violoncelos, contrabaixos.
Na partitura, logo no início, vem escrito o seguinte comando para o regente:
Prólogo - O regente deve ser esguio e ter boa mobilidade e expressão corporal. Usar de preferência uma casaca; ou calça de malha preta justa, com camiseta
de malha preta, de manga comprida, gola role ou sem gola. Estar com um
pouco de maquillage e penteado com um toque expressionista, anos 20. Entra em cena, sobe ao podium, volta-se para a platéia e diz, dramaticamente: “Vila
Parisi fica no Município de Cubatão, cidade internacionalmente conhecida
por ser a mais poluída do mundo. Miserável vila operária de uma tristemente famosa cidade! Quando penso nos trabalhadores que ali vivem, não posso
deixar de me lembrar daquele poema de Manuel Bandeira, Pneumotórax, e
imagino um desses trabalhadores sendo examinado, tosse, tosse, tosse, diga 33, pede o médico, respire, o senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e
o pulmão direito totalmente infiltrado por gases tóxicos industriais. Não dá
para tentar o pneumotórax? pergunta aflito o trabalhador. Não, responde o médico, o único negócio a fazer é tocar um tango argentino”. (MENDES,
1994, p.209)
A Vila Parisi não tinha solução, a única alternativa era tocar um tango argentino... Mas o
compositor santista opta por usar apenas a introdução deste gênero musical, repetindo a frase
7 Abertura, também conhecida pelos termos estrangeiros ouverture ou overture (do francês e inglês,
respectivamente), é uma introdução instrumental a uma peça coral ou dramática, que durante o século XIX, após
ser desenvolvida, passou a ser ela própria uma forma de composição. (Dicionário Grove de Música, 1994.).
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inicial do suposto tango, criando um ambiente um tanto quanto ufanista, como para encobrir a
realidade trágica.
A intencionalidade dramática do tango é deslocada para a encenação que se desenrola.
Observa-se claramente o caráter rizomático desta obra, que na sua inspiração tem um poema de
Manuel Bandeira8 e o título do filme de Bertolucci9, e usa das linguagens cênica e musical em
todo seu desenrolar.
Maggi, numa análise da obra de Bertolucci O Último Tango em Paris, demonstra as
referências às áreas secretas de situações humanas delineadas no filme que mostra tudo,
excessivamente, com visão completa em termos sexuais. Ressalta o paradoxo psicológico que
ocorre entre os personagens da seguinte forma:
...todo o restante fica excluído do contato, nos primeiros encontros. Quem é o
parceiro? Que idade tem? De onde vem? Quais seus pensamentos? O que
realmente falta? Para onde irá? Estas e muitas outras perguntas ficam sem resposta ou mesmo permanecem sem serem formuladas. Até o nome dos dois
parceiros deve ficar desconhecido, para que nada da verdadeira identidade
escape, e o anonimato proteja do perigo de ser invadido nos meandros da própria personalidade, ou de entrar nos meandros da outra. Neste terreno de
reserva, incógnitas, pudor íntimo, é que proponho a existência de "áreas
secretas" como algo que as pessoas querem preservar dentro de si, mesmo nos momentos de aparente total entrega a outro ser, e a revelia das possíveis
tentativas alheias em invadir tais segredos (MAGGI, 1980, p.34).
Podemos encarar que a poluição e o estado de alerta que viviam a população de Vila
Parisi seria a “área secreta” da região de Santos, uma área que a política tentava encobertar e
que Mendes quer denunciar através da sua obra, enfrentar a subjetividade capitalística
instaurada que levava inclusive aos próprios moradores da região a apoiar o polo industrial e
encarar tudo aquilo de forma positiva, já que era onde trabalhavam e tiravam seu sustento.
Conforme Guattari e Rolnik, para subverter a subjetividade capitalística:
8 No livro Libertinagem, de 1930, Manuel Bandeira escreve o poema Pneumotórax , onde sentimos a valorização da vida cotidiana. Há uma incorporação em sua poética da cultura popular, palavras do dia-a-dia e versos livres.
Possui um estilo simples e direto onde pode-se confundir o que diz e o que se quer dizer. Refere-se à doença de
Manuel Bandeira - a tuberculose. A morte, novamente em evidência, é tratada em tom jocoso da primeira geração
modernista: humor negro, coloquialismos, autoironia, além da técnica de marcação teatral com o emprego do diálogo. Maiores informações em ROSENBAUM (1993) “Manuel Bandeira: uma poesia da ausência”.
9 Último Tango em Paris é um drama erótico franco-italiano de 1972, dirigido por Bernardo Bertolucci e estrelado por Marlon Brando e Maria Schneider. Considerado uma obra-prima cinematográfica e um sucesso de bilheteria
mundial, a violência sexual e o caos emocional do filme levaram a uma grande polêmica internacional sobre ele,
que provocou vários níveis de censura governamental ao redor do mundo. Maiores informações em artigo de
TORRES em http://pontourbe.revues.org/1221#tocto1n7
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Seria preciso instaurar dispositivos e estruturas que estabelecessem um modo de contato totalmente diferente. Uma espécie de autogestão, de
auto-organização de uma problemática que não parte de um ponto central que
vai dispor os elementos, esquadrinhar, fazer uma ordem do dia, mas que, pelo contrário, deixa os diferentes processos singulares tentarem um
desdobramento rizomático (GUATTARI, ROLNIK, 1986, p. 126)
Voltando à obra de Gilberto Mendes, é de se salientar que enquanto a frase minimalista
é executada, a trama que se desenrola envolve as duas figuras que tem mais poder na orquestra:
o regente e o spalla10, que disputam o amor de uma violinista da orquestra. Podemos inferir que
ela representa a Ânima11, ou seja, a personalidade interior feminina que quer o diálogo e a
aceitação (num determinado momento da encenação a violinista faz os três dançarem juntos no
mesmo ritmo). Também podemos ver nesta presença no feminino como um questionamento do
artista ao:
...modo falocrático de produção da subjetividade – modo de produção que tem no rendimento o seu critério, o que implica apelar para um processo cada vez
mais acelerado de desmanchamento e de produção serializada de formas. (....)
qualquer ruptura com o modo de funcionamento de nossa sociedade passa, no mínimo, por um devir mulher. (GUATTARI, ROLNIK, 1986, p. 81)
Porém o regente acaba por matar com seu instrumento de trabalho e de poder (a batuta)
o spalla, que poderia representar outra visão diferenciada de enfrentamento da subjetividade
capitalística, momento no qual a violinista (Ânima – devir mulher) se desespera, grita “que
pasa” com as mãos na cabeça tentando entender, e finalmente foge. O regente assume seu papel
de líder como se nada tivesse acontecido, ou seja, volta a reinar a subjetividade capitalística,
bebês nascendo sem cérebro e pessoas diariamente se intoxicando em Vila Parisi e tudo corria
como se nada estivesse acontecendo, as fábricas continuavam a despejar diariamente 875
10 A orquestra sinfônica é um ambiente extremamente hierarquizado (PICHONERI, 2006; RAHKONEN, 1994). Nessa estrutura, quem está no topo da hierarquia é o maestro, seguido do spalla (o primeiro violino) O spalla (em
italiano, "ombro") ou concertino (termo utilizado em Portugal) é o nome dado ao primeiro-violino de
uma orquestra. Em italiano diz-se violino di spalla. Na orquestra, fica na primeira estante, à esquerda do maestro.
É o último instrumentista a entrar no palco, sendo o responsável por afinar a orquestra, antes da entrada
do maestro. É também o responsável pela execução de solos e atua como regente substituto, repassando aos outros
músicos as determinações do maestro. O termo provém da gíria teatral italiana, em que attore di spalla é aquele
que apóia o comediante principal, sobretudo nas cenas mais cômicas1 . Por analogia, na orquestra, spalla é o
violino que dá apoio ao regente. Até meados do século XIX, muitas vezes as apresentações eram regidas pelo spalla, que utilizava o arco para marcar o tempo da música. Maiores informações em Dicionário Grove de
Música, 1994.
11 Na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, a Anima11 é um aspecto inconsciente de um indivíduo, o homem
encontra expressão do inconsciente como uma personalidade interior feminina. Maiores informações em Os
arquétipos e o inconsciente coletivo de CG. Jung; [tradução Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da
Silva]. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
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toneladas de gases tóxicos, 473 toneladas de monóxido de carbono, e 182 toneladas de óxido
sulfúrico... Conforme instruções da partitura escrita por Gilberto Mendes:
... o regente se separa do casal de violinistas e, traiçoeiramente, depois de se
colocar atrás deles, enfia a batuta no violinista por entre o seu braço e seu
corpo (o violinista deverá apertar o braço contra o corpo, para dar a impressão que a espada penetrou o corpo). Com a ponta da espada (batuta) aparecendo
no seu peito, como que por ele transpassado, o violinista cambaleando, deixa
lentamente o palco, mortalmente ferido. Enquanto a violinista deixa também o palco pelo lado oposto, desesperada, com as mãos na cabeça, exclamando:
“Que pasa! Que pasa! Que pasa!”. Em castelhano, alto, horrorizada. O regente
olha para um, para outro, indiferente, e depois que eles saem, dá de ombros, sobe ao podium e, pela primeira vez, assume a postura de um regente de fato.
(MENDES, 1994, p. 274).
Neste final da obra o regente retoma a subjetividade capitalística, encerra-se o caráter
minimalista e a orquestra executa uma finalização trôpega, que tenta passar a ideia de um final
feliz, com naturalidade. Segundo o compositor, “Uma típica experiência de vanguarda na linha
do também chamado música teatro: o desenvolvimento do que há de visual numa interpretação
musical”.12
Justamente esta maneira não convencional de se tratar o teatro, o tango e o minimalismo
que conclamamos como aspectos da Estética da Impureza (SCARPETTA, 1985) na obra de
Mendes e que nos remete ao pós-minimalismo, denominação usada para obras que usam esta
feitura híbrida, esta mistura de várias técnicas composicionais como recurso expressivo.
Mas como este “recurso expressivo” da impureza é agenciado por Mendes, como são
seus processos de singularização nesta obra? Aqui cabe a reflexão empreendida por Diósnio
Neto sobre como as questões políticas se refletem no processo composicional de Mendes:
Do signo do novo nasceu o gesto de tolerância ao buscar a comunicação sem negar o compromisso com a complexidade, com o conhecimento humano, a
pesquisa, a evolução da sociedade através do desenvolvimento intelectual, da
consciência, ou seja, a arte como frente de “repúdio às barbáries das guerras e ao autoritarismo”, como conclamado no Manifesto trotskista de 1938. Assim,
o que nós chamamos de pós-moderno em Gilberto Mendes foi a fórmula para
equilibrar os contrastes de um intelectual que absorveu sua historicidade, vinculando-a à arte como ação efetiva, mas que, também, surgiu, dentro de
sua consciência social, como resposta diante da perplexidade subjacente nos
meandros da opressão a que estão submetidas as classes trabalhadoras e a humanidade de forma geral, a quem “só resta tocar um tango
12 Florivaldo Menezes que sugeriu este nome para Gilberto Mendes, conforme entrevista disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=o-A2QRhDhUg
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argentino” Pneumotórax de Manuel Bandeira apud Gilberto Mendes, em O Último Tango em Vila Parisi (“Gilberto Mendes: música, teatro
e...comunismo” Diósnio Machado Neto In: Revista Resonancia
IMUC-PUC-Santiago de Chile), nº20 Nº ISSN 0717-3474 Resonancias Nº 20 MAYO 2007 Publicación semestral del Instituto de Música)
É desvelada nesta obra, em sua plenitude, a ação política de Mendes, o enfrentamento
que ele desprende em relação à subjetividade capitalística materializada na ação poluidora e
devastadora empreendida pelo polo industrial que agia em Vila Parisi, infelizmente com a
conivência da sociedade brasileira àquela época.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise e dos dados teóricos assimilados desta pesquisa em andamento,
esperamos que tal abordagem acentue nossa hipótese do enlace entre arte e questões sociais, da
ética com a estética. Cremos que isso será viabilizado através da análise das supracitadas obras
de Jorge Antunes e Gilberto Mendes em face das teorias culturais contemporâneas. Esperamos
contribuir para o debate sobre ética/estética, com ênfase nos aspectos sociais e políticos das
obras de Antunes e Mendes, que são prenhes de confluências críticas de seu tempo e processos
de singularização.
REFERÊNCIAS
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DUSSEL, Enrique D. Caminhos de Libertação Latino – Americana. São Paulo: Ed. Paulinas,
1984. Tomo I.
__________________ Ética Comunitária – Liberta o pobre! Petrópolis: Vozes, 1986.
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supervisionada pelo compositor. São Paulo, 2003, 2v, Dissertação de Mestrado da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
GUATTARI e ROLNIK. Micropolítica Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
MACHADO NETO, Diósnio. Gilberto Mendes: música, teatro e...comunismo. Resonancias
(Santiago), v. 20, p. 45-57, 2007.
MAGGI, A. Último tango em Paris — áreas secretas. São Paulo: IDE, 1980. pp. 33-44.
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MENDES, Gilberto. Uma Odisséia Musical: dos Mares do Sul a Elegância Pop/Art Déco. São
Paulo: EDUSP, Editora Giordano, 1994.
SCARPETTA, Guy. L’IMPURETÉ. Paris: Editions Grasset & Fasquelle, 1985.
SCOTT, Wright. Oscar Romero e a comunhão dos santos: biografia. São Paulo: Paulus, 2011.
TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Em nome da civilização: o Mato Grosso no olhar dos
viajantes. In: Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v. 2, nº 3 jul-dez, 2012. p. 33-45.
VALLE, Gerson. Jorge Antunes, uma trajetória de arte e política. Brasília: Sistrum Edições
Musicais, 2003.
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Fundamentos histórico-políticos da música nova e
da música engajada no Brasil a partir de 1962: o salto do tigre de papel. São Paulo: 1991, 2v,
Dissertação de Mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.