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a Epopeia Ignorada Oto Marques Da Silva Corrigido

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A EPOPÉIA IGNORADA (A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje)

Autor: Otto Marques da Silva Editada pelo CEDAS -1987

Copyright de Otto Marques da Silva

Direitos reservados do CEDAS--Centro São Camilo de Desenvolvimento em Administração da Saúde

Rua Barão do Bananal, 1111 --05024--São Paulo--SP.

Capa de Júlio Braga

Estela egípcia da XIX Dinastia: o porteiro de nome Roma faz oferendas à Deusa AstarteSíria (acervo da Glyptotek Ny Carlsberg--Copenhague, Dinamarca).

Dados Catalográficos

SILVA, Otto Marques da A EPOPÉIA IGNORADA--A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje

São Paulo--CEDAS, 1987. 470 páginas - 2 partes - 5 anexos - 17 ilustrações

Relações bibliográficas

Conteúdo:

I Parte-- Deficiências e pessoas deficientes nos seguintes Períodos ou Épocas: Pré-História, História Antiga (Egípcios, Hebreus, Gregos e Romanos), Advento do Cristianismo,

Império Bizantino, Idade Média, História Moderna e História Contemporânea (Até 1981,Ano Internacional das Pessoas Deficientes).

II Parte-- Causas da marginalização das pessoas portadoras de deficiências, o significadoda integração social, a questão da adequação da adequação pessoal como objetivo último da

reabilitação, o preparo para a vida de trabalho, as equipes de reabilitação, a avaliação e ocontrole das atividades dos centros e programas de reabilitação.

Para Nely Ana Maria Otto, Filho

José Gustavo pela força que sempre me transmitem.

Para Jary Maria Pela enorme lição de vida

("in memoriam")

ÍNDICE

A Oração da Pessoa Deficiente... Apresentação... Introdução...

PRIMEIRA PARTE A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM E DEHOJE

Capítulo Primeiro A Pessoa Deficiente no Mundo Primitivo... O homem neolítico no Brasil de hoje - As primeiras civilizações do mundo...

1. O Alvorecer da Humanidade... Os males incapacitantes de sempre - O ambiente físico - Os desafios para a vida do homemprimitivo. O cuidado para com doentes e a incipiente medicina - As fraturas na Pré-História- O que nos ensinam os ossos pré-históricos -- Freqüência do reumatismo -- A origem dosmales que afetavam os homens - O tratamento primitivo e as deficiências – O destino daspessoas deficientes na Pré-História.

2. Culturas Mesolíticas e Neolíticas mais Recentes... O porquê das atitudes face a grupos minoritários Atitudes de aceitação, apoio e assimilação- Causas das atitudes de abandono, segregação ou destruição - O extermínio de pessoasdeficientes - A pessoa deficiente como objeto de ridículo - O povo inca e as trepanaçõescranianas. As deficiências físicas há mais de 20 séculos na Califórnia.

Capítulo Segundo A Pessoa Deficiente dentro das Culturas Antigas... 1. Os Egípcios e seus Vizinhos... A atenção médica no Egito Antigo - A medicina egípcia e os males incapacitantes - Osfamosos papiros e os problemas de deficiências – As deficiências físicas no Antigo Egito -Os males que levavam a deficiências físicas - Casos concretos de lesões incapacitantes - Aincidência de fraturas e outros problemas - Os anões na vida e na arte egípcias - Uma estelavotiva dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro - As especialidades médicas e oproblema das deficiências no Egito - Conceitos da medicina egípcia na Odisséia de Homero- Anisis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C. - A deficiência visual na mitologiaegípcia - Um coral de homens cegos para Amenhotep IV - As penas mutiladoras no EgitoAntigo - Médico egípcio especializado em males da visão na corte de reis persas - Gaumata,um famoso mago de orelhas amputadas - Zópiro: tudo pela vitória de Dario I em Babilônia -A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C. - Os egípcios sob os olhoscríticos de um Imperador romano.

2. O Hebreus...

Noé: a primeira pessoa com deficiência? -- As deficiências físicas entre os hebreus -- Acegueira de Isaac por 80 anos - Moisés e suas sérias dificuldades em falar com clareza -Asleis criadas no deserto do Sinai – O Código de Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus -Sedecias, rei de Judá: cego por Nabucodonosor - O preço da paz: um olho de cada habitante- Mais normas e o papel do médico - As causas das deficiências entre os hebreus - Amedicina dos hebreus - Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma? - Os cegos nacultura hebréia antiga - Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel - As pessoasdeficientes nos Evangelhos - Os milagres de Jesus e as pessoas deficientes - A cegueira deSão Paulo, Apóstolo.

3. Os Gregos... As deficiências na mitologia grega - Lenda e realidade: Hefesto na vida dos gregos - Outrosseres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais - As deficiências físicas na realidadeda vida militar grega – As principais causas de deficiências na Grécia Antiga - Tirteu, poetalírico com deficiência física - As leis que favoreciam as pessoas deficientes - A medicinagrega e as deficiências físicas - A medicina de Hipócrates e as deficiências - Hipócrates esuas idéias quanto à epilepsia – Adaptações para prevenir deformações em crianças -Cláudio Galeno e sua importância - Demócrito e Homero: homens cegos e muito famosos -Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas - Pessoas deficientes trabalhando citadasem obras gregas - Creso, o mais feliz dos homens – A importância dos oráculos e adivinhosna vida grega - A história de um adivinho famoso que era cego - As próteses deHegesístrato, adivinho grego - Peste Ateniense: o terror generalizado – A atenção a soldadosferidos ou doentes: Anábase, de Xenofonte - Homens com sérias luxações nas pernas:sapateiros, ferreiros, seleiros - Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados com deficiência- Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas deficientes - As famosas instalaçõesde Epidauros - O sistema de funcionamento de Epidauros - Plutão, deus da riqueza, curadopor Asclépios - Os testemunhos das muitas curas - "Apothetai" do monte Taygetos, emEsparta - Como era o ambiente de Esparta - Outras formas de eliminar crianças defeituosasna Grécia Antiga - A história de Labda, mãe de um rei de Corinto - Os costumes em Atenasface a deficiências físicas – O legado da Grécia Antiga.

4. Os Romanos... O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma - O destino das criançasdeficientes em Roma -- O deus da medicina: Esculápio--Horácio Cocles, um herói comdeficiências--Ápio Cláudio, Censor: século IV a.C - Amputação como penalidade naslegiões romanas--Caio Júlio César: atitudes face a seus males--Ferimentos graves edeficiências físicas em batalhas -- Cláudio I, um imperador bastante controvertido -- Galba,imperador romano com diversas deficiências - Othon, um imperador nascido commalformações - Vitélio, imperador romano por oito meses--Os milagres de Vespasiano - Asdeficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural" -As automutilações para dispensado serviço militar--Males incapacitantes e soluções paliativas - O problema da surdez naopinião de Cícero--Deficiências múltiplas e morte - A medicina grega e sua infiltração noImpério Romano - Médicos romanos famosos e os males incapacitantes - Os serviçosmédicos e os hospitais militares romanos - As "valetudinaria" descobertas em estudosarqueológicos - Os auxiliares de médicos nas legiões romanas O sistema hospitalar romano -O ensino da medicina no Império Romano Categorias de médicos em Roma - Implantaçãode serviços de assistência médica - A higiene e os banhos públicos—As pessoas deficientesnas artes romanas - Valores espirituais em pessoas deficientes.

Capítulo Terceiro O Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média face as Pessoas Deficientes ... 1. O Advento do Cristianismo ... As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos - Sétimo Severo, o sábio e firmeimperador - "Praecepta Medica" e os males incapacitantes - Galério, imperador que morrecom deficiência séria—Mutilações em cristãos: a Língua de São Romão - Alteraçõessubstanciais provocadas pelo Cristianismo -- Um bispo com deficiência: Castigo de Deus? -Dídimo, teólogo cego: Diretor da Escola de Alexandria -- Os primeiros hospitais cristãos eas pessoas deficientes - Fabíola e Pammachius associados num hospital de caridade - Ahospitalidade cristã e o papel dos bispos - Notícias de organizações para pessoas deficientes- A questão das deficiências físicas em sacerdotes cristãos - Papel dos mosteiros naassistência aos miseráveis.

2. O Império Bizantino e as Deficiências... Constantinopla, o "Reino de Deus na Terra" - A pompa e a circunstância na corte bizantina- As grandes e poderosas famílias do Império - A miséria na capital bizantina e as pessoasdeficientes - As doenças e as deficiências físicas e sensoriais - Os miseráveis no "Reino deDeus" - As organizações assistenciais de Constantinopla - O imperador Justiniano e aspessoas enfermas e deficientes - O desenvolvimento da medicina e dos hospitais - Amutilação nas leis bizantinas - Períodos principais do Direito Penal Bizantino - A moderaçãonas penalidades impostas no tempo de Justiniano - As "Novas Constituições" de Leão III:"leis mais cristãs" - A defesa de um direito dos cegos: fazer testamento - Penalidade previstapara o vazamento dos olhos de outrem - Crime de rapto e sua condenação nos tempos deLeão III - General Belisário: lenda e realidade de sua carreira - Notícia sobre uma prótese noséculo IV -- Abrigos para cegos e outros refúgios para doentes e deficientes - Assistência asoldados a partir do século VI - Os primeiros hospitais da Terra Santa e de Bagdá - Castigosbárbaros levam a deficiências no Império Bizantino - A Imperatriz Irene e sua luta paraconquista do trono - Os primeiros castigos contra conspiradores dentro da família - Puniçõesseveras continuam na corte bizantina - A selvageria de uma imperatriz na defesa de seutrono - Mutilação documentada em pintura do século IX -- Barbáries que levaram adeficiências físicas - Constantino VIII: "a violência dos fracos e dos poltrões" - Miguel V:imperador bizantino por apenas 132 dias -Constantino IX, Monômaco: limitações físicasmuito sérias -- Romano IV, Diógenes: presa de um soldado com deficiências - EnricoDandolo: "doge" veneziano cego - Isaac II, Angelus: olhos vazados, volta a ser imperador -Outros eventos que levaram a deficiências físicas e sensoriais - Ato friamente planejadoinstala a Dinastia dos Paleólogus -- O dilema de João V, Paleólogus (1319 a 1389).

3. As Pessoas Deficientes na Idade Média... A criação de hospitais e abrigos para pobres - Um santo cego na história da Bretanha doséculo VI - Santo Egídio, padroeiro dos deficientes - Assistência aos pobres pela Igreja - Amutilação como castigo no século VII - O milagre de fazer um mudo falar – Amputaçõescomo penalidade por crimes cometidos - A evidência de dupla amputação: século VII - Oshospitais criados pela Igreja na Europa - A profissão de massagista no Japão do século IX -Bispo Hincmar, vítima da crueldade de seus algozes - Deficiência física na mitologiagermânica - As deficiências em sacerdotes cristãos na Idade Média - Luiz III, o "Cego",rei da Provença e da Itália - Deficientes físicos impedidos de participar da Primeira Cruzada- Barbeiros-cirurgiões na Idade Média - A evolução dos hospitais medievais e as eficiências

- O estigma da hanseníase durante toda a Idade Média - Ricardo Coração-de-Leão e suavingança - Hospitais proliferam no Oriente Próximo: século XIII - Os progressos damedicina até o século XIV - Epidemias na Idade Média e suas conseqüências: "Castigo deDeus"? - A medicina qualificada e a falta de assistência geral - As soluções populares e ascrendices - O destino das pessoas deficientes na Idade Média - O significado das eficiênciasna Idade Média - Os privilégios para cegos durante a Idade Média - Dois heróis históricoscom deficiências nos séculos XIII e XIV – Os hospitais face às pessoas deficientes nosséculos XIV e XV.

Capítulo Quarto A Pessoa Deficiente do Renascimento até o Século XIX ... O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença - Os problemas dos deficientesauditivos no século XVI - A pintura renascentista e as pessoas com deficiências - AmbroiseParé: os primeiros passos da futura "ortopedia" - Antonio de Cabezón: compositor cego –Goetz von Berlichingen, o "Mão de Ferro" - O problema da mendicância organizada nosséculos XVI e XVII - A grande malha organizacional dos miseráveis na França - Oproblema da mendicância organizada em outros países - Deficientes mentais no século XVI:entidades não-humanas - A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na Inglaterra – Oatendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI – O "Grand Bureau desPauvres" da França Classificação de indigentes na França no século XVI – Luiz de Camões,o poeta épico português por excelência - Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha –Continua a epopéia dos hospitais nos séculos XVI e XVII - Galileo Galilei, matemático,astrônomo e físico - O contínuo problema dos soldados mutilados - Os trabalhos com osdeficientes auditivos no século XVII - Johannes Kepler, astrônomo alemão - Padre Lejeune,maior pregador do século XVII - Novas formas de utilizar os hospitais - As deficiênciasfísicas em peças de Shakespeare - A superação de deficiências no século XVII: um exemplo- John Milton: o significado de sua cegueira - São Vicente de Paulo: suas obras face àstendências do século XVII - A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra - O nascer da ortopediacomo especialidade -- Quatro cegos brilhantes: Sauderson, Metcalf, Euler e Blacklock -Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas - A reformulação hospitalar inglesa - A"Ortopedia" de Nicholas Andry - Maria Tereza von Paradis: pianista e compositora cega - Aassistência aos cegos: final do século XVIII - Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos" --Educação dos deficientes auditivos no século XVIII - Os primeiros sinais de assistência nasAméricas - O desencontro de atitudes na Europa - Inovações nas "Leis dos Pobres" -Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes - Hospitais públicos na França: final doséculo XVIII -- Progressos no campo do atendimento à cegueira: século XIX - Ludwig vanBeethoven: a trágica surdez -Nelson, herói da Marinha Britânica - Os progressos nosEstados Unidos da América do Norte - Os sinais de melhor compreensão dos problemas dosdeficientes - Uma iniciativa de Napoleão Bonaparte - Madre Agostinha, fundadora das IrmãsIrlandesas da Caridade - Lord Byron, poeta e satirista inglês - Antônio Feliciano de Castilho,um dos maiores literatos portugueses - Outros cegos do século XIX que ficaram famosos - Aortopedia do século XIX e as deficiências físicas - Atendimento mais especializado aoscegos - A pessoa deficiente vista com potencial para o trabalho - O problema dos surdos edos surdos-mudos e suas soluções – Proteção ao acidentado de trabalho por legislaçãorecente – A modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes - Reabilitaçãodesabrocha num Centro de Atendimento, em Cleveland - Helen Keller, cega, surda e muda:um marco indelével.

Capítulo Quinto A Pessoa Deficiente no Brasil Colonial e Imperial... Os primeiros hospitais do Brasil Colonial - Anchieta e seu exemplo de assistência aosdoentes -- Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil -- Cegueira noturna no Brasildos séculos XVI e XVII -- Os problemas médicos nos séculos XVI e XVII no Brasil--Médico com deficiência física na História de Pernambuco - O problema das paralisias noBrasil do século XVII -- A medicina do século XVIII entre nós – Males limitadores queafetavam muito os negros escravos - Deficiências físicas e sensoriais entre nossos índios--Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho" -- Uma primeira tentativa em projeto de lei:ajuda a cegos e aos surdos -- O problema das amputações do século XVI ao XIX – Ainfluência européia no Brasil -- Organizações para pessoas deficientes criadas por DomPedro II.

Capítulo Sexto O Século XX e os Caminhos da Reabilitação no Mundo... O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século--EUA: um primeirocongresso mundial de deficientes auditivos--A gradativa implantação da reabilitação--Astentativas iniciais para a solução do problema de trabalho--Implantação de serviços denaturezas diversas--Os esforços de pós-guerra--Surge a "Easter Seal Society" - O Código deDireito Canônico e os bloqueios a homens deficientes--Reconhecimento das verdadeirasnecessidades das pessoas deficientes—A previdência social e os acidentes de trabalho--Areabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército--A retração dos anos trinta e aspessoas deficientes nos EUA--A influência da Segunda Guerra Mundial na reabilitação -- Acriação de sociedades internacionais privadas - O envolvimento das organizaçõesintergovernamentais -- Centros de demonstração de técnicas de reabilitação--O Instituto deReabilitação: vida e morte--A evolução mais recente da reabilitação.

Capítulo Sétimo 1981--Ano Internacional das Pessoas Deficientes... As declarações de direitos e sua importância --O significado de um "Ano Internacional" --O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais -- O conteúdo básico dasidéias consensuais para um plano de ação mundial - As recomendações para atividades anível nacional -- O Ano Internacional das Pessoas Deficientes a nível de Brasil -- AComissão do Estado de São Paulo e seu relatório - As propostas para ação em São Paulo --As realizações da Secretaria Executiva da Comissão Estadual -- Dois Encontros Regionaisdiscutem as propostas da Comissão Estadual--Conscientização: a meta para 1981 --O apagardas luzes para o Ano Internacional -- Recomendações finais de todas as Comissões: umdesafio para o futuro.

Bibliografia da Primeira Parte...

SEGUNDA PARTE A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE -- O DESAFIODE NOSSOS DIAS

Introdução ... Capítulo Primeiro As Causas da Marginalidade das Pessoas Deficientes ...

Normal ou anormal: Eis o problema -- As "diferenças" assimiláveis ou inaceitáveis -- Aquestão em termos de Brasil -- A visibilidade da deficiência -- O problema do "comum" e do"normal" -- A grande variedade de condições marginalizantes -- Como classificar ascondições marginalizantes (desvios intelectuais, desvios motores, desvios sensoriais, desviosfuncionais, desvios orgânicos, desvios de personalidade, desvios sociais e problemas deidade avançada) - Outras condições que levam à marginalidade--Deficiência e incapacidade:distinção importante.

Capítulo Segundo O Significado da Integração Social das Pessoas Deficientes... A complexidade do desafio--A integração social e seus "porquês" (O elevado número depessoas consideradas como "deficientes", o valor próprio do ser humano, o valor econômicoda mão-de-obra não utilizada)--Os princípios básicos da reabilitação -- O despreparo nosprogramas reabilitacionais -- A complexidade do trabalho de equipe em reabilitação--Osprogramas necessários em nosso meio.

Capítulo Terceiro Adequação Pessoal -- O Objetivo Último da Reabilitação ... Impedimento, deficiência e incapacidade -- Programas de reabilitação global --Condicionamento físico em reabilitação -- O ajustamento psico-social no processo dereabilitação -- Ajustamento à vida de trabalho --Hábitos, atitudes e comportamentos--Aadequação pessoal e seu significado -- Adequação pessoal-fator decisório na integraçãosocial -- Anexo I (Indicativo para Identificação de Comportamentos) -- Anexo II (Lista deComportamentos ou Hábitos Inadequados).

Capítulo Quarto Preparo para a Vida de Trabalho Aconselhamento para a vida de trabalho (Características pessoais, experiência educacionale profissional, aptidões e potencialidades, interesses, capacidade física, capacidade mental)-- Avaliação e ajustamento ao trabalho (potencial do indivíduo para o trabalho, significadopara o indivíduo, o processo de ajustamento à vida de trabalho, a importância dosinstrumentais de avaliação) -- O treinamento profissional em programas de reabilitação--Colocação em emprego--Anexo I (Relatório de Aconselhamento em Reabilitação-instrumental) -- Anexo II (Relatório de Avaliação Inicial-instrumental)--Anexo III (RelatórioEvolutivo do Caso-instrumental).

Capítulo Quinto Equipes de Reabilitação nos Programas de Hoje ... trabalho de equipe em reabilitação--As garantias para um verdadeiro trabalho de equipe --Aliderança de uma equipe de reabilitação--A ausência da coordenação formal de uma equipe-- As dificuldades principais em coordenar uma equipe--Problemas típicos encontrados numtrabalho de equipe (falta de confiança e respeito mútuos, excesso de importância à própriaatuação, desconhecimento das demais profissões, falta de atitudes de cooperação sistemática,comportamentos inadequados numa equipe, falta de experiência em trabalho de equipe,estilo inadequado de relatório, metodologia de cooperação quase inexistente, jogos deprestígio e de poder e seus malefícios, ausência de uma boa política de pessoal)--Anecessidade de tratamento global do cliente --Superposição de atividades em equipes dereabilitação -- O trabalho de equipe: perspectivas.

Capítulo Sexto A Avaliação e o Controle nos Programas de Reabilitação... Os profissionais envolvidos em reabilitação--A falta de especialização e suasconseqüências--Métodos de avaliação em centros de reabilitação- Modelos de avaliação--Sistemas de avaliação (O “público” em geral, o "público" financiador, o "público" clientela,o "público" das famílias da clientela, o "público" das entidades) - Conseqüências de umaavaliação (decisão política, decisão estratégica, decisão tática) –Controle num centro dereabilitação--Sistemas de controle utilizáveis em centros de reabilitação--Características dosistema de controle.

Bibliografia da Segunda Parte...

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Porteiro egípcio com deficiência física ... Harpista cego no Antigo Egito ... Soberano assírio cegando prisioneiros de guerra... Paralítico de Cafarnaum apresentado a Jesus................. Ulisses consultando o cego adivinho Tirésias........ Mosaico de Lescar (França)--Homem com deficiência física . . . Coluna de Trajano--Atendimento a feridos em batalha .... Exorcismo de um catecúmeno com deficiências físicas ..... Castigo na Idade Média: amputação de mão .......... Negociações com cruzados--Ancião com muletas........ Hanseniano e deficiente físico impedidos de entrar em cidade . . Meios de locomoção e transporte de pessoas com deficiências . . O transporte de pessoas deficientes no século XVI .......... A mão artificial do pequeno Lorenense .......... Cegos, deficiente físico e um dos famosos "Sabouleux" . . Mendigos com deficiências no período pós-Renascença. Restos da batalha de Lens - soldados com deficiências. . . Deficiente físico vindo da Guerra do Paraguai .....

A ORAÇÃO DA PESSOA DEFICIENTE

Pedi a Deus forças para poder realizar muitas coisas E fui feito fraco para poder aprender humildemente a obedecer; Pedi-lhe ajuda para que eu pudesse fazer coisas grandiosas E foi-me dada a enfermidade para que eu pudesse fazer coisas melhores; Pedi riquezas e bens para que eu pudesse ser feliz, Foi-me dada a pobreza para eu poder ser sábio; Pedi poderes a fim de receber a admiração dos homens, Foi-me dada a fraqueza para eu poder sentir a necessidade de Deus; Pedi-lhe tudo o que fosse necessário para eu gozar a vida E foi-me dada a vida, para eu poder gozar de todas as coisas.

Eu não obtive nada do que havia pedido, Mas recebi tudo o que eu havia almejado. A despeito de mim mesmo quase, Minhas silenciosas preces foram atendidas. E dentre todos os homens Sou o mais ricamente abençoado!...

(Autor desconhecido - Texto divulgado pelo Institute of Rehabilitation Medicine da NewYork University e pela Abilities, Inc. de Albertson - Long Island-NY EUA)

APRESENTAÇÃO

Para reforçar a credibilidade em torno do que dizem, certos catedráticos costumam seapresentar dizendo que têm tantos anos de cátedra, de cadeira. Se isto ajuda na apresentaçãode "A EPOPÉIA IGNORADA", direi que tenho quase vinte anos de . . . cadeira de roda!Direi também que este é o livro que gostaria de ter lido logo no início de minha pequenaepopéia. Quantas dificuldades teria superado com menos lágrimas e decepções não tantas! Equantas palavras teriam poupado comigo alguns médicos, psicólogos e fisioterapeutas, setambém eles tivessem lido obras como esta! Mas obras como esta, tão completa, humana,formativa e informativa sobre certas deficiências que acompanham a Humanidade desde seuberço, não existiam . . . até agora (É por isto, talvez, que existem tantos deficientes, físicos esensoriais, incapazes de conviver mais naturalmente com suas deficiências). Mas agorachega Otto Marques da Silva com a História na mão. E a História é mestra. (Aqui ela ensinaque, se é duro constatar que perante a paraplegia, por exemplo, a medicina tradicional aindaé aprendiz, ensina também - e com muito jeito e humanismo - a evitar decepções e conviverdignamente com tais deficiências). Otto nos leva pela mão através da História daHumanidade e nos faz conhecer gente que, sem condições físicas, fizeram capítulosimportantes da História. Competência para isso o Otto tem: formado pela UniversidadeCatólica de São Paulo e pela Universidade de New York na área de Serviço Social e deReabilitação, contratado pela Organização das Nações Unidas como especialista nessesassuntos, trabalhou em colaboração com programas de 29 países na implantação de projetospara a reabilitação profissional de pessoas deficientes. Atualmente Otto é Diretor executivo da SORRI-SÃO PAULO (Sociedade para aReabilitação e Reintegração do Incapacitado: "uma experiência que deu certo"). Já que me coube a honra de apresentar "A EPOPÉIA IGNORADA", aproveito aoportunidade para convidar meus colegas deficientes físicos e, sobretudo, os profissionaisligados à saúde, a tornarem menos ignorada esta grande epopéia que é a reabilitação ereintegração da pessoa à sociedade. E meus agradecimentos a você, Otto,por este importante trabalho, e à União Social Camiliana por tê-lo editado.

INTRODUÇÃO

Uma boa porcentagem de nossa população ficou muito surpresa com dados divulgadospor todos os meios de comunicação ao final de 1980 quanto ao universo das pessoas queviviam as conseqüências de males incapacitantes, tanto no Brasil quanto no resto do mundo.Esse esforço de divulgação aconteceu devido aos preparativos para 1981, o AnoInternacional das Pessoas Deficientes. Até então muito pouca divulgação tinha ocorridoquanto à verdadeira extensão de problemas dessa natureza e de repente atirava-se àpopulação uma assustadora porcentagem: 10% de nossa população têm deficiências! Enquanto muitos espantavam-se com o incrível volume de pessoas envolvidas na questãode deficiências físicas, sensoriais, orgânicas e mentais, os céticos, que estão sempre muitodesconfiados de porcentagens mal calculadas e por vezes improvisadas para assustar osincautos, não chegaram a se impressionar. Comentavam eles, que se essas estimativas malfundamentadas fossem rigorosamente levadas a sério, nem 10% de nossa população estarialivre de problemas graves ou de estigmas, tais como alcoolismo, abuso de drogas,prostituição, deficiência mental, psicopatia, neurose, tuberculose, tensão grave, cegueira,surdez, reumatismo, câncer, tantas são as porcentagens alegadas. Pode bem ser verdade que não temos 10% de nossa população com deficiência certamenteque poderemos ter mais ou ter menos! Não há dados oficiais a respeito, não sendo possívelcontestar ou confirmar. A precisão da cifra, que não passa de uma estimativa internacionalpara dar o toque inicial a uma campanha de conscientização, não tem muita relevância, naverdade. O que importa é que todos fiquemos muito cônscios das dificuldades sentidas pelaspessoas que não têm a capacidade máxima de uso do seu corpo ou de sua inteligência, aotentar seu pequeno lugar ao sol. E mais ainda, é fundamental que todos saibamos que umbom volume de providências para eliminação das desvantagens que elas sentem depende doenvolvimento de cada um, individualmente, e não apenas de figuras abstratas e impessoaisde "entidades" ou do "governo". Na verdade, essas estimativas mundiais,que foram divulgadas por documentos formais daONU e de suas Agências Especializadas, têm alertado muita gente para a existência de umcerto percentual de pessoas que são marginalizadas injustamente devido a problemas físicosou mentais, todas elas detentoras de seus direitos fundamentais como seres humanos quesão. Todos aqueles que sentem na própria carne essa rejeição e que tem parentes ou amigosnessa situação, abismam-se com a lentidão incrível de reação da sociedade como um todoem aceitar sua parcela de responsabilidade na solução desses problemas, sem atinar com ascausas dessa espécie de imobilismo. Alega-se sempre falta de informações oficiais, falta deum posicionamento político, falta de condições para o estabelecimento de prioridades porparte dos órgãos do governo. E justifica-se a falta de um envolvimento maior chamando aatenção para o vasto programa de reabilitação profissional mantido pelo INPS em muitascapitais e cidades maiores do Brasil e seus suntuosos e caríssimos centros de reabilitaçãoque dão atendimento apenas a casos de acidentados do trabalho. No entanto, não é só por inexistirem informações precisas que a nossa sociedade quaseque ignora o problema. Há, bem no fundo, um sentimento velado de rejeição contra tudo oque é diferente, que é "defeituoso" e que causa certo mal-estar. Rejeita-se, afasta-se doconvívio de um lado, mas procura-se também, de outro, manter algumas organizações que se

dedicam ao problema sob pretextos os mais variados. Alguns trabalham e lutam pela causadas crianças carentes e portadoras de deficiências porque têm um parente com deficiência;outros o fazem devido a uma formação profissional; outros envolvem-se para recuperarinvestimentos financeiros em pequenos centros de finalidade lucrativa. E, embora emnúmero reduzido, encontraremos também aqueles que se dedicam ao trabalho com pessoasdeficientes devido a um posicionamento pessoal sério e muito bem pensado. Precisamos, todavia, ceder à evidência e reconhecer que faltam requisitos básicos para odesenvolvimento seguro de programas mais significativos do que aqueles que nossasociedade tem mantido. Dentre esses requisitos inexistentes destacamos o seguinte: não háentre nós uniformidade e solidez de conhecimentos quanto à seriedade da situação, mesmoentre algumas pessoas mais envolvidas. Há por vezes uma noção deturpada quanto àrealidade dos problemas e suas melhores e mais recomendáveis soluções por parte daquelesque são detentores de condições para muito sérias tomadas de posição e que certamentepoderiam dar às pessoas deficientes tudo aquilo de que elas precisam para uma participaçãosocial efetiva. Aqueles que trabalham em programas reabilitacionais de caráter global ou que têm umaformação técnica adequada detectam com muita precisão atitudes descabidas, programassuperados, posicionamentos desastrosos, que levam à confusão, ao fracasso técnico, aodescrédito e, pior do que tudo, ao atendimento falho e inadequado. A análise do quadro completo da evolução, do progresso ou do retrocesso no atendimentoa pessoas deficientes no Brasil é uma tarefa impossível, enquanto que um simples olhar parao futuro poderá nos parecer nebuloso e sinistro, se algo de decisivo não for feito comurgência. Talvez o que realmente poderá nos ajudar seja um olhar demorado para o passado,pois sempre houve pessoas deficientes no mundo e as que sobreviveram fizeram-no dealguma forma com a ajuda de alguém, além de um enorme esforço pessoal. A sobrevivência das pessoas com deficiências aqui no Brasil e em boa parte do mundo, nagrande maioria dos casos, tem sido uma verdadeira epopéia. Essa epopéia nunca deixou deser uma luta quase que fatalmente ignorada pela sociedade e pelos governos como um todo--uma verdadeira saga melancólica--assim como o foi em todas as culturas pelos muitosséculos da existência do homem. Ignorada, não por desconhecimento acidental ou por faltade informações, mas por não se desejar dela tomar conhecimento. Ao tentarmos voltar no tempo, todavia, algumas questões afloram de imediato: O quepensavam nossos antepassados distantes de pessoas que tinham defeitos físicos ouproblemas mentais? O que faziam as sociedades hoje inexistentes com pessoas portadoras dedeficiências? E talvez as suposições do que seriam as respostas a essas perguntas indiquem uma certaposição nossa cultural, ou quem sabe pessoal, velada, secreta, muito íntima - epreconceituosa! Muitas outras perguntas podem ser levantadas, como, por exemplo: Qual tem sido odestino de crianças nascidas com deformações entre culturas primitivas que ainda hojeexistem? Qual terá sido o destino de soldados com seus braços ou mãos decepados nosviolentos combates corpo a corpo das campanhas romanas, gregas, egípcias, hebréias? Comofoi possível a alguns poucos homens passar para a História, apesar de suas deficiências?Mesmo que poucos, o que tornou esses homens e mulheres diferentes para serem aceitos,assimilados e respeitados? Anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doençasgraves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente,são tão antigas quanto a própria humanidade. Através dos muitos séculos da vida do homem

sobre a Terra, os grupos humanos de uma forma ou de outra tiveram que parar e analisar odesafio que significavam seus membros mais fracos e menos úteis, tais como as crianças eos velhos de um lado, e aqueles que, vítimas de algum mal por vezes misterioso ou de algumacidente, passavam a não enxergar mais as coisas, a não andar mais, a não dispor da mesmaagilidade anterior, a se comportar de forma estranha, a depender dos demais para suamovimentação, para alimentação,para abrigo e agasalho. Muitos dos que começam a estudar o assunto deduzem apressadamente que o indivíduodoente, deficiente ou portador de um problema sério qualquer, era exterminado pelo grupoprimitivo. Outros acham que não. Apresentam como prova eventual o aparecimento e aevolução da medicina, a existência de esqueletos com sinais de fraturas solidificadas e oachado de crânios trepanados. O levantamento histórico apresentado na primeira parte desta obra, cobrindo desde ostempos sem registro da Pré-História até o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (1981)não teria muita utilidade nem justificativa sem objetivos mais amplos e mais ambiciosos. Elepoderá, por exemplo, levar a um entendimento de certas atitudes e de muitas daspreocupações de nossos dias quanto a deficiências que atingem o ser humano, pois de acordocom a incisiva afirmação do historiador Will Durant, "o estudo da Antigüidade perde ovalor, exceto quando se torna um drama vivo, ou quando lança luz em nosso vivercontemporâneo". Há, no entanto, outros motivos para o trabalho apresentado na primeira parte deste livro, edentre eles um poderá ser expresso com palavras escritas por Flávio Josefo, historiadorjudeu do primeiro século da Era Cristã: "Aqueles que se determinam a escrever história aisso nem sempre são levados pela mesma razão". E, ao alinhar algumas dessas possíveisrazões, indica como última a seguinte: “... e outros, por fim, o fazem porque não podemtolerar que coisas dignas de serem conhecidas fiquem sepultadas no silêncio". No entanto, não é apenas a curiosa, tocante e por vezes trágica referência histórica quetem relevância neste trabalho sobre as pessoas deficientes no mundo de ontem e de hoje.Ressaltemos que, dentre os variados aspectos de toda a questão que não podem de maneiraalguma ficar "sepultados no silêncio", esquecidos, deturpados ou minimizados, estão aquelesque retratam a maneira como a humanidade de hoje vê as pessoas portadoras de deficiênciase também aqueles relacionados com os caminhos novos - técnicos, bem cuidados ecriteriosos da chamada "reabilitação" - para colaborar com essas mesmas pessoas parapoderem ser inseridas em determinado contexto, assumindo seu papel com dignidade ecompetência.

PRIMEIRA PARTE A POSIÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NAS SOCIEDADES DE ONTEM E

DE HOJE

"Toda filosofia depende da História" (Nietzsche)

"O estudo da antigüidade perde o valor, exceto quando se torna um drama vivo, ouquando lança luz em nosso viver contemporâneo" (Durant)

CAPÍTULO PRIMEIRO A PESSOA DEFICIENTE NO MUNDO PRIMITIVO

Se tomarmos, como elemento de classificação das diversas etapas da vida do homemsobre a Terra, o material principal e mais relevante com que procurava ele fabricar todos osseus utensílios e instrumentos destinados à sua sobrevivência e conforto, poderemos dividi-las em: -- Idade da Pedra Lascada -- Idade da Pedra Polida -- Idade do Bronze -- Idade do Ferro. A Idade da Pedra Lascada corresponde a uma boa parte do também chamado PeríodoPaleolítico -- uma vastidão de tempo, com milhares de séculos muito obscuros, iniciadosprovavelmente há mais de um milhão de anos atrás. A Idade da Pedra Polida já correspondeaos Períodos conhecidos como Mesolítico e Neolítico, isto é, a épocas correspondentes a10.000 anos antes da Era Cristã até 2.500 a.C. Os tempos que costumamos chamar de históricos começaram a ser vislumbrados com aIdade do Bronze e definidos com a Idade do Ferro. Essas Idades ou Períodos indicam graus de desenvolvimento e não necessariamenteperíodos cronológicos da história do homem sobre a Terra. Esses graus de desenvolvimento,nos quais alguns poucos povos até hoje existentes encontram-se mergulhados por milênios,foram por vezes atingidos com rapidez por algumas raças. Para ilustrar essa disparidade de momentos de desenvolvimento basta lembrar que,enquanto os egípcios já viviam na Idade do Ferro, os gregos estavam vivendo sua Idade doBronze e as tribos bárbaras do norte europeu viviam na Idade da Pedra Polida. Em regiõesonde a natureza sempre foi mais pródiga e o tempo mais acolhedor e ameno, a velocidade dodesenvolvimento foi muito menor. Ainda hoje vemos em zonas tropicais ou temperadas doglobo terrestre -- inclusive no Brasil - povos que vivem vidas altamente primitivas e semqualquer contato com a civilização, como homens das Eras Mesolítica e Neolítica.

- *O homem neolítico no Brasil de hoje.* "No dia 8 os kranhacãrores estão de volta ao mesmo local. Nova correria noacampamento. Orlando, que havia rumado para lá logo que soube do primeiro contato,apanha os presentes e corre para a canoa. Avança lépido pela picada, apesar do corpo

volumoso e apesar de quase não enxergar com um olho, operado de catarata. A canoa saicarregada de gente. Os kranhacãrores estão na outra margem, a 100 metros. Entre a canoa eos kranhacãrores, 100 metros de água e 30.000 anos de cultura. É o homem que já ronda asestrelas, atrás do seu irmão da Idade da Pedra Polida" ... "entre os presentes há um machadoque o kranhacãrore mais jovem apanha e examina com curiosidade. Solta um grito,interpretado como de contentamento e vai para junto de uma árvore. Ergue os braços rígidose vibra um golpe vigoroso, soltando outro grito. O machado escorrega de suas mãos, indoparar perigosamente perto de seu pé". "E se o kranhacãrore se ferir e interpretar aquilo como uma artimanha dos brancos? é oque a maioria pensa. Mas nada acontece. O kranhacãrore ergue o machado novamente eencaixa um golpe profundo no tronco. A pancada ecoa pela mata e o kranhacãrore dá ogrande salto da Idade da Pedra para a Idade do Bronze" (in "Realidade", de abril de 1978,reportagem e texto de Luigi Mamprin).

- *As primeiras civilizações do mundo.* As primeiras civilizações de alguma sofisticação começaram a desenvolver-se nasproximidades dos rios e em especial junto aos grandes rios que banhavam terras planas e deboa qualidade, tais como o Eufrates, Tigre, Nilo, Ganges, Amarelo e Indo. Foi exatamente ao longo desses grandes rios que, no ponto do Oriente conhecido como"Crescente Fértil" - situado entre o norte da África e o Oriente Médio -- logo distinguiram-semuitos grupos humanos que, devido às características de então e ao seu isolamento quaseque contínuo, além de um incontido receio pelo desconhecido, formaram as primeirascivilizações: egípcios, assírios, babilônios, hebreus, fenícios, mesopersas e outros. Do Oriente, as facilidades de vida individual e de grupo conhecidas por nós comocivilização foram levadas muito vagarosamente para o Ocidente, tendo chegadoprimeiramente à Grécia, antes de chegar a Roma, o que sucedeu diversos séculos depois. DeRoma elas foram levadas também às regiões mais ocidentais da Europa, tendo afinalchegado ao Novo Mundo e à Oceania.

1. O Alvorecer da Humanidade. Nada de concreto existe quanto à vida de pessoas com deficiências físicas ou mentais, dovelho e do doente nos primeiros nebulosos e muitas vezes enigmáticos milênios da vida dohomem sobre a Terra, a não ser supostas situações que estão baseadas em indíciosextremamente tênues. É evidente que fatos concretos ou situações comprovadas de vida, emtoda a fase pré-histórica da História da Humanidade, são impossíveis de seremestabelecidos, mesmo com o magnífico concurso dos sábios que dominam muito bem toda aciência arqueológica e áreas afins. Poderemos, sim, tentar imaginar o ambiente de então e o que ele poderia significar para asobrevivência dos grupos humanos como um todo, elaborando um pouco quanto àshipotéticas situações a serem enfrentadas por um eventual portador de alguma deficiêncialimitadora de suas funções básicas daquelas mesmas épocas.

- *Os males incapacitantes de sempre* Lembremo-nos de início que muitos dos males incapacitantes de hoje sempre existiram,desde os primeiros dias do homem sobre a Terra. Muitos deles por muitos milênios foramfatais devido à falta de recursos no seio das populações primitivas. Apesar de nosencontrarmos diante da impossibilidade de citar com segurança os males que rapidamentedeterioravam a vida do homem pré-histórico, ainda achamos válido, apenas para ajudar

nossa imaginação e nosso raciocínio, anotar mentalmente que os seguintes males sempreforam e sempre serão muito sérios para a sobrevivência do homem, ou para sua integraçãoao seu grupo principal como elemento participante:

-- Amputações em vários níveis e membros -- Artrites em suas várias caracterizações -- Cegueira ou limitações de visão -- Defeitos de nascimento ou malformações -- Surdez ou reduções graves de audição -- Afasia ou problemas de comunicação oral -- Desordens sanguíneas graves -- Problemas cerebrais -- Câncer nas muitas de suas caracterizações -- Queimaduras em vários graus e localizações -- Desordens cardíacas de gravidades diversas -- Paralisia cerebral de intensidades diversas -- Fibrose cística -- Problemas de abuso de medicamentos ou de álcool -- Epilepsia -- Diabete -- Problemas renais -- Doenças mentais das mais variadas intensidades -- Deficiências mentais nos variados graus -- Esclerose múltipla -- Distrofia muscular -- Gota em suas manifestações mais graves -- Desordens neurológicas diversas -- Fraturas e problemas ortopédicos os mais variados -- Problemas respiratórios e/ou pulmonares -- Paralisias (paraplegia, tetraplegia, hemiplegia) -- Doenças venéreas -- Fissuras lábio-palatais -- Hemofilia -- Síndromes incapacitantes diversas -- Hanseníase -- Paralisia infantil -- Incapacidades múltiplas -- Doenças crônicas -- Doenças dermatológicas transmissíveis -- Idade avançada

Para vários dos males indicados poderemos de alguma forma imaginar as soluções dadasdurante aquelas longínquas épocas, por paralelos ou comparações que fazemos compopulações de cultura primitiva ainda existentes. Para alguns males é muito difícilelaborarmos qualquer quadro, como em casos de ósteoartrite. Existe evidência de sua açãonão só no esqueleto de um homem de Neanderthal, de mais de 40.000 anos atrás, mastambém de sua devastadora existência em dinossauros do período Mesozóico.

- *O ambiente físico* Há muitos milhares de anos o homem vivia desprotegido num mundo hostil, habitando emabrigos naturais de pedra ou em cavernas. O número dessas cavernas era exíguo para toda ahumanidade francamente em expansão e às vezes imobilizada por invernos rigorosos. Épraticamente certo que as melhores e mais protegidas cavernas foram sendo ocupadas edefendidas por muitas gerações de um mesmo grupo. Dentre os primeiros habitantes de cavernas que povoaram esparsamente a Europa pré-histórica, devemos destacar o Homem de Neanderthal, que viveu há uns 70.000 anos. Pelosachados ocorridos em cavernas da Europa utilizadas naquelas épocas, podemos chegar aalgumas conclusões. Uma delas é que em geral tratava-se de grupos humanos que adotavamcuidados básicos muito rudimentares com tudo. Em boa parte dos casos estudados, eramseres humanos pouco dados à ordem ou à limpeza de seus ambientes. Praticamente tudo oque utilizavam ou que deixavam de usar por ser considerado como inútil, e mesmo restos deanimais devorados eram jogados fora em cantos das cavernas habitadas, o que levava àformação gradativa de camadas de depósitos de detritos, incluindo neles pedaços de armas,ossos, cinzas de fogueiras destinadas ao aquecimento ou ao preparo de alimentos. Algumas das cavernas utilizadas pelo homem primitivo eram grandes, escuras e um tantotenebrosas, mesmo para os dias de hoje. Mas seus ocupantes viviam apenas nas áreaspróximas à entrada, como bem o demonstram os estudos arqueológicos. Lá eles se sentiamnão só protegidos do vento, da chuva, do calor e do frio, como também das incertezas danoite, das grandes tempestades, dos animais ferozes e dos inimigos que continuamenteprocuravam desalojá-los. Os homens hoje conhecidos como Cro-Magnon, surgidos ao final da Idade do Gelo hámais ou menos 30.000 anos e muito parecidos com algumas raças de homens da atualidade,começaram a povoar esparsamente diversas partes da Europa, pois aos poucos tinhamconseguido explorar e descobrir locais mais longínquos de seus abrigos originais,permanentemente ameaçados por tribos rivais. Tinham aprendido a construir abrigosprovisórios de peles de animais abatidos e tinham também descoberto sítios mais adequadospara caçadas mais promissoras. Esses foram os homens que começaram a documentar omundo que os cercava, os animais que caçavam ou que os ameaçavam nas caçadas sem fim,para as quais plena agilidade, força e domínio do corpo eram fundamentais, num esforço degrupo. Bisões, mamutes, ursos, velozes javalis e ágeis cervos foram desenhados, entalhadose mesmo pintados com pormenores de cores vivas em pedras, pedaços de osso, paredes etetos das cavernas. Esses desenhos e peças entalhadas são encontradiços principalmente nascavernas ao sul da França e ao norte da Espanha. O interessante é que essas obras, em quase sua totalidade, não estão nem foramencontradas na boca das cavernas, mas em pontos bem mais afastados do ambiente habitado,e às vezes à beira de grandes buracos, em pontos de difícil acesso até para os nossos recursosde hoje, inclusive nos tetos das cavernas. Para lá trabalhar nas muitas horas e dias de dedicação à obra, durante os longos invernos,o supersticioso homem primitivo certamente precisou primeiro vencer o medo que sentiapela escuridão sempre povoada por seres tenebrosos e o próprio ambiente mais profundo emisterioso das cavernas que refletiam sombras confusas à luz de tochas fumarentas. Junto aos desenhos desses bisões e demais animais da época, existem contornos de mãos-- muitas mãos --inclusive diversas com dedos visivelmente em falta!

- *Os desafios para a vida do homem primitivo*

Dentre os principais problemas enfrentados pelo homem pré-histórico para podersobreviver, estavam não apenas o abrigo e o aquecimento durante os meses de inverno oudurante as intempéries, mas também as dificuldades, quase que diárias durante as épocasmais quentes do ano, para obter alimento fresco. Ele não dispunha de meios para manter embom estado de conservação para consumo a carne dos animais caçados nos dias de muitocalor, enquanto que durante os meses de inverno a caça tornava-se rarefeita e ele mesmodispunha de poucas condições para sobreviver por longos períodos de tempo fora de seusabrigos. O homem das Épocas Paleolítica e Mesolítica praticamente não plantava e não dispunhade animais domesticados, tais como os bovinos e eqüinos, que poderiam ser sacrificadospara resolver o problema da falta de caça para alimentar o grupo. Além disso, ele dependiaquase que exclusivamente da caça de certos animais muito cobiçados, se quisesse garantirpeles quentes e adequadas para cobrir seu corpo e proteger seus pés durante o inverno, sem oque não conseguiria expor-se por longo tempo ao frio para matar animais atentos e muitovelozes. Assim, durante muitos milênios dominando apenas armas de curto alcance, não há dúvidaque os requisitos básicos para a atividade principal, que era a caça, eram a sua inteligênciamuito superior à dos animais cobiçados, a capacidade de atuar em grupos bem coordenadose criativos e . . . uma capacidade física total. Dessa forma, é muito difícil imaginarmos comoum homem ou uma mulher poderiam sobreviver naquelas remotas eras com uma deficiênciafísica muito limitadora. Mas o homem primitivo aprimorou suas condições de vida e já na época Neolítica (háaproximadamente 10.000 anos), em parte graças ao gradativo término da chamada Idade doGelo e à progressiva e amena mudança de temperaturas nas várias regiões do globo terrestre,notamos que ele começou a ter melhores condições para explorar por muito mais tempoterritórios jamais trilhados, com suas campinas, florestas e rios. Foi exatamente o homemneolítico que conseguiu tornar a caça muito mais racional, montando armadilhas, redes,chegando mesmo a construir represamentos de riachos para obtenção mais fácil de peixespara seu consumo. E, avanço muito significativo, inventou armas de mais longo alcance. Foiele também que começou a solidificar o grupo familiar, que acabou por se tornar umaunidade social básica. Foi igualmente esse primitivo homem neolítico que tornou maiselaborada a idéia de um Deus ou das muitas divindades, e mesmo de seu culto e dasreligiões. Em suas explorações longínquas encontrou, talvez com surpresa, novos grupos dehomens e com eles misturou-se. Segundo nos relatam especialistas no assunto, foi o homemneolítico que se organizou em grupos mais heterogêneos e que certamente começou adesenvolver uma primitiva, mas marcante, consciência social.

- *O cuidado para com doentes e a incipiente medicina* Como das demais Épocas, desta Época Neolítica também não temos dados ou sinais dequalquer significado quanto ao problema causado pelas eventuais incapacidades físicas oumentais em membros dos vários grupos humanos, a não ser presumirmos que, não só comum paciente e sempre muito curioso olhar, comparar e também estudar o comportamentoanimal (por exemplo, a absoluta solidariedade dos elefantes para com seus membrosferidos), mas com o despertar dos vínculos mais fortes de ordem familiar, e com osurgimento da consciência social, o homem começou a atuar diferentemente. Já havia alinguagem falada em plena evolução e mais, a idéia de um ser superior - ou seres superiores- ainda de caráter punitivo e severo, o que talvez tenha levado o homem primitivo a melhorconsiderar as pessoas adoentadas, as acidentadas em atividades de caça e pesca, as vitimadas

por ciladas ou agressões de grupos rivais. Provavelmente dessas não registradas épocas davida do homem sobre a Terra foram surgindo os primeiros passos para uma medicina não sóde medicamentos provenientes de plantas, frutos e alguns minerais, mas também asprimeiras tentativas cirúrgicas mais sérias. Dedos das mãos amputados, não se sabe por quecausas, já haviam surgido por milhares de anos em desenhos das cavernas habitadas. Ao final da Época Mesolítica, passando aos poucos para a Neolítica, amputações de pés,de mãos e também a incrível cirurgia craniana conhecida como "trepanação", com acomprovada sobrevivência do "operado", foram realizadas, conforme indicam achados daépoca. Facas, serras, instrumentos pontiagudos haviam surgido para utilização nas atividadesprincipais relacionadas à alimentação e vestuário de todo o grupo. Talvez que de suacontínua utilização para esquartejamento de caça, retirada e preparo de suas peles, divisãodas carnes em pedaços menores e mesmo preparo de algumas armas, tenha surgido a idéiade, com cuidados bem maiores, usá-los para intervenções cirúrgicas. O homem primitivo que se dedicava à arte de aliviar dores, estancar sangue e mesmocurar males, tinha seus conhecimentos de anatomia derivados exclusivamente da observaçãoconstante e da contínua e necessária atuação e experimentação. Essas experiências foramsendo acumuladas por alguns homens considerados como especiais, depois chamados defeiticeiros, magos, druidas, pajés, além de seus auxiliares e foram sendo passadas de geraçãopara geração, de grupo para grupo, de milênio para milênio, propagando-se e enriquecendo-se continuamente. Na Época conhecida como Neolítica, ou seja, aproximadamente 8.000 anos atrás, ohomem descobriu muitos dos segredos básicos da natureza, da vida e da própria terra, taiscomo a domesticação de animais e a agricultura. Assim, a vida de cada grupo foi-setornando cada vez menos difícil e menos perigosa uma vez que esse domínio maior doambiente que o cercava acabava por não exigir grandes riscos de vida para garantir asobrevivência pela caça quase que diária. O homem tornou-se dono de sua vida, de seu relativo bem-estar e de seu futuro, emboraainda vivendo em situações bastante precárias, como diversas das raças primitivas de hojeque ainda vivem como homens neolíticos.

- *As fraturas na Pré-História* Membros fraturados certamente que eram tratados à semelhança da forma como animaissuperiores o fazem, muito mais por instinto do que por conhecimento de causa ou raciocínio,descansando a parte afetada ou deixando de utilizá-la. Provavelmente ainda na EraPaleolítica, durante a qual o homem esteve mais do que nunca sujeito a grandes quedas e apancadas violentas, seja de inimigos portadores de armas contundentes, seja de animaisacuados durante uma caçada, a própria vitima ou seus companheiros aliviariam o membroatingido com uma primitiva imobilização, por meio de pedaços de ramos de árvores oupequenos arbustos atados por tiras de couro de animal, tufos ou cordas de capim, de cascasde árvores ou de outra natureza. Segundo o Dr. Edgard M.Bick, citado por Agüero, o homem pré-histórico que inventou aimobilização de um membro fraturado mereceria a mesma honra e teria os mesmos méritosque aquele que idealizou a roda ou que descobriu a forma de fazer e de controlar o fogo. Logo antes de partir para uma caçada ou para uma operação guerreira, os homens pré-históricos reuniam-se ao redor do fogo, em algum tipo de cerimônia religiosa, quecertamente demonstrava a importância e o significado do empreendimento. Nessasatividades perigosas e muitas vezes imprevisíveis, fraturas por golpes de clavas, patadas,

quedas e mesmo pelos azares do dia-a-dia eram freqüentes. E certamente devido a essafreqüência, nas cavernas, abrigos e casas primitivas de então os acidentados já deveriamcontar com homens mais idosos que tinham experiência e que sabiam como tratar com certosucesso casos dessa natureza. Nas diversas cavernas pesquisadas pelos arqueólogos, e noslocais onde foram encontrados muitos esqueletos pré-históricos, vários ossos apresentam-secom fraturas solidificadas e bem tratadas. Esses ossos solidificados e com evidentes sinais de fraturas anteriores foram estudadosmeticulosamente por cientistas diversos que notaram a ocorrência maior e mais significativade fraturas do ante-braço (radius). Nesses esqueletos pré-históricos encontrados e analisadosaté hoje, podemos citar sinais de fratura tratada em ossos de omoplata (em Vendreste), detíbia (encontrados em dólmens da África do Sul e em Meudon), do perônio (terço superior),do fêmur (bastante comum), do húmerus, da clavícula e mesmo do metatarso. Em sua obra "La Médecine chez les Peuples Primitifs (Préhistoriques et Contemporains)",Stéphen-Chauvet afirma que um grande estudioso dos achados pré-históricos, o Dr.Raymond, pôde estudar um fêmur direito encontrado numa gruta do vale Petit-Morin quehavia sido fraturado em seu terço inferior, e que apresentava um forte deslocamento. Ofragmento inferior tinha sua ponta, na linha áspera e quebrada, solidificada à extremidadebaixa do pedaço superior do fêmur, mas com grande desvio. Assim, o conjunto é envolvidonuma calosidade óssea de aproximadamente 20 cm de circunferência, daí resultando umconsiderável encurtamento da coxa. Todas essas fraturas mesmo a do metatarso chegavam a impedir o homem primitivo daparticipação em atividades de caça ou de guerra praticamente durante meses. Viviam comseus membros imobilizados - ou pelo menos não usados - sobrevivendo na dependência dosdemais. Eram, assim, transitórias, mas seriamente deficientes. No entanto, seja pelos dedos amputados, que podem ser notados nos desenhos dascavernas habitadas, seja pelo exemplo da incrível calosidade óssea com grande desvio dalinha do fêmur e evidente encurtamento da perna, tivemos na Pré-História pessoasdeficientes que sobreviveram por muitos anos. Como sobreviveu esse homem de perna comfratura solidificada com sério desvio? Como conseguiu integrar-se ao seu grupo, e com quetipo de papel? Sim, pois se não tivesse sido integrado, seus ossos não estariam na cavernaem que foram encontrados... Como participou, pelo resto de sua longa vida, das atividadesde sua família ou de seu grupo? Seu vulto, coxeando pelos agrestes e perigosos caminhos,num ponto perdido da Pré-História, permanecerá sem maiores explicações em nossaimaginação. Além das providências de imobilização para os casos de fraturas, membros ou partes docorpo atingidos por um golpe devem ter sido instintivamente socorridos por massagens dopróprio indivíduo, da mesma forma como certas dores reumáticas podem ter sido aliviadascom o calor das fogueiras ou das pedras aquecidas ao seu redor nas primeiras cavernashabitadas pelos grupos humanos.

- *O que nos ensinam os ossos pré-históricos* Os homens que se dedicam ao estudo de ossos pré-históricos têm desenvolvido denodadosesforços para a criação de uma nova especialidade: a paleopatologia. Praticamente toda aespecialidade aqui referida volta-se para achados que indicam a existência de patologiasincapacitantes. Seus estudos não podem desconsiderar desenhos, estatuetas, relevos, além daanálise sistemática de ossos que apresentam anomalias. A nova ciência da paleopatologia nos ensina que a doença e a deficiência física são tãoantigas quanto a própria vida sobre a Terra.

Pois bem, é a paleopatologia que nos diz que ossos de animais de todas as épocas indicama presença de distrofias - sejam elas congênitas ou adquiridas - e lesões traumáticas ouinfecciosas. Dentre os ossos encontrados na França, na Espanha e na Argélia, existe mais deuma centena que apresenta anomalias. Vejamos alguns exemplos mais marcantes:

a) Pythecanthropus Erectus - Existem poucos ossos do tipo conhecido por esse nomecientífico: uma calota craniana, três dentes e um fêmur. O fêmur apresenta uma espécie detumor ósseo bem volumoso no terço superior, próximo à sua cabeça, atribuído pelosestudiosos a uma fratura ou a um aneurisma. b) Homem de Neanderthal -- Há ossos do chamado Homem de Neanderthal queapresentam traços de traumatismo. Há, por exemplo, no úmero esquerdo, uma cicatriz quecorresponde a uma lesão séria. No esqueleto desta espécie, descoberto em Krapina, existeum sinal de fratura solidificada na clavícula. O esqueleto de La Chapelle-aux-Saints mostrasinais de artrite deformante. c) O esqueleto analisado por Raymond - O fêmur com grande desvio citado mais atrás, foidescoberto por Raymond na gruta de Baye. É interessante notar que ossos provenientesdessa mesma caverna apresentam, quase todos, sinais de osteoartrite de natureza reumática.Segundo alguns especialistas, essa afecção apresenta-se como um real obstáculo à boasolidificação de uma fratura. d) Homem Cro-Magnon -- A espondilose foi encontrada num esqueleto de homem pré-histórico conhecido como Cro-Magnon. Trata-se de um mal de efeitos muito limitadores,pois a espinha dorsal em geral fica com uma curvatura bastante acentuada, a cabeça inclina-se para a frente e as coxas flexionam-se. e) Freqüência do reumatismo -- O reumatismo foi muito freqüente e devastador na Pré-História. Havia casos que iam desde a chamada osteopatia peri-articular, até a totalimobilização do homem primitivo. Um exemplo marcante é encontrado em ossos do Homemde Neanderthal, descobertos em La Chapelle-aux-Saints, na França. Pela análise dosmesmos, especialistas constataram sinais claros de articulações coxo-femurais com artriteseca e com poli-artrite. Na Era Neolítica a presença média do reumatismo é estimada em 20% dos esqueletos ouossos encontrados. A incidência do mal talvez esteja relacionada à má qualidade daalimentação (que pode também ter causado muitos casos de cegueira), devido a infecções etambém devido à exposição à umidade e ao frio. Convém que lembremos ter o homemprimitivo vivido muito exposto às alterações do clima, muitas vezes em cavernas cheias deumidade. Assim, os casos de reumatismo não aconteciam apenas em faixas etárias maiselevadas; ocorriam também muito antes dos 30 anos de idade (Ver Goldstein, Guthrie,Gonzales, Stephen-Chauvet e Dastugue).

- *A origem dos males que afetavam os homens* A rude e muito difícil vida do homem em seus primeiros milênios de existência sobre aTerra não admitiam fraquezas. A doença e os acidentes aconteciam, muitas vezesavassaladores e de muito rápido desfecho; mas por vezes o homem vencia, e uma primitivamedicina -- se assim poderá ser chamada -- ajudava com um socorro paliativo, cada vezmais eficaz, por meio de homens observadores, muito voltados para os recursos da naturezae para os misteriosos segredos do "desconhecido". Afirmam Graña, Rocca e Graña Jr. em "Las Trepanaciones Craneanas em el Perú en laÉpoca Pré-Hispánica": "Se considera una doctrina plenamente confirmada que el hombre

primitivo, a través de todos los tiempos y en todas las regiones del globo, observó lasmismas creencias, iguales supersticiones y atravesó por semejantes etapas de cultura". "Y así, concurren a una interpretación común las leyendas y tradiciones más remotassobre el origen de las enfermidades. Ignoradas las causas reales, el hombre invocaba loignoto y misterioso, lo invisible e palpable, o sea, el concepto de los espíritos y la influenciade la divindad. Desde este punto de vista el folk-lore médico es el mismo en todas lascivilizaciones primitivas". "Elocuente demonstración de estos hechos ofrecen ciertas prácticas quirúrgicasregistradas en la história de los pueblos más antiguos, y una de verdadera significación yimportância es, sin duda, el caso de las trepanaciones craneales, realizadas desde muchosmilenios anteriores a nuestra era. Ya en el período neolítico se realizaba con extraordinariafrecuencia esta grave y dificil intervención, juzgada" como la operación más antigua de lacual existen huelas comprobadas". Como demonstración palmaria de las ideas enunciadasantes, podemos aducir que dicha intervención en el pasado lejano se llevó a cabo en lasregiones más distantes de la tierra: Africa y Asia, entre los "Chaouias" de la Algeria, lastribus Bere-Bere, que la practican aún hoy. Se handescubierto cránios horadados en Herzogovina, Montenegro Y Albania; igualmente em lasislas del Pacifico, la Malasia, Polinesia, Tahiti. En Nueva Bretaria, en el Archipiélago de lasBismark; en diversos paises del Mediterráneo, Itália, Francia. En Inglaterra y Austria; en lasIslas Canarias y, bien lo sabemos, en diversos paises de la América Del Sur, Perú, Bolivia yColombia".

É indiscutível que o homem pré-histórico procurava a origem das enfermidades emcrendices de natureza mística ou fantasiosa, mais de ordem demoníaca ou resultante deatitudes punitivas das divindades ou seres superiores. Apesar de podermos duvidar daprofundidade ou da diversidade de conhecimentos dos aplicadores da primitiva medicina, aeficácia de muitos tratamentos é fato inquestionável. Data, por exemplo, de tempos imemoriais a utilização de uma lama especial para muitoscasos de afecções cutâneas, bem como o uso de teias de aranha em cortes e feridas, comresultados positivos, Embora ainda não fosse do conhecimento do homem primitivo, hojesabemos que os produtos naturais indicados acima contêm uma espécie de elemento protetorquase tão eficaz quanto a penicilina. Certamente que são surpreendentes para todos nósconhecimentos primitivos quanto à eliminação da dor, ao estancamento de sangue, àassepsia ou às técnicas operatórias, porque não há dúvida de que de alguma forma elesexistiram.

- *O tratamento primitivo e as deficiências* Comprovadamente tanto a existência quanto o tratamento de males diversos no seio daspopulações primitivas e pré-históricas sempre estiveram ligados à magia. A própria trepanação -- ou seja, a abertura de um orifício em alguma parte do crânio --indica uma crença primitiva quase que demonológica ou maligna de origem desconhecida decertos males físicos ou mentais. No entanto, o tratamento dos feiticeiros ou mágicosdaquelas épocas incluía, além de cerimoniais com evidente simbologia, providências denatureza objetiva, muitas vezes hoje utilizadas em tratamentos de urgência ou tratamentomédico regular, como o calor, o frio, a sangria, os banhos, a sucção, dentre muitos outrosmeios que apenas podemos imaginar. Conforme referimos anteriormente, a massagem, certamente descoberta por mero acasonum momento perdido de dor na história do homem, levava – como sempre levou -- a uma

sensação de alívio; assim também a proximidade com o calor do fogo, ou o amortecimentoem contato com o gelo ou neve. O uso eventual de uma erva -- à semelhança do que fazemcertos animais em momentos de dor -- pode ter levado a alívios pouco esperados. Cada povo ou cada tribo, por experiências acumuladas e por observações próprias, foidesenvolvendo seus próprios meios de tratamento de males. Por uma questão desobrevivência da raça apenas, cuidados um pouco diferenciados podem ter sido dados àsmães e aos recém-nascidos -- desde que perfeitos e, conforme as circunstâncias, desde quedo sexo masculino. É quase certo que uma criança nascida com aleijões ou aparentandofraqueza extrema terá sido eliminada de alguma forma, tanto por não apresentar condiçõesde sobrevivência, quanto por crendices que a vinculavam a maus espíritos, a castigos dedivindades ou mesmo por motivos utilitários. Os primeiros auxílios prestados pelos homens primitivos foram relacionados a lesões dotipo traumático, como as feridas, os dilaceramentos causados por pedras, espinhos, flechas,lanças, garras ou presas de animais caçados, todas elas provocadoras de perda de sangue oude fraturas. As circunstâncias da ocorrência desses fatos ou acidentes certamente levaram oscompanheiros ou a própria vítima a buscar na natureza que os cercava os remédiosnecessários. A compressão normalmente feita pelas mãos e as proteções por atadurasprimitivas estavam incluídas nessas providências iniciais. Ressaltemos que os homens pré-históricos, assim como os nativos de certas tribosexistentes hoje em dia, dispunham de armas de curto alcance, tanto para caçar como para sedefender, sendo a maioria delas de efeito contundente (bastões, marretas, porretes, tacapesou algo semelhantes). Essas armas e seu uso contra outros homens também levavam àexistência de contusões ou de ferimentos sérios que nem sempre causavam a morte. Assim,seja durante um ataque ou uma operação de defesa contra inimigos racionais, ou mesmodurante uma caçada, o homem atingido por uma flechada, por uma pancada mais forte oupor garras afiadas, era socorrido --como não poderia deixar de ser -- pelos companheiros,que o abrigavam ou cuidavam dos ferimentos por meios rudimentares e naturais, e olevavam de volta ao núcleo de habitação, onde recursos maiores deveriam existir. Em algunscasos o indivíduo gravemente ferido não falecia, mas podia ficar vitimado por uma seqüelaqualquer e se tornava limitado para a atividade principal da qual originalmente participara: acaça ou a guerra.

- *O destino das pessoas deficientes na Pré-História* O que sucedia a esse homem? Ele fora valente, respeitado e útil ao grupo, mas a partir deentão não tinha mais utilidade. Seria ele mantido pelo grupo na esperança de voltar àatividade? Seria ele utilizado em funções menos exigentes de perfeito domínio da força e dofísico? Seria ele levado às planícies ou às armadilhas para, num último gesto de colaboraçãocom o grupo, servir de isca para animais ferozes? Aceitaria ele funções menos briosas, aolado de mulheres e crianças? Nada disso sabemos. Só conjecturas podem ser feitas e talvez com boas oportunidades deestarem certas. Lembremo-nos que, de acordo com o progresso lento da humanidade e o gradativodomínio dos ambientes e da natureza, certas funções começaram a existir: os fabricantes decestos ou de armadilhas, os preparadores de peles para vários fins, os fabricantes de esteirase de vasos para armazenamento de água, dentre muitas outras coisas. Por que um homembrioso, valente, lutador, corajoso, não poderia ter sido usado para esses fins, sejaprovisoriamente, seja permanentemente?

Dos períodos mais adiantados da Pré-História para os dias de hoje, na Era Neolítica, vasose urnas foram sendo decorados das mais variadas maneiras e com os mais incríveis motivos.Foram encontrados em alguns desses vasos ou urnas homens com evidentes sinais dedeformidades de natureza permanente, sendo algumas delas conseqüentes de mal-formaçõescongênitas: corcundas, coxos, anões e amputados. Isso nos indica que desde épocas as maisremotas as deficiências e mesmo as deformidades de nascimento ou adquiridas portraumatismos e doenças já eram um verdadeiro flagelo da humanidade. Indicam-nos tambémesses objetos da primitiva arte neolítica que esses homens sobreviviam até a idade adulta epoderiam ter algum valor, seja por motivos de superstições, seja por real utilidade, paramerecer sua representação num utensílio permanente e de vital utilidade para os grupossociais de então.

2. Culturas Mesolíticas e Neolíticas mais Recentes Muitos daqueles que se interessam por pessoas deficientes ou por grupos minoritários emculturas pré-históricas e em culturas primitivas dos dias de hoje, seja por falta de maioresinformações, seja devido a uma projeção das tendências subjetivas de cada um, consideraminevitável generalizar a aplicação de procedimentos adotados por muitos séculos edefendidos até em uma lei básica de Roma ou em costumes adotados em Esparta, quedeterminavam a eliminação de crianças nascidas com deficiências físicas. No entanto, essesprocedimentos não foram e nunca poderiam ter sido generalizados ou generalizáveis. Muitos dos hábitos e costumes adotados em culturas muito mais antigas que a nossa sãoaté hoje aceitos por povos bastante primitivos que vivem uma vida praticamente ao nível dosantigos homens das épocas conhecidas como neolíticas. Alguns deles referem-se aos seuscomponentes mais fracos, mais idosos ou defeituosos. Exemplos concretos, coletados por antropólogos pacientes, podem de fato ser citados àsdezenas.

- *O porquê das atitudes face a grupos minoritários* Na abalizada opinião de antropólogos e mesmo de historiadores da medicina, pode-seobservar basicamente dois tipos de atitudes para com pessoas doentes, idosas ou portadorasde deficiências: uma atitude de aceitação, tolerância, apoio e assimilação e uma outra, deeliminação, menosprezo ou destruição. Na primeira, as pessoas que estão à margem do grupo principal devido a doenças,acidentes, velhice ou defeitos físicos são em geral aceitas das mais variadas maneiras,incluindo-se a tolerância pura e simples, chegando até ao tratamento carinhoso, aorecebimento de honrarias e à obtenção de um papel relevante na comunidade. Na segunda, todavia, essas mesmas pessoas são destruídas também de formas variadas,incluindo-se desde o abandono à própria sorte em ambientes agrestes e perigosos, até amorte violenta, a morte por inanição ou o próprio banimento. Esses mesmos antropólogos e historiadores observam que as encontradiças atitudespositivas e de aceitação não correspondiam necessariamente a raças mais cultas,experimentadas ou evoluídas. Na verdade, o que sucedia com os grupos que precisavam coletar alimentos, pescar ecaçar era que, apesar de haver um bom tratamento para com doentes e deficientes e mesmopara com os mais idosos de seus membros, de um modo especial na garantia da alimentação,o grupo maior tinha necessidade de livrar-se do peso que significavam as dificuldades namovimentação geral quando do escasseamento da caça, da pesca e dos outros tipos de

alimentos. Problemas muito sérios surgiam com a mudança para regiões mais férteis e maispromissoras. Essa atitude é bem diferente daquela da destruição habitual e sistemática adotada porgrupos primitivos mais complexos dedicados à agricultura e também ao pastoreio e umaincipiente pecuária. A causa principal da destruição das pessoas era evidentemente,econômica, face à quase inutilidade das mesmas. No entanto, observa-se também que apartilha de alimentos nesses mesmos grupos parece ter declinado em importância com osgradativos progressos verificados na agricultura e no pastoreio. Foi exatamente nessesgrupos que aos poucos começou a surgir a caridade organizada, em seus primeiros sintomas.

- *Atitudes de aceitação, apoio e assimilação* Vejamos, por exemplo, povos primitivos que adotam atitudes de apoio, assimilação,aceitação ou tolerância para com pessoas portadoras de deficiências, problemas mentais ouvelhice:

-- Aona: Os Aona residem ainda hoje à beira do lago salgado de Rudolf, no Quênia, numailha conhecida como Elmolo. De nômades que eram, transformaram-se em pescadores.Segundo eles acreditam, os cegos mantêm relação direta com o sobrenatural e os espíritos dosobrenatural moram no fundo do lago salgado e previnem diretamente os cegos quanto aoslocais onde há peixe. Assim, os cegos sempre participam das pescarias primitivas, levandoem consideração a lança atirada por eles que são sempre bem tratados e respeitados.

-- Azande: Trata-se de um povo muito primitivo que habita as florestas situadas entre o suldo Sudão e o Congo, caracterizando-se pelo seu nomadismo esporádico. Todos oscomponentes dessa raça acreditam muito em feitiçaria. No entanto, não chegam a relacionardefeitos físicos e anomalias com intervenções sobrenaturais. Crianças anormais nunca sãoabandonadas ou mortas. Não lhes falta carinho dos pais ou de parentes mais próximos.Segundo antropólogos estudiosos de seus costumes, dedos adicionais nas mãos ou nos péssão bastante comuns e eles se orgulham de os possuir. -- Ashanti: Habitam a parte sul de Gana, a oeste da África, totalizando mais de um milhãode membros. Quando constituíam um reino próprio era costumeiro enviar à corte criançascom defeitos físicos para serem treinadas como arautos do rei. Esses mensageiros comdeficiência física eram destacados para missões delicadas, como, por exemplo, a iminênciade guerras com tribos vizinhas. Em geral a mensagem do rei Ashanti era incisiva eterminava com um recado do arauto: "se esses termos não forem aceitos, poderei ser mortoagora mesmo". No entanto, parece que isso não acontecia, pois limitavam-se os inimigos a cortar um dosdedos do arauto, o que equivalia a uma declaração de guerra. Além dessa perigosa missão,os arautos eram também utilizados como inspetores sanitários ou coletores de impostos.Eram igualmente usados como bufões e tinham o privilégio de dizer a seus mestres o quebem entendiam. Foram também usados como espiões. -- Dahomey: Entre os habitantes mais antigos do Dahomey atual, localizado na ÁfricaOcidental, sempre foi considerado como fato costumeiro -- apesar de singular na grandemaioria dos povos primitivos – que as autoridades conhecidas como "condestáveis doEstado" fossem selecionadas principalmente entre pessoas portadoras de deficiências físicasou sensoriais. Em várias aldeias do país crianças nascidas com anomalias físicas sérias eramtidas como protegidas por agentes sobrenaturais especiais. Segundo crença popular, essascrianças existem para trazer sorte à aldeia. No entanto, em tempos passados, o destino de

muitas delas dependia de alguns sinais supostamente sobrenaturais que podiam decretar seuabandono à beira de um rio. -- Macri: Pessoas deformadas ou portadoras de deficiências não são mortas nemabandonadas nas aldeias dos Macri, nativos da Nova Zelândia. Elas sobrevivem, emboracom dificuldades, pois não encontram muito apoio e chegam mesmo a receber tratamento ouapelidos de natureza desagradável. -- Pés Negros: Tribo praticamente extinta da América do Norte, entre os Pés Negroscuidava-se bem de familiares com deficiência. Essas pessoas eram responsabilidade dopróprio grupo familiar, mesmo que isso chegasse a acarretar sacrifícios. -- Ponapé: Nas ilhas Carolinas Orientais, entre seus primitivos habitantes pertencentes àtribo dos Ponapé, crianças com defeitos físicos ou evidentes sinais de retardo mental sempreforam bem tratadas como se fossem normais. -- Semang: Entre os nativos da raça Semang, habitantes de parte da Malásia, só pessoas quese movem com o auxilio de um bastão ou de uma muleta, devido a um defeito físico ou àcegueira, é que são procuradas para conselhos ou para decidir disputas. Trata-se de umatribo Negrito, muito primitiva, que ainda vive em cavernas ou em abrigos de folhas. -- Truk: Para os nativos da ilha Truk -- uma das Carolinas -- as pessoas portadoras dedeficiências das mais diversas naturezas e também as pessoas muito idosas que não podemprover seu próprio sustento ou que dependem necessariamente dos outros -- sãoconsideradas como supérfluas. No entanto, esses aborígenes não tomam qualquerprovidência para sua segregação ou eliminação. -- Xagga (ou Chaggal): Nas fraldas do monte Kilimanjaro, ao norte da Tanzânia (leste daÁfrica), vivem os nativos do grupo Xagga. No seio dessa tribo primitiva ninguém se atreve aprejudicar ou a matar crianças ou adultos com deficiências, pois segundo acreditam, os mausespíritos habitam nessas pessoas e nelas se aquietam e se deliciam, o que torna anormalidade possível a todos os demais. -- Tupinambás -- Entre os nossos antigos índios da grande raça Tupinambá do século XVI,o adulto doente ou deficiente por ferimentos graves de guerra, de caça ou devido a acidentesda vida na floresta era deixado à vontade em sua cabana, praticamente sem contato algumcom o restante da tribo. Ficava sem comer se assim o desejasse, pois podia pedir alimentos,que lhe seria fornecido pelo tempo que achasse necessário, mesmo que pelo resto de suavida. O que em geral acontecia, porém, por posicionamento do guerreiro ferido, era queacabava morrendo à míngua.

-- *Causas das atitudes de abandono, segregação ou destruição* Alguns dos povos primitivos a respeito dos quais obtivemos informações não sepreocupam ou não se preocupavam (conforme o caso) com as pessoas deficientes em termosde vida ou de morte, mas tomavam atitudes discriminatórias contra elas, como nos casosainda hoje verificados dos habitantes da ilha de Bali -- Os nativos da ilha de Bali, naIndonésia, estão tradicionalmente impedidos de manter contatos amorosos com pessoasmuito diferentes do normal, ou seja, albinas, retardadas, hansenianas, e em geral compessoas portadoras de defeitos físicos sérios ou problemas mentais. Por vezes, no entanto, é a pressão pela sobrevivência que determina certas tomadas deposição quanto a pessoas idosas, doentes ou deficientes. É o que acontece com os índiosChiricoa -- eles habitam as matas colombianas e mudam-se com facilidade ou de acordocom as exigências para sobrevivência do grupo. Esses índios, tanto quanto certas tribos doCaribe antigo também o faziam, abandonam pessoas muito idosas ou incapacitadas pordoenças ou por mutilações por ocasião de suas mudanças. Cada membro da comunidade

carrega tudo o que pode levar e transportar pela selva, e que é considerado comoestritamente necessário. Essas pessoas deficientes ou muito velhas e doentes terminam seusdias abandonadas nos antigos sítios de morada da tribo, por não poderem se movimentar oupor não serem consideradas como fundamentais para a sobrevivência do grupo. Em alguns casos pesquisados, o abandono e a morte por opção do próprio indivíduoidoso, doente ou portador de deficiência séria, para benefício da tribo ou mesmo da raça,também acontecem. É o caso observado entre os Esquimós -- Entre os esquimós maisantigos que mantiveram contatos com missionários franceses nos séculos XVII e XVIII nosterritórios canadenses de hoje, as pessoas idosas ou deficientes eram deixadas, por suaprópria orientação e muitas vezes por sua própria escolha e vontade, num local mais propícioe próximo dos pontos onde todos sabiam ser a área de convergência contínua e deaparecimento de ursos brancos, para serem por eles devoradas. Segundo acreditavam, osursos brancos eram considerados como animais sagrados e de grande utilidade para a tribo eque deviam manter-se sempre bem alimentados. Assim, sua pele mantinha-se também emótimo estado para, quando mortos, bem agasalharem a população. Existem relatos de abandono mais evidente e aberto, ou um tanto velado, como no casodos Tupinambás, acima indicado. O abandono intencional ocorre com os Siriono - Essesíndios são seminômades e de língua Guarani, e habitam nas selvas da Bolívia, próximo aoBrasil. Para eles a doença e a incapacidade física, bem como a velhice, podem levar aoabandono e mesmo à morte com certa freqüência, devido a constante movimentação datribo. O mesmo sucede com os pertences ou com a cabana de alguém que morre, que sãodestruídos pelo fogo.

-- *O extermínio de pessoas deficientes* A maioria dos povos primitivos, no entanto, indicava o extermínio como solução para oproblema de crianças ou adultos com deficiências físicas ou mentais. Vejamos alguns casosmais marcantes: -- Ajores -- Os índios Ajores vivem ainda hoje como nômades, em região pantanosa, entreos rios Otuquis e Paraguai, nos isolados confins da Bolívia e do Paraguai. São índiosorgulhosos do Gran Chaco. Devido ao nomadismo, todos os recém-nascidos comdeficiências, ou mesmo aqueles não desejados, são enterrados juntamente com a placenta, aonascer. Os velhos Ajores, ou aqueles que devido às circunstâncias ficaram deficientes, sãoenterrados vivos, por solicitação própria ou mesmo contra sua vontade. Consideram algunsesse tipo de morte altamente desejável, pois a terra os protegerá contra tudo e contra todos. -- Creek -- Velhos doentes e vítimas de males crônicos eram mortos por misericórdia.Acreditavam os Creek que esses velhos ou doentes poderiam acabar por cair nas mãos doinimigo e sofrer muito mais. Os demais idosos sempre foram respeitados e mesmoreverenciados por todos os componentes da tribo. -- Dene -- Entre os índios Dene, do Noroeste do Canadá, bem como junto aos esquimós daregião e algumas tribos da Sibéria antiga, era costume eliminar pessoas incapacitadas sejapor idade, seja devido à deformidade apresentada. Eram abandonadas nas planícies geladasde seus imensos territórios. -- Dieri -- O infanticídio acontece com freqüência na tribo dos Dieri que ocupa algumasregiões do Centro da Austrália. Dele são vítimas não apenas crianças que nascem comdefeitos físicos, mas também, por motivos de ordem social, os filhos de mães solteiras. Noentanto, nessa e em várias outras tribos australianas, o respeito pelos idosos éconstantemente citado pelos antropólogos que se dedicam ao seu estudo. Em quase todas astribos da Austrália os velhos são respeitados como líderes e como conselheiros.

-- Jukun -- Trata-se de uma tribo da Nigéria, na qual as crianças que nascem comdeformações não sobrevivem. Elas são abandonadas nas matas ou nos lugares ermos ondelogo encontram a morte. Acreditam os nativos Jukun que as crianças com defeitos físicossão tomadas, ainda no ventre da mãe, por espíritos malignos. -- Masai -- Os nativos da raça Masai são os sempre elegantes, magros e muito altoscomponentes de uma definida origem nilo-hamítica nômade. Eles tiram a vida das criançasrecém-nascidas que se apresentam muito fracas ou que já apresentam deformações aonascer. -- Navajos -- Os índios Navajos, aparentados dos Apaches e formadores da maior raçaindígena norte-americana, no passado distante não permitiam que uma criança com defeitofísico sobrevivesse. Ela era asfixiada ou afogada, abandonada no meio do mato ouocasionalmente queimada viva. Mesmo hoje em dia os Navajos não se sentem muito àvontade diante de pessoas com deficiências, por considerar em seu íntimo que elas estão forada harmonia das forças da natureza e que o contato com elas acabará trazendo desarmonia navida de cada um. -- Ojibwa -- Conhecido grupo étnico de índios norte-americanos, existem famílias Ojibwaresidentes ainda hoje nas ilhas Parry (Canadá) que acreditavam (e que talvez aindaacreditem) que pessoas com defeitos físicos eram feiticeiras e que sofriam com seusproblemas físicos porque os seus poderes de cura acabavam voltando-se contra elas mesmas.Essas pessoas com deficiências podiam ser acusadas de feitiçaria e se fossem condenadaseram mortas a pauladas. -- Sálvia -- Nas matas fechadas da selva amazônica vivem os índios Sálvia, em extinção.Eles costumam dar a morte aos fisicamente deficientes por serem considerados comoelementos claramente marcados por espíritos malignos. -- Saulteaux -- Pertencentes à grande raça dos Ojibwa, os Saulteaux estão espalhados tantopelos Estados Unidos quanto pelo Canadá, na região dos Grandes Lagos e também do lagoWinnipeg. Pensavam esses índios que as pessoas com deficiências físicas eram possuídaspor espíritos malignos, o que levava a tribo a matá-las. Eram também consideradas comoverdadeiras ameaças aos deuses que, com sua morte, mantinham-se pacificados e contentes. -- Uitoto -- Segundo costume observado pelos integrantes dessa tribo do alto Amazonas, asudeste da Colômbia e nas proximidades do Peru, o recém-nascido era sempre submersonum riacho próximo à sua aldeia, por alguns segundos, a pretexto de sua limpeza e tambémpara verificar sua resistência física. Segundo acreditavam, caso a criança não fossesuficientemente saudável e bem constituída, melhor seria morrer naquela hora do que passaruma vida toda de atribulações para si e para sua família, devido à fraqueza ou à deficiênciafísica. No caso específico de ser portadora de alguma deformidade durante seu crescimento,o feiticeiro da tribo declarava abertamente que ela havia sido vítima de algum mau espírito,podendo causar malefícios para toda a aldeia. A esse pretexto ela acabava sendo eliminada. -- Wageo -- Entre esses primitivos habitantes da Nova Guiné, as crianças comdeformidades físicas eram enterradas logo após o seu nascimento. No entanto, se adeficiência ocorresse durante a vida, as vítimas eram tratadas com cuidado e mesmo comcarinho. -- Xagga - Muito embora os Xagga jamais procurassem se livrar de uma criança ou de umadulto com defeitos físicos ou problemas mentais, conforme vimos anteriormente, tinhamatitude diferente face ao nascimento de uma criança defeituosa. A parteira, ou o próprio pai,tinham o direito de tomar uma decisão quanto à vida ou a morte de um bebê nascido comdeformidades, no próprio ato do nascimento, se as circunstâncias assim o recomendassem.

Nota-se nessas várias culturas aqui citadas que muitas vezes a não-sobrevivência ocorriamais devido à pressão causada pelas dificuldades na obtenção de alimentos ou mesmo deauto-suficiência e agilidade para cuidar de si mesmo em hora de perigo, quando não devidoa questões de utilidade do componente do grupo. Há vários casos de eliminação de velhos oude deficientes devido à ignorância das causas dos males considerados como misteriosos, oupor medo das divindades vingativas que poderiam estar envolvidas ou mesmo interessadas. No entanto muito raramente a rejeição ou a morte ocorriam devido a atitudes deostracismo ou de discriminação intencional que, segundo nos parece, são produtos decivilizações mais sofisticadas.

-- *A pessoa deficiente como objeto de ridículo* Um exemplo da pessoa deficiente como objeto de ridículo nos é citado porWolfensberger: Entre os Aztecas da época de Montezuma (1466 a 1520) havia uma espéciede jardim zoológico na capital do Império, Tenochtitlán (hoje México, D.F.), que chegou aimpressionar os homens do conquistador Cortés pela sua organização e variedade deanimais. O que mais chocou os homens espanhóis, porém, foi o fato de Montezuma ter eminstalações separadas homens e mulheres defeituosos, deformados, corcundas, anões,albinos, onde eram apupados, provocados e ridicularizados. Infelizmente em quase todas as culturas que indicamos restavam às pessoas marcadas pelaincapacidade ou pela idade apenas duas alternativas: resignação à situação ou a morte.

-- *O povo Inca e as trepanações cranianas* Embora não possa absolutamente ser considerada como primitiva, nem de carátermesolítico ou neolítico, a cultura Inca será aqui inserida como uma nota especial, devido aoinusitado e surpreendente conhecimento que conseguiu acumular e que vale a pena aquilembrar. O povo Inca habitou regiões do atual Peru desde épocas que certamente datam de 1.000anos antes de Cristo, com os povos originais que formaram a cultura Paracas. Estudos feitospor diversos especialistas da cultura Inca concluem que, mesmo antes da descoberta daAmérica, esse povo já desenvolvia um incrível padrão de medicina e de cirurgia. Um dosindicativos mais sérios a esse respeito está no enorme acervo de crânios encontrados nostúmulos de várias cidades Incas daquelas épocas, com sinais evidentes de terem sido objetode trepanação ainda em vida, e muitos deles com sinais de sobrevida, pelo crescimentocentrípeto do osso perfurado. Supõe-se que muitos dos povos que praticavam a trepanação -- e seus indícios surgem emtodos os quadrantes da Terra -- eram levados a ela por dois tipos básicos de motivos: devidoa um problema de perigo de vida causado por um traumatismo craniano, ou uma solidamentearraigada crença de origem misteriosa que indicava como certa a localização de mausespíritos na cabeça do individuo. A crença de que males ou enfermidades eram causados por deuses vingativos ouenfurecidos, ou por maus espíritos, sempre existiu desde épocas pré-históricas,principalmente devido ao fato de os antigos habitantes da Terra desconhecerem as causasdos males. No entanto, quando se analisa os procedimentos e os métodos curativos de algunspovos como é o caso dos Incas verificamos que essa posição não pode ser generalizada. Nãohá muita lógica nas suposições de que nesse conceito cheio de mistério da origem dos malescomo castigo, maldição, magia negra, possam ser inseridos os procedimentos de tratamentousados nas intervenções cirúrgicas, nas amputações, nas trepanações, nas correções dedefeitos congênitos, por exemplo.

Na cultura Inca nota-se que incisões muito bem feitas denotam um conhecimento quaseperfeito do mapeamento do sistema nervoso, pois cirurgias efetuadas do lado esquerdo docrânio destinavam-se a resolver problemas de paralisias do lado oposto do organismo,segundo nos provam especialistas no assunto. Nota-se pelo raciocínio lógico que, apesar de não dominarem o conhecimento das causasde certos males, os curandeiros ou os feiticeiros dominavam para seu próprio uso osprocedimentos e as técnicas incipientes de tratamento físico. Usavam, sim, o fetiche, oamuleto, o palavreado misterioso, a fumaça cheirosa, o que não passava, na maioria doscasos, de um certo conforto psicológico para o doente. As trepanações entre os Incas das épocas anteriores ao descobrimento estão ligadas, emgrande parte, a males incapacitantes. Dentre eles cumpre destacar os traumatismos cranianospor armas contundentes, os tumores internos e as infecções. Muito embora alguns dosestudiosos que analisam as cirurgias cranianas antigas e genericamente reconhecidas comotrepanações, achem tratar-se de simples meios para facilitar a saída de espíritos malignos eprejudiciais que tinham entrado na cabeça da vítima, há cientistas que, ao se debruçar sobrecrânios trepanados com muita cautela e muito espírito científico, admitem como causasdessas cirurgias tão sérias quanto perigosas, a dor, o vômito, a vertigem, as dificuldades dedeambulação, a afasia, a cegueira, as convulsões e outros males incapacitantes. Sem essessintomas é muito difícil imaginarmos a ocorrência de uma cirurgia dessas proporções e quedemandava -- como ainda hoje demanda -- tantos cuidados na recuperação do doente.

-- *As deficiências físicas há mais de 20 séculos na Califórnia* No Museu de Antropologia da Universidade da Califórnia existem ossos descobertos naregião de Bodega Head, a 70 quilômetros aproximadamente ao norte de Golden Gate, SãoFrancisco. São esqueletos de 44 indivíduos que fazem parte de um acervo de achadosarqueológicos de aproximadamente 2.200 anos. Eles nos trazem dados de um passadosurpreendente e muito distante, quanto à forte incidência de certos males que, agravados pelafalta de tratamento, levavam a situações de incapacidade naquela região de naturezalitorânea. Essas informações preciosas foram levantadas graças aos especialistas empaleopatologia que é, como verificamos anteriormente, o estudo das doenças conformeocorreram na vida das populações passadas. Num interessante artigo a respeito, James G.Roney Jr. dá-nos informações como estas: -- Dos 44 esqueletos encontrados e analisados, 20 (ou seja, 45% do total) apresentam sinaisde condições patológicas parcial ou totalmente incapacitantes para uma vida plena. Quaiseram esses males? Artrite, periosteíte, osteomielite, fraturas e anomalia congênita. Todaselas são encontradas nos esqueletos dos indivíduos adultos de mais de 20 anos de idadepresumíveis. -- A artrite, segundo Roney, e suas lesões nos esqueletos em pauta atingem não só a árealombar, mas também eventualmente o tórax, a região sacro-ilíaca, os ombros, os joelhos, osdedos das mãos e dos pés e mesmo a área cervical. Vejamos algumas observações a respeito de um dos esqueletos estudados: "Número 7969: Adulto do sexo masculino, 35-39 anos de idade ao morrer, tinhaosteoartrite na espinha cervical, toráxica e lombar e nas juntas sacro-ilíaca e nosjoelhos"..."Além disso ele tinha periostelite em ambas as tíbias nas superfícies medial elateral" .."Apresentava duas anomalias congênitas: uma costela bífida e espinha bífida nosacro. Tinha também fraturas solidificadas do quarto e quinto metatarsos direitos". Apesar de tantos problemas -- e com eles tantos e tão fortes sofrimentos -- foi umindivíduo que alcançou uma faixa etária elevada para o grupo em questão.

O mesmo estudo indica que um dos esqueletos apresenta sinais evidentes do mal de Pott,com três costelas em forma de cunha e com a característica formação encurvada da espinhadorsal. Segundo Roney, as fraturas ocorriam basicamente devido a atividades de caça e de pesca,talvez devido a quedas nas rochas escorregadias muito características daquela região debeira-mar da Califórnia. Não nos resta dúvida de que diversos adultos do grupo analisado viveram anos a fio comdores atrozes e limitações de severidade variada. Mas vale a pena ressaltar que muitos dosesqueletos sem qualquer sinal de males incapacitantes eram de indivíduos abaixo de 19 anos(são 11 ao todo) e abaixo de 1 ano (6 ao todo). Talvez esse dado nos indique que os malesaqui mencionados fossem conseqüentes a atividades de caça e pesca, básica para asobrevivência do grupo.

CAPÍTULO SEGUNDO A PESSOA DEFICIENTE DENTRO DAS CULTURAS ANTIGAS

Muito embora seja difícil encontrarmos traços de civilização ou de sociedades melhororganizadas em épocas anteriores ao ano 4000 a.C., o homem conseguira já nas várias fasesde eras muito remotas e sem memória da chamada Pré-História, trabalhar em criações edescobertas que foram de extremo valor para o estabelecimento de facilidades na vida dosgrupos humanos. Dentre essas quase que "invenções" é necessário que destaquemos autilização e o controle do fogo, as armas de médio e longo alcances, incluindo nelas até aslançadeiras de pedras, a utilização prática da roda, as embarcações, as armadilhas paraprender animais selvagens, as roupas para melhor proteção de seu corpo, cestos paratransportar e armazenar bens, as cerâmicas utilitárias, e também as residências mais segurase mais confortáveis. O homem dominou igualmente os primeiros passos na utilização dealguns poucos metais básicos. No entanto, essas adaptações, descobertas e verdadeiras invenções muito criativasocorriam de um modo geral em pequenos grupos de famílias e nem todas elas eramconhecidas e bem dominadas em todos os grupos espalhados pelas muitas regiões ocupadaspelo homem. Por volta do quarto milênio antes da nossa Era começaram a surgir grupos bem maioresde homens nas regiões da Mesopotâmia, no Egito e também no vale do famoso rio Indo.Esses grupos eram de alguma forma organizados e capazes de rápidos progressos, tanto emsua organização básica quanto no aprimoramento das habilidades manuais. Muito embora a preocupação básica com a sobrevivência levasse todos os grupos aodesenvolvimento de trabalhos relacionados à alimentação, ao abrigo e à defesa dos seuscomponentes, está fora de dúvida que neles também as artes, os ofícios e o que poderia serchamado hoje de primeiros ensaios da ciência surgiram aos poucos e se firmaram; muitolentamente tornou-se notória a diferença entre os artífices e aqueles indivíduos maisqualificados por funções consideradas como vitais para o grupo: os que cuidavam dasconstruções, os que entendiam das doenças ou dos ferimentos, os observadores eentendedores dos corpos celestes e todo o seu significado misterioso, os que se dedicavamaos elementos da natureza, à criação das crianças, à troca de bens, aos mistérios do mundo, àordem, à defesa e também aos seres superiores. Fator de mais rápido e seguro progresso do homem primitivo foi o estabelecimentogradativo de alguns códigos de comunicação e de armazenamento de informações. Ainvenção da escrita, por exemplo, foi de notável utilidade e deve ter sido contemporâneacom a instalação dos primeiros grupos mais civilizados no Egito. E foi por meio da escrita,cada vez melhor elaborada, que o homem conseguiu documentar sua evolução e transmitiumelhor aos demais os segredos que ia desvendando no mundo que o cercava. Tabuinhasassírias e papiros egípcios de aproximadamente 3.000 anos antes da Era Cristã nos dãoalgumas informações sobre incipientes profissões e sobre normas e regulamentos que o povodevia obedecer. Mas nem tudo estava necessariamente ligado à natureza ou a suas manifestações na vidadiuturna do homem. Sua existência era muito sofrida e repleta de problemas que não tinhamsoluções fáceis. E ainda por cima surgia um elemento que o deixava sempre medroso: odesconhecido. Fenômenos da natureza, males incontroláveis e outros eventos foram levandoo homem na direção daquilo que hoje conhecemos genericamente como "magia". Esta foiaos poucos sendo transformada em "religião" e desta foram surgindo pensamentos mais

elaborados, ou seja, o raciocínio filosófico. Este tipo de encadeamento de pensamentosacabou levando à ciência, ou seja, ao método cientifico. Segundo autores diversos, a magia nada mais é do que uma errônea associação de idéias esuas leis não se baseiam em observações muito precisas. Baseiam-se, sim, em observaçõeseventuais e também no desejo existente nas pessoas de concretizar atos ou fatos em geral,que estão fora de seu alcance. A idéia de divindade e de seu significado como origem de tudo foi deixando a magia delado, embora esta não tenha desaparecido até os dias de hoje. E os deuses -- ou seja, essamesma divindade transformada em seres de boa ou de má índole -- eram animadores,verdadeiros donos e gestores do céu, das nuvens, dos trovões e raios, da terra, dos ventos, daluz, da chuva, da água, do sol, da lua, do fogo, sendo imaginados de acordo com essesmesmos elementos. Dentre os grupos de homens mais evoluídos e dominadores de maior volume deconhecimentos das Eras Pré-Históricas, os que formaram as incipientes civilizações do Egitoe da Mesopotâmia são muito mais antigos do que quaisquer outros de que tenhamos notícia,talvez 5.000 anos que antecederam a Era Cristã. Os primeiros indícios da cultura gregasurgiram muito depois, talvez pelo ano 2000 a.C. A cultura romana por sua vez apenasfloreceu a partir do século VIII a.C. Por que a humanidade evoluiu mais e com rapidez maior no Egito e na Mesopotâmia? Poruma série de razões bastante concretas, sendo a mais significativa a fertilidade das terrasbanhadas por rios generosos. A fertilidade do solo na região da Mesopotâmia, por exemplo, era sempre assegurada pelacheia de seus rios, provocada principalmente pelo degelo das neves que cobrem asmontanhas de grandes altitudes do interior do Oriente Médio. Havia também o próprioesforço dos povos que ali habitavam, construindo diques, melhor utilizando o fluxo daságuas vindas pelos canais naturais de irrigação. Peixes eram de uma fartura sem par, avesdas mais variadas espécies habitavam a região e animais ali viviam em grandes manadas.Além disso, a terra era muito fértil, levando o homem a cultivar com facilidade o trigo, acevada, o arroz e outros cereais e frutas. Lutas começaram a ocorrer pelo domínio de terras férteis e dessas lutas surgiramdomínios cada vez maiores e suas conseqüências: escravos, muitas vezes marcados como tal.Os poderosos senhores defendiam-se com homens armados que aos poucos foram sedefinindo em unidades organizadas e essas em exércitos. A religião floreceu sob a proteçãodesses donos de imensas glebas, muitas vezes para proteger seus interesses. Da mesmaforma sucedeu com o mundo dos comerciantes. E as classes sociais foram aos poucos também sendo definidas: potentados e seusprotegidos diretos de um lado, e do outro os lavradores, os que cuidavam de animais, osartífices, os escravos ou subjugados, todos sujeitos a entregar ao senhor (rei, monarca, faraó,emir, imperador, chefe absoluto, não importa o nome) parte de sua produção, ou seja, ostributos. Nessas condições de certa segurança, o comércio -- ou seja, a troca de bens -- começou aflorescer, principalmente ao longo dos caminhos ou à beira dos rios navegáveis. Surgiramentão os aglomerados de casas ou de abrigos. No caso da Mesopotâmia sabemos que ela se transformou quase que imediatamente numponto de forte atração para essas trocas vitais de bens e de informações. Cereais eramtrocados por prata ou cobre; tecidos eram trocados por marfim; madeira por utensíliosusados em casa. Os meios de troca não eram suficientes para a variedade oferecida, o quelevou à criação de outros meios de pagamento. Uma das conseqüências desses contatos de

homens vindos de muitas paragens estranhas foi a troca de informações, levando àacumulação de conhecimentos e ao domínio de invenções e de idéias novas, o quebeneficiou evidentemente os moradores fixados nos aglomerados ou cidades. Não é difícil deduzir que, ao estudarmos as culturas mais significativas da antigüidade eque mais se relacionaram com a formação de nossa própria cultura, não poderemos deixar deressaltar as provenientes dos milênios de experiência do Egito e da Mesopotâmia --enfatizando principalmente o povo hebreu -- em muitas de suas fases de desenvolvimento,anteriores ou posteriores a Cristo. Além delas, jamais poderemos nos esquecer do muito queherdamos dos gregos e dos romanos. No ligeiro passar por esses tão distantes tempos vividos na história dos povos que tiveramsignificado na definição de nossa própria cultura e civilização, procuraremos voltar nossaatenção de um modo todo particular para os problemas decorrentes de deficiências físicas oumentais, além de muitos males limitadores ou causadores de marginalidade, e o que elespodem ter significado para as pessoas e para as sociedades de então. Algumas referênciassão esporadicamente encontradas quanto ao problema que esses males representavam equanto ao tratamento a eles dispensado. Documentos das mais variadas naturezas referem-sea eles sob ângulos variados e por vezes incomuns. Assim, nossas citações e informações deverão limitar-se aos mesmos sem muitoscomentários, procurando deixar ao leitor a liberdade de análise dos usos, das leis, das obrasde arte, do envolvimento da medicina e de outras ciências, de fatos históricos, depersonalidades famosas que conseguimos coletar por esse rápido passar pela história dosegípcios, dos hebreus, dos gregos e dos romanos.

1. Os Egípcios e seus vizinhos

A civilização egípcia, conforme comentamos, é das mais antigas da humanidade. Quandofalamos de Egito Antigo é bom que frizemos estarmos nos referindo a quase 5.000 anos deevolução anteriores, contemporâneos e posteriores a Cristo; e nele, durante muitos séculos,as classes sociais foram representadas pelos nobres, sacerdotes, guerreiros, escribas,mercadores, artesãos, lavradores e escravos. Estes últimos eram, em geral, povos mantidosem cativeiro ou prisioneiros de guerra. O desenvolvimento da civilização egípcia acha-se fortemente vinculado a fatoresgeográficos e climáticos favoráveis e relacionados à região onde ela se instalou. Trata-se deuma extensa área -- o vale do rio Nilo --localizada entre o Mediterrâneo, o Mar Vermelho eo deserto de Saara que foi ocupada muito vagarosamente por tribos que viviam da caça, naEra Neolítica. Seus descendentes lá se fixaram, agrupados em famílias que dominaram aospoucos as peculiaridades da região e a natureza por vezes hostil. Diminutos principados,separados uns dos outros, foram as incipientes comunidades espalhando-se devido aodomínio da agricultura, dos instrumentos que facilitavam o trabalho com a terra, das armaspara a caça, para o ataque pessoal ou para defesa do grupo. Como na Mesopotâmia,pequenas propriedades começaram também a se agregar em propriedades mais extensas;diminutos reinos independentes, chamados "nomos", sob o domínio absoluto de seu líder,começaram a existir. Com o passar dos séculos, dois grandes reinos surgiram: o do Norte e odo Sul. Por volta do ano 3000 a.C. o reino do Sul conquistou o do Norte, sendo estabelecidauma liderança única de um rei absoluto, um faraó, considerado a própria encarnação do deusHórus.

Essa civilização apresentava uma organização social e econômica muito própria e comuma sociedade toda hierarquizada, sendo que o faraó - deus entre os vários deuses ficavabem acima da pobre humanidade. Das classes sociais a dos sacerdotes era a mais poderosa, como é fácil de se deduzir, poisera ela que defendia a pretensa divindade do faraó e a sua intocabilidade. Os grandestemplos, como os de Amon, chegaram a ter milhares de sacerdotes e terras úteis quechegaram a representar quase um décimo de toda a terra fértil do Egito. Essa situação toda era mantida pelos guerreiros que, evidentemente, tinham uma dasmelhores posições na sociedade egípcia, com os privilégios decorrentes. Os escribas, por suavez, eram médios e pequenos servidores. Tinham posição invejada pelas camadas maisbaixas da sociedade, mas mantinham-se firmes em sua posição devido à suaimprescindibilidade na sociedade egípcia. As atividades ligadas à produção de bens eram desenvolvidas por artífices e porcamponeses, ajudados pelos escravos. A estes cabiam os trabalhos mais pesados para evitaro desgaste rápido dos bois. Coube aos escravos trazidos pelos guerreiros em suas inúmerascampanhas de conquista, a construção de diques, de templos, de palácios, de pirâmides, demonumentos. Além disso, eram também usados para bombeamento de água para os canaisde irrigação durante a época das secas muito severas. Os mercadores, por sua vez, negociavam a grande produção armazenada nos anos defartura, provocando trocas por mercadorias não produzidas no Egito com nações vizinhas eamigas. Muitas atividades artesanais sempre foram desenvolvidas no Egito, em oficinas própriasou no lar, incluindo nelas a fabricação de diversos tipos de tecidos, especialmente do linho,sandálias de papiro, cerâmicas, jóias e muitos outros produtos. A produção artesanal demaior significado, no entanto, sempre foi a de rolos de papiros.

-- *A atenção médica no Egito Antigo* Apesar de não existirem referências muito expressas sobre o assunto, por muitas dinastiasda História Egípcia a atenção a pessoas que apresentavam indícios de males graves ou dedeficiências físicas e mentais, fossem elas conseqüentes a malformações congênitas,acidentes ou infortúnios das guerras, circunscreveu-se aos membros da nobreza, aossacerdotes, aos guerreiros e seus familiares. Todos eles podiam ser objeto das atenções dossacerdotes especializados nos chamados "Livros Sagrados" sobre doenças e suas curas. Quanto ao atendimento médico às camadas menos favorecidas da população, sabe-se, poralguns documentos, que em dias prefixados os doentes eram transportados ao templo, ondesacerdotes mais jovens ou em formação davam seu atendimento gratuito. Era através dessaclínica ambulatorial incipiente que os jovens sacerdotes colocavam em prática osconhecimentos contidos nos livros e aprendiam a prática da arte da medicina - exclusividadesua. E era nessas clínicas para os pobres que também treinavam a arte da cirurgia. Osnumerosos e estranhos instrumentos descobertos nos templos pelos egiptologistas deviampertencer a esses locais de atendimento à pobreza. Para o novo sacerdote o ensino da arte médica podia durar muito tempo, dependendo dointeresse e da própria inteligência do aluno. E quando seus mestres julgavam que estavapronto para a iniciação independente, o novo médico-sacerdote jurava solenemente nãoensinar a ninguém os segredos dos livros sagrados. Os médicos-sacerdotes que conseguiamchegar ao final desses estudos e da prática requerida neles e passar pelas provas finaiseliminatórias contra os quatro elementos (água, terra, fogo e ar), transformavam-se numa

importante personalidade: faziam parte do alto clero, podiam usar a peruca de Osíris e omanto branco dos sábios. Seus serviços eram muito caros. Assim, não é de admirar que muito poucos conseguiam ter um médico para cuidar de seusmales. Membros das classes de rendimento médio precisavam contentar-se com algunscharlatões ligados à seita da deusa Sekhmet e que faziam parte de um clero inferior. Essessacerdotes, em geral, haviam tentado inteirar-se da ciência dos livros sagrados, sem oconseguir, mostrando-se dessa forma indignos e incompetentes. Nesses sacerdotesinferiores, entretanto, predominava uma notória experiência. Como nos casos da China e da Índia, os templos egípcios sempre foram cercados porverdadeiros jardins botânicos, sendo um dos piedosos exercícios dos candidatos a médicos-sacerdotes, durante sua formação, cuidar das platibandas dos templos, todas elas plantadascom flores ou arbustos de poderes curativos, utilizados tanto pelos detentores da mais altasabedoria quanto pelos experimentados médicos-sacerdotes da deusa Sekhmet. De um modo geral as camadas mais pobres da população do Egito, tais como oslavradores, os artesãos e os escravos, dispunham de pouquíssimos recursos e ficavam àmercê de improvisadores, de exorcistas ignorantes que vendiam amuletos e feitiços aostrabalhadores e suas famílias. Dependiam também de algumas pessoas que pela vida aforahaviam acumulado certos conhecimentos quanto aos efeitos de poções, ungüentos, sangrias emedicamentos naturais. A rica e muito diversificada experiência dos médicos-sacerdotes egípcios, que era sempreacrescida de novidades provenientes de reinos e estados da Mesopotâmia, nunca chegava àscamadas mais pobres da população.

-- *A medicina egípcia e os males incapacitantes* A medicina só surgiu no Egito no final do Velho Império e, em grande parte, acabousendo um produto importado da Mesopotâmia. Mas o povo egípcio foi um dos primeiros ase preocupar em fazer, na História do Mundo, um registro de sua medicina, inclusive damedicina cirúrgica. Em papiros recentemente descobertos e decifrados, revela-se que osegípcios chegaram a tentar operações cranianas, operações no rosto e até na coluna vertebral,apesar da medicina daquelas eras ter sido quase que totalmente empírica. Na verdade, o sistema de medicina pré-científica que mais vestígios deixou foi o egípcio.Uma série de princípios mágicos e falsos o informava, além de haver nele inserida uma sériede normas de higiene impostas a todos os habitantes. A medicina egípcia pairava entre omístico e o prático. Seus médicos-sacerdotes usavam poções, linimentos, cataplasmas, mel,sal, óleo de cedro, cascas de árvores, óleo de camomila, chifre de veado, excrementos, entreoutros produtos, aliados a orações, oferendas, sacrifícios, além de uma indispensável fé nosdeuses invocados. Heródoto (484 a 425 a.C.), o chamado "Pai da História", comenta comfrases de muito respeito sobre os médicos-sacerdotes de Tebas e de Mênfis, tal a suacompetência. A medicina egípcia muito colaborou para garantir ambientes mais limpos e mais sadiosnas aglomerações urbanas, pois dela emanavam orientações para quase tudo o que poderiaafetar a saúde pública e privada, tais como os enterros, a limpeza das casas, os banhos, adisposição e eliminação dos dejetos humanos e outras mais. Segundo os médicos do Antigo Egito as doenças graves e as deficiências físicas ou osproblemas mentais graves eram provocados por maus espíritos, por demônios ou porpecados de vidas anteriores que deviam ser pagos. Dessa maneira não podiam ser debeladosa não ser pela intervenção dos deuses, ou pelo poder divino que era passado aos médicos-sacerdotes que às vezes tinham meios para chegar a esse desiderato. Em sua terapêutica

usavam as preces, os exorcismos, os encantamentos, somados a poções, pomadas, elementosou também a eventuais cirurgias. Existem alguns papiros que são excelentes referências quanto à arte médica egípcia equanto à forma como ela cuidava de alguns problemas incapacitantes. E dentre eles cumpreque destaquemos o Papiro de Ebers, o de Edwin Smith e o de Brugsch.

-- *Os famosos papiros e os problemas de deficiências* O papiro de Ebers, que hoje é patrimônio da Universidade de Leipzig, tem o comprimentode pouco mais de 20 metros -- talvez o correspondente a 110 páginas -- e foi descoberto noEgito em 1873, na necrópole de Tebas, pelo egiptólogo Ebers, que imediatamente o traduziu.É provavelmente o mais considerável de todos os documentos escritos sobre a medicinaegípcia. Contém numerosos pequenos tratados que remontam a quinze séculos antes deCristo, com fórmulas para tratar doenças as mais variadas, incluindo algumas que podemlevar ao estabelecimento de uma deficiência física ou sensorial, como males dos olhos,problemas de ouvido, dos membros, dos vasos, da cabeça. Além disso, inclui tópicosimportantes sobre ferimentos, queimaduras, fraturas e outros. Há receitas contra aconjuntivite, hemorragias do globo ocular e esquimoses perioculares. Há indicações deoperação de catarata. Nenhuma outra cirurgia, entretanto, é nele indicada. Nesse famoso papiro de Ebers existe um tratado chamado de "Livro de Uchedu" no qualhá trechos que falam com clareza a respeito da surdez. O papiro de Brugsch, propriedade do Museu do Estado (Berlim), foi descoberto nasproximidades de Zaqqarah. Data do século XVI a.C. e nele existem 204 prescrições deremédios. Ali, dentre as muitas receitas, o leitor encontrará algumas contra dores nos olhos etambém contra a surdez. Uma delas é pomada para uso local, cuja fórmula é a seguinte: Planta "ank" - 1 Bálsamo - 1 Planta "ma" - 1 "Plast" - 1 Gordura animal

Dos três papiros relacionados à arte médica no Egito o mais importante é o de EdwinSmith, que fala sobre cirurgia no Antigo Egito, em especial da cirurgia dos ossos, em casosde sérios problemas ortopédicos. Os casos e exemplos são citados sistematicamente nestaordem: queixa, exame, diagnóstico e veredicto. Esse papiro, incompleto como foi achado, pertence à Sociedade Histórica de New York etem apenas quatro metros e 68 centímetros de comprimento. Foi adquirido em Luxor, no anode 1862, pelo próprio Edwin Smith. Segundo seus analistas, foi copiado há 3.600 anos atrás,embora contenha matéria já conhecida no Egito há mais de 4.000 anos. Seu autor parece tersido um hábil cirurgião, além de um perfeito observador. Supõe-se que o tratado originallidava com a cirurgia de todo o corpo, mas o fragmento encontrado analisa apenas cirurgiasda cabeça, do pescoço e do peito. O autor menciona fraturas tratadas com talas, fala sobreredução de deslocamentos da bacia e sobre sutura de ferimentos. Acham alguns autores queo papiro de Edwin Smith foi escrito pelo médico Imhotep, que séculos após sua morte foitransformado no padroeiro egípcio da arte de curar, e mesmo no deus da medicina.

-- *As deficiências físicas no Antigo Egito* Se de um lado os ossos pré-históricos nos dão certeza da existência de malesincapacitantes nos muitos milênios de vida do homem primitivo, conforme vimos antes, de

outro, os remanescentes das múmias, os papiros e a arte dos egípcios apresentam-nosindícios muito seguros não só da antigüidade de alguns males, como também da maneiracomo alguns ferimentos eram cuidados e das várias formas adotadas para o tratamento dasdoenças. A paleopatologia tem tido um campo muito fértil nas terras do Egito, onde mais do queem qualquer outra parte do mundo, as técnicas de embalsamamento conseguiram sucesso naconservação dos corpos. Tem sido exatamente nesses corpos embalsamados que os cientistastêm podido reconhecer ferimentos graves, processos degenerativos, fraturas e várias outraslesões que fornecem abundante material sobre a medicina egípcia. Segundo muitos autores, provavelmente o povo egípcio foi o mais saudável daantigüidade, devido à sua dieta vegetariana e também à amplidão de seus muitos diasensolarados. No entanto, o exame patológico de algumas múmias tem comprovado quevárias doenças graves chegaram a atingir duramente o povo egípcio e uma delas era umainfecção dos olhos que muitas vezes levava à cegueira. O Egito chegou a ser conhecido pormuito tempo como a "Terra dos Cegos", tal foi a extensão e a gravidade desse problema .

-- *Os males que levavam a deficiências físicas* Dentre as lesões descobertas através dos exames feitos em múmias ou em esqueletos doEgito Antigo, cumpre que destaquemos aquelas que provocam em suas vítimas lesões maislimitadoras, levando o homem a tornar-se temporária ou permanentemente limitado em suasatividades: --artrite crônica --espondilite deformante --Mal de Pott --pé varo eqüino --hidrocefalia -- gota --osteosarcoma --fratura --amputação

Convém ressaltar que em boa porcentagem do vasto material estudado pelospaleopatologistas, as lesões em esqueletos revelam de um modo todo especial a presença daartrite crônica, com forte incidência na coluna lombar. Sir Armand Ruffer, uma reconhecida autoridade no assunto, analisou múmias nos museusde Alexandria e do Cairo e notou diversas lesões sérias em algumas delas. Ao escrever arespeito de suas conclusões afirmou: "As lesões que descrevemos não poderiam ter sidoproduzidas em povo não-civilizado, pois os doentes morreriam de inanição antes que asmesmas chegassem ao ponto que chegaram e sua existência é a melhor prova do alto grau decivilização atingida pelos antigos egípcios" (Apud Riad).

-- *Casos concretos de lesões incapacitantes* Vejamos alguns exemplos de lesões provocadoras de deficiências físicas que chegaramaté nossos dias devido à existência das mesmas em múmias, esqueletos ou obras de arte denaturezas várias: - No ano de 1910 vários cientistas estudavam e descreviam a múmia de um sacerdote dodeus Amon, da XXI Dinastia (aproximadamente século X e XI a.C.). O corpo apresentaindícios claros de ter sido vítima do Mal de Pott, com um forte deslocamento da coluna

vertebral. Registre-se que vários outros casos do mesmo mal foram igualmente identificados,dentre os quais salientamos alguns registrados na arte egípcia, como segue: Múmia de umnobre (XII Dinastia - aproximadamente século XIX a.C.), localizada num belíssimo túmulode Beni-Hassan, com lesões que indicam o atingimento das regiões cervical inferior e dorsalsuperior; em outro túmulo (XVIII Dinastia--aproximadamente século XIV a.C.), existenteem Tel-el-Amarna, podemos observar uma pintura mural na qual há um nobre com lesõesnas regiões dorsal superior e lombar; num túmulo existente em Tebas (XIX Dinastia--aproximadamente século XIII a.C.) podemos admirar uma pintura que representa umjardineiro com evidentes sinais do Mal de Pott levando água a um elevador do liquido. - Em Beni-Hassan podemos também admirar a estátua de um anão com as pernasdefeituosas, com forte arqueamento. - Casos de pés tortos ou caídos existem diversos. Dois deles são de anões mumificados quese encontram em Beni-Hassan. Existem também figuras de anões com os dois pés tortos(varos eqüinos) em outro túmulo de Tel-el-Amarna. Há no Museu do Cairo a famosa múmiado faraó Siptah (XIX Dinastia, ou seja, século XIII a.C.), com o pé esquerdo visivelmentedeformado. - Uma estátua da XI Dinastia (por volta do século XXI a.C.) deixa muito claro o problemade elefantíase nas pernas do faraó Mentuhotep.

-- *A incidência de fraturas e outros problemas* Quanto à incidência de fraturas, existe um estudo de aproximadamente 6.000 esqueletosde todas as idades e de todos os períodos da História do Egito Antigo. Segundo os resultadosapurados, um em cada 32 indicam a existência de fratura solidificada corretamente. A mais comum delas é a fratura do ante-braço (31% dos casos estudados), certamentedevido a atividades desportivas ou conseqüentes a acidentes das mais variadas ordens.Fraturas da clavícula e mesmo do fêmur chegam a mais de 10% dos casos (Apud Salib,Dastugue e Wells). Muito embora a cirurgia egípcia não tenha podido se voltar para casos de malformaçõescongênitas, há autores que afirmam que a fissura lábio-palatal chegou a ser atendida. Umindício desse atendimento é encontradiço numa das muitas múmias examinadas, que temuma prótese rudimentar ligada aos molares por fios de ouro.

-- *Os anões na vida e na arte egípcias* Na cultura egípcia antiga os anões jamais foram olhados como seres marginalizados oudesgraçados, inferiores aos outros homens. Os de classes mais elevadas podiam aspirar aqualquer cargo que fosse; os provenientes de classes mais pobres eram por vezes adquiridospor grandes somas por faraós ou ricos senhores. Os anões da raça Dang, por exemplo, eram os mais procurados por serem excelentesdançarinos. Há textos hieroglíficos que a eles fazem menção: ..."ele dançará como um anãodiante de Osíris" (Apud Riad). Afrescos existentes nas paredes e outros recantos dos túmulos por vezes magníficos ealgumas estatuetas sugerem-nos que havia um elevado número de anões no Egito. Eles sãoem geral representados com fidelidade: corpos musculosos, um pouco gordos, membroscurtos, cabeças grandes, pernas por vezes arqueadas e muitas vezes corcundas. Em algumas obras de arte os anões aparecem aos pés de seus mestrês ou cuidam deanimais favoritos. Aparecem levando um cão para passear, caçando pássaros, ou segurandoum macaco preso; outras vezes são representados fazendo trabalhos de ourivesaria ou dejoalheria.

Um dos deuses do imenso panteão egípcio é representado como um anão disforme depernas arqueadas e aparência feroz. Trata-se de Bés, deus dos combates, dos jogos e dasdanças. Servia de amuleto contra todos os males devido à sua feiúra. Segundo algunsautores, Bés personificava os sentimentos que os homens deficientes suscitavam, masbasicamente como gênios bons. Existe no Museu do Cairo um sarcófago da época Saita (1150 a 336 a.C.) com a famosamúmia de Talchos, representado na tampa como um anão que realmente era em vida. Ainscrição cita sua piedade, pois dançava magnificamente em festas religiosas.

-- *Uma estela votiva dedicada à deusa Astarte da Síria por um porteiro* Uma placa de calcáreo com ilustrações e palavras em símbolos hieroglíficos e hoje em diamuito famosa entre os ortopedistas e profissionais de reabilitação. Ela retrata um momentomuito significativo na vida de um homem portador de deficiência física que viveu no Egitoaproximadamente 1.300 anos antes da Era Cristã e que tinha uma profissão de altaresponsabilidade no mundo egípcio de então: era porteiro, e seu nome era Roma. Devido à multiplicidade de versões quanto ao significado da cena ali retratada, nadamelhor do que o próprio museu onde a peça se encontra para estabelecer com clareza o seusentido. Segundo a Ny Carlsberg Glyptotek, de Copenhague (Dinamarca), que é aproprietária da citada obra de arte, estes são os dados principais a seu respeito: -- Trata-se de uma estela votiva classificada como AAEIN 134, da XIX Dinastia eoriginária de Mênfis. Tendo sua parte superior côncava, ela mede 0,27 cm de altura por 0,18cm de largura e sua coloração natural está parcialmente conservada. -- Ao alto da estela está inscrita sua dedicatória com hieróglifos coloridos de azul: "ÀDeusa Astarte". E no campo principal, logo abaixo, vemos o "porteiro Roma", sua esposa"Amaô" e seu filho "Ptahemheb". O grupo leva oferendas à famosa e muito conceituadadeusa originária da Síria. Roma aproxima-se de uma pequena mesa coberta de alimentos ede flores que ele molha com água benta,apresentando um pão num vaso de pé alto. Comuma postura muito digna, expressa seu pedido à deusa nestes termos: "Receba estes benspara a tua alma". -- A esposa leva um recipiente com alguma fruta (ao que parece são bananas) e conduz umantílope seguro pelos chifres. O porteiro Roma, de cabeça zelosamente raspada, como eracostumeiro, veste uma túnica pregueada, curta e parcialmente transparente. Sua pernaesquerda apresenta anomalia de musculatura e o pé está atrofiado ("pés eqüinus"), talvezdevido a paralisia infantil, segundo alguns médicos contemporâneos. Não pode andar comfirmeza sem seu bastão de apoio que durante a pequena cerimônia permanece preso a seucorpo por meio de seu braço esquerdo. Abaixo da cena, num campo separado, temos a precebásica e motivo da própria estela, em caracteres negros semi-destruídos: "Que o rei esteja deacordo e conceda, para que Astarte Síria, a soberana do céu, a senhora das duas terras, aprimeira entre os deuses, também esteja favorável e conceda.....boa...alegria e felicidade eum bonito enterro no deserto ocidental de Mênfis à alma do porteiro Roma" (Apud Koefoed-Petersen).

-- *As especialidades médicas e o problema das deficiências no Egito* Segundo Heródoto, a medicina egípcia era muito sábia. Já naquelas remotas eras haviaespecialidades, pois havia médicos para males da cabeça, para problemas com dentes, paradores no ventre e regiões vizinhas e para males internos. Havia também médicos paraproblemas de ossos. Praticamente todos eles aprendiam e exercitavam a arte da cirurgia.

Apesar de suas falhas e de seu empirismo todo, a medicina egípcia era famosa e a maisconhecida por séculos em todo o mundo civilizado de então. Homero fez referências a seusmédicos e tanto Ciro quanto Dario tinham médicos egípcios. Ciro, por exemplo, mandoubuscar o melhor especialista em problemas da visão com o Faraó de nome Ahmasis (560a.C.), como veremos mais adiante. No entanto, pouco nos é relatado quanto a problemasrelacionados a males deformantes, amputações e paralisias. Todo estudioso da História Egípcia já ouviu falar em "Livros Herméticos". São obrasmuito importantes relacionadas à arte médica e atribuídas ao deus Toth, ou seja, a HermesTrismegisto, usualmente representado por um homem com a cabeça de Ibis, e considerado opatrono da medicina. Dentre os famosos "Livros Herméticos" há um conhecido como "Livrodos Cyranidos", que contém 24 capítulos e apresenta um manancial muito importante deconhecimentos. Procura voltar às tradições de Zoroastro, citando para cada um dos capítulosuma planta, uma pedra, um pássaro e um peixe que reúnem suas virtudes para combater osmales neles discutidos. Quanto a problemas que levam a deficiências são citadas asseguintes pedras com propriedades terapêuticas: o berilo alivia ataques de epilepsia etambém a nefrite; o âmbar e a esmeralda são poderosos e muito eficientes nos males davisão. Apesar de diminuir em importância com o surgimento da medicina grega no cenáriomundial, durante séculos a medicina greco-romana socorreu-se da medicina egípcia;médicos como Galeno e Dioscórides, por exemplo, mencionavam medicamentos e métodosde tratamento egípcios e faziam prescrição de remédios usados no Egito, graças aconhecimentos adquiridos nos templos de Ptah ou de Imhotep, em Mênfis.

-- *Conceito da medicina egípcia na Odisséia, de Homero* Os egípcios não gozaram apenas de merecida fama de sábios e eruditos, conforme bem odemonstraram viagens de alguns dos maiores sábios da antigüidade, dentre os quais estãoHeródoto, Thales de Mileto, Pitágoras, Demócrito, Platão e Eudóxio. Por vários séculosdesfrutaram também da fama de constituírem um povo que possuía os melhores médicos domundo. Homero faz menção expressa a isso na Odisséia, escrita cinco séculos antes donascimento de Cristo. Diz o seguinte em seu Canto IV: "Neste momento, Helena, filha deZeus, concebeu novo plano. No vinho da cratera donde bebiam, lançou de súbito uma droga,um calmante da dor e do ressentimento, que fazia esquecer todos os males. Bastaria quealguém a tragasse para que em todo o dia as lágrimas lhe não corressem pelas faces, nemmesmo que morressem sua mãe e seu pai em sua presença, nem diante dos olhos seu irmão efilhos fossem mortos pelo bronze, tais as drogas engenhosas e salutares que a filha de Zeusrecebera em dádiva de Polihamna, mulher de Ton, nascida no Egito, país onde a terra, fértilem trigo, produz também símplices em abundância, com os quais se preparam misturas,umas benéficas, outras nocivas. Todos ali são médicos, os mais hábeis do mundo, porquetodos descendem do sangue de Péon" ("Odisséia", de Homero). Segundo a mitologia egípcia Péon era considerado como o próprio médico dos deuses.

-- *Anísis, faraó cego da IV Dinastia: século XXV a.C.* Heródoto fala-nos de um faraó cego, sem citá-lo como lendário. Trata-se de Anísis, queviveu muitas atribulações como rei dos egípcios em época localizada aproximadamente2.500 anos antes da Era Cristã. Em breves palavras o Pai da História informa que duranteseu reinado o Egito foi invadido pelos etíopes--vizinhos do sul - não restando ao faraó outraalternativa a não ser a fuga.

O então jovem rei fugiu através dos pântanos e ali viveu refugiado durante a longaocupação inimiga por nada menos do que 50 anos. Heródoto acrescenta que "assim queSábados" - o rei dos invasores - "deixou o Egito, Anísis (o cego) saiu da região pantanosaonde se refugiara e retomou as rédeas do governo. Tinha permanecido 50 anos numa ilha porele próprio formada com cinza e terra, pois quando os egípcios lhe iam levar víveres, cadaum de acordo com as suas posses, ele lhes pedia um pouco de cinza, que ia acumulando emmistura com a terra" ("História", de Heródoto).

-- *A deficiência visual na mitologia egípcia* O mesmo historiador refere-se a mais dois faraós que ficaram cegos, mas seus nomes sãoum tanto lendários. O primeiro deles é Sesóstris, que dividiu o Egito em 36 "nomos" econquistou pelas armas todo o mundo conhecido. De volta ao Egito com uma multidão decativos, foi bastante exaltado, fez construir muitos monumentos e mandou executar muitasobras de utilidade pública. Ficou cego em sua velhice e acabou suicidando-se. Seu sucessor foi Phéron, que ficou cego logo após assumir o poder. A narrativa deHeródoto leva nos a analisar fatos bastante fantasiosos: "Conta-se que tendo o Nilotransbordado dezoito côvados nessa ocasião" - correspondem a mais de onze metros acimade seu leito original - "submergindo todos os campos vizinhos, começou a soprar um ventoimpetuoso, agitando as vagas com violência. Phéron, numa louca temeridade, tomou de umdardo e lançou-o no meio do turbilhão das águas. Pouco depois seus olhos eram acometidosde um mal súbito e ele ficava cego. Permaneceu dez anos nesse estado" ("História", deHeródoto). No décimo primeiro ano, já muito arrependido, obteve do deus Nilo a promessa derecuperar a visão, desde que lavasse os olhos com a urina de uma mulher que nunca tivessetido contato com outro homem senão com o seu próprio marido. A experiência com a urina de sua própria esposa não deu resultados. O infeliz faraócontinuou a fazer tentativas, até que um dia recuperou a visão. Agradeceu ao deus Nilo comoferendas e tomou uma providência adicional: reuniu todas as mulheres infiéis aos seusmaridos - inclusive a sua - numa cidade abandonada e mandou incendiá-la, matando a todaselas. Logo em seguida casou-se com a mulher que lhe devolvera a visão.

-- *Um coral de homens cegos para Amenhotep IV* Na XVIII Dinastia de faraós egípcios, ou seja, no século XIV a.C., Amenhotep IVdestacou-se pelas suas fortes e persistentes tentativas de introduzir no Egito o culto a umdeus único. Durante os 18 anos de seu reinado combateu duramente toda a plêiade de deusese deusas, incluindo o mais forte de todos eles: Amon. O novo deus era representado pelo sol e seu nome era Aton. Em sua homenagemAmenhotep IV alterou seu próprio nome para Akhenaton (ou Ikhnaton), nome que significa"aquele que torna Aton feliz" ou algo semelhante. Fez mais, mudando a sede imperial deTebas para uma nova cidade planejada para homenagear Aton: Akhetaton (hojeTel-el-Amarna). Foi casado com Nefertiti, tendo o casal gerado seis filhas, ou seja, nenhumherdeiro do sexo masculino, o que, segundo Neubert, talvez explique o rosto triste da rainhaem contraste com sua beleza pura, retratado numa famosa estatueta de 34 cm de altura, quetodos conhecem. Foi considerado um idealista, um pacifista, um revolucionário. O clero voltado ao deusAmon considerava-o evidentemente um herético. Akhenaton era um homem doentio e sofria muito com ataques epiléticos, entãoconsiderados como evidentes sinais de contatos com o seu deus. Vários historiadores

dedicaram-se a esse estranho faraó monoteísta. Contam alguns deles que em sua nova capitalele cultuava esse seu deus único não só em público, mas também particularmente e emespecial quando sentia a iminência da "aproximação de Aton", nos ataques de epilepsia. E,para não haver testemunhas oculares de suas crises quando em palácio, só admitia cantorescegos no coral masculino do templo do palácio. Esse coral de homens cegos cantava em tons severos a exaltação a Aton, em um hino quepassou para a posteridade e do qual destacamos o seguinte belo trecho: "Quão vastos são os vossos trabalhos! Eles estão escondidos em nossa frente, O deus único, cujos poderes nenhum outro possui! Criastes a terra de acordo com o vosso coração" (Apud Encyclopaedia Britannica).

Akhenaton, o primeiro rei monoteísta e o que mais se destacou no Egito em termos deidéias religiosas, viveu duzentos anos depois de Moisés ter deixado o Egito com seu povotambém monoteísta... Haveria alguma ligação entre uma idéia e outra? O tema da vida deAkhenaton foi bem explorado por Mika Waltari, escritor finlandês, no romance "Sinuhe, oEgípcio", depois transformado em magnífico filme, com o título de "O Egípcio".

-- *As penas mutiladoras no Egito Antigo* Durante os muitos séculos de sua interessante história os egípcios conheceram asseguintes penalidades por crimes: - a morte - os trabalhos forçados - a mutilação (das duas mãos, das partes genitais, do nariz, da língua ou das orelhas) - a servidão - o flagelo - o jejum forçado - a infâmia - o confisco de bens - a multa

Eram penas freqüentemente aplicadas e não há indícios confiáveis de que os faraós sevoltassem de um modo especial para sua amenização. Em geral a mutilação atingia os membros ou a parte do corpo com os quais o condenadohavia cometido seu crime. Diodoro de Sicília, historiador grego radicado em Roma, contemporâneo tanto de Augustoquanto de Caio Júlio César, afirma que cada um "pela punição da parte do corpo com a qualo crime havia sido cometido, portava até a morte uma indelével marca que, pela divulgaçãodesse castigo, devia impedir outros de agir contra a lei" (Apud Thonissen). Era costumeiro no Egito Antigo mandar-se cortar o nariz da mulher adúltera, enquantoque seu cúmplice recebia mil golpes de vara. Cortava-se também a língua do espião delator,especialmente quando revelava segredos de Estado. O conquistador etíope Actisanos, por exemplo, era um rei considerado "bondoso",segundo Diodoro de Sicília. Essa bondade transparecia principalmente durante anos defartura e prosperidade. No entanto, mostrava-se muito severo para com os assaltantes, oscriminosos em geral e os bandidos que punham a população sob contínuo terror. O famosohistoriador grego afirma que "ele não condenava os culpados à morte, mas não os deixavasem punição. Reunindo todos os condenados do reino, tomou conhecimento preciso de seus

crimes; fez então cortar o nariz dos culpados, mandando-os para os confins do deserto efixando-os numa cidade que, para lembrar essa mutilação, tomou o nome de Rhinocolura (de"rhinos" = nariz e "koluros" = cortado)" (Apud Thonissen). A cidade de Rhinocolura ficava próximo ao ponto em que hoje se localiza El-Arish, noSinai, nas costas do Mediterrâneo.

-- *Médico egípcio especializado em males da visão na corte de reis persas* Conforme referimos anteriormente o rei Ciro, o Grande (reinou de 558 a 529 a.C),garantiu a presença contínua de médicos egípcios em sua corte. E devido a graves problemascom doenças dos olhos que levavam muitos de seus súditos à cegueira - sem muita diferençado Egito - Ciro solicitou também ao faraó Ahmasis que lhe enviasse o seu melhorespecialista. O faraó atendeu imediatamente e o médico especializado em problemas davisão atuou na Pérsia durante vários anos, combatendo a alta incidência de casos quecorriam riscos sérios de ficar cegos. À morte do grande fundador do Império Persa, esse médico egípcio, que jamaisconseguira perdoar seu faraó por tê-lo mandado à Pérsia, onde ficara longe de sua esposa efilhos e de seu próprio ambiente, começou a trabalhar o jovem rei Cambises (reinou de 529 a522), filho e sucessor de Ciro, para poder vingar-se de Ahmasis e eventualmente voltar aoEgito. Chamou sua atenção para a beleza da mulher egípcia e convenceu-o a pedir a filha dofaraó para casar-se com ela. O faraó, sabedor das intenções de Cambises e achandoinaceitável mandar sua filha para viver, como concubina do novo monarca, enviou em seulugar a filha de Apries, faraó por ele destronado. A linda jovem Nitétis chegou a Cambises com vestidos caríssimos e cheia de jóias. Maslogo Cambises ficou sabendo do engano, pois, conforme relata o historiador Heródoto,"algum tempo depois, como Cambises a saudasse pelo nome do pai, ela replicou: Ahmasis,senhor, vos enganou. Enviou-me ele a vós com estas ricas indumentárias em lugar de suafilha. Meu pai chamava-se Apries, por ele destronado e morto pelos egípcios que sesublevaram sob seu comando" ("História", de Heródoto). Cambises ficou enfurecido e pouco depois invadiu o Egito (em 525 a.C.) como desforrapela deslealdade de que se sentira vítima. Deixou governando a Pérsia seu irmão mais novo,Smérdis. Ao vencer Ahmasis e tomar posse de todo o Egito, no qual permaneceria até suamorte, encerrou a XXVI Dinastia e introduziu os faraós da XXVII Dinastia.

-- *Gaumata, um famoso mago de orelhas amputadas* O mesmo Cambises, logo ao início de seu reinado de sete anos, mandara um dia amputaras orelhas de um mago de sua corte devido a faltas muito graves. O castigo era inusitadopara os magos, pois eles eram membros importantes da casta sacerdotal persa. Apesar da forte marca pelo resto de seus dias, o mago castigado, cujo nome era Gaumata,disfarçou muito bem sua deficiência infamante, pois a circunstância de ser bastante parecidocom Smérdis, irmão de Cambises, acabou levando-o a usurpar o trono persa. Como sucedeu o logro? Heródoto conta-nos que durante a ausência da Pérsia emcampanha no Egito, Cambises aos poucos começou a desconfiar seriamente de Smérdis, seuirmão, que havia deixado como ocupante provisório do mais alto mandato para governar aregião em sua ausência prolongada. Sob um forte esquema sigiloso mandou seus oficiais deconfiança matar seu irmão, o que foi feito sem qualquer comoção junto às tropas persas oujunto à nobreza, pois na verdade ninguém ficou sabendo do hediondo crime. No entanto, o esperto Gaumata soube do evento e apareceu em cerimônia da corte como opróprio Smérdis, sem qualquer surpresa, tal sua parecença com o rei assassinado.

Houve tentativas frustradas para desmascarar a fraude levada a efeito por um homem quepoderia estar marginalizado devido às suas orelhas cortadas. Sete líderes das melhores emais fortes famílias persas decidiram cautelosamente esclarecer o assunto e na tentativa finalparticipou uma jovem de nome Fédima, uma das concubinas do falso rei da Pérsia. Elapertencia a uma das sete famílias interessadas e, instigada pelo pai, verificou no meio danoite, enquanto o falso rei dormia, que se tratava de Gaumata (ela viu que suas orelhas eramrealmente amputadas) que continuamente disfarçava o problema com os cabelos longosusados então. E foi exatamente nesse ponto importante da História Persa que surgiu a vivaz figura deDario, jovem e audacioso nobre persa que até então fizera parte da guarda pessoal deCambises, que assumiu rapidamente a liderança do grupo dos sete líderes que sempre haviadesejado livrar o Império daquele impostor. Smérdis (na verdade, Gaumata, o mago de orelhas amputadas) foi morto pelo próprioDario, tendo conseguido permanecer por sete meses no trono como soberano persa. O evento foi imortalizado num famoso e estranho monumento nas montanhas deBehistun, a oeste do Iran, gravado em pedra a mais de 100 metros de altura, com dizeres emtrês línguas diferentes e em caracteres cuneiformes. Nesse alto-relevo, concluído em 516a.C., aparece Dario pisando o prostrado Gaumata, tendo à sua frente mais oito reis por elevencidos. Dentre eles cumpre que chamemos a atenção para o último da fila, de chapéuponteagudo à cabeça, ou seja, o rei Phaortes II que foi duramente castigado por suaresistência às forças de Dario: teve seu nariz, suas orelhas e sua língua amputados e seusolhos vazados. Em conseqüência do desmascaramento do falso monarca Smérdis, ocorreu umaverdadeira chacina geral dos magos na cidade de Persópolis. Foi então instituída a grandefestividade persa que foi comemorada por muitos séculos, conhecida pelo nome de"magofonia" (de "magos" = mago e "phonia" = matança). Subiu ao trono o jovem Dario I (reinou de 521 a 485 a.C.) graças a um truque denotadorde sua criatividade e vivacidade, e que devido a um acidente logo ao início de seu reinadoquase foi vítima de uma bastante séria limitação física, da qual se livrou graças a um médicogrego, conforme veremos mais adiante ao nos referirmos à expansão da medicina grega eseus famosos médicos.

-- *Zópiro; tudo pela vitória de Dario I em Babilônia* Dentre os sete magnatas persas que colaboraram para a eliminação de Gaumata, o magode orelhas cortadas de que falamos acima, Zópiro foi o que mais se sobressaiu, tendomarcado sua existência por uma extremada amizade por Dario I. Embora fosse sátrapa (governador) de uma das províncias persas, colaborou forte edecisivamente na feroz batalha pela tomada da sempre cobiçada Babilônia, capital doImpério Assírio, cujo imperador era Nabucodonosor III. Na verdade, Zópiro viabilizoudiretamente a queda de Babilônia por meio de um truque único na História do mundo: Fezcom que seus servos o chicoteassem até o sangramento e logo em seguida amputassem seunariz e suas orelhas. Nesse lamentável estado apresentou-se às forças assírias e culpou DarioI por aquele "castigo". Eles acreditaram e o aceitaram em seu meio. Mais do que isso, faceao ódio que Zópiro demonstrava contra Dario, e considerando sua experiência militar,agregaram-no logo ao próprio sistema de defesa das muralhas, encarregando-o da guarda dedois portões que davam acesso à maravilhosa cidade. Nessa privilegiada condição de comandante, ele próprio abriu o acesso às forças de Darioque conquistaram Babilônia em 519 a.C. E em reconhecimento pelo seu feito heróico e de

lealdade fora do comum, Dario I deu-lhe o governo de Babilônia, concessão essa garantida aseus descendentes. Luís de Camões faz menção ao feito heróico de Zópiro com os seguintes versos: ... "Que mais o Persa fez naquela empresa Onde rostos e narizes se cortava? Do que ao grande Dario tanto pesa Que, mil vezes dizendo, suspirava Que mais o seu Zópiro são prezara Que vinte Babilônias que tomara" ("Os Lusiadas", de Camões).

-- *A Escola de Anatomia da cidade de Alexandria: século IV a.C.* Ainda durante a vida de Aristóteles, o grande sábio ateniense, Alexandre, o Grande,praticamente conquistou o mundo ocidental conhecido em sua época e fundou cidades cujoshabitantes falavam grego e adotavam costumes gregos. No ano de 332 a.C. fundou no deltado rio Nilo a cidade de Alexandria, que foi por muitos anos o maior centro de cultura domundo. Alexandria era uma cidade moderna, com suas ruas em forma de xadrez de linhasparalelas, canais subterrâneos para dejetos humanos e para água servida em cada uma delas;duas avenidas principais com mais de 60 metros de largura e o Grande Farol -- uma das setemaravilhas do mundo -- eram algumas das características marcantes da famosa cidade. O sucessor de Alexandre, Ptolomeu Soter, reinou no Egito de 323 até 285 a.C. e foi umgrande protetor e promotor da sabedoria e da cultura. Sob seu reinado foi criada amundialmente famosa Escola de Alexandria. E dentre suas diversas unidades destacou-sedesde logo a Escola de Anatomia, inserida na Academia de Ciências. A medicina egípcia -- que procurava dar cobertura a males que afetavam duramente opovo e as classes privilegiadas, inclusive a problemas de ossos e dos olhos, que levavam amuitas deficiências físicas e sensoriais -- fez rápidos progressos científicos após a instalaçãoda Escola de Anatomia. E nela, dois nomes destacaram-se face à importância de seusestudos para melhor compreensão dos males incapacitantes; Herophilus de Chaludônia eErasistratus de Kéos. - Herophilus foi um anatomista que viveu no século IV a.C. e um dos fundadores da Escolade Anatomia. Um dos primeiros médicos a desenvolverem exames post-mortem, pôdeestudar em muitos pormenores o globo ocular e os males que levavam à cegueira, como acatarata. Dentre seus diversos estudos ressalta-se aquele que demonstra o valor curativo daginástica e dos exercícios físicos. Ele é considerado como o "Pai da Anatomia". - Erasistratus de Kéos, igualmente do século IV a.C. foi também um renomado anatomistae fisiologista, co-fundador da Escola de Anatomia, ao lado de Herophilus. Seus estudoslevaram-no a sugerir que o excesso de sangue no corpo (chamava de "pletora") era a causade muitos males, inclusive de um mal considerado como sagrado, que era a epilepsia. Suaterapêutica preferida era também o exercício físico. É considerado como o "Pai daFisiologia".

-- *Os egípcios sob os olhos críticos de um imperador romano* Adriano (Publius Aelius Hadrianus -- 76 a 138 d.C.) foi imperador de 117 até o ano de suamorte. Durante sua gestão o Império Romano viveu anos de grande desenvolvimento. O imperador viajou durante vários anos por quase todos os quadrantes do vasto Império eno ano 130/131 esteve no Egito não só como imperador mas também como estudioso dosusos e costumes do Egito. E, em uma carta escrita a seu cunhado Serviano, Adriano afirma:

"Tenho estudado bem os egípcios de que me falaste"... "A sua cidade é de tudo abundante, epessoa alguma está ali ociosa, nem mesmo os cegos. Um sopra o vidro; outro faz papel,aqueles tecem; todos se ocupam em algum mister" ("História Universal", de Cantu).

2. Os Hebreus

Analisar os usos e costumes de um povo multimilenar sem conhecer um pouco de suahistória é tarefa inviável. No caso dos hebreus, por exemplo, esse conhecimento torna-semuito importante para nós, face às estreitas ligações que com eles temos mantido através dosséculos. Dentre elas, a mais significativa é o monoteísmo. O povo hebreu adotou-o em meio a umatendência generalizada ao politeísmo, muito típico das culturas mais antigas. Existemautores que chegam a fazer uma relação entre sua adoção pelos hebreus e as tentativas do jácitado faraó egípcio Ikhnaton, que pregava a existência de um deus único a seus adeptos deAkhetaton, aspirantes ao sacerdócio. No entanto, o monoteísmo hebreu vem de épocas bemanteriores à própria migração das várias tribos ao Egito, ou seja, desde o patriarca Abraão. Oculto ao Deus Único e Verdadeiro dos hebreus foi estruturado por Moisés e a própriaelaboração do decálogo leva à sua sustentação. Foi esse mesmo Deus Único (Javé) que setransformou no mais forte elo de ligação das doze tribos do povo hebreu através dos séculos. Como surgiu esse sofrido povo hebreu? Originalmente alguns grupos de famílias nômadesde origem hebraica, provenientes da Mesopotâmia, habitaram a Palestina por muitos séculos.De lá foram tangidas pela escassez de alimentos e de bons pastos para seus rebanhos.Gradativamente dirigiram-se para as férteis terras do delta do rio Nilo, sobejamenteconhecidas pelos mercadores e caravaneiros. E lá entraram quase ao mesmo tempo que ospovos hicsos, também afastados de suas terras pela falta de alimentos. Ali viveram por 430anos, mudando seus hábitos e passando do nomadismo para atividades de um povo maisfixado à terra, mas sob escravidão. Após a expulsão dos hicsos pelos exércitos do faraó, pelo ano de 1570 a.C., os hebreusperderam seu ponto principal de sustentação e começaram a ser considerados comoindesejáveis. E foi provavelmente no reinado de Tutmés I, morto em 1512 a.C., que oshebreus, sob o forte comando de um líder que conhecia muito bem as altas esferasgovernamentais egípcias e seu sistema de funcionamento, Moisés, iniciaram seu êxodo nadireção da Terra Prometida, tão sonhada durante todos os anos de permanência no Egito.Aquele povo buscava um retorno à sua terra original, terra de seus ancestrais. Na verdade, tratava-se de um povo que havia abandonado circunstancialmente onomadismo dos pastores há poucas gerações, dedicando-se à vida agrícola, e que se via decerta forma forçado a voltar a um quase que indesejável nomadismo, na busca da sua terra,onde poderia se instalar em definitivo. A maioria certamente nem imaginava que ficariaperambulando pelo deserto durante mais de 40 anos... Após toda a migração pelo deserto os hebreus tiveram que enfrentar a resistência naturaldaqueles que tinham passado a ocupar seus antigos territórios. As doze tribos uniram-se parafazer frente às dificuldades e combateram os moabitas, os amoritas, os filisteus, entre outros. Após a morte do rei Salomão, dez tribos instalaram-se ao norte da Palestina, com suacapital na Samaria, passando a identificar-se como Reino de Israel. Duas tribos ficaram maisao sul, com sua capital em Jerusalém, constituindo o reino de Judá. Com o passar de muitos séculos os hebreus foram combatidos e dominados pelos assírios,babilônios, persas e pelos macedônios de Alexandre, o Grande. Caíram finalmente sob apossessão romana em 63 a.C.

Todas essas lutas, opções, fugas, migrações forçadas, dominações, desterros econseqüentes sofrimentos fizeram os hebreus viverem por milênios em ambientes rudes esituações por vezes muito cruéis. Essas imensas dificuldades vividas por um povo tãosofrido e sonhador num futuro libertador, o Messias, transparecem em seus códigos de leis ecostumes antigos. Nota-se neles também a absorção de práticas adotadas por outros povoscom os quais foi forçado a se relacionar. E dentre esses usos e costumes, normas e leis queformaram o importante acervo cultural e religioso do povo hebreu, vejamos alguns que serelacionam com pessoas portadoras de deficiências e identifiquemos alguns de seus líderesque viveram sob o impacto de limitações variadas, especialmente da visão e da palavra.

-- *Noé: a primeira pessoa com deficiência?* Noé, o décimo descendente de Adão segundo as palavras do Gênesis, homem honesto (esua arca tão universalmente comemorada), é uma das primeiras figuras muito humanas a nósrepassadas pela Bíblia, em contraposição a outras figuras a ele anteriores, com as de umAdão meio ingênuo, de um Abel sonhador, de um Caim vilão e fratricida e de umMatusalém muito elevado em anos. O nascimento de Noé nos é descrito pela Bíblia (Gênesis) em palavras muito breves.Existe, no entanto, um documento escrito em linguagem "apocalíptica" (repleta de sinais)conhecido como "Livro de Enoc, o Profeta", que parece ter sido escrito um ou dois séculosantes do nascimento de Jesus. É um documento proscrito pela Igreja Católica. Pois bem,nesse livro o nascimento de Noé é relatado em termos mais ou menos místicos e nos dáconta de alguns problemas bem humanos e concretos. "Depois de algum tempo meu filho Matusalém escolheu uma esposa para seu filhoLamec. Ela engravidou e deu à luz uma criança cuja pele era branca como a neve e vermelhacomo uma rosa; cujo cabelo era comprido e alvo como a lã e cujos olhos eram lindos.Quando os abriu iluminou toda a casa, como o sol; a casa toda ficou cheia de luz". Lamec, pai do rebento, ficou intrigado com a aparência do recém-nascido e no fundo daalma deve ter duvidado da fidelidade de sua esposa. Foi procurar seu pai, Matusalém, aquem descreveu o menino, informando dentre outras coisas: ... "parece o fruto dos anjos docéu; é de natureza diferente da nossa, sendo no todo diferente de nós"..."ele parece não sermeu, mas dos anjos". Com as características básicas de um albino, o bebê devia realmente ser muito diferentedos primos, tios, avós e demais parentes, todos morenos e de olhos escuros. E essa diferençadeve ter sido considerada problemática o suficiente para levar o avô Matusalém, já com 369anos de idade, a empreender uma viagem longa e cansativa para procurar seu pai, o patriarcaEnoc, bisavô do recém-nascido, retirado do mundo "nas extremidades da terra". Enoc, o velho patriarca, analisou a questão com a sabedoria de seus muitos anos de vida,com o seu misticismo nato e informado por seus alegados contatos diretos com Deus.Matusalém voltou sabendo que o bebê era, de fato, filho de Lamec, que ele deveria serchamado de Noé (Consolo da Terra) e com isso ser preparado para os eventos queculminariam com o dilúvio, 600 anos após. Ao discutir a eventual origem do albinismo de Noé, Sorsby, a quem devemos os textosacima do "Livro de Enoc, o Profeta", comenta que Lamec e sua esposa eram primos emprimeiro grau, sendo "o tipo comum de consangüinidade em albinismo". O autor citado conclui com certa dose de ironia britânica: "A possibilidade de Noé terherdado o albinismo de um anjo caído não necessita ser considerada com seriedade. Essahipótese levanta consideráveis dificuldades genéticas. Uma delas teria que postular queBT'NWS" - a esposa de Lamec - "e o anjo seriam portadores não-relacionados do gens numa

época em que não deveria estar amplamente espalhado, ou também, alternativamente e aindamenos plausivelmente, que o albinismo é mais dominante nos anjos do que nos homens"("Noah--an Albino", de Sorsby).

-- *As deficiências físicas entre os hebreus* Para os antigos hebreus tanto a doença crônica quanto a deficiência física ou mental, emesmo qualquer deformação por menor que fosse, indicava um certo grau de impureza oude pecado. Tanto isso é verdade que chegou a ser determinado por Moisés no seu livro"Levítico" (conjunto de normas e orientações para os sacerdotes): "O homem de qualquerdas famílias de tua linhagem que tiver deformidade corporal, não oferecerá pães ao seuDeus, nem se aproximará de seu Ministério; se for cego, se coxo, se tiver nariz pequeno ougrande, ou torcido; se tiver um pé quebrado ou a mão; se for corcunda "... No tratado de Bekhorot são citados oito tipos de defeitos, inclusive a falta de orelhas, seutamanho ou formato defeituoso, como impedimento para os serviços do templo. Adiscriminação contra pessoas portadoras de qualquer deficiência era, portanto, aberta emanifesta nas próprias leis. E certos livros da Bíblia dão-nos algumas indicações decostumes ou de ambientes, além de apresentar relatos às vezes elaborados na própria época,sobre os preconceitos contra pessoas e mesmo contra animais defeituosos. Será interessante saber que no verbete "defeito" da Enciclopédia Judaica lemos o seguintetexto: "Defeito (Heb. mum) -- Termo bíblico referente a um defeito físico ou ritual, queexcluía uma pessoa do serviço do templo e tornava um animal impróprio para sersacrificado. Segundo a Bíblia, existem doze defeitos físicos aparentes, qualquer um dosquais desqualifica um sacerdote para o desempenho de suas funções (Lev. 21:16-23), mas a"Halachah" aumenta essa lista para cento e quarenta e dois. Os defeitos físicos quedesqualificam um animal para o sacrifício também são enumerados (Lev. 22:20-25) eaumentados para setenta e três na Lei Rabínica. Um defeito temporário desqualifica umsacerdote para sua função e um animal, para o sacrifício, apenas pelo tempo que durar.Segundo a Lei Rabínica, por exemplo, um defeito físico do marido ou da mulher pode, emcertas circunstâncias, até invalidar um contrato de casamento". O Levítico é contundente quanto aos homens portadores de deficiências físicas, afirmandotaxativamente: "Todo homem da estirpe do sacerdote Arão que tiver qualquer deformidade(corporal), não se aproximará a oferecer hóstias ao Senhor, nem pães ao seu Deus; comerátodavia dos pães que se oferecem no santuário, contanto, porém, que não entre do véu paradentro, nem chegue ao altar, porque tem defeito e não deve contaminar o meu santuário"(Lev. 21:21-23). -- *A cegueira de Isaac por 80 anos* Segundo nos é colocado pelo Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, o grande patriarcahebreu Isaac ficou cego por muitos anos. Talvez seja ele o homem que mais tempo viveunuma situação de deficiência. A bonita e por vezes empolgante história de Isaac indica-nos que se casou com uma lindajovem da Mesopotâmia, Rebeca, que lhe gerou dois filhos do sexo masculino somente 20anos após o casamento: Esaú e Jacó. Eram gêmeos, tendo Esaú nascido em primeiro lugar. Esaú era considerado como primogênito, mas era um homem rude, cheio de pêlos nocorpo e nas mãos, que se tornou caçador, dedicado às atividades do campo e da guerra,enquanto que Jacó era um homem simples e, como diz o Gênesis, "habitante de tendas". Opai preferia seu primogênito pelo que era e pelo que trazia das caçadas; Rebeca dedicava suaatenção e carinho a Jacó, protegendo-o sempre e mal imaginando que ele se transformaria no

maior patriarca hebreu e que um dia receberia de Deus o nome de Israel ("O que luta comDeus"). Embora primogênito, Esaú não titubeou em vender seus direitos a Jacó sem muitosquestionamentos. Mais ou menos à época em que estava com 100 anos de idade Isaac ficou cego. É destaforma que o Gênesis o relata: "Ora, Isaac envelheceu e a vista escureceu--se-lhe e não podiaver" (Gen. 27:1). O mesmo livro conta-nos em pormenores marcantes o verdadeiro golpe tramado porRebeca para obter as bênçãos formais de Isaac ao seu filho Jacó. Para tanto foifundamentalmente importante o fato do velho Isaac estar cego, muito embora se mantivessedesconfiado e estivesse muito atento àquele importante momento da vida de seu clã. Mesmodesconfiado, Isaac acabou dando sua bênção solene a Jacó que se disfarçara com peles decarneiro pelo corpo e nas mãos e vestira as roupas de Esaú. Mais tarde Isaac explicaria a Esaú o engano e daria o veredito final: "Eu o constituí teusenhor e sujeitei à sua servidão todos os seus irmãos; estabeleci-o na posse do trigo e dovinho. Depois disto que te posso eu fazer, meu filho?" Nem o fato de ser cego e de ter-seenganado devido à deficiência visual levou Isaac a mudar sua posição anteriormenteassumida. Isaac viveu até os 180 anos de idade e dessa vida toda passou 80 anos na dependência deRebeca e de seus criados. Não fôra a vivacidade de Rebeca e de Jacó, o abençoado eherdeiro na grande família teria sido Esaú, o homem rude, o caçador, o guerreiro. A históriado povo hebreu teria sido diferente e não teria evoluído da forma como evoluiu sob ainspirada liderança de Jacó.

-- *Moisés e suas sérias dificuldades em falar com clareza* De acordo com afirmações inseridas no livro de sua autoria, o "Êxodo", Moisés foi vítimade um sério e perturbador distúrbio da comunicação. Esse problema, já antigo em sua vida,deve ter-se agravado num momento de forte tensão em que ele, morador no deserto pormuitos anos, decidiu levar seu rebanho ao monte Horeb para pastar. No meio da noite calmaviu uma grande touceira de sarça pegando fogo, mas sem queimar. Aproximando-se comcautela, ouviu uma voz que, segundo suas informações, era do próprio Deus, chamando-opara a grande missão de sua vida: tirar os hebreus do Egito e conduzi-los à Terra Prometida. A reação de Moisés, naquele momento, foi no mínimo cuidadosa. Eis o que estáregistrado no Êxodo: "Perdoa, Senhor, eu não falo bem desde ontem e antes de ontem" -quer dizer, há muitos anos - "e desde que falaste ao teu servo sinto-me com mais dificuldadee mais atrasado em minha língua". Mas Deus contra-argumentou, segundo Moisés, com o seguinte e forte questionamento:"Quem faz a boca do homem? Ou quem faz o mudo e o surdo, o vidente e o cego? Soueu?"... Deus procurou encorajá-lo também por outros meios para enfrentar os desafios que sepunham à sua frente, ou seja, os líderes hebreus e a corte do faraó, chegando a demonstrarque Ele estaria efetivamente ao seu lado. Mesmo assim Moisés continuou cônscio de suas limitações quanto à desenvoltura emfalar, o que levou Deus a indicar uma solução: o irmão de Moisés, Aarão, seria seucompanheiro de todas as horas, tanto para convencer os líderes hebreus quanto para falar aofaraó nas horas aprazadas. Aliás a figura de Aarão foi vital para o sucesso de todo o ambicioso projeto, uma vez queos planos, os comentários, as novas ações e providências, e mesmo os novos argumentos

eram diretamente transmitidos por Deus a Moisés e este os repassava a Aarão. Por sua vezeste não dispensava nunca a carismática presença de Moisés e tudo transmitia ao faraó e suacorte, aos líderes hebreus e ao povo, tendo desempenhado essa missão por muitos anos. Após diversas tentativas frustradas de tirar o povo de uma escravidão cada vez maisopressora, Moisés queixou-se com seu Deus: "Eis que sou incircunciso dos lábios, como meouvirá o faraó?" Deus continuou com a mesma orientação operacional até então adotada,indicando Aarão mais uma vez como seu porta-voz: "Tu lhe dirás tudo o que te mando e elefalará ao faraó". . . Apesar dessa deficiência funcional de ordem bastante grave face ao papel indicado eassumido por Moisés, ele conseguiu sair-se bem da missão, com a ajuda permanente de seuirmão Aarão e foi, sem dúvida, uma das mais fortes figuras de toda a História dos Hebreus.Foi um grande legislador, profeta, mediador dos hebreus e grande líder daquele povo queconseguiu tirar da mais negra escravidão. Conseguiu ele, com a superação de sua deficiênciae com um indispensável carisma pessoal, além de um profundo conhecimento do deserto,realizar a grande proeza de levar mais de meio milhão de hebreus com seus pertences ecriações das terras do Egito até as fronteiras da Terra Prometida a Jacó, onde nunca entrou.

-- *As leis criadas no deserto do Sinai* De acordo com o "Êxodo", durante a épica migração de todo o povo hebreu do Egito paraa Terra Prometida, quando estacionado por anos a fio no sopé do monte Sinai, Moiséselaborou não apenas o Decálogo, mas muitas outras determinações, regulamentos e leisadicionais que se destinavam a pôr um fim às mazelas de um povo volúvel e a tentar ordenarsua vida. Assim é que havia leis e normas a respeito de escravos, de conflitos e suassoluções, de homicídios e seus castigos, de roubos, de seduções, de magia e também arespeito de diversos assuntos de medicina. Moisés elaborou com muito cuidado os preceitos relacionados à higiene e à saúde de seupovo, no cenário grandioso do deserto, lembrando muitas daquelas normas que ele conheciamuito bem do Egito, onde havia sido educado bem próximo à nobreza e aos sacerdotes. Nãoé, portanto, de espantar que apenas sobre a hanseníase haja capítulos inteiros do "Levítico".E exatamente como no Egito e outros países da Mesopotâmia ele colocava aresponsabilidade da medicina sob os cuidados dos sacerdotes, que eram os Levitas. Na legislação dos hebreus daquelas eras violentas e muito problemáticas nas quais erafundamental manter o povo unido, mas também disciplinado, apenas argumentosrelacionados à vontade expressa de Deus ("temerás o Senhor teu Deus, porque eu sou oSenhor") não surtiram os efeitos esperados. A lei de talião, reinante em alguns países deentão, foi também introduzida pelo líder maior, Moisés, que certamente já conhecia oCódigo de Hamurabi. Algumas dessas severas normas lavradas em pedra muitos anos antesde Moisés existir passaram para o código dos hebreus quase que com as mesmas palavras.

-- *O Código de Hamurabi: severidade vizinha dos hebreus* No Museu do Louvre, em Paris, existe o original do Código de Hamurabi. Trata-se deuma pequena coluna de 2,25 m de altura, de cor negra, em forma de cone, e toda escrita emcaracteres cuneiformes. Essa obra está dividida em 46 pequenas colunas em toda a sua volta,com 3.600 linhas escritas. Bem ao alto, num baixo-relevo bastante claro, o grande monarcada Babilônia apresenta-se em atitude de adoração diante de Shamash, o deus do sol e dasleis. O texto, segundo seus estudiosos, não apresenta nenhuma divisão a não ser esta: suaprimeira parte relaciona-se a propriedades e sua segunda parte a pessoas. É a coleção maisantiga de leis que se conhece -- bem mais antiga que o Decálogo de Moisés e que as normas

por ele traçadas no "Levítico", com o qual existem pontos de similaridade eventual. Hásemelhanças também no "Deuteronômio". Vejamos alguns pontos que indicam, comopunição, amputações. "Eu, Hamurabi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis, que conquistei as cidades doEufrates, introduzi a verdade e a eqüidade por todo o país e dei prosperidade ao povo. Dehoje em diante"..."Se alguém apagar a marca de ferro em brasa de um escravo, terá seusdedos cortados"..."Se um médico operar um patrício com faca de bronze e causou-lhe amorte, ou abriu-lhe a órbita do olho e causou-lhe a destruição, terá sua mão cortada"... ..."Seum escravo disser ao seu dono: "Tu não és meu Senhor", seu senhor provará que o é ecortará sua orelha"..."Se um homem bater em seu pai, terá as mãos cortadas"... ..."Um olhopor um olho, um dente por um dente. Trata-se de justiça sem piedade. Se um homem tira umolho de um patrício, também seu olho será tirado; se ele quebrou o osso de um patrício, seubraço será quebrado. As classes inferiores da sociedade também merecem compensações. Seele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele deverá pagar uma miná de prata; se foide um escravo, pagará metade de seu preço"... No "Levítico" há textos e palavras tão semelhantes que parecem pura cópia. Eis um deles:"Se alguém ferir o olho de seu escravo ou de sua escrava e os deixar cegos de um olho,deixa-los-á ir livres pelo olho que lhes tirou"..."O que ferir qualquer de seus compatriotas,assim como fez, assim se lhe fará a ele; quebradura por quebradura, olho por olho, dente pordente; qual for o mal que tiver feito, tal será o que há de sofrer". A mesma linha depensamentos encontramos no "Êxodo": "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pépor pé"... Para nós torna-se óbvio que tanto entre os babilônios como entre os antigos hebreussempre houve muitas pessoas marcadas por crimes cometidos. No entanto, nem sempre adeficiência ou deformação física ou sensorial correspondiam a uma demonstração de castigopor feitos delituosos ou à "troca" por males cometidos a outrem. Reis, generais, líderes,soldados eram por vezes castigados por combaterem os grandes poderosos e levavamconsigo pelo resto de seus dias as marcas impostas pelos vencedores, como aconteceu comSedecias.

-- *Sedecias, rei de Judá: cego por Nabucodonosor* Sedecias foi o último rei de Judá. Além de mencionado na Biblia (Segundo Livro dos Reise Jeremias), Sedecias é também citado em diversos documentos e crônicas da Babilônia querelatam os principais acontecimentos políticos, religiosos e guerreiros dos séculos VI e VIIa.C. sob o ponto de vista babilônico. Segundo todos esses documentos e relatos,Nabucodonosor, famoso rei da Babilônia, colocou Sedecias no trono do reino de Judá, comosubstituto ao destronado Joaquim, refém mantido na capital do reino babilônico. Apesar de ter sido indicado e empossado por Nabucodonosor, Sedecias logo começou aconspirar contra o poderoso rei, fazendo contatos pessoais com diversos monarcas dosminúsculos países e também com o faraó egípcio. Sedecias tinha apenas 21 anos de idade aoiniciar seu reinado e sua intenção era empreender uma guerra geral contra o monarcaconquistador. No entanto, no nono ano do reinado de Sedecias, Nabucodonosor, bem informado daspequenas conspirações e traições, tomou providências enérgicas. Mandou todo o seuexército cercar Jerusalém e lá se plantou durante dois anos. Em 586 a.C. o exército sitianteconseguiu abrir uma brecha na muralha externa da cidade e o povo, já sem pão por muitotempo, sofreu todo o impacto da fúria dos soldados invasores que buscavam tesouros, queincendiavam, que matavam e que espalhavam o pânico para todos os lados. Sedecias, ciente

do perigo, fugiu pelos jardins dos fundos do palácio, mas foi preso, e levado à presença dotemido rei da Babilônia, em Riblah, ao lado de Jerusalém. Seus filhos ainda novos forammortos em sua presença. E segundo todos os documentos,Sedecias teve seus olhos vazados ali mesmo. E quando o enorme exército movimentou-se devolta a Babilônia, levando as últimas levas de prisioneiros de Judá, Sedecias, carregado deferros, cego e amargurado, empreendeu a mesma caminhada. Terminou seus dias numaprisão da Babilônia. O Livro de Jeremias assim relata o infortúnio de Sedecias: "E degolou o rei da Babilôniaos filhos de Sedecias ante seus olhos; e matou também a todos os príncipes de Judá emRiblah. E tirou os olhos a Sedecias, e o carregou de ferros e o rei da Babilônia o conduziu aBabilônia e o pôs na casa do cárcere até ao dia de sua morte" ("Jeremias", 52:10/11).

-- *O preço da paz: um olho de cada habitante* Os Amonitas, povo habitante a leste do rio Jordão, foram contínuos inimigos dos hebreus(na verdade aqueles que compunham as tribos de Israel e não as de Judá) em épocas bemanteriores aos anos de problemas com o cativeiro da Babilônia, ou seja, em épocas quebeiram a um milênio antes da Era Cristã. O Primeiro Livro dos Reis conta-nos que NajashAmonita, ao sitiar a vila de Yabesh-Guilead, recebeu uma preocupada proposta dapopulação sitiada, para não ser dizimada. Os anciãos da vila foram os portadores da seguintemensagem: "Toma-nos como aliados e nós te serviremos"... Najash Amonita, inimigo cruel ao extremo, respondeu: "A aliança que eu farei convoscoserá tirar-vos a todos o olho direito e tornar-vos o opróbio de todo o Israel". Os anciãos da vila sitiada conseguiram, no entanto, o apoio de um famoso herói da Bíblia,que foi Saul. Ele conseguiu juntar, na base de violentas ameaças àqueles que não aderissem,um exército de trezentos mil homens das tribos próximas de Israel e mais trinta mil dastribos de Judá. Com esse impressionante contingente bateu decisivamente o exército inimigoque apavorava o pacato povo de Yabesh-Guilead. Já anteriormente ungido por Samuel comoprimeiro rei de Israel, foi nessa oportunidade que Saul foi confirmado como tal.

-- *Mais normas e o papel do médico* Ao analisar as muitas normas que orientaram a vida do povo hebreu pelos seus muitosséculos de existência, notaremos que gradativamente elas foram entrando em pormenoresbastante indicativos das muitas ocorrências que levavam a necessidade de sua criação. NoTratado de Kidushin (sétimo e último tratado da Ordem de Mishnah Nashin, do Talmud)encontramos o seguinte trecho que nos é transmitido por Heiman: "Se alguém pegar umhomem e lhe soprar a orelha, daí resultando a surdez, o agressor será punido de acordo coma lei. Da mesma forma, quem golpear seu pai na orelha e assim provocar a surdez, serácondenado à morte, pois em conseqüência do ferimento, uma gota de sangue penetrou nointerior da orelha" (Apud Heiman). Poucos são os documentos da antiga cultura dos hebreus que nos falam sobre o progressoda medicina. Dentre eles, cumpre que façamos menção a alguns livros da Bíblia, ao Talmude aos escritos de Flávio Josefo, em especial na sua "História dos Hebreus”. Além de material escrito, alguns líderes e homens especiais que sempre tiveram influênciasobre o povo hebreu também influenciaram quanto ao desenvolvimento de sua medicina.Esses foram os casos de alguns reis e de diversos profetas. Ao que parece pelos relatoscontidos na Bíblia, os profetas de Israel não eram meros homens que previamacontecimentos (em certas épocas conhecidos como "videntes", conforme nos é contado no"Primeiro Livro dos Reis" ao relatar a história de Saul), mas personalidades que se

preparavam muito bem para sua missão, estudando muito e tornando-se verdadeiros sábios,e que, exatamente por esse motivo e pela sua bondade, desfrutavam da total confiança dopovo hebreu. E com a fé que despertavam, chegavam mesmo a realizar milagres. Muitos dos conselhos e dos preceitos deixados por homens dessa natureza levaram o povoa moderar seu modo de agir, a alterar seus costumes e a respeitar tudo aquilo que julgava virde Deus, como, por exemplo, a importância da medicina e do papel do médico para o povohebreu. Segundo o "Livro da Sabedoria" de Sirac, muito mais conhecido como"Eclesiástico", era bem alto o conceito dos médicos na cultura hebréia. Lá encontramosafirmações como esta: "Honra o médico, porque ele é necessário; porque o Altíssimo foiquem o criou. Porque toda a medicina vem de Deus e receberá donativo dos reis. A ciênciado médico exaltará sua cabeça e será louvado na presença dos grandes". Esse mesmo conceito, encontradiço em diversas culturas, prevalecia entre os hebreus peloano 200 a.C., uma vez que essa é a idade presumível do livro "Eclesiástico”.

-- *As causas da deficiências entre os hebreus* Além das deficiências ou das deformações consideradas como conseqüências diretas depecados ou de crimes, tais como a cegueira, a surdez, a paralisia, por exemplo, entre oshebreus havia também aquelas provenientes de acidentes, de agressões, de participação emlutas armadas contra inimigos do povo, e também de punições previstas em lei. Haviatambém as deficiências que eram marcas da própria escravidão: orelha ou nariz cortado,dedos ou a mão decepados, olhos vazados. Vejamos alguns exemplos: O livro da Bíblia conhecido como "Deuteronômio" corresponde a uma espécie derepetição ou reformulação de leis e normas para o povo. Na verdade significa "segunda lei".Moisés foi seu autor, nele repetindo e elaborando melhor depois de muitos anos do Decálogoe do Levítico, os preceitos contidos tanto no "Êxodo" quanto no próprio livro de normaspara os sacerdotes, ou seja, o "Levítico", também de sua autoria. O "Deuteronômio" é umaespécie de testamento do velho Moisés às bordas da Terra Prometida. Pois bem, nesse livroencontramos um castigo severo (amputação da mão) para um procedimento consideradoaltamente pecaminoso por parte da mulher: "Se se levantar alguma pendência entre doishomens e um começar renhir com o outro, e a mulher de um querendo livrar seu marido damão do mais forte, estender a mão e lhe pegar pelas partes vergonhosas, cortar-lhe-ás a mão,e não te moverás de compaixão alguma por ela" (Deut. 25:11/12). Os castigos ou penas por faltas contra as leis de Deus e mesmo de Israel eram por vezesmuito cruéis e de caráter extremo. Eles correspondiam a alguma necessidade da própriaépoca em que foram estabelecidos. Segundo o próprio Moisés que elaborou muitos deles, "afim de que todo Israel, ouvindo isto, tema e não torne mais a fazer coisa semelhante a esta"(Deut. 13:11)... ou então, "o povo da cidade a apedrejará e ela morrerá, para que tires o maldo meio de vós e todo Israel, ouvindo isto, tema" (Deut. 21 :21). Maldições sem fim são indicadas para os que não seguiam os preceitos e uma delas eraesta: "O Senhor te fira de loucura e de cegueira e de frenesi, de sorte que andes àsapalpadelas nas trevas e não acertes nos teus caminhos" (Deut. 28:28/29). O Livro dos Juízes, da Bíblia, é uma obra que procurava levar o povo hebreu a melhorconhecer seus grandes heróis, tais como Otoniel, Aod, Barac, Débora, Gedeão, Jefté eSansão. Eles procuraram libertar o povo da opressão constante dos inimigos e tentaram fazercom que esse mesmo povo observasse as leis estabelecidas. É o Livro dos Juízes que nosrelata fatos que demonstram claramente que, na luta pela segurança do povo hebreu, àsvezes era indispensável "passar a fio de espada" todos os homens aprisionados. No entanto,existe o relato de um caso de evidente "desencorajamento" permanente aos ataques aos

hebreus, num severo castigo aplicado a um líder cananeu por uma das tribos de Judá queatacara Bezec e lá matara 10.000 homens. Nesse relato menciona-se, no entanto, a fuga dolíder Adonibezec. Mas, "indo eles ao seu alcance, apanharam-no e cortaram-lhe asextremidades das mãos e dos pés. E Adonibezec disse: Setenta reis a quem tinham sidocortadas as extremidades das mãos e dos pés, apanhavam debaixo de minha mesa os sobejosda comida; como eu fiz, assim Deus me fez" (Juízes, 16:21). Conforme vimos anteriormente, o vazamento dos olhos era um castigo severo, um tantoem moda naquelas regiões. Existe um baixo-relevo da cultura assíria, muito conhecido, quenos mostra um soberano vazando os olhos de três prisioneiros, um deles ajoelhado e osoutros dois, de pé, puxados pelo próprio rei para perto de si por meio de um fio preso aoslábios dos infelizes por argolas. Esse castigo desencorajava as fugas, sem causar maioreslimitações ou dificuldades para trabalhos pesados. Foi o que sucedeu com um dosfascinantes heróis da Bíblia: Sansão. Conforme é ali relatado, "os Filisteus, tendo-o tomado, tiraram-lhe logo os olhos elevaram-no a Gaza, atado com cadeias e, encerrando-o no cárcere, o fizeram girar a mó"(Juízes, 16:21). Não seria exagerado depreender que da mesma forma eram tratados os mais perigosos oumais fortes inimigos e prisioneiros de guerra em muitos dos pequenos ou dos grandes reinosda antigüidade. Depois de marcados pela mutilação estigmatizadora e cerceadora demovimentos, eram colocados a trabalhar em serviços pesados, dos quais não conseguiamjamais se afastar. -- *A medicina dos hebreus* Conforme nossos comentários anteriores, pouco nos é relatado pelos diversos livros daBíblia a respeito da medicina. Sabemos, sim, que a cirurgia ocorria basicamente para acircunstância da circuncisão, com uma lâmina de sílex. Outras informações são quaseinexistentes. Quanto ao tratamento de problemas ortopédicos, sempre houve cuidados caseiros combons resultados. Há uma citação de Ezequiel que mostra ter havido na cultura hebréia antigaplenos conhecimentos dos tratamentos indispensáveis para pernas ou braços quebrados. Dizele em seu quarto oráculo contra o Egito: "Quebrei o braço do Faraó, rei do Egito, e eis quenão foi tratado para se lhe restituir a saúde, nem atado com panos, nem embrulhado comtoalhas, para que, tendo recobrado as forças, pudesse manejar a espada" (Ezequiel, 30 :21).

-- *Tobias fica cego e recupera a visão: caso de leucoma?* Um dos juízes da tribo de Nephtali, Tobias viveu no século VII a.C. e sua história nos énarrada por um dos livros da Bíblia. Trata-se de uma verdadeira jóia de delicadeza e de arteque chegou até os nossos dias graças aos trabalhos de São Jerônimo . Tobias era um dos muitos hebreus desterrados em Nínive. Ele procurava dedicar todos osseus dias à misericórdia, a fim de minorar os sofrimentos dos seus compatriotas. Em certa ocasião, cansado de cavar para enterrar secretamente os mortos, "deitou-se juntoduma parede e adormeceu e, enquanto dormia, caiu-lhe dum ninho de andorinhas um poucode esterco quente sobre os olhos e ficou cego" (Tobias, 2:1 0/1 1 ), Temendo estar próxima sua morte, mandou seu filho que também se chamava Tobiasresgatar o pagamento de uma dívida na cidade de Ragés, no reino dos Medos. Em suaviagem, ao lado de Azarias, que na verdade era o anjo Rafael disfarçado, Tobias aprendeudele que o fel de peixe poderia ser usado com sucesso como ingrediente para remédios.

Segundo a narrativa, "e o fel é bom para untar os olhos que tem algumas névoas, e sararão"(Tobias, 6:9). Em sua volta, tendo guardado o fel de um enorme peixe que o havia atacado quando datravessia de um rio, Tobias tomou-o e fez a tentativa que lhe havia sido indicada: untou osolhos do pai. Segundo a Bíblia, esperou meia hora. E "começou a sair de seus olhos umabelida" - que é uma espécie de membrana opaca sobre a pupila - "como a película de umovo. E Tobias, pegando nela, tirou-a de seus olhos, e imediatamente recobrou a vista"(Tobias, 11:13 a 15). O velho Tobias viveu até a idade de 102 anos sem maiores problemas com a vista.

-- *Os cegos na cultura hebréia antiga* O "Levítico", nas suas normas e leis relativas à santidade, à caridade e à justiça,recomendava a todo o povo hebreu não apenas respeitar os pais, guardar o sábado, evitar aidolatria, a vingança, o ódio, o furto, mas também que fossem respeitados os surdos e oscegos. Vejamos o que nos diz Moisés em suas orientações: "Não amaldiçoarás o surdo, nemporás tropeços diante do cego, mas temerás o Senhor teu Deus, porque eu sou o Senhor"(Lev. 19:14). Por sua vez, o "Deuteronômio" recomendava aos hebreus que garantissem a proteção e obom tratamento aos cegos, colocando essas atitudes positivas diretamente ao lado e em pé deigualdade com o amor aos pais, a certeza da justiça, a condenação da idolatria, a garantia dapropriedade e algumas outras práticas relacionadas a sexo e também a traições. Diz ochamado Livro da Segunda Lei de Moisés, que é o “Deuteronômio”: “Maldito o que faz ocego errar num caminho: e todo o povo dirá: Assim seja” (Deut. 27:18). Todavia será interessante saber que, apesar dessa forte ênfase nas várias normas deconduta do povo hebreu, o cego viveu praticamente por muitos séculos em absolutadegradação social, que só começou a ser combatida sob o reinado do príncipe Judah-ha-Nasin (135a 217 d.C.).

Cumpre notar que a literatura sobre o Talmud ((O ensinamento de toda a cultura hebréiatem alcançado todas as gerações por dois canais: a lei escrita (a Bíblia) e a oral (a Tradição).Esta foi aos poucos compilada pelos sábios e desse esforço surgiu o Talmud, com seus doislivros principais: O Mishnah (aprendizado) e o Guemara (esclarecimento).)) fala de quandoem quando sobre a sabedoria de alguns mestrês e mesmo de alguns juízes cegos. Dentre aslimitações de atuação a eles impostas, não lhes era permitido ler o Torá (Gênesis, Êxodo,Levítico, Números e Deuteronômio) nem oficiar serviços religiosos públicos. Não tinhamtambém nenhuma obrigação de ir até Jerusalém para suas orações, nem de cumprirobrigações religiosas que demandassem o uso da visão. O Talmud referia-se a esses sábiosmestrês e juízes cegos por meio de um apelido afetuoso, ou seja, de "saguí Nehor" (ricos emluz, ou videntes).

-- *Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel* Um parente de Jesus foi vítima de uma deficiência passageira. Segundo o EvangelistaLucas, na verdade foi por castigo, corroborando a idéia de que as doenças e as deficiênciasestavam fortemente relacionadas a castigos ou penitências para pagamento de faltas oupecados. Zacarias era sacerdote e casado com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Eram os doisconsiderados como justos e harmoniosos em seu modo de viver e não tinham filhos, poisIsabel era estéril. Lucas conta-nos: Sucedeu que, exercendo Zacarias diante de Deus o cargode sacerdote na ordem de sua turma, tocou-lhe por sorte, segundo o costume que havia entre

os sacerdotes, entrar no templo do Senhor e oferecer o incenso; e toda a multidão do povoestava fazendo oração na parte de fora, à hora do incenso. E apareceu-lhe o anjo do Senhor,posto em pé ao lado direito do altar do incenso". Zacarias ficou assustado e não sabia o que fazer. O anjo tranqüilizou o velho sacerdote eanunciou que sua esposa engravidaria. Ele reagiu como qualquer outro homem reagiria:duvidou. E perguntou o óbvio: "Como conhecerei que isto acontecerá? Porque eu sou velhoe minha mulher está avançada em anos". O anjo identificou-se como Gabriel, "que assistodiante de Deus; fui enviado para te falar e te dar esta boa nova. E eis que ficarás mudo e nãopoderás falar até o dia em que estas coisas sucedam, visto que não acreditaste nas minhaspalavras, que se hão - de cumprir a seu tempo". Nove meses depois, nascido João Batista - primo de Jesus - Zacarias indicou numatabuinha o nome que o menino deveria ter e imediatamente voltou a falar.

-- *As pessoas deficientes nos Evangelhos* Se continuarmos a folhear esse documento sagrado que é a Bíblia, encontraremos tambémas narrativas relacionadas ao Novo Testamento que retratam uma Judéia muito viva, muitoreal. Detectamos costumes, atitudes e encontramos diversas considerações sobre pessoasdeficientes ou com doenças muito sérias. Percebemos também repetidamente a crençaarraigada no povo de que a maioria dos males de então era tida como conseqüência dainterferência de maus espíritos ou como um castigo para pagamento de pecados antigos. Passando os olhos por alguns episódios anotamos frases que eram destinadas a leitoresdaquelas épocas e que certamente aceitavam os posicionamentos expostos. Uma dessasfrases que nos chama a atenção é esta: "E eis que veio uma mulher que estava possessa deum espírito que a tinha doente há 18 anos; e andava encurvada e não podia absolutamenteolhar para cima". Essas palavras são de Lucas, o Evangelista médico, mas que naturalmentemedia as palavras face ao público, ao povo que precisava ler suas páginas ou interpretar osfatos que pretendia repassar. No entanto, na mesma passagem, ele coloca na boca de Jesuspalavras que demonstram um enfoque diferente: "Mulher, estás livre de tua enfermidade" ...Nem demônio, nem castigo ... apenas enfermidade. No Evangelho escrito por Mateus encontramos estas frases: "E tendo-se estes retirado,apresentaram-lhe um homem mudo, possesso do demônio, E, expulso o demônio, falou omudo" . . . Esse mesmo Evangelista escreveu: "Quando o espírito imundo saiu de um homem, andapor lugares secos, buscando repouso, e não encontra. Então diz: Voltarei para minha casa deonde saí" ... "Então vai e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele e, entrando,habitam ali; e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro". Na Judéia Antiga, inclusive no tempo de Jesus Cristo, o destino dos deficientes eraesmolar para conseguir sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas maisvariadas causas, ficavam expostos nos caminhos, ruas e praças. E pelo que se lê, deviam serapenas tolerados. Depreendemos isso das parábolas de Jesus, ou mesmo das atitudes dopróprio Jesus para com eles, demonstrando que estava errada a forma como eram tratados,mesmo sem expressar esse modo de pensar. Segundo o Evangelista Lucas, o ambiente de exposição da pessoa para esmolar era umfato concreto e percebemos isso em sua afirmativa: "Vai já pelas praças e pelas ruas dacidade e traze cá os pobres e os aleijados, e cegos e coxos". Mateus corrobora a impressãoao dizer: "E eis que dois cegos que estavam sentados junto à estrada"... Como não poderia deixar de ser, a movimentação externa ou a simples mudança de lugarde um caso mais sério de paralisia ou de enfermidade grave sempre era dramaticamente mais

difícil. Podemos imaginar a aflição de parentes e amigos desses doentes ou deficientes que,ao saber da existência ou da presença de um rabino miraculoso nos arredores, procuravamalcançá-lo por todos os meios. O Evangelista Marcos, por exemplo, conta-nos: "E foram tercom ele conduzindo um paralítico que era transportado por quatro. E como não pudessemapresentar-lhe por causa da multidão, descobriram o teto pela parte de baixo da qual Jesusestava e, tendo feito uma abertura, arriaram o leito em que jazia o paralítico"... Elgood, estudioso dos usos e costumes dos povos do Oriente Médio, afirma que amedicina contida nos Evangelhos e mesmo nos Atos dos Apóstolos aceitava basicamentetrês tipos de causas para as doenças e para as muitas limitações e deficiências que afligiamos homens: o castigo pelos pecados, a interferência dos maus espíritos e finalmente as forçasmás da natureza, contra os quais o poder divino era o único remédio - ou pelo menos eraassim considerado. Eis alguns pontos citados nos Evangelhos que ilustram essa assertiva: João 5:14 -- "Depois, achou-o Jesus no templo e disse-lhe: Eis-te curado! Não torna apecar para que não te suceda algo pior". João 9:2 -- "Mestre, quem pecou: este homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesusrespondeu: Nem ele nem seus pais pecaram mas foi para se manifestarem nele as obras deDeus". Lucas 9:38-39 -- "Mestre, rogo-te para que olhe para meu filho, porque é o único que eutenho e um espírito imundo se apodera dele e subitamente dá gritos e o lança por terra e oagita com violência, fazendo-o espumar".

-- *Os milagres de Jesus e as pessoas deficientes* Dentre os muitos documentos antigos que nos falam sobre deficiências ou sobre pessoasdeficientes, os mais explícitos são os Evangelhos. Eles mostram, por exemplo, que o povohebreu -- e com ele quase todos os povos ao seu redor – estava acostumado não apenas àexistência das doenças e das deficiências que levavam o homem a uma vida de quase certaindigência ou total dependência, mas também à busca de soluções naturais e sobrenaturais,quando possível, para sua eliminação. Em Jerusalém dos tempos de Jesus Cristo, por exemplo, havia bem ao lado do templo umapiscina ou tanque destinado à purificação de animais que eram sacrificados e que era poresse mesmo motivo conhecida como "piscina probática" (do grego "probatikón", ou seja,carneiro ou relativo a ovinos em geral), ou como Betsaida na língua hebraica. As suas bordas, a despeito dos objetivos principais, mantinha-se verdadeira multidão deenfermos, coxos, cegos e paralíticos porque, segundo todos acreditavam, várias vezes ao diaum anjo de Deus ali descia para "movimentar as águas". Era, como se pode bem imaginar,um momento muito esperado, muito tenso, pois apenas o primeiro que ali se banhasse teriaseus males curados. Foi exatamente nesse ambiente que Jesus realizou um dos seus famosos milagres,beneficiando um homem paralítico há 38 anos e que nunca havia conseguido ser o primeiroa chegar às águas de Betsaida por não ter pessoa alguma que o ajudasse. Esse foi um dos muitos milagres a nós transmitidos pelos evangelistas. Segundo seusrelatos, Jesus fez mais de 40 milagres notórios. Deles todos, pelo menos 21 são relacionadosa pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais, a saber: - Cego de nascimento - João 9:1-7 - Cego em Betsaida - Marcos 8:22-26 - Cego Bartimeu de Jericó - Marcos 10:46 e Lucas 8:35-43 - Dois cegos de Jericó - Mateus 20:29-34

- Dois cegos de Cafarnaum - Mateus 9:27-31 - Cegos na Galiléia - Mateus 15:29-31 - Cego e mudo (endemoniado?) - Mateus 12:22 - Mudo de Cafarnaum - Mateus 9:32-34 - Mudos na Galiléia - Mateus 15:29-31 - Surdo-mudo na Decápole - Marcos 7:31-37 - Surdo-mudo de Cesaréia - Marcos 9:16-26 e Lucas 9:37-43 - Coxos na Galiléia - Mateus 15:29-31 - Leprosos de Cafarnaum - Mateus 8:1-4, Marcos 1 :40-45e Lucas 5:12-14 - 10 leprosos - Lucas 1 7 :1 3-1 9 - Hidrópico - Lucas 14:1-6 - Mulher com espinha curvada - Lucas 13:11-13 - Homem de "mão seca" - Mateus 12:9-13, Marcos 3:1-6 e Lucas 6:6-11 - Paralítico servo do centurião - Mateus 8:5-13 - Paralítico em Betsaida - João 5 :5-9 - Paralítico de Cafarnaum - Mateus 9:1-8, Marcos 2:1-12 e Lucas 5:17-26 - Outros deficientes na Galiléia - Mateus 15:29-31

-- *A cegueira de São Paulo, Apóstolo* A conversão de São Paulo tem sido considerada por todos os cristãos como um fatodecisivo na história do Cristianismo. Ela teve seu início com um evento universalmenteconhecido que o deixou cego por três dias, deles emergindo como um novo homem. Saulo havia sido por diversos anos um fervoroso fariseu, além de um convictoperseguidor dos adeptos da nova seita do Nazareno que se afirmara Filho de Deus,considerada então uma verdadeira heresia na Sinagoga Judaica. Na verdade, tão envolvidoestava Saulo que, quando o primeiro mártir da incipiente religião -- Santo Estêvão -- foiapedrejado, esteve não só presente como também indiretamente ajudou na execução da pena,segurando os mantos dos apedrejadores para melhor executarem sua tarefa. Diversos médicos e estudiosos escreveram a respeito do fato que modificou drasticamentea vida de Saulo de Tarso. Alguns acham que ele foi vitima de um ataque epilético, podendoa intensa luz por ele relatada ter sido a aura que antecede esses eventos médicos. Há outrosque especulam em torno de problemas relacionados a uma artrite ou mesmo malária. O que parece certo é que, intervenção miraculosa à parte, Saulo foi severamente atingido,física e psicologicamente. Para uma análise objetiva do que sucedeu, é preciso conhecer umpouco as circunstâncias por ele vividas. Em primeiro lugar é básico considerar que adistancia percorrida por Saulo, entre Jerusalém e Damasco, é de pouco mais ou menos 200quilômetros, quase toda ela coberta por um deserto de areia branca e de natureza inóspita.Essa viagem, numa caravana de camelos, demandava de seis a sete dias de marcha, muitoembora estejamos acostumados a visualizar um Saulo de Tarso caindo de fogoso cavalo, oque não corresponde à realidade daqueles tempos. A caravana cruzou o deserto pelas colinasda Samaria, sob sol ardente e muito brilhante, num calor fortíssimo. Ao final dessa cansativaviagem, é natural que Saulo estivesse preocupado com sua missão, a ele confiada pelo sumosacerdote através de cartas às sinagogas de Damasco. Cansado e tenso, ele aguardava osprimeiros sinais da paisagem de seu destino quando, segundo seus relatos, viu uma luz muitoforte e caiu ao chão, ouvindo uma voz que se identificava como de Jesus Nazareno. Cego ao levantar-se, Saulo teve que ser "levado pela mão" à cidade à busca de ajuda, poisestava doente e não podia nem beber nem comer por três dias.

Virtualmente fechado em ambiente escuro por todo esse tempo, devido às dores nos olhos,com certeza muito abalado com sua cegueira que provavelmente associava a um castigodivino, como era costumeiro no seio do povo hebreu, Saulo foi inicialmente atendido porsolícitos adeptos da "seita do Nazareno". Pode ter parecido a ele um verdadeiro milagrequando Ananias entrou, conversou com ele, tocou-o e ele recuperou sua visão. O que deve ter acontecido com os olhos de Saulo de Tarso? Autores categorizados achamque sua cegueira temporária foi causada pelos efeitos nocivos de muita irradiação solar sobreos olhos, causando alguma queimadura da córnea por raios ultravioletas. Esse tipo decegueira acontece devido aos reflexos do sol na areia branca do deserto ou aos reflexos naneve. "O efeito no olho é cumulativo e Paulo deve ter recebido mais do que suficiente radiação,especialmente quando olhou para o céu. Este é um efeito biótico e a recuperação do estágioagudo requer vários dias de convalescença. A vitima fica temporariamente cega, não podeabrir seus olhos e sofre com muitas dores e ansiedade. Fica inutilizada e é compelida amanter-se no leito. Todavia, como o epitélio se regenera com rapidez, a sensível córnea nuavolta a ser coberta e então o paciente vive uma brusca e dramática recuperação como viveuPaulo" ("The Blindness of Saint Paul", de Manchester e Manchester). São Paulo viveu todo o resto de sua vida com algumas seqüelas do mal e isso éperceptível ao analista cuidadoso por alguns sinais, um dos quais seria sua própriainformação quanto à sua letra provavelmente maior ou diferente do que a costumeira:"Vejam com que letras eu lhes escrevi com minhas mãos" (in Epistola aos Gálatas) e "Minhasaudação da mão de Paulo: que é minha marca em toda carta. Assim escrevo" (in Eprstolaaos Tessalonicenses (2a ), ao final). A tradução corresponde às palavras na Vulgata, emlatim. São Paulo tinha algumas dificuldades para ler, escrever e mesmo reconhecer pessoas acerta distância, o que talvez indique grave redução de sua acuidade visual. Vejamos, porexemplo, o fato narrado nos Atos dos Apóstolos (23:1 a 6): Levado diante do Sinédrio paraesclarecer graves acusações feitas contra ele, Paulo olhou o aglomerado de sacerdotes e nãodistinguiu a presença muito importante do sumo sacerdote Ananias. E foi consideradoirreverente pela mais alta autoridade da Sinagoga Judaica, tanto assim que recebeu umabofetada na boca tão logo começou a falar, por ordem de Ananias. Paulo reagiu e qualificou-o de "parede caída". Na confusão estabelecida, ele foi questionado se estava maldizendo osumo sacerdote. Neste ponto ele afirmou:"Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote"... Parece também evidente que São Paulo foi vítima de um mal crônico e desagradável que,em suas cartas, chama de "espinho da carne". Relembremos uma pequena frase sua inseridana carta aos cristãos de Gálata, com os quais convivera bastante: "Sabeis que ao princípiovos preguei o Evangelho com enfermidade na carne: e sendo eu a vossa provação na minhacarne, vós não me desprezastes nem rejeitastes" (Gal. 4:13/14). A tradução aqui tambémleva em conta a Vulgata latina. Para os cristãos o fato concreto é que, logo após o evento que levou Saulo de Tarso a trêsdias de cegueira, ele mudou drasticamente e foi um dos maiores esteios da Cristandade.Conviveu o resto de seus dias com alguma deficiência parcial da visão e certamente comalgum outro mal (epilepsia, malária, artrite, não se sabe) indefinido e marcante que nãodiminuiu em nada o seu entusiasmo na transmissão da doutrina de Cristo, mas que acabouinfluenciando seus pensamentos e suas pregações.

3. Os Gregos

Em grande parte devido à inexistência de bases científicas para melhor compreender avida e a natureza, o homem grego antigo sentia-se envolvido por muita fantasia e por umainfinidade de pequenas crenças e, conseqüentemente por centenas de deidades. A variedadede deuses e deusas que habitavam o portentoso e, nas palavras de Homero, "nevosoOlimpo", ou que o haviam abandonado em busca de mais tranqüilidade e da proximidadedos ambientes a eles dedicados, é bem indicativo desse estado de espírito. Na fantásticamitologia de tantos deuses de vários escalões e de tantos seres fantasiosos, o homem grego,além de dedicar altares a um Deus Desconhecido -- conforme comenta o Apóstolo Paulo --acabou não se esquecendo de um ser portentoso prejudicado por uma deficiência física séria,bastante competente em seus misteres, mas que sempre foi de certa maneira ridicularizado,além de envolvido pela estrondosa risada da maioria de seus fisicamente magníficos colegasdo Olimpo. Tratava-se de Hefesto (Hephaestos, em grego), o deus do fogo, das artesmanuais, da metalurgia e das indústrias, que era filho de Zeus e de Hera.

-- *As deficiências na mitologia grega* Homero, o mais famoso dos grandes poetas gregos, que foi cego, segundo relatosbaseados na tradição e em diversos escritores antigos, e que certamente viveu em épocasanteriores ao século VII a.C., é autor dos poemas épicos Ilíada e Odisséia. Na Ilíada ele nosrevela algumas particularidades interessantes a respeito de Hefesto, de sua deficiência físicanas pernas e de suas altíssimas habilidades em metalurgia e artes manuais. No Canto XVIII desse famoso poema ele narra uma das mais conhecidas intervençõesdesse deus portador de deficiência: o quase invulnerável Aquiles, durante o cerco de Tróiaencontrava-se muito abatido com a morte de seu amigo Pátroclo e ao mesmo tempoenfurecido com o líder troiano Heitor não só por tê-lo morto como também por tê-lodespojado de armadura, elmo, escudo e espada, além de todos os demais acessóriosinvejáveis pela sua beleza e perfeição e que eram propriedade de Aquiles. Ele pede o auxíliode sua mãe, a deusa Tétis, dizendo: "... não me incita a viver meu coração, nem a ficar entre os homens, a menos que Heitor,ferido primeiro por minha lança, perca a vida e pague por Pátroclo, filho de Menetes, suapresa". "Debulhada em lágrimas Tétis respondeu: - Rápido será teu destino, meu filho, com taispalavras, pois, logo após Heitor, o momento fatal soará para ti". "Acabrunhado retrucou Aquiles, de alígeros pés: - Morra eu neste instante, visto que nãofui capaz de proteger da morte meu companheiro"...

No entanto, de fato Aquiles não tinha mais armas, pois o corpo de Pátroclo havia sidodespojado de todos os magníficos apetrechos de guerra que tornara o filho de Tétis umincrível herói. É Tétis que observa: "Mas tuas belas armas estão nas mãos dos Troianos, tuas armas de coruscante bronze; opróprio Heitor de fúlgido capacete tem-nas sobre os ombros e com elas se paramenta"... Tétis, muito chocada com a tragédia de seu filho-herói, considerou a determinação deAquiles e foi à procura do único "imortal" capaz de fazer armas próprias e dignas para ele:Hefesto. Quando chegou ao Olimpo, notou nas oficinas um deus trabalhador, suado, umverdadeiro operário da metalurgia com deficiência física. "Encontrou-o suando; apressando-se à volta dos foles, empenhado no fabrico de nadamenos de vinte trípodes, para encostar à parede, em torno de uma sala bem construída"...

Homero apresenta neste poema Hefesto casado com a belíssima Cáris ("Cáris de brilhantetoucado, a formosa Cáris, esposa do insigne coxo"), a deusa da primavera. Após acomodar aveneranda deusa Tétis em um trono cravejado de prata, Cáris chama o marido: -- "Hefesto, vem como estás; Tétis precisa de ti". "respondeu o ilustre coxo:--Sim, é uma deusa temida e veneranda que está em minha casa;que me acudiu quando o sofrimento me acometeu, depois da longa queda provocada porminha mãe de olhos caninos, que queria esconder-me porque eu era coxo. Eu teria, então,sofrido muito, se Eurínome e Tétis não me tivessem recebido em seu seio; Eurínome, filhado Oceano, que volta sobre si mesmo. Ao pé dela, durante nove anos, forjei muitas jóiasbem feitas em profunda gruta, além de presilhas, espirais de formosas curvas, cálices deflores e colares". Hefesto, agradecido por ter sido amparado e amado, e por ter com elas aprendido umverdadeiro ofício, mostra-se mais do que disposto a pagar pelo imenso favor recebidodurante anos a fio. "... da bigorna ergueu-se manquejando o ser monstruoso, enorme; debaixo dele agitavam-se-lhe as pernas finas" ... "Vestiu uma túnica, empunhou um grande cetro e encaminhou-separa a porta, coxeando". A pedido da desesperada mãe de Aquiles, Hefesto fabricou então um escudo que Homerochega a descrever com muitos pormenores. E continuando com a descrição das fabulosaspeças de armamento, afirma: "E depois de ter forjado o escudo grande e robusto, fabricou para Aquiles uma couraça,mais brilhante do que o esplendor do fogo; fabricou-lhe espesso capacete adaptado astêmporas, belo, feito com arte, encimando-o um penacho de ouro; e fabricou-lhe "cnêmides",com o estanho que se modela bem ("Ilíada", de Homero, trechos do Canto XVIII). ( *“Cnêmides” eram perneiras usadas pelos gregos. Protegiam a parte dianteira da perna até ojoelho. Eram forradas interiormente de couro e amarradas à perna por correias. A parteexterna era de bronze ou de estanho, segundo Homero.) Na Odisséia, Homero apresenta Hefesto casado com Afrodite, a deusa do amor (a Vênusdos romanos), furiosamente ciumento, magoado e ardiloso, mostrando todo o seuressentimento devido à deficiência nas pernas de uma forma bem franca e muito aberta. O que havia sucedido para tanto? De fato o assunto era sério, pois Ares, deus da guerra(Marte para os romanos), havia-se enamorado de Afrodite e começara a encontrar-se comela em sua própria casa, logo após Hefesto sair para trabalhar em suas oficinas. Sabedor doadultério de sua mulher, Hefesto planejou com muito cuidado a armadilha para oestabelecimento de um flagrante incontestável: fabricou uma rede quase invisível, mas de"laços inquebráveis, inextricáveis, para que neles ficassem retidos os dois amantes". E, defato, a rede foi colocada cuidadosamente sobre o leito e prendeu os dois na hora exata;deixou-os debatendo-se no ar, sem qualquer possibilidade de escapar, pois o engenhosoHefesto preparara tudo para a invisível rede ser puxada para o alto, sem qualquer apelação. Hefesto, que havia acionado a armadilha por suas próprias mãos, sentia-se vilmente traídodevido à sua deficiência física e explodiu para todo o Olimpo ouvir: -- "Zeus, pai, e todos osdeuses restantes, bem-venturados e sempiternos, vinde aqui presenciar uma cena ridícula emonstruosa; por eu ser coxo, Afrodite, filha de Zeus, de contínuo me cobre de desonra; elaama Ares, o destruidor, porque é belo e tem as pernas direitas, ao passo que eu soudefeituoso de nascença. Mas a culpa não é minha, apenas de meus genitores, que melhorteriam procedido se não me houvessem gerado"... "a minha rede os reterá cativos até que opai dela me restitua todos os presentes que lhe dei por sua descarada filha. Pode ser bela,mas não tem vergonha".

Homero entra em alguns pormenores quanto ao vexame imposto a Ares e Afrodite, presosna rede invisível que os puxara para o alto, sendo observados por outros deuses -- todos elesdo sexo masculino, uma vez que as deusas, por pudor, haviam preferido ficar fora. Todoseles riram muito dos dois amantes e no meio dos comentários bastante humanos para osportentosos imortais, surgiu uma observação de alta valorização das habilidades de Hefesto,o artífice deficiente: -- "De que aproveitam as más ações? Um coxo alcança o que é ágil,como agora aconteceu: este cambeta Hefesto, lento como é, apanhou com seus artifícios aAres, o mais veloz dos deuses, habitantes do Olimpo" (trechos do Canto VIII da "Odisséia",de Homero). Naturalmente que estamos apenas analisando cenas de pura ficção, mas que foram escritasdiversos séculos antes da Era Cristã. Acresce a isso dizer também que Homero, segundo atradição, foi um escritor cego. Não deixam de ser palavras de certa forma indicativas dacrença na utilidade de um homem competente, mesmo que porta dor de uma sériadeficiência e na justa explosão desse mesmo homem face à traição e à desonra de que foivítima. Demonstram elas também uma posição já arraigada no seio do povo grego de quecrianças com defeitos de nascimento não deveriam sobreviver, sendo obrigação dos pais nãoas deixar viver, tomando para tanto medidas práticas, conforme verificaremos mais adiante.

-- *Lenda e realidade; Hefesto na vida dos gregos* Quanto a seus traços principais, Hefesto parece sempre justo, sério, fortementecompetente em sua arte e muito cônscio de seu papel. E, como vimos, é conhecedor de seusdireitos e sabe lutar por eles. Conquistara o respeito dos deuses pelo seu trabalho e suasobras, e nada mais. Desfrutava de um amor tranqüilo de uma linda deusa da primavera,Cáris, segundo o poema Ilíada, e de um atribulado afeto por Afrodite, na Odisséia, tendo-seconsiderado no direito de lhe dar uma lição completa, como outros homens jamais poderiamarquitetar. Analistas dos poemas de Homero têm sugerido que, devido à apresentação de Hefestocomo o deus da metalurgia e das artes manuais, a profissão de ferreiro e atividades afinstalvez fossem especialmente preferidas por homens com deficiências físicas nas pernas. Valeressaltar que na cidade industrial de Atenas, Hefesto sempre foi considerado um deusimportante, mantendo-se a classe dos artesãos sob sua proteção. Seu casamento com Afrodite foi conseqüência de um ardil muito bem preparado. Duranteos nove anos que passara sob a proteção de Tétis e Eurínome, Hefesto guardou consigo umprofundo ressentimento contra sua mãe devido ao fato de o ter feito cair do alto do Olimpo.Arquitetou uma terrível vingança contra ela: fabricou-lhe um lindo trono de ouro, todotrabalhado, e mandou que lhe fosse entregue durante uma festa. Hera ficou contentíssima porouvir a respeito do filho que já considerava morto há anos, e muito orgulhosa sentou-se notrono. Ao tentar levantar-se, porém, sentiu-se presa, agarrada por mãos invisíveis. Hefesto,que não estava presente, recusou-se a sair de sua gruta e deixou os demais deuses tentarlivrar Hera inutilmente. Afinal, face à insistência de todos, Hefesto concordou, impondouma única condição: casar-se com a mais bela de todas as deusas, ou seja, com Afrodite. Hefesto dava-se importância e sabia o que lhe convinha. Segundo as lendas, cuidava desua aparência com esmero e procurava reduzir as dificuldades provocadas por suadeficiência nas pernas de um modo bastante sofisticado. Primeiramente, quando recebiavisitas de importância, o fabuloso ferreiro e artesão parava para lavar o rosto, os braços, opescoço e o peito. Logo após, vestia uma túnica limpa e, apoiado num trabalhado bastão queele mesmo fabricara, ia sentar-se em seu trono. Refinado como era, inventara duas estátuas

feitas de ouro e que muito se assemelhavam a duas lindas jovens, que se movimentavam efalavam, e que ficavam ao seu lado para tornar mais cômodos todos os seus movimentos! ... Segundo as lendas Hefesto teve vários filhos e um deles, Perifetes, tinha o mesmoproblema físico do pai -- o que talvez indique certa crença popular de que alguns defeitosfísicos podiam ser hereditários. Diferentemente do pai, Perifetes foi um bandido, assaltantede estradas. Teseu, o destruidor de monstros, arrancou-lhe o terrível bastão com que matavasuas vítimas, terminando com o pavor que rondava Epidauros e os devotos de Asclépios, odeus da cura. Hefesto está representado no símbolo da Associação de Avaliação Profissional e deAjustamento ao Trabalho dos Estados Unidos da América do Norte.

-- *Outros seres mitológicos e as deficiências físicas e sensoriais* Existem diversas deidades e seres um tanto quanto irreais que estão inseridos na mitologiagrega e que apresentam algumas anomalias ou deficiências que por vezes são suacaracterística principal. Vejamos os mais notórios: a) Deuses da Fortuna, do Amor e da Justiça: Segundo afirmam os especialistas emmitologia grega, as figuras dos deuses do Amor e da Fortuna são eventualmenteapresentadas como pessoas cegas. Um dos mais marcantes exemplos dessas apresentaçõesocorre com a peça "Plutão, o Deus da Riqueza", de autoria de Aristófanes. Nela o temidosenhor das profundezas do inferno é um mendigo cego e sobre ele falaremos mais adiante aoanalisarmos Epidauros e sua importância na vida grega. Todos nós conhecemos também a apresentação simbólica da Justiça como uma jovemcega, figura que chegou aos nossos dias e é muito utilizada em nossos meios jurídicos. b) Édipo e sua tragédia: Uma figura trágica das muitas e coloridas histórias e lendasgregas é aquela de Édipo. Matou o próprio pai para poder casar-se com a mãe, sem estarconsciente do relacionamento que havia entre eles. Ao descobrir toda a verdade, com a ajudado adivinho cego, Tirésias, o rei Édipo arrancou os próprios olhos e viveu o resto de seusdias em total isolamento, numa atitude de autopunição e desespero. c) Filomela e Procné: a andorinha e o rouxinol: Segundo lendas que cercam essas duasfiguras da mitologia grega, Pandion era rei de Atenas e tinha duas filhas muito belas queeram Filomela e Procné. Esta casou-se com Tereu, rei da Trácia, e teve um filho, cujo nomeera Itys. Com o passar dos anos, entretanto, Tereu começou a prestar mais atenção à sualinda cunhada e ficou apaixonado por ela. Tendo-a em determinada circunstância forçado ater com ela relações amorosas e notando sua revolta, cortou-lhe a língua para impossibilitar aformulação de alguma acusação de sua parte. Todavia Filomela encontrou um meioconvincente de apontar o culpado. Bordou uma toalha com figuras, contando todo o drama.As duas irmãs passaram a perseguir ferozmente a Tereu que, com o auxílio de outros seresmitológicos, conseguiu transformá-las em pássaros parasempre: Procné tomou a forma de um rouxinol e Filomela de uma andorinha. d) Licurgo, rei mitológico da Trácia: Foi castigado com a cegueira por ter proibido em seureino o culto a Dionísio, deus do vinho e correspondente ao Baco dos romanos. Essaproibição ocorreu depois do corajoso rei ter tomado atitudes bastante agressivas contra omencionado culto. Mandara, por exemplo, arrancar de seu reino todas as vinhas e maltratarapessoalmente o famoso e muito popular deus do vinho. e) Fineu, outro rei da Trácia: Igualmente mitológico, abusava dos seus poderes deadivinhação, revelando aos homens as confidências e as intenções dos deuses moradores noOlimpo. Foi castigado pelos poderosos imortais a fazer uma opção: viver uma longa vidasem visão ou morrer. Preferiu a primeira opção. Casado com a filha do rei Bóreas,

Cleópatra, teve com ela dois filhos, Depois de algum tempo de casado repudiou a esposa,como era facultado aos homens fazer, e casou-se com Idéia, filha de Dárdano, o famosoconstrutor das muralhas de Tróia. Esta não gostou dos filhos adolescentes de Cleópatra elogo encontrou meios para acusá-los de terem tentado violentá-la. Fineu, muito furioso eintempestivo, mandou vazar os olhos dos dois, sem fazer qualquer averiguação. No entanto,o castigo prometido pelos deuses chegou quase que imediatamente, pois os irmãos darepudiada Cleópatra que faziam parte da expedição dos Argonautas, vazaram seus olhos.

-- *As deficiências físicas na realidade da vida militar grega* Na Grécia Antiga, em épocas anteriores ao surgimento do Cristianismo, encontramosmuitos indícios de medicina bastante evoluída e da organização de diversos serviços desaúde, tanto para o povo quanto para os soldados que procuravam garantir a sobrevivência ea pujança de sua pátria. Serviços médicos na área militar não atendiam apenas a soldadosgregos e seus aliados mas também a prisioneiros com problemas de mutilações ou comdoenças graves. As amputações traumáticas das mãos, braços e pernas ocorriam comfreqüência nos campos de batalha devido aos combates corpo-a-corpo e ao uso de armascortantes. Para as pernas havia algumas proteções por meio das já citadas "cnêmides", quecertamente impediam muitos ferimentos mais sérios em guerreiros importantes. Lâminasameaçadoras que eram colocadas nos eixos dos carros de combate eram um dos perigos deamputações ou ferimentos sérios. Ocorriam também ferimentos com pancadas violentas earmas penetrantes. Médicos destacados para servirem nos exércitos de então acumulavamrapidamente larga experiência, apesar de disporem de parcos recursos para aliviar dores,estancar o sangue ou outras providências que poderiam salvar vidas em perigo. Hemorragiaseram estancadas por vezes com ferro em brasa ou com o cobre superaquecido. Às vezesferimentos graves eram tratados na retaguarda com óleo fervendo e alguns escapavam comvida a tais tipos de tratamentos.

-- *As principais causas de deficiências na Grécia Antiga* Na antigüidade clássica praticamente todos os povos chegaram a desenvolver atividadesde assistência pública devido à insuficiência daquelas prestadas pela população, de maneiradireta. Segundo alguns autores, Aristóteles já indicava que "é mais fácil ensinar a umaleijado a desempenhar uma tarefa útil do que sustentá-lo como indigente". Não só paraAristóteles, mas para muitos pensadores e políticos gregos, competia ao Estado proteger ospobres, os miseráveis e, quase sempre no meio deles, os portadores de deficiências devido aqualquer causa. Na abalizada opinião do Professor Pournaropoulos, na Grécia Antiga havia três tipos depessoas com deficiências: - os mutilados ou deficientes devido a ferimentos ou a acidentes próprios da guerra e deatividades afins; - os prisioneiros de guerra com deficiências físicas, ou os detentos criminosos civis, cujamutilação ou deficiência era causada por uma pena ou castigo; - os deficientes civis por doenças congênitas ou adquiridas, ou também por acidentes osmais variados.

Dentre os acidentes da vida civil (na vida industrial e também na forte construção civilgregas) os acidentes de trabalho ocorriam com bastante freqüência devido à falta de medidasde segurança ou de proteções especiais. Um caso que passou para a História Grega ocorreucom o famoso arquiteto Mnésicles, que no ano 435 a.C., ao inspecionar as obras de

construção da monumental propiléia da Acrópole de Atenas, caiu de um dos andaimes.Segundo nos relatam os historiadores e analistas da História Grega, Mnésicles não ficouparalisado pelo resto de seus dias por mera sorte. Entretanto o misticismo grego conta-nosuma história interpretativa diferente, afirmando que quem o salvou foi a deusa Athena(Minerva para os romanos), pois ela apareceu num sonho a Péricles, que àquelaoportunidade comandava os destinos da cidade-estado de Atenas. A ele a deusa sugeriu ummisterioso tratamento que deveria ser aplicado no famoso arquiteto acidentado. Com a suarecuperação miraculosa, tão vital para a glória da poderosa Atenas, Péricles mandou erigiruma linda estátua de bronze da deusa salvadora no próprio lugar da queda, e em seu pedestalmandou gravar estas palavras reconhecidas que só foram descobertas muitos séculos após,devido às escavações: THEY ATHENAI HIGIEIAI (A Athena Salvadora)

-- *Tirteu, poeta Lírico com deficiência física* Nascido na Ática em meados do século VII a.C., Tirteu é identificado pelos historiadorescomo um dos poetas líricos elegíacos iâmbicos mais expressivos da Grécia Antiga.Trabalhou no inicio de sua vida como professor de uma escola ateniense, embora sofressebastante com as limitações físicas marcantes que o obrigavam a claudicarsignificativamente. No entanto, o poeta Tirteu viveu numa época em que a poesia era muito valorizada, o queo tornou muito aceito nos meios atenienses mais cultos. Conta-nos sua quase lendária história que durante a Segunda Guerra Messênica osespartanos foram obrigados a fazer aos atenienses um pedido incomum: precisavam de umgeneral para comandar suas forças, não porque inexistissem homens capazes na aguerridaEsparta, mas devido a uma clara indicação do sagrado oráculo de Delfos. Os atenienses ironicamente mandaram aos espartanos o poeta Tirteu, manco como era,sem nenhum conhecimento de vida militar e um mero poeta. Mas os espartanos respeitarama indicação, pois viram naquele homem, cuja figura física seria inaceitável nas elites deEsparta, um verdadeiro sinal de Apolo, o deus dos oráculos e também do canto. Na prática Tirteu provou ser muito competente em sua missão inusitada. Explorou ainterpretação indicada e as diversas conotações da mesma. Adotou uma linha de valorizaçãoda coragem dos soldados espartanos em todos os seus cantos de guerra, conduzindo-os dessaforma à vitória final contra seus inimigos. Eis um de seus cantos que chegaram até nós:"Que honra para o jovem valente ser morto pelo seu país com a espada em sua destra" (ApudPournaropoulos).

- *As leis que favoreciam as pessoas deficientes* Na História Grega existem citações relativas à assistência destinada a pessoas deficientesque são muito mais claras e específicas do que aquelas encontradiças em culturas anteriores,contemporâneas ou posteriores. Havia, por exemplo, em Atenas e em Esparta - rivais famosas - determinações oficiais quedavam aos soldados feridos e seus familiares vantagens de diversas naturezas. Existiamprovisões especiais relacionadas à alimentação, como as que eram conseqüentes a uma lei deSólon (640 a 558 a.C.) que determinava: "Soldados feridos gravemente e os mutilados emcombate serão alimentados pelo Estado". Plutarco (45/50 a 125 d.C.), historiador e moralista grego, afirma que esse tipo de leifavorecia pessoas consideradas incapacitadas para obtenção ou a garantia de seu própriosustento, mas que tais provisões não tinham sua origem tanto na sensibilidade de Sólon arespeito do problema geral dos soldados mutilados durante as muitas batalhas nas quais

Atenas estava continuamente envolvida. Na verdade, a compreensão mais aguda doproblema que o grande estadista demonstrara originara-se do conhecimento que tivera dasdificuldades vividas por alguém que Plutarco chega a identificar em sua obra apenas pelonome, não lhe dando, porém, maiores qualificativos. O historiador grego afirma que essafamosa determinação legal "foi promulgada devido ao fato de Térsipo ter ficado inválido, eessa mesma lei foi usada mais tarde para uma outra semelhante, dePisistrato" ("Sólon", de Plutarco). Houve, por muitos séculos, nas cidades de Atenas e de Esparta, determinações que davamaos soldados e seus familiares vantagens que todo o povo considerava como justas. Noentanto, mesmo naquelas épocas surgiam elementos viciosos que procuravam tirar proveitodas situações e tentavam indevidamente se enquadrar nessas vantagens, como podemosdeduzir de um interessante discurso de Lysias (459 a 380 a.C.), orador extremamenteeloqüente, citado pelos historiadores como inimigo ferrenho dos chamados Trinta Tiranos.Nesse discurso, Lysias faz comentários a respeito de diversos problemas das pessoas quetinham mutilações ou que apresentavam algum tipo de deficiência. E faz referências irônicasaos pseudo-deficientes perante o Senado Ateniense. Esse discurso chegou até nossos dias e éintitulado, na língua grega, "Uper tou Adunatou" (Em favor do deficiente). A questão deve ter deixado as autoridades e mesmo o povo ateniense bastantepreocupados não só com o franco desmascaramento dos falsos deficientes, mas também coma necessidade de garantir a sobrevivência dos heróis atenienses do presente e do passado edaqueles outros que certamente iriam se prejudicar fisicamente em defesa de Atenas. Em seu trabalho relativo à constituição de Atenas, intitulado no grego "AthenáionPolitéia", Aristóteles (384 a 322 a.C.), um dos maiores sábios de todos os tempos, afirmoutaxativamente aos membros do Conselho Ateniense: "O Conselho passará agora a examinaro problema dos deficientes. Existe, de fato, uma lei que estabelece que todo ateniense cujosbens não ultrapassem três "minás" e cujo corpo esteja mutilado ao ponto de não lhe permitirqualquer trabalho, seja examinado pelo Conselho e que seja concedido a cada um deles, àsexpensas do Estado, dois óbulos por dia para sua alimentação. E existe um tesoureiro dosdeficientes, designado para tal" ("Constitution d'Athène", de Aristóteles). Percebe-se, portanto, que não se tratava de mero paternalismo nem de esmola oficializadapelo Estado. O indivíduo tinha seu caso estudado antes de receber os óbulos estabelecidos eao início da aplicação desses planos não ocorreram muitas fraudes. A cidade-estado deAtenas tivera meio século após o discurso de Lysias para achar uma fórmula mais objetivade atendimento aos deficientes. Defendia-se, na verdade, um direito adquirido pela prestaçãode serviços à Pátria. Nota-se pelo estudo da História Grega que esse beneficio foi aos poucos sendo estendidoa outras pessoas portadoras de deficiências ou de incapacidade para o trabalho,independentemente da causa do problema, abrangendo eventualmente os pobres em geral.Na época em que Aristóteles chamou a atenção do Estado para o problema, já havia mais de20.000 pessoas alimentadas às expensas do governo ateniense, devido a muitos tipos dedeficiências e doenças, correspondendo a 20% da população total de Atenas.

- *A medicina grega e as deficiências físicas* A Grécia Clássica foi a pioneira dos movimentos de assistência médica à sua populaçãocivil. Nomes famosos como os de Asclépios (Esculápio para os romanos), médico renomadoque muitos anos após sua morte foi transformado no próprio deus da medicina, Demócedesde Crotona, Eródicos, Hipócrates e Cláudio Galeno, enriqueceram o cabedal de estudos

sobre medicina e também sobre questões ligadas direta ou indiretamente a deficiênciasfísicas e sensoriais, durante muitos séculos. Dentro dos objetivos deste trabalho, procuraremos restringir a pesquisa às atividades oupersonalidades de alguma forma relacionadas a deficiências físicas ou mentais sérias etambém ao eventual tratamento dispensado aos portadores de algum tipo de deficiência naGrécia Antiga. É do conhecimento geral que a medicina grega não conheceu fronteiras, pois seus maisfamosos e competentes homens eram avidamente procurados por reis e pela nobreza devários paises vizinhos, tais como do Egito, Roma, Pérsia e outros mais. Um pequeno exemplo poderá muito bem ilustrar essa procura e ao mesmo tempo a veladadisputa existente entre médicos egípcios, também muito famosos por séculos, e os médicosgregos. Um acidente na área da ortopedia, que quase levou um rei famoso a uma sériadeficiência física, fez com que a medicina grega penetrasse no Império Persa, no qualmédicos egípcios pontificavam, devido ao fato de por muito tempo terem sido consideradoscomo os mais competentes e mantenedores de renome soberbo. Heródoto que nos relata que Dario I (521 a 486 a.C.), orgulhoso soberano persa, ao descernum salto arrojado de seu cavalo durante uma caçada, torceu violentamente o pé. Osmédicos de sua corte - todos eles egípcios por preferência e exigência do próprio monarca -eram adeptos de técnicas um tanto violentas para casos de deslocamento, fraturas, luxações emales afins e acabaram piorando o problema de Dario. Por sete dias e sete noites ele ficousem dormir devido às fortes dores no pé, todo inchado e dolorido ao extremo. No oitavo dia ele não suportava mais as dores e o desconforto de não poder nem dormir e,quando todos aos seu redor já sentiam que a irritação do soberano persa poderia fazer rolaralgumas cabeças, inclusive de assustados médicos egípcios, Demócedes, médico gregonascido em Crotona, que vivera em Atenas e na ilha de Samos onde havia aprendido epraticado medicina, foi levado à sua presença, às pressas e também à força. Mal vestido, sujoe cheirando mal devido às circunstâncias de sua verdadeira caçada para ser levado ao rei, ealém disso, arrastando ruidosa e acintosamente seus grilhões de prisioneiro, não causou boaimpressão. Dario, irritado sobremaneira pelo seu próprio problema e pela decepção face à suaesperança naquele médico grego sobre o qual seus auxiliares vinham falando há dias e quepoderia tirá-lo daquela desconfortável situação de incapacidade física, perguntou aos gritosse ele pelo menos entendia um pouco de medicina. Demócedes, de seu lado muitopreocupado em poder voltar à Grécia, respondeu que não. O que ele não esperava é queDario, que antes ouvira falar de sua vasta competência em medicina, mandasse seus servosbuscar açoites e instrumentos de tortura. Diante da negra perspectiva, confessou queentendia um pouco de medicina e que vivera um pouco com um outro médico grego, masque seus conhecimentos eram muito limitados e jamais poderiam chegar aos pés daquelesdos médicos-sacerdotes egípcios ali mesmo presentes. Mesmo assim o desesperado Dario fez questão de ficar sob seus cuidados. Demócedes, jálimpo e sem grilhões, começou por usar métodos mais suaves para recuperar o dolorido pédo monarca persa. Usou ungüentos e remédios que conhecia graças à sua experiência naGrécia, tendo tomado antes a sábia decisão de fazer o irritado Dario dormir, para depois, porum tratamento mais prolongado e menos traumatizante, recuperá-lo - impedindo umaeventual amputação - e fazê-lo voltar a andar. O médico grego transformou-se no médicofavorito de Dario, lá estabelecendo-se com o mais absoluto sucesso e abrindo caminho paramuitos outros médicos gregos no Império Persa. Demócedes tornou-se muito rico e famoso

desde então, tendo sido um dos fatores decisivos na finalização dos planos de Dario I para ainvasão da Grécia à qual sempre pretendeu voltar e nela se radicar.

- *A medicina de Hipócrates e as deficiências* Eródicos, médico grego de vastíssima experiência, foi um dos principais mestrês deHipócrates (460 a 377 a.C.). Segundo a opinião de alguns estudiosos da história damedicina, foi Eródicos o primeiro médico mais famoso que começou a utilizar técnicas detratamento que ele mesmo chamava de "ginástica médica", uma incipiente fisioterapia . Hipócrates, por seu lado, apresenta em muitos de seus trabalhos várias descrições eanálises sobre males incapacitantes ou limitadores. Dentre eles destacamos a espondilite, aescoliose, o deslocamento congênito da bacia. Além disso o grande mestre da medicinaindicava como fazer o tratamento por meio de massagens, de calor e de sua "ginásticaterapêutica" - também uma antecessora da fisioterapia. Segundo estudiosos dos trabalhos de Hipócrates, foi ele que deu início à árdua tarefa deseparar a superstição e o misticismo da realidade dos fatos em medicina, especialmente notratamento de alguns males misteriosos para aqueles afastados séculos. Sua famosa máxima"divinum opus est sedare dolorem" (aliviar a dor é uma obra divina) durante muitos séculoslevou muitos homens dedicados à ciência de curar a continuamente procurar métodos maishumanos e menos dolorosos durante procedimentos cirúrgicos, de um modo especial nasamputações causadas por lesões de origem traumática. Hipócrates dedicava-se à medicina como um todo, não sendo nada estranho, portanto, queconhecesse bem uma infinidade de problemas médicos e seus remédios. Dentre elesdestaquemos cerca de 30 doenças relacionadas à visão. Lidou, portanto, com males quelevavam também a deficiências físicas ou sensoriais.

- *Hipócrates e suas idéias quanto à epilepsia* Com relação a um dos principais e mais misteriosos problemas causadores de muito sériamarginalização, ou seja, a epilepsia, Hipócrates insistia que o famoso "mal divino", tãocomum nos oráculos, nos sacerdotes e mesmo nos imperadores da antigüidade nas maisvariadas culturas e povos, não passava de um mal que não era nem sagrado nem divino, poistinha causas naturais. Eram a ignorância, o medo, a superstição e a crendice que levavam ohomem a crer em sua sobrenaturalidade, muitas vezes até sugerida ou confirmada porhomens dedicados à medicina, principalmente por não saberem como tratá-la. Sobre esse assunto Hipócrates diz textualmente: "Na minha opinião pessoal, aqueles queprimitivamente deram a essa doença um caráter sagrado eram feitos mágicos, exorcisadores,curandeiros e charlatões dos nossos tempos, homens que se gabam de possuir grandedevoção e não menor sabedoria. Não sabendo e não possuindo medicamento algum que ospossa auxiliar, escondiam-se e abrigavam-se por detrás da superstição, chamando a essadoença de sagrada, a fim de que sua profunda ignorância não chegasse a manifestar-se"..."Mas essa doença, na minha opinião, não é mais divina do que qualquer outra; possui amesma natureza das demais, com a mesma causa que dá origem a cada uma das doenças"..."Sua origem, como a de outras, reside na hereditariedade" ..."O fato é que a causa dessaafecção, como em geral a de todas as doenças mais graves, reside no cérebro" (ApudTavlor).

- *Adaptações para prevenir deformações em crianças* Já era do tempo de Hipócrates, que certamente deu relevante contribuição ao assuntograças à sua vasta experiência, a adoção de medidas preventivas de defeitos físicos em

crianças de pouca idade. Os gregos e muitos outros povos que viviam no século IV a.C.usavam certos tipos não identificados de recursos artificiais que são citados por Aristótelesmeio século após a morte de Hipócrates. A afirmação taxativa do grande filósofo grego éesta: "Todos os movimentos aos quais as crianças podem se sujeitar em idade tenra sãomuito úteis. Mas, a fim de preservar seus frágeis membros de defeitos, tem usado aparelhosmecânicos que fortificam seus membros" ("Politics", de Aristóteles). A tradução do grego para o inglês utiliza as palavras "mechanical appliances", enquantoque a versão francesa adota a palavra "machines" para o mesmo vocábulo grego. É de se ressaltar, entretanto, a importância já dada a medidas preventivas generalizadas,segundo afirmação de Aristóteles. Foi exatamente sua relevância que o levou a fazer delamenção expressa em uma de suas obras mais importantes.

- *Cláudio Galeno e sua importância* Nascido mais de cinco séculos após a morte de Hipócrates, um outro médico grego queteve grande influência no desenvolvimento da medicina como um todo e que tambémtrabalhou com situações de deficiências físicas foi Cláudio Galeno (131 a 201 d.C.), nacidade de Pérgamo, na Grécia. Trabalhou muito em fisiologia experimental, passando a maior parte de sua vida em Romae outras paragens do Império Romano - o que não era de estranhar nos séculos do apogeuromano. Foi primeiramente médico de arena dos famosos circos romanos; após, foidestacado para ser médico de várias legiões romanas por muitos anos, durante os quaisacumulou enorme experiência. Posteriormente, devido à sua competência, foi promovidopara médico imperial e também para professor de medicina. Seus trabalhos e sua relatadaexperiência sobreviveram a ele e foram quase dominantes em medicina durante muitosséculos da Idade Média, chegando a ser usados em diversas escolas de medicina até o séculoXVII. Escreveu sobre várias paralisias, tendo estudado a fisiologia patológica de maneira maiscientifica do que a anteriormente conhecida. Sempre muito envolvido no atendimento acasos de ortopedia, como é fácil de imaginar pela sua vida juntos aos circos romanos e alegiões diversas; foi o primeiro a utilizar certos termos médicos identificadores de males eque são até hoje empregados, tais como: "kyphosis", "lordosis","skoliosis", dentre vários outros.

- *Demócrito e Homero: homens cegos e muito famosos* Dos homens gregos portadores de deficiências ou de limitações, que se notabilizaram epassaram mesmo para a História, o leitor certamente apreciará a lembrança de Demócrito ede Homero. Demócrito (470 a 360 a.C.) foi um físico e filósofo grego. Em seu modo de ver, devemosprocurar tudo de bom que o mundo pode ter, dentro de um otimismo moderado e semesquecer dos problemas inerentes a ele, Embora suas obras mais famosas não tenhamchegado até nós, escreveu-as com títulos interessantes, como, por exemplo, "sobre atranqüilidade da alma", "sobre a natureza do homem", "sobre as causas da harmoniacelestial" e outros. Dele, quase quatro séculos após sua morte, escreveu Cícero: "Demócrito, após perder avisão, não podia mais distinguir o branco do preto; mas distinguia o bem do mal, o justo doinjusto, o honesto do desonesto, o útil do inútil, o grande do pequeno. Pode-se ser feliz semdistinguir a verdade das cores, mas não se poderá sê-lo sem dominar idéias verdadeiras. Esse

homem acreditava até que a visão era um obstáculo às operações da alma" ("TusculanaeDisputationes", de Cícero). Diz a lenda que, para melhor meditar, Demócrito havia inutilizado seus próprios olhos,pois expusera à luz do sol por muito tempo uma placa de cobre brilhante, fazendo incidirseus raios sobre seus olhos (Apud Cabanès). Quanto a Homero, já notamos a grandiosidade de suas obras Ilíada e Odisséia - ao falar deHefesto, o deus da metalurgia. A respeito desse grande poeta grego, afirmou Cícero quandoanalisava os males que aparentemente podem tornar uma vida miserável, mas que podem sersuperados graças à força de cada um: "Homero era cego, segundo a tradição. Seus poemassão verdadeiros quadros: que lugares, que praias, que paragens da Grécia, que tipos decombates, que estratégias de batalhas, que manobras navais, que movimentos de homens ede animais são tão fielmente retratados pelo autor, que parece nos colocar sob os olhos, oque ele mesmo não havia nunca visto! O que é, então, que faltou a esse grande gênio nãomais do que a outros homens verdadeiramente sábios, para aproveitar todos os prazeres deque a alma é capaz?" ("Tusculanae Disputationes", de Cícero).

- *Demóstenes e seus pouco conhecidos problemas* Homem famoso e importante do século IV a.C. foi o orador e político ateniense,Demóstenes. Embora tenha nascido de família bastante abastada, o garoto perdeu seus paismuito cedo e sua fortuna foi malbaratada pelos seus tutores. O jovem Demóstenes tinhasérias dificuldades para falar correntemente. Gaguejava muito, segundo os historiadores. Aoque parece ele colocava pedrinhas na boca e gritava ao arrebentar das ondas, a fim de vencera dificuldade. De fato, obteve uma grande vitória sobre os problemas de comunicação que oafligiam, pois chegou a tornar-se um dos mais enfáticos oradores atenienses, chamandosempre a atenção de seus concidadãos para o perigo contínuo dos espartanos. Existem, no entanto, algumas dúvidas quanto à extensão dos males que de fato afetaramDemóstenes durante toda a sua vida e a mais séria delas nos é sugerida por duas obras dearte existentes no Museu Britânico, de Londres. Trata-se de duas cabeças do grande oradorque nos dão a nítida impressão de que ele tinha lábio leporino do lado esquerdo. Saul M. Bien, do Instituto Gugenheim de Pesquisa Dentária da Universidade de NewYork, publicou na revista médica The Lancet uma interessante carta ao editor, anexandouma cópia de foto da peça em questão e afirmava àquela ocasião, entre outras coisas:"Lembrando que Demóstenes costumava descer à beira-mar, lá enchendo sua boca compedrinhas para discursar acima do barulho das ondas, ocorreu-me que com toda a certeza oobjetivo era conseguir uma pedra lisa e plana que serviria como um obturador para umapossível fissura palatal associada com presumível defeito no desenvolvimento labial". Se a hipótese de Bien estiver correta, ressaltemos que o esforço para a superação dosproblemas que afetavam Demóstenes duramente foi bem maior do que o imaginado pormuitos séculos já passados após sua morte.

- *Pessoas deficientes trabalhando citadas em obras gregas* Homero faz diversas citações de pessoas portadoras de deficiências desempenhandofunções com grande sucesso. Uma dessas citações fala de Hefesto, conforme tivemosoportunidade de ver anteriormente: um ser superior com deficiência nas pernas e indicadocomo exímio artífice e magnífico ferreiro. Lenda provavelmente indicativa dos costumes eusos da sociedade de então, cinco séculos antes da época de Hipócrates. Outra figura citada pelo mesmo autor relaciona-se a um contador de histórias e derapsódias, além de cantor de voz agradável: Demódoco, "ao qual, mais do que a ninguém, a

divindade outorgou o dom de deleitar com seus cantos, seja qual for o assunto que seucoração lhe inspire" . . . Homero afirma também que Demódoco era "entre todos querido daMusa, a qual lhe dera, a um tempo, o bem e o mal, pois, o privara da visão e lhe concedera omelodioso canto" ("Odisséia", de Homero). Há uma terceira figura citada por Homero na Odisséia: Tirésias. Era um adivinho cego,muito famoso, proveniente da vila de Tebas. Inserido em diversas outras obras, a história deTirésias confirma a crença de que a cegueira não era só um mal, mas um castigo também.Ele ficara cego por ter revelado à humanidade os segredos do Olimpo. Segundo as lendas,foi Tirésias que colaborou com o rei Édipo na descoberta das origens e circunstâncias de seunascimento, o que levou o infeliz monarca a arrancar os próprios olhos, conforme vimos empáginas anteriores. As lendas acrescentam que mesmo após a morte, do próprio Hades(mansão dos mortos) para onde foi, Tirésias continuou a fazer adivinhações. Retratando ounão a viabilidade da função de adivinho ou oráculo ter sido bastante desempenhada porpessoas deficientes, um pouco mais adiante citaremos casos reais que comprovam essapossibilidade. As aplicações da vida prática nas obras literárias são muito comuns e certamenteinfluenciaram também os escritores gregos. Os exemplos citados acima, que são apenas umailustração retirada das obras de Homero, deixam-nos a impressão de que pessoas deficientestinham seu lugar na sociedade produtiva grega, desde que exercendo funções à sua altura. Opróprio Homero é um incrível exemplo de competência.

- *Creso, o mais feliz dos homens* Creso é uma figura conhecida na História dos povos que gravitavam ao redor da Grécia,da Pérsia, do Egito e de outros países mais fortes e pujantes do século VI a.C. Foi rei daLídia entre 563 e 548 a.C. e, tido como riquíssimo, considerava-se para todos os efeitos ohomem mais feliz de todo o mundo. Foi em certa ocasião visitado por Sólon (640 a 558 a.C.), um dos sete sábios de Atenas, jácom mais de 75 anos de idade que, embora impressionado com a sua riqueza, considerououtros homens já mortos como mais felizes do que Creso. Segundo o velho legisladorateniense, ninguém poderia afirmar com segurança que este ou aquele homem era o maisfeliz durante sua vida. A infelicidade sempre poderia surgir repentinamente. E Creso teve de fato, logo a seguir, dois problemas seríssimos que provaram a teoria deSólon, empanando de vez a sua felicidade: teve dois filhos, "um dos quais vitimado por umadesgraça de nascença: era surdo-mudo" ("História", de Herodoto). O outro filho, apesar dos extremos cuidados do pai por muitos anos, morreuacidentalmente durante uma caçada em companhia de amigos e nobres da corte de seu pai.Creso teve também a infelicidade de ver seu reino invadido e dominado por Ciro, rei dospersas, sendo por ele condenado à morte. Deveria ser decapitado na presença do filho surdo-mudo e de sua corte. No momento em que o carrasco, de espada levantada, ia desferir o golpe mortal, o filho deCreso, num emocionante gesto de amor filial, superando a deficiência que o mantivera mudoaté então, gritou: "Soldado, não mate Creso!" Ciro ficou tão impressionado com a reação dogaroto e com a coragem demonstrada por Creso que mandou soltá-lo e recebeu-o como umde seus conselheiros. Apreciou tanto seu modo de ser que o recomendou a Cambises, seusucessor, do qual já falamos.

- *A importância dos oráculos e adivinhos na vida grega*

Todos os historiadores gregos transmitem-nos uma nítida impressão da crença que todo opovo e mesmo todas as autoridades depositavam nos oráculos e nas mensagens transmitidospor sacerdotes, pitonisas e adivinhos, quase todos eles verdadeiros recados cifrados dosdeuses consultados que admitiam algumas interpretações. Raramente decisões deimportância eram tomadas sem que esses canais de comunicação com os deuses fossemconsultados. O costume era tão arraigado e tão levado a sério que cada comandantemantinha ao seu lado um adivinho incorporado e pago pelo governo, consultando-o antes demovimentar suas tropas para um combate. Alguns desses adivinhos eram portadores de deficiências as mais variadas, conformecomentamos anteriormente, sendo vítimas da epilepsia (o famoso "mal sagrado") ou decegueira, na maior parte dos casos. Muitos deles tornaram-se famosos no exercício de suafunção, quer analisando o vôo dos pássaros, quer examinando as entranhas de animaissacrificados, ou mesmo dando interpretações instantâneas a alguns sinais da natureza, comoos ventos, raios, trovões, tremores de terra, eclipses do sol ou da lua, por exemplo. Heródoto fala-nos a respeito de diversos adivinhos, durante a fortíssima campanha do reiXerxes, soberano dos persas, contra a Grécia, nos anos 480 a 479 a.C., sendo Megístias umdeles. Seguia esse adivinho o heróico grupo dos 300 espartanos de Leônidas que, no estreitodas Termópilas, chegou a bloquear por vários dias o imenso exército do poderoso Xerxes,com mais de três milhões de soldados. Conta-nos Heródoto: "O adivinho Megístias, tendoconsultado as entranhas das vítimas, comunicou aos gregos que guardavam o desfiladeirodas Termópilas, que eles deviam perecer no dia seguinte, ao romper da aurora" ("História",de Heródoto). A credibilidade do adivinho era tal que Leônidas ordenou às suas tropas de apoio (4.000homens de cidades aliadas à causa) para se retirar naquela noite mesmo, permanecendo nolocal apenas ele, seus trezentos espartanos e o próprio Megístias que não quis abandonar seurei. E lá deixaram uma mensagem famosa e tocante que hoje está inscrita no belomonumento ali existente: "Caminhante, vá dizer aos espartanos que aqui morremos emobediência às suas ordens" ...

- *A história de um adivinho famoso que era cego* Outro adivinho mencionado por Heródoto na mesma obra, de nome Deifono, originário deApolônia, na Ilíria (hoje Albânia), era filho de Eveno, adivinho muito mais famoso e que eracego. A história de Eveno, nas palavras do próprio Heródoto, é esta: "Durante todo aquele diaos combatentes gregos mantiveram-se em repouso, e na manhã do dia seguinte realizaramsacrifícios aos deuses, sendo-lhes favoráveis os augúrios deduzidos do exame das entranhasdas vítimas. Tinham eles por adivinho Deifono, de Apolônia, cidade situada no golfo lônio,filho de Eveno, a quem aconteceu estranho fato, que passo a relatar. Existem na cidade deApolônia rebanhos consagrados ao sol. Durante o dia esses rebanhos pastam às margens deum rio que desce do monte Lácmon, atravessa aquela cidade e desemboca no mar perto doporto de Órico; mas à noite são guardados por um habitante da cidade, escolhido todos osanos entre os cidadãos da mais alta categoria, quer pelo nascimento, quer pelas suas posses;pois os Apolonitas, em vista da advertência de um oráculo cercavam esses rebanhos domaior cuidado. Passavam eles a noite numa gruta afastada da cidade. Eveno, tendo sidoescolhido para essa missão, dormiu quando devia velar. Os lobos, entrando na gruta,devoraram cerca de sessenta animais. Despertando e vendo o que acontecera, Evenoresolveu ocultar o fato, com a intenção de adquirir outros animais para substituir os quehaviam sido devorados pelas feras. Contudo, os Apolonitas vieram a ter conhecimento da

verdade e, indignados, submeteram Eveno a julgamento, condenando-o a perder a vista, porter dormido quando devia estar vigilante. Mas depois que lhe vazaram os olhos, os rebanhosdeixaram de procriar e a terra cessou de produzir frutos. Essa calamidade lhes havia sidopredita pelo oráculo de Dodona e de Delfos. Os profetas, consultados sobre a causa detamanha desgraça, responderam constituir aquilo uma punição pela injustiça que haviamcometido, cegando Eveno, guarda dos rebanhos sagrados. Disseram que eles próprios tinhamenviado os lobos e que continuariam a vingá-lo até que os Apolonitas reparassem a suainjustiça para com ele. Quando isso se desse, eles próprios concederiam a Eveno um domque o faria parecer a muitos um homem verdadeiramente feliz". Heródoto continua a narrativa, informando: "Ante essa resposta, que lhes foi dada sobsigilo, os Apolonitas incumbiram alguns de seus concidadãos de irem à procura de Eveno, afim de sondá-lo quanto à sua maneira de sentir com relação à pena que lhe fora imposta. Osemissários foram encontrar Eveno sentado numa cadeira. Tomando assento ao seu lado,puseram-se a falar-lhe sobre coisas banais, fazendo, aos poucos, recair a conversa sobre adesgraça que o atingira, terminando por perguntar-lhe como receberia uma reparação dosApolonitas, se eles se mostrassem dispostos a assim proceder, e qual a que ele consideravamais justa no caso.Eveno, que ignorava a resposta do oráculo, respondeu que, se os Apolonitas, em reparaçãoao mal que lhe causaram, lhe concedessem terras, escolheria as de dois de seus concidadãos,cujos nomes citou, consideradas as melhores de todo o país. Gostaria também que lhedessem a mais bela casa da cidade. Com tais compensações ficaria satisfeito, cessando assuas queixas contra os seus concidadãos". "Eveno - disseram os emissários - os Apolonitas lhe concedem, obedecendo às ordens dooráculo, a reparação que exiges pela perda da visão". Posto, então, ao corrente dos fatos quese seguiram à sua punição, Eveno mostrou-se bastante contrariado por haver sido enganado;mas os seus desejos foram satisfeitos, pois os Apolonitas adquiriram as propriedades que elehavia escolhido e fizeram-lhe presente delas. Logo depois, os deuses lhe concederam o domda adivinhação, com o que ele adquiriu grande celebridade" ("História", de Heródoto).

- *As próteses de Hegesístrato, adivinho grego* Hegesístrato de Eléia é considerado como o adivinho "mais célebre das Telíadas", naopinião de Heródoto, aparecendo como agregado às tropas de Xerxes, por volta de 479 a.C.,ao final da grande luta contra os gregos. Vários anos antes disso, todavia, os espartanos haviam capturado Hegesístrato que eraapenas um rebelde que combatia continuamente a Lacedemônia. Posto a ferros, devia serexecutado após inimagináveis torturas, Heródoto nos conta que "encontrando-se em tãotriste situação e tendo antes de ser executado de sofrer ainda os mais cruéis tormentos,praticou um ato de incrível temeridade. Achava-se com os pés presos em entraves demadeira guarnecidos de ferro. Servindo-se de um instrumento cortante, que alguém, semdúvida, lhe havia trazido, seccionou a parte do pé acima dos dedos, depois de ter examinadose poderia libertar dos entraves o resto do pé. Depois de ter praticado a mutilação e retiradoo pé, como a prisão estava guardada, fez um buraco na parede e fugiu, caminhando durante anoite e escondendo-se durante o dia nos bosques. Na terceira noite de caminhada chegou aTegéa, apesar das buscas dos lacedemônios, que se mostraram bastante espantados com aaudácia do fugitivo ao verem nos entraves a parte dos pés mutilados". "Assim Hegesístrato, tendo conseguido escapar à perseguição dos lacedemônios,refugiou-se em Tegéa, que não se mantinha, naquela ocasião, em muito boas relações com

Esparta. Curando-se dos ferimentos praticados em si próprio, passou a usar pés de madeira etornou-se inimigo declarado dos lacedemônios" ("História", deHeródoto). Diversos anos após, ocorrida a invasão de Xerxes, Hegesístrato trabalhou como adivinhode seus exércitos sendo muito apreciado e admirado por Mardônio, general comandante dospersas na Grécia. Vaticinara maus resultados para a batalha de Platéia, mantendo com isso oexército persa parado por 10 dias. Mardônio, entretanto, não lhe deu ouvidos, entrou nabatalha e foi morto, deixando aos gregos a sensação de que finalmente Leônidas havia sidovingado. Os persas retiraram-se para a Tessália de onde prosseguiram, em retirada, até aPérsia.

- *Peste Ateniense: o terror generalizado* Dentre as epidemias graves, ou "pestes" como foram muitas delas conhecidas, podemosdestacar três na antigüidade: a "Peste Ateniense", a "Peste Antonina" e uma outra, semnome, que ocorreu no século III d.C. A "Peste Ateniense" teve uma testemunha ocular muito precisa no historiador Tucídides(471 a 395 a.C. ), tido como o mais brilhante dos historiadores gregos, que a relatou em suaobra "A Guerra do Peloponeso". Ela ocorreu no ano 428 a.C. e matou mais de 20 mil dos100 mil habitantes de Atenas. Deixou um elevado número de vítimas com deficiênciasfísicas. Tucídides nos conta com muita clareza: "Se se escapava dos problemas mais graves, omal atingia as extremidades que, nesse caso, mantinham as marcas da sua passagem; atacavaos órgãos sexuais, os dedos das mãos e dos pés. Muitos livraram-se dela com a perda dessesmembros, outros pela perda dos olhos: outros, enfim, ficaram totalmente privados damemória" ("Histoire de la Guerre du Péloponèse", de Tucídides).

- *A atenção a soldados feridos ou doentes. Anábase, de Xenofonte* Raros são os autores gregos que analisam ou mesmo fazem qualquer menção ao problemados feridos ou doentes nos exércitos da Grécia Antiga, muito embora as batalhas fossemsempre sanguinolentas e os tipos de armas então utilizadas levassem a incontáveis riscos nãosó de perfurações graves ou fatais, como também de cortes profundos e de amputações. Encontramos em "Anábase", a famosa obra de Xenofonte (430 a 355 a.C.),um relatopormenorizado sobre a retirada de 10.000 mercenários gregos contratados por Ciro, quedisputava com seu irmão Artaxerxes II a coroa do Império Persa. Essa famosa "marcha parao norte", que começou em Cunaxa, onde Ciro foi morto em acirrada batalha, durou cincomeses entre 401 e 400 a.C. e nela tomou parte o próprio Xenofonte, como um de seuscomandantes. É nessa obra que podemos encontrar algumas referências à questão dos feridos e dosdoentes, e que poderão ser ilustrativas quanto ao tratamento e à atenção dispensados aossoldados fisicamente prejudicados em batalha. No enorme esforço coletivo para viabilizar o retorno de todo aquele infeliz exército,podemos imaginar a dramática situação vivida pela totalidade de seus homens eacompanhantes, sempre perseguidos por destacamentos das forças de Artaxerxes II ou pelastribos habitantes das montanhas do Turquistão e da Armênia por onde passaram. O dramaficou muito mais forte quando tiveram que enfrentar os perigos das montanhas próximas aonascedouro do Eufrates, cobertas de neve, uma vez que as circunstâncias da marcha contínuanão permitiam deixar ninguém para trás.

Em sua narrativa cristalina Xenofonte fala de relance no sério problema dos soldadosdoentes ou feridos. Faz menção àqueles que haviam ficado cegos ou que tinham tidomembros amputados devido ao congelamento. Descrevendo a pressa em subir as montanhase em escapar dos desfiladeiros perigosos, cita os suprimentos e bens abandonados eimediatamente capturados e repartidos com um grande alarido pelos bárbaros que osperseguiam muito de perto. "Deixamos também para trás os soldados que a neve havia cegado ou que o frio haviacongelado os dedos dos pés. Podia-se proteger os olhos do brilho da neve colocando diantedeles um objeto negro enquanto se marchava. Podia-se também impedir os pés de congelarmovimentando-os, não os deixando em repouso e tirando o calçado antes de dormir"("Anábase", de Xenofonte). Esses homens eram sempre colocados e protegidos na retaguarda e ocasionalmenteparticipavam das escaramuças com as tribos de montanheses, pelo menos com seus gritosfuriosos e com o barulho infernal que podiam fazer batendo espadas e lanças contra seuspróprios escudos. Nota-se em certos pontos do livro IV a preocupação e o carinho para com esses homensferidos ou doentes. Tanto isso é verdadeiro, que, após cinco meses de marcha para o MarNegro, tendo chegado às costas e se instalado com certa tranqüilidade por um mês, decidiu-se buscar a ajuda dos navios gregos. Enquanto ela não chegava para transportar os 8.600 homens e seus acompanhantes quehaviam sobrevivido à travessia, os primeiros a embarcar para a pátria nos navios ali mesmodisponíveis foram os doentes e alguns outros componentes das forças gregas. Segundopalavras de Xenofonte, "embarcamos os doentes" - e dentre eles estavam os que podiam serconsiderados como deficientes - "os soldados com mais de 40 anos, as crianças, as mulherese a carga supérflua". - *Homens com sérias luxações nas pernas: sapateiros, ferreiros, seleiros* Informações interessantes sobre a utilização de homens com deficiências físicas nasprofissões de selaria, sapataria e ferraria nos são transmitidas por Hipócrates ao comentarsobre a sociedade das Amazonas. Eram mulheres guerreiras que, segundo algumas lendas, habitavam a região daCapadócia. A etimologia da palavra não é muito segura, mas há os que afirmam tratar-se deantiga composição grega para o correspondente a "sem seio". As histórias relatam que asmães superaqueciam metais e outros objetos para deixá-los durante longo tempo bempróximos ao seio direito das meninas, dificultando com isso o seu crescimento e dando acada uma delas, quando adultas, melhores condições para manuseio do arco e da flecha. Na verdade, nessa estranha e semi-fantasiosa cultura comentada por vários autores, taiscomo Homero, Heródoto e mesmo Hipócrates, cabia às mulheres lutar e aos homens,desenvolver trabalhos manuais sedentários em situações especiais, uma vez que toda criançado sexo masculino praticamente era levada ao próprio pai, em outras nações e terrasdistantes, para ser criada. Hipócrates, em sua obra sobre as articulações tece comentários bem específicos e muitoclaros quanto a deformações provocadas pelas Amazonas em seus filhos do sexo masculinoque excepcionalmente ficavam com as respectivas comunidades. Diz o grande sábio:"Contam que as Amazonas provocam, desde a infância, em seus filhos do sexo masculino,uma séria luxação, seja nos joelhos seja nos quadris, com objetivo de, sem dúvida,transformá-los em coxos, e de impedir que os homens conspirem contra as mulheres;servem-se elas depois desses deficientes como trabalhadores, para as tarefas de sapateiro,

ferreiro e outros ofícios sedentários. Ignoro se a referência é verídica, mas o que é certo éque as coisas aconteceriam mesmo assim, se as crianças fossem mutiladas durante ainfância" (Apud Moreno).

- *Alexandre, o Grande: sua atenção a soldados com deficiência* Um dos maiores gênios militares que a Humanidade já conheceu, Alexandre III, o Grande(356 a 323 a.C.), rei da Macedônia de 336 a 323, criou o chamado Império Grego que iadesde os limites da Índia, a Leste, até a Cítia, ao Norte. Ao Sul atingia o Egito e o GolfoPérsico. Foi educado por Aristóteles, especialmente contratado por Felipe da Macedônia, seu pai.Além de monarca e comandante militar, Alexandre foi filósofo, homem que respeitava osusos e costumes dos povos subjugados e repleto de dignidade. Morreu com apenas 33 anosde idade e ao final de sua curta vida, havia não apenas conquistado terras e reinos, mastambém feito muitos amigos e aliados. Eventualmente encontramos informações de queAlexandre sofria de epilepsia, mas nem todos os autores o confirmam. Alexandre sempre foi muito participante da vida e das agruras sentidas por seuscomandados, tendo em certa ocasião ficado quase cego devido ao seu envolvimento. ÉPlutarco que nos conta com pormenores coloridos o acontecimento. Foi durante violento ataque a uma fortaleza de tribos conhecidas como "malianas",atualmente em território da Índia. O destemido rei dos macedônios estava tentando galgarum dos lados da muralha que defendia as instalações, por meio de uma escada, juntamentecom os demais companheiros, no auge da batalha, quando ela cedeu fragorosamente.Alexandre, agarrado que já estava ao alto da muralha, ali permaneceu e não teve outraalternativa a não ser saltar no meio dos inimigos que contra ele atiravam setas e pedras. Como barulho do guerreiro e de suas armas batendo fortemente no chão, todos fugiram para oslados, mas logo voltaram-se para verificar se ele ainda vivia. E o ataque sobre ele foi feroz.Alexandre e apenas dois companheiros encostaram-se contra a muralha, próximos queestavam de uma grande árvore, e daquele ponto mesmo enfrentaram a multidão de inimigose seus golpes violentos. Chegaram a ferir seriamente Alexandre com um golpe que furou suaarmadura na altura do peito. "O golpe foi tão forte que ele, perdendo as forças, caiu de joelhos: aquele que haviadesferido o golpe correu depressa com a cimitarra desembainhada na mão, mas Peceutas eLimneu lançaram-se à sua frente e foram ambos feridos; Limneu morreu na hora e Peceutasenfrentou-o, enquanto o próprio Alexandre matava o bárbarocom suas próprias mãos, depois de ter recebido várias feridas pelo corpo todo. Finalmentedesferiram-lhe um golpe de cacete na nuca, deixando-o atordoado" ("Alexandre, o Grande",de Plutarco). Forrest, porém, discorda dessa tradução, uma vez que, segundo ele, "Alexandre recebeuum violento golpe na nuca com uma pedra, que apagou sua visão por um bom tempo" (ApudForrest) Alexandre foi salvo pela imediata afluência de soldados macedônios, mas permaneceumuitos dias entre a vida e a morte. Pois bem, esse inimitável herói da história greco-macedônica que foi Alexandre, oGrande, sempre foi muito apreciador dos esforços e dos sacrifícios feitos por seus soldados.Tanto isso é verdade que, um ano antes de morrer procurou mandar de volta à Macedônia,com todo um aparato de segurança, "os doentes e os inválidos, que haviam perdido algummembro na guerra" ... Alexandre passou alguns dissabores com seus principais comandantesdevido a esse plano, mas acabou por fazê-los retornar todos à pátria, "após lhes haver dado

magníficos presentes; escreveu ao seu lugar-tenente Antípater, que em todas as assembléiasde jogos e de divertimentos públicos, eles fossem preferidos e se sentassem nos melhoreslugares, coroados de flores e quis ainda que as crianças órfãs dos que haviam falecido, aoseu serviço, recebessem o soldo de seus pais" ("Alexandre, o Grande", de Plutarco).

- *Asclepéia de Epidauros: seu significado para pessoas deficientes* Conforme analisamos anteriormente, a influência dos deuses foi marcante empraticamente toda a vida da Grécia Antiga, e mesmo depois de instalado o Cristianismo.Mais do que ninguém conhecedores disso, os sacerdotes e sacerdotizas procuravam, portodos os recursos à sua disposição, tornar o seu deus específico o mais eficaz e o maispoderoso possível. Asclépios, que os romanos, devido a uma corruptela de pronúncia, muito mais tardepassariam a chamar de Esculápio, reconhecido como o deus da cura e da medicina, foi umcaso todo especial e que merece toda a nossa atenção, dentro do tema que estamosprocurando analisar, contando com templos em cidades, ilhas e mesmo nações as maisdiversas que recebiam a influência grega. Seu templo mais famoso foi aquele localizado em Epidauros, vila situada a nordeste doPeloponeso, ao sul da Grécia de nossos dias. Havia, no entanto, muitos outros templos ealguns deles considerados como muito importantes, tais como o de Pérgamo, de Tricca e deCós. Em sua grande maioria os templos de Asclépios localizavam-se em pontos de altasalubridade devido ao ar muito puro, às águas termais e algumas outras condições que hojecaracterizam em geral as "estações hidrominerais". Quanto ao templo e às diversas instalações adjacentes de Epidauros, podemos admirarapenas suas ruínas, a mais de doze quilômetros do porto de Palaia Epidhavros. E o visitantenão pode deixar de ficar admirado com a extinta pujança daquilo que por séculos diversosfoi reconhecido como a "Asclepéia de Epidauros". Foram escavadas, parcialmenterestauradas e tombadas as ruínas de seu teatro – famoso e muito bem conservado, sendoconsiderado como um dos melhores de toda a Grécia de hoje - do estádio esportivo, doginásio que contava até com piscina, de uma espécie de hotelaria, de um muito sofisticado ecomplexo templo circular conhecido como "tholos", do próprio templo de Asclépios, de umaconstrução adjacente ao templo e conhecida como "abaton" e também de um hospital. Lemos no estudo biográfico romanceado sobre a vida de Marco Túlio Cícero, intitulado"A Pilar of Iron", da escritora norte-americana Taylor Caldwell, uma descrição minuciosa deEpidauros do século I a.C. e muitas de suas instalações. Vários pontos dessa descrição dosambientes são muito importantes para melhor entendermos o real significado do conjunto deconstruções chamado de Santuário de Asclépios, ou "hiéron", no próprio grego, para pessoasvítimas de doenças crônicas, de males misteriosos e tidos como incuráveis e de deficiênciasdas mais variadas naturezas. A escritora valeu-se de uma vasta documentação, visitas aoslocais e conhecimentos acumulados por estudiosos especializados nas ruínas e no antigofuncionamento de Epidauros. Baseou-se também em muitas discussões com sociedadeshistóricas e arqueológicas gregas. Diz ela em seu famoso livro que o "santuário deAsclépios, conhecido em todo o mundo civilizado, não era apenas um templo religioso emiraculoso, mas toda uma comunidade". Segundo a autora, em consonância comdocumentos históricos sobre o assunto, o santuário recebia continuamente pessoasportadoras de males os mais variados e muitos de natureza grave, e era o último recurso paraaqueles que haviam sido abandonados ou desenganados pelos médicos como casosincuráveis ou sem qualquer possibilidade de solução.

Ali surgiam continuamente pessoas com artrite, cegos, surdos, mudos, deficientesmentais, vitimas de paralisias, reumáticos, casos de doenças degenerativas, vítimas depicadas de aranha ou de cobra, casos de gestação difícil, vítimas de acidentes com seqüelasgraves e muitos outros. Por essa razão, e levando-se em conta o cerimonial adotado pelos sacerdotes para permitira aproximação ao famoso deus da cura e da medicina, não é de admirar que eles fossemsempre médicos muito experimentados que guardavam em segredo fechado um verdadeiro esurpreendente monopólio de conhecimentos passados muitas vezes de pai para filho.Tratavam os casos não apenas com atenção e carinho de um sacerdote ou autoridadereligiosa, mas com avançados conhecimentos de medicina. Epidauros, devido ao seu movimento contínuo e permanente afluência de casos médicosque durou mais de quatro séculos, chegou a representar um campo de observação e deprática da medicina antiga dos mais sérios de toda a Grécia Clássica, mas quase quetotalmente inserido num ambiente fechado e muito místico no qual a fé nos poderes deAsclépios desempenhou um papel de fundamental importância.

- *As famosas instalações de Epidauros* Analisemos um pouco suas instalações. O recinto sagrado propriamente dito ("hiéron")contava com algumas áreas especiais, conforme poderá ainda hoje ser observado naspróprias ruínas ali expostas. Dentre esses ambientes físicos especiais é necessário destacar ochamado "abaton" e o próprio templo do deus Asclépios. O primeiro é um amplo pórtico,todo construído em colunadas praticamente ao lado do templo, sendo internamente divididoem dois níveis. No nível inferior ficavam os casos de pessoas impossibilitadas de andar ouque provocavam sérios empecilhos para seu transporte e no superior havia acomodaçõespara os casos menos graves. Há alguns estudiosos de Epidauros que afirmam ser a separaçãoem níveis correspondentes à distribuição por sexo. Para todos os fiéis que desejavam uma aproximação a Asclépios havia condiçõespreviamente estabelecidas pelos sacerdotes tanto para entrada no templo como parautilização do "abaton". Os médicos-sacerdotes ficavam conhecendo todos os casos comantecipação e, a pretexto de regras do culto, iniciavam um tratamento prévio através de ritospurificadores incluindo neles os banhos medicinais, jejuns, dietas especiais, sacrifícios aodeus, donativos ao complexo sagrado e outros tipos de intervenção que procuravam ligarintimamente aos ritos de aproximação ao "abaton", caso o devoto tivesse condições de cura,possibilidades eventuais de volta ou necessidade de orientações para cura mais demorada.Após esses trabalhos iniciais e caso o devoto cumprisse todos os requisitos iniciais, ele eraaceito para passar uma noite no "abaton", dormindo sobre uma pele de animal sacrificado aodeus ou sobre um catre, em ambiente intencionalmente misterioso. O templo de Asclépios, em Epidauros, era de um estilo dórico puro, todo cercado decolunas, medindo 25,50 metros de comprimento e 13 metros de largura. Suas paredes eramconstruídas de pedra rebocada de branco. Seu teto era todo forrado com táboas de cipreste.No frontão do templo havia uma vistosa estátua de Niké, a deusa da vitória. A entradaprincipal do templo era bem ampla, com cinco colunas dóricas e contava com uma rampa deacesso. Rampas de acesso eram também usadas nas instalações do edifício conhecido como"tholos", do "abaton" e da "propiléia" do famoso templo, conforme podem ainda ser notadasnas ruínas existentes em Epidauros. O piso da nave do templo era acabado em mármorebranco e preto. O altar interno do templo(havia o altar externo, para sacrifícios de animais), a meio caminho da nave, era de mármorebranco, levemente iluminado por lamparinas. E ao fundo, em ambiente suavemente

rebaixado e cercado por leves degraus, ficava um trono no qual estava a bela imagem deAsclépios, em marfim e ouro, rosto sereno, com uma das mãos segurando um bastão e aoutra pousada sobre a cabeça de uma serpente sagrada. A seus pés, um cão sagrado.

- *O sistema de funcionamento de Epidauros* Desde a entrada do templo até o trono de Asclépios, sacerdotes e auxiliares espalhavam-sepor todo o ambiente, ajudando os enfermos ou as pessoas devotas, orando ou entoandocânticos sacros. Cuidavam para que tudo corresse bem para os fiéis, evitando zelosamentepara que ali dentro não sucedessem nem mortes nem nascimentos. Eventualmente algunscães cruzavam o local, pois além de serem considerados animais sagrados, eram ali mantidospara a vigilância e salvaguarda do templo. Serpentes sagradas e não-venenosas eram olhadascom extremo respeito em seus raros e ocasionais passeios pelos cantos do templo ou peloarvoredo que o cercava - eram elas consideradas como o próprio símbolo do deus Asclépios. O devoto portador de um mal ou de uma deficiência, e em geral desenganado por médicos- ou deles desiludido - após um período de preparação já citado e que poderia durar algunsdias, dormia uma noite no local conhecido como "abaton", sendo preparado por algunsmétodos hipnóticos ou pelo consumo de alimentos ou poções soníferas receitadas pelosmédicos-sacerdotes. Essa espécie de "retiro espiritual" para o qual havia uma série deorientações, era conhecida como "noite de incubação", e considerada como elementoessencial para o culto do deus e a eventual efetivação da cura. Era durante essa noite queaconteciam visões ou sonhos, e pela manhã os sacerdotes anotavam e interpretavam todoseles, como se fossem mensagens diretas do próprioAsclépios, sem, todavia, descuidar das medicações ou das providências que vinhamadotando desde a chegada do devoto ao santuário.

- *Plutão, deus da riqueza, curado por Asclépios* Aristófanes (450 a 388 a.C.), em sua peça "Plutão, o Deus da Riqueza", fala-nospormenorizadamente do ritual utilizado em templos de Asclépios. Trata-se de uma tramabem desenvolvida na peça na qual vemos Cremilos, pobre e honesto, procurando um oráculopara encontrar a riqueza. Logo após, ao perseguir e dominar um mendigo cego, percebetratar-se de Plutão, o próprio deus da riqueza. Vejamos um trecho em verso, no qual Aristófanes indica a já consagrada fama deAsclépios:

"Cremilos - Restaurar a visão... Blepsidemos - . . . Restaurar a visão de quem? Cremilos - Restaurar a visão de "Riqueza", do modo que pudermos! Blepsidemos - O que? ! Ele é realmente cego? . . . Cremilos - Ele é, realmente! Blepsidemos - Ah! Porisso é que ele jamais veio a mim. . . Cremilos - Mas agora ele virá, se for o desejo dos céus. Blepsidemos - Não seria melhor chamarmos um médico? Cremilos - Existe neste instante algum médico em toda a cidade? Não há pagamentos e,portanto, não há especialistas! Blepsidemos - Pensemos um pouco. . . Cremilos - Não há nenhum! Blepsidemos - Não há mais nenhum. . .

Cremilos - Então, será melhor fazermos aquilo que eu já pretendia: Fazê-lo dormir notemplo de Asclépios a noite toda. Blepsidemos - Estou certo de que é melhor mesmo. Portanto, deixe de vadiar: Rápido, façaalguma coisa..." (Apud Edelsteinl

Carion, outro personagem da comédia, encarregado de levar Plutão até então disfarçadoem mendigo cego ao templo de Asclépios, volta muito feliz de sua viagem e conta à esposacomo havia ocorrido a cura. Usa uma linguagem pitoresca e por vezes muito irreverente.Vejamos, numa tradução em prosa, os pontos que mais nos interessam em sua narrativa elembremo-nos de que ela foi escrita quatro séculos antes do nascimento de Jesus Cristo. Elanos fala de perto a respeito dos problemas das pessoas com deficiência à busca de cura paraseus males, para os quais os médicos de então não encontravam soluções. "Carion (dirigindo-se à esposa) - Ouça, eu vou lhe contar todo esse negócio incrível, dospés até a cabeça"... ... "Logo atingimos o templo do deus, levando o homem muito infelizentão, mas tão feliz e tão rico agora. Imediatamente levamo-lo até o mar e lá obanhamos"... ..."Depois, levamo-lo ao recinto sagrado. Lá, sobre o altar, bolos de mel eguloseimas eram oferecidos, alimento para a chama de Hefesto"... "Esposa - Não havia outros para serem curados?" "Carion - Neocleides era um deles; o pobre cego que durante seus furtos havia furado seupróprio olho. E muitos outros, doentes com todas as formas de doenças. Logo o servidor dotemplo apagou as luzes e mandou-nos dormir, sem nos movermos ou falarmos a qualquerbarulho que ouvíssemos. Assim sendo, deitamo-nos num repouso tranqüilo". Carion, muito observador, muito irreverente e muito curioso do que ali poderia suceder,vê na penumbra do "abaton" a figura de um sacerdote coletando e levando as oferendas queestavam sobre o altar, colocando-as todas num saco. E após algumas peripécias no ambientede recolhimento pretendido pelos sacerdotes, conta o aparecimento de Asclépios,acompanhado das deusas Panacéia e laso. O deus vai de paciente a paciente, muito calmo,estudando cada um deles. Perto do cego Neocleides um servente coloca ao lado do deus um pequeno pilão e umacaixa de medicamentos; o deus faz a mistura com vários ingredientes e coloca-a nos olhosde Neocleides, sem curá-lo, mais para castigá-lo por seus furtos do que para livrá-lo dacegueira parcial. A seguir, dá atenção ao cego Plutão: "Carion - Depois, sentou-se ao lado de Plutão e primeiro apalpou a cabeça do paciente edepois, tomando um lenço de linho, limpo e branco, limpou seus lábios e os secou. Então,Panacéia, com um manto vermelho, cobriu seu rosto e sua cabeça; o deus assobiou e duasgrandes serpentes saíram do santo altar. E escondidas sob o manto vermelho, elas lamberamseus olhos, segundo me parece. E, querida, antes mesmo que você pudesse tomar dez cálicesde vinho, Plutão levantou-se e enxergou" (Apud Edelstein).

- *Os testemunhos das muitas curas* Segundo arqueólogos e historiadores especializados no assunto, ocorreram, só emEpidauros e sem considerar outros templos, curas verdadeiras devido a medicações corretase bem dosadas, devido a intervenções cirúrgicas das mais variadas naturezas, devido abanhos especiais, devido a massagens e certos tratamentos ligados àquilo que hoje podemoschamar de fisioterapia, e também devido à sugestão. No entanto, destaque-se que em todosos casos que recorreram a Asclépios existiu por parte dos beneficiários uma fé muito forteem seu poder de cura. Sua fama ultrapassava em muito o Mar Egeu e o Adriático.

Uma pequena parte dessas curas mais misteriosas foi para sempre registrada em pedrasvotivas, em ex-votos especiais, em placas de agradecimento, em pergaminhos, em colunasvotivas, hoje localizados em diversos museus e no próprio acervo histórico de Epidauros. Existem, por exemplo, algumas colunas votivas que citam muitos casos, incluindo mais decem curas consideradas hoje como inexplicáveis e tidas como miraculosas. Eis um testemunho eloqüente relativo à cura de um mal indefinível, mas de naturezagrave: "O lugar está deserto e não há ninguém ao meu redor para ouvir minhas palavras.Acreditem-me, ó homens, estive morto durante todos os anos que eu já havia vivido. O belo,o sagrado, o mau eram todos semelhantes para mim; tal era, segundo me parece, a escuridãoque me envolvia em minha compreensão e que de mim escondia todas essas coisas. Masagora que aqui vim, recomecei a viver pelo resto da minha vida, como se eu tivesse dormidono templo de Asclépios e tivesse sido salvo. Este sol tão grande, tão belo, agora por mimdescoberto pela primeira vez, homens! Agora, hoje, eu vejo vocês, o ar, a acrópole, o teatro,sob o céu claro!"... (Apud Edelstein) Outro caso citado por vários autores está retratado numa invocação muito fervorosa quemostra a imensa fé e o forte conceito de Asclépios no seio do povo. Diz ela: "Ó Asclépios, ódesejado, o invocado deus! Como poderei ir ao teu templo se tu mesmo não me conduzires aele, ó invocado deus que superas o esplendor da terra primaveril! E esta é a oração deDiofanto. Salva-me, ó misericordioso deus; somente tu, na terra e no céu. Ó piedoso deus, odeus de todos os milagres, graças a ti Diofanto não andará mais como um caranguejo, masterá bons pés como tu o quiseste" (Apud Montanelli). Na maioria dos casos considerados como inexplicáveis e milagrosos, não tem sido viávelà ciência médica fazer julgamentos objetivos das curas por não ser mais possível contar comqualquer base cientifica para análise quanto aos males alegados que afetavam as pessoasbeneficiadas e muito agradecidas ao deus da cura e da medicina. Vejamos, a título deilustração, alguns casos de pessoas que haviam levado ao templo de Asclépios em Epidaurosproblemas de deficiências sérias, tais como a cegueira, dificuldades de locomoção e outros, eas circunstâncias de sua cura. a) Nicanor - deficiência nas pernas: Segundo uma das colunas votivas acima indicadas eque mais parecem compilações de dados a respeito de curas miraculosas, Nicanor era umhomem que sofria séria limitação nas pernas. É indicado como manco. Estava recolhido esentado no interior do templo de Asclépios, orando em preparação para a sua "noite deincubação" no "abaton". Ao seu lado, a bengala que era forçado a usar. De súbito ummisterioso e travesso menino passou correndo ao seu lado e tirou-lhe a bengala, dirigindo-sena direção da saída. Nicanor, surpreso e aborrecido, levantou-se para perseguir o garoto. Sóquando chegou ao lado externo do templo, à procura do menino, é que notou que estavacurado de sua limitação física. b) Alkétas, de Haliéis - homem cego: Este homem cego, durante a noite que passou no"abaton" teve um sonho: viu o próprio deus Asclépios chegar até ele e abrir-lhe os olhoscom seus dedos. As primeiras coisas que enxergou, enquanto o deus manipulava seus olhos,foram as sombras das árvores do lado de fora do santuário, no meio da noite. Ao chegar odia saiu curado. c) Lyson, de Harmione - menino cego: Como milhares de outros casos, este menino cegoestava no templo de Asclépios para pedir sua cura e nada mais. Ali sentado, esperavapacientemente. Em certo momento sentiu, um tanto surpreso, que um dos cães sagrados dosantuário havia chegado perto dele e começara a lamber seus olhos. Um pouco depoislevantou-se muito feliz, pois começara a enxergar as coisas. Ficou também curado.

d) Eschino - homem cego por ferimento recente: Com este homem aconteceu algodesagradável, muito embora o incidente seja bastante interessante. Curioso por saber o quepoderia estar acontecendo no "abaton", no meio da noite, com tantos doentes ali dormindo eas histórias de que Asclépios aparecia em pessoa, subiu numa das grandes árvores quedavam sombra ao recinto, sem que os vigias ou os sacerdotes percebessem. Procurou umgalho que lhe desse acesso ao muro perto das colunadas do "abaton", para poder ver melhor.O galho, entretanto, não suportou seu peso e ele caiu fragorosamente sobre umas estacasexistentes no jardim, ferindo gravemente os olhos. Em lamentável estado, foi socorrido.Suplicou perdão pela sua curiosidade. Depois dos primeiros cuidados foi recolhido ao"abaton" para uma noite de preces, tendo de lá saído curado. e) Menina muda: Não identificada, existe a história de uma menina muda que, ao entrarno recinto sagrado, corria de cá para lá, curiosa e muito irriquieta. De repente, pega desurpresa e aterrorizada com uma serpente sagrada que descia de uma árvore, gritou pelo pai,pedindo socorro. A partir desse momento voltou a falar. f) Menino mudo não identificado: Também sem identificação, este menino mudo chegouao templo de Epidauros acompanhado pelo pai, com o objetivo evidente de recuperar a voz.Após ter feito os sacrifícios e passado pelos ritos iniciais, como era costumeiro para todos oscasos, estava sentado no templo, aguardando, em oração, ao lado do pai. O servente dotemplo, que acendia as lamparinas para sua iluminação interna, olhando para o pai domenino sugeriu que ele deveria prometer trazer, dentro de um ano, a oferta de agradecimentopela cura do filho, caso o garoto obtivesse aquilo que viera buscar naquele templo deAsclépios. Mas foi o próprio menino mudo que de repente respondeu: "Eu prometo". O pai,espantado, pediu que ele repetisse. O garoto respondeu sem hesitação - e depois disso ficoucurado.

O leitor talvez tenha curiosidade de saber a natureza de mais algumas dessas fantásticascuras, consideradas como milagrosas, ocorridas em Epidauros, da mesma forma comoaconteceram em muitos outros dos templos de Asclépios. Apenas nas colunas votivas citadasacima pudemos constatar: 12 curas de oftalmias sérias, incluindo a cegueira total 9 curas de defeitos nas pernas, incluindo paralisias 3 curas de afasia 2 curas de casos de surdez 1 cura de tuberculose 1 cura de convulsões (talvez epilepsia) 2 curas de casos de gota 2 curas de enxaquecas 1 cura de picada de tarântula 1 cura de infecção por piolhos.

Além disso, há citações de diversos casos de gravidez problemática, que era umaverdadeira especialidade de Epidauros, de partos difíceis e também de diversos casoscurados por intervenções cirúrgicas que chegam a totalizar mais de uma dúzia. Naturalmente que os casos mais graves ou que não poderiam encontrar solução nem pelafé nem pela intervenção dos médicos-sacerdotes, abrigavam-se pelas imediações emalojamentos ou, muito mais próximo do aparecimento do Cristianismo como nova força,num "hospital"construído por Antonino Pio (86 a 161 d.C. e lá, depois de muito sofrimentoou de um definhar continuo, muitos deles acabavam morrendo. O problema da grande

afluência de mulheres em adiantado estado de gravidez e também de doentes desenganadospor médicos e à beira da morte levaram também à construção de uma espécie de hotel ouabrigo. Essas instalações ficaram conhecidas como "Katagógion", tendo mais ou menos 160quartos. Existem ainda hoje alguns trechos da estrada entre as ruínas de Epidauros e o porto daPalaia Epidhavros que fazem parte do chamado "caminho sagrado", todo ele ladeado portúmulos daqueles distantes séculos. De acordo com alguns autores, Epidauros e alguns outros templos de Asclépios tiveramdurante séculos a influência talvez correspondente àquela que hoje em dia tem Lourdes, naFrança e vários outros lugares considerados como milagrosos. Os tratamentos nessestemplos de Asclépios funcionaram da mesma forma como ainda hoje funcionam ostratamentos ministrados em templos na ilha grega de Tenos, que são prescritos através dasinterpretações de sonhos ou de visões ocorridas durante a noite num recinto consideradosagrado do templo. A forte influência de Asclépios, seja em Epidauros, seja em muitos outros templosespalhados pelo mundo greco-romano, só foi cedendo muito vagarosamente aos ataques doCristianismo que procurava sistematicamente anular o significado da miríade de deuses edeusas do mundo pagão.

- *"Apothetai" do monte Taygetos, em Esparta* Todos aqueles que trabalham em reabilitação já ouviram de alguma forma falar a respeitode um certo costume espartano de lançar crianças defeituosas em um precipício, em épocasanteriores ao advento do Cristianismo. Pessoalmente sempre tivemos curiosidade a esserespeito e chegamos mesmo a fazer contatos diretos e visitas, procurando das autoridades dereabilitação da Grécia algum esclarecimento a respeito do assunto. Talvez que ajude no entendimento dessa questão - que, segundo os espartanos de hoje emabsoluto relaciona-se exclusivamente a Esparta antiga - a menção a ele feita claramente porPlutarco, em sua obra "Licurgo". Segundo nos conta o escritor o que sucedia era isto: O paide qualquer recém-nascido das famílias conhecidas como "homoioi" (ou seja, "os iguais") eque eram a nata de Esparta, não tinha o direito de criá-lo, pois o Estado subordinava a todos.Pelas leis vigentes, ele era obrigado a levar o bebê, ainda bem novo, a uma espécie decomissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade, que se reunia paraexaminar e tomar conhecimento oficial do novo cidadão. Segundo Plutarco, eles se reuniamnum local conhecido como "leschi" (correspondendo certamente a "edifício", "órgãooficial", "repartição") para esse fim. Se nesses locais os autorizados anciãos anotavam ounão os dados pessoais de identificação, de paternidade, de maternidade, de local e de data donascimento, de sexo e outros, o historiador não nos indica. Pelo seu relato sabemos que, sefosse um bebê normal e forte ("se o achavam belo, bem formado de membros e robusto") eleera devolvido ao pai que passava a ter a incumbência de criá-lo. Depois de certa idade -entre os 6 e 7 anos - o Estado tomava a si a responsabilidade e continuava sua educação, queera dirigida para a arte de guerrear, como podemos comprovar pelos estudos da HistóriaGrega Antiga. No entanto, "se lhes parecia feia, disforme e franzina", como refere Plutarco,esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam,ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir e a levavam a um local chamado"Apothetai", que significa "depósitos". Tratava-se de um abismo situado na cadeia demontanhas Taygetos, perto de Esparta, para lá a criança ser lançada e encontrar sua morte,"pois, tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela

vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã erija durante toda a vida" ("Licurgo", de Plutarco).

- *Como era o ambiente de Esparta* Não nos é fácil nem tranqüilo entender esse costume - ou outros adotados em Atenas,Roma e outras cidades - a respeito do qual o leitor poderá encontrar menções também emalguns escritores e filósofos antigos, tais como Platão e Aristóteles, citados um pouco maisadiante neste mesmo capítulo. Talvez ajude nossa compreensão o conhecimento dos usos e costumes, das circunstânciase do ambiente que imperavam em Esparta ao redor do século V ou IV a.C.. O próprioPlutarco, ao comentar a vida de Licurgo, poderá nos dar uma idéia aproximada dessascaracterísticas, especialmente quando considera as tentativas que fazia para tornar osespartanos um povo inexpugnável. Separemos alguns trechos dessa famosa obra: "XXV - Quanto à educação das crianças, que ele estimava ser a mais bela e a maior coisaque poderia estabelecer, ou introduzir um reformador de leis, começando de longe,considerou primeiro os casamentos e a geração das crianças. Pois, quanto ao que dizAristóteles, que ele ensaiou reformar as mulheres e disso desistiu incontinenti, ao ver quenão podia consegui-lo, por causa da enorme licença que elas haviam usurpado na ausênciados maridos, porque estes eram constrangidos a partir constantemente para as guerras,durante as quais os homens se viam obrigados a deixá-las senhoras de suas casas, honrando-as e acariciando-as além da medida, chamando-lhes damas e senhoras - isso me parecefalso: a verdade é que tratou de regulamentar-lhes e ordenar-lhes a maneira de viver, assimcomo a dos homens, de acordo com a razão. Primeiramente, pois, ele quis que as moçasenrijecessem o corpo, exercitando-se em correr, lutar, jogar a barra e lançar o dardo, a fim deque o fruto que concebessem, vindo a tomar forte raiz num corpo disposto e robusto,germinasse melhor; e também para que, reforçadas por tais exercícios, suportassem commais vigor e facilidade as dores do parto. E para tirar-lhes toda a delicadeza e ternurafeminina, acostumava as mocinhas, assim como os rapazes, a freqüentar as procissões,dançarem nuas em algumas festas e sacrifícios solenes e cantarem na presença e à chegadados rapazes, aos quais, muitas vezes, ao passarem, dirigiam algum brocardo apropriado,tocando ao vivo aqueles que em alguma coisa tivessem esquecido seu dever; e não rarotambém recitavam em suas canções os louvores dos que destes eram dignos" ... "XXVI - Mas, quanto ao fato de se mostrarem inteiramente nuas em público, não havianisso vilania alguma, pois, a exibição era acompanhada de toda a honestidade, nemlubricidade nem dissolução; antes pelo contrário, trazia consigo o costume da simplicidadee, entre elas, a vontade de possuir o corpo mais robusto e melhor disposto" ... “XXX - Pois, em primeiro lugar, Licurgo não queria que as crianças pertencessem aparticulares, mas fossem comuns à república, desejando, assim, também que aqueles quetivessem de ser cidadãos fossem gerados não por todos os homens, mas somente por gentede bem" .."Não obstante guardavam as mulheres encerradas debaixo de chaves com medo deque elas concebessem de outros que não eles, mesmo quando desmiolados, doentios evelhuscos, como se não fosse primeira e principalmente por culpa dos pais e mães, e dos queas educam, que as crianças nascem viciosas e defeituosas, quando filhas de pessoastaradas"... No item XXXII Plutarco fala das crianças defeituosas e da solução que a sociedadeespartana havia encontrado para elas no "Apothetai" da cadeia de montanhas Taygetos,conforme comentamos um pouco acima. O livro continua, porém, a nos dar indicativos

muito ricos do ambiente que imperava em Esparta, onde uma pessoa deficiente de fato nãoconseguiria sobreviver. “XXXIII - ... e assim, não era permitido aos pais educar os filhos à sua moda, como bemlhes parecesse. Pois, logo que estes chegassem à idade de sete anos, ele os tomava e asdistribuía por grupos para serem educados e se habituarem a brincar, aprender e estudar unscom os outros; depois, escolhia em cada grupo aquele com aparência de ser o mais avisado eo mais corajoso no combate, ao qual dava a superintendência do grupo todo. Os outrossempre tinham a vista voltada para ele e obedeciam às suas ordens, suportandopacientemente as punições que ele lhes ordenava; de maneira que quase todo o estudo eraaprender a obedecer" ("Licurgo", de Plutarco).

- *Outras formas de eliminar crianças defeituosas na Grécia Antiga* No antigo Peloponeso, sob a liderança guerreira de Esparta, havia também outras formasde dispor de crianças malformadas ou doentias. Não ocorria necessariamente a morte, mas a"exposição" (* tal exposição dava-se em local onde a criança podia ser encontrada. Noentanto, o chamado “abandono” correspondia a deixar à própria sorte para morrer. Princípiogenericamente aceito na Grécia, não era todavia aceito na sociedade de Tebas, igualmente“civilizada”). Recorriam os seus habitantes a lugares considerados como sagrados, tais comoas florestas, os vestíbulos dos templos, as beiras dos rios, as cavernas, onde as crianças eramdeixadas bem embrulhadas numa grande panela de barro ou num cesto, com roupas quecontinham seus símbolos maternos ("Xymbola metrós"). Elas podiam sobreviver ou não. Ossímbolos bordados nas roupas e nas cobertas poderiam inclusive levar à identificação dafamília original. Caso uma criança assim exposta morresse, a manta e vestidos acabavamservindo para adorno em seu funeral. No entanto, alguns filósofos dos mais renomados chegaram a alimentar a idéia doextermínio das crianças defeituosas, sendo um deles um dos maiores e mais conceituadospensadores gregos: Platão (428 a 348 a.C.). Ao filosofar sobre uma utópica repúblicacompletamente nova para a Grécia, Platão afirma:. . . "e no que concerne aos que receberamcorpo mal organizado, deixa-os morrer". Afirma ainda o insigne filósofo: "Quanto às crianças doentes e às que sofrerem qualquerdeformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto".("República", de Platão). Assim, na famosa república idealizada por Platão, só os bem formados de corpo e deespírito é que teriam qualquer papel. A criança ou adulto deficientes estariam, nessahipotética realidade, fadados a morrer. Em seu conceito, e em suas próprias palavras,"estabelecerás em nossa república uma medicina e uma jurisprudência, como acabamos dedizer, que se limitem ao cuidado dos que receberam da natureza corpo são e alma formosa".E é certamente deste pensamento e desta frase de Platão que se originou o ainda hoje usadomoto característico de programas esportivos ou de bom condicionamento físico: "Mens sanain corpore sano" - Mente sã num corpo sadio. De sua parte Aristóteles escreveu o seguinte: "Quanto a saber quais as crianças que sedeve abandonar ou educar, deve haver uma lei que proíba alimentar toda criança disforme"("Politics", de Aristóteles). Existem relatos de afogamentos de recém-nascidos defeituosos, ou de abandono dosmesmos às margens do rio Eurotas, que corta o sudeste do Peloponeso, na Lacônia, indodesaguar no Mediterrâneo, após banhar a cidade-estado de Esparta dos séculos anteriores aCristo.

Algumas das circunstâncias que teriam levado governantes a adotar medidas tão difíceisde aceitar hoje foram mais ou menos as seguintes: os cidadãos espartanos não eram nem atotalidade nem mesmo a maioria dos habitantes de Esparta, mas uma elite da população localque habitava aquela região. Eles eram conhecidos como os "homoioi" (os "iguais"),conforme referimos anteriormente. Dedicavam-se às guerras e suas obrigações giravam emtorno de estar preparados para enfrentar não só as eventuais convulsões internas provocadaspelas demais facções da sociedade espartana, como também os inimigos externos da grandee poderosa Esparta. Assim, a cidade-estado não contava, como também não queria contar,com cidadãos fracos, doentios e imperfeitos. No entanto, a sobrevivência eventual de uma criança defeituosa podia perfeitamenteocorrer, como ocorria, uma vez que as leis de extermínio diziam apenas respeito aos filhosdos "homoioi", que eram os descendentes diretos dos dórios. Nas outras classes sociais não ocorria esse tipo de restrição. Tais eram os casos dos"periecos", dedicados aos trabalhos da lavoura ou cuidado com o gado, ou dos "ilotas",escravos que eram obrigados a manter-se vinculados à terra, sem qualquer tipo de privilégio.

- *A história de Labda, mãe de um rei de Corinto* Os costumes que imperavam em Esparta não foram necessariamente universalizados portodas as cidades-estado da Grécia dos seis últimos séculos antes da Era Cristã, pois cadauma delas, bem como cada uma das pequenas ou grandes nações ao seu redor, desenvolviaseu próprio sistema de leis e de governo, e seus próprios usos e costumes. No tocante às atitudes face a crianças nascidas com deficiências físicas e ao trato a elasdispensado, encontraremos na história de Corinto, uma das mais fortes e melhorconceituadas cidades-estado da Grécia dos séculos VII e VI a.C., indícios interessantesinseridos no livro "Terpsícore", parte integrante da obra intitulada "História", de Heródoto. Lá encontraremos referências à filha de um dos importantes membros da oligarquia dosBáquidas, dominante em Corinto há muitos anos, e que formava uma enorme família devidoao fato de todos os seus membros casarem entre si. Acontece, porém, que em época não bem determinada, Anfíon, um dos seus membros,teve uma filha que nasceu com malformação congênita, ao que parece, pois tinha uma daspernas mais curta que a outra, o que a levava a claudicar sensivelmente. Seu nome eraLabda. O costume de casamentos consangüíneos, entretanto, não funcionou no caso dessa jovem,pois nenhum Báquida queria casar-se com ela devido a sua deficiência física. Assim,casaram-na com um jovem do burgo de Petra, aparentemente de poucas qualificações,embora de sangue nobre, cujo nome era Eécion, filho de Echacrates. Depois de algumas dúvidas quanto à fertilidade de Labda, o que levou o jovem marido aconsultar uma pitonisa, ela engravidou e deu à luz um menino. Segundo o oráculo elegovernaria Corinto e esmagaria os déspotas Báquidas. Sabedores do oráculo, os Báquidas aguardaram o nascimento e dez deles receberam amissão de ir a Petra e matar o garoto. A gentil Labda, ao receber a visita dos dez homens deCorinto - de certa forma seus parentes - singelamente achou que se tratava de visita decordialidade, após tantos anos de desprezo e marginalidade. Passou o filho aos braços doprimeiro visitante, ignorando completamente o propósito criminoso do grupo: esmagá-locontra o chão. Mas naquele mesmo instante a criança de poucos meses sorriu para o estranho, "deixando-o tão comovido que não teve coragem de matá-la, passando-a para as mãos do outrocompanheiro. Este, também tocado de piedade, transferiu-a para as mãos de um terceiro e

assim passou ela de mão em mão, sem que nenhum se animasse a sacrificá-la. Devolvendo orecém-nascido ao carinho de sua mãe, deixaram a casa" ("História", de Heródoto). Diz-nos mais o historiador que Labda teve que tomar providências que denotaramextrema vivacidade e sangue frio para salvar o menino, uma vez que os dez revistaram acasa toda após terem voltado para consumar o crime para o qual tinham sido destacados.Apesar de tudo, conseguiu sozinha ludibriá-los. O filho dessa jovem mãe portadora de deficiência recebeu o nome de Cípselo; ele,chegando à idade adulta, angariou bens e reuniu homens, atacou Corinto e dela se apoderou.Tornou-se logo após seu rei e, após ter vingado sua mãe e muitos dos injustiçados pelosBáquidas, reinou por 30 anos. Terminou bem seus dias.

- *Os costumes em Atenas face a deficiências físicas* No que diz respeito a Atenas - a grande rival de Esparta - quando nascia uma criança, opai celebrava uma festa conhecida como "amphidromia" (de "amphi" que significa "aoredor" e "dromos", para "volta"). Os costumes exigiam que ele tomasse a criança em seusbraços, dias após o nascimento, e a levasse solenemente à sala para mostrá-la aos parentes eamigos e para iniciá-la no culto dos deuses. A festa terminava com banquete familiar. Casonão fosse realizada a festa, era sinal de que a criança não sobreviveria. Cabia, então, ao pai oextermínio do próprio filho. Durante sua vida, entretanto, os cidadãos atenienses tinham ampla proteção das leis paramanterem-se livres de agressões provocadoras de lesões que os pudessem incapacitar para avida normal. Segundo Plutarco, Sólon estabeleceu normas bem claras para proteger tambémcidadãos atenienses enfraquecidos por doenças ou vitimados por deficiências. Em Atenasessas normas, além de garantir a alimentação, davam ampla liberdade para que qualqueragressor fosse processado por atos de injúria ou de ataques físicos, caso algum dessescidadãos deficientes fosse assaltado, espancado ou sofresse qualquer tipo de violência."Qualquer homem que fosse poderia processar o malfeitor" ("Sólon", de Plutarco). Acresce considerar também que as leis atenienses ordenavam que os filhos tinhamobrigação de amparar e sustentar seus pais, seja devido à velhice, seja devido a deficiênciasfísicas (Apud Durant). - *O legado da Grécia Antiga* Para quem vive em pleno século XX na cidade de Esparta, ou visita o produtivo e poéticovale do rio Eurotas, torna-se muito difícil imaginar que as palavras de Plutarco ou os fatosrelatados por historiadores sejam verdadeiros. No entanto, a eliminação de criançasdisformes foi uma constante na História dos povos guerreiros de toda a antigüidade. Foi o Cristianismo que levou a Grécia, em suas múltiplas sub-divisões em cidades-estados, a muito vagarosamente alterar esse e outros costumes, que já vinham sendomodificados pelos séculos afora por diversos governantes e por diversos dos filósofos queenriqueceram sua cultura e sua tradição. A implantação do Império Romano do Leste,posteriormente transformado no Império Bizantino, encontrou a Grécia organizandoinstituições mais e mais voltadas para problemas específicos: lares para deficientes("paramonaria"); lares para pessoas cegas ("tuflokoméia"); instituições para pessoas comdoenças incuráveis (arginoréia "); e também organizações para pessoas muito pobres e paramendigos ("ptochéia"). Apesar das histórias sobre Taygetos e sobre o rio Eurotas, a Grécia deixou para o mundoum saldo muito positivo de leis e costumes que valorizam a bravura e a dedicação à pátria,ao preço da própria integridade física ou da vida. Deixou também muitos conhecimentos

relacionados à medicina, além de vários exemplos de organizações que, muito embora decaráter segregativo e assistencialista, chegaram a tornar-se um claro demonstrativo doreconhecimento do indivíduo como um ser repleto de valores.

4. Os Romanos

O legado de Roma ao mundo tem sido de extremo valor através dos séculos empraticamente todos os campos. Dentre eles cumpre que destaquemos a arquitetura, a saúdepública, as artes, as leis, a literatura e a medicina. Dos assuntos que mais nos interessam neste estudo e rápido passar pela História, o dasleis é dos mais relevantes. Ninguém jamais poderá negar que uma significativa porcentagemde todo o acervo de leis que chegou até nós e foi por nós de certa forma absorvido, derivoudo cuidadoso e muito esmerado trato que os romanos sempre deram ao assunto. Nem tudo,porém, foi bom ou aceitável para nós na legislação romana; nem tudo foi adaptado ou seriaadaptável à nossa realidade ou ao nosso sistema de leis. O mundo de então era bem diversodaquele em que hoje vivemos. No que diz respeito a pessoas com deficiências, não é fácil encontrarmos referênciasprecisas, mas se nos dispusermos a exercícios cuidadosos de estudo da História Romana,encontraremos não apenas leis, mas também fatos, costumes, obras de arte que nossurpreenderão. Veremos, por exemplo, que tanto a história da evolução da medicina romana,tão intimamente ligada à medicina grega, quanto a dos gradativos progressos em termos desaúde pública (por exemplo, abundância de água potável, latrinas públicas, rede de esgotos)garantiram a prevenção de muitos males incapacitantes. E ficaremos espantados aoreconhecer dentre os Césares, dois com sérias deficiências físicas; reconheceremos tambémum famoso censor romano que foi cego; e leremos páginas que nos falam da competência depessoas deficientes... - *O problema da forma humana no direito e nos costumes de Roma* No Direito Romano havia leis que se referiam ao reconhecimento dos direitos de umrecém-nascido e em que circunstâncias esses direitos deveriam ser garantidos ou poderiamser negados. Dentre as condições para negação de direito, a chamada "vitalidade" e a formahumana eram as principais. Como exemplo poderemos mencionar que, tanto os bebês nascidos prematuramente (antesdo 7º. mês de gestação) quanto os que apresentavam sinais da chamada "monstruosidade",não tinham condições básicas de capacidade de direito. Além de não encontrarmos uniformidade nos pontos de vista de autores quanto aosrequisitos básicos para o reconhecimento dos direitos de um ser humano recém-nascido,dentro do Direito Romano, os sinais indicativos da "monstruosidade" eram um fatordecisório para sua negação. Alguns abalizados estudiosos deixam a nítida idéia de que elanão se limitava à eventual similaridade com algum animal - principalmente no rosto oudevido a malformações de membros - mas também a mutilações ou falta de membros.Moreira Alves afirma que a solução dada pelas leis romanas, que àquelas épocas nãocontavam com a medicina ao seu lado ou com mais sólidos princípios de defesa daincipiente vida humana, advinha especificamente de uma lei régia atribuída aRômulo nos primórdios da vida formal de Roma. De acordo com ela, estava proibida amorte intencional de qualquer criança abaixo de três anos de idade, exceto no caso de acriança ter nascido mutilada, ou se fosse considerada como monstruosa. Para casos dessanatureza a lei previa a morte ao nascer.

Segundo o autor citado, havia para o "pater famílias", dentre as faculdades a eleoutorgadas pelo poder paterno (pátria potestas), uma alternativa: poderia expor a criança àsmargens do rio Tibre ou em lugares sagrados, desde que antes de o fazer tivesse mostrado orecém-nascido a cinco vizinhos, para que fosse de certa forma certificada a existência daanomalia ou da mutilação. A obra "De Legibus", de Cícero (Marcus Tullius Cicero - 106 a 43 a.C.), comenta que nasLeis das Doze Tábuas havia uma determinação para o extermínio de crianças nascidas comdeformidades físicas ou sinais de monstruosidade. Em sua linguagem original, a famosa leidizia o seguinte: "Tabula IV - De Jure Patrio et Jure Connubii Lex III - Pater filium monstrosum et contra formam generis humani, recens sibi natum,cito necato". Em nossa língua: "Táboa IV - Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento Lei III - O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma do gênerohumano, que lhe tenha nascido há pouco".

Sêneca (Lucius Annaeus Seneca - 4 a.C. a 65 d.C.) indica que os recém--nascidos comdeformidades físicas eram mortos por afogamento. O grande pensador e filósofo romano nãoanalisa, em seus comentários, a validade da lei em si mesma. Analisa apenas a necessidadede, em nossas vidas, fazermos tudo, mesmo as coisas desagradáveis e chocantes, sem ira,sem ódio. Segundo Sêneca, devemos fazer tudo o que precisamos fazer com naturalidade,eliminando da obrigação o aspecto ódio. Ele cita alguns exemplos que, segundo deduzimos,eram bastante óbvios para os romanos daquela época, quando o Cristianismo começava adesabrochar e seus principais apóstolos atingiam Roma pela primeira vez. Vejamos o queafirma Sêneca: "... Riscai, então, do número dos vivos a todo culpado que ultrapasse o limite dos demais,terminai com seus crimes do único modo viável, mas fazei-o sem ódio" ... "Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não ocortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se cães quando estãocom raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas paraque as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos;se nascerem defeituosos e monstruosos, afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, paradistinguirmos as coisas inúteis das saudáveis" ("De Ira", de Sêneca). O trecho latino pertinente é o seguinte: "... portentosos fetus extinguimus, liberos quoque; si debiles monstrosique editi sunt,mergimus; nec ira sed ratio est, a sanis inutilia secernere" ("De Ira", de Sêneca).

O termo "portentosus" significa extraordinário, muito diferente, monstruoso; a palavra"debilis", segundo o autor Plínio, pode significar tolhido de algum membro ou de algumaparte; Sêneca usa o termo "inutilia", no neutro plural, referindo-se a "fetus" e aos demaisitens mencionados no mesmo texto (cães, touros, ovelhas,membro gangrenado). No entanto, talvez o uso do neutro neste caso relembre-nos quemesmo ao nascer, sem ainda ter o cordão umbilical cortado (ato dos mais importantes noestabelecimento do direito da pessoa nas leis romanas) o recém-nascido era apenas um entesem direitos - e podia ser eliminado.

Presume-se que eram considerados como "monstros" todos os recém-nascidos quetivessem características bem diferentes dos normais, com membros a mais ou a menos, etambém aqueles que apresentassem alguma deformidade muito séria. Houve em épocas bem precisas da História Romana muitos nascimentos de crianças ouabortos de fetos com deformações congênitas, devido a causas não identificadas. SegundoPlutarco "no ano 280 de Roma, um temor supersticioso tinha invadido toda a cidade, porqueas mulheres grávidas davam à luz crianças quase todas elas defeituosas e imperfeitas emalguma parte do corpo, e não havia nenhuma que viesse a termo" ("Publius ValeriusPublicola", de Plutarco). Face à legislação vigente desde os tempos dos primeiros reis deRoma, não se deve nutrir qualquer dúvida quanto ao destino desses recém-nascidos: a lei deextermínio da vida incipiente, seja por afogamento, seja por outros meios, mesmo antes decompletado o nascimento com o corte do cordão umbilical, foi aplicada. Publícola, que eracônsul de Roma, mandou consultar os livros Sibilinos, como era costumeiro fazer aoacontecer fatos misteriosos e causadores de grandes desgraças. Fez a população romanaoferecer sacrifícios especiais a Plutão, o deus das profundezas do Inferno, para tentareliminar o problema que afligia a todos. De providências práticas e próprias para resolver asituação, entretanto, não se tem notícia e nem Plutarco entra em maiores considerações.

- *O destino das crianças deficientes em Roma* Mesmo com a anuência da lei, o infanticídio legal não foi praticado com regularidade.Crianças malformadas, doentias ou consideradas como anormais e monstruosas eram, nomáximo, abandonadas em cestinhas enfeitadas com flores às margens do Tibre. E osescravos ou as pessoas empobrecidas que viviam de esmolas ficavam na espreita e atentospara eventualmente se apossarem dessas crianças, criando-as para mais tarde servirem comomeio de exploração do compadecido e por vezes muito culpado coração romano, obtendoesmolas volumosas. A esmola chegou a ser um negócio muito rendoso em Roma Antiga. Na verdade foi tãorendoso que houve épocas em que foram realizados raptos de crianças patrícias muito novas,para serem mutiladas ou deformadas a fim de se tornarem pedintes nos templos, nas praças enas ruas de Roma e das outras importantes cidades do vasto Império Romano. Certamentefoi por motivos dessa natureza que durante a decadência do Império, os patrícios queocasionalmente tinham filhos defeituosos, sabedores dessas histórias, passaram a usar dasprerrogativas dadas pelo instituto do "patria potestas" para eliminar a vida desses recém-nascidos, não correndo eles mais o risco de se tornarem mendigos e de terem seus corposdeformados. Na Roma dos tempos dos Césares, ou seja, em séculos mais sofisticados e menosbárbaros, deficientes mentais, em geral tratados como "bobos", eram mantidos nas vilas ounas propriedades das abastadas famílias patrícias, como protegidos do "pater familias".Cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidas commalformações eram também de quando em quando ligados a casas comerciais, a tavernas, abordéis, bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezeshumilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da Humanidade. É o historiador Durant que nos informa ainda sobre este assunto "... existia em Roma ummercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou braços, de três olhos,gigantes, anões, hermafroditas" ("História da Civilização", de Durant). Foi extremamente notória em Roma também a utilização de meninas e moças cegas comoprostitutas, além de rapazes cegos como remadores, quando não eram usados simplesmentepara esmolar.

- *O deus da medicina: Esculápio* A exemplo do que ocorrera na Grécia desde o século V a.C. com o deus da cura e damedicina, Asclépios, os romanos também dedicaram templos a um deus semelhante (eimportado da Grécia...), numa espécie de Epidauros romana; o mais famoso desses templosera localizado numa pequena ilha do rio Tibre, a "Insula Tiberina". O interesse dos romanospelo deus da cura e da medicina, em seu próprio modo de ver muito mais específico para otratamento de males instalados do que a deusa Salus (significa "saúde"), surgiu emconseqüência de violenta epidemia ocorrida no ano 293 a.C. Os romanos consultaram osLivros Sibilinos e resolveram mandar uma delegação oficial a Epidauros, sob a chefia deCaio Ogúlnio, que de lá voltou com um símbolo vivo do deus, isto é, uma serpente sagrada,além das instruções para a organização do templo, para a construção de instalações paradoentes e para o culto. Acontece, porém, que quando a delegação estava chegando à cidadede Roma, remando rio acima, a serpente escapou e foi nadando até a "Insula Tiberina".Tomando o acontecimento como um verdadeiro sinal do deus, lá os romanos erigiram umtemplo a Esculápio, novo nome de Asclépios graças a uma diferença de pronúncia. Depoisde muitos anos, em consideração pelos bons resultados obtidos com esse novo deus, osromanos resolveram "casá-lo" com a deusa Valetudo, uma deidade correspondente à Higiéiados gregos (deusa da Saúde). Nas instalações sagradas da ilha Tiberina havia acomodações para os que procuravam aajuda do deus da medicina e também para os sacerdotes. De acordo com gravuras da épocahavia instalações magníficas das quais nada restou. O acabamento externo dava à ilha aforma de um portentoso barco. A ilha Tiberina hoje comunica-se com ambas as margens dorio Tibre, ressaltando-se que sua ligação com a margem esquerda é feita por meio de umaantiga ponte construída no ano 62 a.C., a ponte Fabrício, que é a mais antiga de toda Roma.De todas as originais proteções laterais hoje podemos ver alguns blocos de pedra travertinano lado leste da famosa ilha. O Cristianismo, que combateu duramente as crenças ligadas ao paganismo, fezdesaparecer o templo de Esculápio e todas as demais instalações ligadas ao seu culto. Maistarde foi ali construída a igreja de São Bartolomeu, consagrada no ano 1000 com a presençado imperador Otto III. Segundo tudo indica, não só parte do revestimento da igreja, mastambém sua escadaria foram executados com pedras retiradas das ruínas dos templos e doacabamento lateral da ilha. Ali foi também construído um hospital, o Ospedale di SanGiovanni di Dio, dirigido pelos Fatebene Fratelli.

- *Horácio Cocles, um herói com deficiências* Horácio foi um famoso guerreiro romano da "gens Horatia" que viveu nos primórdios davida de Roma. Recebeu o cognome de Cocles que significa "cego de um olho". Conta a história desse valente homem de armas que, com apenas dois companheiros,conseguiu defender a ponte Sublício por ocasião da pretendida invasão dos exércitosetruscos comandados por Porsena, ficando esses inimigos impedidos de penetrar em Roma.A refrega no meio da ponte foi muito violenta e Horácio ficou gravemente ferido numa dascoxas, tendo logo após sido atingido num olho. Na grande confusão da luta os dois companheiros de Horácio tiveram tempo suficientepara cortar a golpes de espada os tirantes da ponte, lançando-a às águas do rio Tibre. Sangrando muito devido aos ferimentos recebidos, Horácio lançou-se ao Tibre com suasarmas e a muito custo foi nadando até a margem onde foi socorrido pelos companheiros dearmas.

Elevaram-lhe depois de sua morte uma estátua na antiquíssima praça Vulcanal da velhaRoma, que ficava localizada ao pé do Capitólio, representando-o como coxo e cego de umolho. Consideravam-no os romanos como de certa maneira associado a Vulcano, ocorrespondente a Hefesto na cultura romana.

- *Ápio Cláudio, Censor: século IV a.C.* Conhecido na História de Roma como Appius Claudius "Caecus" (ou seja, Ápio Cláudio"Cego") este grande homem público foi um dos mais célebres censores de Roma. Foi eleresponsável direto por obras famosas das quais existem ruínas notórias. E uma delas é oaqueduto conhecido como Aqua Appia, originalmente com 15 quilômetros de comprimentoe que conduzia a água potável por meio de canais subterrâneos até Roma . Outra obra é a famosíssima Via Appia, estrada que a época de sua construção tinha quase200 quilômetros, indo de Roma até Campania (Cápua). Mais tarde, devido à sua importânciapara a manutenção do comércio e da segurança interna, ela foi ampliada até o "salto" da botaitaliana (Brindisi). Ápio Cláudio havia sido cônsul duas vezes antes de ser censor. É importante lembrar queos censores, sempre em número de dois, eram eleitos por cinco anos e detinham amagistratura mais elevada. Encarregavam-se eles do recenseamento e do inventário dosbens; faziam a relação dos senadores, estabeleciam os parâmetros do orçamento público eeram os responsáveis pelas obras públicas. Contam os historiadores que Ápio Cláudio, já avançado em idade, dissuadiu o SenadoRomano por meio de um inflamado discurso, de dar consideração e guarida a um eloqüenteapelo feito por Pirro, através de seu enviado especial, Cineas, para fazer a paz. Sempre esteve fortemente interessado em questões de gramática da língua latina; éconsiderado como o responsável pela distinção entre o "R" e o "S", em termos de fonética,na escrita latina, e também pela eliminação de uma letra que considerava dispensável: o "Z". Dele Cícero escreveu: "Ápio Cláudio, já velho e cego" (et caecus et senex),"responsabilizava-se por quatro filhos robustos e cinco filhas, além de uma grande mansão etoda a sua clientela. Mantinha um espírito tão tenso quanto um arco e não se deixavasubjugar pela velhice para se transformar num homem sem energia. Mantinha tambémautoridade e poder sobre os seus: os escravos temiam-no, seus filhos o veneravam e todos oqueriam bem; em seu lar reinavam os costumes dos ancestrais e a disciplina" ("Cato Major,seu De Senectute Dialogus", de Cícero).

- *Amputação como penalidade nas legiões romanas* Segundo Mítton, a mutilação do nariz e das orelhas foi muito utilizada como castigo oucomo vingança contra inimigos capturados pelas legiões romanas, nos tempos de guerra.Caio Júlio César (Caíus Julius Caesar - 102 a 44 a.C.) confessa em sua obra "De BelloGallico" que aplicava essa pena em seus próprios soldados nos casos de faltas muito gravescontra a disciplina militar ou de deserções. Diversos séculos após o imperador Justiniano I(Flavius Anicius lustinianus - 483 a 565) chegou a ordenar a amputação do nariz de soldadosincriminados em faltas graves contra a disciplina. A mesma penalidade foi aplicada emsoldados envolvidos com mulheres dos países cruzados ou dominados por legiões romanas(Apud Mitton). As punições não se limitavam, todavia, a essas amputações estigmatizadoras. Naabalisada opinião de Bubois, grande estudioso do direito criminal dos povos antigos,"abandonar o estandarte era um sacrilégio; esse crime era punido, conforme a gravidade do

caso, com a mutilação do punho, com a decapitação, com a exposição a animais ferozes,com a crucificação e até com o afogamento. A desobediência às ordens dossuperiores era punida com a mesma pena"... ... "O roubo era também punido com amutilação do punho direito" ("Histoire du Droit Criminel des Peuples Anciens",de Dubois). - *Caio Júlio César: atitudes face a seus males* Certamente um dos romanos mais importantes que a História registrou, Caio Julio Césarnão era o tipo atlético, alto e sem problemas que muitos imaginam ao analisar seus feitos.Além de magro e de estatura bastante medíocre, sempre esteve sujeito a fortes dores decabeça e, segundo muitos historiadores, sofria do famoso "mal divino", ou seja, de epilepsia. Plutarco faz algumas afirmações a respeito de suas atitudes face ao mal, dizendo que "àsvezes, atacado de epilepsia, que contraíra pela primeira vez, como se diz, em Córdova,cidade da Espanha" .."ele não se serviu da fraqueza de seu corpo, como de um pretexto paradelicadeza e comodismo em sua vida, mas ao contrário, tornou as agruras da guerra comoum remédio para fortificar sua pessoa, combatendo contra a doença, caminhando sempre,vivendo sobriamente, dormindo ordinariamente ao relento, pois, a maior parte das noites,dormia num carro ou dentro de uma liteira, empregando sempre o descanso em fazer algumacoisa" ("Caio Júlio César", de Plutarco). Autores atuais, entretanto, ao considerar que César teve suas primeiras convulsões aos 52anos de vida e a segunda apenas três anos após, ponderam diferentemente da quasetotalidade dos historiadores que consideram o grande imperador romano como o maisfamoso epilético da História. Socorrem-se para isso da própria informação de Suetônio deque nos últimos tempos de sua vida César teve dores de cabeça e vários desmaios. Levamem conta o fato dele não ter tido nenhum parente próximo com indicações de malesconvulsivos. Concluem que Caio Júlio César foi vitima de um tumor cerebral benigno e nãode epilepsia.

- *Ferimentos graves e deficiências físicas em batalhas* As atividades guerreiras sempre tiveram como conseqüência natural muitas mortes emuitos casos de ferimentos de todas as naturezas e gravidades. Essas desgraças marcarammuitos homens pelo resto de seus dias, como não podia deixar de ser. Os feitos heróicos, noardor das batalhas, são por vezes relatados em cores muito vivas por uns poucos autoreslatinos e gregos, mas apenas alguns deles fazem menção aos problemas supervenientes,como o fez Plutarco. Chega o historiador a aludir a problemas dessa natureza quando estuda a vida de CaioJúlio César, já citado. Deixa no leitor de hoje, 20 séculos após, a sensação de que a vida comdeformidades ou com amputações conseqüentes à guerra era algo a ser muito temido pelosjovens romanos. Plutarco narra cenas pormenorizadas de batalhas e numa delas mostra-noscom clareza esse temor dos soldados mais jovens e inexperientes. . . . "as seis coortes que César tinha colocado atrás de sua ala direita avançaram contra acavalaria e, em lugar de lançar longe seus dardos, segundo seu costume, e ferir a golpes deespada as pernas e as coxas dos inimigos, golpeavam os olhos e procuravam ferir-lhes osrostos; era a ordem que haviam recebido de César que duvidava que esses cavalarianos, tãonoviços nos combates e pouco acostumados às feridas, ainda na flor da idade, se deixassemdesfigurar, sacrificando sua juventude e beleza e evitariam com todo o cuidado essa espéciede ferida, não sustentando esse gênero de combate, tendo a temer tanto o perigo atual, comoa deformidade no futuro" ("Caio Júlio César", de Plutarco).

Muitos feriam-se gravemente e sobreviviam com deficiências sérias. Nas legiões romanashavia homens que lutavam por absoluta dedicação ao seu líder ou general. Plutarco tambémnos relata como César conseguia levar seus homens a atos de bravura insuperáveis, poissabia inspirar afeição e muito ardor. Segundo ele, "nada resistia à impetuosidade de seusataques, quando se encontravam nos mais graves perigos". E conta-nos a história de Acílioque, num ataque a um navio inimigo, teve sua mão direita decepada. Segurando a espadacom a esquerda, continuou a luta, matando os inimigos.

- *Cláudio I, um imperador bastante controvertido* Com a morte de Calígula em 41 d.C., Cláudio (Tiberius Claudius Caesar AugustusGermanicus - 10 a.C. a 54 d.C.), reconhecido na História Romana apenas como Cláudio I,foi elevado ao trono por imposição da forte Guarda Pretoriana, talvez por ter sidoconsiderado muito mais manobrável do que qualquer outro "pretendente" ou "herdeiro"ligado a grupos que vinham de há muito se locupletando devido aos enormes desmandosexistentes na corte imperial. Cláudio era aparentemente tolo, inofensivo e inconseqüente. No entanto, assim queassumiu o poder, surpreendeu a todos com as muitas demonstrações que deu de inteligência,sagacidade administrativa e cultura. Todavia, fisicamente ele não correspondia à imagemque o povo romano poderia fazer de seu imperador, uma vez que era, de fato, um tipo muitoestranho: apesar de alto e bem forte, tinha cabelos quase brancos aos 51 anos de idade;feições agradáveis, tinha problemas físicos de bastante seriedade para aqueles tempos. Umaparalisia ("paralisia infantil", segundo o historiador Durant) e algumas doenças, dentre asquais todos os historiadores destacam a epilepsia, haviam-no quase que deformado.Apresentava-se com andar claudicante sobre pernas compridas e finas; mantinha a cabeçaoscilante sobre o pescoço longo e fino; além disso, gaguejava e sofria muito com as doresprovocadas pela gota. Seus pais haviam-no considerado, quando pequeno, uma espécie deretardado mental e sua mãe chegara a ele se referir como um "monstro inacabado", segundoinformação de Durant. Esse tipo inacreditável como imperador chegou a declarar ao senado romano que se fizerapassar por tolo e inconseqüente durante todo o governo calamitoso de Calígula apenas parasalvar a própria pele. Cláudio desenvolveu um governo controvertido durante o qual reformulou leis, construiugrandes obras públicas, instalou novos serviços, garantiu maior proteção aos escravos,emancipou a Gália, conquistou a Bretanha e efetivou sua romanização. Terminou seus dias num emaranhado de disputas e de intrigas palacianas, envenenado porAgripina, sua própria esposa, por ter favorecido como seu herdeiro a Nero em detrimento deseu filho Germânico. Sêneca foi seu contemporâneo e preceptor de Nero, o futuro imperador. Em sua obra"Apokolokyntosis" ironiza com o imperador após sua morte, apresentando um perfilbastante indicativo dos problemas físicos de Cláudio e, por via de dedução, do que sepensava também das pessoas deficientes em Roma. E, ao fazer uma alegoria sobre seudestino após a morte, afirma: "Anunciam a Júpiter a chegada de alguém, estatura normal,cabelos quase brancos: Não deve ter boas intenções, pois abana continuamente a cabeça; ecoxeia do pé direito" ("Apokolokyntosis", de Sêneca).

- *Galba, imperador romano com diversas deficiências*

Plutarco, Suetônio e Tácito são os historiadores que mais pormenorizadas informaçõesnos dão quanto à vida dos grandes homens de Roma. Falam, de um modo todo especial, arespeito de seus imperadores. Segundo eles, nos anos 821 e 822 de Roma (68 e 69 d.C.), que se seguiram à mortetrágica de Nero, a História Romana mostra-nos um quadro assaz confuso, no qual aparecemtrês homens que sobem ao poder e dele são afastados com bastante rapidez, graças à forçados militares que não desejavam ver os senadores proclamando a república. São eles: Galba,Othon e Vitélio. Galba (Servius Sulpicius Galba - 3 a.C. a 69 d.C.) era originário de família nobre, tendotido em sua família um sério problema de deformidade física indicado por Lissner. Segundoo historiador, "o pai de Galba, doentio e disforme, ativo, trabalhador e inteligente mesmo,era advogado. Quando a rica e bela Lívia Ocelina quis casar com ele para compartilhar aantiga nobreza dele, Galba, o pai, sem intenções maldosas, mostrou-lhe sem pejo suasdeformidades. Ocelina, entretanto, não se atemorizou"("Les Césars", de Lissner). É sobre Galba que vamos encontrar nos renomados historiadores romanos indicados,traços bastante marcantes. Todos são unânimes em afirmar que Galba foi muito severo naaplicação da justiça. Achava ser sua obrigação. Na verdade foi tão severo na administraçãodas despesas públicas que acabou desgostando não apenas o povo mas também os diversosescalões do sistema militar romano. Esse velho general foi imperador romano por apenas sete meses, com mais de setentaanos, portanto. Foi portador de sérias limitações físicas tanto nas mãos quanto nos pés.Sofria muito com as dores artríticas. "A estatura de Galba era mediana, sua cabeça, completamente calva, seus olhos, de umazul escuro, seu nariz aquilino, suas mãos e seus pés, inteiramente deformados pela gota, atal ponto que não podia nem agüentar um calçado, nem desenrolar ou mesmo segurar umamissiva. Ele tinha também, no flanco direito, uma excrescência de carne tão volumosa queapenas conseguia contê-la com uma faixa" ("Vie des Douze"). Plutarco apresenta-o como "doce e humano por natureza: a velhice aumentou ainda aopinião que se tinha dele, de que era tímido" ("Galba", de Plutarco). Segundo Tácito, todavia, esse grande personagem da História Romana poderia ter sidoconsiderado ótimo para o Império, se não tivesse sido imperador... - *Othon, um imperador nascido com malformações* Othon (Marcus Silvius Othon - 32 a 69 d.C.) era filho de Lúcio Othon e de ÁlbiaTerência, sendo a família de origem aristocrática. Muito embora diversos autores não façamnenhuma menção, revela-nos o historiador Lissner algo surpreendente sobre Othon,imperador por três meses, depois de ter mandado assassinar o imperador Galba: "No dia 28de abril do ano 32 d.C. a esposa de Lucius Othon, Álbia Terência, de origem aristocrática,colocou no mundo uma criança do sexo masculino cujas pernas tortas constituíam umamalformação incurável" ("Les Césars", de Lissner). O defeito físico não impediu Marco Silvio de procurar os ambientes e as amizades -inclusive a de Nero - que lhe dariam mais tarde condições para a busca de cargosimportantes e muito rendosos. Exemplo dos mais marcantes foi o seu casamento com Popéiapor solicitação de Nero que dela se enamorara e dela queria se aproximar sem chamar muitoa atenção de toda a corte imperial. Foi em conseqüência dessa situação e de seus desmedidosdesejos que Nero mandou Othon em missão especial para bem longe de Roma, como

governador dos lusitanos que ocupavam território que mais tarde seria transformado emPortugal. Segundo os historiadores Othon não conseguiu demonstrar o quanto podia, apesar daverdadeira adoração que suas legiões tinham por ele, devido à cobiça e à inconseqüência deoutro homem que, por coincidência, também apresentava limitação física muito evidente:Vitélio. Othon suicidou-se ao perceber que fora a causa primeira de uma guerra civil.

- *Vitélio, imperador romano por oito meses* Vitélio (Aulus Vitelius - 15 a 69 a.C.), nasceu em Lucéria e morreu em Roma; ele foi osucessor de Othon, por escolha das legiões romanas sediadas no Reno. Durante sua vidadissoluta foi protegido por quatro imperadores também dissolutos: Tibério, Calígula, Nero eCláudio. Ainda bastante jovem foi empregado, como hábil condutor de carros que era, para ensinaro jovem Calígula a mesma arte, incluindo bigas aquadrigas. Foi no exercício dessa funçãoque teve um acidente e sofreu violenta queda, recebendo, em conseqüência, um sérioferimento na perna. Acabou ficando com uma lesão permanente que o faria mancar bastantepelo resto da vida. Esse defeito físico não prejudicou tanto seu conceito quanto o de ser o maior e maisfamoso glutão que Roma já teve. Muito obeso e vermelho, a excentricidade de Vitélioaumentava conforme era obrigado a andar. Foi um dos imperadores mais lamentáveis deRoma e morreu tragicamente, quase que linchado pela plebe furiosa devido a seusdesmandos, ajudada pelos soldados de Vespasiano, que acabava de tomar o poder.

- *Os milagres de Vespasiano* Tanto Suetônio quanto Tácito informam que Vespasiano (Titus Flavius Vespasianus - 7 a79 d.C.) participou de um evento estranho e que nos é transmitido como um "milagre". Ofato envolve duas pessoas com deficiências físicas diferentes. Vejamos, nas própriaspalavras de Tácito, o que sucedeu na cidade de Alexandria: "Durante os meses em queVespasiano esteve em Alexandria, época na qual os ventos de verão vinham regularmentegarantir a boa navegação, ocorreram muitos milagres ("multa miracula evenere", no originallatino) que manifestaram o favor celeste e a simpatia dos deuses para com Vespasiano. Umhabitante de Alexandria, pertencente à classe modesta, conhecidamente vítima de umadegeneração da vista, lançou-se aos seus pés e pediu-lhe gemendo que o curasse da cegueira.Obedecia, segundo informava, às ordens de Serápis, deus ao qual aquele povo, entregue asuperstições, honrava mais do que a qualquer outro; e ele suplicava ao príncipe que sedignasse umedecer-lhe o rosto e ao redor de seus olhos com a secreção de sua boca. Umoutro tinha sua mão defeituosa, e, por sugestão do mesmo deus, pedia a César para pisá-lacom a planta de seu pé. Vespasiano zombou deles naquele momento e os afastou, mas,devido à sua insistência, começou a hesitar, de um lado por acreditar estar sendo vaidoso epresunçoso e do outro por confiança, pois, as veementes preces daqueles dois doentes e oselogios de seus cortesãos inclinavam-no à esperança. Ordenou, finalmente, aos médicos paraverificar se a cegueira e a paralisia poderiam ser vencidas por meios humanos. Os médicos,após alguma discussão, responderam que dos dois doentes, um não tinha a força visual, jáeliminada, e que ela voltaria se o obstáculo fosse removido; o outro tinha as articulaçõesdesviadas e, se fosse exercida sobre elas uma pressão saudável, poderiam retomar a posiçãonormal; que os deuses tinham talvez desejado essa cura e que haviam escolhido o príncipepara essa divina missão; enfim, que se o remédio desse certo, a glória seria dele"...

Vespasiano deixou-se levar e mostrou-se feliz, pois ficou absolutamente persuadido deque tudo seria possível à sua boa fortuna. Cercado pela multidão que já se aglomerara,acedeu ao pedido dos dois doentes. E Tácito finaliza: "Imediatamente a mão retomou suas funções e o cego de novo viu obrilho do dia. Esses dois milagres, testemunhas oculares lembram-nos ainda hoje"...("Histoires", de Tácito) Suetônio, em sua obra sobre os doze Césares, conta o mesmo fato, ao dissertar sobre avida de Vespasiano. Além de pequenas circunstâncias ligeiramente diferentes, ele altera adeficiência de um dos suplicantes diante de César: um era cego, mas o outro tinha umproblema de paralisia na perna e não em sua mão.

- *As deficiências citadas por Plínio, em sua "História Natural"* Plínio (Caius Plinius Secundus - 23 a 79 d.C.), em sua monumental obra "HistóriaNatural", escreve a respeito de alguns males bastante notórios que podem levar as pessoas asituações limitadoras e mesmo a deficiências físicas sérias. Dentre eles cumpre notarcitações sobre a elefantíase, gota, paralisia, epilepsia e outros. Em sua extensa obra de trinta e sete volumes aborda assuntos de grande valia, mas dequando em quando transmite informações fantasiosas e sem qualquer base na realidade. Quanto à elefantíase, por exemplo, Plínio afirma que quando reis e príncipes eram asvítimas do mal, os médicos recomendavam banhos em sangue humano. O problema passavaa ser não apenas deles, mas principalmente dos homens escravizados que precisavamsubmeter-se a sangrias ou à própria morte. A gota, por ele citada com o nome de "podagra", é bastante analisada. No seu livro XVI(item LXIV) afirma que "a alfavaca-de-cobra diminui e cura varizes sem dor, se colocadasobre a parte doente. A gota é muito rara, não apenas na época de nossos pais e avós, masainda em nossos dias. Esse mal é estrangeiro, pois se ele tivesse sido freqüente na Itália teriaum nome latino. Não se deve acreditar que é incurável, pois tem desaparecido em muitaspessoas e em muitas tem havido sua cura. Prescreve-se contra a gota raízes de panacéia comuva-passa, suco ou sementes de meimendro com farinha, escórdio com vinagre, mastruço-bravo aplicado conforme explicado anteriormente, verbena moída com gordura, raiz de pão-de-porco, cujo cozimento também é bom para frieiras. Para eliminar o calor da gotaprescreve-se raiz de espadana, semente de zaragota, cicuta com picumã ou gordura esempre-noiva, ao primeiro acesso do mal" ("Histoire Naturelle", de Plínio). Para as paralisias Plínio recomendava igualmente o uso de plantas medicinais, afirmandoacreditar-se que a betônica e o mastruço-bravo curavam a paralisia ou os membrosentorpecidos. Segundo ele, a argêmona tinha a mesma virtude, além de ser uma espécie deelemento estimulador da circulação, chegando até a evitar a amputação de membros. Por absoluta falta de conhecimento mais profundo Plínio acreditava nas chamadas"panacéias": remédios preparados com o concurso de várias plantas medicinais. Afirmavacategoricamente que elas curavam até a epilepsia. Sua frase é incisiva: "Comitiales sanantpanacis". É Plínio que cita algo interessante e curioso para a época (primeiro século de nossa Era)sobre membros artificiais. Afirma-nos que Estérgio, bisavô de Catalina, usara mão feita demetal para disfarçar amputação ocorrida em campo de batalha. Também conhecido como Plínio, o Velho, faleceu no ano 79 d.C. durante a erupçãofamosa do Vesúvio que sepultou Pompéia e Herculanum sob espessas camadas de cinzas elava. Plínio, almirante da frota de Miseno, tendo aproximado seus navios para salvar

habitantes em fuga, aproveitou a oportunidade para estudar os fenômenos mais de perto emorreu asfixiado.

- *As automutilações para dispensa do serviço militar* Na douta opinião de Ammiano Marcellino, citado por Lucchini, os jovens romanos queviviam nos anos de decadência do Império Romano odiavam o serviço militar obrigatório ede duração por vezes indefinida. Alguns moços chegavam até a amputar o próprio polegarda mão direita, pois com essa deficiência estariam dispensados de ingressar nas legiõesromanas, por não poderem usar a espada, além de não estarem de acordo com a qualificaçãofísica mínima de um recruta. Na obra "De Re Militarii", escrita em 390 d.C., Vegetius (citado por Cotrell em "TheGreat Invasion") afirma que existia a seguinte recomendação no recrutamento de soldadosem todo o Império: ... "quem estiver alistando recrutas deve primeiro olhar para o rosto, osolhos, a forma toda do homem para ver se ele poderá ser um bom lutador. Assim, um jovemeventualmente adequado para a guerra deverá ter olhos brilhantes, postura ereta, peitoamplo, ombros musculosos, braços fortes, dedos longos, ventre modesto, pés e barrigas daperna com tendões fortes" (Apud Penn). Um dos exemplos registrados quanto à reação dos governantes contra as automutilaçõesque dispensavam o jovem do serviço militar, durante os anos do Império, é o caso de umcerto Caio Vatieno que durante a chamada "Guerra Social" amputou sua própria mãoesquerda, pois era com ela que os soldados seguravam seu escudo. Como castigo o Senadomandou vender todos os seus bens e rebaixou o jovem cidadão à categoria de servo. O imperador Trajano (Marcus Ulpius Trajanus Crinitus - 52 a 117 d.C.) mandava punircom a deportação o pai que, ao saber da convocação de seu filho para a vida militar,amputasse seus dedos ou o deformasse de alguma forma grave (Apud Lucchini) . Amputações para evitar o engajamento no serviço das legiões romanas tornaram-sefreqüentes do século II ao século IV, tendo Constantino I (Caius Flavius Valerius AureliusConstantinus - 270 a 337 d C.) assinado um decreto determinando que qualquer pessoa quetivesse provocado sua automutilação para fugir ao serviço militar deveria ser encaminhada,dentro da realidade das forças armadas romanas, para qualquer outro serviço para o qualfosse capaz. O imperador Valentiniano (Flavius Valentinianus - 321 a 375 d.C.) também assinou umdecreto em 367 d.C. corroborando as ordens de Constantino. Com o passar dos anos, porém,aprovou determinações muito mais severas, face aos abusos freqüentes. Uma delas era amais contundente: aquele que amputasse os próprios dedos para não servir nas legiõesimperiais seria "queimado vivo" e seu "senhor" (pai ou responsável) que não o impedira detal ato, sofreria uma grave condenação. Vejamos o texto original latino dessa forte determinação: "Si quis ad fugienda sacramentamilitiae fuerit inventus truncatione digitorum damnum corporis expedisse, et ipse flammisutricibus concremetur et dominus eius, qui non prohibet, gravi condemnatione feriatur"(Apud Costa).

- *Males incapacitantes e soluções paliativas* Romanos abastados sempre encontravam soluções, mesmo que apenas de caráterpaliativo, para certos males que, por serem mal controlados, levavam muitos a situações decontínuo desconforto, enquanto que alguns chegavam a ficar parcial ou totalmenteincapacitados para uma vida ativa e independente. Um dos casos mais notórios que são

citados por Cícero foi o de Lúcio-Júlio César, cônsul romano e contemporâneo de Caio JúlioCésar. Lúcio-Júlio César sofria de reumatismo muito sério que o mantinha praticamenteparalisado, conforme relata Cícero em uma carta dirigida a seu genro, Público CornélioDolabella. "Lúcio César, de fato, foi até Nápoles (Pompéia), porque estava muito oprimidopor dores em todo o corpo" ... Pompéia contava com recursos naturais significativos, àquelaépoca, pois Cícero afirma que "muitos cidadãos abastados procuram esses lugares pormotivos de saúde" (Apud Menière). Cícero menciona também alguns grandes oradores romanos, conhecidos seus, que tinhamproblemas muito sérios e que procuravam tais recursos para aliviar seus males. Ele cita CaioSexto Calvísio, que sofria de gota e mal podia andar; cita Cneo Otávio, que sofria de doresnas articulações e vivia envolto em faixas, coberto de medicamentos. De fato, os romanos conheciam muito bem as virtudes de certos recursos naturais, comoas águas termais e sulfurosas, por exemplo. Sabiam que elas podiam ser muito úteis ebenéficas para o tratamento dos males das articulações. Usavam-nas como um recursobásico para qualquer problema de dores musculares ou articulares e chegavam a bebergrandes quantidades. Plínio afirma que algumas pessoas, desejosas de apressar a cura dasdores que levavam às dificuldades de movimentação, bebiam as águas sulfurosas emexcesso, ao ponto de comprometer a própria vida. Águas termais e sulfurosas que brotavam do próprio chão tornaram-se a causa dosurgimento de muitos centros populacionais. Foi o que sucedeu com Epidauros, na Grécia, etantos outros lugares considerados como miraculosos. Foi o que aconteceu com Pouzzoles,por exemplo, na Província de Nápoles, que surgira com o nome de "Dicaearcha", pelo ano522 a.C., sendo depois reconhecida como Puteoli (Poços) pelos romanos, devido aos seuspoços de águas termais e medicinais. Para lá romanos abastados acorriam em verdadeirasmultidões - e lá Cícero mantinha também uma vila.

- *O problema da surdez na opinião de Cícero* "In surditate vero quidnam est mali?" pergunta Cícero em seus Debates Tusculanos.Afinal qual é o mal que há na surdez? Segundo seu depoimento e suas considerações quantoàs misérias humanas, Crasso, conhecido como "Agelastos", era meio surdo, mas ouvia osuficiente para saber tudo o que dele se falava de mal. "Os surdos não ouvem a música, é verdade, mas não sentem seus ouvidos dilacerados peloruído da serra quando é afiada, ou pelo grunhido do porco quando está sendo degolado".Finaliza dizendo: "Assim como consolamos os cegos a todo o instante com os prazeres daaudição, devemos também consolar os surdos com os prazeres da visão" ("TusculanaeDisputationes", de Cícero).

- *Deficiências múltiplas e morte* Cícero continua com suas considerações e suas análises sobre os mais sérios problemasque podem atingir um ser humano, fazendo um comentário que só é compreensível paraaquela época: "Reunamos agora todos esses males num só indivíduo. Que ele seja surdo ecego e que prove atrozes dores - ele será logo consumido por esses sofrimentos, e se, porfalta de sorte, eles chegarem a se prolongar, por que suportá-los? A morte é um refúgioseguro onde esse indivíduo estará ao abrigo dessas horrendas misérias" ("TusculanaeDisputationes", de Cícero).

- *A medicina grega e sua infiltração no Império Romano*

Todos aqueles que estudam a História de Roma sabem que ela foi uma continuaemprestadora, tanto nas ciências quanto na arte. E a Grécia foi uma das maiorescolaboradoras do Império Romano, tanto numa quanto noutra área. A medicina grega, por exemplo, foi levada a Roma aos poucos, por alguns médicosgregos que deixaram de lado seus princípios éticos e passaram de imediato a explorar osabastados romanos. Catão, o Censor (Marcus Porcius Cato - 234 a 149 a.C.), detestava os gregos. Em sua obra"Praecepta ad Filium" diz: "Falarei dos gregos no tempo e no lugar, meu filho" ... "É umaraça perversa e indócil; creia que um oráculo te fala quando digo: Todas as vezes que essanação trouxer seus conhecimentos, ela a tudo corromperá. E será bem pior se ela nos mandarseus médicos; eles juraram entre si matar a todos os bárbaros à custa da medicina". "De umavez por todas, eu te proíbo os médicos" (Apud Laignel-Lavastine). Plínio comenta em sua História Natural: "É uma pena que não haja uma lei para punirmédicos ignorantes e que a pena capital nunca é ditada para eles. No entanto, eles aprendemcom o nosso sofrimento e fazem experiências, colocando-nos diante da morte" ("HistoireNaturelle", de Plínio). Marcial (Marcus Valerius Martialis - 40 a 102 d.C.) foi um mordaz autor latino que numdos seus muitos e irreverentes epigramas ironizou da seguinte forma com um médico deproblemas visuais. "Agora você é gladiador, quando antes você era médico dos olhos. Comomédico você fazia o que faz hoje como gladiador" ("Epigramas", de Marcial).

- *Médicos romanos famosos e os males incapacitantes* Não há dúvida de que havia muitos médicos dedicados e competentes, tanto gregosquanto romanos. Falaremos sobre apenas três daqueles que lidaram com problemas dedeficiências e que são citados por historiadores. Alem de Dioscórides, autor de um compendio sobre assuntos de medicina, incluindo nelesdoenças e alguns problemas que levavam a deficiências, "De Matéria Médica" (SobreMatéria Médica), destaquemos dois famosos médicos que pela sua inquestionávelcompetência passaram para a História da Medicina. O primeiro deles é Asclepíades de Bitínia, nascido em 124 a.C. e que, apesar de grego denascimento, sempre viveu e trabalhou em Roma, semelhantemente ao que sucederia séculosdepois com Cláudio Galeno, conforme verificamos quando discutíamos alguns aspectos deprocedimentos precursores da reabilitação na Grécia. Asclepíades estabeleceu a prática médica com base na chamada "teoria da modificaçãocorpuscular", segundo a qual qualquer doença resultava de uma certa movimentação decorpúsculos no corpo humano de uma forma não-harmoniosa. Em seus trabalhos procuravarestabelecer a indispensável harmonia através de dieta acompanhada de algunsprocedimentos terapêuticos reconhecidos hoje em fisioterapia, tais como a massagem, ahidroterapia e os exercícios físicos. Foi Asclepíades de Bitínia o primeiro médico a usar amúsica no tratamento e na recuperação de pessoas afetadas por doenças mentais. O segundo nome é o de Celso (Aulus Cornelius Celsus - 42 a.C. a 37 d.C.), famoso,competente e reconhecido por muitos séculos como o "Cícero dos Médicos" devido à suainteressante obra "De Re Medica" (Sobre a Medicina). Nessa obra Celso descreve umnúmero bastante elevado de doenças e seus sintomas principais, incluindo as paralisias emales de extremidades, indicando textualmente tratamentos de massagens, de calor e deexercícios físicos. Em seu livro V Celso indica remédios para dores articulares, afirmando o seguinte: "Osungüentos são bons principalmente nas afecções dos tendões e das articulações; também o

ungüento de Euthycléa deve ser empregado" ..."quando é preciso combater a imobilizaçãodas articulações provocada por uma cicatrização recente, estado que os gregos chamam de"ankylose" ("De Re Medica", de Celso). No mesmo livro Celso dá uma descrição sucinta que demonstra amplo conhecimento daparaplegia e de suas características quando da sobrevivência de paraplégicos, afirmandotextualmente: "Nas lesões da medula da espinha há paralisia ou movimentos convulsivos eprivação de sensibilidade; ao final de algum tempo, o esperma, a urina e as matérias fecaissão eliminados involuntariamente". Celso discute também a epilepsia num capítulo bastante longo de sua obra, recomendandolavagem intestinal com heléboro negro, planta medicinal até hoje utilizada para problemasneurológicos. Segundo ele a alimentação do epilético devia ser leve. A carne de porco deviaser a ele proibida. Além disso o doente devia evitar tensões e cansaço, sendo necessárioraspar a cabeça e tomar duchas de água salgada. Para alguns casos Celso recomendavaexercícios e massagens.

- *Os serviços médicos e os hospitais militares romanos* Nos primeiros tempos da História de Roma o tratamento dos doentes e dos feridos embatalhas era deixado aos próprios companheiros de armas. Tanto assim que por muitosséculos os soldados levavam consigo, como parte de seus pertences, pomadas, hervas ebandagens para a eventualidade não descartável de serem feridos. Os soldados mais experimentados dominavam por vezes conhecimentos estranhos paraum dos principais problemas enfrentados pelos soldados: o do estancamento do sangue emferimentos profundos. A preocupação estendia-se à eventualidade da perda de um membro eà morte devido à hemorragia. Uma receita popular e muito divulgada entre os soldados quenos é transmitida por Samônico é esta: cozer estrume de cavalo com cascas de ovotrituradas, colocando a pasta sobre o ferimento. Sabe-se que os comandantes e oficiais mais graduados tinham o privilégio de serematendidos por seus médicos, especialmente contratados para segui-los e estar ao seu lado nasbatalhas. E houve também médicos das casernas que acumularam tanta experiência que setornaram famosos. São os casos de Scribonius Largus, médico de Cláudio I durante ainvasão da Bretanha; de Dioscórides, médico militar nos tempos de Nero; de CláudioGaleno, a respeito do qual já falamos; de Jápide, médico que atendeu a Enéas ferido, empleno campo de batalha, e vários outros que passaram para a História da Medicina. Embora haja poucas referências, sabe-se que sempre houve preocupação com a assistênciaaos casos de doenças e de ferimentos mais sérios nas legiões romanas, preocupação essa quemuito vagarosamente foi requerendo algumas providências, principalmente com a chegadados médicos gregos a Roma. Tácito, por exemplo, fala-nos sobre a existência de tendas paradoentes e feridos nos acampamentos romanos. Sabe-se também que por séculos os soldadosgravemente feridos e amputados eram deixados para maiores cuidados em cidades romanas,sob a custódia de cidadãos responsáveis e suas famílias, após terem recebido algum tipo deatenção em sua própria legião. Com a gradativa penetração e divulgação da medicina grega chegaram as legiões romanasa contar com 40 médicos em cada uma delas (ou seja, para dar cobertura a 6.000 homensarmados). Existem em alguns autores menções quanto à distribuição das áreas nosacampamentos de guerra, incluindo a localização das chamadas "valetudinaria", uma espéciede enfermaria para os "grandes feridos", claramente delimitadas e que muito mais tarde setransformariam em hospitais de campanha, nos casos de acampamentos permanentes.

Ao que parece aos historiadores as "valetudinaria" foram inicialmente instaladas durante ogoverno de Augusto, sendo certo que sob Trajano, ao final do século I d.C., elas já existiamem todas as legiões.

- *As "valetudinaria" descobertas em estudos arqueológicos* Estudos arqueológicos têm revelado ao mundo muito das características dos exércitosromanos através dos séculos, inclusive seus hospitais militares de retaguarda e maispermanentes, isto é, "valetudinaria" construídas dentro de planos mais cuidadosos emateriais muito mais duráveis. Um dos pontos escavados situa-se a 30 quilômetros de Viena, às margens do rio Danúbio.O local era conhecido como Carnuntum, pujante cidade de aproximadamente 100.000habitantes, que mantinha em suas imediações duas legiões permanentemente estacionadas. Ohospital militar romano de Carnuntum tinha um saguão principal que levava a uma sala derecepção, atrás do qual havia uma sala especial para cirurgias ou curativos para ferimentosgraves. Ao seu redor havia uns 60 quartos pequenos. Existem outros locais escavados e que correspondem a hospitais militares romanos, taiscomo Novaesium, perto de Dusseldorf na Alemanha, provavelmente construído pelo ano100 d.C. no sistema de corredores; Borcovicus, perto de Housestead e vários outros naInglaterra, incluindo um hospital conhecido como Pinnata Castra, em Perthshire, umaenorme construção de 7.000 m2 (Apud Penn). Graças aos médicos e seus auxiliares das legiões e dos navios de guerra romanos muitoshomens feridos foram salvos da morte certa. E, sem sombras de dúvida, muitos tambémsobreviveram após amputações ou com algum outro tipo de problema incapacitante evoltaram para a vida civil.

- *Os auxiliares de médicos nas legiões romanas* Soldados gravemente feridos, muitos dos quais com membros decepados a golpes deespada ou com seus olhos vazados, sobreviveram graças a um socorro médico de urgênciaque era viabilizado por certos tipos de auxiliares lotados nas legiões romanas em épocasdifíceis de determinar. Dentre eles cumpre chamar a atenção primeiramente para os"Optiones valetudinarii", ou seja, ajudantes ou auxiliares de enfermaria. Eram merosfuncionários administrativos aos quais cabia cuidar da limpeza local, da alimentação dosacamados, dos curativos e dos remédios dos soldados gravemente feridos e alojados nas"valetudinaria". Havia, no entanto, um tipo especial de auxiliares diretos dos médicos das legiões queeram conhecidos como "deputati" (mais tarde, no Império Bizantino foram conhecidos como"deputatoi"), ou seja, elementos delegados que não faziam parte dos contingentes guerreirose que eram obrigados a seguir numa pequena distância a coorte à qual estavam destacados,durante uma batalha. Seu objetivo básico era prestar socorros a feridos que tombavam aochão, levando-os imediatamente a cavalo para a retaguarda, onde por vezes havia carroças emeios mais seguros para seu transporte às "valetudinaria". Como acontecia esse incipiente serviço de socorro volante? Cada general colocava oito ou dez "deputati" atrás das linhas de combate direto com oinimigo, tendo antes feito uma cuidadosa seleção entre civis muito vivos e cheios deiniciativa. Ficavam a mais ou menos 50 metros de distância, agindo com rapidez a fim deque os feridos que tombavam ao chão não fossem pisoteados nos casos de retirada ou deavanço de uma segunda ala de combatentes de sua própria legião.

Para cada soldado ferido transportado o "deputatus" recebia uma certa quantia dedinheiro. Para bem desenvolver sua tarefa eles levavam cavalos com selas especiais quetinham dois estribos suplementares, com os quais conseguiam remover até dois feridos porvez. Suspenso à sela levavam também um recipiente com água para poder reanimar umferido desmaiado. Julius Pollux em sua obra "Onomásticon" recomenda inclusive que esses "deputati"exercitem seus cavalos a dobrar as pernas dianteiras para facilitar a um soldado feridomontar ou ter acesso aos estribos (Apud Cabanès). Esse sistema foi gradativamente sendo melhorado nas legiões romanas tendo sidocontinuamente adotado sob o imperador bizantino Mauricio que o menciona em sua obra"Stratégicon", conforme veremos mais adiante.

- *O sistema hospitalar romano* Na medicina pura os romanos não realizaram muito. No entanto, uma das maiorescontribuições de Roma à História da Medicina foi iniciar uma espécie de sistema deatendimento hospitalar para a população civil, incluindo o atendimento a pessoas com sériosproblemas incapacitantes. Sua organização estava muito relacionada com a experiênciavivida e acumulada por centenas de anos de lutas e de dificuldades das legiões romanas emvárias partes do mundo. Os médicos que serviam nessas legiões não lidavam apenas comferimentos, mas também com febres, doenças graves e corriqueiras, acumulando com issouma vasta experiência. Muitos desses médicos passavam a dar atendimento à população emgeral, tão logo deixavam os serviços nas legiões ou nos navios de guerra, o que tornou viávela organização desse incipiente sistema hospitalar. Foi em Roma que surgiram também as primeiras organizações separadas que cuidavam edavam abrigo a doentes crônicos e incapacitados. Lúcio Júnio Moderato Columella cita emseus trabalhos as "valetudinaria" para escravos doentes e incapacitados, em pleno século Id.C. Os patrícios e todos os demais cidadãos romanos que tinham posses suficientes para pagarmédicos eram tratados em suas próprias vilas ou residências. Mas com o resultadosatisfatório do tratamento que era dispensado nas "valetudinaria", romanos livres aos poucoscomeçaram a usar esse novo tipo de recurso de tratamento médico, especialmente quandovítimas de males crônicos ou de problemas físicos limitadores. Nas escavações de Pompéia existem locais que parecem indicar que médicos mantinhaminstituições como se fossem casas de repouso ou de convalescença. E, segundo CláudioGaleno de Pérgamo, nas províncias do Império Romano estabelecimentos de cuidadosmédicos acabaram tornando-se hospitais para atendimento a doentes graves e pessoasmutiladas, com o subsídio financeiro do poder central e pessoal pago pelo Império.

- *O ensino da medicina no Império Romano* O atendimento melhor qualificado às pessoas doentes e àquelas limitadas por algumadeficiência física, sensorial ou algum mal crônico dependia da existência de médicos bempreparados, e estes existiriam na medida em que houvesse boas oportunidades de adquirirconhecimentos e experiência. Estes, por sua vez, dependiam da existência de recursos paratreinamento. O ensino destinado à preparação de médicos não foi organizado em Roma a não ser nafase áurea do Império. Inicialmente o ensino das várias áreas conhecidas da medicina erafeito em bases puramente individuais.

Na severa opinião de Cláudio Galeno, era necessário que o aprendiz de médicotrabalhasse por 11 anos até poder ser considerado um verdadeiro médico. Tessalo achavaque 6 meses eram suficientes para praticar os rudimentos da medicina. No ano 46 a.C., quando os direitos de todos os cidadãos foram reconhecidos e aprovados,organizou-se com certa regularidade e critério o ensino médico. Assim é que, terminados osestudos de botânica, anatomia e cirurgia, os aprendizes da ciência médica recebiam o títulode "Medicus a Republica" (médico pela República). O imperador romano Sétimo Severo (Lucius Septimius Severus - 146 a 211 d.C.)conseguiu locais para as incipientes escolas de medicina e para suas indispensáveisbibliotecas.

- *Categorias de médicos em Roma* No final do Império Romano do Ocidente - ou seja, aquele liderado por Roma - haviacinco categorias de médicos: "Archiatri suori palatini", ou seja, os médicos do imperador edo palácio imperial; "Archiatri municipales populares" que eram os indicados para servir, àscustas do Império, nas grandes cidades das províncias romanas e nos arredores importantesde Roma; "Archiatri scholares" que dirigiam as escolas de medicina ou nelas participavamno preparo de novos médicos. As outras duas categorias englobam os médicos dos ginásios esportivos, aqueles queserviam nas termas e banhos públicos, os que atuavam nos circos e que deviam ser tambémbons cirurgiões, e os médicos das vestais.

- *Implantação de serviços de assistência médica* Dentre os fatos que aos poucos foram afetando a vida das pessoas deficientes ouportadoras de males que normalmente podem levar à instalação de uma situaçãoincapacitante, no Império Romano todo, ressaltemos a gradativa implantação de serviçosmédicos mantidos pelos seus governantes desde os primeiros tempos do Império. Médicos(archiatri) eram indicados para diversas cidades ou para instituições existentes na ocasião,tanto em Roma como nas vizinhanças e também nas suas mais longínquas províncias, ondepermaneciam estacionados servidores públicos provenientes da Capital do Império e suaslegiões. O sistema de assistência aos doentes, incluindo os portadores de deficiências deordem física, sempre esteve em bem melhores condições junto às legiões romanas do quenas cidades, como vimos anteriormente.

- *A higiene e os banhos públicos* Desde o século VI a.C. Roma contava com uma obra que até hoje é testemunha do zelo dealguns de seus governantes pela saúde publica: a Cloaca Máxima construída pelosTarquínios, famosos reis de Roma. A ela ligavam-se encanamentos de esgoto e de águaservida. Gradativamente latrinas públicas foram instaladas, e na época de Constantino havia150 delas. Água potável e de boa qualidade certamente ajudou também os romanos na luta contraepidemias e contra muitos males. As adutoras de água foram objeto de um grande esforçodos romanos mais civilizados, pois até o ano 300 a.C. Roma ainda não era alimentada porfonte alguma de água, a não ser o próprio Tibre, acima da Cloaca. Na época imperial Romachegou a contar com 14 aquedutos. Os romanos, que se contentavam anteriormente em lavaros braços e as pernas todas as manhãs e o resto do corpo uma vez por semana, puderam, sobo Império, dispor de 500 litros de água por dia cada um! A cidade recebia mais de um bilhão

de litros diários de água potável, volume que nenhuma cidade moderna, de porte médio,recebe. Os banhos públicos tornaram-se, nas últimas décadas da República Romana, verdadeiroslugares de prazer, onde era mostrado um luxo refinado. Na época de Constantino existiamaproximadamente 850 banhos públicos em Roma. Inicialmente separados por sexo, os banhos tornaram-se comuns, tendo sido essa uma dascausas da depravação dos costumes de Roma, rigorosa e continuamente combatidos peloscristãos, impedidos de os freqüentar.

- *As pessoas deficientes nas artes romanas* No museu do Louvre, em Paris, existe um vaso de origem romana - provavelmente doSéculo IV a.C. - no qual está representada uma pessoa com deficiência motora. Ela se apóianum bastão e utiliza um pilão na parte inferior da perna direita, devido a uma deformidadede origem poliomielítica talvez. Nota-se também o seu pé esquerdo numa posiçãodeformada, como se fosse um pé eqüino. A coluna de Trajano, em Roma, é uma obra de arte "sui generis" e muito interessante. Elaapresenta numa seqüência ininterrupta, em forma de espiral ascendente, toda a vida de lutas,vitórias e dificuldades do imperador Trajano e suas legiões. Um dos trechos dessa famosailustração seqüencial mostra-nos com bastante clareza o atendimento a feridos nos camposde batalha. Nota-se, por exemplo, um soldado fazendo curativo num colega de armas,enquanto dois outros ajudam um terceiro, bastante ferido e que mal consegue manter-se empé. Nas poéticas paragens do vale do rio Gave, a nordeste dos Pirineus, a 5 quilômetros davila de Pau, fica o vilarejo de Lescar. Num passado bem remoto ali estava localizadaBeneharnum, muito aprazível cidade galo-romana que foi mais tarde destruída pelossarracenos. A mais importante de suas antigas construções é sua catedral, pois Lescar já foisede de bispado. Num de seus mosaicos parcialmente destruídos percebe-se a figura de umhomem dando uma larga passada à frente de um animal. A perna direita da figura, todavia,não tem o pé e o homem usa uma espécie de pilão para apoiar o joelho, formando umaprimitiva e eficiente perna de madeira.

- *Valores espirituais em pessoas deficientes* Em Roma, alguns anos antes de Cristo e mesmo à época da vida de Jesus, mas sem comEle ter tido qualquer contato, dois sábios romanos chegaram a expressar com muita clareza oque pensavam de pessoas portadoras de deficiências de seu conhecimento. São eles Cícero eSeneca. Cícero é bem explícito quanto a um problema incapacitante na vida de uma pessoa, ouseja, quanto à cegueira. Fala sobre a adequacidade de alguns homens cegos famosos, ou deseu conhecimento face à vida. "O velho Ápio, apesar de cego depois de longo tempo, exercia a mais elevadamagistratura, sem faltar em nada a qualquer de seus deveres, públicos ou privados. A casa deC. Druso, o jurisconsulto, estava sempre cheia de clientes que, por terem sido poucoclarividentes em seus negócios, ali tomavam um cego como guia. Em minha infância, CneoAufídio, que havia sido pretor, não apenas dava seus pareceres no senado e ajudava seusamigos com conselhos, apesar de ter perdido a visão, mas também escrevia sobre históriagrega e era versado em literatura. Tive em minha casa por muito tempo o estóico Diodote.Depois que perdeu a visão, ele se aplicou mais do que nunca à filosofia, sem distraçõesoutras a não ser tocar o alaúde à moda dos pitagoreanos. Liam para ele dia e noite; e, o que

poderia parecer impossível sem a visão, continuou a ensinar geometria, demonstrando comclareza a seus alunos como traçar linhas. Diz-se que Asclepíades, filósofo, bastanteconhecido entre os homens de Eritrícia, respondeu a alguém que lhe havia perguntado o quelhe incomodava mais com a perda da visão: ... "é que me falta um criado para meacompanhar" ("Tusculanae Disputationes de Cícero). Sêneca, o grande pensador e filósofo romano que nasceu no ano 4 a.C. e morreu em 65d.D., sendo, portanto, contemporâneo de Jesus Cristo, escreveu muitas obras de grandeinteresse até nossos dias e dentre elas cumpre destacar, neste contexto, mais de 100 cartas aoseu amigo Lucílio. Numa delas ele analisa o problema das deficiências físicas de ordem maisgrave e os valores espirituais existentes nas pessoas deficientes. Diz ele:"Finalmente, se eu considerar nosso amigo Clarano, ele me parece belo e tão reto de corpoquanto de espírito. Um grande homem pode sair de um lar pequeno e uma grande alma podeser encontrada num corpo pequeno e disforme; o que me faz crer que a natureza produzessas pessoas a fim de que se perceba que a virtude pode nascer em qualquer lugar" ... ..."Parece que Clarano existe expressamente para nos ensinar que a alma não é manchada pordeformidades do corpo, mas que o corpo recebe certos brilhos pela beleza da alma" ("Lettrêsà Lucilius", de Sêneca). Em outra de suas obras, Sêneca também comenta a respeito da importância decompreender os problemas que nos afetam, mesmo que sejam deficiências físicas sérias:"Existe alguma vantagem, diz você, em ser mandado para o exílio, em ver seus filhos cair namiséria, em enterrar sua mulher, em ser marcado pela calúnia, em ser mutilado?" ... ... "Sevocê imagina que, como remédio, deve-se às vezes amputar membros que não poderiamficar unidos ao corpo sem causar sua destruição, você se deixará convencer que certos malessão vantajosos para aqueles que os sofrem" ("De Providentia", de Sêneca). Eis alguns outros pensamentos desse sábio pensador romano: "Ninguém, em absoluto, me parece mais infeliz do que o homem ao qual nada de infelizaconteceu jamais". "Ninguém conhece o que pode, sem ter-se provado antes". "O importante não é o que você sofre, mas como você sofre".

CAPÍTULO TERCEIRO O CRISTIANISMO, O IMPÉRIO BIZANTINO E A IDADE MÉDIA FACE AS

PESSOAS DEFICIENTES

1. O Advento do Cristianismo

Se analisarmos as circunstâncias que cercaram o aparecimento do Cristianismo no mundo,ficaremos muito admirados, pois foi precisamente quando o Império Romano apresentava-sea todas as nações como uma realidade imbatível e de sólidas raízes, com seus mais de seteséculos de lutas e muitas vitórias, e seus muito pomposos governantes desfrutando de muitaautoridade, sempre garantida pela força de legiões bem treinadas e bem armadas, que umgrupo de homens muito simples, sem cultura e de origem judaica, surgiu e colocou-se face àhumanidade para iniciar uma substancial transformação que alteraria todo o curso daHistória do Mundo. Embora a própria origem da nova doutrina tivesse sido um dos principais fatores diretosde seu sucesso, ela não pode ser considerada como o único. Houve também fatores indiretosque deverão ser levados em conta, e um dos mais significativos foi a consagrada "PaxRomana": a paz garantida a vastíssimas e muito diversificadas regiões do mundo conhecido,coordenadas num imenso Império cujo poder central localizava-se em Roma. Essa paz quepassou para a História não foi garantida apenas pelas armas muito superiores dos romanos ede seus "aliados", mas também por um aceitável sistema administrativo nas províncias enações conquistadas e por boas estradas. E havia um outro fator ponderável: pelo fato dehaver duas línguas básicas em quase todo o Império, ou seja, o latim e o grego. E nãopodemos nos esquecer do fator que talvez tenha sido dos mais relevantes àquela época, fatorque de certa forma viabilizou inicialmente a divulgação do novo modo de ser e pensar"cristão", ou seja, a uniformidade de direitos garantidos a todos os seus habitantes, direitosesses que eram conseqüentes do esmero com que eram tratadas as leis em Roma. Esses fatores todos - por mais estranho e irônico que possa parecer apresentaram-se noinício da vida cristã como agentes facilitadores. Mas, muito mais do que eles, convémressaltar aqui o lamentável estado moral da sociedade romana como um todo - especialmentea mais favorecida - que, além dos desmandos quanto a usos e costumes, não chegava a atinarcom o verdadeiro significado dos problemas que atormentavam continuamente certascamadas da população, tais como os escravos, os oprimidos, os servos e outros mais - enfim,todos aqueles que compunham a massa dos pobres do glorioso Império Romano. O conteúdo da doutrina cristã que era toda voltada para a caridade, ou seja, para o amor aopróximo, para o perdão das ofensas, para a valorização e compreensão do significado dapobreza, da simplicidade de vida e da humildade, conteúdo esse pregado por Jesus Cristo edivulgado com nuances cada vez mais convincentes, conquistou a grande horda dosdesfavorecidos em primeiro lugar. No meio deles, aqueles que eram vítimas de doençascrônicas, de defeitos físicos ou de problemas mentais. Tudo isso deixou perplexos todos osque deles viviam despreocupados. Aos poucos, alguns começaram a posicionar-sefavoravelmente a esse novo modo de ver o seu semelhante; outros mantiveram-se alienadoscomo sempre; muitos reagiram ferozmente contra tudo o que se relacionava com cristãos ousua doutrina. Nos primeiros tempos da Igreja Cristã houve um significativo impulso aosentimento fraternal entre os cristãos, não importando em nada sua situação social ou mesmosua nacionalidade, fosse ela romana, grega, egípcia, franca, hebréia ou de qualquer outranatureza. A minoria cristã foi aos poucos adquirindo mais e mais adeptos para se transformar

em pouco mais de três séculos maioria absoluta, principalmente na Europa e no OrienteMédio. E houve, com a implantação e solidificação do Cristianismo, um novo e mais justoposicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a importância devida a cadacriatura como um ser individual e criado por Deus, com um destino imortal - o que, semdúvida, muito beneficiou os escravos e todos os grupos de pessoas sempre colocadas de ladoe menosprezadas na sociedade romana, tais como os portadores de deficiências físicas ementais, antes considerados como meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos emvidas passadas, inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente como seres que, emmuitos casos, deveriam continuar sendo eliminados ao nascer, segundo as leis e costumes deRoma recomendavam há séculos. No entanto, a História nos conta que as conquistas do Cristianismo não aconteceram nemcom facilidade nem com tranqüilidade. Problemas graves e muito sérios surgiram desde osprimeiros anos e mantiveram-se por três séculos.

- *As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos* A nascente Igreja Cristã foi primeiramente desalojada da Sinagoga e depois perseguidapelos judeus devido às profundas divergências existentes, o que levou seus primeiros líderese adeptos (muitos dos quais haviam conhecido Jesus em vida) a procurar montar sua própriaorganização, em vez de tentar inutilmente manter-se como parte da religião dos judeus,como talvez fosse a intenção inicial. O próprio Concílio de Jerusalém, citado nos Atos dosApóstolos, estabeleceu as bases para transformar o Cristianismo incipiente em uma religiãode caráter absolutamente internacional, universal. Essa característica chamou imediatamente a atenção dos governantes romanos, pois oImpério e seus mandatários, que respeitavam (ou ignoravam) as religiões e crenças locais ounacionais dos povos conquistados, não aceitavam em hipótese alguma essa espécie deorganização judaica que se instituía e que afirmava manter uma religião "não licenciada"pelas autoridades de Roma à busca de adeptos em qualquer das nações integrantes doImpério. Foi dessa maneira que o Cristianismo começou a ser olhado pelas autoridadescomo movimento ilegal, tendo sido extremamente fácil descobrir aspectos "negativos" naaudaciosa religião de um só Deus, que não apenas desprezava deuses sem conteúdo e"surdos-mudos", como afirmavam seus líderes, como também recusava-se a reconhecer apretensa característica de divindade no imperador romano. Iniciaram as autoridades romanas a repressão violenta, para desencorajar sua expansão: asfamosas perseguições aos cristãos. Foram elas decretadas por diversos imperadoresromanos: Nero, Domiciano, Trajano, Marco Aurélio, Sétimo Severo, Maximino, Décio,Valeriano, Aureliano e Diocleciano (e sob seu nome, a feroz perseguição de Galério).Tiveram como conseqüência muitas mortes provocadas por sentenças injustas e por vezesmuito cruéis, cuja intenção principal era desencorajar as afrontas dos cristãos aos usos,costumes e autoridades estabelecidos. A grande tragédia das violentas perseguições, seguidas de aprisionamento, condenaçãosumária ao suplício ou apenas perpétuas e mesmo à morte durou 129 anos. E durou tantotempo com certos imperadores que seus juízes chegaram a ficar literalmente cansados de nãoobter resultados satisfatórios. Alguns desses imperadores, preocupados em manter uma certaimagem de clemência e de humanidade, resolveram mudar de tática: os juízes passaram areceber ordens para não mais condenar os cristãos à tortura e à morte, "por um ato declemência do imperador"...

Eusébio, bispo de Cesaréa, que viveu entre 267 e 340 e foi um religioso que gozava damais absoluta confiança de Constantino I, o Grande, testemunha o seguinte ao falar doscristãos perseguidos e condenados: "Ordenou-se que a partir de então vazassem nossos olhos e aleijassem uma de nossaspernas. Esta foi a humanidade e esse lhes pareceu um gênero brando de suplício contra nós.Dessa forma, por causa dessa brandura dos homens ímpios, de maneira alguma seriapossível contarmos o número daqueles aos quais foi primeiramente extraído o olho direito edepois cauterizado com um ferro, ou daqueles aos quais foi estropiada (a musculatura) abarriga da perna esquerda com um ferro em brasa, sendo imediatamente após condenados àsminas existentes na província, não tanto para trabalharem mas para serem atormentados"("História Eclesiástica", de Eusébio de Cesaréa). Ao comentar a questão das mutilações impostas aos cristãos, sob o ponto de vista doCódigo Penal Romano, Mommsen afirma que "na perseguição aos cristãos que teve lugarsob Diocleciano, deixava-se inicialmente a cada tribunal, se estivermos bem informados, aliberdade de agravar as penas como bem lhes parecesse, pela da mutilação corporal efinalmente o governo mandou adicionar à pena das minas, o vazamento do olho direito e aamputação do pé esquerdo" (" Le Droit Pénal Romain", de Mommsen ). De sua parte Allard nos diz, em seu pormenorizado estudo sobre a implantação doCristianismo no Império Romano, o seguinte: "De 308 a 310, as pedreiras da Tebaida, asminas da Cilícia, da Palestina e do Chipre, viam chegar longas cadeias de cristãos, quasetodos coxos e cegos" ("Le Christianisme et l'Empire Romain",de Allard). Por vezes os algozes desses muitos cristãos que estavam condenados às minas pelo restode seus dias permitiam que se reunissem para orar e mesmo para formar pequenos gruposque foram sendo chamados de "igrejas". Depois, todavia, dependendo sempre dos tipos dehomens encarregados de sua vigilância, bem como da produção das diversas minas,começou a ocorrer a dispersão violenta, sua transferência de mina para mina e finalmente adecapitação dos condenados enfermos e menos produtivos, incluindo sempre os portadoresde deficiências sérias e limitadoras da capacidade de trabalho.

- *Sétimo Severo, o sábio e firme imperador* Nascido em Leptis Magna, na África, e morto na Bretanha (hoje Inglaterra), SétimoSevero foi imperador dos romanos de 193 a 211 d.C. Segundo os historiadores, desenvolveuum governo bastante firme. Uma séria mancha em seus dezoito anos de imperador foi umaacirrada e forte perseguição contra os cristãos. Já no final de sua vida, com 62 anos de idade, organizou uma campanha contra oscaledônjos revoltados, levando consigo seus dois filhos e herdeiros, Marco AurélioAntonino,que depois tornou-se imperador com o cognome de Caracala, e Lúcio SétimoGeta, assassinado pelo próprio irmão em 212, após a morte do pai. Devido a atrozes dores provocadas pela gota em seus pés e pernas, Sétimo Severo nãoconseguia mais andar. No entanto, manteve-se sempre muito ativo, superando a dificuldadede movimentação de varias maneiras, levado de um lado para o outro pelos seus soldados ouescravos. É o historiador Lissner que nos conta sobre o grave problema físico desse grandeimperador romano, informando: "Sofrendo atrozmente de gota, Sétimo Severo, durante acampanha da Inglaterra, fez-se transportar em liteira" ... "os soldados, compadecidos com ossofrimentos de Severo, quiseram proclamar Antonino imperador. Severo fez-se transportarao tribunal, puniu implacavelmente os responsáveis por essa iniciativa inoportuna, exceto

seu filho, e declarou: Sabeis agora que se governa com a cabeça e não com as pernas" ("LesCésars", de Lissner).

- *"Praecepta Medica" e os males incapacitantes* Quando da morte de Sétimo Severo no ano 211 d.C., assumiu o poder seu filhocognominado Caracala (Marcus Aurelius Antoninus Bassianus - 188 a 217 d.C.). Paragarantir-se no poder, eliminou primeiramente seu irmão Lúcio Sétimo Geta e, numaseqüência macabra, mandou matar mais de 20.000 homens importantes que considerava seuscríticos e opositores. Dentre eles iremos encontrar o grande sábio Samônico (Quintus Severus Samonicus) quefoi assassinado durante uma festa por ordem direta do imperador, no ano 212. Para compreendermos o significado de seu nivel de cultura, basta que saibamos oseguinte: Samônico tinha uma biblioteca com mais de 60.000 obras que continuamenteconsultava. Escreveu uma interessante farmacopéia em versos que chegou até nossos dias eintitulada "Praecepta Medica". Através dela passou para a posteridade receitas de muitosremédios e orientações quanto ao combate de certos males bem específicos. Neles vemosinseridos algumas doenças ou problemas que podem levar a deficiências físicas ousensoriais, tais como a gota, a elefantíase, os males das articulações, a epilepsia, as doençasda visão e da audição e outros. Embora tenha sido escrita no início do século III d.C., a menos de dez anos após a mortede Cláudio Galeno, nota-se na obra de Samônico progressos muito pouco significativos namedicina. Há conceitos baseados apenas em crendices e há indicações de alguns preparadosinócuos. Verifica-se, todavia, certa objetividade face a problemas graves, tais como a gota,para a qual poucos remédios surtiam efeitos reais. Diz, então, o sábio Samônico: "Vários,portanto, são os remédios próprios para a cruel podagra, da qual o deus de Epidaurosenumerou 30 espécies. Ele próprio afirmou que impor o repouso ao paciente será corretopara pelo menos mitigar sua triste dor". É sobre a epilepsia que ele faz uma alegação pouco aceitável, mesmo para aquela época:..."o próprio Esculápio lembrava que as pessoas concebidas durante o tempo da lua (cheia)estarão sujeitas a ataques epiléticos". A respeito de sangramentos ou hemorragias por cortes profundos ocorridos em acidentesou em campos de batalha, Samônico indica um preparado popular que devia ser muitoutilizado - e com sucesso - por soldados e por civis sem qualquer distinção, e que jámencionamos anteriormente: "O esterco de cavalo, cozido com casca de ovo, é ainda umremédio de maravilhosa eficácia para estancar a saída de sangue" ("Praecepta Medica", deSammonicus). - *Galério, imperador que morre com deficiência séria* No ano 311 falecia Galério (Caius Galerius Valerius Maximianus) imperador entre 293 e311 d.C., um dos integrantes da tetrarquia romana e dos mais cruéis perseguidores doscristãos por um longo periodo de doze anos. Embora pareça irônico, foi ele o primeiroimperador que, ao final de sua vida, formalmente permitiu à religião cristã sair daclandestinidade em que vivia, por meio de um édito especial. No entanto, essa liberação sóaconteceu devido a uma gravíssima moléstia que o atingira e que o havia incapacitado deandar no último ano de sua vida. O mal caracterizava-se por ulcerações muito sérias e que,apesar de serem tratadas com ferro em brasa - como era rotina - reabriam sempre, levandoGalério a perder muito sangue. Enfraquecido ao extremo, e sem mais poder mover suaspernas devido à deformação de seus pés, o cruel imperador mandou vir médicos de todos os

recantos de seu Império, sem qualquer tipo de resultado. Chegou até a recorrer a Apolo e aEsculápio, mas seu problema não só continuou como piorou. As feridas chegaram a atingirseus intestinos. Galério, muito irritado com a falta de bons resultados, mandou executar diversos médicosque não haviam conseguido minorar seus males ou que não haviam suportado o mau cheirode suas úlceras. No entanto, um deles, que era cristão, vendo-se em verdadeiro perigo devida ao tratar o imperador, usou de absoluta sinceridade. Disse-lhe que ele se enganava emesperar que os homens pudessem livrá-lo de um mal que lhe fora mandado por Deus. Elembrou Galério sobre os muitos anos de perseguição feroz dos cristãos, indicando com issoonde poderia estar a solução. Acreditando em tudo o que lhe sugeriam, resolveu o imperadordesesperado publicar um édito imperial de caráter geral, pelo qual liberava a religião cristã.Mas colocou algumas restrições aos cristãos: "... considerando nossa mui doce clemência e ocostume que temos sempre observado de perdoar a todos os homens, cremos dever dessaforma estender nossa ampla indulgência sobre eles (os cristãos) de tal maneira que possamser cristãos como antes, e restabelecer seus lugares de reunião, na condição de que nãofaçam nada contra as leis; de resto, faremos cientes os juízes, por outra carta, tudo o quedeverão observar. Portanto, de acordo com esta graça que nós lhes fazemos, eles serãoobrigados a rezar ao seu Deus pornossa saúde, pela segurança da república e deles mesmos, a fim de que a república prosperede todos os lados, e que eles possam viver seguramente em suas casas" (Citação de SantoEusébio, apud Rohrbacher). Galério morreu pouco depois da divulgação de seu decreto em todo o Império Romano,no qual já haviam sido iniciadas as providências concretas para não mais perseguir oscristãos e para libertar os que estavam presos e condenados à morte ou ao suplício. Sua grave enfermidade e sua morte trágica foram consideradas por todos os cristãos comoum verdadeiro castigo de Deus.

- *Mutilações em cristãos: a língua de São Romão* Conforme nos relata o historiador Rohrbacher, a crueldade dos juízes e das mais altasautoridades nas diversas Províncias do Império Romano era por vezes incompreensível eassustadora. E as decisões quanto à imposição de torturas eram sumárias. Para umainfinidade a morte foi o destino imediato. Para outros o severo castigo deixaria as marcasimpostas pelo imperador ou em seu nome. Mutilações ocorriam em muitos casos, conformeindicamos antes. Durante a perseguição conhecida como de Diocleciano, pelo ano 303 aproximadamente,um corajoso diácono da igreja de Cesária, na Palestina, chegou a Antióquia e interpelou umjuiz chamado Asclepíades, que estava condenando os cristãos a diversos tipos de tortura,simplesmente por não quererem se curvar ou reverenciar o imperador Diocleciano comodivino. Diante do desafio público, o juiz mandou aprisioná-lo e torturá-lo. No entanto,durante as torturas o bravo diácono não deixava de reprovar o que estava acontecendo,condenando em altos brados a vaidade da idolatria e ressaltando a excelência doCristianismo. Devido à óbvia inconveniência da palavra desabrida daquele cristão, conhecido comoRomão, Asclepíades mandou amputar sua língua. Para tanto, foi chamado um médico alipresente, que também era cristão, mas que não havia suportado o martírio. Esse médico,Ariston, usou instrumentos próprios para essa operação e guardou consigo a línguadecepada, como uma espécie de relíquia.

O mártir, mandado de volta à prisão, foi barrado por um soldado que perguntou seu nome.E ele respondeu com clareza, apesar da língua amputada. O juíz e o próprio Diocleciano, presente em Antióquia, suspeitaram do médico emandaram-no chamar. Ariston mostrou a língua decepada e disse-lhes que Romão era umhomem protegido por Deus.Diocleciano passou a temer tanto a influência desse loquaz cristão aprisionado que mandoucolocá-lo com os pés presos ao chão por argolas de ferro, em sua própria cela. E assimmesmo, pés presos ao chão, foi enforcado no mesmo dia em que Diocleciano celebrava afesta do vigésimo aniversário de seu Império, ocasião em que mandou soltar muitosprisioneiros, inclusive os detestados cristãos. O castigo infligido a Romão é um pequeno exemplo das muitas mutilações de que foramvítimas, no Império Romano, os criminosos - dentre os quais os cristãos estiveram inseridospor longo tempo.

- *Alterações substanciais provocadas pelo Cristianismo* O Cristianismo foi muito relevante na mudança da mentalidade imperante no século IV,pois condenava abertamente muito do que o sistema vigente aprovava, como a libertinagemdas pessoas solteiras, a perversão do casamento, a morte de crianças não desejadas pelospais devido a deformações, dentre muitos. Foi o imperador Constantino que, em 315, editou uma lei que bem demonstra a influênciados princípios defendidos pelos cristãos de respeito à vida. Essa lei considerava os costumesarraigados - embora não generalizados - de mais de cinco séculos, prevalecentes em Roma eem Esparta principalmente, que não só permitiam como também exigiam que o pai defamília, senhor absoluto de tudo e de todos no lar, fizesse morrer o recém-nascido que elenão queria que sobrevivesse, devido a defeitos ou a mal-formações congênitas. Constantinotaxou esses costumes de "parricídio" e tomou providências para que o Estado colaborassepara a alimentação e vestuário dos filhos recém-nascidos de casais mais pobres. Exigiu queessa nova lei fosse publicada em todas as cidades da Itália e da Grécia, e que fosse em todasas partes gravada em bronze para, dessa forma, tornar-se eterna.

- *Um bispo com deficiência: Castigo de Deus?* Há fatos narrados por historiadores da Igreja que falam sobre deficiências físicas,relacionando-as com manifestações superiores, indicando por vezes castigo de Deus porfaltas cometidas. Um desses fatos está inserido na vida de São Miles, bispo de Susa. Segundo a história, havia um bispo chamado Papas, cujo temperamento, arrogância eorgulho haviam causado sérios problemas ao clero a ele subordinado, levando a verdadeirocisma na Igreja da Selêucia e de Ctésiphon. Diante da seriedade do problema, os bisposreuniram-se num sínodo no ano 314. Ocorreram discussões apaixonadas, principalmenteentre São Miles e Papas. Procurando descobrir a causa do ódio com que Papas agia para com seus sacerdotes,Miles perguntou se ele afinal considerava-se um Deus. No calor das discussões Papasrespondeu muito irritado: "Insensato! Tu queres me ensinar coisas como se eu não asconhecesse?" Tomando o livro dos Evangelhos que trazia consigo, Miles colocou-o sobre amesa dos debates e lhe disse: "Se menosprezas aprender coisas de minha parte, por eu serum mortal, não desdenhe aprendê-las do Evangelho do Senhor que aqui está" ... Papas nãoconseguiu conter-se mais, pois tomou o livro entre as maos e olhando-o ferozmente gritou:"Fala, Evangelho, fala!" ...

Miles, assustado e ao mesmo tempo chocado com aquela atitude questionadora, tirou-lheo Evangelho das mãos, beijou-o com respeito e aproximou-o dos olhos. Em seguida, numtom profético e inspirado disse ao bispo irreverente: "Já que em teu orgulho ousaste falardessa maneira contra as palavras de vida do Senhor, eis que seu anjo está pronto para secarmetade de teu corpo para inspirar o terror a todos; portanto, não expirarás: a vida ser-te-aconservada como um milagre de punição". No mesmo instante Papas sentiu a metade de seu corpo sem movimento e sem vida.Tombou sobre um lado e assim permaneceu. Viveu assim por mais doze anos, até sua morteno ano 326.

- *Dídimo, teólogo cego: diretor da Escola de Alexandria* Dídimo perdeu sua visão aos 4 ou 5 anos de idade, quando começava a aprender a ler. Noentanto, esse problema não diminuiu sua vontade de saber. Pelo contrário, parece que até ainflamou. Gravou o alfabeto em madeira e depois aprendeu pelo tato as letras, as sílabas, aspalavras e depois as frases inteiras. Seu ardor pelo estudo não o fez parar nesse ponto deconquista. Tomava providências para ouvir professores célebres, quando já era moço, econseguiu ajuda de pessoas que se prontificavam a ler para ele, a fim de tomar conhecimentodos melhores livros. Quando seus ledores, cansados, adormeciam, ele meditava muito sobreo que acabara de ouvir e assim gravava o assunto em sua memória. Aprendeu as regras de línguagem e da gramática, os mais belos trechos dos poetas e dosoradores, e também noções de retórica. Tornou-se um ótimo conhecedor das letras sagradase de assuntos humanos, das Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, queconseguia explicar, trecho por trecho, das mais variadas maneiras. Dominava a dogmática daIgreja Católica, e sobre os dogmas discutia com precisão e muita propriedade. Conhecia afilosofia de Platão e de Aristóteles, a geometria, a música, a astronomia e as diferentesopiniões dos filósofos. Quando chegou a Alexandria, atraiu muito a atenção e recebia muitas visitas de pessoasque queriam ouvi-lo. Tinha amigos importantes, dentre os quais cumpre citar SantoAtanásio, que acabou indicando seu nome para Diretor da Escola de Alexandria. Eraestimado e respeitado pelos mais santos monges e eremitas do Egito. Recebeu um dia a visita de Santo Antão - talvez o mais famoso dos eremitas - que lheperguntou se a cegueira o incomodava. Dídimo teve vergonha de responder e de confessarsua fraqueza. Mas Santo Antão repetiu a pergunta uma segunda vez, e à falta da respostaperguntou uma terceira. Dídimo confessou que sim, a cegueira o afligia, o bloqueava.Segundo seus biógrafos, Santo Antão lhe disse nessa oportunidade: "Admiro-me muito queum homem sábio como voce se aflija de haver perdido aquilo que as formigas e as moscaspossuem, em vez de se alegrar de ter o que os santos e os apóstolos tinham. É maisimportante preocupar-se com a alma do que com esses olhos dos quais um só olhar poderáperder o homem eternamente". Dídimo foi Diretor da Escola de Alexandria do ano 345 até 395, ano anterior à sua morte.Dentre seus alunos mais renomados podem ser citados São Jerônimo, Rufino e Paládio.Dídimo escreveu diversos estudos e deles os mais famosos são "Sobre o Espírito Santo" e"Sobre a Trindade".

- *Os primeiros hospitais cristãos e as pessoas deficientes* Sob a influência da religião cristã e graças aos seus preceitos de mansidão, de caridade ede respeito a todos os semelhantes (motivos bastante sérios para dedicação a umabeneficência ativa e voltada à população mais pobre) começou logo a ocorrer o surgimento

de hospitais em algumas localidades, marcados pela finalidade expressa de abrigar viajantesenfermos de um lado, e doentes agudos ou crônicos (e dentre estes muitos casos de pessoasdeficientes) de outro lado. Sozomen (* Sozomen foi um historiador da Igreja Católica que viveu no século V. Umadas suas obras mais conhecidas é a “História Eclesiástica) relata-nos a fundação do chamado"Hospital de Edessa", na Síria, cidade hoje conhecida como Urfa. Naquele ano (370),assolada por uma terrível onda de carestia de víveres e de males decorrentes, Edessa recebeua intempestiva visita do eremita Efraim, que havia saído de sua reclusão no deserto paracensurar todos os cidadãos ricos da cidade devido à sua falta de caridade face à situação. Ospobres morriam sem receber ajuda, e as riquezas e comodidades dos mais poderososcontinuavam intactas. Muito aborrecido com essa falta de envolvimento cristão, Efraim lhesdisse: "Essa riqueza que acumulais com tanto cuidado, servirá apenas para condenar-vos,pois estais perdendo vossas almas, que valem mais do que todos os tesouros da terra"... Assustados e persuadidos por essas contundentes palavras do anacoreta, os ricos cristãosde Edessa argumentaram que não tinham podido até aquele momento decidir qual deveriaser a pessoa honesta à qual poderiam confiar dinheiro para uma justa distribuição ou uso,pois as que conheciam eram pouco honestas e confiáveis e seriam capazes de desviar omontante coletado dos seus fins originais. Efraim não duvidou e lançou a pergunta: "E qual é a vossa opinião a meu respeito?" Osapaniguados cidadãos responderam que ele certamente era um homem honesto e a eleentregariam de bom grado as contribuições para uma aplicação justa. Efetivada a coleta,recebeu Efraim um significativo volume de dinheiro, com o qual encomendouimediatamente trezentas camas que foram instaladas no vestíbulo de um edifício públicocedido pelos poderes locais. Ali começou a ser dada atenção a todos os que sofriam dedoenças graves conseqüentes à falta de gêneros ou à alimentação deficiente (Apud"Encyclopaedia of Religion and Ethics"). Há historiadores da Igreja Católica, entretanto, que afirmam ter sido o papa Anacleto, quereinou entre 76 e 88 como Bispo de Roma, o primeiro a organizar um abrigo para as vítimasde uma violenta peste que assolava toda a região, vítimas da carestia de víveres e também devários outros males, numa ala de sua propriedade. Isso aconteceu em 76 e deve ter sido oprimeiro exemplo de um hospital cristão. Segundo alguns outros autores, todavia, o primeiro hospital cristão de que se tem notíciafoi aquele criado por São Basílio, o Grande (329 a 379), célebre autoridade da Igreja Cristã,na cidade de Cesaréa, na Capadócia, hoje Turquia. Esse hospital teria sido construído àsportas de Cesaréa, no ano 375, consistindo de vários edifícios separados. Era conhecido pelagenérica e famosa designação de "xenodóchium", termo muito utilizado, tanto naquelasépocas quanto durante toda a Idade Média, e que acabou sendo aceito para designar "abrigopara doentes", quando na verdade pela sua derivação do grego significa "abrigo paraestrangeiros" ("xenós" para estrangeiro e "dócheion" para abrigo e proteção). Num trabalho escrito no século passado Broglie apresenta a seguinte descrição desseverdadeiro conjunto hospitalar: "Às portas de Cesaréa, sobre um terreno antes deserto,elevava-se como por encantamento toda uma comunidade edificada pela esmola e habitadapela caridade. Era a hospitalidade sob todas as formas, dando-se a essa palavra toda aacepção que lhe fez tomar a língua cristã, ou seja, considerando todo aflito em geral comohóspede de Deus e da Igreja. Ali havia um lugar de repouso para o viajante, um abrigo parao velho, um hospital para o doente, com instalações reservadas para males humilhantes quearrastam consigo o contágio e a vergonha. E eram essas instalações que São Basílio visitavamais vezes, lançando-se espontaneamente, ele mesmo, aos braços dos leprosos. Ao centro

desses edifícios elevava-se uma vasta igreja, ornamentada com todos os esplendores do cultotriunfante e servida por uma comunidade de monges, dos quais o próprio São Basílio era osuperior. Nas imediações todas movia-se uma multidão de auxiliares, de enfermeiros, defornecedores, de carroceiros, cuidando das coisas necessárias à vida. Era o própriomovimento de uma cidade populosa. E, no meio dessa população animada, São Basíliopassava a toda hora, inspecionando tudo, falando com todos, edificando a todos pelo seuzelo. Um século depois, todo esse lugar de Cesaréa ficou conhecido como "Basilíada"("L'Eglise et l'Empire Romain au IVe Siècle", de Broglie). Naqueles três primeiros séculos da Igreja Cristã os doentes de famílias mais abastadascontinuavam a ser tratados em suas próprias residências, da mesma forma como sucederiapor séculos mais.

- *Fabíola e Pammachius associados num hospital de caridade* Na Roma do século IV d.C., no seio da famosa, multissecular e muito abastada famíliapatrícia dos Fábios, uma notável mulher de nome Fabíola dedicou toda a sua fortuna e todo oseu tempo e energias para organizar o que é reconhecido como o primeiro hospital decaridade do Império Romano. Lá ela recebia pessoas com os mais severos males, conforme poderá ser constatado em umdocumento daquela época, ou seja, uma carta de São Jerônimo (347 a 420) a um cristão deRoma, Oceanus. A famosa e muito inspiradora carta, que procurava incentivar a comunidadecristã local a dedicar-se cada vez mais ao próximo dentro dos princípios básicos da caridadecristã, é uma análise sintética da vida dessa mulher muito dedicada, que nascera fora doCristianismo e a ele se convertera quando já era casada pela segunda vez. Num certo ponto da missiva São Jeronimo afirma: "Todo o seu patrimônio, que eraconsiderável e proporcional à sua linhagem, ela distribuiu e alienou, destinando o dinheiroaos mais necessitados dos pobres; e logo em seguida ela fundou um hospital para neleabrigar os doentes abandonados nas ruas e mitigar os sofrimentos dos infelizes acometidospor doenças ou consumidos pela fome". Ao analisarmos os termos utilizados pelo famoso santo da Igreja Católica, ao escreveressa carta, não podemos nos esquecer de que aproximadamente à mesma época surgira aprimeira tentativa bem sucedida de cristãos na aplicação prática dos preceitos da caridade,criando em Cesaréa, como vimos, o que era conhecido pelo nome de "xenodóchium", ouseja, um grande e bem organizado abrigo para peregrinos e estrangeiros doentes ou comproblemas, que recebia também doentes e miseráveis da própria localidade e seus arredores.Verificamos que no texto original latino São Jerônimo utilizou estas palavras: ... "et primaomnium "nosokómeion" instituit" ( e antes de mais nada criou um "nosokomeion"). O usodo termo grego, com caracteres gregos em sua carta original, indica-nos a inexistência de umtermo próprio em latim para o novo tipo de organização de caridade na qual Fabíola e seuscolaboradores cuidavam apenas de doentes, recebendo também pessoas deficientes, comoveremos a seguir. São Jerônimo fala expressamente delas em algumas considerações adicionais que faz aOceanus: "Mencionarei agora algumas calamidades humanas, tais como, nariz decepado,olhos vazados, pés mutilados, mãos enfraquecidas, ventrês tumefeitos, pernas enfraquecidas,pés inchados?" Na verdade, esses eram os tipos de doentes e de pessoas deficientes queFabíola por vezes chegava até a carregar em seus braços para levar ao hospital. Ressaltemos que o esforço de Fabíola não foi isolado, pois ao que tudo indica, oempreendimento foi concretizado e fortificado com o concurso de outras fontes de dedicaçãopessoal e financeira, como a de Pammachius, por exemplo.

A ele São Jerônimo escrevera uma carta, mas quatro anos antes daquela outra a respeitode Fabíola, com o expresso intuito de consolar esse importante cristão pela morte de suaesposa Paulina. E é nessa carta que o leitor poderá encontrar esta pergunta: "Ouvi dizer que voceconstruiu um hospital no porto romano?" E se for analisar de perto os originais dodocumento famoso, perceberá que São Jerônimo, ainda pouco informado sobre todo oempreendimento, no texto latino usou a palavra grega geralmente adotada para tal fim:"xenodochium". Fabíola e Pammachius, segundo a grande autoridade da Igreja, "uniram seus bens,associaram suas vontades, a fim de aumentar pela sábia inteligência o que a rivalidadepoderia ter dissipado. E conforme foi dito foi feito. Foi construído um hospital e a ele amultidão acorreu e não há mais aflições em Jacó nem dor em Israel" ... "O mundo todoouviu quase ao mesmo tempo que um hospital havia sido construído no porto romano. ABretanha ficou sabendo no verão; o Egito e Parthus souberam na primavera". As palavras de São Jerônimo deixam-nos a impressão clara de que verdadeiramentealgumas riquezas existentes nos primeiros séculos do Cristianismo haviam-se voltado àcausa dos mais miseráveis dos pobres, ou seja, aos doentes crônicos e também aosportadores de deficiências físicas graves. Repare o leitor neste outro trecho que se relaciona à faustosa vila da família dePammachius, bem como ao novo hospital, em que as deficiências são expressamente citadas:"Aquele cego que estendia a mão e que muitas vezes pedia esmola a quem não o podiasocorrer, é hoje herdeiro de Paulina e co-herdeiro de Pammachius. Aquele homemdeformado e forçado a arrastar seu corpo, a mão de uma jovem ampara. Aquelas portas quevomitavam uma multidão de cortesãos, são hoje assediadas pelos pobres. Um é hidrópicoque traz a morte dentro de si; outro não tem língua e é mudo, sem a faculdade de pediresmolas, mas que as solicita de maneira mais tocante por não ter língua para a pedir. Aqui,um defeituoso de nascimento pede esmola, mas não para si". Essas precisas informações e os comentários que a elas estão relacionados poderão serencontrados na íntegra no volume intitulado "Lettrês Choisies de Saint Jérome", destacando-se as cartas a Oceanus, sobre Fabíola, e a Pammachius, sobre Paulina.

- *A hospitalidade cristã e o papel dos bispos* Para melhor compreendermos a prioridade que a Igreja Cristã deu às atividades quegarantiram a assistência a pessoas pobres e marginalizadas nos seus primeiros séculos deexistência, é necessário lembrar que ela colocava a hospitalidade como a virtude maisimportante dos bispos. Ao tentar convencê-los da necessidade de uma atuação prática, oconcílio da Calcedônia (em 451) adotou a diretriz com ênfase e em seu cânone oitavo deuaos bispos a responsabilidade de organizar e prestar assistência aos pobres e aos enfermos. Os primeiros indícios de regulamentação dessa assistência surgiram em alguns concíliosda Igreja Gaulesa. O primeiro desses concílios (Orléans, 511) contou com a autoridadeinteressada de Childebert, filho de Clóvis e Clotilde. O cânone décimo sexto dizia: "O bispoproverá alimentos e roupas, dentro da possibilidade de suas posses, para o pobre e para oenfermo que devido a seus males estejam impossibilitados de trabalhar por sua conta". O papel dos bispos no atendimento aos mais carentes da população foi aos poucos sendodelineado, visando uma atuação prática. Tanto isso é verdadeiro que já no 5º concílio daIgreja Gaulesa (ano 549), o cânone vigésimo primeiro determinava: "Os bispos devemcuidar especialmente dos leprosos, dando-lhes comida e roupas" (Apud "Encyclopaedia ofReligion and Ethics").

- *Notícias de organizações para pessoas deficientes* Como resultado prático de muitas recomendações conciliares a História da Humanidadenos mostra que várias organizações de caridade ou de assistência a pobres, a deficientesabandonados e a doentes graves ou crônicos, conhecidas popularmente e impropriamentecomo "xenodochium", foram estabelecidas já a partir do século V por influência direta daIgreja. No ano 542, convencido das prementes necessidades dos pobres impossibilitados dese cuidar, o rei franco Childebert construiu um hospital de caridade na cidade de Lyon, comrecursos e instalações que de alguma forma se assemelhavam àquela primeira e bemsucedida experiência de Cesaréa, iniciada quase dois séculos antes. Foi levado a isso pelapressão da Igreja Gaulesa e de um modo especial do bispo de Lyon. Todos os envolvidos -rei e bispos - viam-se quase que forçados pelas decisões conciliares (na verdade a Igrejahavia já organizado os concílios de Nicéa (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) eCalcedônia (451), considerados como dos mais importantes) a dar abrigo e ajuda aos pobrese àqueles doentes que eram abandonados pelos seus parentes. Esta construção foireconhecida e confirmada no concílio de Orléans (549), através de seu cânone décimoquinto.

- *A questão das deficiências físicas em sacerdotes cristãos* Segundo alguns historiadores da Igreja Católica, já nos chamados "CanonesApostolorum", cuja antigüidade todos desconhecem e que, no entanto, foram elaborados nocorrer dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio paraaqueles candidatos que tinham certas mutilações. Para a Igreja surgiam problemas sérios,durante esses três ou quatro primeiros séculos, com mutilações de ordem sexualprincipalmente. Na verdade, mutilações sexuais eram muito comuns, seja como pretextopara "fuga do pecado", seja em conseqüência de castigos impostos pelos tiranos daquelesdistantes séculos. Tentando disciplinar a questão e esclarecer os bispos quanto à seriedadedo problema, os "Cânones Apostolorum", do cânone vigésimo primeiro ao vigésimo quarto,indicam o seguinte: "Que não se coloque dificuldade em sagrar como bispo, se o candidatofor considerado capaz, aquele que for eunuco por natureza, ou que se tornou eunuco pormalícia dos homens ou por crueldade dos tiranos" ... Logo a seguir o cânone vigésimosegundo declara como "irregulares" os casos de sacerdotes que se automutilavam, porque"eles são homicidas de si mesmos". Para casos de sacerdotes que tomavam essas medidas, ocânone vigésimo terceiro castiga com sua deposição, seu afastamento das funçõessacerdotais. Finalmente o cânone vigésimo quarto "priva da comunhão pelo período de trêsanos o leigo que fez a automutilação sexual" ("Les Conciles Généraux et Particuliers", deGuérin). O Padre Louis Thomassin (1619 a 1695), em sua obra "Ancienne et Nouvelle Disciplinede l'Église" analisa em muitos pormenores diversas situações relacionadas aos bloqueios queas deficiências físicas ou sensoriais significavam para um homem ser aceito como sacerdoteda Igreja Católica desde o início de sua criação até o final do século V. Segundo esse famosoautor, um dos primeiros papas a se manifestar abertamente a esse respeito foi Hilário, quereinou entre 461 e 468. De acordo com as próprias palavras do papa, na conhecida EpistolaII, "propisciendum ne duo simul sint in Ecclesia sacerdotes: nec literarum ignarus, aut carensaliqua parte membrorum". Ou seja, na Igreja Católica não deveria haver dois tipos desacerdotes: nem o analfabeto, nem o que não tivesse alguma parte de seus membros (ApudThomassin).

A obra de Louis Thomassin sobre a disciplina na Igreja, que foi escrita e publicada entreos anos de 1678 e 1679, foi revista e ampliada por M.André, um também famoso doutor emdireito canônico, que a publicou em sete volumes em 1865. Encontraremos, portanto, maisadiante neste trabalho, dados mais atualizados sobre o assunto. Mas ainda no século V houve posicionamentos de dois concílios, confirmando inclusive aposição do papa Hilário, mais tarde canonizado pela Igreja. Assim, é de se ressaltar que aposição dos concílios nunca foi dissonante. Vejamos os dois acima citados: Primeiramente oconcílio realizado em Angers, em 453, estabeleceu em seu cânone terceiro uma forte medidacontra sacerdotes que adotavam procedimentos cruéis, muito generalizados no seio dapopulação, acostumada com barbáries sem conta: "São proibidas as violências e asmutilações de membros". Já o concílio realizado em Roma no ano 465, reunido sob aautoridade do papa Hilário, aprovou por aclamação cinco cânones. Um deles, o de númerotrês, diz com clareza: "Deve-se também excluir das ordens aqueles que não sabem ler, ouque deceparam algum membro" (Apud Guérin). Gelásio I, papa que reinou de 492 a 496, reafirmou a mesma orientação de Hilário e doConcílio de Roma contra a aceitação de sacerdotes com deficiências, ao afirmar em sua cartaao bispo de Lucânia que candidatos ao sacerdócio não poderiam ser nem analfabetos nem"ter alguma parte do corpo incompleta". Esse mesmo papa afirmava ainda, muito convictodessas justificativas para essa atitude de bloqueio a pessoas com defeitos ou problemasfísicos, que "se trata de uma antiga tradição e um costume observado desde muito tempo emRoma; mais do que isso, que se trata de um desses louváveis costumes que a Igrejaemprestou da Sinagoga" (Apud Thomassin). Encontramos ocasionalmente pequenos relatos relacionados ao problema aqui analisado.Existem histórias até de automutilação, destinada a caracterizar uma irregularidade, como nocaso de Amônio, um santo eremita que ao se perceber praticamente "ameaçado" pelo povode ser elevado à dignidade do bispado, tomou uma providência extrema: cortou uma de suasorelhas. Todavia, as pessoas que o haviam procurado na tentativa de fazê-lo bispo, ficaramsabendo posteriormente que aquela mutilação seria apenas válida dentro da religião judáica enão para os cristãos. Assim sendo, voltaram a insistir com o mesmo propósito. Tiveram,todavia, uma surpreendente decepção, pois o eremita, muito resoluto em sua posição dehumildade, de faca em punho ameaçou cortar a própria língua na frente deles, conseguindodessa forma dissuadi-los. Caso tivesse efetivado sua ameaça, Amônio estaria incapacitadoinclusive para ser sacerdote. A Igreja Católica dos primeiros cinco séculos sempre procurou demonstrar pelos maisdiversos meios que essas restrições ao sacerdócio davam-se para benefício maior da Igreja enão por considerar as pessoas deficientes como indignas ou manchadas pelo pecado.Ressalte-se também que quando as deficiências ou males incapacitantes ocorriam "após aordenação sacerdotal", a Igreja usava do máximo de benevolência e em geral não impedia osacerdote de suas funções básicas.

- *Papel dos mosteiros na assistência aos miseráveis* Conforme verificamos anteriormente, com o advento e o fortalecimento do Cristianismo,um grande impulso foi dado às diversas formas de assistência aos necessitados, por ser acaridade a própria essência da nova religião. Praticamente durante a Idade Média inteira,somando aos esforços dos bispos, já engajados por determinações conciliares, os mosteirosconstituiram-se numa nova força impulsionadora da assistência social como pura expressãoda caridade.

De outra parte, responsáveis pela vida e bem-estar de seus súditos, alguns senhoresfeudais sentiram-se também obrigados a cuidar dos menos afortunados, doentes oudeficientes físicos e mentais, de bom ou mau grado, desde que dentro de seu feudo. Noentanto, espalhados por toda a Europa e Oriente Médio, os mosteiros eram de fato os únicoslugares que possuiam alojamentos destinados a recolher enfermos, utilizando as instalaçõesdos chamados "xenodóchium" ou "nosocomium", abrigando também eventualmentemendigos aos quais distribuiam a alimentação disponível, roupa e algum dinheiro.

2. O Império Bizantino e as deficiências

A História da Humanidade, conforme nos é transmitida nos países do mundo ocidental,minimiza e chega mesmo a deturpar a importância eventual do Império Bizantino, isto é, doImpério Romano do Leste, que durou nada menos do que onze séculos. Instalado no ano de330 d.C. por Constantino I, o Grande (274 a 337), ocasião em que inaugurou a nova capitalimperial com o nome de Nova Roma e para lá transferiu o governo, caiu apenas em 1453,ano em que Constantinopla tornou-se uma possessão dos turcos otomanos liderados porMaomé II. Foram onze séculos pujantes, intensamente vividos na mesma época em que a Europamergulhava numa etapa obscura e problemática da História que foi a Idade Média. Durantevários desses onze séculos foi uma notável unidade política que manteve muito viva acultura clássica de gregos e de romanos - e durante toda a sua duração estabeleceu comclareza sua característica fundamentalmente cristã. Neste trabalho sobre deficiências e pessoas deficientes o Império Bizantino tem um lugarespecial, uma vez que diversos de seus imperadores destacaram-se em sua história nãoapenas por suas lutas, conquistas e intransigente defesa do Cristianismo, como também pelaseveridade dos castigos e penalidades que infligiam, apoiados ou não nas leis. Marcaregistrada da realidade bizantina foi, de fato, a existência legal de punições de mutilação demembros ou do vazamento dos olhos das muitas vítimas - culpadas ou não - que caíram nasmãos da justiça. Essas punições foram generalizadas e atingiram tanto a nobres senhores quanto amembros das camadas mais pobres da população, incluindo integrantes das forças armadas. Não nos é difícil imaginar a extensão dos problemas das pessoas portadoras dedeficiências pelas causas usuais, quando a elas eram acrescentadas todas aquelas outrascegas e amputadas devido a penalidades impostas pela lei ou pelo poder absoluto dosimperadores.

- *Constantinopla, o "Reino de Deus na Terra"* Capital do Império Bizantino, a maravilhosa cidade das muitas mansões senhoriais, dosinumeráveis palácios e das incontáveis cúpulas douradas, localizada em ponto privilegiado ebanhada pelas águas azuis do Chifre Dourado, do Bósforo e do mar de Mármara, todacercada por aproximadamente 20 quilômetros de muralhas inexpugnáveis, Constantinoplafoi por muitos séculos considerada pelos seus habitantes como o verdadeiro "Reino de Deusna Terra". Os bizantinos aceitavam e defendiam o seu império como "sui generis", poishavia sido estabelecido por ordem direta de Deus e questionar sua existência ou seu sistemade governo estava totalmente fora de cogitação. Brilhou como estrela solitária no mundo durante toda a Idade Média e significou paramuitos potentados um sonho impossível. Além de tudo, Constantinopla era um verdadeiro

bastião fortificado da Cristandade que desafiou durante todo um milênio o mundo bárbaroapós a queda de Roma. Séculos após séculos, mongóis, tártaros, búlgaros, árabes, masprincipalmente os turcos, atacaram-na, maravilhados pelo que conseguiam ver por cima dasmuralhas: suas cúpulas douradas e os seus palácios. E dentro desses palácios e igrejas asinimagináveis riquezas. No entanto, a vida de Constantinopla era enclausurada nos tempos de guerra, que forammuitos. Sua população, constituída de gregos, latinos e asiáticos (todos reconhecendo-secomo "romanos") não conseguia imaginar o mundo além do horizonte das muralhas. Nesseuniverso limitado seu imperador sempre foi considerado como o representante de JesusCristo e sua figura autocrática era o próprio coração e a força propulsora de toda suaadministração, localizada e concentrada no palácio imperial.

- *A pompa e a circunstância na corte bizantina* Não é de admirar que as autoridades existentes no palácio do imperador e que com elemantinham contatos próximos tinham permanente e inquestionável importância. Mas elastodas respeitavam ao preço da própria vida uma linha hierárquica muito rígida e garantidapor leis de muita severidade. Numa clara demonstração da importância dessas autoridades, havia na corte bizantinamuitos títulos, sendo que alguns deles eram honoríficos e não estavam ligados a funçõesespecíficas; correspondiam a verdadeiras sinecuras. Eram outorgados através de cerimôniasfaustosas durante as quais o imperador entregava títulos, diplomas e ensígnias; títuloscorrespondentes a funções oficiais (de trabalho propriamente ditas) eram confirmados poréditos do imperador. Exclusivamente para a família do imperador havia títulos honoríficos especiais, tais como"césar", "nobilíssimo" e "curopalato". Com o correr dos séculos e mesmo com a criatividadede algumas dinastias outros títulos foram a eles adicionados: "sebastocrator" e "déspota", porexemplo, que correspondiam ao de "césar" em termos de sua importância. Todos os titularestinham o direito de serem tratados como "majestade imperial", sendo respeitados como tal. Muitos outros títulos havia para os nobres ou as personalidades importantes do Império,sendo o mais elevado dentre eles o de "magister".

- *As grandes e poderosas famílias do Império* Em boa parte dos fatos que passamos a relatar e que se relacionam a deficiências físicasou sensoriais graves, desejamos destacar algumas famílias que muito significaram na vidabizantina e a respeito das quais faremos menção mais adiante. São os Phocas, Commenus,Angelus, Tzimisces, Dukas, Paleólogus, Briennes, Lascáris, Diógenes e Argirosprincipalmente. A imensa influência desses fortissimos clãs nos assuntos de Estado estáevidenciada nas muitas páginas da vida de todo o Império Bizantino. E o historiador ou ointeressado nessa realidade conhece também o evidente perigo que eles podiam constituirpara determinado imperador, conforme circunstâncias que mais adiante pretendemos expor. Os palácios dessas enormes e fortes famílias nobres na capital e principalmente nasprovíncias (por séculos conhecidas pela designação de "temas") eram verdadeiras cidadelase cortes em miniatura.

- *A miséria na capital bizantina e as pessoas deficientes* O vasto triângulo de terras cercado por imponentes muralhas que compunha o cenário deConstantinopla nunca foi uniformemente povoado. No século VII, por exemplo, nele viviamcom certeza cerca de 500 a 800 mil pessoas, compondo uma sociedade diversificada não só

em termos de raças e origens, como também em termos de poderio econômico: havia anobreza dominante, a nobreza oprimida, as famílias ricas, as remediadas, as pobres e asmiseráveis. "O número de pessoas miseráveis em Constantinopla durante o citado século era de pelomenos 30.000 e o número de ladrões e outros criminosos não pode ter sido muito menor. Édificil imaginar que, numa cidade na qual a polícia era extremamente ativa e umaorganização municipal das mais apuradas, que supervisionava a imigração e cuidava dosempregos, esses elementos possam ter excedido a cinco por cento da população total, mesmoconsiderando terem sido os pobres reconhecidos como uma parte integrante e socialmenteimportante de sua composição" ("Cambridge Medieval History", de Hussey). A vida de Constantinopla, é fácil imaginar, mostrava muitas situações contrastantes, nasquais cumpre que enfatizemos as suas misérias e tragédias. Além de toda a população pobree pedinte e dos portadores de deficiências por causas naturais ou por acidentes que àquelesséculos pupulavam pela cidade, havia a presença incômoda de ex-criminosos ou de traidoresmutilados (olhos, nariz ou orelhas atingidos por carrascos frios cumprindo as sentençasprevistas por lei) mostrando a quem quisesse olhar os cotos de mãos amputadas ou seusolhos vazados, deixando uma desagradável impressão de tudo. Ressaltemos neste ponto que o segmento comercial da sociedade bizantina não eracomposto apenas de prósperos negociantes. Havia também um grande número de pequenoscomerciantes, lojistas, artesãos e seus assemelhados. E, procurando sobreviver a duraspenas, abaixo deles surgiam os braçais que trabalhavam por dia e aqueles que, devido acircunstâncias, estavam em condições piores, ou seja, braçais não-qualificados, mendigos,ladrões e prostitutas. No meio dos mendigos havia sempre pessoas com deficiências ou vítimas de malescrônicos, todos vivendo de esmolas que lhes garantiam condições mínimas de sobrevivência.Mas mendigar era por vezes uma atividade muito rendosa. Numa pequena comparaçãoexistente na obra de Hussey, já citada, as prostitutas recebiam à época do reinado deRomano I, o Lecapeno (919 a 944), uma certa quantia de dinheiro por mês para deixarem aprostituição, enquanto que muitos dos mendigos mais prósperos ganhavam bem mais do queelas, pois a renda de um ponto estratégico de coleta de esmolas poderia levantarimportâncias muito significativas. Esta não se caracterizava, no entanto, como uma situação comum e muito menosgeneralizada. O mais encontradiço mesmo era, no inverno, ver-se mendigos em condições deextrema miserabilidade, esquálidos, tremendo de frio em casebres mal cobertos com palhaem muitos pontos da cidade. A realidade de Constantinopla e das grandes cidades doImpério Bizantino mostrava que longe dos palácios e das grandes mansões, havia as áreasmais miseráveis da cidade, com seus becos sujos e escuros. Mas mesmo essas enormes áreasde Constantinopla eram insuficientes para abrigar toda a população mais pobre e suasmultidões de mendigos, de soldados estropiados pela guerra ou pelas penalidades impostaspelo regulamento militar, aos quais adicionavam-se camponeses fugitivos e aqueles queprocuravam na grande capital uma oportunidade para se refazer das suas desgraças.Dormiam ao relento ou sob as arcadas existentes nos muitos pontos das grandes avenidas,em instalações do famoso e soberbo Hipódromo e nos átrios das muitas igrejas. Às vezesjuntavam-se grupos durante o inverno para se aquecer ao redor de uma estufa ou de umaesterqueira, à falta de outros locais mais saudáveis (Apud Hussey).

- *As doenças e as deficiências físicas e sensoriais*

A quase totalidade desses infelizes sem condições de trabalhar para sua subsistência epara garantia de uma habitação menos infecta, ficava exposta a males endêmicos eepidêmicos que em geral eram provocados pela total ausência de condições mínimas dehigiene e de saneamento. Algumas doenças graves e muitos males considerados comomisteriosos levavam à instalação de limitações físicas e de males sensoriais severos, sendo agrande maioria deles considerada como sacrifícios para aperfeiçoamento da vida espiritual etambém para pagamento de males feitos anteriormente. Mesmo na mais alta nobreza, todavia, a alta morbidade, a mortalidade infantil e aexistência de deficiências físicas não eram incomuns. Um marcante exemplo poderá serdado com a família do Imperador Basílio I, o Macedônio (867 a 886). De seus cinco filhoshomens, apenas um sobreviveu e depois foi coroado como Leão VI. Este, por sua vez ficouviúvo três vezes e morreu com apenas 45 anos de idade. Dos seus filhos, um morreu logoapós o batismo e o outro teve uma séria deficiência por toda a vida. Se esse podia ser o destino de uma família da mais alta nobreza, que vivia protegida nalimpeza, na boa alimentação e no luxo, imagine-se a dificuldade para o restante dapopulação em termos de morbidade, mortalidade, longevidade e deficiências, vivendo emambientes menos saudáveis, alimentando-se mal e abrigando-se mal. - *Os miseráveis no "Reino de Deus"* Mas com certeza uma das mais surpreendentes características da vida de Constantinoplafoi a aplicação prática que sua população deu à caridade cristã, insistente e aguerridamentedefendida pela Igreja. "Os benefícios espirituais da prestação da caridade naturalmente dependiam da existênciade uma classe à qual essa caridade poderia ser dedicada. Os "pobres", portanto, eram umaparte integrante da sociedade" . "Ao pedir esmolas os mendigos gritavam: "O paraíso bate àsua porta" ... e esmolas eram dadas com liberalidade.Mendigar era uma profissão reconhecida, da qual, como de outras profissões, os intrusoseram expulsos. Os pontos mais valiosos eram preservados ciumentamente. Cada átrio deigreja era cercado por mendigos, cuja inoportunidade garantiria um suprimento liberal paraseu pão de cada dia. Mas a caridade organizada transcendia de longe os limites da ajudameramente casual. A cidade era com justiça famosa pelos seus hospitais, seus orfanatos eseus abrigos para idosos e para carentes" ("Cambridge Medieval History", deHussey). Nos trabalhos de organização e de manutenção dessas instituições a família imperial e anobreza mais refinada tomavam parte ativa. Os seus membros do sexo feminino dedicavam-se ativamente à ajuda aos doentes. Algumas mulheres chegaram mesmo a adquirir o hábitode visitar as prisões, que eram os ambientes mais degradantes da miséria humana naesplendorosa capital. E a Igreja era a principal responsável por essas organizações várias, desempenhando umpapel de auxiliadora. Ressalte-se que somas fabulosas, levantadas em banquetes ou por meiode doações e legados, eram continuamente destinadas aos cofres da Igreja para distribuiçãoaos pobres e, segundo os historiadores, essa distribuição era sempre feita com justiça,conhecimento de causa e pontualidade dignos de nota.

- *As organizações assistenciais de Constantinopla* A Igreja e o Estado deram-se as mãos desde a época de Constantino I para prover osserviços assistenciais básicos, muito antes de existir qualquer serviço ou esforço organizado

na Europa ocidental e cristã. Assim é que foram gradativamente estabelecidas entidadesdiversas que acabaram sendo classificadas em nove categorias, a saber: "brephotróphium" - lar para recém-nascidos; "gerontotróphium" - lar ou abrigo para pessoas idosas abandonadas ou sem condiçõesfamiliares de sustento contínuo e seguro; "lobotróphium" - abrigo e internato para pessoas vítimas de limitações físicas crônicas emuito severas; "nosokómeion" - criado para tratamento e abrigo de doentes agudos e crônicos sem possesnem condições para tratamento domiciliar; "orphanotróphium" - abrigo e alimentação para crianças órfãs ou abandonadas pelafamília ; "pandóchium" - abrigo polivalente destinado indiscriminadamente a todos os tipos dedesamparados não enquadrados nas demais organizações; "ptochotróphium" - abrigo e alimentação para mendigos e pessoas pobres e abandonadassem condições de sustentação própria; "typhlokómeion" - abrigo e alimentação para pessoas cegas pobres e desprovidas decondições famíliares para garantir seu sustento; "xenodóchium" - organização destinada - pelo menos no início - a viajantes e peregrinosestrangeiros adoentados ou em sérias dificuldades de abrigo.

A eventual "latinização" das palavras não disfarça de maneira alguma sua origem grega.Os radicais "kómeion" e "dócheion" correspondiam a abrigo, proteção, cuidado, recipiente,enquanto que o radical "trópheion" relacionava-se à idéia de alimentação e de educação. Observe-se que o "Orphanotróphium" de Constantinopla foi tão importante e tãomagnificamente construído e montado que levou o Império a manter o título honorífico de"orphanotróphus" para seu diretor, geralmente outorgado a um sacerdote ou bispo da Igreja.

- *O imperador Justiniano e as pessoas enfermas e deficientes* Em uma de suas muitas leis (Nova Constituição n°. LXXX) o imperador Justiniano (482 a565) tratou dos problemas dos mendigos que não tinham doenças graves ou deficiências. Enessa norma fica muito patente a preocupação da sociedade bizantina em ocupar essaspessoas em algum tipo de trabalho ou atividade. O imperador deu à mais alta autoridadejudicial do Império, o questor, a responsabilidade de não deixar essas pessoas à mercê dasorte e da esmola. "Convém que ele as faça comparecer imediatamente aos diretores de trabalhos públicos,aos chefes das padarias, aos encarregados do correio, aos diretores dos jardins ou das demaisoficinas existentes, nas quais elas possam ao mesmo tempo trabalhar, ser alimentadas etambém passar de uma vida ociosa para uma vida mais útil. Mas se algumas delas nãoquiserem trabalhar nas oficinas para as quais tiverem sido encaminhadas, o questor asexpulsará desta cidade real”. A orientação do imperador Justiniano era para que o questor usasse sempre de indulgênciapara com as pessoas pobres encaminhadas de acordo com a lei; a preocupação expressa eraque a preguiça não levasse as pessoas em dificuldades para atos ilícitos e com isso fossemcondenadas pela justiça civil. Ainda sobre mendigos ou sobre pessoas pobres em dificuldades existia uma distinçãoimportante que levou a sociedade bizantina a manter e mesmo ampliar sua organização desocorro aos necessitados. Afirmou o imperador Justiniano, ao final de sua Nova Constituiçãon°. LXXX: "Não obstante, é nossa vontade que as pessoas de um ou de outro sexo que não

sejam sãs de seus corpos" (ou seja, pessoas portadoras de condições incapacitantes) "ou quesejam gravemente enfermas, não sejam molestadas em nossa cidade; queremos, pelocontrário, que elas sejam atendidas por pessoas piedosas”.

- *O desenvolvimento da medicina e dos hospitais* No ambiente criado em conseqüência de um governo autocrático com fortes pinceladas deteocracia e ampla aceitação, havia muitos contrastes entre ricos e pobres, entre palácios ecasebres paupérrimos em ruas cobertas de imundícies, conforme vimos anteriormente. E,segundo especialistas, tudo, absolutamente tudo, inclusive a miséria, a doença, a mutilação,a cegueira, tudo era considerado como motivo para se pensar no pagamento de pecadoscometidos, no cerceamento dos impulsos carnais, na purificação da alma e no seuaperfeiçoamento. E esse modo de ver o mundo sempre foi considerado como uma positivainfluência do Cristianismo. Não é de estranhar que tenha havido uma forte proliferação de entidades assistenciais ecaritativas de um lado, e certa estagnação na ciência médica, de outro. Houve, entretanto, ocuidado de se estabelecer uma pormenorizada compilação dos conhecimentos já acumuladosde medicina na realidade grega anterior à construção e à consagração de Constantinoplacomo capital do Império Bizantino. Essa mesma realidade, influenciada pelo Cristianismo tão marcante, considerava oenfermo, o acidentado, a vítima da justiça, o portador de uma deficiência congênita ouadquirida, como "santos" em potencial. Para todos os que sofriam, o melhor e mais certoremédio era a oração orientada e dosada por sacerdotes; o melhor hospital que poderia haverdeveria estar funcionando em ambiente da Igreja; o melhor e mais seguro "curativo" era opróprio Jesus Cristo. Do milênio de existência do Império Bizantino não podemos dar relevância especial aquase nada, em termos de medicina, a não ser aos nomes universalmente conhecidos deCosme e Damião, santificados pela Igreja.

- *A mutilação nas leis bizantinas* A uma análise superficial a lei criminal bizantina mostra-nos alguns traços de umapositiva influência cristã, embora haja categóricas afirmações em contrário. Vindos de um sistema de penalização muito severo em que a pena de morte prevaleciapara muitos crimes, os sistemas introduzidos por Justiniano e por Leão III, o Isauriano (680a 741), foram amenizando as penas, graças à influência do Cristianismo. A "Écloga"(Código de Leis) de Leão III restringe a pena de morte a alguns crimes apenas: assassinatos,alta traição, deserção das forças armadas e práticas sexuais não-naturais. Além disso, prevêdiversas penas por mutilação ou por vazamento dos olhos que não existiam no Código deJustiniano, em vigência desde o século V. Muito embora a "Écloga" e as legislaçõesposteriores tenham significado, para aquela época, uma amenização de parte do sistemapenal, o fato concreto é que, com as penas de mutilação e de vazamento dos olhos provocavauma verdadeira e desagradável regressão a épocas anteriores a Constantino I, que proibiamutilar o rosto humano que era "feito à imagem da beleza divina". A suposta amenização não ocorreu em todas as linhas, porém, de cominaçõesestabelecidas no Código de Justiniano em simples multas, verificou-se na "Écloga" um forteendurecimento para a pena máxima. No entanto, a Cristandade do Império Bizantino não questionava nada do que vinha doimperador e para ela, a substituição da pena de morte por mutilações podia até ser justificada

no próprio Evangelho. Era questão de se tomar a palavra de Mateus ao pé da letra: ... "se tuamão ou teu pé te escandalizam, corta-os e atira-os fo-ra" ..."e se teu olho te escandaliza, arranca-o e atira-o fora". Havia também outro fator deextrema importância: ao criminoso, ao pecador, seria dada a oportunidade de arrepender-sede seus pecados e se regenerar na penitência, na dor, na fome, na miséria, muitas vezesconfinado num mosteiro. Ressalte-se, todavia, que o imperador bizantino, representante de Cristo na Terra, em seujuramento de coroação, obrigava-se a ser misericordioso e humano para com seus súditos,evitando a pena capital e a mutilação tanto quanto possível – isso nos interesses da justiça eda propriedade, e em fidelidade à verdade e à retidão. No rolar dos séculos, porém, o que sucedeu nas muitas histórias de mutilações evazamentos de olhos foi que essas punições aconteceram, numa grande variedade de casos,devido a meras vinganças políticas e para afastar sérios pretendentes ao trono. A Igreja colaborava dentro dessa realidade muito concreta com o banimento a um de seusmuitos mosteiros retirados da civilização, demonstrando com isso a sua influência nosistema penal em vigor. Ela tomava em suas mãos tanto a execução de partes das penas,como também a reabilitação de muitos desses criminosos. A profanação de sepulturas, a rapinagem de igrejas, a pederastia, as fraudes defuncionários eram reprimidos pela mutilação.

"Pergunta-se como esse costume atroz, cuja crueldade refinada supõe uma perversão dosenso moral, pôde ser introduzido na sociedade bizantina", comenta Bréhier ao analisar asmutilações. Segundo o famoso historiador, o gosto pela mutilação pode ter sido o resultadodo ambiente que cercava a sociedade local, ao redor do século VII, e a influência daimigração de consideráveis contingentes de turcos, árabes, sírios e outros, dentre os quais osuplício era prática corrente desde muitos séculos (Apud Bréhier).

- *Períodos principais do Direito Penal Bizantino* Para que bem entendamos a questão das penalidades impostas pelas leis imperiais queredundavam na instalação de limitações físicas e sensoriais, é fundamental que distingamospelo menos dois períodos na história desses castigos. O primeiro vai do século V até o século VII, notando-se um esforço para oestabelecimento de alguma humanização do corpo geral da legislação romana pertinente,esforço esse feito principalmente sob Justiniano e expresso em seu Código, aprovado em534. Esse Código, somado à legislação aprovada e codificada anteriormente pelo mesmoimperador, teve o enriquecimento de mais de 150 "Novas Constituições" que foramassinadas entre os anos 534 e 565, formando o famoso "Corpus Juris Civilis" de Justiniano. O segundo período vai do século VII em diante. Nota-se nele, especialmente pelaaprovação da "Écloga" de Leão III, o Isauriano, uma tendência a certa humanização (ou pelomenos amenização) da drasticidade da pena de morte, surgindo em seu lugar maiorincidência de penas de mutilação ou de castigos corporais. Note-se que no estudo das leis todas, tanto de Justiniano e de imperadores que ocuparam otrono depois dele, quanto de Leão III, deve-se ressaltar a relevância da existência de umaverdadeira universidade, criada no ano 425 em Constantinopla, na qual estudava-se maisprofundamente assuntos leigos (não-religiosos), dentre os quais a Filosofia e as Leis.

- *A moderação nas penalidades impostas no tempo de Justiniano*

Inserida numa de suas "Novas Constituições" (a de nº CXXXIV, ou seja, assinada quandoJustiniano estava no final de sua vida) encontramos uma orientação geral do velhoimperador a todos os governadores e autoridades judiciais do Império, na qual fica evidenteuma séria tendência à humanização, com determinações explicitas de moderação naaplicação de penas corporais. Diz o imperador: "Como precisamos proteger a fraquezahumana, diminuimos uma parte das penas corporais e abolimos a amputação de duas mãos,de dois pés e o suplício da separação das juntas, que é ainda mais grave do que a amputaçãodas mãos". "Mas se a espécie de crime comportar a amputação de um membro, limitar-se-á àamputação de uma só mão. Proibimos que seja indicada a amputação de um membro por umsimples furto, ou que o culpado sofra a pena de morte, mas desejamos que ele seja punido deoutra maneira". Ao final dessas considerações e determinações relacionadas à moderação que asautoridades deveriam observar na aplicação de penas corporais ou pena de morte, Justinianoprocura garantir a severidade da pena para aqueles que ameaçavam a estabilidade da coroaimperial, afirmando: "Mas ordenamos que a força das antigas leis seja conservada para osindivíduos condenados por crime de lesa-majestade".

- *As "Novas Constituições" de Leão III: "leis mais cristãs"* As chamadas "Novas Constituições" editadas pelo imperador Leão III, o Isauriano (717 a741), após a publicação da "Écloga", são verdadeiras ordens imperiais. São leis escritas numlinguajar quase coloquial, expressas em todos os seus termos na linguagem própria da época.Trata-se de um total de 113 "Novas Constituições", das quais desejamos aqui fazer menção aalgumas que estabelecem a precisa condenação por certos crimes, incluindo o açoitamento, aamputação do nariz, da língua ou das mãos, o vazamento dos olhos e também a pena do"raspamento" de cabelos e barba, considerada como difamante. Essas Constituições procuravam impedir a criminalidade por meio de cominações severas;buscavam também desencorajar que o povo imitasse os imperadores ou as autoridadesmaiores do Império que, no uso (e no abuso) de seu direito supremo derivado de Deus,mandavam vazar os olhos ou amputar as mãos dos traidores do Divino Império. Procuravamtambém garantir direitos, estabelecer penas corporais ou pecuniárias e regulamentar algunsassuntos relacionados ao clero. Poderá nos parecer irrelevante nessa legislação, por exemplo, a preocupação com os cegospoderem ou não fazer testamento de seus bens, uma vez que não havia provisão alguma quegarantisse direitos básicos a esses mesmos cegos, mas a preocupação da nobreza (das fortese grandes famílias que já mencionamos) era compreensível face à realidade do quecontinuamente sucedia: o problema de muitos dignatários, militares ou nobres, que tiveramseus olhos vazados, seja por crimes de traição (sob a ótica do imperador reinante), seja porfalsas acusações, seja mesmo por pertencerem à família de um indiciado traidor, nãopoderem legar seus bens. Será interessante ressaltarmos que das 113 Novas Constituições de Leão III três nosinteressam diretamente neste trabalho. A respeito delas comentamos a seguir. - *A defesa de um direito dos cegos: fazer testamento* O próprio texto da Nova Constituição n°. LXIX é suficiente para compreendermos atotalidade do problema e a solução encontrada. Vejamos como o imperador considerou aquestão: "Levantam-se muitas vezes dúvidas quanto à questão de se saber como os cegos podemfazer testamento, e essas dúvidas são originárias das leis que decidiram em contrário, e

também dos costumes existentes sobre esse assunto: não é nem inconveniente nem difícilpara mim, esclarecer e decidir sobre o assunto. Há uma lei que proíbe aos cegos de fazer umtestamento secreto e estabelece que tal testamento não terá força a menos que testemunhasconfirmem ter ouvido o testador proferir de viva voz as disposições por ele guardadas; otestemunho por si só não pode fazer fé de sua vontade. Outra lei, ao contrário, permite àsmulheres e às pessoas iletradas fazer testamento na forma mística, e não as sujeita a outrasformalidades, a não ser assiná-los, se souberem escrever, ou se não souberem, a fazê-losassinar por um terceiro. Essas duas leis estão evidentemente em contradição sobre o mesmoobjeto; pois se as mulheres e pessoas desprovidas de toda instrução, que sabem apenas o quedesejam, podem fazer seu testamento na forma mística, por que um cego não o poderia? Masse essas leis estão em oposição entre si, estão ainda mais com os costumes. De fato, oscostumes estabelecem que os testamentos das mulheres, de pessoas iletradas ou de cegos,feitos na forma mística, não podem ter força alguma. Nesse estado de coisas, ordenamos queos testemunhos secretos dos cegos ou de quaisquer outras pessoas tenham um pleno e inteiroefeito e adicionamos a essa disposição que, antes de as testemunhas serem ouvidas, os quelavraram o testamento e que a ele aporão as suas assinaturas, declararão ter escrito o que otestador lhes ditou; e se logo em seguida for reconhecido que cometeram alguma falha, serãodespojados de seus bens se forem ricos, ou então serão açoitados e exilados se forem pobres.Adicionamos mais que, se para confirmação do testamento for necessário recorrer ajuramento, como acontece freqüentemente, os que o lavraram deverão estar concordes comas testemunhas, que jurarão atestar e confirmar a coisa" (Apud Bérenger).

- *Penalidade prevista para o vazamento dos olhos de outrem* A segunda Nova Constituição de Leão III que nos interessa neste trabalho procura coibirfrontalmente os crimes de vazamento dos olhos de alguém. Para tanto o legislador imperialestabeleceu penas severas e bastante desencorajadoras. Essa norma específica está intituladano documento original como "Qual deve ser a pena para quem cega alguémvoluntariamente". Ela analisa a aplicação direta da lei do talião, fazendo menção expressa desseprocedimento. Estuda também o problema que poderia ser criado com o fato de o malfeitorter os dois olhos vazados por crime semelhante. Leão III pondera e decide da seguinteforma: ... "se ele tiver tirado" - extirpado, arrancado ou mesmo vazado são termoscorrespondentes - "os dois olhos, como nesse caso a igualdade da pena não traria nenhumproveito para o que perdeu a visão (pois qual a vantagem que pode achar um cego em umoutro também ser cego?) e que a pena do talião, mesmo que merecida, seria muito cruel parao culpado (pois nada é mais triste do que a cegueira), decidimos que ele não a sofrerá e queserá punido de outra maneira, capaz de garantir alguma compensação à vítima. É assim queconcebemos a lei: qualquer pessoa que tiver vazado os dois olhos de um indivíduo, terá umvazado e, como mereceria perder a mão que cometeu o crime, pagará em seu lugar umaindenização igual à metade de seus bens, que será entregue àquele que teve seus olhosvazados, como um abrandamento de sua miséria. Dessa maneira este será consolado e oculpado será punido, tendo um olho vazado e em seguida perdendo seus bens no lugar de suamão" (Apud Bérenger). Mas o que sucedia se o malfeitor fosse uma pessoa pobre ou sem recursos suficientes?Neste caso, não podendo o criminoso cumprir o estabelecido em termos de compensação,era condenado a experimentar idêntico mal infligido à sua vítima: tinha os olhos vazados.

- *Crime de rapto e sua condenação nos tempos de Leão III* Dentre os diversos crimes citados nessa legislação coberta pelas Novas Constituições deLeão III, o rapto de uma jovem solteira merece nossa atenção especial. Essa NovaConstituição - de n°. XXXV - estava intitulada: "Da pena pronunciada contra o raptor deuma jovem e seus cúmplices". Ela é clara, incisiva e não desperta qualquer dúvida. ... "Se o rapto for cometido sem o uso de armas, então o raptor não será punido com amorte, porque ele não manifesta a intenção de a provocar. Mas terá a mão cortada e aquelesque o ajudaram, ou que tenham tomado qualquer parte em seu crime, serão açoitados,raspados e exilados". A mesma Constituição estabelece que todos os que ajudavam nessetipo de rapto, mas a mão armada, seriam punidos da seguinte maneira: ... "terão o narizdecepado e serão açoitados e raspados". E conforme indicamos acima ser raspadocorrespondia a ter os cabelos e a barba cortados à força, o que era considerado como umcastigo estigmatizador e difamante. Quanto ao autor desse crime de rapto de uma mulher solteira a mão armada, a NovaConstituição n°. XXXV confirmava a pena de morte, já estabelecida séculos antes noCódigo de Justiniano.

- *General Belisário: lenda e realidade de sua carreira* Belisário foi um general bizantino nascido na Trácia aproximadamente em 505, tendofalecido em 565, após ter vivido seus últimos anos cego, pobre e mendigo. Após alguns anos de glórias e vitórias à frente dos exércitos que combatiam os muitosinimigos de Constantinopla, o imperador Justiniano transformou Belisário no primeirogeneral de todo o Império. Seus contínuos sucessos, todavia, acabaram por despertar emJustiniano os sentimentos de ciúme e de desconfiança, apesar dos incontáveis atos defidelidade de seu general maior. No ano 562 Belisário foi envolvido numa conspiração e injustamente deposto de seucargo. Acusado do crime de lesa-majestade, sofreu a pena usual amenizada: perda da visão,somada à perda de seus proventos de todos os seus bens. A lenda mostra-nos Belisário cego por ordem direta de Justiniano, mendigando com oauxílio de um garoto para poder sobreviver. Sua figura magnífica de general adorado pelosseus subalternos e pelo povo em geral, transformado em mendigo, levou alguns pintores acriar obras de arte que ficaram famosas, destacando-se dentre eles Van Dick, SalvatoreRosa, David e Gérard. Levou também o escritor Nepomuceno Lemercier a escrever um romance em versos quefoi musicado por Dominique Pierre Jean Garat, famoso compositor e cantor francês, no finaldo século XVIII. Um dos versos musicados da obra intitulada "Belisário" relata-nos oseguinte: "Seguro o capacete do guerreiro, Terror dos Vândalos e dos Godos. Caminhou, dizem, sem escudo Contra a fatal impostura. Um tirano fez queimar seus olhos Que velavam sobre toda a terra. A noite cobre para sempre os olhos Do triste e pobre Belisário" (Apud "Larousse du XXe.Siècle").

Em algumas culturas européias de hoje o nome Belisário é muito utilizado para fazerreferência simbólica a uma pessoa cega de boa educação e de refinadas maneiras.

- *Notícia sobre uma prótese no século IV* Nos muitos documentos encontrados na pujante nova capital do Império Bizantino, e queescaparam à fúria destruidora dos seus muitos invasores, principalmente dos turcos, foramencontradas algumas referências a próteses. Mencionam essas citações eventuais casos debraços de metal, pernas de madeira e até mesmo casos de nariz ou de orelhas artificiais. George Kredinos, escritor grego do século XI, narra-nos o seguinte caso que nos informada fabricação de uma importante prótese: "Uma pessoa da Macedônia, de nome Basílio, afirmava falsamente que era Constantino,filho de Dukas. Tendo maliciosamente persuadido muita gente a segui-lo, reuniu-a ao seuredor e, viajando a pé, causou distúrbios nas cidades e instou com a população para selevantar contra o imperador de Constantinopla. E, tendo sido aprisionado por um generalchamado Elefantino, e levado ao imperador bizantino, foi condenado a ter um dos seusbraços cortado. Depois de sua libertação da prisão, colocou no lugar do braço cortado umoutro artificial feito de cobre e, fazendo uma enorme espada, perambulou pelo paísludibriando outra vez os cidadãos mais ingênuos" (Apud Pournaropoulos).

- *Abrigos para cegos e outros refúgios para doentes e deficientes* Segundo alguns biógrafos de São Basílio, o Grande, ele patrocinou a criação e inaugurouum abrigo especialmente destinado a cegos em Constantinopla, conhecido pela genéricadesignação de "tuphlokómeion". Outro famoso santo da Igreja no Império Bizantino foi SãoLineu que chegou a organizar e manter outros abrigos para cegos na cidade de Syr, na Síriaatual. Esses abrigos eram compostos de pequenas cabanas onde os internados viviam por suaconta e graças à caridade das pessoas que garantiam seu sustento, todas elas ligadas a ricasfamílias da região. Essa experiência foi levada a efeito no século V. No mesmo século, entre os anos 400 e 403, São João Crisóstomo fez construir algunsabrigos para doentes crônicos e pessoas que apresentavam condições incapacitantes deseriedade, impeditivas de atividades rentáveis. Usou para tanto as esmolas que coletava e osexcedentes que juntava de seus proventos como arcebispo de Constantinopla. No final do século IV, bem nos primórdios da vida monástica que foi muito pujante noImpério Bizantino, o cuidado dos pobres em geral e das pessoas deficientes no meio delas,segundo nos relata São João Crisóstomo, passou a ser uma preocupação básica e continuados mosteiros. Afirma esse famoso santo da Igreja que "atendem os mendigos e os aleijadosque vêm a eles às refeições e para abrigo"... "um dos irmãos cuida das feridas de ummutilado, outro cuida de um homem cego, enquanto que um terceiro apóia alguém queperdeu uma perna" (Apud French).

- *Assistência a soldados a partir do século VI* O Império Bizantino, sempre bastante criativo, mantinha atendimento separado parasoldados feridos ou deficientes, quando eram mutilados em atividades guerreiras, antes doinício da Idade Média no mundo europeu ocidental. Em um trabalho escrito pelo imperadorMauricio Flávio Tibério (539 a 602) e intitulado "Strategikón", encontraremos esta frase:"Cuidados especiais devem ser prestados para proteger os feridos após a guerra" (ApudPournaropoulos). No mesmo trabalho consta uma referência quanto à idade de incorporaçãoàs forças armadas, indicando que todos os súditos abaixo de 40 anos de idade eramobrigados ao serviço militar, dando-nos assim uma idéia da eventual incidência de lesõesgraves por ferimentos inclusive em homens com família formada e quase no final da vida.Existem outras referências também quanto ao assunto, nesse mesmo trabalho, e uma delas

conta-nos em poucas palavras e sem maiores comentários - como se estivesse falando deassunto sobejamente conhecido - o que sucedia com os feridos em campos de batalha.Garantiam os exércitos bizantinos um sistema de recolhimento desses feridos e de seuatendimento na retaguarda, salvando-os de morrer devido a hemorragias, pancadas,pisaduras, queimaduras e outros traumatismos. Afirma o imperador Mauricio o seguinte: "Durante as batalhas um corpo de auxiliares volantes" - citados como "ambulanciers" naversão original francesa - "a cavalo, os "deputatoi", estava encarregado de recolher osferidos e de os transportar à retaguarda para serem tratados. De suas selas pendiam estribosduplos que lhes permitiam erguer os feridos e os fazer montar. Recebiam eles um"nomisma" por guerreiro salvo" ("Les Institutions de l'Empire Byzantin", deBrehier) . Uma referência a benefícios estabelecidos para soldados que voltavam com sériasdeficiências físicas ou doenças graves dos campos de batalha também é mencionada peloautor na mesma obra: ... "sob Constantino VII, o Porfirogeneta, os detentores de bensmilitares que ficavam inválidos continuavam a gozar de suas rendas a título de pensão".

- *Os primeiros hospitais da Terra Santa e de Bagdá* Carlos Magno (742 a 814), rei dos Francos e chamado de "Imperador do Ocidente", emcontraposição aos imperadores bizantinos que eram por vezes conhecidos como imperadoresdo oriente, é uma das mais impressionantes figuras da História da Idade Média. Sua vidatoda esteve repleta de lances importantes. Uma de suas características principais era suahabilidade de administrador; dizem que em vez de criar organizações novas, reformava emelhorava as já existentes, levando-as a funcionar bem. Aliado ao famoso califa Haroun-alRaschid com o fito de intimidar o Império Bizantino, foi o co-patrocinador da construção doprimeiro hospital ("nosokómeion") separado dos abrigos para peregrinos e estrangeiros("xenodóchium") construído na Terra Santa. Segundo seus biógrafos, Carlos Magno protegiatambém os cegos, tendo estabelecido severas penas para aqueles que os maltratassem. Foi no século X que surgiu na cidade de Bagdá um segundo hospital do mundo islâmico,sob o governo do califa Al-Muktadir. Um terceiro foi construído no mesmo século (ano970), também em Bagdá, contando com 25 médicos. Caracterizava-se este último hospitalcomo entidade de tratamento, de observação, de ensino e de treinamento dos médicos. Esses hospitais e todos os demais 34 que foram organizados até o final do século Xrecebiam não apenas doentes mas também portadores de deficiências sérias e limitadoras.

- *Castigos bárbaros levam a deficiências no Império Bizantino* Conforme tivemos oportunidade de verificar anteriormente, muito cruéis para os nossosdias eram as penalidades aplicadas por alguns imperadores ou potentados bizantinos. Noentanto, ressalte-se que elas estavam perfeitamente bem estabelecidas em lei e o mundooriental vivia séculos que demandavam fortes providências para cercear o crime, o roubo, oestupro, a traição e a deserção das forças armadas. Alguns exemplos serão apresentadosdeste ponto em diante quanto à aplicação de diversas dessas penas, embora estejamos todosmuito certos de que inúmeros outros casos poderão ser coletados pelos estudiosos doassunto. Na obra intitulada "Vie et Mort de Byzance", de Bréhier, há uma introdução escrita poruma das maiores autoridades no assunto, que foi Henri Berr. Esse famoso historiador chama-nos a atenção para um fato que caracterizou o Império Bizantino, ou seja, as mutilações:

"Temos encontrado sem cessar nestas páginas, a menção não apenas de assassinatos, masde torturas as mais diversas, de "suplícios refinados": arranca-se os olhos, a língua,queima-se com ferro em brasa; mas sobretudo vaza-se os olhos. Vazar os olhos é prática corrente". De fato, tao corrente é essa prática que, só de acontecimentos importantes e muitonotórios - e tão notórios e importantes que passaram para a História - poderíamos citar maisde trinta. Todos eles - vazamento dos olhos de um modo todo especial, mas incluindomutilações como penas por crimes e traições, ou mesmo para incapacitar certos pretendentesao trono ou a postos importantes - foram praticados contra membros da nobreza mais alta doImpério, contra príncipes herdeiros, contra imperadores aprisionados ou destronados,durante toda a duração do Império Bizantino. Só no século VIII, por exemplo, encontramos diversos fatos que ocorreram após 741, anoem que Constantino V (718 a 775) procurava combater com muita força os povos árabes nasterras da Ásia, tendo para tanto se ausentado longamente de Constantinopla. Durante seuafastamento da corte, porém, seu cunhado Artavasde conspirou contra ele e chegou mesmo aser proclamado imperador por suas tropas. Entrou vitorioso e sem maiores resistências nacapital do Império e foi coroado e abençoado pelo patriarca Anastácio. Logo em seguida,para garantir sua sucessão, associou seu filho mais velho ao trono. No entanto, um ano e pouco após esses eventos Constantino V retornou e conseguiuretomar o trono com as forças armadas ainda à sua disposição. Logo em seguida castigouseveramente a traição do cunhado, mandando vazar seus olhos e de seus pretensos herdeiros,ou seja, seus filhos. Fez mais o imperador: mandou açoitar publicamente a maior autoridadeda Igreja que não lhe tinha sido fiel, o patriarca Anastácio. Já reafirmado no poder, encetou vários anos após uma violenta e pertinaz campanhacontra o culto das imagens na Igreja - parte do chamado movimento iconoclasta, ou seja,movimento contrário à adoração de imagens no culto cristão - e, demonstrando um quaseque incontrolável ódio contra os monges, mandou exilar, aprisionar e mesmo mutilar umimenso número deles. Nas províncias os governadores e autoridades da justiça procuravamseguir o exemplo do imperador. O governador da Trácia, por exemplo, fez reunir à forçatodos os monges e religiosas daquelas terras numa praça de Éfeso, obrigando-os a fazer alimesmo uma opção: deviam escolher o casamento ou perder a visão (Apud Bréhier).

- *A imperatriz Irene e sua luta para conquista do trono* Ainda no século VIII, durante um curto espaço de vinte anos, a História Bizantina relata-nos algumas amputações de língua e vazamento de olhos na mais alta nobreza deConstantinopla durante a vida da famosa imperatriz Irene, ou seja, entre os anos 780 e 800. Para nós, em pleno século XX, trata-se de uma história no minimo bizarra. E poderá seriniciada com o jovem príncipe herdeiro do trono, Leão, filho de Constantino V, com 25 anosde idade, casando-se numa faustosa cerimônia realizada na igreja de Santa Sofia, com umabelíssima jovem ateniense de 18 anos de idade, de nome Irene, que era plebéia e órfã de paie mãe. Explica-se: a escolha de algumas imperatrizes ou de esposas de governadores e de algunsnobres dava-se em verdadeiros concursos de beleza e de talento, segundo algunshistoriadores. Irene fora escolhida exatamente assim, pelo imperador Constantino V, cincoanos antes do velho imperador falecer. Irene conquistou com extrema facilidade não só oamor e a confiança do marido, como também do sogro, que já colocava toda a sua esperançade sucessão adequada no filho herdeiro do trono e em sua jovem, prendada, inteligente ebelíssima esposa.

- *Os primeiros castigos contra conspiradores dentro da família* A morte de Constantino V levou Leão IV ao trono. Ja estava casado com Irene e seu filhoConstantino já havia nascido, mas o imperador estava doente e era muito inexpressivo emcontraposição a uma imperatriz saudável e muito vivaz. Leão IV faleceu logo, deixandoIrene como guardiã de seu herdeiro ao trono, então com 10 anos de idade. Esse acerto prévioesperado que tinha o intuito de garantir a coroa para o filho, não agradou aos cinco irmãosde Leão IV. Em circunstâncias normais poderiam ter reconhecido o direito do sobrinho, masjamais poderiam permitir que a plebéia Irene assumisse o posto de imperatriz. Os títulos de"césar" e de "nobilíssimos" que haviam recebido do falecido pai não lhes interessavam mais.Queriam o poder, a glória e as riquezas sem fim. Foi face a essa situação que os cinco começaram uma trágica seqüência de conspirações,antes e depois da morte de Leão IV. A primeira tentativa de golpe, abortada, foi perdoadapelo imperador enfermo, sem maiores castigos. A segunda, entretanto, que aconteceu algunsanos após, tinha encontrado Irene com as rédeas do poder nas mãos na qualidade de regente.A penalidade imposta por ela foi suave, mas contundente: os cinco irmãos foram forçados aassumir o estado sacerdotal. E para que toda a nobreza e todo o povo soubessem da realidadedo castigo, "convidou-os" a oficiar os solenes ritos do Natal na igreja de Santa Sofia,distribuindo inclusive a comunhão aos fiéis. O estado sacerdotal forçava as pessoas amanterem uma atuação a tempo integral e proibia o envolvimento em assuntos alheiosàqueles próprios da função, o que presumivelmente deixaria Irene e o filho Constantinosossegados. Poucos anos depois, entretanto, ocorreu nova e séria conspiração dos cinco irmãos. Ireneperdeu a paciência e mesmo na qualidade de regente considerou-se atingida por crime delesa-majestade. Mas aplicou penas "suavizadas", face à perspectiva da pena de morte:mandou amputar a língua dos quatro "nobilíssimos" e vazar os olhos do "césar" Nicéforo. - *Punições severas continuam na corte bizantina* Com o evidente intuito de continuar com a totalidade do poder em suas mãos, mesmoapós a subida do filho ao trono como Constantino VI, Irene procurou sistematicamenteabafar qualquer iniciativa dele, provocando com sutileza e malícia o fracasso de seusprojetos. Seu plano, na verdade, começara muito antes quando negligenciara com sagacidadee muita perspicácia sua preparação para o trono. No entanto, a situação vivida pelo Império levou o general Mouselen a destronar aimperatriz, aprisionando-a e garantindo a plena autoridade de Constantino VI. Muito embora as forças armadas tivessem a intenção de afastar a má influência da mãesobre Constantino VI, a fim de que ele governasse em toda a sua plenitude, não contaramcom o afeto natural, além de uma certa dependência do jovem imperador para com sua mãe,o que se tornava cada vez mais evidente conforme a visitava na prisão. A conseqüência nãodemorou quase nada: Irene foi libertada por Constantino VI que, arrependido, restaurou-a aopoder com o título de imperatriz e com poderes para governar ao seu lado. Ano após ano Constantino provou ser um imperador fraco e Irene foi crescendo em suainfluência, seu poder e mesmo em sua aceitabilidade antes muito questionada na corte. E foipor sua influência (e talvez exigência) direta que o general Mouselen, comandante da revoltaque a levara à prisão vexatória, foi preso e teve seus olhos vazados, sem maioresconsiderações. Para a nobreza e para o povo esse ato demonstrou uma impressionante ingratidão doimperador; demonstrou também a evidente força de Irene que, com esse ato, vingava-se davergonha que lhe fora imposta.

- *A selvageria de uma imperatriz na defesa de seu trono* Com o ambiente propício criado pela dualidade do poder de comando, as intrigas foramcrescendo no palácio imperial, agora infestado por eunucos e por religiosos venais. No ano797 Constantino percebeu que sua sustentação era precária e que sua vida corria sério perigodentro da corte, tal o nível das intrigas e das conseqüentes e esperadas suspeitas.Sorrateiramente fugiu do palácio, mas foi preso em curto espaço de tempo e levado de volta;foi trancado, por ordem da mãe, no mesmo quarto onde nascera 26 anos antes. E lá mesmo,no meio da noite, teve seus olhos selvagemente vazados por ordem de Irene. Sobreviveu àviolência do ataque que o inutilizou para o trono, vivendo ainda muitos anosverdadeiramente oprimido pela corte e esquecido pelo seu povo (Apud Gibbon). Anos após, a quarta conspiração dos infelizes irmãos de Leão IV aconteceu e Irene,plenipotenciária e despótica, não teve dúvidas em aplicar a pena que considerou comodefinitiva para eliminar de vez suas pretensões ao trono: mandou vazar os olhos dos"nobilíssimos" já de língua anteriormente amputada e mandou amputar a língua do "césar"Nicéforo, já cego; logo após exilou os cinco para longe. Irene foi destronada e exilada para a ilha de Lesbos alguns anos após; ali morreutrabalhando com suas próprias mãos e muito pobre. Segundo a Encyclopaedia Britannica,devido à sua intransigente luta pela restauração do culto das imagens nas igrejas do ImpérioBizantino, a Igreja Ortodoxa Grega elevou-a à categoria dos santos.

- *Mutilação documentada em pintura do século IX* Se o leitor tiver oportunidade de visitar o Museu Nacional de Espanha, em Madri, poderáadmirar muitas miniaturas que foram pintadas com esmero por monges da Sicília, diversasdas quais registram fatos ligados à história de Basílio I, imperador bizantino que reinou entreos anos 867 e 886. Nessa verdadeira história em quadrinhos nota-se momentos muitoimportantes da vida desse surpreendente imperador, sendo que dois deles nos interessamsobremaneira neste estudo sobre deficiências e pessoas deficientes. O primeiro retrata uma encarniçada batalha, aparecendo ao centro o general bizantinoProcópio mortalmente ferido por um magote de soldados inimigos, enquanto seuscomandados, de costas para ele, batem em retirada. O episódio retrata uma derrota bizantinacausada por um desentendimento entre o citado general e um outro, também de confiança deBasílio, de nome Leão. E o desentendimento havia ocorrido pouco antes da batalha, levandoLeão a não colaborar com Procópio na hora necessária. Tendo tomado conhecimento do fato o imperador mandou prender o general Leão e levá-lo à sua presença. E é exatamente isso que o segundo quadro nos mostra em seu lado direito,aparecendo Basílio I de dedo em riste e o ar preocupado de Leão. Mas há algo mais queimpressiona neste quadro de reduzidas proporções: são as duas cenas pintadas em seu ladoesquerdo. Trata-se da execução das penas impostas pelo imperador, após Leão ter sidodestituído de seu alto posto de general. Vemos o infeliz condenado com os braços amarradosàs costas e deitado no chão, com o carrasco imobilizando-o com suas pernas e cegando-ocom um ferro em brasa seguro firmemente com ambas as mãos. E mais à esquerda vemosainda o mesmo prisioneiro com o braço estendido sobre um pedaço de madeira enquanto ocarrasco está com um machado a meio caminho para decepar-lhe a mão. Contam os historiadores que esse comandante deposto não morreu devido a esses castigose viveu até idade avançada, mas exilado e na mais negra miséria.

- *Barbáries que levaram a deficiências físicas*

Notícias de barbáries sem precedentes - ou pelo menos conhecidas em países cristãos -são relatadas no século XI. E a mais chocante de todas relaciona-se a um imperador cristãoconsiderado como um dinâmico líder bizantino, no final do primeiro milênio da Era Cristã.Trata-se de Basílio II, que recebeu apelido histórico e muito sugestivo: "Bulgaroctonus", ouseja, matador de búlgaros. Nascera ele em 958, tendo falecido em 1025. Reinou entre os anos 976 e o ano de suamorte. Dentre suas campanhas militares mais significativas para a História Bizantina,destaca-se a que empreendeu em 1014 contra a Bulgária. Basílio II subjugou-acompletamente. No entanto, o golpe de misericórdia que aniquilou a resistência dos patriotas e dossoldados búlgaros e que terminou a guerra, levando os inimigos de Constantinopla àrendição total daquele país (qual bomba atômica daqueles tempos) foi uma ação decrueldade fora do usual. E ao citar o fato o historiador Gibbon nos diz: "Sua crueldade infligiu uma vingança fria e estranha a 15.000 cativos que haviam sidoculpados apenas de defender seu país. Foram privados de sua visão, mas para um em cadacem, um só olho foi deixado, para que pudesse conduzir a sua centúria cega à presença deseu rei. Dizem que seu rei faleceu de pesar e de horror; a nação toda ficou traumatizada comesse terrível exemplo" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de l'EmpireRomain", de Gibbon). Ao escrever sobre esse mesmo episódio vergonhoso da vida de Basílio II, o historiadoringlês George Finlay apresenta alguns pormenores mais. Conta-nos ele que "no dia 29 dejulho de 1014 o imperador bizantino e seus generais estavam analisando a situação dacampanha contra a Bulgária e considerando tudo na mais perfeita ordem para a completarendição da Esclavônia" (parte da Bulgária). "Seu inimigo principal e mais persistente, queera o rei Samuel, opôs-se ao seu poderoso exército num desfiladeiro, à frente deconsiderável força militar". Muito irritado, Basílio II fez seus homens parar e deu ordens para que o governador dePhilipópolis, Nicéforo Xiphias, com um bem aparelhado contingente de soldados, desse avolta numa das montanhas para assim atingir o exército búlgaro por um dos flancos. E numaação conjugada, os bizantinos venceram as forças búlgaras; mas não tiveram a oportunidadede prender Samuel que escapou ileso. Finlay afirma neste ponto o seguinte: "O ato de vingança de Basílio II foi terrível. Sua desumanidade amedrontadora forçou aHistória a despresar sua conduta e a quase enterrar no esquecimento os relatos de suasconquistas militares. Nesta ocasião, ordenou que os olhos de todos os seus prisioneiros" -15.000 segundo o próprio Finlay - "fossem arrancados" ("taken out", na versão inglesa)"deixando um só olho para o lider de cada cem, e nesta condição enviou os desgraçadoscativos para procurar seu rei ou para perecer no meio da jornada. Quando chegaram aAchrida, um boato de que os prisioneiros haviam sido libertados levou Samuel a sair ao seuencontro. Quando tomou conhecimento da extensão da tragédia toda, caiu desmaiado aochão, tomado de excessiva ira e dor, e faleceu dois dias depois" ("History of the ByzantineEmpire from DCCXVI to MLVII", de Finlay).

- *Constantino VIII: "A violência dos fracos e dos poltrões"* A morte de Basílio II, que não tinha filhos, levou ao trono o seu irmão que era "co-imperador" desde seu nascimento, Constantino VIII (960 a 1028). Era um homem frívolo aoextremo, muito forte e de crueldade renomada. Segundo Bréhier, tinha "a violência dosfracos e dos poltrões".

Acolhia com facilidade qualquer tipo de calúnia, sem o mínimo discernimento e "puniafaltas veniais com a ablação dos olhos" ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier) . Entre as mais lamentáveis vítimas desse imperador os historiadores destacam o nobreConstantino Boutzès, cujo pai havia sido detentor do mais elevado dos títulos existentes forada família imperial: o de "magister". O imperador, que o odiava de longa data porque elehavia por diversas vezes denunciado seus desmandos e atos indignos a Basílio II, apressou-se em mandar vasar seus olhos. Embora não fosse considerado à época um tirano cruel, ele fazia vazar os olhos de pessoasimportantes das quais suspeitava, deixando-as logo após em liberdade. Sobre Constantino VIII e as penas de vazamento de olhos por ele aplicadas, Zonaras,cronista bizantino do século XII, afirma: "Ele tinha verdadeira predileção por esse tipo de suplício que imobiliza a vítima e a tornaincapacitada, sem a fazer perecer. Ele utilizou continuamente durante seu reinado esseterrível suplício para reduzir a nada uma multidão de homens eminentes. Dava-se a isso, emConstantinopla, um nome repleto de dolorosa ironia: a divina clemência do imperador"(Apud Schlumberger). Diversos são os historiadores que relatam fatos indicativos do uso e do abuso do poder porparte de Constantino VIII. O caso mais flagrante e que provocou uma mudança de rumo naHistória do Império Romano do Leste, relacionou-se à sua sucessão. Vejamos o que aconteceu: Constantino VIII tinha três filhas e nenhum herdeiro do sexomasculino; a mais velha das princesas ingressara num convento e as duas outras - Teodora eZoé já com seus cinqüenta anos de idade, não haviam casado. Em 1028, nos primeiros diasde novembro, já em seu leito de morte após três anos de lamentável reinado, resolveu casarurgentemente pelo menos uma das filhas, podendo dessa forma passar seguramente o trono aela e a seu príncipe consorte. Para assegurar um casamento condigno, convocou ao palácio o candidato mais indicadopelos eunucos e por alguns nobres de seu círculo mais próximo: Romano Argiro. Colocadoaos pés do leito do imperador moribundo, tendo ao lado sua esposa, foi "intimado a sedivorciar dela e a casar-se com uma das princesas, ou teria os olhos vazados. Tendo Teodorase recusado ao casamento, Romano Argiro casou-se com Zoe no dia 8 de novembro, trêsdias apenas antes da morte de Constantino VIII. Muito embora os dois cônjuges fossemparentes, o patriarca de Constantinopla, Alexius, relevou a dificuldade no interesse doEstado" ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier). Romano III, Argiro, foi o primeiro dos três maridos de Zoé. - *Miguel V: imperador bizantino por apenas 132 dias* A imperatriz Zoé é lembrada na história bizantina tanto por sua vaidade quanto por suasaventuras amorosas. Mas ela é também lembrada pelas diversas tragédias acontecidasdurante seus 20 anos de imperatriz, tragédias que aconteceram devido aos seus casamentos. Romano Argiro, seu primeiro marido, por exemplo, que passou para a História como umimperador muito voltado aos interesses do Império, esquecendo as atenções que poderia darà sua imperatriz que ainda era uma mulher bonita, bem conservada e saudável, teve suamorte por ela encomendada no ano de 1034, depois de ocupar o trono por seis anos. Omotivo de Zoé: estava profundamente apaixonada por um novo amante seu e queriatransformá-lo em imperador. Morto Romano, a imperatriz casou-se imediatamente, subindoao trono Miguel IV. No entanto, o que logo a imperatriz descobriu foi que seu amado eradoente e sofria de ataques epiléticos cada vez mais constantes. Tanto isso é real que logo sedesinteressou da imperatriz e retirou-se a um mosteiro longínquo. Antes disso, porém, havia

convencido Zoé a adotar um sobrinho seu como herdeiro do trono, o que a imperatriz fezcom poucas hesitações face à paixão que a consumia. Em fins de 1041 o imperador foi substituído pelo herdeiro que assumiu o cargo com onome de Miguel V. Para este jovem imperador leviano, hipócrita, bajulador e sem caráter,que reinou por pouco mais de 4 meses, a glória terminou numa negra tragédia pessoal. Miguel V irradiava uma antipatia tão forte ao seu redor que logo se tornou intolerável paraa imperatriz e para a corte toda. Percebendo o perigo que corria, Miguel procurou bajular eagradar em público a imperatriz. Em tudo Miguel V procedia de acordo com orientaçõesrecebidas de um tio seu, Constantino, que recebera o título de "nobilíssimo". No dia 18 de abril de 1042, entretanto, as intenções de Miguel V e de seu tio confidentevieram à tona: Zoé foi presa e internada num convento. Antes, porém, foi vítima de supremoultraje, pois teve seus vistosos e bem cuidados cabelos loiros cortados por ordem doimperador. No dia seguinte a esses acontecimentos a revolta popular e das forças armadas estavamontada e o palácio completamente cercado. Teodora, irmã da imperatriz destronada, foitrazida às pressas de volta a Constantinopla e coroada como "basilissa" na igreja de SantaSofia. No dia 21 de abril Miguel V estava deposto. Mas sua história não termina aí, pois ele e Constantino conseguiram fugir e procurar asegurança de um mosteiro. Lá foram localizados. "Miguel e Constantino fugiram por marpara o mosteiro de Stoudios onde, por ordem de Teodora, vazaram seus olhos e internaram-nos cada um num mosteiro diferente ("Vie et Mort de Byzance", de Bréhier) . Em julho de 1042 Zoé casava-se com Constantino Monômaco.

- *Constantino IX, Monômaco: limitações físicas muito sérias* Levado ao trono bizantino graças à sua boa estrela, Constantino Monômaco (980 a 1054)iniciou a parte mais conhecida de sua vida após o casamento com Zoé, ele com 62 e ela com64 anos de idade. Transformou-se dessa forma em seu terceiro marido e príncipe consorte,com o titulo de Constantino IX. Constantino era um homem especial, segundo os historiadores. Ele é assim descrito logoao início de seu governo: "Seu rosto era encantador: tinha a tez clara, traços finos, umsorriso delicado, uma irradiação de graça espalhava-se sobre toda a sua figura.Admiravelmente bem proporcionado, tinha um talhe elegante e bem dosado, mãos finas ebonitas" ("Choses et Gens de Byzance", de Diehl). Estamos, no entanto, falando de um imperador que viveu muito intensamente umaseriíssima deficiência física, sofrendo muito com os problemas decorrentes de um mal queos historiadores identificaram como gota, mas que poderá ter sido artrite reumatóide ouartrite deformante. Para que tenhamos uma idéia viva das limitações físicas que atingiram o imperadorbizantino é importante que analisemos os escritos de um contemporâneo seu: MiguelPsellos, autor de 125 trabalhos escritos, professor de filosofia, escritor renomado eSecretário de Estado de Constantino IX. Em sua notável obra "Chronographie" ele nos refere, na línguagem própria da época ecom os limitados conhecimentos de medicina de então, o seguinte: "Os elementos essenciaisdesagregaram-se e embaralharam-se e, tanto nos pés e no âmago das juntas, quanto nasmãos, afluíam para dali inundar os músculos e os ossos da própria região lombar"... O mal não atingiu de imediato o corpo todo. Seus pés foram os atingidos em primeirolugar, impedindo-o imediatamente de andar. Movimentava-se apenas com a ajuda dosoutros, sempre carregado de um lado para o outro, no palácio, como um fardo. Psellos entra

em pormenores preciosos quanto à vida diária do imperador e sua deficiência física tão séria,pois privava muito com ele. "...o fluxo de imediato atingiu suas mãos e depois seus ombros, e acabou atingindo ocorpo todo. A partir daí, todo membro inundado por esse fluxo terrível perdia sua energia e,com as fibras e ligamentos embaralhados, os elementos da harmonia deslocaram-se,resultando em desequilíbrio e enfraquecimento. E eu vi seus dedos, tão bem feitos, negar suaprópria forma e, retorcidos e desalinhados, tornar-se incapazes de segurar não importa o que;seus pés ficaram totalmente inchados e dobrados sobre si mesmos; seus joelhos, tambéminchados, formavam uma saliência como um cotovelo, a tal ponto que não eram capazes deassegurar sua marcha; e, impossibilitado de manter-se em pé por longo tempo, passava amaior parte do tempo no leito e quando desejava dar audiências, fazia-se preparar e arrumarpara tal fim" ("Chronographie", de Psellos). No entanto, o povo tinha o direito e ansiava mesmo pelas cerimônias e procissõesimperiais, tão repletas de cores e de fausto. Constantino reconhecia isso e participava, comoera seu dever; mas seu sofrimento aumentava muito nessas ocasiões.Algumas providênciaseram tomadas para reduzir a um mínimo as dores do imperador. "Uma certa arte, a dos cavaleiros, o auxiliava e mantinha sobre a sela; depois, uma vez acavalo, respirava com dificuldade e as rédeas eram supérfluas; levado por sua montaria,escudeiros vigorosos e de boa estatura sustentavam-no de ambos os lados e assim, apoiando-o daqui e dali, seguravam-no como um fardo e transportavam-no para onde deveria serlevado. Mas ele, mesmo no meio de tantos males, não deixava delado suas características básicas; muito pelo contrário, ele compunha com elegância suaaparência; depois movia-se e mudava de lugar sozinho, ao ponto de aqueles que o viam nãoficarem muito seguros de que vivia entravado pelas dores e minado pela doença"(Chronographie", de Psellos) . Que outras providências eram tomadas nessas procissões solenes para reduzir a ummínimo suas dores e dificuldades? Cobriam todo o trajeto com tapetes a fim de evitar queseu cavalo escorregasse nas lajotas das avenidas entre o palácio imperial e a basílica deSanta Sofia. Em sua vida de todo o dia e dentro do palácio, para se movimentar de ambientepara ambiente ele era carregado por camareiros bastante fortes sem maiores dificuldades, amenos que houvesse a incidência de um forte ciclo de dores. Para repousar à noite com ummínimo de desconforto, a dificuldade crescia, pois qualquer posição lhe era incomoda ediante disso seus camareiros ajudavam-no a procurar posições, viravam-no com cuidado noleito e com isso conseguiam acertar almofadas e adaptações não especificadas mas citadasna obra de Psellos, para tornar o sono possível. O grande cronista bizantino não faz qualquer comentário quanto à intervenção de médicosou ao uso de medicamentos, muito embora seja certo que tudo era feito para diminuir asdificuldades do imperador. Com o passar dos anos Constantino IX sentia dores até na línguaao falar, sendo-lhe um suplício mudar de lugar. Assim, ele acabou paralisado num lugar sópraticamente. Psellos informa também que Constantino, apesar da verdadeira batalha com dores eproblemas delas decorrentes, jamais deixou escapar uma palavra contra Deus. E se alguémvinha se queixar dos próprios sofrimentos, ele ficava aborrecido e mandava a pessoa seretirar, às vezes até usando de palavras rudes. No mais recôndito de seu ser Constantino IX aceitava suas dores e a limitação física comouma punição pelos seus pecados passados e como freio de sua natureza. "Como meusinstintos não cedem à razão, capitulam diante dos sofrimentos do corpo; meu corpo sofre,

mas os impulsos desordenados de minha alma são assim controlados", afirmava ele (ApudPsellos).

- *Romano IV, Diógenes: presa de um soldado com deficiências* Este imperador bizantino permaneceu na liderança do Império de 1067 até 1071. Logoque se casou com a imperatriz viúva, Eudóxia, no ano de 1067 e mal investido da autoridadee da dignidade de imperador, Romano, que era um general muito competente, partiu nocomando de um grande exército para combater sarracenos eturcos Seljuk, em três diferentes campanhas. Na última delas, levou suas tropas contra osultão turco Alp Arslan, com ele defrontando-se na grande batalha de Mantzikert. Muito embora tenha lutado com extrema valentia e competência, Romano IV foi feitoprisioneiro e levado à presença de Alp Arslan, com o qual acabou assinando um tratado depaz que os bizantinos consideraram vergonhoso. Nesse evento, todavia, queremos chamar a atenção para uma pequena informação dohistoriador Gibbon sobre as circunstâncias de seu aprisionamento. Afirma ele o seguinte: "Enquanto a esperança sobrevivia, Romano tentava reagrupar e salvar o restante de seuexército. Quando o centro, a estação imperial, ficou sem proteção de todos os lados ecercado pelos turcos vitoriosos, ele, ainda com desesperada coragem, manteve a luta até ofinal do dia, à testa dos bravos homens que haviam aderido ao seu estandarte. Eles caíram aoseu redor; seu cavalo foi morto; o imperador foi ferido. Apesar disso ele se manteve só eintrépido até que foi dominado e imobilizado pela força das multidões. A glória por essailustre presa foi disputada por um escravo e por um soldado: um escravo que o havia vistono trono de Constantinopla e um soldado cuja extrema deformidade havia sido relevada faceà necessidade de serviços de sinalização" ("Histoire de la Décadence et de la Chute deL'Empire Romain", de Gibbon). Como podemos muito bem notar por essa informação, às vezes pessoas deficientes eramconsideradas aproveitáveis nos exércitos em funções que pouco ou nada demandavamquanto ao uso de armas. E no caso do aprisionamento de Romano IV, esse soldado comsérias deformidades físicas teve um destacado papel a fim de possibilitar que seu importanteprisioneiro chegasse ao dia seguinte com vida. Assinale-se que havia prêmios altamentecompensadores por prisioneiros resgatáveis - e um imperador era um caso altamenteexcepcional que levava não só a resgates a peso de ouro, como a tratados diversos. O própriohistoriador Gibbon afirma que, já despojado de suas armas, das suas jóias e do seu manto depúrpura, Romano IV passou uma noite muito perigosa para sua vida no devastado campo debatalha, cercado por uma multidão quase sem controle que saqueava tudo o que podia. Voltando a Constantinopla, Romano IV foi destronado, preso e teve seus olhos vazados,por ordem do césar João Dukas; foi internado num mosteiro, em Proti, no mar de Mármara,ao sul de Constantinopla.

- *Enrico Dandolo: "doge" veneziano cego* Enrico nasceu perto de Veneza no ano de 1105 e faleceu com exatamente 100 anos deidade na grande capital do mundo oriental daquele século: Constantinopla. Sempre muitohábil e corajoso em suas atividades comerciais e guerreiras, Dandolo foi um ótimo político eum hábil negociador, excelente orador e dono de um soberbo nome de família romana dasmais antigas tradições que o tornaram muito influente na República de Veneza. Foram essas condições básicas e as circunstâncias relacionadas a negócios de Estado queo levaram a Constantinopla, em missão oficial e na qualidade de enviado das autoridades dapoderosa República de Veneza. O objetivo era resolver uma pendência muito séria no ano de

1171 quando Dandolo já estava com 66 anos de idade: Manuel Comnenus (1143 a 1180),imperador bizantino, havia aprisionado navios e tripulações de Veneza e recusava-se adevolvê-los, desafiando acintosamente os direitos reclamados e mesmo o cumprimento dostratados assinados entre o Império Bizantino e a República Veneziana, que era muitoimportante àquela época. Dandolo foi incisivo na corte bizantina e expressou com extrema clareza e em termosconvincentes a indignação sentida pelos venezianos face às atitudes do imperador quanto aosnavios e suas tripulações. O que o velho embaixador certamente não havia imaginado era o tipo de reação doimperador bizantino que, enfurecido ao extremo e ofendido com as argumentações fortes deDandolo, apelou para a tortura refinada e cruel, típica de sua corte: mandou colocar próximoaos seus olhos vasos de metal incandecente que acabaram comprometendo seriamente suavisão. Dizem os historiadores que Dandolo ficou completamente cego. De volta a Veneza foi reconhecido como fiel intérprete da opinião do governo e do povoveneziano e, apesar de cego, foi eleito "doge" - cargo supremo daquela república - algunsanos após o incidente na corte de Manuel Comnenus. Dandolo foi extremamente importante nos eventos que transformaram por completo aHistória Bizantina e a História de Veneza. Esses eventos envolveram a Dinastia Angelus elevaram à introdução de algo totalmente novo na história tumultuada de Constantinopla: osimperadores latinos. Levaram também à partilha do grandeImpério entre os nobres cruzados e a República de Veneza, como veremos a seguir.

- *Isaac II, Angelus: olhos vazados, volta a ser imperador* Durante a primeira parte do reinado do questionado imperador Isaac II, Angelus, que vaide 1185 a 1195, um parente seu, Constantino Angelus, proclamou-se imperador bizantinocom o apoio de suas tropas. Foi vencido e destronado pelas forças de Isaac II, tendo sidojulgado de acordo com as leis. A sentença: vazamento de seus olhos. No entanto, um outroparente - e desta vez seu próprio irmão Alexius – liderou outra revolta no ano de 1195,procurando afastar o incompetente e alienado imperador. Desta vez Isaac II foi preso e teveseus olhos vazados por ordem do irmão a fim de eliminar suas pretensões de volta ao tronodo Império Bizantino. Alexius assumiu o Império com o nome de Alexius III e imperou de 1195 até 1203,mantendo seu irmão na prisão ao lado do filho e pretenso herdeiro do imperador destronado.Com o passar dos anos, porém, o novo imperador soltou o sobrinho, que tinha também onome de Alexius, fazendo-o participar de campanhas militares ao seu lado. O jovem príncipemantinha-se inconformado e fazia planos para voltar a Constantinopla e conquistar o tronoque por herança teria sido seu. E na primeira oportunidade fugiu e foi buscar a colaboraçãode nobres europeus que em Veneza procuravam organizar uma cruzada à Terra Santa e aoEgito, sob a forte liderança do "doge" cego, Dandolo. Com o aval do papa Inocêncio III conseguiu convencer o grupo de nobres a viajar paraConstantinopla a fim de derrubar Alexius III e de garantir sua instalação no trono. Haviacondições muito pesadas para tanto: pagar o aluguel dos barcos usados para todo otransporte dos cruzados e seus exércitos, ajudar financeiramente na organização de umacruzada ao Egito e submeter a Igreja Ortodoxa a Roma. E a empreitada foi aceita napresunção líquida e certa de que Isaac II, cego como estava, não poderia mais ocupar o tronobizantino e de que Alexius seria, como de fato era, seu herdeiro.

No entanto, quando Alexius III foi afastado do trono, enquanto os garbosos cruzadosavançavam deslumbrados pelas avenidas de Constantinopla, os habitantes de origem gregalibertaram Isaac II e colocaram-no no trono como imperador de fato. Quando o jovem Alexius e os cruzados chegaram ao palácio imperial tiveram a surpresado fato consumado: o trono estava ocupado pelo velho imperador cego. "O choque foi muito grande para Alexius e para os cruzados, pois de acordo com atradição bizantina, a cegueira incapacitava um homem para ser imperador" ("CambridgeMedieval History", de Hussey). Mas foi um impasse curto, pois pai e filho, após o reencontro, conversaram muito e IsaacII acabou aceitando as condições negociadas pelo filho, embora deixando claro que duvidavade sua viabilidade. E o velho imperador cego estava certo. Ficou logo claro que não seriapossível pagar os cruzados e cumprir o prometido. Foram ambos afastados do trono,inaugurando-se então a fase de investidura dos imperadores latinos, sob a custódia doscruzados Os imperadores do ocidente europeu.

- *Outros eventos que levaram a deficiências físicas e sensoriais* Muitos outros eventos aconteceram no milênio de existência do Império Bizantino quelevaram nobres e imperadores a terem seus olhos vazados ou corpos mutilados. Dentre elescumpre destacar: - Filípico - cognominado de Bardane - foi imperador entre 711 e 713, sendo originário daArmênia. Foi infeliz em seu governo por ter que lutar contra búlgaros e árabes - inimigosexternos além de enfrentar internamente os problemas com os ortodoxos e com os quepressionavam em favor da Igreja vinculada a Roma. Deposto finalmente, teve seus olhosvazados. - Heracleonas - imperador de fevereiro a setembro de 641. Ao final do governo de seu pai,imperador Heraclius, obteve o título de "augusto", por influência direta de sua mãe. Dessaforma, foi proclamado imperador ao lado de seu irmão, Constantino III. A morte prematuradeste levou a corte a suspeitar de Heracleonas e de sua mãe. Foi logo após destronado epreso; segundo os historiadores foram mutilados e banidos para a ilha de Rhodes. - Bryenne, general bizantino - Nicéforo Bryenne, general bizantino do século XI, eraoriginário de importante família. Foi nomeado duque da Bulgária em 1075, 60 anos após aderrocada provocada por Basílio II. No ano de 1077 proclamou-se imperador da Bulgáriamas foi derrotado por Nicéforo Botoniate em 1078, preso e, por ordem do imperador MiguelVI, teve seus olhos vazados. - Andrônico I - Andrônico Comnenus liderou revolta contra o imperador Alexius II,Comnenus, destronando-o. Enquanto se manteve precariamente no poder mandou cegar o"protosebaste", cujo titular tinha importância correspondente à de um primeiro ministro.Entretanto, suas lutas acabaram por garanti-lo no trono de 1183 até 1185. Foi um imperadorcruel. "Multidões reuniam-se para ver o desfile ou a imolação de alguns traidores oucriminosos horrivelmente mutilados; e as ferozes execuções ordenadas por Andrônico Iforam o prelúdio natural para seu terrível fim, que, todavia, ele suportou com uma valentiamuito própria" ("Cambridge Medieval History", de Hussey). Andrônico I morreu mutilado. - Teodoro Dukas - Foi imperador da província de Tessalônica e era irmão de MiguelAngelus Comnenus. Fez algumas tentativas para conquistar Constantinopla e para tantoprocurou atacar a cidade pelo norte. No entanto, não quis "dar as costas" à Bulgária,considerada um perigo para seus exércitos. Com isso, provocou um sério atrito com antigoamigo seu, o czar búlgaro João Asen. Foi por ele derrotado na batalha de Klokotnika, em1230, tendo lá sido preso. E, por ordem do "amigo" czar, teve seus olhos vazados. Teodoro

Dukas, no entanto, era muito dinâmico e sagaz. Acabou reconquistando a amizade de JoãoAsen e foi posto em liberdade. Voltou incontinenti à Tessalônica e viveu uma vida decontatos políticos muito intensos, conseguindo inclusive lançar o chamado Império Grego daTessalônica em violentas lutas, influindo decisivamente nas tomadas de decisão de seuirmão Manuel e de seus dois filhos, João e Demétrio.

Para finalizar os relatos de eventos históricos ou de fatos relacionados a personalidadesque marcaram o Império Bizantino, resta-nos falar de algumas figuras históricas queviveram nos séculos XIII e XIV: destaquemos, para tanto, os nomes famosos de MiguelPaleólogus e de João V, Paleólogus.

- *Ato friamente planejado instala a Dinastia dos Paleólogus* Um ato muito frio e cruel nos é relatado por diversos historiadores e em especial porGibbon, em sua obra anteriormente citada. Esse proceder desumano ocorreu no início doséculo XIII. O jovem príncipe João Lascáris (1250 a 1300 aproximadamente) que passou para aHistória Bizantina como João IV, era filho de Teodoro II, falecido em 1259. Com apenas 8anos de idade o herdeiro do trono bizantino teve como tutor o próprio patriarca deConstantinopla, Arsenius Autorianus. No entanto, graças a tramas muito bem urdidas econtando com o total apoio da grande família dos Paleólogus, Miguel foi apontado comotutor do jovem príncipe, tendo então recebido o titulo honorífico de "déspota" e algumtempo após o de "imperador-adjunto". Para efeitos desse segundo titulo, ele foi coroado nacidade de Nicéa em 1260. No ano seguinte, estando João IV, Lascáris, com apenas 11 anos de idade, MiguelPaleólogus resolveu destronar o príncipe e com isso afastar a dinastia dos Lascáris. Paratanto mandou cegá-lo. "A perda da visão incapacitou o jovem príncipe para as atividades do mundo: em vez daviolência brutal de arrancar os olhos, o nervo ótico foi destruído com o intenso brilho de umvaso incandescente, e João Lascáris foi levado para um castelo distante, onde passou muitosanos na privacidade e na obscuridade" ("Histoire de la Décadence et de la Chute de l'EmpireRomain", de Gibbon). Arsenius Autorianus, ex-tutor de João Lascáris, patriarca da Igreja Ortodoxa, excomungouMiguel Paleólogus por esse ato - o que de fato provocava uma situação especial, pois oimperador era considerado o representante de Cristo. No entanto, após muita insistência doimperador e da corte, não ocorrendo a revogação do ato punitivo, o patriarca foi trocado e aexcomunhão revogada. Além de cegar João IV, Miguel VIII, Paleólogus, mandou cegar vários nobresrecalcitrantes e inconformados com a situação. "Em 1261 Miguel Paleólogus, querendo punir seu secretário Manuel Holóbolus por ter-seapiedado da sorte do infeliz João Lascáris, fez amputar seu nariz e seus lábios, após ter eleos olhos vazados" ("Les Institutions de l'Empire Byzantin", de Bréhier).

- *O dilema de João V, Paleólogus (1319 a 1389)* Durante o governo de João V, Paleólogus, sob a quase total custódia do sultão otomanoMourad I, o imperador bizantino procurou manter com os turcos um relacionamento cordial.Praticamente todo o território do Império Bizantino já havia sido tomado pelos turcos, àexceção de Constantinopla fortificada, que se mantinha intocada devido a um certo receio

que os tão aguerridos otomanos tinham dos cruzados e das reações da Europa Cristã, caso acidadela fosse tomada e saqueada. Enquanto João V mantinha sua capital na inexpugnável Constantinopla, o sultão turcocolocava a sua na cidade de Adrianopla, próximo às fronteiras da Bulgária e da Grécia e apouca distância da capital bizantina. Havia visitas cordiais à corte do sultão e as famílias ficaram se conhecendo bem. Tantoisso é verdade que Andrônico, o filho mais velho de João V, fez uma boa amizade comSaoudj, filho mais velho e eventual sucessor de Mourad I. Os dois jovens pretendentes aosrespectivos tronos começaram a conspirar contra seus pais logo após Andrônico ter sabidoque João V o havia afastado da sucessão em beneficio de seu irmão Manuel. Mourad I descobriu a conspiração dos dois príncipes e tomou uma decisão drástica contraa traição de seu filho primogênito: mandou vazar seus olhos, o que ocorreu em 1376. Mas origoroso sultão não deixou o assunto morrer aí, pois forçou o imperador bizantino a semanifestar, confrontando-o com o aspecto "traição". "O otomano ameaçou seu vassalo com o tratamento de um cúmplice e de um inimigo, amenos que ele infligisse a mesma punição a seu filho. Paleólogus tremeu e obedeceu, e umaprecaução cruel envolveu na mesma sentença a infância e a inocência de João, filho docriminoso. Mas a operação foi feita tão brandamente ou tão imperitamente que um mantevea visão de um olho e o outro foi vítima apenas do mal do estrabismo" ("Histoire de laDécadence et de la Chute de l'Empire Romain", de Gibbon). Os dois príncipes conspiradores foram presos na famosa torre de Anema e a sucessão aosdois poderes ficou garantida para Manuel, do lado bizantino, e para Bayazet, do ladootomano. Dois anos após a aplicação da pena, os dois mandatários foram depostos eencerrados na mesma torre da qual os dois príncipes foram retirados para ocupar os seusrespectivos tronos (Apud Gibbon).

3. As Pessoas Deficientes na Idade Média

Dos anos 500 até o final do século X, mergulhada num generalizado estado de ignorância,uma leve e quase imperceptível chama de cultura clássica era conservada na Europa e emmuitos pontos do Oriente Médio. Os povos invasores e desmanteladores do antesinexpugnável Império Romano mantinham-se em franca e obscura atitude contrária aosensinamentos deixados pelos grandes pensadores gregos e romanos, enquanto que noOriente Médio, numa situação bem diversa daquela encontradiça na Europa, os povosárabes, igualmente invasores e expansionistas, procuravam desvendar todo o mistério deconteúdo da propalada sabedoria grega e dos seus mais renomados filósofos e cientistas. E no meio do caos do destroçado Império Romano, a Igreja Cristã demonstrava suapujança e sua rigidez: ela passou a ser quase que o único baluarte capaz de manter a culturaclássica que ela preservava com segurança nas bibliotecas dos mosteiros e dentro de seusfortes muros organizacionais.

- *A criação de hospitais e abrigos para pobres* Apesar de todas as concepções místicas, mágicas e muito misteriosas, de muito baixopadrão, que foram a tônica da cultura das populações menos privilegiadas e maisempobrecidas durante muitos séculos da Idade Média, em muitas partes da Europa e doOriente Médio, os casos de doenças e de deformações das mais diversas naturezas ou causaspassaram aos poucos a receber mais atenção. Isto é verdadeiro não só quanto à

Europa Cristã mas também a todo o leste islâmico. Um dos sintomas dessa atenção maishumanizada foi a continua criação de hospitais. No leste da Europa, por exemplo, hospitais e abrigos para doentes e pessoas portadoras dedeficiências mais pobres eram criados por vezes por senhores feudais ou por governantes deaglomerados urbanos mais fortes ou de burgos mais significativos, sempre ajudados pelacooperação de esforços provenientes da Igreja. Além disso tivemos no século VII a criaçãode uma instituição para cegos perto de Pontlieu, na França, por iniciativa do bispo de LeMans, São Bertrão. Foi um projeto diferente daqueles usualmente encontrados na mesmaépoca.

- *Um santo cego na história da Bretanha do século VI* A história de Santo Herveu, o monge cego, é típica do início da Idade Média, pois estárepleta de poesia e de crendices. Segundo ela, Herveu nasceu no ano 520 na Bretanhacontinental. Seu pai foi o bardo (cantor e poeta) Hoarvian e sua mãe, uma piedosa jovem quecantava os salmos com excelente voz, Rivanone. Dizem os poucos biógrafos desse pouco conhecido santo bretão que sua jovem einexperiente mãe, muito inquieta com os perigos do mundo, pediu a Deus que seu filhonascesse cego. O pai, menos sonhador e muito mais prático, ficou atemorizado com essaprece e repreendeu-a, dizendo: "Ó mulher, não é cruel por parte de uma mãe pedir que seu filho seja privado da luz davida? Se ele deve nascer assim, todavia, peço de minha parte a Deus todo poderoso, que essacriança já daqui desse mundo tenha visão dos esplendores do céu. E para que minha preceseja atendida, renuncio desde agora a todas as vaidades deste mundo para servir apenas aDeus pelo resto de meus dias". E o pai acabou partindo de fato, sem ter chegado a ver o filho que, de acordo com oraçõesde sua mãe, nasceu cego. O nome Herveu, recebido no batismo, significa "amargo". Bemmais tarde a mãe também deixou o filho com um monge conhecido pelo nome de Arzian,passando o menino a viver confinado no mosteiro. Herveu aprendeu muito com a escola existente no mosteiro de Arzian, incluindo em suaspreferências também as ciências profanas, além de todos os salmos que sua mãe - elerecordava muito bem - cantava com límpida voz. No seu dia-a-dia o jovem Herveumovimentava-se com a ajuda de um guia chamado Guiac'han. Foi durante sua adolescência que deixou o mosteiro de Arzian e foi em busca do retiro doeremita Urfold, num local próximo ao convento onde sua mãe vivia confinada. Com a ajudado eremita, Herveu acabou encontrando sua mãe, muito debilitada pelos jejuns e pelaspenitências. Transformou-se logo em professor, apesar da cegueira. No entanto, por humildadeafastou-se e começou a peregrinar de mosteiro a mosteiro, seguido por grupos de alunosseus. Nessa espécie de peregrinação constante, o grupo visitou o bispo de Houardon que quisordenar Herveu sacerdote. Mas, devido à sua cegueira e à sua humildade, não aceitou aordenação. Recebeu finalmente as chamadas "ordens menores" e o poder do exorcismo.Fundou um mosteiro próprio pelo ano de 540, num local posteriormente conhecido comoLanhouarneau. Apesar de não ser sacerdote, recebeu o título de abade de sua congregação e nessaqualidade foi convocado para o concílio que ia ser realizado em Menez-Bré, em 545. Conta-se que os participantes ficaram o dia todo esperando por ele para iniciar o conclave, o queirritou sobremaneira um dos bispos presentes.

- "O que? ! ... Foi para esperar esse ceguinho que perdemos um dia todo?", explodiu oprelado. Sentiu-se uma indignação geral contra o bispo que, castigado no próprio ato, caiucego ao chão. Herveu aproximou-se e tomando de um pouco de água que começara a brotarde seu bordão, umedeceu os olhos da vítima que logo a seguir voltou a enxergar (Apud LeBerre). Suas relíquias ainda hoje existentes no mosteiro de Lanhouarneau (distrito de Finistère, naBretanha, a oeste da França, entre a Baía de Biscaia e o Canal da Mancha) são sempreusadas para a benção das águas da Fonte de Santo Herveu, em procissão solene realizada nodia de sua festa. Dizem que essas águas têm virtudes um tanto misteriosas para a cura demales dos olhos nelas lavados. Seus restos mortais foram transferidos para a catedral deNantes em 1002. Santo Herveu é considerado o patrono dos cantores populares e é festejado em 17 dejunho.

- *Santo Egídio, padroeiro dos deficientes* Santo Egídio (Gilles, em francês e Aegidius, em latim) é patrono da pequenina cidade deSaint Gilles, ao sul da França. Fica situada no Departamento de Gard, as margens do canaldo rio Rhone-à-Sète. Existe na vila uma antiga abadia que chegou a ser expressamenteprotegida por Carlos Magno e que hoje guarda as relíquias de seu santo padroeiro, que láviveu no século VI. É ele considerado na França como um dos dez santos que mais ajudam à populaçãodesamparada e sempre foi venerado na Europa como o padroeiro dos mendigos, dosferreiros e das pessoas com defeitos físicos. Sua fama foi tão importante no passado que os peregrinos agradecidos chegaram acontribuir para a melhoria da vila e da abadia. O famoso santo é representado tendo ao seulado uma flecha e uma corça. Segundo lendas do século X Egidio era um jovem aristocratade origem ateniense que, após ter visitado o mosteiro de São Cesário de Arles, pelo ano 543,passou a viver como eremita no meio do bosque. Foi ferido acidentalmente pelo rei Flaviusdos Godos quando este perseguia uma corça e ela procurara segurança aos pés de Egídio.Arrependido com o engano, Flavius mandou imediatamente construir uma abadia naquelebosque e nomeou Egídio seu abade. Sua festa é celebrada no dia primeiro de setembro. Os restos mortais de Santo Egídio,levados a Toulouse no século XVI, foram transladados para Saint Gilles apenas em 1862. - *Assistência aos pobres pela Igreja* Os pobres, os doentes e os deficientes físicos e mentais foram objeto de uma norma daIgreja Católica em pleno século VI, norma essa que pretendia assisti-los e ao mesmo tempocircunscrever seus movimentos a um determinado território. E foi o concílio de Tours, realizado nos anos 566 e 567 que decretou pelo seu cânonequinto o seguinte: “Cada cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os habitantestambém alimentarão seus pobres, a fim de impedir os mendigos vagabundos de correr ascidades e as províncias” (Apud Guérin). É também relevante saber que o concílio de Lyon (583) aprovou, em seu último cânone, aseguinte medida relacionada aos hansenianos: “Os leprosos de cada cidade e de seu território serão alimentados e abrigados às expensasda Igreja, aos cuidados do bispo, a fim de lhes impedir a liberdade para serem vagabundosem outras cidades” (Apud Guérin).

- *A mutilação como castigo no século VII* Desde épocas imemoriais, em quase todas as culturas espalhadas pela Europa e por todo oresto do mundo conhecido até o século VII d.C., praticamente todos tinham o direito - ouviam-se investidos desse direito - de punir severamente seus criados, seus escravos ouempregados, mesmo que fosse, conforme as circunstâncias, pela mutilação de parte de seuscorpos: orelhas, nariz, dedos, membro sexual, etc. Durante os primeiros séculos da Idade Média essa punição tanto podia ser aplicadadiretamente pelo senhor como, de um modo indireto, por meio de juízes. A gravidade dasituação poderá ser bem retratada por uma decisão tomada num dos concílios particulares daIgreja. Foi o concílio de Mérida, em Portugal, no ano 666 que procurou cercear esse bárbarocostume, pelo menos com relação aos bispos e sacerdotes, já um tanto distanciados dospreceitos da caridade. O cânone décimo quinto, aprovado nesse concílio, “proíbe aos bispose aos sacerdotes maltratar os empregados da igreja pela mutilação e manda que, se foremeles considerados culpados de qualquer crime, que sejam entregues aos juízes seculares, pelomenos para os bispos moderarem a pena à qual serão condenados, e não deixarem que sejammarcados com ignomínia” (Apud Guérin). - *O milagre de fazer um mudo falar* São Vedo, cognominado “o Venerável”, tem sido considerado nos meios católicosingleses não só como um homem santo, mas também como um sábio e grande historiador.Nasceu em 675, vindo a falecer em 735. Escreveu muitas obras dentre as quais não podemosdeixar de chamar a atenção para a História Eclesiástica da Nação Inglesa a qual cobreperíodo que vai desde os primórdios da Igreja Cristã na Inglaterra até 731. Consta nessa obra que em 685 um bispo católico chamado João, tido como santo emiraculoso, ensinou um jovem que nunca havia pronunciado palavra alguma a falar. Apesardo Santo historiador inglês citar o fato como um milagre, não causaria impacto maior hojeem dia ou mesmo há dois ou três séculos atrás. Segundo São Bedo, o bispo João pediu ao jovem para mostrar sua língua e soltar o som já,o que foi feito aparentemente sem maiores dificuldades. A partir desse ponto, pronunciandouma a uma as várias letras do alfabeto, o bispo orientou o jovem a repeti-las. Daí por dianteo prelado começou a inserir sílabas, palavras curtas mesmo frases simples. O moço obtevepleno êxito e não parou mais de falar. No campo da comunicação dos deficientes da palavra falada esse é um fato totalmenteisolado ocorrido no início da Idade Média, uma vez que só ouviremos falar sobre o ensino desurdos e de surdos-mudos pelo final do século XV (Apud Muller).

- *Amputações como penalidade por crimes cometidos* Embora não disponhamos de dados muito precisos, existem evidências de penas severaspara crimes considerados graves durante toda a Idade Média, em diversos países europeus.Na maioria dos casos o objetivo dessas penas - principalmente as mutilatórias - não eramatar o criminoso, mas deformá-lo, sendo a mutilação um meio visual destinado aamedrontar outros criminosos. Cuidavam os aplicadores das penas mutilatórias que oscondenados não morressem devido à hemorragia ou a eventuais complicações. Como as vítimas dessas penalidades quase sempre se viam impedidas de trabalhar,restava-lhes o recurso de esmolar, que de certa forma, como no Império Bizantino, levava opovo cristão a ter oportunidade de fazer caridade...

Dentre os diversos crimes que podiam ter como pena a amputação das mãos, por exemplo,um deles (bastante específico para determinado fato ocorrido na História) sucedeu em Milãoem 630, durante uma violenta peste. De acordo com muitas acusações baseadas em observações e também em crenças denatureza pseudo-científicas, a peste era espalhada por um certo ungüento que era esfregadonas paredes das casas por indivíduos criminosos. As autoridades e o povo deram caça aosmesmos, tendo todos eles sido submetidos a torturas, amputações e mesmo à morte. Um doscastigos a eles aplicados foi a amputação de uma das mãos, conforme nos é mostrado emestampa existente no Welcome Medical Historical Museum, de Londres (Apud Brothwell eMuller-Christenseln).

- *A evidência de dupla amputação: século VII* Foi em 1956 que uma área desabitada na ilha de Tean (uma das Scilly, a sudoeste daInglaterra) mereceu toda a atenção dos cientistas do Departamento de Arqueologia Pré-Histórica da Universidade de Edinbourgh. É que lá haviam sido descobertos diversostúmulos - talvez do século VII d.C. - e um dos esqueletos apresentava peculiaridades bemmarcantes. Eram os restos mortais de um homem de 40 a 50 anos presumíveis ao morrer que, além deter sido vítima de um processo artrítico sério, apresentava algo bastante inusitado. Eis osdados que nos são repassados por dois cientistas: - O braço esquerdo apresenta sinais da amputação da mão a 10 mm acima do punho. Coma sobrevida de mais de um ano, a extremidade áspera correspondente ao ponto da mutilaçãoficou arredondada e quase lisa e uma espécie de calosidade óssea uniu as duas pontas dorádio e do cúbito num único osso. Há leves sinais de infecção, mas ao que parece não houvedificuldades na fase de cicatrização sem inflamações. - A perna direita apresenta mutilação do pé, tendo a amputação cortado 50 mm da tíbia edo perônio. Como no caso do braço esquerdo, o coto está arredondado, com a união deambos os ossos num só. Segundo Broththwell e Moller-Christensen, acrescente-se a esses problemas o fato de quevários anos antes o mesmo indivíduo havia fraturado a clavícula e uma vértebra toráxicaque, embora bem solidificadas, provocaram alguma deformidade. As mutilações indicadas pelos dois autores provavelmente não foram feitas semconhecimento de causa. Vejamos a sua opinião: “Com certeza somente um ou dois anos antes de sua morte foi realizada a amputação desua mão esquerda a 10 mm acima do punho e do seu pé direito aproximadamente a 50-60mm acima da junta do tornozelo. Essas mutilações não foram provavelmente feitas com umaserra ... mas foram o resultado de uma remoção intencional por machado ou faca pesada emartelada com um malho - métodos sabidamente empregados como punições na Inglaterradurante a Idade Negra. (Médico-Historical Aspects of a Very Early Case of Mutilation deBrothwell e Muer-Christensen).

- *Os hospitais criados pela Igreja na Europa*

No ocidente europeu hospitais continuaram sendo organizados graças à iniciativa e àcontínua ação de segmentos da Igreja Católica, tendo as ordens monásticas dado umarelevante contribuição, pois a experiência dos religiosos enclausurados em tratar seus irmãosferidos ou doentes, bem como os pobres e desvalidos portadores de sérias limitações físicas,passou a ser um verdadeiro modelo. Era já o resultado de uma experiência multissecular

desenvolvida por mosteiros espalhados pela Europa e pelo Oriente Médio, além daqueleslocalizados na África. No entanto, já no ano 845, o concílio de Meaux referiu-se ao que chamou de “HospitiaPeregrinorum” (Abrigos dos Peregrinos) e de “Hospitia Scotorum” (Abrigos dosEscoceses), queixando-se que eles haviam sido desviados de seus propósitos originais dehospitalidade e pedindo sua reinstalação em moldes diferentes, não só como casas destinadasà assistência aos peregrinos ou a viajantes doentes, como também abrigos aos inválidos. Duzentos anos antes desse concílio, considerando que era uma obrigação quase quefuncional dos bispos dar abrigo e proteção a peregrinos e a doentes pobres, o bispo Landry,de Paris, organizou um lar para inválidos e para peregrinos doentes num local bem perto desua igreja. Foi dessa experiência do século VII que surgiu o nome de “Hôtel Dieu” parahospital de caridade na França. Do século VII ao século XII os hospitais mantidos nas propriedades dos mosteiros e dasabadias ou mesmo das poucas instituições especialmente preparados para tanto forampraticamente as únicas organizações européias que mantiveram como seus objetivos básicoscuidar do doente agudo e em muitos casos também do crônico. Serviram também de abrigopara pessoas impossibilitadas de prover seu próprio sustento devido a sérias limitaçõesfísicas e sensoriais. Convém aqui voltar a ressaltar que não havia propriamente nenhum mosteiro ou abadia deporte, durante a Idade Média, que não mantivesse seu “xenodóchium” devido ao espírito decaridade e de hospitalidade cristãs, enquanto que muitos foram se aparelhando e alterandoseus serviços para um atendimento próprio de um “nosocómium”.

- *A profissão de massagista no Japão do século IX* Segundo documentos históricos existentes no Japão do século IX os cegos passaram adominar completamente a profissão de massagista, considerada desde então como de suaexclusividade absoluta. Além disso, eram os cegos os quase que exclusivos aplicadores decertas técnicas especiais de acupuntura. Esse verdadeiro privilégio foi-lhes garantido devido à circunstância de o filho doimperador japonês, o príncipe Hitoyasu, ter perdido a visão e ter fortemente influenciado seupai em favor dos cegos que não tinham trabalho digno e que podiam perfeitamente bemdesenvolver aquelas atividades. Esses privilégios para cegos prevaleceram praticamente por dez séculos, mas ainda hojepercebemos resquícios deles, uma vez que é notória a presença muito numerosa de cegoscomo massagistas não só no Japão como em muitos outros países que recebem ou receberamsua influência. - *Bispo Hincmar, vítima da crueldade de seus algozes* Hincmar (830 a 882) foi um dos bispos mais jovens de que se tem notícia na História daIgreja Católica. Foi sagrado bispo de Laon, na França, com apenas 20 anos de idade, porindicação e por influência direta do rei Carlos, o Calvo, que logo lhe confiou duas missõesdiplomáticas na Germânia. No entanto, depois de 21 anos de bispado, durante o concílio de Douzy, presidido por umarcebispo que tinha o mesmo nome e que era seu tio, Hincmar foi deposto e aprisionado. Ascondições da cela e do próprio ambiente para onde o bispo deposto foi mandado eramterríveis, tendo ele sido deixado sob violentos maus tratos de seus algozes que vazaram seusolhos. Essas violências desumanas aconteceram, segundo os historiadores, por ordem diretado arcebispo Hincmar de Reims, que levara o sobrinho prelado à prisão.

Passados cinco anos, todavia, Hincmar foi liberto por influência direta do papa João VIII,que reinou entre 872 e 882. E, um fato singular na história da disciplina da Igreja Católica,esse mesmo papa autorizou Hincmar a celebrar missa, por ter considerado que sua cegueiranão era impeditiva, pois havia ocorrido após sua ordenação, não significando, portanto,nenhuma irregularidade. - *Deficiência física na mitologia germânica* Wayland, o ferreiro, é um herói mitológico famoso na cultura germânica. Nãonecessariamente uma réplica nem cópia de Hefesto, já citado e inserido em muitas históriasda mitologia grega, Wayland também era um excelente artesão e ferreiro. Chegou a fabricarpeças famosas que passaram para diversas histórias da avantajada mitologia do norte daEuropa dos meados da Idade Média. Dentre essas peças imortais é importante destacarmosque, segundo as lendas, Wayland fabricou a espada de Siegfried (Nothung) e a do rei Artur(Excalibur). Wayland, o único herói teutônico assimilado pela cultura e pelo folclore de diversospaíses europeus, inclusive pela mitologia inglesa, aparece em histórias lendárias tanto naAlemanha quanto na Escandinávia. A lenda principal relacionada a esse fantasioso ser fala a respeito de sua vingança contra orei que o havia aprisionado. Esse rei havia mandado quebrar seus joelhos para torná-loincapacitado de se mover com destreza e rapidez. O objetivo era retê-lo no reino e com issogarantir seus serviços de alta qualificação. No entanto, o muito sagaz Wayland, depois de anos de paciente planejamento e da esperade um momento mais adequado, matou os dois filhos do rei Nipopr. Fez mais para dar maispeso à sua vingança: deflorou a princesa, sua filha. Logo após, tendo completado todos osatos que havia premeditado, empreendeu uma fuga espetacular, utilizando-se de um par deasas por ele mesmo fabricadas.

- *As deficiências em sacerdotes cristãos na Idade Média* Questão permanentemente discutida por autoridades eclesiásticas, tendo já merecido oposicionamento de papas e concílios e um lugar permanente no Código de Direito Canônico,o problema das deficiências físicas e sensoriais nos sacerdotes ou nos bispos é citado porThomassin. No que diz respeito a alguns dos primeiros séculos da Idade Média essaautoridade da Igreja informa: “O Concílio de Tribur (Cânone XXXIII) alega as decisões do Concílio de Nicéia sobre oseunucos, aquelas do papa Inocêncio I sobre quem amputou seu próprio dedo, ou a quem secortou o próprio dedo acidentalmente, dos quais o primeiro é irregular e o outro não o é:enfim, aquelas de Gelásio que excluem do clero todos os que são mutilados de qualquerparte do corpo. Esse concílio confirma em seguida todas essas ordens e a elas acrescenta queaqueles que se tornaram coxos por qualquer enfermidade corporal não devem ser impedidosdas santas ordens” (“Ancienne & Nouvelle Discipline de l’Église”, de Thomassin). Nesses primeiros séculos da Idade Média a Igreja Ortodoxa Grega seguia basicamente asmesmas regras, sendo mais condescendente para com candidatos ao sacerdócio queapresentassem deficiências. Essa facção da Igreja decidira mesmo, por meio de cânonesapostólicos, que os coxos e mesmo os que haviam perdido um olho, podiam ser ordenados eaté mesmo elevados ao bispado. O motivo alegado era contundente para a época, mas muitoreal: “São as manchas da alma e não os defeitos do corpo que nos afastam dos divinosmistérios”... Segundo seus lideres e autoridades maiores, cegos e surdos eram considerados

como impedidos ao sacerdócio porque essas deficiências os incapacitavam para exercer asfunções múltiplas da vida sacerdotal. No entanto, os que já haviam sido ordenados podiam continuar exercendo o sacerdóciosem maiores dificuldades e não perdiam de maneira alguma a dignidade ou os benefícios eproventos que recebiam. Teodoro Balsamon, canonista grego do século XII, afirma ter conhecido diáconos, padrese mesmo bispos que, tendo-se tornado surdos ou cegos, não foram por causa disso privadosde sua dignidade, e que a lei civil possibilitava àqueles que haviam perdido a visão gozar desua antiga posição de juíz ou de senador, apesar de não permitir o acesso a outro tipo demagistratura (Apud Thomassin). Vários papas foram aos poucos tornando o assunto mais e mais esclarecido através dedecisões, permissões, epístolas e regras. Encontramos no século XII, durante um reinado de22 anos, entre os anos de 1159 e 1181, o papa Alexandre III esclarecendo que, quanto amutilações e deformações do corpo, elas tornavam uma pessoa “irregular” para o sacerdócioquando essas dificuldades fossem de tal monta que seria impossível exercer as funçõessacerdotais sem provocar escândalo ou problemas. Ocorreram casos de sacerdotes parcialmente impedidos de ordens devido a deficiênciasfísicas e sensoriais. Esses impedimentos incluíam: sacerdotes proibidos de celebrar a missa,sem ser impedidos das demais funções de seu ministério, por ter perdido metade de uma dasmãos. O motivo: o alegado escândalo que já àquela época correspondia a algo chocante eque chamava muito a atenção. Os textos latinos, porém, utilizam o termo indicado: “nec sinescandalo propter deformitatem membri”. Inocêncio III, reinando ao final do século XII e entrando no século XIII até o ano de 1216,analisou o assunto em maiores detalhes, indicando que os mesmos defeitos e mutilações quetornavam impedido um homem para as chamadas ordens maiores não precisavamnecessariamente excluir das ordens menores, pois estas expunham muito menos oscandidatos já clérigos à vida pública. Esse mesmo papa, ao julgar o problema de um sacerdote que fora atingido por umassaltante e com isso perdera um dedo da mão esquerda, decidiu que não incidira emqualquer impedimento às suas funções, uma vez que o acidente ocorrera após sua ordenação. Foi Inocêncio III também que chegou a determinar a deposição de um abade, pois omesmo não tinha uma das mãos (a esquerda), o que, se descoberto a tempo, e se tivesse sidoconstatado antes de sua ordenação, teria sido impeditivo dos mais sérios. Um outro motivoalegado pelo papa foi a dissimulação do referido abade: ele havia muito habilmenteescondido o defeito durante sua eleição para o cargo de superior (talvez tivesse usado umaprótese).

- *Luís III, o "Cego", rei da Provença e da Itália* Luís III, conhecido pelo cognome de o “Cego”, nasceu em 880 e era filho de Boso, rei daProvença - hoje parte Sudeste da França. À morte de seu pai em 887 foi protegido peloimperador Carlos, o Gordo. Luís foi reconhecido como rei da Provença com 10 anos deidade, sob o forte apoio do papa Estêvão V. No correr do ano 900, quando estava com 20 anos de idade, por insistência e muitapressão dos inimigos de Berengar, rei da Itália, cruzou os Alpes com suas forças, depôs omonarca após muita luta e reclamou sua coroa. Foi coroado rei dos lombardos na cidade dePávia e rei da Itália em Roma, em fevereiro de 901, ocasião em que recebeu a coroa real dasmãos de Benedito IV, papa que ocupava então o trono da Igreja Católica.

Mas o jovem rei tinha deixado em seu rastro um feroz e muito cruel inimigo: Berengar.Após poucos meses de reorganização de suas forças e de insistente luta, conseguiusurpreender Luis III em Verona e lá mesmo, com muito ódio, mandou vazar seus olhos. Levado de volta à sua Provença, Luís III, o “Cego”, lá permaneceu em Arles, vivendo pormais de 26 anos uma vida atrapalhada devido à cegueira. Deixou os negócios de sua coroaaos cuidados de um primo seu, Hugo, duque de Provença, que bem mais tarde tornou-se reida Itália. Na vida deste personagem da História da Provença e da Itália há um registro lamentável eraro nos países da Europa, embora não tão surpreendente na corte bizantina: mandou vazaros olhos de seu irmão Lamberto, marquês de Toscana, por motivos de alegada traição. Berengar, que havia derrotado e vazado os olhos de Luis III, acabou derrotando tambémas forças deste odioso Hugo, rei da Itália, em 945.

- *Deficientes físicos impedidos de participar da Primeira Cruzada* Apesar de ter sido Urbano II o papa que verdadeiramente inventou as Cruzadas e queestimulou fortemente a realização da primeira delas, que aconteceu entre 1096 e 1099, émuito importante que ressaltemos e prestemos a devida atenção ao papel de um típicopregador daqueles dias que ficou muito famoso no centro da Europa: Pedro, o Eremita. Vestido com uma longa túnica de lã parcialmente coberta por um manto escuro comcapuz, Pedro, o Eremita, andava descalço e apoiado em longo bastão; comia muito pouco,alimentando-se de peixe e vinho unicamente. Ele teve muita influência no surgimento da chamada “Cruzada Popular”, que secaracterizava por bandos de pessoas do povo interessadas em peregrinar até Jerusalém e alilutar pela libertação da cidade santa, mesmo à custa da própria vida. Esse movimento quase espontâneo acabou levando à organização precária de umaCruzada do próprio povo contra os infiéis, bem dentro do espírito pregado pelo papa UrbanoII. E esse foi o seu mérito maior. No entanto, procurando ordenar um pouco a incontrolável horda que já se movimentavaantes mesmo de os nobres terem se organizado, o papa tomou uma posição de energia:proibiu que participassem dessa peregrinação guerreira desordenada os velhos, as mulheressolteiras e os deficientes físicos. Essa posição do papa foi sacramentada pelo concílio deClermont, convocado para discutir a questão das Cruzadas no ano de 1095. Com essa ordem do chefe máximo da Igreja Católica os portadores de deficiências físicasforam bloqueados de lutar também pelos próprios postulados da Cruzada, ou seja, a imediatareconciliação do pecador com a Igreja por meio da confissão, mas sem os deveres dapenitência (que seria a peregrinação guerreira...). A Cruzada Popular, como alguns historiadores a intitulam, acabou em total tragédia nasproximidades de Nicéa e de Constantinopla, graças à incompetência de seus chefes, e de nãoter coincidido com o esforço guerreiro dos nobres latinos de diversas partes da Europa, sob aliderança de um delegado papal.

- *Barbeiros-cirurgiões na Idade Média* Os clérigos e monges que viviam em mosteiros e abadias eram os detentores dos melhoresconhecimentos a respeito de doenças e doentes, e das limitações físicas que sempre levavamas pessoas a situações de miserabilidade e dependência. Logo após 1163, todavia, surgiriaum outro grupo de pessoas que muito se envolveu por séculos: os barbeiros. E por quemotivo?

Foi precisamente em 1163 que o concílio de Tours proibiu todo o clero derramar sangue,seja em lutas, seja em hospitais (“Ecclesia abhorret a sanguine”). Com o documento papal a função passou aos poucos a outras pessoas, sendo a maisindicada a do barbeiro porque desde 1031 havia obrigatoriamente barbeiros nos mosteiros eabadias; a partir desse ano todos os monges e sacerdotes deviam respeitar um cânone doconcílio de Bourges: ... “todos os que forem empregados em funções eclesiásticas portarãotonsura e terão a barba feita”. O uso de navalhas e tesouras recomendava o barbeiro parafunções de sangria, lancetamentos e curativos. - *A evolução dos hospitais medievais e as deficiências* As Ordens dos Cavaleiros que se preocupavam de um modo especial com doentes e comperegrinos, serviam também para socorrer as vítimas de ciladas, os acidentados, osportadores de males mais graves e as vítimas das intempéries à época dos rigorososinvernos. A primeira das Congregações Religiosas que surgiu para dar atendimento direto sóde enfermagem, entretanto, foi a Congregação das Irmãs de Santo Agostinho, no ano de1155. Após a total desintegração do Império Romano Ocidental, sob a forte pressão dosinvasores bárbaros, os hospitais de diversos feudos e reinos da Europa foram sendoinstalados em cidades melhor organizadas ou mais ricas e aos poucos, com a ajuda decomerciantes abastados, bem como de médicos formados em algumas das novas unidades deensino chamadas de universidades, foram melhorando de padrão. E as cidades mais pujantese dinâmicas passaram de certa forma a competir para montar hospitais cada vez maissofisticados, dando assistência a um mais amplo número de pacientes, sempre, entretanto,sob a custódia ou a manutenção de serviços de enfermagem por parte de diversas ordensreligiosas. Durante os últimos séculos da Idade Média encontra-se noticias de associaçõesespecialmente criadas que tentavam levantar e manter fundos para a assistência a doentes eaos permanentemente deficientes que eram mais pobres e que se mantinham alojados nasinstalações dos hospitais, sem qualquer esperança de cura. A iniciativa tinha a intenção de evitar ou pelo menos de minorar as dificuldades causadaspela superlotação perniciosa que estava ocorrendo nos hospitais, onde esses pobresacabavam abrigando-se até a morte. Não há notícia de tentativas bem sucedidas naconstrução ou mesmo na simples instalação de entidades com finalidades muito específicasno atendimento aos portadores de deficiências, a não ser nos casos de cegos e também doshansenianos, àquela época e por vários séculos futuros reconhecidos por “leprosos”,“lázaros” e outros apelidos, sempre temidos e marginalizados em todo o mundo. Do século XII em diante os hospitais, que conforme vimos eram organizados e mantidospor religiosos recolhidos em mosteiros ou abadias, salvo raras e muito honrosas exceções,ainda misturavam pessoas doentes com as que não tinham meios de subsistência e dentreestas ficavam sempre os portadores de deficiências físicas e sensoriais mais graves. Esseshospitais foram a pouco e pouco sendo secularizados e, devido às conseqüências cada vezmais sérias da concentração urbana, da falta de cuidados básicos com a saúde e dainexistência de medidas de saneamento básico e outras, um volume muito mais expressivode doentes levou ao aumento substancial de seu número. Do século XII ao século XV, por exemplo, só a Inglaterra chegou a organizar 750hospitais, dos quais 217 eram destinados às vítimas da temível “lepra”.

- *O estigma da hanseníase durante toda a Idade Média*

A lepra, hoje mundialmente conhecida como hanseníase, sempre causou muitasmutilações e outros tipos de deficiências. Já existia no Egito e na Índia muitos séculos antesda Era Cristã e foi conhecida dos gregos e dos árabes. Levada para toda a Europa pelossoldados romanos, espalhou-se mais ainda durante a época das Cruzadas. Para combatê-ladurante toda a Idade Média, foram tomadas muitas providências concretas por todos ospovos, face à periculosidade que apresentava e ao pavor de suas conseqüências. Embora até hoje permanece como um verdadeiro mistério o surgimento da hanseníase nomundo, apavorando por milênios a humanidade, é mistério maior ainda o seu quasedesaparecimento ao redor do século XVII na Europa. Nos tempos bíblicos e nos primeiros dez séculos da Era Cristã já havia uma certavariedade de males dermatológicos considerados como contagiosos. Dentre eles destacava-se evidentemente a hanseníase, mas com ela confundiam-se a psoríase, a escabiose e oergotismo. Na Idade Média, quando um homem era declarado “leproso” tinha apenas um destino:banimento da sociedade e do convívio de seus familiares pelo resto da vida. Para tal fim asociedade armava-se de certas cautelas, sendo uma delas o estabelecimento de uma comissãoresponsável pelo reconhecimento do mal. Nessa comissão estavam obrigatoriamenteincluídos um médico e um hanseniano. Muitos casos foram vítimas de diagnósticos mal formulados. Os casos de ergotismo, porexemplo, apresentavam mutilações seriíssimas nos dedos devido à gangrena. Era um malcausado pelo uso continuado de farinha de centeio com fungos venenosos e que em suaforma gangrenosa levava a amputações muito sérias dos dedos. Se o resultado do exame do doente suspeito de “lepra” fosse positivo, rezava-se umamissa de Réquiem sobre o doente, o que correspondia a um sepultamento simbólico. Eraentão conduzido para fora da cidade e no caminho o sacerdote, acompanhado de um acólitoque tocava uma matraca, dava orientações básicas ao doente, repassando as proibições queiriam marcar sua vida futura. Era-lhe proibido: - entrar em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar público; - lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte (devia saciar sua sede usando umacaneca de sua propriedade exclusiva); - sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e sem calçados; - tocar em objetos que desejava comprar (devia apontar com um bastão); - tocar os beirais das pontes ou batentes de portas (devia ter as mãos cobertas); - tocar ou ter relações sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria esposa; - comer ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa.

Com alguma sorte e com o apoio de sua família poderia conseguir um lugar num“lazareto” ou “leprosário”. Caso contrário passaria a vida toda espalhando o terror dadoença, mendigando por comida e por bebida. Muitas vezes identificando-se por roucosgritos de “impuro, impuro” o temido “leproso” era também reconhecido por sinetas,matracas ou pequenas cornetas. A esmola a eles destinada era colocada às carreiras no meiodas vielas ou dos campos. Foram por séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas que eramobrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar chapéus ou capuzes e às vezes faixasvermelhas. Épocas houve na Europa durante as quais eles eram obrigados a levar ao peitoum tecido vermelho com desenhos característicos. Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de 2.000 “lazaretos” que sedestinavam apenas à segregação e nunca ao tratamento dos doentes. Na Europa inteira,

devido à extensão do problema, havia aproximadamente 19.000 desses abrigos, todosseparando duramente seus doentes da sociedade e deixando que morressem sem qualquerassistência. - *Ricardo Coração-de-Leão e sua vingança* Ricardo Coração-de-Leão (1157 a 1199), rei da Inglaterra, muito envolvido com asCruzadas e com diversos feitos heróicos que se tornaram lendários, tem sido citado comopersonagem quase que de ficção, tal a quantidade de lendas e de histórias a seu respeito. Um dos traços característicos desse rei famoso dos ingleses era sua crueldade. Ricardo eravalente, destemido, aventureiro, mas muito cruel e vingativo. Quando em guerra com a França, que procurava a todo custo desalojar os ingleses daNormandia, Ricardo Coração-de-Leão chegou a praticar um dia uma barbaridadeinacreditável. Devido ao extermínio de um grupo de seus melhores homens pelos franceses, Ricardomandou que trezentos cavaleiros franceses fossem atirados ao rio Sena com suas armaduras,para ali morrerem afogados. Ainda não satisfeito, mandou vazar os olhos de 15 outroscavaleiros que foram mandados de volta, ao encontro do rei Felipe Augusto (1165 a 1223),guiados por um cujo olho direito havia sido poupado, imitando de certa maneira a brutalatitude de Basílio II, imperador bizantino. Segundo historiadores como Finlay, Felipe Augusto não se deixou ficar atrás: tratouquinze cavaleiros ingleses aprisionados da mesma forma. Finlay comenta em sua obra que vazar os olhos de soldados ou de pessoas culpadas, emgeral, foi um costume comum em toda a Europa, por diversos séculos. Era visto, portanto,sem exagerado horror, como o fazemos hoje. Na Inglaterra foi apenas em 1403, durante oreinado de Henrique IV, que o Parlamento inglês aprovou um ato que considerava comocrime as penas de cortar a língua ou de vazar os olhos das pessoas(Apud Finlay).

- *Hospitais proliferam no Oriente Próximo: século XIII* Prosseguindo seus esforços para dar assistência aos doentes mais necessitados, e paramelhor desenvolver os conhecimentos médicos de então, o governante turco Seljuk e seussucessores (turcos otomanos) criaram diversos hospitais e escolas de medicina. Segundo o Professor Dr. A.Süheyl Unver, diretor do Instituto de História da Medicina daUniversidade de Istambul, os mais antigos desses estabelecimentos de ensino teórico eprático foram os de Kayseri (1206) e de Amasya (1205). Ainda dentro do século XIII surgiram os hospitais-escola de Sivas, no ano de 1214,Konya, em 1219, Çankiri, em 1235 e outros mais. É interessante notar que os hospitaisestabelecidos em Kayseri e Çankiri colocaram, à sua entrada, a figura de uma serpente. Estesímbolo, apesar de grego em sua origem, graças aos templos de Asclépios, chegou aos turcospor influência dos egípcios (Apud Unver).

- *Os progressos da medicina até o século XIV* Por volta de 1250, a Europa Ocidental e suas novas organizações ou associações de ensinoprogramado (universidades) começaram a absorver os conhecimentos e as experiênciasmédicas acumulados pelos árabes, quase todos extraídos da cultura grega clássica. Na Itáliae na França a cirurgia começou a dar passos interessantes, especialmente com o concurso deGuy de Chauliac (1300 a 1368) que chegou a fazer operações de catarata com sucesso. Aanatomia teve também seus progressos marcantes com o médico italiano Mondino De Luzzi

(1270 a 1326). A dissecação de cadáveres, deixada de lado por aproximadamente dezséculos, foi retomada, uma vez que os médicos tinham apenas noções de anatomia retiradasdas obras de Galeno. Mondino De Luzzi escreveu uma obra intitulada “Anathomia” no anode 1316, e essa obra tornou-se padrão para ensino por mais de duzentos anos na Europa. Evidentemente esses progressos todos beneficiaram toda a humanidade, e dentro dela, deum modo especial pessoas que sofriam as conseqüências das doenças crônicas ou queprovocavam limitações na plena utilização do corpo. Um dos resultados práticos da formação de médicos em universidades foi uma pequenaampliação do número de hospitais mais dedicados a tratamento do que a abrigo, como era dese esperar. De acordo com o cronista italiano Giovani Villani, só na cidade de Florençahavia, pelo ano de 1300, trinta hospitais gerais e uma verdadeira rede de assistência adoentes e deficientes pobres, com capacidade para 1.000 vagas.

- *Epidemias na Idade Média e suas conseqüências: "Castigo de Deus"?* É preciso aqui relembrar que dos anos 500 até o século XVI - portanto, durante toda aIdade Média praticamente - o mundo europeu viu decrescer muito os cuidados básicos com asaúde e com a higiene na imensa maioria das cidades, um pouco em decorrência do seucontínuo crescimento. Os aglomerados urbanos menores também não tinham qualquer infra-estrutura ou recurso voltado para a saúde de sua população. E por muitos séculos, oshabitantes das cidades medievais viveram sob o permanente receio das epidemias ou dasdoenças mais sérias. Devido à ignorância imperante, as epidemias, as doenças mais graves, as incapacidadesfísicas, os sérios problemas mentais e as malformações congênitas eram considerados comoverdadeiros sinais da ira celeste e taxados como “castigos de Deus”. E, como não podiadeixar de acontecer, e como nos relatam todos os historiadores, ocorreram diversasepidemias de gravíssimas conseqüências, grandes incidências de males não controladospelos médicos que nem chegavam a atinar com suas causas ou não dispunham de meios paradebelá-los com sucesso. Hanseníase, peste bubônica, difteria, influenza e outros malesdevastaram diversas vezes a Europa durante os vários séculos da Idade Média e deixaramum significativo saldo de pessoas que sobreviveram. Muitas delas conseguiram salvar-se,mas com sérias seqüelas, para ver o resto de seus dias passar em situações de extremaprivação e quase que absoluta marginalidade.

- *A medicina qualificada e a falta de assistência geral* Durante todo o período medieval, com exceções não levantadas mas que certamentedevem ter ocorrido, o trabalho do médico mais qualificado, isto é, daquele formado pelaprática ao lado de outros médicos ou daquele que depois do século XI começou a serformado pelas universidades, na grande maioria dos casos continuava não sendodesenvolvido dentro dos hospitais. A proliferação dessas casas especialmente destinadas arecolher os doentes provenientes de famílias sem recursos, muitos deles portadores de malesincuráveis ou defeitos físicos bastante limitadores, foi um fato comprovado e verificado emtodos os países europeus. Construções especiais eram raras e dentre elas cumpre destacar oHospital de São Bartolomeu, em Londres, que começou a funcionar no ano de 1123. E para nós, mesmo tão distanciados da Idade Média, não é nada difícil imaginar que essesdoentes não tinham a mínima condição de pagar, quer pelos serviços do médico, quer pelasmezinhas ou pelos curativos feitos em outros ambientes. Assim, hospitais continuariam porséculos sendo verdadeiros depósitos de pessoas pobres, à beira da morte, ou vitimadas por

males crônicos e defeitos físicos graves que lá ficavam até morrer, sem família e semamigos. Os médicos continuariam também por séculos como profissionais muito caros e muitoraros em muitas partes da Europa para a população mais pobre e desprovida de recursosmínimos para encontrar soluções aos problemas decorrentes de enfermidades ou deacidentes a não ser aquelas advindas da medicina caseira ou dos charlatães.

- *As soluções populares e as crendices* Como em épocas mais antigas da História da Humanidade, as camadas mais pobres dapopulação tinham suas soluções para doenças. Muitas delas eram multi-seculares,enriquecidas com a experiência de certos núcleos populacionais mais adiantados, masempobrecidas pela falta de registro de seus segredos. Benzeduras de um lado, exorcismo eritos misteriosos de outro, entremeados pelo uso de medicamentos extraídos de produtosnaturais, tudo isso fazia parte da medicina popular. A crença generalizada nas maldições enos feitiços, na existência das doenças e das deformidades físicas ou mentais como indíciosda ira de Deus, ou como resultado da atuação de maus espíritos e do próprio demônio, sob ocomando direto de bruxas, era às vezes levada a extremos. Acreditava-se, por exemplo, quea epilepsia era conseqüência de uma possessão instantânea por um espírito maligno e oremédio era o exorcismo por ritual ou pela tortura.

- *O destino das pessoas deficientes na Idade Média* Durante toda a Idade Média e principalmente durante seus séculos mais obscuros criançasque nasciam com seus membros disformes tinham pouca chance de sobreviver, devido àscrenças e às histórias fantásticas transmitidas pelas mulheres que praticavam a função decuriosas ou aparadeiras. Essas crianças cresciam separadas das demais e eramridicularizadas ou desprezadas. Os exemplos de anões e de corcundas inseridos na sociedademedieval com certo destaque são significativos. As superstições da época medieval levavam a atribuir a essas pessoas poderes especiaispara uma espécie de contra-ataque aos efeitos deletérios de feitiços ou de maldições, domau-olhado e mesmo das pragas e das epidemias. Com o tempo, essas pessoas disformesforam sendo objeto da diversão das grandes moradas e dos castelos dos nobres senhoresfeudais e seus vassalos, e mesmo das cortes de muitos reis, devido à sua aparência grotesca,aos seus trejeitos e também a uma propalada sabedoria de que não dispunham. Esses tipos depessoas deficientes - corcundas e anões – começaram aos poucos a ter livre acesso a todos osambientes - traziam sorte e afastavam os demônios - podendo alguns inclusive participar detodas as conversas e falar o que bem entendessem, pois eram supostamente tolos, divertidose inconseqüentes. Os famosos indivíduos deformados e por vezes repelentes, segundo os historiadores,extravagantemente vestidos, temidos por serem manipuladores de situações embaraçosas econhecedores de segredos delicados de alcova, chantagistas e confidentes de seus senhores,na maioria dos casos acabaram não passando de pessoas simplórias. E a História do mundo conta-nos casos em que esses "bobos da corte" cumpriam ordenscriminosas de seus senhores, aos quais deviam servil obediência. O bufão corcunda hinduconhecido por "Vidusala" (significa atrevido) é certamente um dos primeiros a aparecer comdestaque na literatura, pois logo nos primeiros séculos da Era Cristã ele aparece em trechosde dramas e mesmo em eventos da antiga sociedade da Índia. - *O significado das deficiências da Idade Média*

Conforme verificamos anteriormente, por falta de conhecimentos mais profundos quantoàs doenças e suas causas, falta de educação generalizada e o receio do desconhecido e dosobrenatural,ocorria na Idade Média uma verdadeira necessidade no seio do povo e mesmodas classes mais abastadas, de dar aos males deformantes uma conotação diferente emisteriosa, muito mais diabólica e vexatória do que em qualquer outro sentido mais positivo. O significado religioso ou sobrenatural das deformidades mais marcantes, durante essaépoca, pode ser perfeitamente notado em alguns quadros pintados durante o seu transcorrer.Neles, tanto os espíritos malignos da hierarquia imaginária de Satã quanto os seres lendáriose de comportamento malévolo e desumano são invariavelmente representados por seres comos rostos monstruosos, os pés deformados, as cabeças enormes ou muito pequenas, asorelhas desproporcionais, o nariz aquilino muito comprido, corcundas, membros retorcidos...E apesar dos esforços eventuais dos grupos religiosos - e mesmo da própria doutrina cristã -o povo em geral acreditava que um corpo deformado somente poderia abrigar uma mentetambém deformada. Caso contrário certamente não teria havido necessidade das autoridadesda Igreja Católica, por meio dos preceitos canônicos, justificar a não aceitação de pessoascom deficiências ao sacerdócio com estas palavras que bem mostram a atitude imperante, ouseja, o reverso da medalha: ... "essas restrições ao sacerdócio davam-se para benefício daIgreja e não por considerar as pessoas como manchadas ou indignas" (Apud Thomassin). (*Na verdade algumas dessas situações não são de todo diferentes hoje. Se nós observarmos,por exemplo, as ilustrações em histórias de quadrinhos e sem dúvida alguma muitos dosdesenhos animados apresentados em nossa televisão para entretenimento de nossos filhosalém de peças teatrais e filmes, notaremos que algo de medieval e, no fundo, de muito cruelexiste em nossa sociedade pretensamente cristã e humanista. Bandidos, bruxas, genteperversa ou mesmo pervertida, por vezes são apresentados com seus corpos ou alguns deseus membros deformados. Qual o motivo? Está ainda subjacente a crença de que um corpodefeituoso apenas pode abrigar um espírito malévolo? Ou será para ir condicionando nossascrianças e nossa sociedade ao repúdio do mal, ligando o às idéias de deformidade? ...)

Dentro desse ambiente e devido ao fato de não poder contar com meios para garantir suasobrevivência de maneira digna, restou ao portador de defeitos físicos ou sensoriais aposição de elemento marginalizado e o recurso à esmola diária, sistemática, para com issoganhar seu sustento. Pelas estradas e caminhos mais importantes da Europa Medieval, poronde passavam de quando em quando nobres cortejos e os bem ajaezados cavaleiros ecruzados, sujos e por vezes asquerosos seres humanos, com seus membros deformados ousuas feridas à mostra, defendiam-se como podiam para garantir seu infeliz sustento.Chegaram a organizar-se em verdadeiras redes para angariação de esmolas e de donativos. De seu lado, a população ligada aos vassalos e seus senhores, aos reis e à nobreza toda,bem como os comerciantes e homens enriquecidos pela sorte ou pela aventura - e mesmo opovo mais simples - todos temerosos dos invisíveis e fantasiosos poderes malignos que essesseres deformados poderiam ter, faziam de tudo para os afastar, mantendo-os longe de si emtodas as ocasiões e por vezes até pagando por isso com comida ou com esmolas.

- *Os privilégios para cegos durante a Idade Média* Sob diversos aspectos a situação era bem diferente para os cegos, principalmente paraaqueles que viviam na França durante o século XIII, por exemplo. Já ao final do século XI einício do século XII, em Rouen, em Chálons e perto da cidade de Orléans, havia abrigos queaceitavam os cegos mais pobres. Também na cidade de Chartres havia um recurso para

atendimento aos cegos. Era uma verdadeira comunidade criada por Renaud Barroult econhecida como "Les Six-Vingts". Sob o reinado de Luís IX (1214 a 1270), conhecido como São Luís de França, foi criadoum novo abrigo chamado "Hospice des Quinze-Vingts", por iniciativa direta do rei no anode 1260. Sua criação chegou a beneficiar fortemente uma confraria pobre de cegos cujosmembros, à falta de outro local, reuniam-se no Bosque de Garenne, em Paris. Quando olocal foi descoberto pela coroa e pelo povo em geral, ficou conhecido pelo apelido de"Champovri", de uma corruptela para as palavras "Champ des Pauvres" (Campo dos pobres). Qual teria sido o interesse direto de Luís IX para dedicar tempo e dinheiro na criação deuma organização dispendiosa só para cegos? Segundo consta, quando Luís IX foiaprisionado pelos sarracenos durante sua primeira Cruzada, trezentos de seus soldadostiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por ordem direta do sultão, à base de vinte pordia durante quinze dias, enquanto aguardava os resultados da demorada negociação parapagamento do pesado resgate exigido para libertação do rei da França. Quando de sua voltaSão Luís dedicou-se com seriedade e muito empenho ao problema do abrigo dos cegos emandou construir a famosa entidade para dar assistência de morada e alimentação pelosmenos a 300 cegos. Entretanto, o incidente alegado para justificar o interesse de Luís IX nos cegos não éconfirmado por vários de seus biógrafos. O rei foi muito atacado ainda durante sua vida por ter dedicado tanto esforço oficial aoscegos. Rutebeuf, trovador e satirista francês do século XIII, cantava ironicamente pelas ruasde Paris: "Eu não sei porque o rei juntou trezentos cegos em uma casa, só para eles saírem àsruas de Paris, o dia inteiro, pedindo esmolas incessantemente. Eles dão encontrões uns comos outros, machucando-se, pois, não há nenhum deles que os lidere" (Apud French). Entre os reinados de Luiz IX e Luiz XVI os cegos emanciparam-se e receberamprivilégios tanto de reis quanto de bispos da Igreja Católica, chegando mesmo a acumularriquezas enormes e a vestir-se de veludo, um dos tecidos mais dispendiosos da época. A Igreja ajudou significativamente dando-lhes permissão expressa e exclusiva paraesmolar nas escadarias e nas portas das igrejas. Tinham também autorização eventual paravender grinaldas e flores dentro de suas naves. Não é difícil imaginar que idéias de emancipação dos cegos nesses 500 anos da HistóriaFrancesa fossem tidas como uma espécie de questionamento da autoridade da poderosaIgreja Cristã, ou talvez um sacrilégio. Os primeiros bispos que deram as famosasautorizações exclusivas tanto para mendigar nas portas das igrejas quanto para comercializarflores foram o de Paris e o de Chartres. Não foram autorizações individuais, mas dirigidas àscorporações dos cegos. A organização dos cegos em corporações, confrarias ou associações não ocorria apenas naFrança. No ano de 1337 surgia em Pádua, na Itália, a Congregação de Santa Maria dosCegos. Uniam-se esses cegos sob a liderança de um mestre, observando regras próprias emuito severas, por eles estabelecidas, como, por exemplo, a proibição de dizer palavrões eblasfêmias...

- *Dois heróis históricos com deficiência nos séculos XIII e XIV* Podemos destacar duas personagens históricas, uma na Europa e a outra África, e ambascom deficiências físicas sérias. São elas: Sundiata, um líder negro Mandingo que, após ter conquistado Gana, no Oeste Africano,estabeleceu as bases de um novo e mais poderoso império Mandingo, ou seja, o chamado"Império Mali", em pleno século XIII. Sundiata era um homem com ambas as pernas

paralisadas, segundo depoimento de N'Kanza, alta funcionária da Organização das NaçõesUnidas e ex-diretora do Centro das Nações Unidas para Assuntos Humanitários e Sociais deViena. João de Luxemburgo, também conhecido como João, o Cego, nascido em 1296, era rei daBoêmia, filho de Henrique VII. João de Luxemburgo ficou cego em 1340, com 44 anos deidade, devido a um mal não identificado pelos médicos de sua corte. Mesmo cego, sempreimbuído de um vivo espírito aventuresco que o caracterizou fortemente até sua morte,continuou a participar de diversas campanhas militares, em muitas partes da Europa. Foimorto em plena batalha, em Crécy, no ano de 1346, lutando em prol de Felipe, rei da França.

- *Os hospitais face às pessoas deficientes nos séculos XIV e XV* Apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade das situações encontradiças nosdiversos países europeus que se formavam com o gradativo esfacelamento do sistema feudal,o atendimento médico de um modo geral progredia - o que seguramente muito significoupara pessoas que sofriam as conseqüências de males limitantes.Dentre providências marcantes no sentido de ampliar o atendimento nos hospitais existentespodemos citar aquela tomada por Carlos VI, da França (1368 a 1422). Assinou uma ordemreal estabelecendo uma coleta obrigatória em beneficio dos hospitais, por ocasião doscasamentos. Essa coleta ajudou efetivamente na redução dos custos tanto dos hospitaisquanto dos remédios, e na construção de alguns novos hospitais para dar atendimento eabrigo a um maior número de doentes, de pobres sem família e sem condições desobrevivência e também de pessoas com deficiências permanentes. Uma outra iniciativa interessante ocorreu na Espanha. A rainha Isabella, a Católica (1451a 1504), mandou montar verdadeiros hospitais em localidades próximas às frentes decombate. Eram hospitais transitórios e foram quase que institucionalizados desde então, poisforam considerados como muito úteis para o atendimento imediato e a conseqüente salvaçãode vidas em grave perigo. Durante o cerco de Málaga - talvez a primeira experiência desseshospitais de campanha - receberam o nome de "ambulâncias".

Uma observação final quanto aos hospitais existentes na Idade Média: Segundo diversosautores, eles existiam mais para o cuidado do que para a cura das pessoas; menos para alíviodo corpo e de suas dores do que para assistência da alma e sua preparação, consideradaindispensável pelas religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura. Na verdade, não havia na quase totalidade dos hospitais medievais qualquer conhecimentocientífico ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como o amor ao próximo e a féna outra vida, na vida após a morte. Parece, todavia, que médicos treinados em universidades, principalmente as inglesas,eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da época do que se poderia supor.Dessa forma podemos também imaginar que, apesar dos relatos transmitidos peloshistoriadores menos avisados, todos os pacientes internados em hospitais europeus de certaqualidade, seja por doença, seja por pobreza atroz, seja por deficiências muito graves,recebiam mais cuidado profissional do que o imaginado. De outra parte pode-se também afirmar que ao final da Idade Média as sociedadesexistentes na Europa deram seus primeiros passos no sentido do reconhecimento de suaresponsabilidade face aos pobres em geral. Inseridos no contexto estavam todos aqueles queeram, além de pobres, deficientes e impossibilitados de se sustentar. No final do século XV os problemas específicos das pessoas deficientes ainda não eramnem entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que faziam essas pessoas parte de

um grupo bem maior e de uma problemática mais séria ainda, ou seja, aquela representadapelos pobres, pelos enfermos, pelos mendigos. Ela marcou e chegou mesmo a caracterizar osambientes das cidades e dos campos europeus do final da Idade Média. Na penosa história do homem portador de deficiência começava a findar uma longa emuito obscura etapa. Iniciava a humanidade mais esclarecida os tempos conhecidos como"Renascimento" - época dos primeiros direitos dos homens postos à margem da sociedade,dos passos decisivos da medicina na área de cirurgia ortopédica e outras, do estabelecimentode uma filosofia humanista e mais voltada para o homem, e também da sedimentação deatendimento mais científico ao ser humano em geral.

CAPÍTULO QUARTO A PESSOA DEFICIENTE DO RENASCIMENTO ATÉ O SÉCULO XIX

Todas as pessoas que estudaram um pouco de História Universal sabem que entre osséculos XV e XVII ocorreu no mundo europeu cristão uma paulatina e inquestionávelmudança, com o surgimento do chamado "espírito científico", e com o parcialdesmoronamento das concepções muito tradicionais de "natureza", muito afastadas que eramda realidade. O que sucedia era que o homem estava vivendo num mundo difícil e repleto de problemasno qual os homens ligados ao poder espiritual taxavam muito do que era "natural" erelacionado ao dia-a-dia - ou seja, bens e/ou comportamentos - como desprezível, miserável,pecaminoso face ao destino imortal do homem, sua vida eterna e as idéias de paraíso,purgatório e inferno. No entanto o homem, no fundo de seu coração, não podia negar queachava bons, bonitos e agradáveis essas coisas e esses comportamentos considerados comoproibidos e pecaminosos. Evidentemente que essa ambivalência é multissecular, e dela alguns homens da IdadeMédia procuraram escapar sem ferir seus princípios e seu modo de viver cristãos das maisvariadas maneiras. Segundo sabemos, alguns utilizaram-se da pintura, outros da poesia ou do canto, enquantouns poucos procuraram derivativos na arquitetura. o fato é que o aceno do paraíso comorecompensa por uma vida mortificada, sacrificada e miserável, e a contrapartida das ameaçasdo inferno e do castigo eterno, continuavam a deixar na alma do homem medieval grandes edoloridas dúvidas. O mundo europeu foi sentindo de várias maneiras que era necessário alterar essa situaçãoe dar um corajoso mergulho na direção da luz, da cultura, das coisas novas e desconhecidase - por que não? - também das coisas tidas como proibidas. Há um versinho popular do século XII que expressa muito bem esse forte conflito vividopela humanidade e que diz: "Vita mundi, res morbosa, Magis fragilis quam rosa; Cum sis tota lacrimosa, Cur est mihi gratiosa? . . . " (Apud Taylor)

Ou seja: Vida terrena, coisa doentia, mais frágil que a rosa; por que me parece tãograciosa, se és toda lacrimosa? Conforme a incômoda situação do homem medieval ia sendo definida, mesmo que pormeio de modinhas ou versinhos populares de um latim também popular um tantouniversalizado, surgiam contos em verso ou em linguagem corrente, divulgados cada vezmais, não graças aos arautos que sempre se limitaram a ler aos berros as ordens régias ou asimposições dos senhores e dos governantes, mas graças à invenção da imprensa, porGutenberg. Pensadores começaram a ser mais popularizados e a se impor. A cultura, tão confinadaque era e tão restrita a certas áreas especiais do mundo feudal, foi sendo espalhada por toda aEuropa. E com ela chegou também a sede pela sabedoria dos clássicos gregos e latinos,muito famosos e praticamente esquecidos pelo povo, e que acabaram se transformando numaespécie de paixão dos estudiosos.

Além disso tudo, outras alterações caminhavam celeremente pela Europa com adescoberta de novas terras no final do século XV e início do século XVI; com a contínuachegada de sábios de Constantinopla, que não suportavam a pressão dos turcos invasores;com a proteção que reis e nobres davam aos artistas da época. Esses fatos de inegável valorforam - somados a muitos outros de menor e menos significativo vulto - os verdadeirosincentivadores da nova onda intelectual e cultural que, iniciada na Itália, passou logo para aFrança, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Holanda e alguns outros países. Nomes famosos que antecederam imediatamente esse período foram os de Dante,Bocaccio, Giotto e Petrarca. Durante essa importante onda de mudanças e de progressos,depois universalmente aceita e batizada como "Renascença", nomes destacados e muitorepresentativos foram os de Donatello, Ariosto, Machiavel, Leonardo da Vinci,Michelangelo, Raffaelo, Calvino, Montaigne, Erasmo, Cervantes, Camões e muitos outrosescultores, escritores, pintores, arquitetos, filósofos humanistas e homens voltados para areligião. Nesse movimento novo e muito renovador, o reconhecimento do valor do homem era anota dominante - era o Humanismo que surgia e se fortificava. Por meio dele, pelo menos nocampo das idéias, o homem se sentiria mais livre, menos oprimido, mais valorizado, nãomais um mero escravo dos poderes da Terra, nem mesmo preso à crença de que tinha quefazer o bem para merecer o céu ou simplesmente para escapar às torturas do inferno. Revolucionário sob muitos aspectos, esse novo modo de ser alteraria a vida do homemmenos privilegiado também, ou seja, a imensa legião dos pobres, dos enfermos, enfim, dosmarginalizados. E dentre eles, sempre e sem sombra de dúvidas, os portadores de problemasfísicos, sensoriais ou mentais. A Renascença surgia no mundo para tirar o homem de uma era de trevas, ignorância esuperstição, que foram os séculos da Idade Média.

- *O problema dos hospitais e abrigos ao início da Renascença* Dentro desse contexto, ao analisarmos o desenvolvimento dos hospitais e de muitosabrigos destinados a enfermos pobres ao se encerrar a Idade Média, verificamos que oscuidados prestados em muitos casos mostravam também sinais de um indisfarçável e novomodo de ver e de considerar o ser humano atingido por algum mal e não apenas osresultados de novas técnicas médicas em experimentação ou em vias de aperfeiçoamento. Ocuidado para com as pessoas deficientes como um grupo especial e sempre marginalizado,diferente da significativa massa atingida e marcada pela pobreza, começava a se definir empontos isolados do mundo, surgindo por meio de providências bastante práticas. Fato que não pode ser desmentido é que, apesar da baixa qualidade dos serviços, nosúltimos decênios da Idade Média a Europa estava praticamente coberta por uma verdadeirarede - desarticulada, é verdade - de hospitais, casas de abrigo a doentes, enfermarias emconventos e mosteiros e também de casas montadas para abrigar pessoas necessitadas detudo para poder sobreviver. Corresponde a uma verdade histórica e não há exagero algumem assinalar o desenvolvimento dos hospitais e a gradativa humanização das atenções paracom os doentes ou pessoas deficientes, como um dos marcantes feitos do final da IdadeMédia. Tanto a provisão de serviços individualizados quanto a indispensável garantia emanutenção permanente de serviços de saúde para as cidades, na Europa, durante os séculosXVI e XVII, firmaram-se e permaneceram como uma responsabilidade de cada comunidadee não do Estado como um todo. Os poderes comunais, as paróquias, os mosteiros e abadiasque já acumulavam experiências das mais variadas naturezas, procuravam cuidar dos

doentes agudos e crônicos, prestando-lhes serviços de ordem cada vez mais eficiente. Ocuidado médico começara a ser prestado através desses hospitais, em geral por meio demédicos contratados ou pagos pelo poder público local. No entanto, quanto aos homens demaior posse e suas respectivas famílias, continuou a prevalecer o costume de serem tratadosem suas próprias casas, e nunca nos hospitais. No século XVI foram dados alguns passos decisivos no atendimento de pessoasportadoras de deficiências auditivas que até então eram consideradas como ineducáveis,quando não possuídas por maus espíritos.

- *Os problemas dos deficientes auditivos no século XVI* Com o aparecimento e fortalecimento de novas formas de ver o homem, que vinham nopróprio bojo do movimento renascentista, muitos esforços começaram a ser desenvolvidospara compreender os problemas vividos por seres humanos deixados à margem da sociedadepor milênios. Dentre esses esforços e movimentos destaquemos os relacionados aosdeficientes da audição e da palavra, ou seja, os surdos-mudos. Na verdade a luta chamara a atenção já no final do século XV, com a publicação da obra"De Inventione Dialectica", de Rudolph Bauer (1433 a 1485). Nessa obra o autor faz mençãoa um surdo-mudo que se comunicava por escrito. No entanto, foi apenas um século após queJerônimo Cardan (1501 a 1576), médico, matemático, astrólogo e, segundo algunscontemporâneos, jogador e ardiloso egomaníaco de origem italiana surgiu no panorama,questionando um princípio defendido por Aristóteles (o pensamento é impossível sem apalavra). Cardan inventou um código para ensinar os surdos a ler e escrever, à semelhança dofuturo código de escrita e leitura Braille para os cegos que surgiria apenas no século XIX.Foi Cardan quem influenciou as idéias do monge beneditino espanhol Pedro Ponce de Léon(1520 a 1584), muito dedicado à educação dos deficientes auditivos e que nunca escreveusobre seu método de trabalho. Ainda no século XVI o médico francês Laurent Joubert (1529 a 1582) inseriu todo umcapítulo sobre o ensino de surdos-mudos em sua obra "Erros Populares relativos à Medicinae ao Regime de Saúde". Defendia um outro princípio de Aristóteles (o homem é um animalsocial com habilidade para se comunicar com os outros homens). Desse ponto ele partiu paradesenvolver todos os postulados que defendia: a habilidade existia em toda e qualquercriança, mesmo nas nascidas surdas ou que mais tarde viriam se tornar surdas. O mestredessas crianças deveria agir com paciência e cuidado, pois da mesma forma como umacriança aprende uma língua estrangeira poderá aprender a se comunicar em seu próprioambiente se ela for surda. Devia o mestre começar por palavras simples e pequenas,reforçando sempre as expressões faciais. E acrescentava sua enfática opinião: a criança comdeficiência auditiva aprenderia a falar mesmo sem se ouvir, desde que ensinada compaciência (Apud Mullett).

- *A pintura renascentista e as pessoas com deficiências* Muitos pintores do conhecido Período Renascentista retrataram em suas obras cenas emque aparecem pessoas portadoras dos mais variados males incapacitantes. Alguns dosquadros mostram-nos com clareza a situação de miserabilidade em que viviam; outrosressaltam cenas que deixam patente a inadequacidade de atitudes; e vários outros são retratosencomendados. Alguns exemplos serão aqui citados para propiciar ao leitor mais curioso algumasindicações caso deseje aprofundar-se no assunto.

a) Anões retratados individualmente ou inseridos em grupos: "Retrato da família daMarqueza de Mãtua", de Mantegna (1431 a 1506); "O Anão de Felipe IV", "Retrato de DomAntônio, o Inglês" e "Menino de Vallecas", de Velazques (1599 a 1660); "Conde TomásAlveo e sua mulher", de Rubens (1577 a 1640); "O Anão de Carlos V" e "Retrato do BufãoPéjéron", de Moro (1512 a 1578).

b) Anões inseridos em cenas variadas: "Os Anões",de Johann Van Kessel (1626 a 1679);"Cilene como a Bacante", de Rubens (1577 a 1640); "A Ceia na Casa dos Fariseus", deMoretto da Brescia (1490 a 1555); "Núpcias de Caná", de Paulo Veronese (1528 a 1588);"Estudo sobre Anões", de Tiepolo ( 1693 a 1770).

c) Pessoas com deficiências físicas ou sensoriais: No tocante a deficiências físicas, um dospintores mais célebres da Renascença, Rafaello (1483 a 1520), desenhou uma interessantegravura que se encontra no Museu de South Kensington. Ela nos mostra um homemparalítico na porta de um templo, perto de São Pedro e de São João em seu trabalho deassistência a enfermos. Fra Angelico (1387 a 1455), do Período Pré-Renascentista, sempre devotado à arte sacra,é autor de um quadro muito famoso que se encontra na Capela de Nicolau V, no Vaticano,intitulado "São Lourenço distribui bens aos pobres". Nele aparecem diversas pessoas comdeficiências: um amputado bilateral das pernas usando apoios para as mãos e um cegousando um longo bastão. Ambos levam grandes sacolas destinadas às esmolas angariadas,como era costumeiro. Outros quadros relevantes que conhecemos e que podem ser melhor estudados são osseguintes: "Parábola dos Cegos", que retrata uma cena em que vários cegos Vão caindo numa valeta.É de autoria de Pieter Bruegel (1530 a 1569). "Combate entre o Carnaval e a Quaresma" do mesmo pintor. Nele são retratados diversasfiguras com deficiências físicas, inclusive um amputado da perna direita com guizos naperna esquerda. "O Tocador de Alaúde", de Georges La Tour (1593 a 1652), no qual o pintor retrata umtocador de alaúde cego. "A Briga dos Mendigos", do mesmo pintor e no qual podemos ver o mesmo tocador dealaúde do quadro anterior numa violenta briga com outros mendigos. "São Pedro cura os enfermos com sua sombra", de autoria de Masaccio (1401 a 1428),também do período que antecedeu a Renascença nas artes. O pintor retrata em sua obra duaspessoas deficientes e seus aparelhos para locomoção ao lado esquerdo do quadro. "O Pé Aleijado", quadro de Ribera, pintado em 1642 e exposto no Museu do Louvre, emParis. Mostra um sorridente jovem com seu pé direito e sua mão direita com evidentesdeformações. "Os Cegos de Jericó", de autoria de Nicolas Poussin e pintado no ano de 1651, no qualaparecem dois cegos sendo curados por Jesus. "A Fonte da Juventude", pintado por Lucas Cranach, o Velho, em 1546, mostra-nos comclareza alguns meios de transporte de pessoas deficientes.

- *Ambroise Paré: os primeiros passos da futura "ortopedia"* Foi nos meados do século XVI que a luta pelo estabelecimento de uma especialidademédica que tratava de ossos se iniciou. Nessa luta Ambroise Paré (1510 a 1590), dono denotável experiência, teve um papel relevante.

Paré começou a preparar-se para a medicina com um barbeiro de Angers e continuou emParis com um barbeiro-cirurgião, homem evidentemente mais experimentado. Logo quesentiu ter adquirido experiência suficiente procurou emprego no hospital de atendimentogeral da população parisiense, ou seja, o Hôtel Dieu e lá permaneceu trabalhando comoauxiliar durante três anos. Engajado como cirurgião no exército doMarechal Montejan, introduziu muitas inovações, das quais duas são mais relevantes notratamento de ferimentos por projéteis que no século XVI provocavam muitas mortes.Quando não ocorria o óbito ocorria em geral um acervo de seqüelas que podiam levar adeficiências físicas. Esses tipos de ferimentos eram tidos como "queimaduras envenenadas". O tratamento original consistia na aplicação de azeite fervendo para sua desinfecção ecicatrização. Caso ocorresse a necessidade de amputação do membro atingido, oestancamento do sangue demandava o uso de ferro em brasa. Por ver-se em certa ocasião em dificuldades por não haver "azeite fervendo" à suadisposição, Paré teve oportunidade de observar seus pacientes passando muito melhor.Experimentou a ligação das artérias e vasos, prática que havia sido abandonada e quase queesquecida pelos poucos médicos que faziam cirurgia naquele século. Nas muitas amputaçõesde membros que fez, Paré teve oportunidade de tentar também o uso de retalhos da pele dodoente, junto ao coto, para recobrir a superfície da amputação. Sempre lutando pela melhoria das condições de seus pacientes com seqüelas de problemasortopédicos, de amputações ou mesmo de males neurológicos, Ambroise Paré chegou apropor o uso de coletes reforçados com tiras de aço para problemas ocasionados pelosdesvios da coluna vertebral, botas especiais para pés tortos, dentre vários outros aparelhos.Acresce também lembrar que Paré foi o cirurgião que lançou a expressão "Bec de Lièvre"(entre nós "lábio leporino") e chegou a preparar obturações palatais para perfuraçõestraumáticas, de ordem sifilítica ou congênita. Usava igualmente obturadores para defeitoscausados pelas armas de fogo.

- *Antonio de Cabezón: compositor cego* Um dos maiores e mais conceituados compositores de música para órgão da Espanha,Cabezón nasceu em Castrillo de Matajudios no dia 30 de março de 1500 e morreu em Madrino ano de 1566. Cego desde a primeira infância, conseguiu a custo superar todas asdificuldades que se lhe interpunham e em 1521 conseguiu iniciar seus estudos em Palencia.Alguns anos após, já com 26 anos de idade, foi designado organista e clavicordista daRainha Isabel da Espanha, tal a sua competência na execução da música sacra nesses doisinstrumentos. Em 1548 passou a prestar serviços semelhantes ao próprio rei da Espanha Felipe II.Viajou com a Capela Real da Espanha para a Itália, Alemanha, Holanda e Inglaterra, tendoobtido um sucesso enorme e feito muitos amigos e admiradores. Foi um verdadeiro mestre da polifonia e influenciou decisivamente vários organistas deseu tempo, inclusive o famoso Thomas Preston, da Capela de Windsor, na Inglaterra, seucontemporâneo.

- *Goetz von Berlichingen, o "Mão de Ferro"* São poucas as referências históricas a membros artificiais durante a Idade Média eprimeiros tempos da Renascença. Uma delas diz respeito a uma prótese parcialmentefuncional que foi utilizada durante muitos anos por uma figura um tanto fora de moda emsua própria época - início e meados do século XVI - durante a qual boa parte do mundo não

estava mais preocupada com valores predominantes na Idade Média, mas estavafrancamente à busca de um modo de viver mais humano. Trata-se de um famoso cavaleiro alemão apelidado de "Mão de Ferro", ou seja, Goetz vonBerlichingen, nascido em 1480 e morto em 1562. Viveu ele numa região da Europa queprocurava manter um sistema feudal absolutamente decadente e uma cavalaria em extinção,muito embora como cavaleiro lutador tenha sido muito valoroso e útil para seus senhores. O apelido de "Mão de Ferro" deve-se ao fato de Goetz ter recebido uma profunda feridana mão direita durante o cerco de Landshut. Complicações que se seguiram ao acidenteocorrido durante a sangrenta luta levaram à necessidade de amputação de sua mão. Estavaentão com menos de 30 anos de idade. Logo após sua recuperação tomou todas as providências com pessoas entendidas noassunto e principalmente com armeiros para a fabricação de uma mão de metal que maistarde o imortalizaria. Ela foi tão bem planejada que podia ligar-se com absoluta segurança efirmeza ao seu antebraço e tinha a característica principal de poder manter sua espadafirmemente presa em posição de ataque ou defesa. Por muitos anos mais Goetz envolveu-se em campanhas militares e escaramuças,tornando-se quase lendário. Casou-se duas vezes e teve diversos filhos. Foi sem dúvida umdos últimos cavaleiros medievais e da incipiente Renascença de soberbo renome. Nãoterminou seus dias sem antes escrever sua biografia, intitulada: "Vie de Gotz vonBerlichingen, dit Main de Fer".

- *O problema da mendicância organizada nos séculos XVI e XVll* Muito embora a teoria do humanismo renascentista procurasse valorizar o homem, naprática as situações de vida continuavam muito abaixo do mínimo aceitável. A necessidadede sobrevivência continuava levando muitos a recorrer não apenas à esmola como aexpedientes menos honestos, como o furto e o dolo. Os mais ágeis e menos escrupulososchegavam a tirar vantagens muito acentuadas, ao passo que os doentes e os deficientessocorriam-se apenas das esmolas e muito sofriam com a desleal concorrência dos falsosmendigos e falsos doentes. Havia para todos a obrigatoriedade estabelecida pelo imenso grupo dos mendigos de sevincular a organizações ou a confrarias de miseráveis, pagando taxas pré-estabelecidas. Houve épocas, na História da Europa, em que a esmola pública foi explorada dentro deuma forte organização na qual a figura do doente crônico e do deficiente físico teve umrelevante papel. Podemos verificar a veracidade dessa afirmação pelo relato objetivo dehistoriadores.

- *A grande malha organizacional dos miseráveis na França* Liderados por um personagem conhecido pelo título misterioso de "Grand Coesre",muitos grupos de mendigos (falsos e autênticos, reuniam-se em grandes confrarias emdiversos países europeus, no correr dos séculos XVI e XVII. Reuniam nelas malfeitores,ladrões, bandidos, assaltantes de estrada, alguns tipos de artistas e integrantes do mundoboêmio, além dos pobres autênticos. Paul Lacroix (1806 a 1884), literato e erudito francês, autor de importante série de obrassobre usos e costumes da Idade Média e da Renascença, apresenta-nos pormenores muitointeressantes sobre os mendigos e miseráveis. É ele que nos informa que na França existia aOrdem de Argot que congregava diversos tipos de indigentes. Eles usavam um linguajarmuito seu, repleto de gírias exclusivas e matreiras, conhecido pelo nome de "le jargon".

Dentre esses grupos que mantinham identificação própria, nos quais estavaminvariavelmente inseridos pobres com deficiências evidentes, é importante destacar alguns,tais como: - os "Orphelins" - mendigavam chorando pelas ruas das cidades; - os "Marcandiers" - errantes, andavam vestidos com um gibão velho mas de qualidade,fazendo-se passar por comerciantes arruinados; - los "Malingreux" - cobertos de andrajos, mostravam suas feridas e chagas (falsas muitasvezes) e pediam dinheiro para uma pretendida viagem de peregrinação a um templomilagroso para sua cura; - los "Piètres" - mendigos com deficiências físicas, locomoviam-se com muletas oupequenos aparatos para as mãos e joelhos; -os "Sabouleux" - pedintes em feiras, mercados e igrejas, simulavam ataques econvulsões, espumando pela boca graças a um pequeno pedaço de sabão, rolando pelo chãoe conseguindo polpudas esmolas.

Havia também outros grupos de mendigos filiados e especializados em seu modo de seapresentar ou de atuar em determinados ambientes para angariação de esmolas em dinheiroou em espécie: "Callots", "Coquillards", "Hubins", "Polissons", "Francs Mitoux", "Ruffés","Millards", "Convertis", "Narquois" e muitos outros. Em Paris todos eles pagavam uma taxa fixa por ano ao rei dos mendigos, o "GrandCoesre", enquanto que nas maiores cidades da França havia seus lugares-tenentes,conhecidos pelo título generalizado de "Cagoux", que coletavam as taxas, além de serem osresponsáveis diretos pelo treinamento dos novos mendigos quanto à apresentação, aos apelosao público e à linguagem da Confraria. Esses grupos reuniam-se diariamente, comiam, bebiam, inteiravam-se das novidades edivertiam-se um tanto grotescamente naqueles famosos e comentados "Pátios dos Milagres"("Cours des Miracles"), que eram logradouros mal iluminados e infectos da mais tristememória. À noitinha aos poucos iam aparecendo os mais variados tipos de verdadeiros e defalsos mendigos: amputados, paralíticos, cegos, epiléticos - cada qual trazendo em seusalforges ou debaixo dos braços algum alimento ou bebida. Lá muitos abandonavam suasmuletas ou bengalas, transformando-se em pessoas bem dispostas que dançavam todo tipode música e que bebiam à vontade, fartando-se sem a mínima preocupação com eventuaisdificuldades no dia seguinte. Sua diretriz maior era alimentar-se e divertir-se no Pátio dosMilagres "ni foi ni loi" (sem fé nem lei). Embora a França não fosse a única nação européia a viver esse problema, ela tomou umaprovidência que iniciou os primeiros passos no sentido do equacionamento do "modusvivendi" dos miseráveis daqueles séculos: foi organizado o "Grand Bureau des Pauvres". - *O problema da mendicância organizada em outros países* A Espanha, a Itália, a Inglaterra, a Alemanha e todo o resto da Europa viviam situaçõesquase que inteiramente semelhantes durante diversos séculos e que, devido ao alheiamentoda nobreza, da burguesia e dos governantes, muito demoraram para ser sanadas. A Itália, por exemplo, tinha os seus mendigos e indigentes (conhecidos pelo apelido de"Bianti" e também de "Ceretani") subdivididos em mais de quarenta grupos reunidos numasó organização. Dentre eles cumpre destacar os "Affrati" (vestidos com hábitos sacerdotais, roubavam asesmolas das igrejas e santuários), os "Accatosi" (pareciam cativos recém-libertos, com restosde algemas nos punhos e nos tornozelos), os "Allacrimanti" (apresentavam-se chorando

muito suas desgraças), e mais, os "Morghigeri", os "Felsi", os "Vergognosi" e muitos mais(Apud Lacroix). Dentre os que obtinham mais e melhores esmolas sempre estavam os mendigos comdeficiências físicas mais sérias ou que mais tocavam a população.

- *Deficientes mentais no século XVI: entidades não-humanas* Até o século XVI as crianças com retardo mental profundo eram consideradas em certosmeios como entidades que se assemelhavam a seres humanos, mas que não o eram. Havia acrença generalizada principalmente entre alguns religiosos que essas crianças ocupavam olugar e chegavam a substituir mesmo crianças normais, através da atuação e interferênciadiretas de maus espíritos, de bruxas ou de fadas maldosas e de duendes demoníacos. E é surpreendente verificar que mesmo intelectuais do mais alto nível acreditavam semqualquer sombra de dúvida nesses postulados. Exemplo dos mais marcantes foi o deMartinho Lutero que negou a própria natureza humana de uma criança com retardo mentalde alguma seriedade. Eis o que Martinho Lutero relatou a respeito desse caso: "Há oito anosatrás havia em Dassau uma dessas crianças que eu, Martinho Lutero, vi e examinei. Tinhadoze anos de idade, usava seus olhos e todos os seus sentidos de tal maneira que a gentepoderia pensar que era uma criança normal. Mas ela só sabia fartar-se tanto quanto quatrolavradores. Ela comia, defecava e babava e se alguém tentasse segurá-la, ela gritava. Sealguma coisa ruim acontecia, ela chorava. Assim, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosseo príncipe, eu levaria essa criança ao rio Malda, que passa perto de Dassau e a afogaria. Maso príncipe de Anhalt e o príncipe da Saxônia, que estavam presentes, recusaram-se a seguirmeus conselhos. Eu disse, então: Bem, então os cristãos rezarão o Pai Nosso nas igrejas epedirão que Deus leve o demônio embora. E assim foi feito diariamente em Dassau, e oretardado morreu um ano depois". Lutero chegou a afirmar que estava convencido de que aquele retardado de doze anos deidade era apenas massa de carne ("massa carnis") sem alma. "O demônio possui essesretardados e fica onde suas almas deveriam estar" (Apud Wolfensberger).

- *A "Lei dos Pobres" e as pessoas deficientes na Inglaterra* Passos muito importantes foram dados durante os séculos XVI e XVII na Inglaterraquanto ao atendimento a alguns grupos especiais de pessoas incluídas num grupo muitomaior: o dos miseráveis. Com o esfacelamento do regime feudal e a posterior dissolução dosconventos, mosteiros e abadias, por expressa determinação do rei Henrique VIII (1491 a1547), logo após seus desentendimentos com o Vaticano, todos os religiosos foram expulsosda Inglaterra. Houve uma parcial paralisação e mesmo destruição do sistema de abrigo e detratamento de doentes, bem como de assistência vigente e organizado pelo catolicismo sob aforma de caridade. A maioria desses edifícios religiosos foi sendo ocupada e utilizada paraoutros fins. Entre essa época (1536 a 1539 aproximadamente) e o século XVII poucosestabelecimentos hospitalares foram criados no Reino Britânico. Durante esses séculos daRenascença muitos hospitais não sofreram alterações substanciais na Inglaterra, uma vez quecontinuaram com suas características básicas de abrigo ou de mero asilo para doentes até asua morte, ou também para deficientes físicos sem condições de sobrevivência e mesmo paravelhos abandonados. O pauperismo na Inglaterra agravou-se com o fechamento dosmosteiros e abadias. A deterioração das condições de vida das populações mais pobres, dos enfermos e dosdoentes ou deficientes em geral levou o próprio Henrique VIII a promulgar a primeira "Lei

dos Pobres", pela qual todos os súditos eram obrigados a recolher o que foi chamado de"taxa da caridade". As famosas "Leis dos Pobres" da Inglaterra começaram a ser aplicadas na prática apenasno ano de 1531, pois foi exatamente nesse ano que surgiu um primeiro ato oficial,autorizando juízes a dar licenças para velhos abandonados e para pessoas portadoras dedefeitos físicos sérios pedir esmolas, mas apenas em suas próprias comunidades ou, nomáximo, em áreas circunvizinhas. O problema dos pobres passou a ficar tão sério na Inglaterra que em 1535 iniciaram-sediscussões gerais para encontrar soluções aos seus múltiplos aspectos, sendo uma delas ainserção dos pobres "sem deficiência física" em trabalhos que eram pagos pela CoroaInglesa. No ano seguinte a pressão continuava a mesma, senão maior do que antes, de tal formaque fundos privados foram organizados para de certa maneira forçar a participação do povona solução do problema. A contribuição para a necessária ajuda aos pobres passou a ser,então, uma obrigação social em toda a Inglaterra. Essa contribuição, estabelecida no ano de1576, levou ao desaparecimento do caráter voluntário daquela anteriormente existente. Mesmo antes dessa contribuição decorrente de uma determinação legal, porém, aInglaterra já vinha estudando as miríades de ângulos da questão da pobreza e montavainstituições em diversos centros urbanos dos mais pujantes, para o atendimento separado dospobres devido a incapacidades físicas ou mentais e pobres devido a circunstâncias de vida,tais como acidentes e doenças. Estavam incluídos nessas considerações os pobres por merodesleixo ou por falta de condições para a necessária auto-suficiência. - *O atendimento às crianças deficientes na Inglaterra: século XVI* As crianças inglesas abandonadas, doentes ou portadoras de males incapacitantescomeçaram então a ser assistidas por organismos vinculados à Coroa Britânica e também poriniciativa das comunidades que procuravam manter seus esquemas com alguns objetivosmais ou menos bem definidos e que por vezes chegam a surpreender-nos em pleno séculoXX, pois já no século XVI incluíam, pelo menos na teoria ou nos seus postulados, oseguinte: - a obtenção de trabalho para essas crianças ao chegarem à idade requerida para umaatuação rentável; - a definição de alguma proteção para elas fora dos orfanatos e dos abrigos provisórios,ficando aos cuidados de famílias que delas se dispusessem a cuidar por baixo custo para ogoverno ou para instituições privadas bem organizadas; - internação definitiva em orfanatos, caso nenhuma dessas duas alternativas chegasse a seconcretizar ou a se mostrar viáveis.

- *O "Grand Bureau des Pauvres" da França* No ano de 1544 foi fundado o "Grand Bureau des Pauvres" na França, sob o reinado deFrancisco I (1494 a 1547), um monarca seguidor de uma filosofia aparentemente humanista,além de muito voltado para as inovações da Renascença na Europa. O "Grand Bureau" eracomposto de burgueses ocupantes das mais importantes posições em Paris e ficou conhecidopelo apelido de "Aumône Générale" (Esmola Geral). Com as contribuições que recolhiaconseguia manter os hospitais da Trindade e das "Petites Maisons", atendendo a doentespobres, incluindo aqueles com paralisias, amputações, deformações e cegueira.Organizações semelhantes existiam em diversas importantes cidades francesas, dando

alguma cobertura aos desamparados em geral quando em situação de doença ou deimpedimento contínuo para ganhar a própria vida.

- *Classificação de indigentes na França no século XVI* Henrique II (1519 a 1559), rei da França, casado com Catarina de Médicis, tomou a sérioe resolveu prosseguir os esforços de Francisco I. Assinou um decreto em 1547 através doqual impôs aos parisienses uma coleta em favor dos indigentes. Eles eram, àquela época, classificados em três categorias principais: "Robustes" - os que não eram doentes ou deficientes e podiam trabalhar ; "Invalides" - com problema sério de invalidez, mas com domicílio; "Invalides sans feu ni lieu" - deficientes sem abrigo nem domicilio.

A primeira categoria tinha direito a empregos sem dificuldades; a segunda recebia ajudaem seu próprio domicilio; a terceira - a dos inválidos sem lar - era recolhida a um abrigo.

- *Luís de Camões, o poeta épico português por excelência* O "cavaleiro-fidalgo" Luís de Camões (1524 a 1580) engajou-se na vida militar, servindoem Marrocos entre os anos de 1545 a 1548. Ali perdeu um de seus olhos em escaramuçascom os marroquinos. Pouco depois voltou a Lisboa e aos ambientes da corte. Tendo láchegado, a notória deficiência passou logo a ser motivo de algumas brincadeiras e zombariaspor parte de uma jovem por quem Camões sentia forte atração. Segundo amigos maispróximos do poeta, ela se referira a ele como "cara sem olhos". Luís de Camões, em seus 25 anos, sentiu a agulhada do comentário. Mas acabou portransformá-lo em um galanteio com o seguinte verso dirigido à mimosa dama: "Sem olhos vi o mal claro Que dos olhos se seguiu: Pois cara sem olhos viu Olhos que lhe custam caro. De olhos não faço menção, Pois quereis que olhos não sejam Vendo-os, olhos sobejam, Não vos vendo, olhos não são" ...

A deficiência, que poderia ter arruinado a vida de um jovem galante, não prejudicou nema vida guerreira e aventuresca, nem a vida literária de Luís de Camões que muitos anos maistarde, após infindáveis viagens para Goa, Calabar, Meca, Índia, China, Málaca, ilhas deMalásia, Moçambique e outros lugares, escreveu a epopéia portuguesa que intitulou de "OsLusíadas".

- *Pintor mudo decora El Escorial, na Espanha* Navarrette, conhecido pelo cognome de "El Mudo" foi pintor da Escola Espanhola.Nasceu em 1526 em Logroño e faleceu em Toledo em 1579. Recebeu lições de Ticiano ecom 42 anos de idade foi convidado pelo rei Felipe II (o mesmo rei que tinha um organistacego) a decorar El Escorial. A incapacidade de falar não o inibiu em seus múltiplosrelacionamentos durante o empreendimento. Cita-se entre suas obras mais famosas o quadrointitulado "São João Escrevendo o Apocalipse". Outra obra sua muito conhecida é o quadro"Martírio de São Tiago, o Maior".

- *Continua a epopéia dos hospitais nos séculos XVI e XVII* Ainda dentro do século XVI a situação dos hospitais continuava extremamente ruim nospaíses do continente europeu, apesar dos muitos esforços feitos pelas ordens religiosas.Havia enorme falta de higiene, negligência e às vezes até crueldade por parte de atendentesmal preparados. E foi nessa situação que surgiu no cenário dos hospitais a figura de CamiloDe Lélis (1550 a 1614) que com 25 anos de idade resolveu devotar-se a doenteshospitalizados. Trabalhou inicialmente com doentes crônicos internados no Hospital de SãoTiago para Incuráveis, em Roma. Fundou uma congregação de religiosos para o serviço hospitalar que preparava ministrospara os enfermos, a fim de dar a requerida atenção ao corpo e à alma do doente. Ele mesmo foi mais tarde vítima de ulcerações malignas numa das pernas, que o tornaramparcialmente deficiente até o final de sua vida. Os "Camilianos", como passaram depois demuitos anos a ser reconhecidos, contribuíram muito, através dos vários séculos de suaexistência, para a melhoria dos padrões de atendimento nos hospitais e nas casas de saúdeonde tiveram oportunidade de atuar. Com raras e honrosas exceções muitos hospitais da Alemanha e da França começaram, jáno século XVII, a passar gradativamente para o controle dos governos locais. Sob a firmeorientação do cardeal francês Jules Mazarin (1602 a 1661), alguns esforços especiais foramcoordenados pelo governo francês para colaborar na solução ou pelo menos na diminuiçãodos sofrimentos e das dificuldades vividas pelos mendigos e pelos doentes pobres eincuráveis, e no meio deles sempre inseridos por não terem outro destino os deficientesfísicos e mentais. Foram também criados na França, em 1656, os chamados Hospitais Gerais (HôpitauxGénéraux) que eram uma combinação de asilo e de hospital, mas bem melhor organizados eonde os serviços médicos estavam sempre presentes e a medicação era melhor controlada eadministrada. Foi nesses hospitais gerais da França que pessoas deficientes foram tambématendidas e passaram a ser objeto não só de abrigo e alimentação, como de assistênciamédica. - *Galileo Galilei, matemático, astrônomo e físico* Nascido em Pisa no ano de 1564, Galileo foi o primeiro homem a usar um telescópio.Após anos de contínuos e dedicados estudos, provou que a terra não era o muitas vezespretendido "centro do universo", e que ela girava em torno do sol. Era uma teoria muitoousada para a época da incipiente Renascença e principalmente para as autoridades da IgrejaCatólica. Face à gravidade das suas afirmações que, no conceito de muitos iria atingirduramente a posição até então assumida e defendida pela Igreja e seus doutores, Galileo foipreso e formalmente acusado na Inquisição. Devidamente julgado, foi condenado a sedesdizer e a passar seus últimos oito anos de vida em casa, sob custódia. No entanto,continuava a crer em sua teoria e morreu em 1642 balbuciando suas famosas últimaspalavras: "Eppur, si muove" (no entanto, ela se move ...). Galileo sofria de um problema reumático sério e em conseqüência dele acabou ficandocego nos últimos quatro anos de sua vida. Continuou, todavia, estudando e mantendocorrespondência científica, ditando seus trabalhos e suas cartas a dois de seus alunos:Viviani e Torricelli. No dia 4 de julho de 1637 o grande cientista escreveu uma carta a Donati, seu antigocompanheiro, na qual se queixava: " ... Encontro-me acamado há cinco semanas ...Acrescente-se, oh dor!, a perda total de meu olho direito que é aquele que fez tantos tantos etantos, seja-me lícito dizer, trabalhos gloriosos! Ele está agora, meu senhor, cego: o outro,

que era e é imperfeito, mantém-se ainda sem o pouco uso que dele poderia fazer se ooperasse, uma vez que um lacrimejar contínuo me tira a possibilidade de fazer qualquerqualquer qualquer das funções que se espera da visão" (Apud Germani).

- *O continuo problema dos soldados mutilados* No atendimento ao soldado doente ou mutilado devido a atividades relacionadas às lutasarmadas ou em atividades afins, sabe-se que, por ordens diretas de Henrique IV, da França,que reinou entre 1589 e 1610, foi organizado na Maison de la Charité, em Paris, um abrigopara os soldados franceses de todos os níveis. Era uma das primeiras e notórias tentativaseuropéias destinadas a dar cobertura de assistência aos problemas daqueles homens quearriscavam sua integridade física e sua saúde em benefício de sua terra, de sua gente e de seurei. - *Os trabalhos com os deficientes auditivos no século XVII* As idéias defendidas no correr do século XVI sobre os surdos e surdos-mudos não eramna maioria dos casos passadas para a prática e foi Juan Pablo Bonet que deu os primeirospassos nesse sentido. Escreveu sua obra intitulada "Reducción de las Letras y Arte paraEnseñar a Ablar los Mudos", levantando questões a respeito das causas das deficiênciasauditivas e dos problemas da comunicação oral. Chegou a indicar qual a idade maisrecomendável para crianças mudas poderem se beneficiar do aprendizado para falar. Concluiu que havia basicamente duas causas para o mutismo: a primeira e maisimportante era a surdez; a segunda era algum eventual defeito na língua. Quanto à melhoridade para a criança surda aprender, achava que seria entre 6 e 8 anos, apesar de reconheceras dificuldades de fazer as crianças exercitar-se para tornar a língua mais ágil para articularpalavras: elevá-la até o palato, entortá-la, baixá-la, curvá-la para a direita e para a esquerda,colocá-la para fora da boca em posições diversas, atritá-la ou raspá-la contra os dentes,enfim, todas as posições indispensáveis para alguém falar. Além disso Bonet condenava métodos brutais de gritarias e de enclausuramento em caixasque provocavam ressonância, defendendo sempre a necessidade de se garantir acompreensão dos alunos quanto ao que deles se esperava. Achava que o mestre e o alunodeviam ficar a sós e num ambiente bem iluminado porque a instrução exigia toda aconcentração possível e o aluno precisava também observar bem a boca de seu mestre tantodo lado de fora quanto do lado de dentro. Outro autor que marcou época no século XVII no campo da surdez foi o inglês JohnBulwer (1600 a 1650), com sua obra intitulada "Philocophus" e que tinha como sub-títuloelucidativo a pouco modesta intenção do autor: "O amigo dos homens surdos e mudosmostrando a verdade filosófica da sutil arte que pode capacitar alguém com olhar observadora ouvir o que qualquer homem fala pelo movimento de seus lábios. Provando aparentementeque um homem nascido surdo e mudo pode ser ensinado a ouvir o som das palavras com seuolhar e de aprender a falar sua língua" (Apud Mullett). Bulwer foi um dos primeiros educadores que defendeu um método de ensino da leituralabial, apesar de ter escrito também sobre a linguagem dos sinais. Há outros autores e educadores que atuaram com determinação e competência nessecampo no correr do século XVII e dentre eles cumpre chamar a atenção para Kenelm Digby,John Wallis, William Holder, John Wilkins e Francis Mercury van Helmont.

- *Johannes Kepler, astrônomo alemão*

Nascido em 1571 e falecido em 1630, Kepler desenvolveu importantes estudos sobre omovimento dos planetas, que muito ajudaram na elaboração das bases modernas daastronomia. O que poucos sabem, todavia, é que Kepler tinha uma séria deficiência visual, causadapelo sarampo contraído aos quatro anos de idade. As dificuldades causadas pela severaredução da acuidade visual, entretanto, não afetaram sua forte vontade de aprender e deestudar. Apesar de pobre, superou os problemas e mil dificuldades que se interpunham aosseus propósitos e trabalhou muito. Kepler legou ao mundo três leis básicas da astronomia, conhecidas pelo seu nome, dasquais a mais popular é esta: "As órbitas dos planetas são elipses, tendo o sol como um dosseus focos" ...

- *Padre Lejeune, maior pregador do século XVII* Nascido em Poligny (França, o padre Jean Lejeune foi o mais célebre pregador de seuséculo, segundo seus biógrafos. Perdeu a visão aos 43 anos de idade quando pregava durantea quaresma na cidade de Rouen. Mas a cegueira não diminuiu sua competência de grande orador nem sua alegria sempremuito natural. Lejeune morreu aos 80 anos de idade, muito ativo e muito vivaz, apesar das doenças. Asolidez de suas idéias e o seu estilo levaram o prelado e ao mesmo tempo grande pregadordas cortes de Luís XIV e Luís XV, Massillon, a recomendar a muitos seminaristas e jovenssacerdotes o estudo de seus maravilhosos sermões publicados em dez volumes sob o títulode "Le Missionaire de l'Oratoire", entre 1662 e 1676.

- *Novas formas de utilizar os hospitais* A permanente luta para a criação de entidades hospitalares, ou pelo menos deorganizações destinadas ao atendimento de pessoas com problemas crônicos ou gravementeincapacitadas para a vida independente, na época da Renascença, refletia o crescente papelque o Estado assumia para encontrar soluções para problemas sociais e econômicos de suapopulação, ou também de algumas entidades privadas em muitos países europeus. Na Alemanha, por exemplo, a responsabilidade pela manutenção de hospitais, após areforma protestante, passou durante muitos anos para as mãos das corporações municipais. Devido à precariedade de recursos para o aprendizado da medicina, além das dificuldadesdos médicos em adquirir experiência de ordem mais significativa na proximidade e mesmoconvívio com colegas de profissão e de trabalho, uma importante e muito auspiciosatendência começou a surgir no século XVII: a de considerar os hospitais não mais comomeros depósitos de doentes pobres e nos quais os médicos quase nem compareciam oudavam atendimento, mas como uma organização destinada ao tratamento e à cura daspessoas doentes, com uma inegável possibilidade de se tornarem centros de estudos de casose de treinamento prático de estudantes de medicina. A Holanda, liderando o ainda mal definido movimento, e reconhecendo a necessidade depoder contar com médicos melhor preparados, instalou no ano de 1626, na cidade deLeyden, o primeiro sistema de treinamento prático e bem orientado de médicos noshospitais, o que sem dúvida acabou levando a medicina a prestar muito maior atenção nãoapenas aos doentes vitimados por males curáveis e comuns, mas também por males aindapouco conhecidos que levavam à permanente vinculação ao leito, ou ainda a problemasincapacitantes do físico e do mental.

- *As deficiências físicas em peças de Shakespeare* Nascido no ano de 1564 e morto em 1616, William Shakespeare foi o maior poeta edramaturgo inglês de todos os tempos. Tal é sua versatilidade que para muitos ele dá aimpressão de ter formação médica, devido à demonstração que faz de seus conhecimentos deanatomia, neurologia, fisiologia e outras áreas afins, colocados em diversas de suas peças. Ovolume de citações que faz de males incapacitantes é bastante expressivo. Em diversas de suas obras o leitor poderá encontrar casos de fraturas graves, demutilações, de deformidades congênitas ou adquiridas. Como todos sabem, Shakespeare escreveu peças imorredouras, tais como Romeu eJulieta, Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão, Rei Lear, Mácbeth e outras. Há diversas quesão pouco conhecidas entre nós e que têm muita importância em sua imensa obra literária, enas quais o genial escritor insere personagens com deficiências, como em Ricardo III,Henrique IV, Henrique VI, Henrique VIII, Tróilus e Créssida, a Tempestade, TitusAndronicus, Péricles e Otelo. Vejamos alguns exemplos ilustrativos, iniciando pela peça Titus Andronicus. Trata-se deuma tragédia de proporções vastas. Um dos personagens, Lavínia, filha de Titus, teve seusbraços cortados e sua língua decepada em dramáticas circunstâncias. O autor explora muitobem o fato narrado e suas circunstâncias, dando cores muito vivas a todas as cenas em queLavínia aparece. Esse realce é mais evidente na cena em que, de certa forma imitando alenda de Filomela, Lavínia consegue indicar os culpados pela sua situação, mesmo sem termãos para escrever ou língua para falar. Na tragédia Otelo, o personagem Cássio é ferido traiçoeiramente na perna pelo pérfidolago e grita desesperado na escuridão de uma rua cipriota: - "Estou aleijado para sempre!Socorro! Assassino!", ... Ao leitor não fica muito clara a extensão da lesão, embora algumas frases dos diálogosque seguem sejam bem indicativas. Da boca de Cássio temos, por exemplo, estas duasfrases: - "lago? Oh! ... Fui inutilizado, aniquilado por vilões" ... - "Minha perna foi cortada em duas" ... Já na tragédia Ricardo III, Shakespeare associa o defeito congênito com maldade, perfídia,malícia, o que sucede também na peça Tróilus e Créssida, com a indefinível figura deTérsites. Ricardo III (rei que existiu de fato, mas certamente sem muitas das aberraçõesalegadas por Shakespeare) é identificado na peça como "montão de ódio", "massa ignóbil edisforme", "tão disforme de maneiras quanto de corpo", "rochedo fatal e disforme" e "sapo". Essa peça é iniciada com um monólogo muito revelador desse rei controvertido a respeitode cuja figura histórica surgem muitas dúvidas: - "Mas eu, que não fui talhado parahabilidades esportivas nem para cortejar um espelho amoroso; que, grosseiramente feito esem a majestade do amor para pavonear-se diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu,privado dessa bela preparação, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza; disforme,inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos vivos; terminado pelametade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que os cães ladram para mim quando paroperto deles; pois bem, eu, neste tempo de serena e amolecedora paz, não acho delícia empassar o tempo, exceto espiar minha sombra no sol e dissertar sobre a minha deformidade"(Apud Miller e Davis).

- *A superação de deficiências no século XVII: um exemplo* Por toda a história do homem na Terra certamente que esforços individuais de naturezasas mais variadas foram desenvolvidos para a eliminação dos bloqueios e das muitas

dificuldades causados por limitações físicas e sensoriais. Bengalas ou bastões de apoio,calçados especiais, muletas, coletes, próteses, macas e camas móveis, cadeiras especiais,carros adaptados, liteiras e muitas outras idéias devem ter surgido em muitas ocasiões. Noentanto, por milênios, essas adaptações e criações não causaram maior impacto sobre oshomens detentores do poder ou do dinheiro, uma vez que o problema sempre foi consideradocomo puramente individual e não dos governantes. Conforme percebemos até este ponto da existência do homem, diversos casos de pessoasportadoras de deficiências foram até passados para a imortalidade da História. Relembremosaqui os nomes de Homero, de Dídimo de Alexandria, dentre tantos. O primeiro, apesar decego escreveu fabulosos poemas épicos que integram até hoje o acervo dos melhorestrabalhos já produzidos pelo homem. E quanto a Dídimo, também foi um exemplo digno denota, chegando o ilustre diretor da Escola de Alexandria - também cego - a utilizar-se de umrecurso até hoje muito usado pelos cegos que pretendem estudar ou manter-se atualizados:os ledores. Pela metade do século XVII, na Europa, alguns homens notáveis procuravam tambémsolucionar problemas de ordem prática para pessoas portadoras de deficiências físicas sérias,especialmente nos casos daquelas que tinham posses e podiam pagar pela criatividade dosartesãos. E um dos homens inventivos e de grande iniciativa foi o alemão Stephen Farfler,que havia sido vítima de algum tipo de paralisia nas pernas. Segundo nos conta Pecci, foi ele"o primeiro a se locomover numa cadeira de rodas. Paraplégico desde os três anos, elemesmo a idealizou e construiu quando tinha 22 anos, em 1655. Era uma cadeira baixa,pequena, toda de madeira, com duas rodas atrás e uma na frente. A da frente era acionadapor duas manivelas giratórias. O próprio Stephen a movimentava. Ele utilizava essa cadeiranão apenas em casa, mas saia com ela, trabalhava e passeava. Usou-a até a sua morte, aos 56anos, ocasião em que o veículo foi levado à Biblioteca Municipal de Nuremberg, onde ficouexposta até 1945, quando um bombardeio a destruiu" ("Minha Profissão é Andar", de Pecci). Outros homens do século XVII superaram sua deficiência e deixaram legados brilhantes.Milton (1608 a 1674), um dos maiores poetas ingleses, ficou cego com aproximadamente 45anos de idade. Conseguiu ajuda e continuou suas obras, tendo escrito o monumental "ParaísoPerdido" e outras obras mais, após a instalação da cegueira.

- *John Milton: o significado de sua cegueira* Alguns autores têm escrito sobre a cegueira desse grande escritor inglês e têm arriscadoum diagnóstico da causa desse grave problema que mudou a vida de John Milton. Dentreesses diagnósticos cumpre destacar os seguintes: castigo de Deus devido à sua participaçãona revolta de Cromwell, catarata, glaucoma crônico, complicações de miopia, descolamentode retina, glaucoma agudo devido a crises emocionais, albinismo,neuroretinite de origem sifilítica congênita, e também "fraqueza natural". A fonte mais preciosa de informação quanto às reações de Milton à perda da visão é umacarta que ele mesmo escreveu a seu amigo Leonard Philaras. Dentre os muitos ângulosabordados pelo escritor cego, convém ressaltarmos as belas frases em que mostra a formacomo aceita sua cegueira. Diz ele: " ... minha escuridão, por singular misericórdia de Deus, com a ajuda de estudos,lazer e a bondosa conversação de meus amigos, é muito menos opressiva do que a mortalescuridão à qual se alude. Porque se, conforme está escrito, o homem não vive só de pão,mas de cada palavra que vem da boca de Deus, por que um homem não pode realmenteaceitar isso, pensando que só pode obter a luz de seus próprios olhos, julgando-se, todavia,suficientemente iluminado pela orientação e providência de Deus? Portanto, já que Ele prevê

as coisas e me dá cobertura, como faz, e me leva para diante e para trás pela Sua mão, comose o fizesse pela vida toda, não poderei eu dar uma folga a meus olhos, já que esse parece sero Seu prazer?" Na verdade, durante os 22 anos de sua cegueira, Milton tornou-se bem mais ativo e suaatividade de trabalho cresceu como nunca antes ocorrera. Os primeiros oito anos de sua vidacomo cego ele os dedicou a Cromwell, como Secretário para Línguas Estrangeiras. Traduziacartas do latim para o inglês e vice-versa. Milton trabalhava com a ajuda de secretários eamanuenses. Organizou um dicionário de latim, preparou uma história da Inglaterra para publicação echegou a publicar um estudo muito sério sobre a doutrina cristã. Além disso, sempremanteve extensa correspondência, como era costumeiro. Conforme nos diz Snyder, o fato de Milton ser lembrado pelos seus escritos quasedesconhecidos nos dias de hoje não é tão significativo. O fundamental é nos lembrarmos quesuas lindas declarações de fé foram compostas por um homem que era cego. Milton, quesempre se sentiu nas mãos de Deus, conseguiu no seu mundo de escuridão o que muitopoucos homens que vivem na luz conseguiram sequer igualar. John Milton casou-se três vezes. Sua terceira esposa era uma mulher muito bela, mas donade um temperamento difícil e muito violento. Dizem que quando o Lord Buckinghamcomentou com ele que considerava que ele havia casado com uma verdadeira rosa, Miltonrespondeu: "Não posso julgar pelas cores, Lord, mas sinto-o pelos espinhos".

- *São Vicente de Paulo: suas obras face às tendências do século XVII* Nas muitas tentativas de atendimento à vasta população mais pobre em diversos países daEuropa, começaram a surgir novidades e alterações significativas, quando em 1634 apareceuum abnegado e obscuro sacerdote: Padre Vicente de Paulo (1581 a 1660), nascido em Pouy,na França. Fundou instituições para crianças pobres e abandonadas, doentes e defeituosas eque em muitos casos estavam sendo exploradas para mendigar. Sua atuação levou à criaçãode congregações religiosas que se destinaram ao cuidado do doente pobre, como os PadresLazaristas e as Irmãs de Caridade. Assim como em outras áreas do desenvolvimento humano e científico incrementadodurante a Renascença, no século XVI I começara a brilhar muito tenuemente um pouco dejustiça para pessoas fisicamente limitadas, bem como para toda a parcela da humanidade quese encontrara até então subjugada pela miséria e pela doença, pois durante quase toda a suaduração o mundo caminhou com firmeza para melhores condições de vida.

- *A "Velha Lei dos Pobres" da Inglaterra* Conforme verificamos anteriormente, toda a legislação relacionada aos pobres que"infestavam" a Inglaterra, desde o seu aparecimento, foi revista e re-editada em 1601, sob arainha Elizabeth I (1533 a 1603). Esse acervo de leis e de normas, que levou muito emconsideração os incapacitados devido a qualquer tipo de mal, foi de certa forma codificadono ano de 1623, tendo a partir daí sido reconhecido como "A Velha lei dos Pobres". Nessa codificação nova, as paróquias foram reconhecidas definitivamente como unidadesbásicas para sua administração e coordenação. Essa função adicional aos trabalhos da Igrejacoube a supervisores designados por juízes locais que tinham a função de avaliar o montantede contribuição destinada a cada pobre e o volume de ajuda que cabia a cada cidadão.Quando estabelecida e ratificada pelo juíz local, essa ajuda tornava-se obrigatória para acomunidade.

Pois bem, foi com esses fundos que os velhos e os deficientes foram atendidos ereceberam abrigos em áreas pouco povoadas; crianças pobres receberam treinamentos; ospobres sem deficiência foram encaminhados para empregos. O período de vigência da "Lei dos Pobres" (Poor Law) que vai até o ano de 1644 foimuito importante. Foi iniciado um sistema centralizado de cobrança de providências a nívellocal, pois era notório o fato de que, mesmo onde não havia pressão de trabalho, ondeesquemas assistenciais funcionavam bem, nas paróquias muito distantes e onde a supervisãotornava-se impraticável, muitas vezes os pobres eram assistidos sem qualquer relação aospreceitos da lei que forçava a isso. Houve também uma chamada "lei de localização e de remoção", de 1662, definindomelhor o papel de cada paróquia. As leis iniciais indicavam que o direito à assistência eralocal e da comunidade. Assim, as paróquias tinham que se prevenir contra a presença deestranhos ou de pessoas que poderiam se beneficiar de mais de um programa assistencial oudispensarial. O preâmbulo dessa "lei de localização e de remoção" dizia que pessoas pobresnão eram impedidas de se mudar de uma paróquia para outra e podiam assim estabelecer-senaquelas em que havia melhor estoque de matéria prima (para os trabalhos destinados aospobres), os maiores terrenos para construir barracos e o maior volume de madeira paraqueimar durante o inverno e também para outros usos. Essa nova legislação dava às paróquias até poder para remover pessoas idosas, defeituosase incapacitadas, com menos de três anos de residência. Dessa maneira, nenhuma ajuda poderia ser dada aos pobres, aos aleijados e aos mendigosquando fora de suas paróquias, a menos que houvesse autorização especial de um juíz. Osnomes desses pobres, seguidos de dados de identificação, eram lançados num livro especialque era revisto cuidadosamente uma vez por ano. Ao final do século XVII, formalizou-se na Inglaterra a estigmatização dos pobres velhos,órfãos, deficientes - pois aqueles que eram "autorizados" a receber ajuda mensal dasparóquias, eram obrigados - a partir de 1697 - a usar em sua roupa externa (casaco, capa,manta, abrigo) um grande "P" vermelho ou azul.

- *O nascer da ortopedia como especialidade* Dentre os muitos progressos e melhoramentos ocorridos no século XVII, é de se ressaltaro que sucedeu na área da medicina, praticamente em conseqüência do que vinha sendo feitodesde vários séculos antes. Na França, por exemplo, no ano de 1662, foi determinado pelacoroa real que cada cidade deveria criar o seu próprio hospital. As especialidades médicascomeçaram também a se definir, tendo a ortopedia sido, sem qualquer dúvida, a primeira aser estabelecida como tal, apesar de não ter sido, de início, reconhecida pela nomenclaturade "ortopedia". Dessa forma, foi durante a Renascença que ficou registrado um dosprimeiros avanços muito sérios na medicina, desde as remotas épocas clássicas greco-romanas. Dentre os muitos motivos que podem ter levado à definição de uma especialidade médicaque cuidava dos problemas de ossos e de mutilações, não se deve menosprezar o fato de aortopedia ter se desenvolvido mais rapidamente devido à obrigação de o Estado manterserviços médicos para seus soldados feridos ou amputados em batalha, desde tempos os maisremotos, conforme pudemos observar. A proteção a soldados mutilados ou inválidos pelosazares das batalhas mereceu a atenção de toda a Europa Renascentista, e de um modoespecial da França que, por determinação do rei Luís XIV (o Rei Sol), em ato assinado nodia 15 de abril de 1670, mandou construir um verdadeiro palácio (Hôtel, em francês) paraalojamento e tratamento de seus oficiais e soldados feridos e inválidos para o serviço militar.

Temos hoje, no centro de Paris, o famoso "Hotel des Invalides", um monumento do passadoque é ainda hoje um orgulho dos franceses. Certamente dentro dessa linha de pensamentos e de preocupações, e por certo para nãoficar numa posição de desequilíbrio de prestígio com a França, o rei Carlos II, da Inglaterra(1630 a 1685), fundou em Chelsea um lar para o que chamava, em sua linguagem pitoresca,de "worthy old soldiers, broken in the wars" (velhos valorosos soldados, batidos pelasguerras). Tratava-se do Hospital Real de Chelsea que teve suas instalações concluídas em1692. O imprevisível Carlos II mandou abrir uma lista de subscrições para a construção,para a qual cedeu o terreno. Muitos contribuiram, inclusive Sir Stephen Fox, Diretor Geraldas Finanças do Reino, que foi nomeado pelo rei como administrador geral dos edifícios. O arquiteto que planejou e construiu o Hospital Real de Chelsea não conseguiu disfarçar aforte influência das idéias contidas no Hôtel des Invalides e no Hospital de Kilmainham, deDublin, na Irlanda. Compõe-se ele de dois edifícios principais, podendo abrigar até seiscompanhias, num total de 558 pensionistas. Cada homem tinha e tem até os dias de hoje umalojamento (quarto) próprio, pequeno mas totalmente individualizado. Os pensionistasenfermos eram alimentados e medicados na enfermaria que foi completamente destruídadurante um bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial. Desde a sua criação até os diasde hoje os pensionistas devem ter mais de 55 anos de idade, ter uma deficiência física e serauto-suficientes em seus cuidados pessoais. O visitante desse antigo abrigo e hospital para soldados portadores de deficiências físicaspoderá ainda hoje apreciar uma interessante coleção de quadros, de fotos, de medalhas e decondecorações, expostos no espaçoso salão de entrada da organização. Troféus e bandeirascapturados durante as muitas batalhas em que pensionistas participaram não podem,entretanto, ser mais apreciados ali, uma vez que foram todos devolvidos às unidades deorigem dos homens ali internados.

- *Quatro cegos brilhantes: Saunderson, Metcalf, Euler e Blacklock* Nicolas Saunderson (1682 a 1739), apesar da cegueira, chegou a inventar uma pranchetade calcular e publicou várias obras, dentre as quais destacamos "Elementos de Álgebra". Oprimeiro volume desta obra expõe um método que ficou conhecido como "aritméticapalpável" e que permite ao usuário fazer todas as operações de aritmética com o uso do tato.Saunderson tornou-se professor brilhante na Universidade de Cambridge e foi um dosgrandes expositores das teorias de Newton, dedicando-se de um modo todo especial àsteorias da luz e das cores. John Metcalf (nascido em 1717) perdeu a visão aos 7 anos. Sempre foi muito hábil e dequando em quando as pessoas desconfiavam que não era cego devido à sua extremafacilidade em se movimentar, cavalgar e em nadar. Sua genialidade levou-o a dedicar muitode seu tempo à construção de pontes e de estradas. Foi conhecido nos meios oficiais inglesescomo "Blind Jack". Sua competência comprovada na remodelação de estradas em péssimascondições e na construção de pontes tornou-o uma figura imortal na história das estradas emtodo o mundo. Leonhard Euler (1707 a 1783) foi um geómetra suíço que perdeu a visão aos 58 anos deidade. Adaptou-se bem à nova situação e prosseguiu com extremo afinco em suas atividadescientíficas. Escreveu "Elementos de Álgebra" e três volumes sobre dióptrica, que é a parte dafísica que estuda a luz de acordo com os elementos que atravessa. A Academia de Ciênciasde Paris chegou a premiar várias de suas obras. Thomas Blacklock (1721 a 1791) perdeu a visão aos 6 meses de idade devido ao sarampo.Desenvolveu muito bem seus estudos e chegou a se formar na Universidade de Edinbourgh.

Tornou-se ministro evangélico em 1759 e destacou-se nas letras como um dos melhorespoetas escoceses. É conhecido como "O Poeta Cego". Redigiu diversos tratados de teologiae foi colaborador da Enciclopédia Britânica, escrevendo um artigo sobre a cegueira.Escreveu também: "Consolações Tiradas da Religião Natural e Revelada", o poema épico"Graham" e "Observações sobre a Liberdade". Thomas Blacklock deu também apoio apoetas mais jovens, sendo Robert Burns o exemplo mais marcante.

- *Alexandre Pope: um poeta com deficiências físicas* Alexandre nasceu em Londres no ano de 1688, de pais católicos e bastante idosos, tendosido considerado por todos que o conheceram um poeta nato. Além de suas obras originais (as "Pastorais", a "Floresta de Windsor", o "Tratado sobre aCrítica", o "Tratado sobre o Homem" e várias outras). Pope traduziu o poema épico Ilíada,de Homero, pelo que recebeu um total de £5.000. Segundo diversos críticos, foi a mais nobreversão de poesia épica que o mundo jamais apreciou. O sucesso foi tão grande que Popetraduziu também a Odisséia, com o que ganhou mais £3.000. Com isso, tornou-sefinanceiramente independente. Ele foi o mais famoso poeta de seu tempo na Inglaterra, tendo mostrado forte predileçãopela crítica mordaz, com a qual agredia seus desafetos, dando vazão à sua agressividade. No entanto, cabe notar que Alexandre era portador de sérias limitações físicas desde onascimento. Existe a seguinte descrição de Pope, feita por um brilhante pintor inglês, SirJoshua Reynolds: "Ele tinha aproximadamente 4 pés e 6 polegadas de altura" (1,37 m),"muito corcunda e deformado. Usava um casaco preto e, de acordo com a moda de então,usava uma pequena espada. Tinha olhos grandes e bonitos, e um nariz longo simpático; suaboca tinha aquelas marcas peculiares que sempre são encontradas nas bocas de pessoasfalsas; e os músculos que lhe corriam pela face eram tão fortemente marcados que pareciampequenos cordéis" (Apud MacNalty). Sempre doentio, dizia que sua musa ajudava-o na sua longa doença, ou seja, sua vida. Nainfância sofreu severamente com raquitismo e por causa desse mal ficou corcunda, comacentuada curvatura da espinha dorsal. A parte da frente da caixa toráxica também eradeformada e um dos lados do corpo era afetado por uma forte contração. Dizem seus biógrafos que a amargura de suas poesias e a agressividade de muitosmomentos seus são devidos a essas deformações. Adicionando aos seus problemas já tão graves, Pope teve um dia os tendões de dois dedosda mão direita gravemente prejudicados durante um acidente. Pope morreu em 1744, após uma continua e heróica luta contra doenças e dificuldadescausadas por suas deficiências físicas. Sua vitória maior está retratada em sua poesia. E foiexatamente esse produto de sua inteligência, criatividade e sentimentos que lhe garantiramum imorredouro lugar na literatura inglesa, sendo o representante principal de seuclassicismo.

- *A reformulação hospitalar inglesa* Ainda no início do século XVIII, em conseqüência dos atos que levaram ao confisco e àdestruição dos mosteiros e conventos e à expulsão dos religiosos que estavam vinculados àSanta Sé, em Roma, atos esses iniciados aproximadamente nos anos de 1536 a 1539, sob oreinado de Henrique VIII, poucos hospitais existiam. A maioria deles encontrava-selocalizada em Londres e quase todos dispunham de instalações muito precárias. Nessasituação continuavam eles a receber doentes crônicos e pessoas seriamente incapacitadas por

deficiências físicas e por problemas mentais, uma vez que fora de suas instalações nãoconseguiriam sobreviver. Pela metade do século XVIII, quando Londres contava apenas com 7 hospitais gerais,alguns hospitais especializados foram construídos ou montados em instalações adaptadas.Um deles passou a servir pessoas que até hoje são marginalizadas da sociedade maior, ouseja, as vítimas de problemas mentais graves. Tratava-se do Hospital Saint Luke. Foi maisou menos por essa época que outras áreas da medicina começaram a melhor definir-se comoespecialidades médicas também na Inglaterra, em adição àquela que cuidava dos problemasdos ossos, das amputações e dos males deformantes. No atendimento à população civil, surgiram algumas instituições em diversos paíseseuropeus, seguindo exemplo na Inglaterra, financiadas pelo poder governamental, somandoesforços com muitas contribuições obrigatórias, ou mesmo por doações avulsas e eventuaisde ricas famílias ou nobres abastados, como sucedeu no caso do Conde Baden, que no anode 1722 criou um lar para inválidos em Pforzheim.

- *A "Ortopedia" de Nicholas Andry* No ano de 1741 Nicholas Andry, um professor da Universidade de Paris, adotou umneologismo para identificar a mais antiga das especialidades médicas: "Ortopedia". Segundoseus esclarecimentos, essa nova e jamais anteriormente utilizada palavra derivava de"orthos", que significa "direito" ou "reto", e "pais, paidós", que corresponde a "criança", nalíngua grega. Segundo o próprio Andry, tratava-se de uma nova "arte de prevenir e demelhorar nas crianças as deformidades do corpo". Outros autores e médicos que viverammuito mais tarde, verificando o alcance da especialidade e notando que ela não se limitava aatender apenas crianças mas a adultos também, de todas as idades, mantiveram a mesmadesignação para a especialidade mas questionaram a derivação proposta para composiçãodaquele neologismo pelo seu criador. Achavam que a raiz adequada não estava relacionada a"criança", mas a "educação" (da palavra "paidéia", em grego). O que nos resta como certo é que muitos séculos antes de surgir a palavra "ortopedia",dentro da especialidade que recebia esse nome existiam já muitos de seus diversoscomponentes, porque doenças e acidentes que deformam o homem e o desviam de suaaparência original sempre existiram e já tinham recebido muita atenção por parte daquelesque se dedicavam à arte médica desde os primeiros tempos da vida do homem na Terra.Tanto isso é verdade que, segundo vimos em épocas anteriores ao século XVIII, as noçõesfundamentais já eram encontradiças em trabalhos egípcios, em tratados de Hipócrates, e nosmuitos outros autores. De sua parte, Nicholas Andry procurava sempre atender bem os seus doentes, masadicionava a essa atitude prevista no código de ética médica uma perfeita e fortementehumana compreensão dos males que levavam a uma deformidade do corpo humano,dedicando-se exclusivamente ao cuidado de crianças. Procurava pautar bem suas atividadese restringi-las a problemas passíveis de uma correção por meio de aparelhagem simples e denatureza prática. Quando, em 1781, Jean André Venel, um médico de Genebra, fundou na vila de Orbe-de-Vaux, na Suíça, o primeiro centro especializado de atendimento ortopédico, lançou o marcomais importante não só para o desenvolvimento mais criterioso e pormenorizado de técnicasde aparelhagem e de correção, como também para o desenvolvimento mais aprimorado dacirurgia ortopédica, que tanto tem contribuído desde aquela época para a eliminação ou paraa redução de deficiências físicas. A esse instituto de tratamento ortopédico acorriam nãoapenas crianças mas adultos também, acometidos por males das mais variadas origens. A

partir de então a fabricação de próteses e de aparelhos de suporte e outros mais alcançou oesplendor de seu desenvolvimento. No entanto, cumpre ressaltar que todos esses progressos e indicativos de aprimoramentotécnico e científico atingiam apenas a pessoas ricas ou àquelas que dispunham de meios paracobrir as despesas enormes incidentes sobre os mesmos. A grande massa dos pobrescontinuava à parte e sem qualquer acesso a esses melhoramentos ou benefícios. Ainda no que diz respeito a deficiências físicas vale a pena ressaltar que, ao encerrar-se oséculo XVIII, dois irmãos - os Hunter - muito contribuíram para o desenvolvimento e para oaprimoramento da cirurgia ortopédica, com estudos especiais a respeito da estrutura dasjuntas e do crescimento dos ossos.

- *Maria Tereza von Paradis: pianista e compositora cega* Maria Tereza von Paradis (1759 a 1824) foi uma música austríaca que nasceu e morreuem Viena. Ficou cega aos 5 anos de idade. Tendo aprendido piano e se transformado numaexcelente concertista, percorreu toda a Europa e foi ouvida em diversas oportunidades pelopúblico de Paris. Ao voltar a Viena dedicou-se à composição. Três óperas dessa compositora cega devemser ressaltadas: "Ariane em Naxos", "Ariane e Baco" e "O Candidato Instrutor". Maria Tereza conheceu Valentin Haüy em Paris e manteve com ele sólidacorrespondência a respeito dos problemas dos cegos.

- *A assistência aos cegos: final do século XVIII* Um opúsculo interessante intitulado em sua versão original de "Lettre sur les Aveugles àl'Usage de Ceux qui Voient" (Carta sobre os Cegos para Uso daqueles que Enxergam) surgiuna França em 1749. Seu autor foi Diderot (1713 a 1784). Chegou a ficar confinado na prisãode Vincennes por três meses devido a esse corajoso trabalho, no qual enfatizava adependência do homem das impressões sensoriais e dava um audacioso passo na direção doateísmo. Diderot, filósofo e homem de letras, foi um dos mais brilhantes pensadores de suaépoca e foi o editor da "Enciclopédie", o mais importante testamento da era do iluminismo.Sua famosa e discutida "Carta sobre os Cegos" foi muito importante também devido à suaproposição para o ensino do cego a ler pelo uso do tato. No ano de 1751 publicou também uma carta a respeito dos surdos e dos mudos, semmaiores repercussões. Diderot procurou mostrar em sua "Carta sobre os Cegos" que as idéiasdos cegos quanto a assuntos ou mesmo quanto a coisas de natureza abstrata são diferentesdaquelas dos videntes. Afirma, por exemplo, que essas idéias a respeito de religião e deDeus não são idênticas às das pessoas videntes, sugerindo daí que as idéias religiosasdaqueles que enxergam e não sentem a limitação causada pela perda da visão sãoconseqüentes às convenções estabelecidas pela sociedade. Entretanto, o preocupado trabalho de Diderot não levou a nenhuma conseqüência práticadetectável, a não ser talvez influenciar os pensamentos e as preocupações de Valentin Haüy,que viveu um pouco mais tarde e a respeito do qual falaremos no tópico seguinte. Em termos de trabalho prático de assistência mesmo que segregativa, ou de ajuda maisconcreta a cegos, devemos ressaltar que no ano de 1780 o famoso e antigo "Hospice desQuinze-vingts" foi transferido de sua localização original no Faubourg de Saint-Honoré parainstalações mais amplas e melhores no Faubourg de Saint-Antoine, em Paris, no prédio doHospital dos Mosqueteiros Negros. Inicialmente dependente doMinistério do Interior, sobreviveu esta organização até os dias de hoje, mantendo-se comseus próprios recursos. Abriga aproximadamente 300 cegos - de acordo com seus objetivos

originais - dos dois sexos, com mais de 40 anos de idade, que lá vivem. Solteiros ou casadosocupam instalações separadas mas mobiliadas por eles mesmos. Além desse abrigo, oHospice provê uma pensão mensal a mais de 2.000 cegos franceses com pelo menos 21 anosde idade. Foi em suas instalações que em 1880 foi montada uma clíniCa nacional deoftalmologia (Apud "Larousse du XXe. Siècle"). No ano de 1784, setenta anos após a rainha Ana, da Inglaterra, ter concedido uma patentea Henry Mill, engenheiro inglês, "por uma máquina ou método artificial para a impressão outranscrição de letras separadamente ou progressivamente, uma após a outra, como naescrita”, foi inventada na França uma outra máquina para imprimir letras especialmente paracegos. Ressaltemos que muitas outras máquinas eram também destinadas a produzir cópiaspara que os cegos pudessem ter acesso à leitura pelo tato (Apud "EncyclopaediaBritannica").

- *Valentin Haüy, "Pai e Apóstolo dos Cegos"* Surgiram na mesma época dos eventos citados acima os primeiros esforços sistemáticospara a melhor educação dos cegos. Valentin Haüy (1745 a 1822), o homem que mais tardeseria reconhecido como "Pai e Apóstolo dos Cegos" teve sua atenção atraída para asquestões ligadas à educação dos deficientes visuais, não só graças ao estudo das idéias deDiderot. Um momento decisório surgiu em sua vida quando, levado pelas circunstâncias, fezuma comparação entre apresentações musicais da pianista e grande concertista ecompositora Maria Tereza von Paradis de um lado, e de outro, os entristecedores e grotescosespetáculos dados por alguns cegos, muito inadequados em seu modo de trajar ou secomportar, tentando executar música na rua para chamar a atenção dos transeuntes e comisso angariar esmolas. Haüy, depois de estudar muito bem o problema, fundou em Paris uma nova organizaçãoque levou o nome de "Institute Nationale des Jeunes Aveugles" (Instituto Nacional dosJovens Cegos), em 1784. Essa organização provocou reações muito positivas e fez umgrande sucesso desde o seu início. A causa principal dessas reações foi esta: o Instituto não asilava simplesmente o cego,mas procurava ensiná-lo a ler, tendo a Academia de Ciências de Paris examinado e aprovadoos tipos em relevo que o Instituto utilizava. Com o passar dos anos o seu sucesso foi tãogrande que Haüy acabou sendo convidado a comparecer à corte de Luiz XVI para fazer umadetalhada exposição quanto ao empreendimento, um pouco antes da eclosão da RevoluçãoFrancesa que desacelerou ou eliminou muito do que fizera antes a França com o apoio danobreza. Mas logo após a regularização da vida do país novas escolas para cegos foram abertas. Eisso aconteceu também em diversos outros países da Europa, quase todas elas seguindo onovo modelo apregoado por Haüy. Os exemplos mais positivos dessas escolas foram as deLiverpool em 1791, de Londres no ano de 1799 e, já no século XIX, de Viena em 1805 e deBerlim em 1806.

- *Educação dos deficientes auditivos no século XVIII* De outra parte, envolvendo diferentes segmentos da sociedade mais esclarecida,notaremos a marcante evolução dos sistemas montados para a educação dos deficientesauditivos em geral. E no começo do século XVIII encontraremos o nome de John Conrad Amman (1699 a1724) publicando sua "Dissertatio de Loquela", que recebeu em inglês um título enorme:"Uma dissertação sobre a fala, na qual não só a voz humana e a arte de falar são analisados

desde a sua origem, mas são descritos os meios pelos quais aqueles que são surdos e mudosdesde o nascimento podem conquistar a palavra, e aqueles que falam imperfeitamente,podem aprender como corrigir suas dificuldades". Foi por essa época - início do século XVIII - que os educadores concluíram que eranecessário um alfabeto manual para que o surdo pudesse melhor se comunicar e melhorentender o que precisava ser a ele repassado. Grande colaboração foi dada para a definiçãodo alfabeto manual por membros da família Wren, da Inglaterra. Fato importante na gradativa definição da realidade em que viviam os surdos-mudos foi apublicação de Diderot intitulada "Carta sobre o Surdo e Mudo para Uso daqueles queOuvem e Falam". Em 1755 o abade Charles Michel Epée (1712 a 1789) reconhecia que a psicologia dosurdo era diferente daquela da pessoa que ouvia. Fundou uma escola para educação dossurdos em Paris, aperfeiçoando a linguagem por sinais como meio para instrução ecomunicação de seus alunos. Acreditava que era necessário fazer entrar pelos olhos dossurdos tudo o que o restante da sociedade absorvia por meio do som, pela audição. O abade Sicard (1742 a 1822) ampliou as idéias de Epée no trabalho intitulado "Relatosobre um Menino Nascido Surdo e Mudo".

- *Os primeiros sinais de assistência nas Américas* Enquanto todos esses desenvolvimentos ocorriam na Europa, nas Américas as mesmastendências eram reconhecíveis com facilidade uma vez que todos os núcleos de colonizaçãorecebiam direta influência da respectiva Pátria-Mãe. Na verdade, os hospitais haviam há tempos surgido nas Américas. De fato, logo após odescobrimento por Cristóvão Colombo ocorreram diversos esforços para dar cobertura àpopulação colonizadora. Os conquistadores espanhóis procuraram, é natural, seguir mais ou menos os padrõesestabelecidos e encontradiços na Europa, nos seus esforços de criação de casas de tratamentoe mesmo de hospitais. Esses recursos primitivos foram organizados pelos religiosos quehaviam acorrido ao Novo Mundo (às Índias Ocidentais) para a ingente tarefa decatequização dos selvagens, com forte subsídio da coroa espanhola. Assim é que já em 1524 havia surgido o Hospital Jesus de Nazaré, a mais antigaorganização de assistência médica do continente, no México. O mesmo sucedeu nas colôniasmais tarde estabelecidas pelas coroas francesa, holandesa, inglesa e portuguesa. Ressaltemos, entretanto, que só dois séculos após é que podemos localizar nas Américasum primeiro esforço de organizada assistência médica e hospitalar, com sucesso absoluto.Tratava-se do hoje conhecido Hospital de Pennsylvania, na Philadelphia, inaugurado no anode 1751. É bastante válido chamar a atenção para o fato de que os descobridores e colonizadoresespanhóis já encontraram verdadeiros hospitais em nosso continente. Segundo nos conta DeLa Vega, as expedições espanholas comandadas por Cortés, conheceram hospitais mantidospelos Aztecas nos locais conhecidos como Cholula, Tlescoco, Tlaxcala e na sua maisimportante cidade, Tenochtitlán (hoje, Cidade do México). Falando sobre a mesma questão junto aos Incas, no Peru, Poma de Ayala, citado por DeLa Vega, afirma: "Nas grandes cidades havia verdadeiros hospitais que admitiam os anões,os corcundas e os indivíduos com lábios leporinos". Tinham eles também hospitaisdestinados a doentes incuráveis ou enfermos de aspecto repugnante, segundo o mesmo autor.Ele acrescenta que, à mesma época, os hospitais destinavam-se também a peregrinos, loucos,velhos e desvalidos (Apud De La Vega).

Finalmente, ao terminar o século XVIII foi inaugurado o Hospital de New York, masrelativamente poucos foram os hospitais criados na América do Norte, seja pelos ingleses,seja pelos franceses, antes do século XVIII, devido ao fato de haver muito poucascomunidades de porte suficiente para mantê-los com a indispensável propriedade. Comosucedia na Europa, esses hospitais das colônias caminhavam para a implantação deespecialidades médicas e dentro de algumas delas ocorriam os atendimentos às pessoasdeficientes, como não poderia deixar de acontecer.

- *O desencontro de atitudes na Europa* Durante o século XVIII atitudes as mais desencontradas são relatadas por estudiosos dodesenvolvimento hospitalar em alguns países da Europa. No Hospital Real de Bethlehem, deLondres, popularmente conhecido na época pelo apelido de "Bedlam" (que significamanicômio ou confusão) muitas pessoas de baixa cultura e possuidoras de doentiacuriosidade chegavam a pagar algumas moedas a vigias ou a atendentes do hospital paraobservar e para rir de certos doentes acorrentados, de seus gritos e dos seus rostosdesfigurados e contorcidos, especialmente quando apresentavam deformações sérias oudeficiências físicas e mentais, segundo nos relata Wolfensberger. De um modo geral, todavia, a sociedade do século XVIII dos países europeus, embora nãohomogeneamente, organizava-se para continuar a dar cobertura cada vez melhor, pelo menosde abrigo e de alimentação mais humanos àqueles que não dispunham de meios para semanter vivos fora dos hospitais, e que não apresentavam mais problemas de naturezamédica. Abrigos e asilos mais modernos foram organizados, alguns já com os primeiros indíciosde valorização real do ser humano, a despeito das suas malformações, da sua aparência oudas deficiências que apresentavam.

- *Inovações nas "Leis dos Pobres"* No ano de 1723, na Inglaterra, foram aprovadas algumas alterações operacionais nasconhecidas "Leis dos Pobres". Foi autorizado, por exemplo, que cada paróquia construísse ecolocasse em funcionamento casas de trabalho ou oficinas ("workhouses") e que recusasseprestar ajuda aos pobres que dela não participavam. Dessa forma, a situação das pessoasportadoras de deficiências físicas ou sensoriais deteriorou muito. Passaram a ficarbloqueadas dessa participação através do trabalho, uma vez que a prioridade para atuarnessas casas de trabalho recaia sobre os pobres com dificuldade de obter trabalho, mas semqualquer tipo de deficiência. A experiência foi um fracasso, pois não eliminou nem amendicância nem a pobreza. Apesar do objetivo original ter sido bom, ou seja, eliminar a inatividade e dependência daassistência prestada pela comunidade, selecionar melhor os candidatos ao recebimento deajuda, abrigar as pessoas realmente enfermas, os velhos e as crianças, e dar trabalho real aosfisicamente habilitados, essas oficinas degeneraram completamente e com grande rapidez,tornando-se verdadeiros depósitos de pessoas em situação de miserabilidade. Esse fragoroso insucesso não nos permite, porém, esquecer algumas tentativas válidaspara tornar as casas de trabalho um recurso útil para o atendimento à pobreza generalizadado século XVIII na Inglaterra. Seu eventual sucesso, entretanto, foi efêmero e sem muitosignificado.

- *Bloqueios ao sacerdócio para pessoas deficientes*

Os bloqueios interpostos pela Igreja Católica para pessoas deficientes se tornaremsacerdotes continuavam inabaláveis durante o século XVIII. Alguns exemplos práticos nossão relatados por M.André, doutor em direito canônico e membro de diversas sociedades desábios do final do século XIX, em adição à obra de Thomassin ("Ancienne & NouvelleDiscipline de l'Église") que fora escrita ao final do século XVII. Alguns dos mais significativos, citados ao final do capítulo sobre as irregularidadesrelacionadas aos defeitos de nascimento, são os seguintes: - No dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação recusou concordar com a ascensãoàs santas ordens de um clérigo "manco" da Diocese de Albenga, na Ligúria; - O padre François Pujol, da Diocese de Vincennes, na França, tendo sofrido um acidentevascular cerebral, perdeu o uso do braço e da mão esquerdos; solicitou ao bispo a dispensada irregularidade para exercício das funções sacerdotais e para celebrar a missa numa capelaprivada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregação recusou opedido no dia 19 de agosto de 1797; - O seminarista Ambroise Lamberti, da Diocese de Albenga, tinha um problema demovimentação da perna esquerda, de tal forma que precisava andar com o apoio contínuo deuma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito e opinou que haveria gravesinconvenientes em promovê-lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela SagradaCongregação no dia 20 de janeiro de 1798; - O sacerdote Philippe Maggiorani, da Diocese de Borgo San-Sepolcro, na Toscana, tevesua mão esquerda de tal forma mutilada pela acidental explosão de espingardaexcessivamente carregada, durante uma caçada, que foi necessário amputar parte do braçopara evitar sua morte. Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento de seustrabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em 18 de junho de 1785. No ano de 1787apresentou uma nova e humilde solicitação, acompanhada do parecer favorável de seu bispoe do total apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois de haversubmetido o assunto à consideração pessoal do papa, manteve a recusa à dispensa deirregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787. Outros casos poderiam ser acrescentados, mas os citados acima mostram a posição quaseque inalterada da Igreja Católica na aceitação de pessoas portadoras de deficiência para oexercício do sacerdócio até o século XVIII.

- *Hospitais públicos na França: final do século XVIII* Na segunda metade do século XVIII os hospitais públicos da França haviam decaído tantona qualidade de seus atendimentos que já estavam sendo abominados até pelos pobres. ÉVoltaire que comenta a respeito no ano de 1768: "Temos em Paris um Hospital ("Hôtel-Dieu") onde reina o perpétuo contágio, onde inválidos pobres, amontoados uns sobre osoutros, contagiam seus vizinhos com a praga e com a morte". O historiador francês Michelet também comenta a respeito do mesmo problema, dizendo:"Os doentes pobres e os prisioneiros ali confinados eram geralmente considerados comocondenados, atingidos pela mão de Deus, cujo primeiro dever era expiar seus pecados eeram sujeitos a tratamentos cruéis. Caridade desse tipo pavoroso faz-nos sentir horror. Noentanto, foi feita uma tentativa para eliminar a sensação de pavor dos hospitais: começarama dar-lhes nomes sugestivos: Hotel de Deus, A Caridade, A Piedade, O BomPastor, etc. Mas isso não convenceu os doentes e os inválidos pobres que se escondiam emcasa para morrer, tão horrorizados estavam face à possibilidade de serem levados pela forçapara esses lugares" (Apud "Encyclopedia of Religion and Ethics").

Foi nessa mesma época que os doentes mentais eram acorrentados em suas celas, poisacreditava-se que eram possuídos pelo demônio. O Dr.Philippe Pinel (1745 a 1826) tomouuma iniciativa revolucionária entre os anos de 1792 e 1826: quebrou as correntes queprendiam esses doentes às celas, substituindo o chocante tratamento anterior por um trabalhocientifico onde prevalecia uma enorme dose de bondade e de doçura.

- *Progressos no campo do atendimento à cegueira: século XIX* Em 1819 um oficial do exército francês de nome Charles Barbier procurou o InstituteNationale des Jeunes Aveugles, de Paris, com uma novidade que esperava ser útil aos seusprofessores e alunos. Barbier pretendia adaptar o que chamava de "sonografia" para o usodos cegos. Era, na verdade, um processo de escrita codificada e expressa por pontossalientes, chegando a ter representados os 36 sons básicos da língua francesa. Foraidealizado pelo oficial para ser usado na transmissão de mensagens no campo de batalha ànoite, sem chamar a atenção do inimigo pelo uso de qualquer ponto de luz. A idéia interessou sobremaneira alguns professores do renomado Instituto de cegos e logocomeçou a ser adaptada para uso dos alunos ali internados. Em 1833 surgiu nos Estados Unidos da América do Norte o primeiro livro para cegos deque se tem notícia. Adotava um alfabeto idealizado pelo educador Frielander. De outra parte,na Inglaterra, havia informações de que o primeiro livro para cegos surgira já em 1827,usando letras comuns em relevo, o que não era muito inovador. Desde o século XVIII haviamáquinas de escrever em relevo essas mesmas letras comuns. Foi alguns anos mais tarde que um jovem professor cego do Institute Nationale des JeunesAveugles - Louis Braille (1809 a 1852) - baseado na idéia de Charles Barbier e naexperiência acumulada com a utilização diuturna daqueles pontinhos em relevo, desenvolveuum sistema seu, já pelo ano de 1825, também de pontinhos em relevo, que podiam nãoapenas ser lidos como também produzidos com facilidade pelos cegos com instrumentosbastante simples. Na combinação de apenas seis pontinhos em relevo, Louis Braille garantianoventa e seis símbolos para letras comuns e acentuadas, números, pontuação e outros mais.A adoção do novo sistema em toda a França só ocorreu em 1854, dois anos após a morte deseu idealizador, Louis Braille.

- *Ludwig van Beethoven: a trágica surdez* Em 1827 morria Ludwig van Beethoven, que nascera em 1770 e que se transformara numdos maiores gênios da música erudita, apesar de ter sofrido imensamente com a gradativaperda da audição, em seus últimos anos de vida. A surdez o isolara do restante do mundo,mas não o impedira de continuar sua obra criadora. A surdez de Beethoven começara em seu ouvido esquerdo quando estava com 27 anos deidade. Logo a perda se transformara numa dificuldade bi-lateral de ouvir bem,principalmente os sons de alta freqüência. Usava o grande compositor o auxílio de trompasde ouvido e outras adaptações próprias para seu trabalho quando ao piano. Em algumas de suas cartas a amigos e confidentes, principalmente ao Dr. Franz GerhardWegeler, nota-se sua aflição pelo mal que o atingia. Com 31 anos de idade escrevia oseguinte: " ... minha faculdade mais nobre, minha audição, tem piorado muito ... esseproblema causa-me as dificuldades menos significativas ao tocar ou ao compor e as maioresquando em contato com os outros" ... "meus ouvidos assobiam e fazem barulho sempre, diae noite. Em qualquer outra profissão isso poderia ser mais tolerável, mas na minha, essacondição é verdadeiramente atemorizante. Posso lhe dizer que vivo uma existênciamiserável" (Apud Landon).

A surdez gradativa influenciou o próprio estilo de Beethoven. Com a plena consciência desua surdez total próxima, tornou-se fortemente deprimido. Parece até ter pensado nosuicídio. E aos 52 anos de idade estava surdo. Foi na fase inicial de sua perda de audição que o grande mestre compôs suas obras maisromânticas e de melodia da mais alta suavidade: "Apassionata" e "Sonata ao Luar", em1804; Sinfonias n° 3 até 6, de 1804 a 1808. Contam seus biógrafos que ele foi o maestro honorário na primeira apresentação de sua9°. Sinfonia, mantendo-se sentado ao lado do maestro regente. Não ouvia nada de toda aexecução da magnífica peça musical, mas seguia sua evolução pela partidura em suas mãos.Próximo ao final estava alguns compassos atrasado e não notou quando a orquestraterminara. Um dos solistas veio imediatamente até ele e virou-o para a platéia que aplaudiadelirantemente a obra e seu compositor.

- *Nelson, herói da Marinha Britânica* Nascido no ano de 1758, o Visconde Horácio Nelson tornou-se o mais famoso e talvez omais querido dos heróis ingleses. Ele era mais do que um brilhante dominador de táticas daguerra naval - era um líder sob todos os aspectos. Há uma famosa frase de Nelson quepassou para a História da Inglaterra e que é a seguinte: "A Inglaterra espera que cada homemcumpra o seu dever". Ela não foi dita por Nelson em reuniões ou em pronunciamentos a seussubalternos. Ela foi transmitida de seu navio capitania, o "Victory", por sinais, a toda a frotaque navegava para a grande batalha de Trafalgar. A estratégia tática que Nelson imprimiu na luta contra a esquadra dos poderosos naviosdas forças napoleônicas (os franceses e os espanhóis) consagrou-o para sempre. Mas foi exatamente nessa batalha que Nelson foi atingido por um projétil que fraturou suaespinha dorsal. Sem recursos médicos de grande monta que talvez pudessem ter salvo pelomenos sua vida, o grande herói inglês faleceu no meio do fragor da batalha que sedesenrolou no dia 21 de outubro de 1805. Segundo alguns autores, se tivesse sobrevividoNelson provavelmente teria sido vítima da paraplegia por secção da medula.

- *Os progressos nos Estados Unidos da América do Norte* As primeiras providências observadas nos Estados Unidos da América do Norte comrelação à assistência mais organizada aos soldados feridos ou mutilados parece teremacontecido em 1811, quando o Congresso autorizou o Secretário da Marinha a construir umlar permanente para seus oficiais. Esse novo recurso logo começou a aceitar marinheiros efuzileiros navais com problemas físicos sérios e outros problemas limitadores daindependência individual. Foi construído na cidade de Philadelphia e só entrou em funcionamento em 1831. E noano de 1867 surgiu um outro recurso: o Lar Nacional para Soldados Voluntários Deficientes,assim que terminou a Guerra Civil Americana, com o seu primeiro núcleo na cidade deTogus, Me. (Apud "Encyclopaedia Britannica").

- *Os sinais de melhor compreensão dos problemas dos deficientes* Foi no século XIX que a sociedade começou a assumir a responsabilidade sobejamentereconhecida para com as pessoas portadoras de deficiências. Até o século XVI, durante ofortalecimento da Renascença, os homens em geral ainda relacionavam muito do queacontecia ao ser humano à força das superstições, das diversas crendices dominantes e dosobrenatural. Mas, do século XVI em diante, o mundo já se acostumara a examinar fatos emtermos mais práticos e naturais.

Precedida pela Revolução Industrial, a Revolução Intelectual fez com que a sociedade demuitos países europeus pensasse um pouco nos seus grupos minoritários e marginalizadoscomo uma de suas muitas responsabilidades e não apenas como objeto de promoçõescaritativas e de caráter voluntário. Chegou-se à conclusão de que a solução para essesproblemas não era apenas uma questão de abrigo, de simples atenção e tratamento, deesmola ou de providências paliativas similares, como sucedera até então. Ao se dar maior volume de atenção, por exemplo, aos cegos, aos velhos, aos surdos, aosmutilados de guerra, aos doentes crônicos e aos deficientes de um modo mais amplo,chegou-se a pensar que eles na verdade não precisavam tanto de hospitais de caridade ou decasas de saúde, mas de organizações separadas, o que tornaria seu cuidado e seuatendimento mais racional e menos dispendioso. Foi em boa parte devido a esse tipo de raciocínio e à troca de experiências que a sociedadede alguns países europeus, quase que exclusivamente por iniciativa de particulares, fundoualgumas entidades especializadas, sem lembrar talvez que Constantinopla havia acenadopara essa posição desde o alvorecer do Cristianismo, ou seja, há mais de 15 séculos... Essas novas organizações, todavia, não se destinavam apenas à assistência e à proteçãodesses grupos marginalizados, mas também para estudo de seus problemas e dificuldades,para o estabelecimento de algumas alternativas de atendimento e também para o tratamentode situações concretas. Surgiram abrigos para crianças (orfanatos, em geral) e para velhos(asilos), lares para as crianças com defeitos físicos e muitas outras organizações separadasdos hospitais gerais oficiais ou particulares. Embora no século XIX ainda não se pensasse na integração do homem deficiente àsociedade aberta ou mesmo à sua família, ele passou a ser visto como ser humano (infeliz,desafortunado e coitado para aquela época, é evidente) dono de seus sentimentos e capaz deviver ou de pretender levar uma vida decente, desde que fossem garantidos meios para isso.Para um bom volume de casos a questão acabava restringindo-se à redução de uma situaçãode miserabilidade a um mínimo suportável, dando ao indivíduo atingido um restante de vidamais tranqüilo, desde que possível.

- *Uma iniciativa de Napoleão Bonaparte* Pensando mais avançada e utilitariamente, o arguto Napoleão Bonaparte, que nasceu em1769 e morreu em 1821, exigia de seus generais que olhassem os seus soldados feridos oumutilados como elementos potencialmente úteis, tão logo tivessem seus ferimentos curados.Os exércitos franceses passaram, em muitas de suas unidades, a utilizar esses soldados nosesforços de guerra de tal forma que conseguiam ainda tornar-se produtivos e diretamenteligados às suas unidades. Napoleão procurava utilizar seus esforços conforme as circunstâncias o permitiam. Eforam usados em serviços de manutenção montados na retaguarda, de acordo com suascapacidades físicas, conservando fardamentos, trabalhando em selaria, cuidando dosequipamentos, de alimentação, de limpeza de animais e outras atividades.

- *Madre Agostinha, fundadora das Irmãs Irlandesas da Caridade* Mary Aikenhead (1787 a 1858), por solicitação do bispo Murray, de Dublin, na Irlanda,fundou a congregação religiosa conhecida como Irmãs Irlandesas da Caridade. As irmãsreligiosas não eram enclausuradas e visitavam famílias pobres em suas próprias casas. Devido às características de desenvolvimento daquela época, durante a qual não havia aemancipação dos católicos na Irlanda, Mary adotou o nome religioso pelo qual ficou sendo

conhecida (Madre Agostinha) apenas para contatos com outras religiosas, e o seu nome leigopara todos os demais contatos externos. Um dos trabalhos mais notáveis dessas religiosas ainda durante a vida de MadreAgostinha ocorreu durante uma epidemia de cólera. Madre Agostinha ficou muito enferma em 1831 e impossibilitada de se locomover até asua morte, no ano de 1858. Dirigia sua comunidade mesmo com a desvantagem dadeficiência que a bloqueava e impedia de uma participação maior e mais efetiva.

- *Lord Byron, poeta e satirista inglês* George Gordon (1788 a 1824), barão e o sexto Lord Byron, teve uma vida que cativou aimaginação de toda a Europa. De um lado era profundamente melancólico e de outro era umhomem repleto de aspirações políticas. Nasceu com um problema físico (pé torto) e sempre foi muito afetado por essadeficiência. Tratado como "garoto aleijado" por uma linda jovem da qual estava enamorado,alimentou sua mágoa com poemas de profunda tristeza, muitas vezes relacionados a amoresinatingíveis. Dedicou muito de seu tempo e fortuna à causa da libertação da Grécia e lámorreu. Foi considerado e até hoje muitos o consideram um"herói nacional grego".

- *Antonio Feliciano de Castilho, um dos maiores literatos portugueses* Castilho (1800 a 1875) tem sido indicado como poeta, prosador, ensaísta, escritor epedagogo, mas é, sem dúvida, uma das mais importantes figuras literárias nascidas emPortugal. Perdeu a visão aos 6 anos de idade, mas seu denodado irmão Augusto, percebendo suaincrível memória, ajudou-o a estudar e a inteirar-se do mundo que o cercava. Já prestes afinalizar seu curso em Coimbra, publicou em 1821 seu primeiro trabalho de verdadeiraimportância: "Cartas de Eco e Narciso". Com a publicação de seu livro de poesias "O Outono", após uma viagem ao Brasil e seusanos em Açores, despertou nos meios literários lusitanos uma violenta polêmica que ficouconhecida como "Questão Coimbrã". Nela estiveram envolvidos nomes famosos, comoAntero de Quental, Camilo Castelo Branco e outros. A cegueira não impediu Antonio Feliciano de Castilho de se transformar num dos maisrespeitados nomes de toda a literatura portuguesa.

- *Outros cegos do século XIX que ficaram famosos* Embora numa brevíssima nota, é importante que nos lembremos de três cegos que ficaramfamosos pela sua competência em pleno século XIX: *Jacques Nicolas Augustin Thierry* (1795 a 1856) um grande renovador da ciênciahistórica francesa e autor de "Narrativas dos Tempos Merovíngios", "Considerações sobre aHistória da França" e "Ensaio sobre o Terceiro Estado". *William Hickling Prescott* (1796 a 1859), historiador inglês, autor de "História doReino de Fernando e Isabel" e "Conquista do México". *Henry Fawcett* (1833 a 1884), economista e político inglês, autor de "Manual deEconomia Política" e catedrático na Universidade de Cambridge. Foi casado com a famosaMillicent Garrett.

- *A ortopedia do século XIX e as deficiências físicas*

Já nos primeiros decênios do século XIX foi surgindo a própria base da reabilitação depessoas portadoras de lesões físicas. Essa base, ainda não estabelecida, defenderia a idéia deque as pessoas que apresentavam deficiências físicas deveriam receber, além dos cuidadosmédicos de que precisassem, serviços especiais para poder continuar uma vida de acordocom suas aspirações e a própria dignidade do homem - conceito esse derivado da filosofiahumanista somada às experiências práticas advindas do forte progresso da ciência médica. Dentro dessa corrente de raciocínio, muito maior e melhor volume de atendimentomédico-cirúrgico e/ou ortopédico surgiu em poucos anos na Europa e em diversas outraspartes do mundo. Vejamos alguns progressos mais significativos: 1812 – Johann Georg von Heine criou um hospital só de atendimento ortopédico nacidade de Würzburg, na Prússia. 1817 - Foi criado na cidade de Birmingham, na Inglaterra, um hospital dedicado apenas acasos de ortopedia, ou seja, o chamado Orthopaedic Hospital. 1818 - Em Lübeck, Alemanha, foi também fundado um hospital destinado a pacientes queapresentassem males ortopédicos, por influência do médico Lesthof. 1821 - Foi fundado na cidade de Bar-le-Duc, na França, um hospital semelhante. 1826 - São construídos em Berlim, Alemanha, dois hospitais para ortopedia, enquanto queno mesmo ano em Paris dois outros são também organizados. 1828 - Um hospital ortopédico é inaugurado na cidade de Montpellier, França. 1830 - Inaugurado na cidade alemã de Hannover o famoso Stromeyer Hospital, destinadoexclusivamente ao atendimento de casos de ortopedia. Muitos outros evidentemente surgiram à mesma época ou durante a segunda metade doséculo XIX, não só na Europa como nos Estados Unidos, e dentre eles cumpre quedestaquemos os de Haia, Londres, Copenhague, Praga, Florença, Petrogrado e New York. Este avanço fulminante da ortopedia, aliada a outras áreas do atendimento médico, levou auma atenção muito mais apropriada a males diretamente relacionados a deficiências físicas,conseqüentes a fraturas, amputações, deformações e outros males do esqueleto.

- *Atendimento mais especializado aos cegos* Verifiquemos alguns desenvolvimentos adicionais ocorridos no século XIX no campo dacegueira: - Três escolas destinadas ao atendimento especializado de cegos foram organizadas nosEstados Unidos, sendo a mais famosa delas a New England Asylum for the Blind,inaugurada no ano de 1832, hoje reconhecida no mundo todo com o famoso nome de"Perkins School for the Blind". Está localizada em Boston, Masachussets. As outras duasforam organizadas em 1832 e 1833, nas cidades de New York e Philadelphiarespectivamente. Em outros países o atendimento mais específico e mais cuidadoso de cegosgradativamente se implantava: 1863 - Em Lisboa, Portugal, no Castelo de Vide, foi iniciado o ensino profissionalizantepara alunos cegos. 1866 – Na Cidade do México foi criada e instalada a primeira escola para cegosmexicanos. 1876/1880 - Em Kyoto e em Tóquio foram criadas duas modernas escolas para recebersomente alunos cegos. 1882 - Foi criada em Londres a Sociedade de Prevenção da Cegueira - entidadessemelhantes foram também organizadas em outros países logo após. 1888 - Criada em Buenos Aires, Argentina, a Escola para Cegos e para Surdos.

1890 - Em Santiago de Chile foi também criada uma escola para cegos. De uma certa forma o Brasil foi pioneiro nas Américas Central e do Sul, com a criação doImperial Instituto dos Meninos Cegos, no ano de 1854, no Rio de Janeiro. Sobre essaexperiência daremos pormenores no capítulo seguinte. Ainda no atendimento a cegos, dentro do Continente Asiático, ocorreu o início daprimeira escola para cegos da China em 1876, por iniciativa do missionário William HillMurray, da Sociedade Escocesa da Bíblia. Murray dedicou-se muito a esse empreendimentoe chegou mesmo a inventar um sistema Braille para a língua chinesa, mais tarde substituídopelo Braille Union Mandarin, aceito em todas as regiões da vasta China onde o Mandarin erafalado. Um pouco antes disso, no ano 1868, durante a restauração Meiji, no Japão, os privilégiosespeciais até então dados aos cegos para se dedicarem com exclusividade à massagem e acertas áreas da acupuntura foram suspensos. A tradição, porém, manteve-se e até hoje onúmero de massagistas cegos é muito grande no Japão e em muitas outras partes do mundo.

- *A pessoa deficiente vista com potencial para o trabalho* A partir da segunda metade do século XIX houve um forte incremento às atençõesdestinadas às pessoas portadoras de males limitadores de sua atuação, mais em concordânciacom as características individuais, tornando-se, portanto, mais humanas no mundo todo maisatualizado. Em alguns países nórdicos surgiram preocupações muito sérias quanto aoaspecto do potencial da pessoa deficiente para a produção de bens e para desenvolvimentode serviços, pelo menos para cobrir as próprias necessidades de sobrevivência. Como resultado prático dessa preocupação, no dia 1º de maio de 1863, um grupo depessoas influentes da sociedade novaiorquina criou a New York Society for Relief ofRuptured and Crippled, em plena Segunda Avenida, no distrito de Manhattan. Hoje essamesma sociedade foi transformada no New York Hospital for Special Surgery, um dosmelhores do mundo todo no atendimento a casos de deficiências físicas das mais variadasordens. A Dinamarca também entrou na luta para um melhor aproveitamento da mão-de-obra empotencial das pessoas deficientes, fundando uma organização especial para atendimentosocial e profissional, em 1872, ou seja, a Sociedade e Lar para Defeituosos (Society andHome for Cripples), seguindo praticamente exemplo sueco que, segundo parece, havia sidodivulgado alguns anos antes de seu estabelecimento. Outro exemplo de tentativa para encontrar uma solução de trabalho para pessoasportadoras de limitações físicas surgiu com a iniciativa do Pastor Hoppe, um alemão que em1885 organizou uma sala de aulas para ensino de um ofício para crianças deficientes. Suainiciativa encontrou um sucesso muito grande, pois toda aquela escola foi transformada numlar para pessoas com deficiências aprenderem profissões diversas.

- *O problema dos surdos e dos surdos-mudos e suas soluções* O atendimento aos surdos e aos surdos-mudos também progrediu muito no século XIX.Exemplos desse progresso são os seguintes: - Na Inglaterra, ao final do século XVIII e início do século XIX, o educador ThomasBraidwood (1715 a 1806) organizou uma escola para surdos em Edinbourgh e logo apósuma outra em Londres. Eram escolas particulares e a pagamento, que tiveram o condão dedespertar a atenção para o problema dos surdos e para as soluções que se apresentavamviáveis. A primeira escola para surdos pobres havia já sido aberta em1792, em Londres (Old Kent Road) mudando-se mais tarde para Margate.

Durante o século XIX muitas outras escolas para surdos foram organizadas na Inglaterra,tanto assim que em 1870 havia dez escolas residenciais dessa natureza. O governo inglêsfinalmente assumiu a responsabilidade pelo ensino oficial dos surdos e dos cegos em 1893,tornando-se obrigatório entre os 7 e 16 anos de idade, como parte integrante do ensinooficial. - Na Alemanha, Moritz Hill (1805 a 1874) desenvolveu um método próprio de educaçãopara crianças surdas, usando a comunicação oral e seguindo exemplo do educador alemãoSamuel Heinicke (1727 a 1790). Hill sempre foi considerado um dos melhores educadoresde surdos de todos os tempos. - Nos Estados Unidos, em 1803, Francis Green de Boston já fizera juntamente com algunsreligiosos protestantes, uma tentativa de recenseamento de surdos em todo o Estado deMasachussets, encontrando 75 surdos. Supondo, pelo seu levantamento, que no país tododeveria haver bem mais do que 500 surdos, sugeriu a criação de escolas especiais. No ano de 1815, em Hartford, Connecticut, foi organizada uma sociedade para a instruçãode surdos que tomou a sábia iniciativa de levantar fundos para mandar o jovem professorThomas Hopkins Gallaudet à Europa para aprender métodos comprovados de ensino parasurdos. Chegou a estudar o método de sinais na escola do Abade Sicard, em Paris, e em1816 voltou aos Estados Unidos com um professor surdo: Laurent Clerc. No dia 15 de abril de 1817 foi aberta a Escola Hartford para Surdos que começou autilizar tanto os sinais quanto o alfabeto normal e a própria escrita. Foi em 1818 que foi criada a New York Institution for the Deaf, graças à influênciamarcante e ao interesse direto do Reverendo John Stafford. O ano de 1867 viu surgirem duas escolas de importância nesse campo: a Clarke School,em Northampton, Masachussets e a Institution for the Impaired Instruction of the Deaf, emNew York, hoje chamada de Lexington School for the Deaf. Elas usavam métodos decomunicação oral em contraposição ao de comunicação por sinais, usado nos primeiroscinqüenta anos do século XIX.

- *Proteção ao acidentado de trabalho por legislação recente* Otto von Bismark, Chanceler do Império Alemão, aprovou no ano de 1884 o que éconsiderado como a primeira lei do mundo que protegia o acidentado no trabalho, no que foiimediatamente imitado por muitos outros países europeus. Era uma das primeirasprovidências objetivas relacionadas a trabalhadores civis, levando gradativamente àsprogramações de recuperação física e de reabilitação, com tentativas de readaptação aotrabalho e reaproveitamento daquela mão-de-obra prejudicada. Boa parte da pressão por soluções que visualizassem a volta ao trabalho como um ideal aser atingido partiu de companhias de seguros, envolvidas no processo devido àsdeterminações legais de proteção ao trabalhador.

- *A modernização da cirurgia ortopédica e as pessoas deficientes* Ao se especular sobre cirurgia ortopédica e seu significado na eliminação, na redução ouna prevenção de deformidades físicas, na segunda metade do século XIX, não se pode deixarde mencionar nomes como os de John Hilton, G.F.Stromeyer, William J.Little, H.O Thomas,Sir Robert Jones e outros. Como é sobejamente sabido, a cirurgia ortopédica pode ser preventiva ou reconstrutiva. Eapenas para que possamos ter uma idéia do escopo amplo dessa especialidade médica dentroda ortopedia, que tanto tem a ver com o mundo das pessoas deficientes, relembremos que asdeformidades podem ser adquiridas ou congênitas.

Paremos por um instante apenas em nosso desenrolar histórico e meditemos sobre aimportância que teve e tem a cirurgia ortopédica em problemas relacionados aos portadoresde deficiências físicas, e façamos justiça aos médicos que têm procurado dedicar-se a essaespecialidade. Dentro do vasto campo para suas intervenções, lembremos as mais significativas: acirurgia reconstrutiva da coluna vertebral e das extremidades é da mais real importância;fraturas mal solidificadas ou mal restauradas são tratadas por procedimentos cirúrgicosdentro da cirurgia ortopédica; tendões podem ser reparados por transplantes e outrosprocedimentos específicos; diferenças nos tamanhos das pernas podem ser acertadas; muitasdoenças do esqueleto humano podem ser resolvidas pela cirurgia ortopédica; amputações aníveis adequados e com técnica cirúrgica que permita o uso de próteses são possíveis; aprevenção de deformidades por procedimentos cirúrgicos é também perfeitamente viável.Essas são algumas das intervenções mais conhecidas da cirurgia ortopédica que avançacontinuamente para uma atuação cada vez mais primorosa. Dentre os cirurgiões ortopédicos mais famosos cumpre que separemos o nome deStromeyer, de Hannover, na Alemanha. Ele havia desenvolvido uma operação conhecida portenotomia (corte dos tendões), pela qual conseguia corrigir com menos dificuldade algunstipos de deformidades. Foi a ele que um novo pioneiro da cirurgia ortopédica - William J.Little, da Inglaterra - recorreu no ano de 1836. O Dr.Little havia nascido com uma paralisia no pé, e com o tempo este havia ficadodeformado. Venceu barreiras, enfrentou ambientes e formou-se médico. Seus estudos sobreas causas do pé torto e a introdução, na Inglaterra, da tenotomia, sobre a qual tanto aprenderacom Stromeyer antes, durante e depois de sua própria cirurgia foram providências muitosignificativas para o desenvolvimento da cirurgia ortopédica.

- *Reabilitação desabrocha num centro de atendimento, em Cleveland* Os primeiros indícios de reabilitação aplicada como tal surgiram nos Estados Unidos noano de 1889 com a criação de uma organização especial para o atendimento de pessoasdeficientes e que utilizou o nome de Cleveland Rehabilitation Center. Um pouco depois, no ano de 1893, foi organizada na cidade de Boston uma entidadechamada Boston Industrial School for the Crippled and Deformed, que não só ofereciaalguns treinamentos profissionalizantes mas também vários outros serviços que o individuonecessitasse. À época do nascimento de Helen Keller, em 1880, já havia movimentos bem conscientesno Alabama quanto aos problemas de pessoas deficientes. Havia profissionais quecomeçavam a expressar sua preocupação com o conteúdo e com a própria metodologia (ouausência dela) dos programas que se iniciavam em diversas áreas. Um dos sintomas clarosdessa preocupação foi a criação da American Association of Workers for the Blind(Associação Americana de Trabalhadores com os Cegos, em Washington, no ano de 1895. O conceito de reabilitação em seu sentido amplo e de atendimento às necessidades do serhumano com deficiências, mas como um todo, tomou forma no final do século XIX, devidoa fatores múltiplos, dentre os quais não podemos deixar de mencionar a preocupação dealgumas sociedades com o homem em seu sentido mais profundo, as tendênciashumanísticas em algumas profissões, tais como a medicina psiquiátrica, e também osurgimento de outros grupos de profissionais mais voltados para problemas sociais ou paradificuldades individuais do ser humano num contexto familiar e comunitário. Algumas organizações continuaram e continuam a manter uma tônica custodial,assistencialista, caritativa e segregacionista. Mas o reconhecimento da pessoa humana como

um indivíduo de méritos próprios e de potencial a ser melhor aproveitado passava a serirreversível.

- *Helen Keller, cega, surda e muda: um marco indelével* Ao final do século XIX (1880) nascia Helen e com 19 meses ficou cega e surda. Logo aseguir não conseguiu mais falar. Foi com 7 anos de idade que começou a receber a ajuda deAnne Sullivan, graças a uma sugestão de Alexander Graham Bell, consultado pelos Kellerquanto a uma solução para os problemas de Helen. A assistência a Helen Keller resultou deuma combinação de esforços de várias organizações que levaram a jovem a ler, escrever eaté falar. Em 1900 Helen entrou no Colégio Radcliffe, graduando-se em 1904 "cum laude". Desseponto em diante sua vida foi marcada por uma plena dedicação à causa de pessoas vítimasde múltiplas deficiências. Ela foi um verdadeiro marco nos esforços para melhor compreensão das potencialidadesdo ser humano para superar problemas considerados insuperáveis. Lutando com problemas semelhantes à mesma época, mas vivendo situações de vida bemdiversas, poderemos citar alguns nomes que fortalecem a crença no potencial do ser humanoe na criatividade de muitos profissionais que levam a verdadeira ciência do atendimento paramelhores e mais objetivos resultados: Laura Bridgman (que só tinha o sentido do tato e que mesmo assim recebeu uma educaçãometódica) e Richard Clinton, ambos dos EUA; Marthe Obrecht, da França; Inocêncio Juncary Reyes, da Espanha; Eugênio Malassi, da Itália e Marie Heurtin, da França - todos comdeficiência visual e auditiva. Marie Heurtin nasceu cega e surda e ao ser encaminhada a uma escola especial em NotreDame de Larnay, perto de Poitiers, rolava na terra e grunhia como um pequeno animal.Segundo Pierre Villey, autor cego dos mais categorizados, que escreveu sua interessanteobra "Le Monde des Aveugles" em 1914, Marie Heurtin "é hoje uma jovem de 25 anos,cordata, ativa, alegre, que raciocina bem"... e ... "Laura Bridgman, que não tinha apenas avisão e a audição, mas também o paladar e o olfato, fornece a prova irrefutável que apenasas impressões do tato são suficientes para emancipar uma alma e para liberar seu eco para osmais altos cimos que o espírito humano tem explorado" ("Le Monde des Aveugles", deVilley).

CAPÍTULO QUINTO A PESSOA DEFICIENTE NO BRASIL COLONIAL E IMPERIAL

Conforme tivemos oportunidade de verificar no rápido passar pelos muitos séculos daHistória do Homem, as doenças graves, os acontecimentos nefastos e os muitos infortúniosque sempre levaram às situações de deficiências físicas ou sensoriais jamais deixaram deexistir. Essa verdade sempre foi válida em todos os quadrantes da Terra, em qualquer época.Ela é válida também para todos os períodos da História doBrasil, tanto para os nossos aborígenes ou para os negros escravos que para cá foramtrazidos como carga humana em navios infectos e superlotados, como também para osnossos muitas vezes bravos colonizadores provenientes de Portugal, da França, da Holanda eda Espanha. Se buscarmos nos arquivos de nossa História, poderemos surpreender-nos com normas oudecretos que chegaram a abordar os problemas de pessoas com defeitos físicos. E se formospesquisar as atividades de organizações de épocas remotas em diferentes cidades(principalmente entre os séculos XVI e XVIII) certamente que acharemos referências váriasa "aleijados", "enjeitados", "mancos", "cegos", "surdos-mudos" e outras mais. No entanto, assim como na velha Europa, a quase totalidade das informações sobrepessoas defeituosas está diluída em comentários relacionados aos doentes e aos pobres deum modo geral, como era usual em todas as demais partes do mundo. Na verdade, tambémno Brasil a pessoa deficiente foi considerada por vários séculos dentro da categoria maisampla dos "miseráveis", talvez o mais pobre dos pobres. Os mais afortunados que haviam nascido em "berço de ouro" ou pelo menos remediado,certamente passaram o resto de seus dias atrás dos portões e das cercas vivas das suasgrandes mansões, ou então, escondidos, voluntária ou involuntariamente, nas casas decampo ou nas fazendas de suas famílias. Essas pessoas deficientes menos pobres acabaramnão significando nada em termos de vida social ou política do Brasil, permanecendo comoum "peso" para suas respectivas famílias. Sempre que analisamos o problema das pessoas deficientes em épocas passadas daHistória do Mundo, não podemos deixar de prestar a devida atenção à evolução das ciênciase de um modo todo especial à evolução do atendimento médico, à existência de recursos deassistência hospitalar das mais variadas naturezas e à manutenção, pela sociedade ou pelosgovernantes, de entidades de beneficência para pobres, pois as pessoas deficientes sempreestiveram inseridas nesses reduzidos contextos. É fácil depreender que no Brasil - uma mera colônia de Portugal - a situação não foi enem poderia ter sido muito diferente. Assim, é muito importante que tentemos encontrarmeios para visualizar, durante os primeiros três séculos de nossa História, os problemas daspessoas com males incapacitantes, em nossa realidade geral, sem entretanto poder destacá-los por quase absoluta falta de dados específicos.

- *Os primeiros hospitais do Brasil Colonial* Comecemos por verificar como nossos ancestrais enfrentavam os problemas de saúde. Enesse sentido notaremos que não existe concordância entre os autores quanto à criação deuma primeira entidade hospitalar no Brasil. Seguindo modelo português, a tendência foicriar as Casas de Misericórdia, com recursos provenientes da comunidade e com o fimespecífico de atender aos doentes necessitados de assistência médica, sem ter condições depagar por esses serviços especiais.

Alguns historiadores defendem como ano de fundação da primeira Casa de Misericórdia ode 1545, enquanto que outros falam do ano de 1567. Ao que parece, Estácio de Sá (1520 a1567), terceiro Governador Geral do Brasil e sobrinho de Mem de Sá, trouxera orientaçõesdiretas do rei de Portugal, não só para expulsar os franceses de Villegaignon, instalados nabaía da Guanabara, mas de construir ali, próximo ao morro conhecido com o nome de Pãode Açúcar, uma cidade. Nela, dentre os recursos essenciais, o rei determinava a construçãode uma casa para abrigar a Confraria da Misericórdia e seus serviços. A cidade recebeu onome de São Sebastião, em homenagem ao rei. Mas Estácio de Sá não teve muito tempo para se dedicar à completa construção da novacidade, pois no ano de 1567, com apenas 47 anos de idade, faleceu, vítima de uma flechadano rosto, após ter passado semanas com alta febre e com seriíssima infecção causada peloferimento. Anchieta, um dos maiores jesuítas que atuaram no Brasil, esteve presente à suamorte. Segundo vários autores, só mesmo no dia 24 de março de 1582 é que foi determinada aconstrução de diversas palhoças de pau-a-pique cobertas de sapé, onde o padre José deAnchieta instalou, na vila de São Sebastião do Rio de Janeiro, o que foi depois conhecidocomo Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. A construção fora acelerada para poderdar abrigo urgente à tripulação e aos soldados da esquadra de um corajoso almiranteespanhol, Dom Diogo Flores Valdez, todos atacados por escorbuto e por febres malignasdurante sua longa viagem da Espanha para o Estreito de Magalhães, com 23 naus e 5.000homens armados, a fim de lá construir fortificações e povoados. A volumosa esquadra haviasurgido na baía da Guanabara muito cautelosamente, com a temida cruz negra no alto dosmastros de todas as naus. Era o indicativo de peste a bordo. E foi socorrida. Alojados, ainda que precariamente, os soldados e marujos espanhóis, Anchieta e os outrosjesuítas auxiliados por colonos de boa vontade e por índios amigos, prepararam pomadas emezinhas todas elas extraídas de nossa muito rica flora. Há autores que discordam da data e do local de instalação do primeiro hospital brasileiro.Segundo Zarur, por exemplo, o Barão do Rio Branco afirmava ter ocorrido no dia 24 defevereiro de 1583 um violento combate entre dois galeões ingleses e três espanhóis em plenoporto de Santos, praticamente à frente de São Vicente. Devido a esse combate e aos seusdesastrosos resultados em termos de destruição de casas e ferimentos em muitos marujos ehabitantes da vila, ali foi organizada, no mesmo ano, a primeira Casa de Misericórdia doBrasil. As informações de Santos Filho dão-nos, todavia, uma visão bem mais ampla de todo oassunto. Segundo esse renomado professor de medicina, eis algumas datas de fundação denossos hospitais de misericórdia no século XVI: 1543 - Data considerada incerta mas provável para a criação da Casa de Misericórdia deSantos. 1549 - Ano de criação da Casa de Misericórdia da Bahia. 1540 - Embora anterior a todas, a data é bastante incerta para a alegada criação da Casa deMisericórdia de Olinda. 1570 - Data das primeiras instalações da Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro,retomadas em 1582 com a construção de palhoças para a tripulação e soldados embarcadoscom Dom Valdez. 1590 - Instalação da Casa de Recife. 1595 - Instalada a do Espírito Santo.

Lembremo-nos que quase todas essas pobres Casas de Misericórdia mantinham atristemente famosa Roda dos Expostos, na qual muitos recém-nascidos com deformaçõesforam colocados por mães desesperadas, tendo eles sido criados em orfanatos ou nosconventos, como elementos à margem da sociedade. - *Anchieta e seu exemplo de assistência aos doentes* Ressaltemos que bem antes dos empreendimentos acima indicados outras iniciativas deassistência a enfermos, a doentes crônicos e enjeitados vinham sendo levadas a efeito. Issoocorreu com a presença dos jesuítas desde o começo da fundação de São Paulo. Nadamelhor do que buscarmos as palavras de quem realmente esteve ali presente, por aquelesagrestes e muito difíceis anos do início da maior metrópole brasileira, ou seja, o padre Joséde Anchieta. Em carta datada de 1554, enquanto ainda estava em Piratininga, ele narra o seguinte: "Dejaneiro até o presente tempo, permanecemos algumas vezes mais de vinte em uma pobrecasinha feita de barro e paus, coberta de palhas, tendo catorze passos de comprimento eapenas dez de largura, onde estão ao mesmo tempo a escola, a enfermaria, o dormitório, orefeitório, a cozinha e a dispensa" (Apud Rodrigues). Doentes e acidentados acorriam a esse incipiente recurso polivalente surgido em SãoPaulo de Piratininga no próprio ano de sua fundação. Ao descer a serra para São Vicente,ainda no ano de 1554, Anchieta escreveu uma carta especial para os seus irmãos jesuítasdoentes em Coimbra, afirmando: "... neste tempo que estive em Piratininga servi de médicoe de barbeiro, curando e sangrando a muitos daqueles índios dosquais viveram alguns de que não se esperava vida, por serem mortos muitos daquelasenfermidades" (Apud Rodrigues). O termo "barbeiro" relaciona-se aqui à função de cirurgião e não à de cortador de cabelose aparador de barbas, pois conforme verificamos anteriormente, durante vários séculos assangrias e certas intervenções hoje inseridas em cirurgia eram praticadas por essesprofissionais. Ao referir-se às atividades de José de Anchieta quando "sangrava" portugueses e índios, ohistoriador Robert Southey (1779 a 1843) afirma: "suscitaram-se escrúpulos a respeito desseramo de sua profissão, pois que ao clero é proibido derramar sangue; consultado Loyola,respondeu que a caridade se extendia a tudo ("História do Brasil", de Southey). O mesmo autor afirma também que Anchieta dispunha apenas de um canivete de afiarpenas de escrita para realizar essas famosas sangrias. Não nos é difícil imaginar que Anchieta tenha lutado fortemente contra a desabusada emuito aceita atuação de benzedores ou feiticeiros, uma vez que, de acordo com seus própriosescritos, ele chegou a preparar mezinhas, operou, sangrou, fez partos, exumou cadáveres,curou feridas bravas, tratou de cancros, fez curativos, assistiu a velhos, crianças, moribundose loucos. Cuidou também de problemas decorrentes de flechadas, golpes de tacape, feridasde guerra; combateu pestes, infecções, febres e até suicídios; chegou até a descrever malesdesconhecidos à época e diversos tipos de doentes.

- *Males incapacitantes nos primeiros anos de Brasil* Falando sobre nossos indígenas, Santos Filho informa-nos incisivamente: "Eramraríssimos os aleijados e as deformações reconheciam origem traumática". E cita-nos umafrase de Anchieta a esse respeito: "Achava-se raramente um cego, um surdo, um mudo ouum coxo, nenhum nascido fora do tempo" (Apud Santos Filho).

Sobre os nossos índios dos meados do século XVI Jean de Léry, que os viu muito de pertoe com os mesmos conviveu muito enquanto aguardava navio para voltar à França, afirma:"Não são maiores nem mais gordos que os europeus; são, porém, mais fortes, mais robustos,mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre elesmuito poucos coxos, disformes,aleijados ou doentios" ("Viagem à Terra do Brasil", deLéry). Entre os portugueses, no entanto, a situação era outra e não era tão serena. No início dacolonização brasileira, os colonos sofriam muito com a quantidade de insetos nocivos à suasaúde e bem-estar. Afetavam-nos muito também os males próprios dos trópicos ecaracterísticos de uma terra nunca desbravada, alguns deles de natureza muito grave e queacabavam levando a severas limitações de natureza física ou sensorial. Havia, por exemplo, um inseto chamado "chigua", citado por diversos autores da época.Era de proporções reduzidíssimas, muito encontradiço nas primeiras pousadas ou fazendasque se dedicavam à produção de cana de açúcar. Infestava também outras regiões,evidentemente. Essa espécie de inseto pólvora introduzia-se entre as unhas e as carnes dosdedos das mãos e dos pés. Chegava a afetar muito seriamente algumas juntas do corpo. Léry conta que, por maior cuidado que tivesse e por maior esmero que procurasseempregar para deles se livrar, não conseguia. Segundo seu relato, chegaram a extrair delemais de vinte "chiguas" num só dia. E, de acordo com Southey, muita gente chegou a perderos pés de uma forma pavorosa, por causa desse inseto. Os nossos índios e nossos mamelucos sabiam de uma segura solução para o problema dos"chiguas", não sendo por eles muito molestados. Aos poucos foram os europeus tambémseguindo seu exemplo. "Untavam as partes que mais expostas andavam a esta praga, comum azeite vermelho e espesso, espremido do "courouq", fruta que em nossa terra é parecidacom a castanha. Por felizes se deram os franceses quando souberam desse preservativo. Paraferidas e contusões era o mesmo óleo soberano ungüento" ("História do Brasil, de Southey). Santos Filho, analisando peculiaridades do Brasil nesse incrível e muito difícil séculoXVI, afirma que após anos de colonização "tal e qual como entre os demais povos, e nomesmo grau de incidência, o brasileiro exibiu casos de deformidades, congênitas ouadquiridas. Foram comuns os coxos, cegos, zambros, corcundas" ("História Geral daMedicina Brasileira", de Santos Filho).

- *Cegueira noturna no Brasil dos séculos XVI e XVII* O naturalista holandês Guilherme Pison viajou em companhia de outro amigo dasciências, Margraff, ao Brasil no início do século XVII e escreveu sua principal obra em1648, à época intitulada "História Naturalis Brasiliae". Nela ele nos fala de severos malesdos olhos, mencionando-os como oftalmias de muita seriedade e muito comuns aosmoradores de nossa Terra. E diz que "entre as calamidades do Brasil, não ocupam o últimolugar as doenças dos olhos, atacando mais que todos os soldados e os oprimidos pelamiséria". Pison não coloca esses males como epidemias, mas culpa as pessoas vitimadas pelo maldevido à sua vida desregrada e corrupta. "Desses, uns perdem a vista quando o sol se põe",diz ele, e "outros a perdem com o crepúsculo matutino". Pison chama o problema médico de"gota-serena" e também de "amaurose", palavras que até hoje correspondem a cegueiraparcial ou total. E comenta que as vítimas tratavam-se com "guabiraba" ("História Naturaldo Brasil Ilustrada", de Pison). Robert Southey, por sua vez, analisa o mesmo problema. O historiador inglês parece ter-se baseado na opinião de Pison, pois a semelhança de seus comentários é óbvia quando diz:

"Moléstias dos olhos eram tão vulgares, mormente entre soldados e pobres; a mais freqüenteera essa meia cegueira que os europeus freqüentemente experimentam entre os trópicos; osremédios eram o fumo de tabaco, carvão de casca de guabiraba ou alvaiade em leite humano,então muito empregada como medicinal" ("História do Brasil", de Southey). A meia cegueira citada ("evening blindness", no original da obra), a "amaurose" ou a"gota-serena" devem corresponder à xeroftalmia, a cegueira noturna dos nossos dias, cujacausa básica deve ter sido alimentação com perniciosa falta de vitamina A.

- *Os problemas médicos nos séculos XVI e XVII no Brasil* Não resta dúvida que a situação deve ter sido incrivelmente difícil e muito problemáticadurante os séculos XVI e XVII, para casos de doenças mais sérias, casos de fraturas expostasou complicadas, ou mesmo de deslocamentos e, ainda pior, casos que provocavam lesõespermanentes e de natureza incapacitante. Quando surgia uma epidemia nesses terríveis duzentos anos da História do Brasil, era umverdadeiro "salve-se quem puder". Nessas horas só se apresentavam para dar algumatendimento à população mais pobre os improvisadores e também os muito experimentadoscuradores. Pedro Calmon, em sua "História do Brasil", relata-nos a epidemia da febreamarela, em pleno século XVII, da seguinte forma: "A "bicha" era a febre amarela.Trouxera-a da Ilha de São Tomé para o Recife um brigue negreiro. Abertas duas barricascom carnes salgadas, logo morreram, como se vitimados pelo ar empestado, dois marítimos;e o mal se espalhou pelo porto, pela vila de Olinda e seus arredores, sem haver medicina queo atalhasse. Verificou-se na Bahia o primeiro caso de doença em abril. A sordície dossobrados, cujos porões andavam cheios de escravos da África, o calor, as ruas sujas, a faltade higiene, agravada pelo número crescente de negros mercadejados nos bairros da praia,favoreceram a expansão da epidemia, "novo gênero de peste nunca visto nem atendido dosmédicos, de que já morreram dois", como participou Vieira ao Conde de Castanheira em 1ºde julho de 1686. Feria de preferência os brancos, os menos adaptados ao clima. Dias houveem que morreram na cidade duzentas pessoas" ... ... "Chegaram as ruas a estar despovoadas,não só morrendo de vinte a trinta todos os dias, mas não havendo casa em que não houvessemuitos enfermos e em algumas todos" ("História do Brasil", de Calmon). Diante de situação de tal seriedade podemos imaginar o abandono a que foram relegadosos infelizes que padeciam de males crônicos ou que carregavam consigo a dificuldadeprópria de uma deficiência física ou sensorial.

- *Médico com deficiência física na História de Pernambuco* João Fernandes Vieira (1613 a 1681), herói da guerra contra os holandeses que haviaminvadido o Brasil, durante muitos anos organizou planos para a libertação de toda a regiãoocupada do Nordeste. Participou valentemente das duas batalhas de Guararapes, tendo sidoum forte aliado de Vidal de Negreiros, Camarão e Henrique Dias. Tendo tomado posição em Covas com um improvisado exército mal treinado e semqualquer disciplina, João Fernandes teve que se haver com descontentes e traidores empotencial, utilizando-se de medidas bastante severas para contê-los. No entanto, o problema da falta de assistência médica que afetava a todos, sem exceção,levou João Fernandes a mandar um pequeno grupo de soldados a Santo Amaro, para daliraptar um médico francês conhecido como Mestrola, homem devotado ao seu mister, apesarde séria deficiência física que o impedia de muita movimentação pelo local. É Southey que nos conta: "Ao ver-se nas mãos de tal gente clamou o pobre cirurgião queera cristão católico romano, e sempre curava os portugueses com o maior cuidado e carinho;

se aqueles fidalgos queriam levá-lo para as matas e lá assassiná-lo, suplicava-lhes a bondadede o matarem antes ali mesmo perto da igreja, onde algum bom cristão o enterraria peloamor de Deus. Mas se queriam que ele tratasse dosportugueses feridos, lhe dessem um cavalo, que tinha ele a perna doente, com que não podiaandar" ("História do Brasil", de Southey). O médico com a séria deficiência na perna conseguiu o cavalo e não teve outro remédio anão ser aderir ao pobre e valente exército de João Fernandes, ao qual prestou bons serviços.

- *O problema das paralisias no Brasil do século XVII* Simão Pinheiro Morão foi um médico português que viveu muitos anos no Brasil empleno século XVII, depois de ter passado sérias frustrações em Portugal. Ao final de suapermanência no Nordeste Brasileiro, precisamente no ano de 1677, resolveu escrever aquiloque intitulou pouco sutilmente de "Queixas Repetidas em Ecos dos Arrecifes de Pernambucocontra os Abusos Médicos que nas suas Capitanias seObservam Tanto em Dano das Vidas de seus Habitadores". O trabalho destinava-seprincipalmente às pessoas que improvisavam na área da medicina. Nesse extenso manuscrito que ficou perdido por séculos, ele arrola diversos males.Destaquemos aquilo que chama de "paralisia", mencionada inespecificamente, mas dando aentender tratar-se das seqüelas de um acidente vascular cerebral ou de alguns outros malesque podem levar à perda eventual da sensibilidade. Percebe-se nas entrelinhas a inexistência de maiores preocupações com o problemafamiliar ou social causado pelo mal, limitando-se Morão a registrar o que pode ser usado emdeterminadas circunstâncias como medicamento. " ... se à paralisia sobrevier tremor não é ruim sinal, senão bom, assim como também seacharmos a parte ofendida com quentura, ou com calor, porque com isso nos dá esperança demelhoria; e muito melhor se à paralisia sobrevier febre. E também podemos fazer ruimprognóstico quando a parte ofendida se for secando, a que os médicos chamam atrofia". Um pouco mais adiante Morão começa a desfiar idéias suas e de outras autoridadesmédicas daqueles tempos quanto à cura eventual da paralisia. Eis algumas delas: "O maiseficaz remédio para este acidente de paralisia de que todos os autores fazem particularmenção, e a experiência tem mostrado infinitas melhoras, é o das caldas, aonde acodemtodos os anos, nos meses destinados a isso, todos os enfermos desta enfermidade e de outrasmuitas igualmente rebeldes; donde os mais deles saem com manifesta melhoria"... Morão não entra, todavia, em muitos pormenores por julgar inoportuno e devido ao fatode no Brasil - colônia portuguesa - não existirem então estações de águas termais. Mas amedicina, auxiliada por boticários experientes, já demonstrava sua criatividade e supria afalta das águas termais por "suores de salsaparrilha ou de pau-da-china". Após esse tratamento inicial de "suores" abundantes, o paciente devia continuar oscuidados intensivos, caso não ocorresse a melhora. E nesses casos, o que devia fazer? "Seja a primeira mezinha untarem a nuca e o espinhaço todo com óleos seguintes. Tomemde óleo de lírio e de arruda de cada um uma onça, de aguardente do Reino meia onça comenxúndias de ganso e uns pós de mostarda pisados se faça linimento, e com ele quente seuntarão as partes ofendidas, fazendo-lhe primeiro nelas uma esfregação com pano quenteperfumado com alfazema. E aqui se advirta, que as partes paralíticas se não carreguem comcoberturas". O autor menciona outros tratamentos por meio do que chama de "rubificantes". Um dostratamentos mencionados é defendido por outro médico e cientista português do séculoXVII, o Dr. Henrique de Quintal: “... tomar folhas de mostarda bem pisadas, cozidas em

urina fresca de meninos, até que tome forma de papas, e estas moderadamente quentes seponham nas partes paralíticas". Havia variações no uso de ervas, incluindo sempre a mostarda e muitas vezes a salva,manjerona e arruda, misturadas e cozidas em óleo para "untar as vértebras do espinhaço". Morão chega a discutir o problema da paralisia na eventual clientela pobre e que jamaispoderia ter acesso a ingredientes dispendiosos como a salsaparrilha e o pau-da-chinapareciam ser. O substitutivo por ele indicado era a salsa-da-praia, encontradiça com maiorfacilidade. As pormenorizadas informações de Morão e de outros autores já citados indicam-nos quesem a menor sombra de dúvida alguns procedimentos indicados por eles provocavamalgumas curas, bastante melhora ou pelo menos algum alívio em pessoas que eram vítimasde algum tipo de paralisia nos primeiros séculos de Brasil.

- *A medicina do século XVIII entre nós* As crendices passadas de geração a geração pelos escravos, índios e europeuspredominavam no Brasil do século XVIII. Embora toda a situação fosse muito primitiva e nosso país não contasse com recursossignificativos, alguns médicos procuraram documentar cientificamente o problema. No anode 1741 o médico João Cardoso de Miranda escreveu um pequeno tratado intitulado"Relação Cirúrgica e Médica", dando alguns pormenores quanto às nossas doenças, nossasendemias, os contágios relacionados a males trazidos pelos negros escravizados e infecçõesvárias. E no final do século XVIII, exatamente em 1796, o Dr. José Mariano Leal procurouorganizar algumas aulas para demonstração e para tratamento cirúrgico, a fim de repassar acolegas seus as experiências que conseguira acumular durante toda a sua vida de médico.Em seus sonhos profissionais havia também a preocupação de combater maissistematicamente a temida "lepra".E tentativas para melhorar o padrão de atendimento médico e ampliar o campo deconhecimentos da medicina ocorreram em vários pontos do país. Com esse avanço oscharlatães e os barbeiros foram sendo acuados para pontos menos desenvolvidos do Brasil. No entanto, bloqueios muito sérios ocorriam e a grande maioria deles oriundos da Pátria-Mãe, Portugal. Em 1768, por exemplo, os vereadores de Sabará, na Província de MinasGerais, pediram ao rei de Portugal permissão para a fundação oficial do que chamavam"Casa de Aulas", para ensinar anatomia e cirurgia, tanto na teoria quanto na prática. Aresposta, vinda do reino depois de muito tramitar pelos corredores da corte, foi lacônica edesagradável ao extremo: "Não convém"... O rei procurava preservar, custasse o quecustasse, a inquestionada liderança de Coimbra entre nós. De lá emanava todo o saberlusitano (Apud Calmon). Aqui em nossa Terra havia reduzido número de formados em Coimbra e todos eleslocalizados nas melhores cidades. Só atendiam à elite portuguesa ou aos homens mais ricosdaqueles tempos. Para o povo em geral e para os pobres prevalecia a experiência dossangradores, dos utilizadores de ventosas e sanguessugas e dos charlatães em geral. Nãolicenciados para essas funções, na verdade tratava-se de padeiros, barbeiros, negrosexperimentados, homens supostamente bem informados, mulheres habilidosas e curiosas,além dos sempre famosos curandeiros.

- *Males limitadores que afetavam muito os negros escravos*

Muitos dos africanos que foram trazidos à força para o Brasil como escravos aquisofreram muitos castigos físicos, chegando mesmo a terem o corpo marcado pelos maustratos a eles infligidos. Muitas vezes eram vítimas de raquitismo, de beribéri, de escorbuto (também conhecidocomo "mal de Luanda"), ou seja, das síndromes mais sérias denotadoras de carênciasalimentares. "Foram portadores de defeitos físicos provocados por castigos e desastres nos engenhos"("História Geral da Medicina Brasileira", de Santos Filho). Falando sobre os efeitos da varíola sobre os escravos negros, Sigaud nos esclarece que"com o fito de provocar a erupção e de evitar tanto quanto possível os acidentes provocadospelo seu atraso, ou também pelo surgimento de pústulas nas mucosas e em alguns Outrosórgãos (casos de cegueira foram muito comuns, especialmente entre os negros), o Dr. JoãoAlves de Moura, médico do Rio de Janeiro, mandava fazer fricção na pele com certo óleoextraído do corpo de lagartos brancos" ("Du Climat et des Maladies du Brésil", de Sigaud).

- *Deficiências físicas e sensoriais entre nossos índios* Como resultado da profícua viagem de uma comissão cientifica ao Brasil durante trêsanos (1817 a 1820), Carl Friedrich von Martius (1794 a 1868) escreveu um interessantetrabalho: "Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros". Nessa obra do botânico alemão encontraremos algumas afirmações interessantes quanto adeficiências entre nossos índios do norte do Brasil. Vejamos algumas referências docientista: "Escoliose, "pied-bot" e deformações outras do esqueleto não observamos em partealguma. Provavelmente, quando essas deformidades são hereditárias, o que é admissível,sacrificam as crianças aleijadas, ao nascer. Além disto é singular, e se poderá apresentarcomo característica da história dos costumes daquela raça, que tantos enigmas nos oferece,que o índio representa o curupira, produto de sua superstição, o assombro da mata, sempremau e hostil ao homem, com "pied-bot" ou pé torto, voltado para trás, saindo do tórax". Em nota explicativa à informação de von Martius, o tradutor Pirajá da Silva acrescentaque o curupira "é gênio silvestre, o gnomo, anão de um pé só, ou de uma banda só. Cavalga,às vezes, um caitetu ou taitetu e transmite a desgraça a quem o avista. Sacy-pererê é outrogênio maléfico". Von Martius confirma ainda que "às vezes aparecem paralíticos e coxos; sua deformidadeé sempre de origem traumática". Diz mais, quanto à cegueira: "Por causas traumáticas ficammuitas vezes cegos, porém a catarata só raramente os ataca"... A respeito da surdez o botânico alemão afirma que "os autóctones brasileiros sofrem maisdos ouvidos que dos olhos. Observamos muitos homens e mulheres completamente surdos;mais numerosos ainda eram os casos de meia surdez" ("Natureza, Doenças, Medicina eRemédios dos Índios Brasileiros", de von Martius).

- *Antônio Francisco Lisboa, o "Aleijadinho"* Um exemplo muito importante de trabalho de alta qualidade de uma pessoa portadora dedeficiência física muito séria e progressiva aconteceu na metade do século XVIII e alvorecerdo século XIX. Em 1800 Antônio Francisco Lisboa (1730 a 1814), apelidado pela população que oconhecia mais de perto e reconhecido por todos como o "Aleijadinho", com setenta anos deidade acertava um contrato para a execução em pedra dos doze profetas no adro da igreja doBom Jesus dos Matozinhos. Por essa época já tinha que ser carregado, provavelmente devido

à tromboangeíte obliterante, que em seu caso se caracterizava por ulcerações nas mãos e nospés. Com alguns dedos das mãos perdidos ou imobilizados, mandava que seus auxiliares ouempregados amarrassem o martelo e o cinzel às suas mãos. Morreu aos oitenta e quatro anos de idade, sozinho e esquecido, meio paralisado e cego.Foi um homem competente em sua arte considerada hoje como genial. O apelido de "Aleijadinho" provavelmente indica a comiseração de seus contemporâneos,muitos dos quais reconheceram sua arte e seu valor por muitos anos.

- *Uma primeira tentativa em projeto de lei: ajuda a cegos e a surdos* Desde 1835 surgira formalmente no Brasil a idéia de se fazer algo sério em favor doscegos, o que na certa já ocorrera em anos anteriores por meio da iniciativa privada, tendosido já tentado em alguns pontos mais civilizados de nossa jovem pátria. Infelizmente a idéianão foi concretizada, mas o leitor interessado poderá encontrar nos Anais da Câmara deDeputados do Rio de Janeiro, um projeto de lei datado de 29 de agosto de 1835, que estáassim redigido: "Art. 1°. - Na Capital do Império, como nos principais lugares de cada Província, serácriada uma classe para surdos-mudos e para cegos".

O Deputado Cornélio Ferreira França, seu autor, devido a motivos políticos nãoesclarecidos, nem chegou a ver seu projeto devidamente discutido em plenário. Seu mérito,porém, e incontestável. Apesar da restrita distribuição da notícia, chegou a chamar a atençãoda sociedade para o assunto e despertar o interesse dos familiares das pessoas cegas, surdas esurdas-mudas.

- *O problema das amputações do século XVI ao XIX* Durante os primeiros quatro séculos de nossa História, as amputações foram a mais séria ea mais comum das cirurgias. Compreende-se, dessa forma, a conotação dada naquelesséculos à cirurgia como técnica mutiladora. Naturalmente as amputações ocorriam devido aacidentes, gangrena, tumores, golpes violentos, entre diversas outras causas. O que sucedia com os amputados, no entanto, não nos é relatado pelos historiadores nempelos cronistas. Os nossos "físicos", como eram conhecidos os médicos, e os barbeiros que tinham licençapara ser cirurgiões, dispunham de poucos e mal conservados instrumentos cirúrgicos. Santos Filho relata-nos ilustrativamente que o cirurgião-mor do Hospital Militar de SãoPaulo, em 1804 dispunha para amputações de uma única serra de carpinteiro. Os demaisferros de cirurgia eram mal conservados e guardados em qualquer lugar. Muitos morriam em conseqüência da cirurgia, em grande parte devido a infecções pós-operatórias. Não é de estranhar que isso acontecesse. Basta ler um pequeno trecho deLuccock, que em 1809 visitou um cirurgião alemão em São Pedro do Rio Grande do Sul. Ele"praticava tanto a cirurgia como a medicina e de uma feita os instrumentos que usava caíramsob os meus olhos. Estavam na maior das desordens e absolutamente impróprios para a maisvulgar das intervenções. Tomando de uma serra enferrujada, perguntei-lhe se se atreveria aamputar um membro com semelhante instrumento. "Por que não?", replicou, "é a melhorque possuo e ninguém mais aqui é capaz de realizar tal operação" ("Notas sobre o Rio deJaneiro e Partes Meridionais do Brasil", de Luccock).

- *A influência européia no Brasil*

No ano de 1841 Dom Pedro II mandou construir um hospital de misericórdia ligado àcorte, a fim de substituir as superadíssimas e sujas enfermarias da praia de Santa Luzia. Oestilo da nova construção adotava uma mistura do gótico com o neoclássico. O edifício eraportentoso, digno de alguns países europeus bem adiantados. E com a presença da ricacolônia portuguesa que aqui se radicara em definitivo, começou também a surgir nas cidadesmais importantes do Império as chamadas "Beneficências Portuguesas", sustentadas portaxas diversas cognominadas de "impostos da vaidade". O Imperador, com o propósito de incentivar essas iniciativas e também aquelas quelevavam à criação e à manutenção das Santas Casas de Misericórdia, honrava-as com títulose condecorações. De outra parte, com a própria Independência do Brasil já havia ocorrido um inegávelbloqueio à influência científica de Coimbra em nosso meio. Nossos estudiosos começaram aprocurar as escolas e as universidades francesas, alemãs e austríacas. E a civilização francesaprincipalmente começou a invadir o Brasil sedento de cultura e de modernização, chegandoa dominar nossos usos e costumes por aproximadamente um século todo. Alunos jovens defamílias ricas, bolsistas, ou estudantes das mais variadas origens lá iam estudar e, ao voltar,começavam a criar o nosso próprio ensino e o nosso próprio meio técnico e cultural. Foi o que ocorreu com a medicina entre os anos de 1824 e 1854. Foi também o quesucedeu no campo de atendimento a pessoas com deficiências.

- *Organizações para pessoas deficientes criadas por Dom Pedro II* No campo da assistência à população prejudicada por alguma deficiência em épocasanteriores aos meados do século XIX, não encontramos nada de relevante. A pessoa vítimade alguma paralisia, alguma deformação congênita, algum tipo de amputação ou emconseqüência de alguma doença mais grave, certamente acabava por se tornarresponsabilidade de sua própria família. (* Mesmo hoje, aqui no Brasil, o problema continuapouco alterado. Temos, entre nós, aproximadamente dez milhões de pessoas deficientes, masnão as vemos. Onde estão elas? Nos quartos dos fundos da casa? Nos quintais cercados poraltos muros? Institucionalizadas? Longe dos olhos curiosos do povo? Essa população"continua" sendo responsabilidade de suas famílias...). As condições delas no Brasil do século XIX não era outra. Ou antes, certamente que eraoutra e bem pior do que hoje - e as pessoas apelidadas de "aleijadas", "manetas", "pernetas","zambras", "cambaias", "mancas", "paralíticas", "ceguinhas", "loucas", "bobas" e defeituosasde um modo geral ficavam sendo problema de seu grupo familiar e nunca do Estado ou dasociedade. As tendências européias que chegavam ao porto do Rio de Janeiro com o atracar dosnavios de passageiros, com a distribuição das revistas atrasadas, com os livros publicadosmeses antes nos países mais adiantados e influentes e também com o contínuo retorno aoBrasil de homens inteligentes, estudiosos, bem preparados e interessados em sua TerraNatal, acabaram provocando o esperado avanço brasileiro no sentido da modernização. Foi por esses anos de renovação cultural e de ânsia de modernização que foram criadastrês organizações por iniciativa de Dom Pedro II, homem público que esteve sempre muitovoltado para as conquistas da civilização européia para a solução de problemas cruciais dapopulação. A elas nos limitaremos neste capítulo. a) Imperial Instituto dos Meninos Cegos Em termos de empreendimentos concretos, nada havia sido feito no Brasil Imperial emfavor dos cegos até 1854, a não ser algumas iniciativas privadas de mero alojamento, asiloou segregação dos cegos em instituições mal organizadas. Mas no dia 17 de setembro de

1854 foi inaugurado por Dom Pedro II o primeiro recurso de iniciativa da coroa brasileira,ainda modesto mas bastante significativo: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos. De onde surgira a idéia? Por que a corte brasileira poderia estar interessada em manteruma organização especialmente dedicada aos garotos deficientes da visão? Por que o próprioImperador havia se envolvido a ponto de dar o peso da autoridade do governo a essa novaorganização? Dentre os fatos mais relevantes que cercam a criação do Imperial Instituto dos MeninosCegos cumpre que destaquemos que no ano de 1853 desembarcara no Rio de Janeiro,proveniente da França onde havia ido estudar no já famoso Institute des Jeunes Aveugles deParis, o jovem brasileiro José Álvares de Azevedo. Muito animado com o progresso que sentira em sua própria educação e especialmentecom as alterações positivas verificadas em sua vida pessoal, esse jovem pensara muitodurante seus estudos e durante sua longa viagem de volta ao Brasil, e decidira, antes mesmode pisar a terra natal e ser recebido pelos seus familiares, considerar como sacerdócio, comomissão de sua vida, comunicar a outros brasileiros também cegos tudo o que haviaaprendido. E pouco tempo após sua volta, em sua busca de autoridades brasileiras que poderiam seinteressar e apoiar o que considerava sua missão, ficou sabendo que o Dr.Xavier Sigaud,médico da família imperial, tinha uma filha cega. Animado e instigado por sua idéia deorganizar no Rio de Janeiro uma instituição semelhante àquela que lhe dera tanto duranteanos em Paris e que pudesse ser realmente útil aos cegos brasileiros, procurou a residênciado Dr. Sigaud e ofereceu seus serviços para a educação especial da jovem Adélia. A oferta,surpreendentemente generosa e interessante, foi aceita e acabou dando ótimos resultados emmuito pouco tempo. Adélia Sigaud aproveitava ao máximo os ensinamentos práticostransmitidos pelo jovem Azevedo, deixando toda a família muito contente. O Dr.Xavier Sigaud comentou com a família imperial e com o próprio Imperador suafelicidade, os trabalhos de ensino de sua filha e os evidentes e rápidos progressosobservados. Como era de se esperar, Dom Pedro II percebeu logo a importância de um apoiooficial a essa causa e mandou organizar, ligada à corte brasileira, uma instituição que seguiaquase que até no próprio nome aquela onde Azevedo havia estudado, ou seja, o Institute desJeunes Aveugles, de Paris. A nova organização levou o nome de Imperial Instituto dosMeninos Cegos. As primeiras regletes, punções, chapas para escrita e os primeiros livros de pontoscombinados em relevo chamados de "escrita pelo método Braille" foram encomendados echegaram ao Brasil em 1856, tendo sido uma doação pessoal do Imperador ao novoInstituto. E vale a pena relembrar e enfatizar aqui que esse sistema de escrita em relevo recém-estabelecido e reconhecido na França apenas naqueles anos, dava, com essa encomenda deDom Pedro II, seu primeiro passo no sentido de sua internacionalização. O pedido brasileirofoi executado com esmero e foi o primeiro em uma língua que não a francesa. O jovem idealizador não teve a ventura de ver o Instituto instalado e em funcionamento,pois faleceu no dia 17 de março de 1854, com apenas 17 anos de idade. Adélia, sua pupilaaplicada e inteligente, embora por muito pouco tempo, foi professora do Imperial Institutodos Meninos Cegos e atuou no ensino de cegos até sua aposentadoria. Por sua vez, seu pai, oDr.Xavier Sigaud, foi indicado para seu primeiro diretor pelo Imperador Dom Pedro II. Foi dezoito anos após sua instalação que o Imperador fez a doação de um vasto terreno aoInstituto, à avenida Pasteur, no Rio de Janeiro, onde até hoje encontram-se as portentosas emuito conhecidas instalações do Instituto.

No entanto, segundo Silvado, durante muitos anos o Instituto só foi um mero asilo e nãopassou disso, sempre sob a custódia imperial. "Em uma palavra: uma escola que se limitavaa preparar apenas seus próprios professores" ("Les Aveugles au Brésil", de Silvado). Muitos desses mestres chegaram a ser nomeados sem qualquer qualificação para suamissão. Os poucos casos de sucesso aconteceram mais devido aos esforços pessoais dealunos mais aplicados e inteligentes do que ao sistema de ensino adotado. Este eraexcessivamente técnico e as oficinas ali montadas limitavam-se às de tipografia e deencadernação para rapazes, e de tricô para as meninas. A afinação de pianos, tão comumcomo atividade profissional bem remunerada para cegos em muitos países, não foi levadamuito a sério entre nós, nem o Imperial Instituto dos Meninos Cegos deu a ela qualquerênfase. Cláudio Luiz da Costa foi o segundo diretor do Instituto. Este homem de sérios propósitostinha uma filha que havia casado com um jovem professor de matemática que lecionava noInstituto desde 1861: Benjamin Constant. Este sucedeu o sogro na direção do Instituto, porindicação do Imperador, dirigindo-o por vinte anos seguidos. Durante os anos que dedicou àdireção do Instituto dos Meninos Cegos participou ativamente e foi um dos líderes napreparação das idéias para a Proclamação da República. Como diretor do Instituto procurouchamar a atenção das autoridades imperiais para o estado lamentável em que o Instituto seencontrava, propondo diversas soluções, sem ter obtido qualquer decisão. Com aProclamação da República parece que conseguiu seu intento. Elevado ao poder na qualidadede Ministro de Estado, o ex-diretor do Instituto conseguiu rapidamente o decreto para suareforma. A construção do prédio definitivo, que começara em 1872, foi concluída em parte esuas novas instalações foram ocupadas apenas após a Proclamação da República, ou seja, noano de 1890. Foi no dia 17 de maio de 1890, pelo Decreto 408, assinado pelo Marechal Deodoro daFonseca e por Benjamin Constant, que o Instituto mudou de nome e teve seu regulamentoaprovado. Diz o Decreto: "O chefe do governo provisório, constituído pelo Exército e pela Armada, em nome daNação, resolve aprovar o regulamento para o Instituto Nacional dos Cegos, que a esteacompanha, assinado pelo general de brigada Benjamin Constant Botelho de Magalhães,Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, que assim o faça executar. Palácio doGoverno Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, 17 de Maio de 1890 - 2ºdaRepública". No entanto, Benjamin Constant faleceu logo a seguir, em 1891, e o governo republicanorebatizou o Instituto em sua homenagem com o seu nome atual: Instituto BenjaminConstant.

b) Instituto dos Surdos-Mudos Existe também um relato publicado em 1887 por Tobias Leite, sobre o Instituto dosSurdos-Mudos, hoje conhecido como o Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES.Era um centro vinculado à coroa brasileira, por Decreto de Dom Pedro II. Tratava-se, à época de sua criação, de uma organização especial, também criada einaugurada por Dom Pedro II, e que se caracterizava como um estabelecimento de educaçãoque tinha como finalidade a educação literária e o ensino profissionalizante para garotossurdos-mudos. Embora não houvesse o volume de conhecimentos relacionados à surdez como ocorrehoje, já naqueles anos algumas preocupações básicas transparecem no relato indicado acima:"O ensino pela palavra articulada e leitura sobre os lábios, está a cargo de um professor

expressamente habilitado na Europa, para dá-lo aos surdos-mudos nas condições de recebê-lo". Havia nesse Instituto ensino da linguagem escrita, para o qual o estabelecimento contavacom coleções européias de objetos, instrumentos, aparelhos e estampas que enriqueciam seumuseu escolar, coleções essas bem completas que cobriam assuntos relacionados asubstâncias alimentares, habitações, instrumentos de caça e pesca, "meios de locomoçãoterrestre desde o burro até o trem de caminho de ferro", meios de navegação, fios pararoupas, lãs, calçados, utensílios para a vida nas cidades e nos campos, móveis, materiais paraconstrução, globos e mapas geográficos e outras mais. A maior parte desse material fora trazido da Europa, como era costumeiro em quase todasas áreas do ensino em todos os níveis. A educação profissional mantida pelo Instituto dos Surdos-Mudos do Rio de Janeiro eradada em oficinas de sapataria e de encadernação. (* Algumas instituições existentes aindahoje lançam mão apenas dessas duas áreas de treinamento). O rendimento pela venda dosprodutos era dividido em 2 (duas) partes: uma pagava o custo do produto e a outra erarecolhida à Caixa Econômica, já existente no final do século XIX, e era escriturada nascadernetas individuais de cada aluno. Ao final do curso cada um retirava o capital somadoaos juros. Nesse Instituto eram admitidos alunos entre 7 e 14 anos de idade, apenas do sexomasculino. Viviam em regime de internato, sem qualquer distinção de tratamento ou deinstalações entre garotos ricos ou pobres. Nenhum deles pagava qualquer tipo decontribuição para ali ser internado e educado. Numa orientação aos pais e à sociedade em geral, o autor da obra aqui analisada faziaalgumas considerações quanto à futura vida profissional do ex-aluno surdo-mudo. E dentreas orientações mais interessantes cumpre destacar as seguintes: - "É inquestionavelmente de máxima importância e conveniência que o surdo-mudo tenhaum ofício, ou arte de que subsista". - "Na escolha do ofício ou arte a que o surdo-mudo deve aplicar-se, convém atender-se àsua constituição física, à localidade em que tem de residir, à sua aptidão e até à posição ougênero de vida de seu pai". - "Em geral, as artes e ofícios convêm mais aos habitantes das cidades e a agricultura aosdos campos". - "Das artes e ofícios devem ser preferidos os que podem ser exercidos em qualquer parte,cidade ou pequenos povoados. Sapateiro, alfaiate, correeiro, torneiro, oleiro, chapeleiro,tintureiro, impressor e encadernador, são indústrias que muito lhe convém". - "Os ofícios de carpinteiro, pedreiro e outros que exigem comunicações simultâneas como trabalho, não lhe são tão convenientes".

Princípios básicos da programação do Instituto já eram bem estabelecidos e de certa formabem aplicáveis para nossos dias, embora tivessem sido formulados há cem anos atrás: ... "osque não se deixam levar pelas exterioridades e encaram as situações pelo lado utilitárioentendem que o objetivo da educação dos surdos-mudos é dar-lhes uma profissão de quesubsistam nobremente, e habilitá-los a comunicar-se com os seus concidadãos pelo meio quelhes for mais fácil e mais cômodo" ("Notícia do Instituto dos Surdos-Mudos no Rio deJaneiro", de Leite).

c) Asilo dos Inválidos da Pátria

Outro relato de extrema importância para análise de atitudes predominantes no BrasilImperial com relação a pessoas portadoras de deficiências diversas é o que se relaciona como "Asilo dos Inválidos da Pátria", de autoria de Manoel da Costa Honorato e intitulado"Descripção Topográphica e Histórica da ilha do Bom Jesus e do Asylo dos Inválidos daPátria", publicado no ano de 1869 pela Typographia Americana. Esta organização, destinada ao abrigo e à proteção dos soldados brasileiros mutilados emguerras ou em operações militares, surgiu em nossa terra, não só devido a uma necessidadepremente da segunda metade do século XIX, mas também, para a grande maioria dosgovernantes e da população, por uma questão de gratidão e de justiça para com os jovenssoldados feridos ou "inutilizados" para a vida militar e talvez até para a civil. No entanto,nota-se nas entrelinhas de crônicas da época um outro motivo, ou seja, o forte orgulho deuma jovem Nação do Novo Mundo que não pretendia ficar muito atrás das naçõescivilizadas da Europa. Orgulho, ufania, comiseração, caridade, emoção, interesse genuíno, reconhecimentopatriótico a seus heróis, alguns lances literários e pouco práticos sobre integração à família eà sociedade, e muito mais, um leitor curioso poderá encontrar nessa interessante obra. É umrelato bem elaborado, curioso, ao estilo da época imperial, às vezes emotivo, apresentandoambientes e circunstâncias que cercaram a criação e principalmente a inauguração de umabrigo oficial (esse o verdadeiro sentido da palavra "asilo") para os soldados que estavamlutando uma guerra sangrenta e muito difícil contra o desafiador vizinho nosso que era oParaguai, e que poderiam voltar para o Brasil doentes ou incapacitados, tanto para o serviçomilitar quanto para atividades da vida civil. A idéia da criação do Asilo dos Inválidos da Pátria encontra vários similares na Europa doséculo XIX, dentre os quais o mais famoso do mundo todo era o "Hôtel des Invalides"(Palácio dos Inválidos) de Paris. Luís XIV mandara edificar esse monumental abrigo parasoldados desde o século XVII, mas suas obras haviam sido concluídas pomposamenteapenas no século XIX, um pouco antes do empreendimento brasileiro. Havia outros exemplos, como o Chelsea Hospital, em Londres; o Invalidenhaus, emBerlim; as Soldier's Homes, nos Estados Unidos da América do Norte em várias de suasunidades federadas. A Espanha mantinha o conhecido Cuartel de Invalidos, em Madri, juntoà igreja de Atocha. Na Itália existia o Ricovero dei Veterani, localizado em Milão, enquantoque na Turquia havia o Malja El-Kuçah, em Constantinopla.A Áustria já organizara o Kund Iz Invalidenhaus, na cidade de Thyrnan que hoje fica naHungria. A Grécia tinha sua organização com o nome de "Tephonomeisda" na cidade deAtenas. Muito mais perto do Brasil, o Uruguay contava com o Asilo de Invalidos na cidadede Três Cruces e a Argentina com o Asilo de los Invalidos, na própria capital Buenos Aires. Muito mais próximo à cultura brasileira havia também o exemplo dado pelo reino dePortugal, que durante o governo de Dom José I (entre 1750 e 1777) fundara o Asilo dosInválidos Militares, também conhecido como Hospital de Runa, organizado e inauguradopela princesa Dona Maria Francisca Benedicta. Trata-se de um edifício em um só andar, masbastante imponente, que havia sido uma quinta e fora adaptado para os fins acima. Só atítulo de curiosidade, o Asilo famoso tinha 99 metros de frente, por 61 metros de fundo e eraacabado em mármore. O nosso Asilo dos Inválidos da Pátria, entretanto, era composto de edifícios mais simplesdo que aqueles que Luís XIV mandara construir para seus soldados, mas talvezcorrespondessem mais aos bons sentimentos daqueles que haviam patrocinado suaedificação. "O luxo foi inteiramente banido dos edifícios em que os bravos abrigam-se, pois,o luxo não é decência", segundo Honorato.

Analisemos, porém, alguns pontos desse precioso documento para nele buscarmosindicativos do modo de ver a pessoa deficiente e das atividades dominantes, que muitasvezes transparecem no linguajar inflamado e colorido do autor, ou no conteúdo dosdocumentos e dados transcritos na mesma obra. A idéia da criação do Asilo não foi novidade no Brasil. Já em 11 de março de 1840 DomPedro II havia criado na corte brasileira e nas Províncias do Pará, Rio Grande do Sul e MatoGrosso, asilos para receberem soldados incapacitados para o serviço militar, ou em vias debaixa da ativa, por doença, por deficiência ou por idade. Em 30 de novembro de 1841,também por Decreto Imperial, criara-se nas imediações da corte brasileira um asilo deinválidos que, graças a uma Resolução da Assembléia Geral, recebera um pormenorizadoregulamento para seu funcionamento e para que um soldado fosse ao mesmo admitido. Peloque se pode deduzir, pouca gente era ali recolhida, pois por um Decreto de 1843, Dom PedroII mandou ali recolher também os marinheiros deficientes. Todavia, apesar dos esforços e dos investimentos para garantir no Brasil os indícios decivilização no estilo europeu, e também por falta de experiência e de conhecimento de causa,nenhuma dessas medidas havia sido implantada. Eram empreendimentos puramentemilitares e de questionável qualidade. "Sem disciplina, ordem e asseio, eram essascompanhias mais centros de distúrbios e focos de vícios do que asilos protetores demutilados da pátria", segundo Honorato. No dia 25 de fevereiro de 1865, quando o Brasil se empolgava numa resposta efetiva aprovocações e a incursões paraguaias e marchava para a guerra, os filiados, diretores emembros mais proeminentes da Comissão da Praça do Comércio do Rio de Janeiroreuniram-se no Palácio Imperial e, ansiosos para colaborar de alguma forma com os esforçosdo governo e dos homens que, deixando tudo, lutavam abertamente contra o inimigo,resolveram defender a idéia de angariar fundos e tomar providências para criar um "asilopara os que se invalidassem pela pátria"..."e em sessão solene desse mesmo dia 25 defevereiro, foi aclamado seu presidente nato o nosso Augusto Monarca o Senhor Dom PedroII". O imperador deve ter apreciado muito a idéia, que talvez tenha até brotado de seu espíritoestudioso e interessado ou de algum colaborador recém-chegado do Velho Mundo econhecedor das experiências ali mantidas. O fato é que louvou os planos todos e nomeou umdelegado seu para a missão, não se omitindo, porém, de seguir pessoalmente as providênciasnecessárias. "Escolheu o lugar que melhor lhe pareceu para que os inválidos tivessemliberdade sem obstáculos da massa popular e gozassem de melhor clima, mandou fundar osedifícios e ativou aos trabalhadores, a fim de que não houvesse retardamento, animando-oscom sua presença quase diariamente". O Asilo foi construído numa pequena e muito aprazível ilhota conhecida como a ilha doBom Jesus, em plena Baía da Guanabara. E Dom Pedro II, numa festa engalanada ecompletamente dedicada aos heróis mutilados ou paralisados na guerra contra o Paraguai,inaugurou o Asilo no dia 29 de julho de 1868, aniversário de nascimento de sua filha eherdeira do trono brasileiro, a Princesa Isabel. Conta-nos Honorato que "às 9,30 horas era recebido Sua Majestade o Imperador ao somdo Hino Nacional, que de todas as partes se ouvia, repiques de sinos e salvas". Com eleestavam a Imperatriz Da.Thereza Christina, a Princesa Isabel e o Conde d'Eu; tambémpresentes estavam todos os seus ministros de estado, o corpo diplomático em peso, o corpoconsular, as autoridades eclesiásticas e também os oficiais de navios de guerra americanos,ingleses, franceses e espanhóis que com a sua presença demonstravam apoio formal à causa

brasileira; e, como não podia deixar de ser, havia muita gente representativa do comércio, daindústria, das corporações e muito povo. A chegada do Corpo dos Inválidos, como era conhecido o grupo de oficiais e soldadosmutilados, parece que foi muito comovente ao Imperador que tanto havia acarinhado aqueleprojeto e que tanto apreciava o sacrifício feito pela Pátria Brasileira. E deve ter sidocomovente também à família imperial; e certamente muita gente vibrou com o foguetório,com o repicar dos sinos, enfim, com a "pompa e circunstância" toda que fora armada na ilhado Bom Jesus. O próprio Imperador, em seu traje de gala, "com sua Imperial família e suacorte pôs-se no lugar do desembarque a fim de receber os infelizes que eram objeto dasolenidade". Bandeiras tremulavam por todas as partes, arcos triunfais estavam montadosdesde o cais até a capela onde seria cantado um solene "Te Deum" e todos estavamcolocados em alas para a passagem dos"mutilados de guerra", sob salvas de palmas e vivasmisturados a marchas militares, na manhã ensolarada da baía da Guanabara. Pela narrativa de Honorato, os heróis assim recebidos, porém, "eram infelizes" e à Pátriarestava amenizar seus dias para viverem em paz. Todos eles estavam voltando da frente debatalha contra os paraguaios e recebiam - pelo menos naquele dia - o carinho de seuImperador e de toda a multidão presente. "... Aqueles homens foram os que inutilizaram-sepela Pátria, foram os bravos que regaram os campos de batalha com o sangue de suas veias,foram os que viram para sempre a estrela fagueira, que lhes acenava para o futuro,desaparecer"... O Corpo dos Inválidos era composto de oficiais, cadetes e soldados, quase todosmutilados ou sem maiores possibilidades de atuar no serviço militar ativo. E eram todospobres - segundo relato da época - e não tinham qualquer chance de receber da sociedadebrasileira do final do século XIX muita coisa, a não ser talvez compaixão, como podemosnotar nas entrelinhas de alguns documentos transcritos no livro de Honorato que aquiestamos analisando. O Imperador brasileiro, ao notar a finalização das manobras de atracação do barco quetrazia o Corpo dos Inválidos, quebrou o protocolo e dirigiu-se à prancha de desembarque."Os raios do sol, a fadiga do cansaço, a aglomeração do povo, a demora do desembarque nãoo incomodaram; com o semblante risonho, a todos os que desembarcavam dava a mão,ajudava-os a subir a escada de desembarque e recomendava aos demais que facilitassem-lhesa passagem, ajudando-os em seu caminho; e a Imperatriz parecia atravessada por tantas setasquantos eram os mutilados que passavam"... Esse corpo de soldados prejudicados por ferimentos graves, por amputações ou pordoenças sérias, durante a guerra contra o Paraguai, havia sido provisoriamente instalado naPonta da Armação, da Marinha Brasileira, e no dia da inauguração do Asilo correspondiam a"29 oficiais, 67 sargentos, 6 cornetas, 1 coronheiro, 7 músicos, 239 cabos e semelhantes,1.010 soldados e 1 tambor". E, no mesmo lote de doentes e deficientes do exército brasileiro,"havia também 42 prisioneiros paraguaios nas mesmas condições físicas". Num comentário empolgado Honorato analisa com ênfase o sentimento brasileironaqueles exatos momentos: "Quando pensaram nossos antepassados que o Brasil possuiriaum estabelecimento tão importante, que transmitirá às gerações vindouras a idéia doverdadeiro reconhecimento aos que por ela sacrificaram-se? Pois bem, o Brasil já não deveestar tão atrás da civilização; o Brasil, rico em tudo, será também nobre de sentimentos. Osinválidos são pobres, é verdade; porém, são nobres; eles deram em favor da pátria tudoquanto tinham, a vida, a saúde, tudo eles expuseram; e por atos de tanta generosidade sãocredores de tudo quanto em seu favor se possa fazer".

Mas vale a pena conhecer um pouco do cenário da festa toda. O Asilo dos Inválidos daPátria estava localizado na ilha do Bom Jesus, e a descrição de Honorato é esta: " ... desdelogo principia a ver os edifícios que constituem a encantadora vista do Asilo dos Inválidos;vê uns à beira da praia entre dois elevados morros, cercados todos da bela verdura que ornaesta aprazível ilha, e com suas imponentes perspectivas atraindo a atenção de quem para aíse dirige". Na realidade, a "aprazível vista" - irreconhecível no Rio de Janeiro do século XX - referia-se a dois edifícios, um em cada lado do ancoradouro; o da direita continha em seu andartérreo as oficinas destinadas às atividades dos asilados. Veja-se, portanto, que já na fase deplanejamento havia sido considerado, como em vários projetos similares europeus, o fatorocupação e, quem sabe, a aquisição de conhecimentos profissionais suficientes para oindividuo poder deixar o Asilo, se quisesse integrar-se na sua própria comunidade, como era,aliás, permitido pelo Regulamento. O andar superior do primeiro prédio era destinado apenas a uma espécie de museu militar,O outro edifício - o da esquerda do cais - era também de dois andares e servia paraenfermaria e acomodação dos mais doentes no andar superior, enquanto que no inferiorresidiam as irmãs de caridade que eram as responsáveis pelos serviços de enfermagem daentidade. Dos edifícios localizados nas elevações, um servia para cozinha e como refeitório, pois sóno dia da inauguração o Corpo dos Inválidos contava com aproximadamente 1.500 homens.O pavimento superior servia para recreação e lazer dos asilados. Havia na ilha também um antigo convento franciscano que o Asilo utilizava como escolaprimária para os asilados, sob a responsabilidade do Capelão. Mais para trás e para o interiorda ilha, seguindo paralelo ao antigo convento, havia outro prédio para abrigo de outrascompanhias de "inválidos". E, separado de todos, havia também o local onde se abrigavamos prisioneiros paraguaios. Terreno havia bastante na ilha para hortas e para diversos tipos de plantação mais extensa,nas quais os soldados ali recolhidos eram de certa forma "obrigados" a atuar, de acordo comsua capacidade física. O próprio Regulamento do Asilo diz: "Compete ao Comandante doAsilo: ..6º Obrigar os inválidos a que trabalhem na horta, nas oficinas, conforme suasaptidões e forças físicas". Cremos não ser muito de espantar essa autoridade para obrigar ossoldados a fazer isto ou aquilo, uma vez que o Artigo 8º das Instruções para o Asilo dizmuito claramente: "O Asilo fica sujeito ao regime e disciplina militar". Havia, pelo Regulamento já indicado, obrigatoriedade de participação e de colaboraçãotambém nos aspectos financeiros. Na verdade, cada soldado ou oficial ali recolhido porinvalidez ou doença deveria contribuir para as despesas do estabelecimento com as pensõesque recebiam do Tesouro Nacional; os que não recebiam pensões, por serem idosos, porexemplo, deviam contribuir com a metade do soldo de sua reforma. No entanto, cumpre destacar que não era vedado ao internado trabalhar no próprio Asilo eganhar algum dinheiro extra. Pelo Artigo 19, por exemplo, fica bem claro que tanto osoficiais quanto os praças considerados como inválidos poderiam exercer no Asilo osempregos que seriam compatíveis com suas forças físicas - e eram remunerados pelaatividade . E havia mais - alguns dos que eram casados poderiam viver com suas mulheres e filhos,em quartos próprios, sendo até possível às mulheres trabalhar no próprio Asilo com as irmãsde caridade. Quanto aos produtos, tanto de horta quanto de oficinas, o Regulamento estabelecia queeram todos destinados ao proveito do estabelecimento, no que se referia aos da horta.

Quanto aos da oficina, dois terços destinavam-se aos indivíduos que os haviam produzido euma terça parte era creditada em favor do Asilo. Do esmerado sermão proferido na cerimônia religiosa de 29 de julho de 1868 peloCônego Joaquim José da Fonseca Lima, com a presença de Dom Pedro II, de tantasautoridades e dos beneficiários do novo Asilo, encontramos palavras que representamvislumbres de total compreensão daquilo que é integração social, idéias que já brotavamnaquelas épocas em ambientes mais cultos e seletos - há mais de um século atrás: "Oinválido da pátria que aqui vier descansar à sombra de seus louros, terá ainda o honrosodireito de tomar parte na vida ativa da sociedade: o seu trabalho continuará a enobrecer suaexistência"... José Joaquim de Lima e Silva, Presidente da Comissão Central da Praça do Comércio doRio de Janeiro, em seu relatório datado de 31 de agosto de 1869, um ano após a inauguraçãodo Asilo, afirma textualmente: "É hoje na velha Europa questão duvidosa a eficácia dosasilos para os inválidos, embora ali se veja obras soberbas para esse fim, como o dosCampos Elíseos em Paris e do Greenwich em Inglaterra; sustentando muitos a preferência dese deixar o inválido livre na escolha de sua moradia e trabalho, recebendo do estado apensão e socorro que as leis criaram ou criarem". E continua o interessante relatório: "Que o inválido deve ser livre em recolher-se ou nãoao asilo é questão que nos parece liquida e jamais pensamos que, criando o asilo, se façadele uma morada forçada para o inválido e principalmente quando atendendo para o caráterdos nossos homens vemos que eles são essencialmente e em grande número, amigos da vidasocial ou da família, e que assim preferirão a mais humilde choupana ao mais deslumbrantepalácio, contanto que ali encontrem o prazer da família que aqui não podem ter. Essaliberdade de vida e esse amor da família não dispensa a criação do asilo, que será semdúvida procurado por muitos que nele acharam os cômodos que não podem encontrar emoutra parte e paraquem o sentimento ou o amor da família não e dominante"... Mas, o sonho não durou muito tempo, não. Terminada a guerra contra os paraguaios e osenvolvimentos brasileiros em ações armadas, terminou também a euforia e o projeto caiu norápido esquecimento do governo e do povo. Logo após a proclamação de nossa República, asituação na ilha do Bom Jesus já estava péssima. No ano de 1899, ou seja, dez anos deRepública, um jornalista resolveu tirar tudo a limpo e foi à ilha famosa. Era Ernesto Senna. Seu relato, em cores muito vivas e realistas, deixa-nos a sensação de um sonhodesmoronado - talvez bem pior do que isso. Nem o Império soubera manter o Asilo dosInválidos da Pátria, nem a nova República por ele se interessara. A burocracia ministerialacabara deformando o empreendimento. Algumas frases do jornalista serão suficientes para que compreendamos a fraqueza daorganização e a debilidade do interesse. A sorte dos mutilados de guerra passara a serproblema deles mesmos. ... "Repetidas queixas chegaram à redação do Jornal do Comércio sobre o estado deabandono em que se achava o Asilo. Tantas foram elas que há tempos enviamos à ilha doBom Jesus um nosso representante para "de visu" conhecer a realidade das queixas.Efetivamente eram justas e mereciam ser de pronto sanadas. Repugnava-nos, então, darpublicidade minuciosa do estado do Asilo, contando com as providências que se esperavamfossem tomadas pelo Quartel Mestre General, Senhor General Santiago, que havia visitado oestabelecimento e que mostrava-se interessado em melhorar a situação dos inválidos alirecolhidos. Como, porém, fossem improfícuas as medidas tomadas, a julgar pelo estado cadavez mais deplorável em que se acham aqueles servidores da pátria, resolvemos hoje publicar

as notas que colhemos em uma recente visita, depois de uns ligeiros reparos que foram feitosno edifício." ..."dos 46 prédios que existiam em 1869, todos pertencentes ao Estado, apenas existe umameia dúzia em ruínas, graças ao abandono e à indiferença. Os inválidos construíram à suacusta, por toda a ilha, 36 casinhas (ranchos), onde habitam com suas famílias, já por falta deacomodações no Asilo, já para evitar a morada em velhos pardieiros, que ameaçamruínas" ... ... "Logo ao desembarcar na ilha notamos o abandono em que está a instituição acobertadacom o pomposo título de Asilo dos Inválidos da Pátria. O capim cresce com abundância e olocal que se prestava para um belo e formoso jardim apenas ostenta vistosas palmeirasenfileiradas em frente do edifício enegrecido pela ação do tempo, pela falta de pinturas e deconsertos externos e internos"... ... "Mas quem transpuser a entrada principal de uma ou outra ala do edifício, sente certaopressão ao reparar nas escadas velhas, imundas, deixando à mostra os montantes laterais doestuque sem reboco e os ferros azebrados pela umidade que se escoa pelas paredes e ondeexistem faltas de táboas. Galqando a escada da ala direita, no segundo pavimento, o visitantesente as exalações das imundas latrinas sem água, sem portas, sem tampas e sem a menoratenção aos preceitos de higiene. É nesta ala do edifício que seacham os quartos reservados aos oficiais" ... ... "Velhas camas de ferro enferrujado, com as molas partidas e sem táboas e sobre elascolchões imundos e travesseiros que reclamam de muito um lugar na ilha da Sapucaia"... ... "O estabelecimento não fornece ao oficial nem um acessório de cama ou de quarto, demaneira que para lavar o próprio rosto é preciso que comprem bacia" ... ... "Latrinas foram colocadas nos alojamentos unicamente por luxo, pois que não existeencanamento para o serviço das mesmas. Não tem o Asilo mesas dignas de figurarem norefeitório, porque as duas que vimos, apesar de serem de mármore, precisam de guarnições ede pronta pintura"... ... "As praças não têm um banheiro e o fogão para as que tem família é comum, pois, estáno pavimento térreo do alojamento dos casados e consta de um grosso paredão de tijoloscom 36 bocas, e isto mesmo em péssimas condições" ...

O artigo de Ernesto Senna entra em pormenores suficientemente claros quanto ao estadode coisas, apenas 30 anos após a festiva inauguração do Asilo dos Inválidos da Pátria,orgulho de um Brasil progressista. No entanto, o que escapou ao arguto jornalista é que o Ministério da Guerra já iniciaraprovidências muito sérias para a devida recuperação do Asilo. Tanto é verdade que oGoverno Republicano com ele se preocupava, que os heróis mutilados ou gravementeenfermos vindos da Guerra de Canudos para lá foram encaminhados no ano de 1897/98. Reformas muito sérias foram empreendidas e alguns dos edifícios em piores condiçõesforam demolidos e substituídos. Se o leitor desejar conhecer algumas das instalações do Asilo dos Inválidos da Pátria,precisará saber o seguinte: 1. A ilha do Bom Jesus não existe mais. Ela foi inserida nos imensos trabalhos de aterroda ilha da Cidade Universitária, que eliminou algumas ilhas e as uniu num bloco só. Noentanto, as pontas e contornos das ilhas do Fundão e do Bom Jesus permaneceraminalterados, embora ligados à ilha principal da Cidade Universitária. A antiga ilha do BomJesus fica ao sul, após os prédios relacionados à agronomia. Sua área original, pertencente ao

Exército Brasileiro, é ocupada pela Cia. de Comando da Primeira Região Militar, além deresidências de militares e funcionários civis do Ministério do Exército. 2. Existem alguns prédios originalmente inaugurados por Dom Pedro II, ocupados peloComando da Companhia ali sediada. A igreja também está intacta, no alto de uma elevação.Lá dentro estão enterrados os restos mortais do Marechal Osório. 3. Há alguns descendentes dos "inválidos" nela instalados no final do século passado, e devários outros soldados que ficaram mutilados em operações militares mais recentes. E se o leitor chegar até lá, verá que se trata de uma "ilha" de contornos agradáveis, semalterações em sua forma original. E terá a surpresa de encontrar quase que exatamente o queé descrito por Honorato em 1869 quando diz: "Collocado em frente ao desembarque ovisitante vê dous edifícios, não tão elegantes, quanto forão aquelles que o faustoso Luiz XIVfez edificar para os seos soldados, mas tão singelos quanto podem ser os bons sentimentosdaqueles que os fizeram fundar". De fato, os dois edifícios são vistosos, ao estilo da época, e muito sólidos. Estãoatualmente muito bem conservados, pintados e limpos, após restauração bastantesignificativa. ... "Sobe-se por uma espaçosa escada com os corrimãos e balaústrês envernisados, nopatamar da qual, fronteira à porta, vê-se gravada em uma pedra mármore a seguinte legenda:No reinado do Sr.D.Pedro II, sendo ministro da guerra o conselheiro João Lustosa da CunhaParanaguá, erigio-se este edifício em 1868. - Dahi partem duas escadas em sentido inverso àprimeira, uma para o lado direito e outra para o esquerdo". E é exatamente isso que ovisitante interessado lá irá encontrar. ... "Passemos agora à igreja. A igreja do Bom Jesus, fundada em 1705, como diremos, noalto deste môrro não podia ser edificada em melhor posição. Elevada a uma alturaproporcional, com uma escadaria de sete degráos de pedra, tem na frente tres arcadas, sobreas quaes vê-se outras tantas janellas que ficão no côro da mesma igreja, e uma porta que dáentrada para o interior"... A linda igreja do Bom Jesus lá está, no alto de um pequeno morro, olhando a baía daGuanabara há mais de dois séculos. No entanto, o visitante deverá ficar atento para o fato de que o Asilo dos Inválidos daPátria não funciona mais. Segundo informações obtidas no próprio local, foi desativado noano de 1976, 107 anos, portanto, após sua festiva inauguração por Dom Pedro II.

CAPÍTULO SEXTO O SÉCULO XX E OS CAMINHOS DA REABILITAÇÃO NO MUNDO

Como em quase todas as áreas de atendimento à população mais pobre, houve umincremento substancial de assistência a pessoas portadoras de deficiências no mundo todo,durante todos os anos até agora vividos do século XX. Esse incremento não ocorreu apenasem razão de uma filosofia social mais voltada para a valorização do homem em algunspaíses mais proeminentes, mas também devido ao engajamento de muitos setores dasociedade no bem-estar comum - e por que não o dizer, em conseqüência dos evidentesprogressos das ciências e suas aplicações práticas, em todos os campos. Mesmo nos países sub-desenvolvidos, muitas áreas receberam o impulso no sentido damodernização e do avanço técnico. Além de se beneficiar dessa tendência geral, a medicinaprogrediu muito também em todos os seus setores especializados, tais como na cirurgiaortopédica, na ortopedia e na traumatologia - áreas que mais nos tocam neste estudo - devidoa muitos fatores, mas em especial devido a duas guerras mundiais e várias outras de âmbitosmais restritos que assolaram o mundo. Os problemas múltiplos de grandes contingentes populacionais desabrigados ousimplesmente desalojados pelas ações destruidoras da guerra, as imensas dificuldadesencontradas pelos refugiados, pelos doentes e pelos mutilados nos conflitos, a orfandade e oabandono quase que generalizados, levaram a grandes programas assistenciais de caráterinternacional. Além disso, o contato direto com elevados contingentes de população queapresentavam problemas especiais teve como conseqüência melhores e mais precisasprovidências de ordem prática para o encontro de soluções que incluíam a completareintegração dos mesmos à vida normal, numa sociedade produtiva devidamentereconstruída. Esforços especiais foram criados para lutar pela normalização da vida dessesgrupos populacionais vítimas das atividades de guerra. Antes dos conflitos armados, porém, no que concerne às medidas relacionadasdiretamente aos portadores de deficiências de países mais evoluídos, a atenção para com ascrianças portadoras de deficiências físicas foi se concentrando efetivamente em seu melhorcuidado e em sua educação especial, desde a primeira década do século. Princípios jádefendidos há séculos na Europa, desde a época da Renascença, para o atendimento de

órfãos e de crianças carentes e deficientes, foram efetivamente melhor definidos e postos emprática no início deste século. Além da simples proteção, da assistência para prevenir o abandono e a criminalidade, e daeducação, algum treinamento profissionalizante, através do qual a criança ao chegar à idadeadulta poderia obter meios para sobreviver, começou a ser de fato implantado em diversasentidades. O humanismo filosófico, em constante ascensão, sem dúvida que ajudou na ênfase a serdada a esse grupo marginalizado, e ao seguir os seus princípios fundamentais, a medicinamais especializada encontrou o caminho ideal para um completo engajamento. E com elavieram outras ciências e outros grupos de profissionais ou de voluntários interessados emuito vinculados a uma população de classe média politizada e mais consciente danecessidade de beneficiar a todos os que precisavam de ajuda. A crescente migração de segmentos populacionais deslocados ou tangidos pelo sofrimentodas guerras e suas conseqüências amedrontadoras, procurando resolver os seus problemasbásicos de vida, e a troca mais fácil de experiências devido aos meios de comunicação maispenetrantes e convincentes, levou a todos os quadrantes do mundo novas tecnologias enovos sistemas para análise e tratamento dos problemas sociais. Em várias das nações mais civilizadas do mundo ocorreram nesses períodos de pós-guerramelhorias consideráveis nos sistemas de bem-estar social, chegando ao seguro social, àassistência pública, à promoção social e também, de um modo todo especial, às atividadestotalmente voltadas para a saúde publica. Os avanços cada vez mais acelerados da medicina começaram a surtir efeitossurpreendentes, aumentando a expectativa de vida, reduzindo o número de mortes poracidentes ou por doenças, diminuindo a taxa de mortalidade e morbidade infantil e quaseextinguindo as epidemias avassaladoras. Esses resultados não teriam sido viabilizados se,por outro lado, os serviços públicos, mais conscientes de seu papel na garantia do bem-estarde todos, não tivessem atuado com eficiência na implantação de melhores sistemas detratamento de água, de fiscalização de alimentos, de tratamento de esgotos, de vacinaçãocontra males contagiosos e muitos mais. O mundo comercial e industrial muito colaboroutambém para definições mais precisas daquilo que era preocupação de todos, ou seja, agarantia de certa dose de qualidade de vida, a fim de dar condições essenciais para o homemprogredir. Profissões voltadas para o atendimento aos problemas de pessoas em dificuldades foramsurgindo e se fortificando, algumas delas como verdadeiro desdobramento da medicina,enquanto que outras, especialmente nos campos da educação, em razão da inegávelvalorização do ser humano. Mas a medicina sem dúvida que antecedeu no atendimento aoportador de problemas incapacitantes ou de lesões conseqüentes a doenças graves, chegandoao ponto de assegurar a vida aos casos antigamente considerados como fatais, e aumentandoa expectativa de vida ao homem idoso. O Dr.Bernard Baruch, com carradas de razão jáafirmara certa vez que "a medicina adicionou alguns anos à vida do homem, e agora dependeda educação adicionar vida a esses anos"... Nesse contexto é interessante ressaltar o delineamento de profissões como a do serviçosocial (que muita gente até hoje chama de "assistência social"), que desde seus primórdiostem procurado levar para uma atuação de cunho técnico velhos e superados conceitos muitodiluídos e por vezes até desacreditados de toda a área correspondente ao bem-estar social -situação que mesmo ao final do século XX persiste em muitos países do mundo emdesenvolvimento.

Vejamos alguns dos pontos mais relevantes dessa evolução toda nos programas deassistência às pessoas deficientes, dentro do século XX.

- *O panorama europeu da assistência a deficientes no início do século* Entre os anos de 1902 e 1912, na Europa, mais de 20 instituições destinadas ao exclusivoatendimento de pessoas que apresentavam problemas de deficiências físicas já existiam,levantando fundos e fazendo campanhas para garantir sua manutenção e para incrementarsua causa, em acréscimo às campanhas e aos levantamentos de dinheiro que já vinhamocorrendo para causas anteriormente absorvidas pela sociedade, como as de ajuda aospobres, de proteção aos velhos, de assistência à criança desamparada, entre muitas. De outra parte, a ajuda a pessoas deficientes - não só as provenientes das fileiras militares,como das atividades civis - começou a se firmar em bases novas, mais modernas. Esse novotipo de ênfase no atendimento, que brotara nos Estados Unidos, causou na Europa ummovimento bastante dinâmico e coerente, incorporando-se a vários empreendimentos vindosdo século XIX, ou mesmo dos primeiros anos do século XX. Por exemplo, em 1904 ocorrerajá a organização da Primeira Conferência sobre Crianças Inválidas, em Londres. No ano de1909, seguindo a mesma tendência de dar cada vez maior atenção aos portadores dedeficiências, um primeiro censo de pessoas deficientes foi levado a efeito na Alemanha, poriniciativa de Bielaski, que tentava com isso aquilatar a extensão do problema. No mesmoano, nos Estados Unidos, havia também sido organizada a Primeira Conferência da CasaBranca sobre os Cuidados de Crianças Deficientes, que havia aprovado uma resoluçãoincentivando programas de preparo das crianças institucionalizadas para sua futuraintegração na sociedade (Apud Agüero).

- *EUA: um primeiro congresso mundial de deficientes auditivos* No ano de 1904, na cidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, foi organizado umprimeiro congresso destinado a estudar todos os problemas das pessoas surdas - era oCongresso Mundial dos Surdos. Nesse conclave, o método oral de comunicação foicombatido pelos seguidores do método de comunicação por sinais. No entanto, o chamado"oralismo" foi seguido por escolas particulares e por semi-internatos, combinando suatécnica com a dos sinais. Foi exatamente por essa época que Helen Keller recebia suasprimeiras lições de linguagem falada, por meio de professores da Escola de Horace Mann.

- *A gradativa implantação da reabilitação* O desenvolvimento de atividades coordenadas que chegariam a ser genericamentereconhecidas como "reabilitação" (e não apenas um nome de centro, como o de Cleveland àépoca de sua fundação...), aconteceu lentamente e sua implantação foi um tanto indecisa,quase que conseqüente à impotência dos médicos Face à multiplicidade de problemas queafetavam diretamente as pessoas mutiladas ou portadoras de outros tipos de deficiências. Eisso ocorreu logo após a Primeira Guerra Mundial. Já fazendo parte de um programa deassistência ampla a pessoas deficientes e que logo se transformaria num esquema dereabilitação, o primeiro Estado norte-americano a fazer uma provisão específica para tal fimfoi o Estado de Minesota que em 1897 já havia feito uma dotação para assistência a"crianças defeituosas" e com necessidade de tratamento médico. Mas as primeiras organizações norte-americanas a estudar o problema geral das pessoascom deficiências e desse ponto partir para programas destinados à melhoria de sua condiçãofísica e social foram a Fundação Russel Sage e o Bureau do Deficiente da SociedadeOrganização de Caridade, da cidade de New York, no ano de 1908.

- *As tentativas iniciais para a solução do problema de trabalho* Em 1907 surgia na cidade de Boston a Goodwill Industries, até hoje mundialmentefamosa. Não se dedicava ao problema geral das pessoas deficientes nem se preocupava comproblemas de ordem médica ou social que elas pudessem apresentar. Dedicava-seintencionalmente aos aspectos de envolvimento da pessoa deficiente em atividades detrabalho remunerado - mesmo que separado, isolado das outras empresas,institucionalizado ou "protegido", como viria a ser conhecido. Essa organização foi umainiciativa da Igreja Metodista, tornando-se posteriormente dela desvinculada e sem qualquercor religiosa. O plano original era dar às pessoas deficientes sem emprego ou sem qualquerrendimento, uma oportunidade de ganhar a vida pelo recondicionamento de roupas, sapatos,móveis descartados como velhos e outros artigos, cuidando a Goodwill Industries de vendertodos esses artigos por preços muito módicos à população mais pobre. Focalizando o ângulo de treinamento para o trabalho melhor definido e qualificado, surgiuno ano de 1906, no Estado de Pennsylvania, a Widener Memorial Training School forCrippled Children, uma das mais importantes do gênero durante muitos anos.

- *Implantação de serviços de naturezas diversas* Foi também no ano de 1906 que, na pequena cidade de Kallithéa, na Grécia, surgiu umaprimeira escola para cegos, baseada na experiência localmente acumulada por pessoasinteressadas no problema. Essa velha escola é hoje conhecida como Centro de Educação eReabilitação. Enquanto isso, nos Estados Unidos, criava-se a Primeira Comissão Estadual para o Cego,no Estado de Masachussets, destinada a implementar programas pela primeira vezfinanciados pelo governo federal. No campo da assistência a deficientes mentais, os Estados Unidos, a par com muitosesforços do continente europeu, haviam também dado passos importantes ao finalizar oséculo XIX e iniciar o século XX, com as iniciativas de Horace Mann e Samuel Howe,criando organizações de atendimento a deficientes mentais. Programas equivalentes parasurdos e também para cegos espalharam-se pelo país todo, e pelo ano de 1914 classesespeciais com pessoal especificamente preparado existiam nas escolas públicas deBaltimore, Detroit, New York e também em Philadelphia. Como conseqüência da guerra que eclodira no continente europeu, no ano de 1915, emLondres, o Saint Dunstan's Hostel for the War Blinded foi organizado e iniciou seus valiososserviços, atendendo os soldados cegos provenientes dos campos de batalha. Soldados deColônias de toda a Comunidade Britânica também eram atendidos.

- *Os esforços de pós-guerra* Após o ano de 1918, apesar de todas as dificuldades econômicas e sociais causadas pelaguerra que assolara o mundo, com o volume de pessoas mutiladas, acidentadas, deslocadasou refugiadas bem à mostra, os países mais evoluídos aumentaram substancialmente seusesforços para a sua ajuda, não só na área militar mas também na civil. Impulso dos mais significativos foi dado à reabilitação de pessoas deficientes naInglaterra, assim que terminou a Primeira Guerra Mundial, pois muitos esforços foramsurgindo para a elas dar todo o atendimento requerido, bem melhor e mais completo do quepor meio das tentativas anteriormente adotadas. Devido ao quase que contínuo envolvimentoda Inglaterra em guerras nas mais diversas partes do mundo, os problemas das deficiênciaseram tão generalizadamente conhecidos que muitos esforços isolados existiam, mas que

requeriam uma certa coordenação. Criou-se então a Comissão Central da Grã-Bretanha parao Cuidado do Deficiente. Também devido aos seus muitos envolvimentos em guerras, surgiu nos Estados Unidos,na cidade de New York, no ano de 1917, uma entidade que desempenharia no futuro dareabilitação um dos papéis mais marcantes: a chamada Red Cross Institute for the Crippledand Disabled Men, mais tarde redenominada de Institute for the Crippled and Disabled, jáatendendo a civis. Hoje é conhecida essa organização comoICD Rehabilitation and Research Center. E como não poderia deixar de ser, de muita influência para definição dos programas dereabilitação foram os esquemas montados para dar assistência completa a soldados quevoltavam mutilados de guerras em diversos países do mundo. Exemplo interessante disso foio que sucedeu na França, onde, por lei assinada em 2/1/1918, todo militar ferido na guerraou portador de uma deficiência devido às suas atividades de soldado e que se tornasseincapacitado para o trabalho civil ou militar, tinha o direito de inscrever-se gratuitamentenuma escola profissionalizante, tendo em vista a necessidade de sua readaptação para otrabalho e sua colocação no mercado competitivo. A prioridade para obtenção de empregosna área civil, de cuidados médicos, de aparelhos ortopédicos e de cadeiras de rodas gratuitas,fazia e faz até hoje parte desse direito. Uma lei de 30 de janeiro de 1923 deu aos mutiladosde guerra e também às conhecidas como viúvas de guerra, direito de preferência para certasfunções no Estado, funções essas que, se fossem ocupadas, não poderiam ser extintas peloGoverno. - *Surge a "Easter Seal Society"* Enquanto essas necessidades começavam a ser cobertas em vários países, era criada nosEstados Unidos uma associação já de caráter nacional que, graças à cooperação de diversasoutras organizações, passaria a ser de importância fundamental no desenvolvimento de umareabilitação muito mais técnica, precisa e objetiva, ou seja, a Associação Nacional paraCrianças e Adultos Deficientes - muito mais conhecida como a "Easter Seal Society". Essaentidade de caráter nacional, que foi criada em 1919, existe até os dias de hoje e tem umrelevante papel na manutenção de programas os mais variados.

- *O Código de Direito Canônico e os bloqueios a homens deficientes* O Código de Direito Canônico continuou mantendo seus bloqueios a candidatos aosacerdócio católico que apresentassem defeitos. O Capítulo Segundo do Código versa sobreas chamadas Irregularidades em Particular e analisa em pormenores o assunto. Seu ArtigoPrimeiro fala sobre as Irregularidades por Defeito e indica que existem oito espécies dedefeito que podem tornar um candidato impedido de chegar até o sacerdócio: 1º - Por defeito de espírito 2º - Por defeito de corpo 3º - Por defeito dos pais 4º - Por defeito de idade 5º - Por defeito de liberdade 6º- Por defeito de sacramento 7 º - Por defeito de mansidão 8º - Por defeito de fama.

Vamos nos limitar, todavia, a uma pequena análise dos chamados "defeitos corporais" eseu relacionamento à irregularidade ou impedimento canônico que torne ilícita a recepção do

sacramento da Ordem, de um modo direto, ou o exercício das funções sacerdotais, de ummodo indireto. Segundo a disciplina da Igreja Católica, a irregularidade não é um castigo,mas um dos meios encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do estadosacerdotal e para a exclusão daqueles que não tem capacidade ou aptidão para o mesmo.Enquanto a irregularidade é permanente, o impedimento é transitório. Dentro dos regulamentos e normas vigentes na Igreja, são considerados como irregulares,além dos casos citados mais acima, os "corporalmente defeituosos que por fraqueza nãopodem exercer as funções do altar com segurança ou que por deformidade não o puderemfazer com dignidade. Quem se torna defeituoso depois de legitimamente ordenado, só podeser impedido no exercício de suas funções se o defeito fornotável. Não se proíbem, porém, atos que, apesar dos defeitos, puderem ser exercidosconvenientemente" ("Compêndio de Moral Católica", de Jone-Fox). Os mesmos autores enumeram com exemplos pormenorizados os defeitos que tornam umcandidato ao sacerdócio "irregular", da mesma forma que o faz o Padre João Pedro Gury emsua memorável obra "Compêndio de Teologia Moral", ao analisar o Código de DireitoCanônico e jurisprudência encontrada. Segundo eles, são "irregulares" aqueles que não têmum dedo polegar ou um indicador, ou ambos; que usam uma perna mecânica ou que estãoimpossibilitados de usar as mãos; aqueles que tremem tanto que poderiam "derramar opreciosíssimo Sangue"; os cegos ou que tenham deficiência visual tão grave que nãoconseguem ler o conteúdo do missal; os casos de surdez que não consigam ouvir a voz doajudante de um ato litúrgico; os que gaguejam de tal maneira que provoquem riso edesprezo; os que são vítimas de paralisias ou deformações que causem o andar típico de um"coxo", e que não conseguem ficar no altar sem bengala ou muleta; os que estãodesfigurados por mutilações ou por outra causa (por agenesias de qualquer natureza ou pordefeitos causados por males degenerativos); os que têm corcunda muito grande queprovoque riso ou que os impeça de se colocar em posição ereta. As normas relacionadas a defeitos corporais entram em pormenores quanto a problemasde visão. Assim, a falta da vista esquerda não caracteriza casos de irregularidade, se odefeito for disfarçado por uma prótese ocular. O olho esquerdo, considerado como o Olho doCanon, é necessário para o sacerdote ler o Canon da Missa; se o sacerdote conseguir fazê-losem maiores problemas, a irregularidade poderá ser dispensada. Quem se torna surdo"depois da recepção das ordens", não fica proibido de celebrar os atos litúrgicos. Ainda para casos de ocorrência de uma deficiência após a ordenação as normas sãobastante condescendentes. Vejamos alguns casos: - Quem estiver quase cego, segundo Jone-Fox, poderá obter do Papa dispensa paracelebrar a chamada missa "de Beata", ou a missa cotidiana dos defuntos. Se um sacerdoteficar completamente cego, só poderá rezar a missa com a assistência de outro sacerdote. - O sacerdote que não consegue ficar de pé junto ao altar, ou que puder assim permanecerapenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderá celebrar missa privadamente enunca em público. Isso também é verdadeiro para o sacerdote que sofrer de hanseníase oudoença grave. - Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorre também a irregularidade, dependendo dobispo local ou das autoridades eclesiásticas constituídas a permissão do exercício de suasfunções sacerdotais, depois de curados ou de terem o mal sob controle. É evidente que existe nesses regulamentos da Igreja Católica grande preocupação pelaaparência física de seus ministros, mas muito mais do que isso, o firme propósito de nãolevar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos.

Em diversas cerimônias litúrgicas da Igreja Católica é fundamental no sacerdote poderajoelhar-se e levantar-se diversas vezes, em atos de adoração; é básico também que tenha amão direita para distribuir a comunhão ou para dar a bênção. (* Quando em meus dez oudoze anos fui "coroinha" de um sacerdote que pessoalmente considero um mártir do câncer:Pe. Luiz Alves de Siqueira. Lembro-me perfeitamente bem quando chegou de volta aparóquia sem o braço esquerdo, amputado por um tumor maligno. Celebravamissa, desenvolvia todos os atos requeridos - e fora disso tudo, ainda guiava automóvel poralgumas ruas do bairro. Colocado o braço artificial, continuou da mesma forma atuante,usando o braço mecânico para segurar o cibório na distribuição da comunhão a seusparoquianos...)

- *Reconhecimento das verdadeiras necessidades das pessoas deficientes* Uma centena de leis que reconheciam os direitos e favoreciam às crianças portadoras dedeficiências surgiu em diversos países, e de um modo todo especial nos Estados Unidos daAmérica do Norte, durante os primeiros trinta anos deste século. A maioria dessas leisreferia-se a cuidados médicos e a programas educacionais. Graças a programas parecidos desenvolvidos nos Estados de New York e de Ohio, einiciados no ano de 1917 com a colaboração de comissões locais com a ajuda dos governosestaduais, houve progressos bastante significativos no cuidado à pessoa deficiente porquemostraram que a solução de seus problemas não dependia apenas de providências na áreamédica nem de esquemas educacionais mantidos em hospitais, asilos ou instituições dediversas naturezas. Ficou muito claro que o que era necessário compreender era que tantocrianças quanto adultos com deficiências necessitavam não só dos cuidados que instituiçõesespeciais pudessem lhes prover, mas também de atenção pessoal, de carinho, derelacionamento familiar e de um ambiente que possibilitasse alguma participação na vidacomunitária, como qualquer outra pessoa. - *A previdência social e os acidentes de trabalho* As primeiras leis de compensação a trabalhadores que se acidentavam nas atividadesindustriais aconteceram a partir do ano de 1911 nos Estados Unidos, seguindo um exemplode legislação que vinha sendo promulgada na Europa, desde o final do século XIX. Naverdade essa legislação acabou significando um passo à frente na fixação daresponsabilidade que o governo deve assumir face ao problema de deficientes provenientesda indústria. Ao se findar a Primeira Guerra Mundial, a legislação de aposentadoria ou decompensação financeira para os acidentados no trabalho civil foi sendo introduzida commais regularidade e foi se tornando cada vez mais comum no mundo ocidental. Acabou porse transformar em um dos mais sérios fatores que chegaram a levar muitas nações a aprovarextensos programas de volta das pessoas aposentadas à vida de trabalho, o que de fatoacabou se definindo como programa de reabilitação profissional. E nesse movimento todo, aexperiência acumulada por centenas de empreendimentos de assistência financeira, de abrigoou de compensação por danos sofridos pelos soldados nas fronteiras em litígio aberto ou nosconflitos armados, foi de alto significado. Benefícios acarretados aos trabalhadores foram,de início, muito bem recebidos, mas esses programas provaram logo não ser muitoeficientes, especialmente quando mantidos por companhias de seguro e outras organizaçõesprivadas, e em muitos casos, mesmo pelo sistema oficial de seguro social.

O atendimento às vezes não era nem completo nem adequado, ou apresentava-se como decaráter paliativo e muito superficial, vendo-se as pessoas forçadas a comparecer àsatividades programadas para poder receber os proventos a que tinham direito. Esses programas iniciais limitavam-se aos acidentados no trabalho, como hoje estáocorrendo com órgãos ligados ao nosso sistema nacional de previdência social e vários deseus programas, ressaltando-se o programa de reabilitação profissional mantido peloInstituto Nacional da Previdência Social. As pessoas que, já na década de vinte, eramvítimas de acidentes domésticos, de trânsito e de outras naturezas, ou eram atingidas poralguma enfermidade grave ou malformação congênita, não podiam ser atendidas em suareabilitação - como acontece na década de oitenta em nosso Brasil. - *A reabilitação de jovens veteranos da Marinha e do Exército* O ano de 1918 foi aquele que viu aprovada a lei conhecida nos Estados Unidos daAmérica do Norte como Vocational Rehabilitation Act. Essa lei dava condições dereabilitação para o trabalho a veteranos portadores de deficiências, vindos quer das fileirasda Marinha, quer do Exército. Em 1920 o chamado Fessenyon Civilian VocationalRehabilitation Act autorizou o atendimento de civis com deficiências físicas. Esta legislaçãoprocurou enfatizar soluções de trabalho e descuidou-se excessivamente dos aspectos derecuperação ou de restauração física, como parte do programa. No entanto, foi uma grandecolaboração aos programas de reabilitação, pois abriu uma grande avenida para acompreensão da problemática global das pessoas deficientes e reconhecimento danecessidade de se implantar programas mais abrangentes. - *A retração dos anos trinta e as pessoas deficientes nos EUA* A década de trinta constituiu-se num período dos mais obscuros para pessoas deficientes,devido especialmente à retração econômica que varreu o país norte-americano. Todos osprogressos até então feitos para empregar adequadamente as pessoas deficientes acabaramcaindo a quase zero. A enorme avalanche de desempregados que não tinham qualquerdeficiência, cujas necessidades de emprego pareciam à primeira vista mais urgentes do queaquelas das pessoas deficientes que sempre haviam sido consideradas como objeto decaridade e comiseração e não tanto como potencial humano sério a ser considerado para omercado de trabalho fez com que o valor de seu trabalho fosse subestimado. Apesar da depressão econômica, muito se aprendeu quanto ao atendimento social daspessoas deficientes através de serviço social bem orientado. Mas a herança deixada pelocolapso econômico norte-americano foi muito amarga, e uma dessas heranças foi a criaçãodas chamadas agências de bem-estar social, nas quais havia atendimento individualizado,com aconselhamento para o trabalho, orientação para treinamento profissionalizante,serviços globais de saúde, assistência psicológica e por vezes psiquiátrica, conforme o caso. - *A influência da Segunda Guerra Mundial na reabilitação* Quando a Segunda Guerra Mundial foi deflagrada, o problema dos soldados vítimas dedeficiências causadas pela guerra atraiu novamente a atenção do mundo. Mas a situação erabem diferente daquela deixada pela Primeira Guerra Mundial, pois logo ao terminar osegundo conflito, já existiam serviços de reabilitação tanto para civis como para militares.Para atender a esses problemas de deficiências, funcionavam agências que já haviamtrabalhado por anos a fio com esse assunto. O que contribuiu grandemente para obtermelhores condições para o desenvolvimento de reabilitação mais completa, nos EUA, foi apresença de Franklyn Delano Roosevelt, um paraplégico por poliomielite, na Presidência do

país, eleito em 1932. Ficou evidente que uma pessoa deficiente poderia realizarperfeitamente bem até uma função de natureza executiva de alto nível, sustentando suaprópria vida através de um emprego remunerado. Durante a Guerra, graças à escassez de braços e à premência de desenvolver os esforçosde guerra, tanto as mulheres quanto os portadores de deficiências foram aproveitados aosmilhares nas indústrias, nas vagas daqueles que haviam sido incorporados às forças armadas. Um dos grandes resultados da atuação de profissionais que cuidavam dos problemas dedeficiências foi o avanço incontestável da Medicina Física e da Terapia Ocupacional. Alémdisso, foi sendo reforçada a impressão que havia de que a pessoa deficiente não precisa nemser carga pública nem dependente; que a pessoa deficiente pode ser útil, contribuinte àeconomia geral de um país, participante na formação da riqueza nacional. Dessa época de anos difíceis do pós-guerra é que foram se definindo preocupações cadavez mais marcantes como o ajustamento psico-social das pessoas portadoras de deficiências. - *A criação de sociedades internacionais privadas* Quase sempre serviços de assistência a grupos minoritários são organizados edesenvolvidos por entidades da área privada. Cada esforço novo tem sido sempre inspiradoem sucessos de esforços semelhantes ocorridos em países ou cidades vizinhas. Essatendência é encontradiça em reabilitação e em esquemas de assistência a pessoas deficientesem todas as partes do mundo. Estudiosos do assunto "reabilitação" acabaram provocando no início do século ointercâmbio de informações e de sugestões entre todos os que se interessavam peloproblema, estabelecendo uma espécie de organização internacional de caráter informal. Noentanto, havia claramente a necessidade de existir organizações do tipo não-governamental,mas de caráter internacional, voltadas para toda essa imensa problemática legada pelaPrimeira Guerra Mundial. A mais antiga dessas sociedades internacionais surgiu na Escandinávia, no início doséculo. Foi a Sociedade Escandinava de Ajuda a Deficientes congregando entidades queatendiam pessoas deficientes na Suécia, Noruega e Dinamarca, desde o século XIX. A sociedade internacional que hoje é conhecida mundialmente como a RehabilitationInternational surgiu como uma das primeiras e mais importantes organizações voluntáriasinteressadas no ângulo internacional do problema, com o objetivo principal de mantercontato com o progresso mundial na ajuda a pessoas deficientes. Ela foi fundada em 1922com o nome inicial de Sociedade Internacional para a CriançaDeficiente, graças a alguns interessados pertencentes ao Rotary International que, aoobservar movimentos semelhantes aos que eram organizados nos EUA para criançasdeficientes, compararam-nos a outros movimentos em outras partes do mundo. O RotaryInternational acabou patrocinando a idéia de formar uma federação para coordenar eestimular atividades destinadas a pessoas deficientes. O primeiro Congresso Mundial dessa sociedade internacional que já adotara o nome deSociedade Internacional para o Bem-Estar dos Aleijados (International Society for theWelfare of the Cripples) foi na cidade de Genebra, na Suíça, no ano de 1929, graças ainteressados no problema que participavam de uma reunião do Rotary International. Existem versões diferentes para a criação da Sociedade Internacional para o Bem-Estardos Aleijados. Segundo uma delas, no ano de 1919, na cidade de Elyria (Estado de Ohio -EUA), foi fundada a International Society for Crippled Children, mas no ano de 1922 ela foidividida em duas outras organizações internacionais, ou seja, a "Easter Seal Society forDomestic Action" e a "International Society

for the Welfare of Cripples". Tendo seu nome sido alterado para "International Society for Rehabilitation of theDisabled", na década de cinqüenta, ela é hoje conhecida como "Rehabilitation International",conta com 115 organizações do mundo todo a ela filiadas, incluindo nisso 64 países de todosos continentes. Evidentemente que existem hoje diversas organizações conhecidas como "não-governamentais", que têm características internacionais, que se dedicam aos problemas depessoas deficientes. Dentre elas cumpre destacar as seguintes: - Federação Mundial dos Veteranos - Sociedade Internacional de Medicina Física - Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais - Confederação Mundial de Fisioterapia - Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos

Todo o esforço de muitas das organizações não-governamentais é atualmente coordenadopela Conferência de Organizações Mundiais, Interessadas na Pessoa Deficiente.

- *O envolvimento das organizações inter-governamentais* Desde o final da segunda guerra que assolou o mundo no século XX, ou seja, desde o anode 1945, expandira-se muito a compreensão daquilo que vinha insistentemente sendochamado de "reabilitação". E com essa compreensão, muitas sociedades caminhavam para aplena conscientização quanto à sua necessidade, havendo muito pouca gente que duvidavaque problemas sérios das pessoas deficientes só poderiam ser cobertos com sua aplicação.Programas muito mais amplos precisavam ser garantidos para dar assistência não só aosdeficientes do aparelho locomotor, mas também que apresentavam dificuldades sensoriais ementais. Um dos fatores mais significativos na divulgação dessa nova técnica de trabalho foi, semdúvida, o envolvimento das organizações internacionais de caráter inter-governamental,comandadas pela Organização das Nações Unidas, incluindo nessa verdadeira família deorganizações o Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), aOrganização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial de Saúde (OMS), aOrganização das Nações Unidas para Refugiados e a Organização das Nações Unidas paraEducação, Ciência e Cultura (UNESCO). O verdadeiro envolvimento dessas organizaçõesinternacionais iniciara-se mesmo antes da própria criação da ONU, quando o organismo decongregação das nações do mundo era ainda a Liga das Nações, com sua sede em Genebra. Um exemplo desse envolvimento está no documento intitulado"Report on the Welfare ofthe Blind in Various Countries" (Relatório a respeito do Bem-Estar dos Cegos em VáriosPaíses), datado de 1929 e publicado sob a responsabilidade da Liga das Nações. Essedocumento apresentou um resumo analítico da evolução dos serviços de proteção e deassistência aos cegos, na Europa e na América do Norte. No entanto, um passo decisivo para um maior envolvimento da ONU e de suas AgênciasEspecializadas ocorreu quando, no mês de dezembro de 1946, sua Assembléia Geral adotouuma resolução que estabelecia o primeiro passo para um programa de consultoria emdiversas áreas do bem-estar social, nele incluindo a reabilitação das pessoas deficientes,como uma das principais áreas com possibilidades de captar recursos financeiros paraassistência técnica a ser colocada à disposição dos países sub-desenvolvidos e interessadosno assunto. Foi montado o Bureau of Social Affairs, dentro do Secretariado da ONU, queiniciou seu funcionamento quando a ONU ainda trabalhava em Lake Sucess, nos arredores

de New York. Dentro da estrutura do Bureau foi inserida uma Unidade de Reabilitação dePessoas Deficientes. Enquanto isso começava a acontecer a nível da nova Organização das Nações Unidas, osprogramas da já antiga Organização Internacional do Trabalho continuavam, pois já haviamsido montados há alguns anos. Logo envolveram-se as outras organizações e devido aovolume surpreendente de atividades e ao estabelecimento de áreas específicas de atuaçãopara cada uma delas, gradativamente surgiu a necessidade de um sistema de coordenaçãointernacional, envolvendo não só as organizações inter-governamentais, mas também asorganizações mundiais de caráter não-governamental que iam proliferando em diversoscampos. Durante o Seminário Internacional sobre Administração de Programas e de Centros deReabilitação nos Países em Desenvolvimento, organizado pela ONU e pelo Governo daDinamarca, em Copenhague, de 18 de julho a 5 de agosto de 1966, e do qual participamoscomo Secretário-Técnico, tivemos oportunidade de analisar a questão da coordenação emum painel de especialistas, sendo nossa missão apresentar pontos relevantes que justificavama necessidade de coordenação a nível internacional. Fizemo-lo em nome da Unidade deReabilitação de Pessoas Deficientes do Bureau de Assuntos Sociais, da qual éramosfuncionário técnico. O trabalho escrito, apresentado na ocasião, aplicável quase que "intotum" à realidade de hoje, é relevante no contexto deste capítulo, face à importância que aONU e suas Agências Especializadas têm tido no desenvolvimento da reabilitação no mundode hoje. Alguns trechos parecem-nos relevantes: ... "A prevenção das deficiências e a reabilitação de pessoas deficientes são problemas nosquais a ONU e um certo número de Agências Especializadas têm demonstrado grandeinteresse muito antes de 1950. Nesse ano, tendo em mira obter uma atuação bem coordenadanesse campo, o Conselho Econômico e Social da ONU solicitou ao Secretário-Geral paraplanejar “inter-alia”, juntamente com as Agências Especializadas e em consultoria com asorganizações não-governamentais interessadas, um bem coordenado programa internacionalpara a reabilitação das pessoas fisicamente deficientes. Planos para esse programa foraminicialmente discutidos por um grupo técnico de trabalho composto de especialistasindicados pela ONU, pela Organização Internacional do Trabalho, pela UNESCO, pelaOrganização Mundial de Saúde, pela Organização Internacional dos Refugiados e peloFundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças. O grupo reuniu-se em LakeSuccess e em Genebra, e o novo programa internacional, dinâmico em sua forma e baseadoem princípios sólidos, começou a existir." Coordenação prática dessas atividades - o tópico principal das primeiras reuniões -continuou a constituir-se no foco de discussão através dos anos. Em tese parecia haver umaclara divisão de responsabilidades, mas na prática havia diversas áreas nas quais asobreposição de responsabilidades persistia. Os problemas colocados por essas áreas"cinzas", poderiam ser resolvidos apenas por meio de uma eficiente coordenação que, emcontrapartida, dependeria de uma precisa definição de responsabilidades. Depois de muitadiscussão, planejamento e revisão, a seguinte alocação de responsabilidades foi aceita: a) A Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes das Nações Unidas ficouencarregada de aspectos de Planejamento, Administração, Legislação, Aspectos Sociais,Aspectos Psicológicos e Próteses. Além disso, a Unidade de Reabilitação ficou responsávelpor manter um controle sobre todas as providências tomadas com relação a projetos práticos,e por garantir, tanto quanto possível, que as Agências Especializadas se mantivessem em diae estivessem perfeitamente informadas das atividades umas das outras.

b) A responsabilidade da Organização Internacional do Trabalho cobria todos os aspectosprofissionais da reabilitação, tais como treinamento de re-condicionamento, de avaliação ede atividades pré-profissionais (como eram conhecidas àquela época); emprego protegido eorganização de oficinas protegidas; medidas especiais para garantia de emprego para apessoa deficiente; e centros de reabilitação industrial. Deve-se notar aqui que os princípiosgerais da reabilitação profissional sempre estiveram baseados na Recomendação nº 99 daOIT, aprovada pela Conferência Internacional do Trabalho, em junho de 1955.

c) A competência técnica da UNESCO no campo da reabilitação cobre o que é conhecidopor todos nós como educação especial. A UNESCO inclui, nesse sentido, alguns programaspara cegos, para surdos e em geral para os deficientes físicos e mentais. Uma Resoluçãosobre educação especial foi adotada pela Conferência da UNESCO de 1964, e espera-se queatividades de assistência técnica dessa Agência Especializada, em educação especial,aumente durante os anos futuros.

d) A responsabilidade da Organização Mundial de Saúde em geral é promover a saúde detodas as pessoas. Quanto a atividades de reabilitação, seu papel é prevenir, sempre quepossível, males incapacitantes, e desenvolver programas em cirurgia ortopédica e protética;em medicina física; em fisioterapia; em enfermagem especializada; em próteses e órteses naprática médica.

e) O papel do UNICEF em reabilitação, bem como em outros campos de assistência, éprover equipamento e transporte. O UNICEF normalmente coordena seus próprios planoscom os planos da ONU e de suas Agências Especializadas e somente dá assistência aprojetos que tenham a aprovação técnica da relevante Agência das Nações Unidas". (Isto eraverdade à época em que o documento foi apresentado e discutido - hoje em dia o UNICEFmantém seus próprios programas e suas próprias consultorias, contratando eventualmente aassessoria de especialistas mundialmente renomados ou de organizações não-governamentais especializadas).

O trabalho em pauta, que foi devidamente liberado pela ONU antes de sua apresentaçãoquanto ao seu conteúdo e análise das atuações das Agências citadas em seu corpo, continua,estudando os fatores comuns encontradiços em seu trabalho, e que caracterizavam asorganizações inter-governamentais. Só para informação do leitor, esses pontos comuns eramos seguintes: a) todas as organizações internacionais de caráter inter-governamental, inseridas nafamília de Agências das Nações Unidas, estavam e estão preparadas para prestar assistênciatécnica, mas apenas quando fossem apresentadas solicitações pelos governos; b) essa assistência técnica tanto poderia ser dirigida a órgãos ou programas oficiais,quanto àqueles da área privada; c) todas elas praticamente prestam serviços de consultoria de técnicos especializados ouprovêm bolsas de estudos para o treinamento de pessoal local, sendo que uma boa partedelas ainda prepara literatura básica (monografias, estudos, pesquisas e outras publicações); d) elas organizam seminários inter-regionais ou internacionais, cursos intensivos e viagensde estudos, conforme programação aprovada com antecipação e notificação aos governos; e) elas de um modo geral procuram envolver outras agências internacionais nosprogramas desenvolvidos em determinado país.

Para obter a almejada coordenação, até hoje cabe à ONU uma série de providênciaspráticas, tais como a organização periódica de Reuniões Inter-Agências, a freqüente troca deinformações e também as publicações conhecidas como "Summary of Information onProjects and Activities in the Field of Rehabilitation of the Disabled Throughout the World"(Sumário de Informações sobre Projetos e Atividades no Campo da Reabilitação doDeficiente através do Mundo). Pessoalmente vivenciamos não só a preparação dessaspublicações mas também seu significado para as organizações Inter-Governamentais e asNão- Governamentais envolvidas, uma vez que foi nossa responsabilidade direta suaelaboração do volume V (relacionado a atividades de 1963) até o volume IX (sobreatividades de 1967), correspondendo exatamente aos cinco anos de trabalho nosso naUnidade de Reabilitação das Pessoas Deficientes da O N U, em New York. O chamado "programa internacional coordenado" que havia sido recomendado pelaAssembléia Geral da ONU ao seu Secretário-Geral, sempre foi levado a efeito por meio deum trabalho burocrático silencioso e persistente (e por que não o dizer, paciente) do qualpercebíamos os resultados por vezes promissores, por vezes extremamente desoladores.Personalidades envolvidas dificultavam muitas vezes o andamento usual de processos;atitudes de ciúme de antigos funcionários internacionais barravam o dinamismo de pessoalmais novo; surgiam pruridos por "avanços" milimétricos nas conhecidas e muito disputadas"áreas cinzentas"; ocorriam bloqueios velados a projetos - mesmo que de boa qualidade -elaborados por alguma cabeça de origem "ocidental" quando a cabeça "oriental" estava nopoder, e vice-versa ... e tantos problemas mais! Olhando daquele prisma que costumávamosolhar (ou seja, de dentro da ONU para fora), considerávamos um verdadeiro prodígioninguém de fora perceber o drama que significava lutar sob a égide da bandeira azul ebranca da ONU, na qualidade de funcionário público internacional, procurando dar ao barcode tantas velas desencontradas um rumo que era de fato esperado por todos os que seenvolviam em reabilitação. Foram anos muito difíceis, e no trabalho que citamos há umdesabafo velado nas entrelinhas, nos dois últimos parágrafos que dizem o seguinte: "Por todos esses meios e outros que podem surgir no correr do tempo, e também por meioda experiência acumulada, espera-se continuamente que a plena coordenação torna-se-á útilna manutenção de um programa internacional de reabilitação para todos os tipos de pessoasdeficientes, com a eliminação de toda a duplicação desnecessária, sobreposições ouantagonismos, que normalmente surgem devido à ignorância quanto às atribuições e àsatividades dos outros". "Certamente que muitos anos deverão passar antes que tal programa – e outros quepossam ser organizados no futuro - traga completo alivio para a pessoa deficiente no mundotodo. Cada ano esperamos ver grandes progressos na direção de nosso objetivo último emreabilitação, de um plano claro e objetivo que possa ser seguido desde agora". Muita gente que se diz conhecedora da Organização das Nações Unidas faz dela a idéia deum órgão político, no qual se ressaltam dois constantemente citados setores: a AssembléiaGeral e o Conselho de Segurança. No entanto, a ONU mantém, através de seu Executivo,que é o Secretariado (funciona no prédio que todos conhecem, localizado em New York, àsmargens do East River, e que é todo envidraçado em todos os seus 38 andares) uma incrívelprogramação em contínua expansão, que levou a uma descentralização inicial, dentro daprópria cidade de New York. Toda a área de Desenvolvimento Social, Defesa Social,Reabilitação da Pessoa Deficiente e outras, foi transferida para alguns andares do ChryslerBuilding. Anos após, num audacioso momento de decisão do Secretário Geral KurtWaldheim, esses assuntos todos passaram para o Centre for Social Development and

Humanitarian Affairs (Centro para Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários), emViena, na Áustria, onde se localiza hoje. Muitos, dessa forma, não tem a mínima idéia do montante de atividades que sãoprogramadas e desenvolvidas para o benefício da humanidade que vive nos países emdesenvolvimento. Gostaríamos de documentar a pujança das programações e o seu inquestionável alcance,no campo da reabilitação apenas, durante um curto período de tempo, já pertencente aopassado, mas muito ilustrativo. Responsabilizamo-nos pessoalmente pela informação, poisdelas participamos num trabalho diuturno. Período de 1964 a 1966 apenas: *Técnicos* - Vinte e oito técnicos em reabilitação em diversos aspectos foram enviadospelas NaçõesUnidas para missões em vinte e dois países em desenvolvimento. A grande maioria dessasmissões internacionais foram de curta duração e destinadas a pesquisas iniciais para que ogoverno pudesse tomar uma posição face à problemática das pessoas deficientes. Noentanto, algumas dessas missões, especialmente nos campos de fisioterapia e de próteses,duraram mais de um ano. *Bolsas de treinamento* - A ONU concedeu 45 bolsas de treinamento para estudos dediferentes aspectos de reabilitação. Os bolsistas eram oriundos de 17 países e tiveram umaduração entre 3 e 14 meses seus respectivos treinamentos. Foram também concedidas 96bolsas de treinamento para a participação de profissionais de alto nível em semináriosinternacionais ou viagem de estudo, organizados pela ONU ou contando com suacolaboração, no campo da reabilitação. Com essas bolsas de curta duração, 45 países emdesenvolvimento foram beneficiados. *Seminários internacionais* - a) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Próteses para Pessoas Deficientes -Este Seminário foi organizado pelas Nações Unidas com a cooperação da Sociedade e Larpara Aleijados na Dinamarca (Society and Home for Cripples in Denmark) e do ComitêInternacional de Próteses e Órteses da Sociedade Internacional para Reabilitação doDeficiente (hoje Rehabilitation International). Foi realizado em Copenhague, de 5 de julho a15 de agosto de 1964 (um curso intensivo, portanto), com a presença de 32 participantes de26 países em desenvolvimento na América Latina, África, Ásia, Oriente Médio e Europa. Osparticipantes foram selecionados entre candidatos designados pelos governos e, em suagrande maioria, eram diretores ou gerentes de importantes oficinas de próteses em seuspaíses. Do Brasil tivemos dois participantes de São Paulo, ligados a projeto do Centro deDemonstração a que nos referimos um pouco mais adiante, neste mesmo capítulo.Participamos na qualidade de Diretor, em nome das Nações Unidas. Durante este Seminário - organizado como um curso intensivo e com firmes propósitos deelevar os conhecimentos dos participantes - foram dados certificados de sua conclusãoapenas para aqueles que tivessem passado nos exames finais. Ao encerrar-se o Seminário,diversas recomendações foram aprovadas. E a mais relevante foi, sem dúvida, aquela queindicava a necessidade de se organizar outro Seminário da ONU para o estabelecimento depadrões mínimos para treinamento de pessoal. A recomendação foi aprovada logo emseguida pela Comissão Social do Conselho Econômico e Social da ONU, e incluída noprograma de trabalho da Unidade de Reabilitação para 1968.

b) Viagem de Estudos das Nações Unidas para Recursos de Reabilitação na Polônia e naRússia, organizada pela ONU em estreita colaboração com os países visitados. Foi realizada

em setembro de 1965, com 34 participantes de 24 países em desenvolvimento, incluindopessoal de alto nível em seus respectivos países, mas envolvidos em reabilitação. Tiveramoportunidades de observar as várias modalidades de programas para resolver os problemasdos deficientes, todos eles baseados em vastos programas de seguro social. Enquanto aviagem era realizada, permanecemos em New York na direção da Unidade de Reabilitação.Brasil com dois participantes.

c) Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Administração de programas e deimportantes Serviços de Reabilitação em Países em Desenvolvimento. Foi realizado emCopenhague, sob a égide da ONU, com o patrocínio do Governo da Dinamarca, de 18 dejulho a 5 de agosto de 1966. Foram 31 participantes de 26 países em desenvolvimento, tendoo Brasil participado com dois profissionais, sendo um da Coordenação da ReabilitaçãoProfissional do INPS e o outro, o Diretor de um Centro de Reabilitação da Bahia. Tambémna forma de um curso intensivo, foi um Seminário bem agradável aos participantes, poisincluiu viagem a várias cidades dinamarquesas e à bonita cidade de Oslo, na Noruega, mascom compromissos de aulas e conferências em todas elas. Os assuntos tratados cobriramaspectos médicos, sociais, psicológicos e profissionais da reabilitação e suas tendências maisatualizadas. Participamos deste Seminário na qualidade de Secretário Técnico, em nome daONU.

É evidente que muitos outros Seminários Internacionais, cursos ou viagens de estudos -empreendimentos que envolvem grupos - foram patrocinados ou organizados tanto pelaONU quanto pelas agências de sua família organizacional, no campo da reabilitação, comresultados que só poderão ser dimensionados com o tempo. Se formos analisar os resultadosdos Seminários aqui indicados, com informações eventuais que temos recebido, poderemosafirmar sem susto que para 50% dos participantes eles devem ter significado apenas umaviagem às custas das Nações Unidas e seu Programa Ampliado de Assistência Técnica, deum país sub-desenvolvidos para os extraordinariamente belos países escandinavos.Aprenderam muita coisa, é óbvio, pois a freqüência às atividades dos mesmos eraobrigatória e eventuais distrações ou atividades sociais ocorriam apenas aos sábados oudomingos. Esses Seminários caracterizavam-se por atividades muito bem programadas pelamanhã e à tarde - e às vezes à noite. E o local de concentração, conferências, trabalhos emgrupo, refeições e alojamento para dormir não era perto de Copenhague. Mas sempre era aDinamarca, a Suécia, a Noruega e aquele povo por vezes indiferente, por vezes formal, porvezes gentil e correto, mas quase sempre bem diferente das realidades encontradiças nospaíses africanos, asiáticos ou latino-americanos ... Para esses 50% certamente que osmelhores momentos estiveram ligados a recordações que nada têm a ver com os Semináriosem si: Tivoli, "smorebrods", gramados e jardins floridos, a sereiazinha triste, restaurantes,bicicletas, bandeiras, muita gente loira, uma língua impossível, planuras imensas complantações de cereais quase sem fim, nenhum rio, nenhuma montanha, ferryboats e asgaivotas em seu encalço, palácios reais, museus - enfim, a Dinamarca propriamente dita. Mas houve o restante dos participantes - os 50%, que devem ter aproveitado e muito,ouvindo, discutindo, estudando, escrevendo. E para esses o programa de reabilitação deveter aproveitado muito. Saldo positivo deve haver, sem a menor sombra de dúvida! O que nos fica muito patente é que assegurar resultados imediatos não está nem poderiaestar relacionado ao conteúdo desses eventos, mas aos tipos de participantes que nemsempre foram (ou são) os mais indicados ou os mais competentes para tirar o devidoproveito de encontros tão cuidadosamente preparados.

Uma boa porcentagem das atividades destinadas à transferência de tecnologia dereabilitação dos países mais evoluídos para aqueles em estágio menos avançado dedesenvolvimento, na ONU e em suas Agências Especializadas, sempre se concentrou napreparação e na distribuição de bibliografia relevante. Não são apenas relatórios de missõesde consultores em áreas pouco evoluídas do mundo, ou missões de caráter regional e inter-regional, que às dezenas enriquecem o acervo de informações relacionadas aodesenvolvimento da reabilitação no mundo, mas também estudos especiais. A maioria daspublicações da ONU e de suas Agências Especializadas leva em consideração asdiscrepâncias culturais e sociais do mundo, e respeitam os processos implantados nos seusdiversos Estados-Membros. Preocupação das mais relevantes ocorreu na década de sessenta, quando a Unidade deReabilitação de Pessoas Deficientes da ONU iniciou uma série muito interessante intitulada:"Serviços e Material Básicos para os Centros de Reabilitação". Visava a série transmitiridéias, programas, exemplos dos serviços básicos existentes em centros de reabilitação, como propósito de chegar aos diretores de programas, de atingir os profissionais, de alertar osgovernos. A série chegou a incluir números sobre fisioterapia, terapia ocupacional, serviçosocial, psicologia, próteses em geral, próteses para hansenianos. E seu grande alcance levoua Organização das Nações Unidas a traduzir cada volume (de aproximadamente oitentapáginas cada), em várias línguas. Essa série chegou a contar com suas publicações eminglês, espanhol, francês, russo e árabe. Na relação bibliográfica deste volume o leitor poderá ter uma diminuta idéia depublicações da ONU sobre reabilitação. Muitos outros trabalhos foram publicados, éevidente, sendo impossível a apresentação de uma relação completa. A mesma observação relacionada a publicações é aplicável à Organização Internacionaldo Trabalho, e em menor escala à Organização Mundial de Saúde e UNESCO nos assuntosde reabilitação. Outros esforços muito sérios foram desenvolvidos pela família de Organizações dasNações Unidas para divulgar, implantar ou fortificar programas de reabilitação em todas aspartes do mundo. Um deles, quase esquecido entre nós, é o Centro de Demonstração deReabilitação, a respeito do qual algumas explicações precisarão ser feitas, a fim de que sejafeita justiça - tanto à ONU, OIT e OMS, quanto àqueles que a esse plano dedicaram seusesforços, suas inteligências, seu gabarito técnico, em quatro pontos diferentes do mundo.

- *Centros de demonstração de técnicas de reabilitação* No início da Década de Cinqüenta a ONU, em decorrência de uma deliberação de caráterinter-organizacional da qual participaram os seus representantes e aqueles da OIT, OMS eUNESCO, resolveu adotar uma estratégia mais efetiva para a implantação de projetos dereabilitação nos quatro continentes: provocar a organização de centros de Demonstração deTécnicas de Reabilitação, que acumulassem a responsabilidade de não só dar atendimentoqualificado, mas também de desenvolver cursos para a formação de pessoal básico nessasmesmas técnicas. O plano contava com o apoio das organizações envolvidas, mas de um modo todo especialda própria Organização das Nações Unidas, da Organização Internacional do Trabalho e daOrganização Mundial de Saúde. As três organizações haviam estabelecido prioridade emprogramações de assistência técnica, dentro de certas condições, e haviam igualmentecombinado as condições fundamentais para montagem de centros dessa natureza. Além de ser necessário manter um em cada continente, seus especialistas internacionaislevaram a campo e indicaram aos governos visitados os critérios para escolha dos países,

estados e cidades onde esses novos recursos poderiam ser instalados. Esses critériosresumiam-se nos seguintes: a) A existência de uma realidade universitária pujante que desse cobertura à formação depessoal destinado aos programas do centro, ou seja, médicos, assistentes sociais, enfermeirose psicólogos. Essa mesma realidade universitária deveria estar apta a, com esforço adicional,cobrir ainda a necessidade de formação de profissionais faltantes numa equipe dereabilitação (fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, técnicos em próteses e órteses econselheiros de reabilitação), com a montagem de cursos ainda não existentes no país, masbásicos para programas reabilitacionais. b) Existência de uma realidade industrial, comercial e de serviços em franca expansão,devido ao seu significado na montagem de programas de aconselhamento e de colocação damão-de-obra das pessoas deficientes adultas em programas de reabilitação. c) Disponibilização de instalações, se possível nas proximidades de um complexohospitalar que contasse com serviços de ortopedia e neurologia, suficientes para localizaçãode todos os serviços e espaço para internamento de adultos de ambos os sexos. d) Preferência seria dada a país que já contasse com alguns profissionais que tivessemexperiência no campo da reabilitação, e com recursos institucionais já instalados detreinamento profissional. e) O compromisso formal e o interesse direto do governo federal e do local (estadual) paraa organização do centro de reabilitação e para sua manutenção como projeto dedemonstração de tecnologia e de aproveitamento dos novos profissionais em formação. f) O compromisso adicional do governo central de dar prioridade aos pedidos deassistência técnica à família de organizações da ONU, não só pedindo especialistas nas áreasnecessitadas de cobertura, mas também bolsas de estudos para a preparação adicional dosprofissionais que trabalhassem como assistentes dos consultores das AgênciasInternacionais, se de todo necessário.

Após exaustivos estudos e muitas consultas, os quatro pontos foram escolhidos de comumacordo com os governos interessados. Os Centros de Demonstração de Técnicas deReabilitação foram instalados na lugoslávia (Skopje), Egito (Alexandria), Índia (Bombaim)e . . . Brasil (São Paulo). Criava-se em nossa Pátria um recurso altamente promissor quedeveria ser o elemento catalítico do desenvolvimento da reabilitação em nosso meio: oInstituto Nacional de Reabilitação (INAR) da Universidade de São Paulo!

- *O Instituto de Reabilitação: vida e morte* Analisemos, pelo menos superficialmente, o esquema de assistência técnica montado emtermos de São Paulo para a implantação de um centro de reabilitação de naturezademonstrativa, padrão de atendimento, voltado para a formação de pessoal especializado. No ano de 1956 o Governador Jânio Quadros assinava decreto criando na USP, o InstitutoNacional de Reabilitação, algum tempo depois transformado em Instituto de Reabilitação.Foi instalado na Clínica Ortopédica do Hospital das Clínicas (1° Andar), sob a direção fortedo Professor Doutor Francisco Egydio Godoy Moreira. Conforme instalado, já contandocom alguns profissionais que haviam se beneficiado de bolsas de estudos nos EstadosUnidos, tornou-se o Instituto, o primeiro centro de reabilitação global do Brasil, umverdadeiro modelo para futuros empreendimentos. Havia outros esforços no Brasil, não sepode negar, como aquele desenvolvido por um grupo dedicado e aprimorado de médicos eassistentes sociais do antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários; haviatambém as tentativas de um grupo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários.

Outros nomes de organizações daquela época podem ser relembrados pelos imensos esforçosfeitos, sem contar com as vantagens de assessoria de técnicos internacionais, como aAssociação Brasileira Beneficente de Reabilitação, o Instituto Baiano de Reabilitação, oHospital Arapiara, a Associação de Assistência à Criança Defeituosa, o Lar-Escola SãoFrancisco, o Serviço de Reabilitação do SESI e outros mais. E já em 1958/59 a nascenteBrasília, tão nova e tão surpreendente, contava com um singular e moderníssimo prédiomuito bem instalado e equipado – mas sem clientes - que era o Centro de Reabilitação SarahKubitschek. Os técnicos especializados da ONU, indicados para o projeto do Instituto de Reabilitaçãoda USP, enfatizavam continuamente em seus relatórios confidenciais às suas organizaçõesde origem que aquele novo centro piloto de reabilitação deveria ser um paradigma para todaa América Latina - pretensão extremamente alta, tanto para as Organizações Internacionaisque demonstravam pouco conhecer a realidade latino-americana, quanto para o próprioBrasil e em especial São Paulo, pois todas as autoridades envolvidas haviam se embaladonaquela suave e hipnotizante melodia e na utópica vanglória de estar montando um recursopara todo um continente, esquecendo-se de se voltar para uma realidade bem própria e bemnossa - nada, ou quase nada, estava sendo feito em reabilitação pelos milhões de deficientesbrasileiros. Conforme foram chegando, os especialistas internacionais foram cobrindo as áreas deconsultoria geral e administração de reabilitação, aspectos especiais de reabilitação de cegos,aspectos profissionais de reabilitação, fabricação de próteses e treinamento de seu pessoal,organização dos departamentos de fisioterapia e terapia ocupacional e montagem dos cursosespecíficos. Bolsas de estudos foram concedidas em número bem reduzido nas áreas deenfermagem, medicina física, administração de centros e aspectos profissionais dereabilitação. Uma bolsa especial foi concedida na área de locomoção de cegos, um dosaspectos enfatizados pelos consultores da OIT. Após diversos anos de funcionamento, contava o Instituto de Reabilitação com umaequipe especializada, tinha um bom número de leitos para casos que precisavam deinternação, atendia um bom volume de clientela e dava cursos de preparação dos técnicosem fisioterapia, em terapia ocupacional e no campo de próteses e órteses. Além disso, oInstituto aceitava profissionais formados ou alunos dos últimos anos para estágios deespecialização, organizava congressos, seminários e dava uma expressiva cota decontribuição ao desenvolvimento dos ideais da reabilitação em nosso meio. Os problemasinternos, seja de ordem financeiro-administrativa, seja de ordem técnica, eram discutidos, eos caminhos eram encontrados. Tratava-se de um centro de reabilitação que era o realdetentor de um papel de alta relevância. O sucesso dos centros da Iugoslávia, do Egito e da Índia poderá, sem qualquer sombra dedúvida, ser medido pelos frutos gerados nesses países. Entre nós, porém, o final dessapromissora tentativa foi no mínimo lacônica: o Instituto de Reabilitação da Universidade deSão Paulo, apesar de contar com bons profissionais e de ter potencial para atendimento declientela adulta diversificada, acabou fechando suas portas ao final da década de sessenta,devido a problemas muito sérios. Seus cursos de TerapiaOcupacional e de Fisioterapia, acrescidos de um curso de Fonoaudiologia, foram absorvidospela Faculdade de Medicina da USP. As instalações ocupadas foram devolvidasintegralmente ao Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas daFaculdade de Medicina da USP. Seus profissionais, por anos a fio sem ter clientela paraatender, sem verbas para atuar, dispersaram para outros serviços do Hospital das Clínicas oupediram demissão.

E, o mais terrível desse desfecho todo, as pessoas deficientes adultas ficaram sem umimportante centro de reabilitação que procurava oferecer serviços globais - aliás, à época deseu fechamento, era o único centro fora da Previdência Social que atendia a adultos em SãoPaulo - lacuna essa até hoje não preenchida condignamente. - *A evolução mais recente da reabilitação* Houve um incremento tão grande a programas de reabilitação de pessoas deficientes queseria tarefa impraticável tentar relatar a história da evolução mais atualizada dessa técnica nomundo todo ou mesmo entre nós. Injustiças muito flagrantes poderiam ser cometidas com acitação de alguns nomes e a omissão de outros. Só na capital paulista estão cadastradas hojemais de setenta entidades privadas que trabalham em prol das pessoas deficientes, seja emtermos de abrigo, seja em termos de tratamento, seja em termos de reabilitação. Procuramos, através do reconhecimento das muitas atuações das organizações inter-governamentais filiadas ao Sistema Nações Unidas, compensar por essa lacuna. Façamosjustiça à Organização das Nações Unidas, à incansável Organização Internacional doTrabalho, à inovadora Organização Mundial de Saúde, à batalhadora Organização dasNações Unidas para Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, e também ao tão prestigiadoUNICEF em sua contínua luta pela infância carente do mundo atribulado de hoje. Essasorganizações desenvolvem um trabalho silencioso e continuo, e sempre anônimo, que se temmantido na sua meta original, ou seja, fazer com que a reabilitação e serviços afins cheguema todos os recantos do mundo. Mas façamos também justiça àquelas organizações que não estão na famíliaorganizacional da ONU, ou seja, as Não-Governamentais voltadas para os problemas doscegos, dos veteranos, dos surdos, das pessoas deficientes de um modo geral. E não nosesqueçamos daquelas que, apesar de não serem destinadas especificamente a essespropósitos, desenvolvem atividades que beneficiam as pessoas deficientes. E mais uma vezpara não fazer qualquer injustiça, sem mencionar qualquer nome em especial, limitando-nosa prestar nossas homenagens à Conferência das Organizações Mundiais Interessadas nasPessoas Deficientes, que as congrega desde o final da década de cinqüenta. Essas organizações todas, sejam elas Inter-Governamentais ou Não-Governamentais,continuam seus trabalhos cada vez com maior ênfase e grau mais elevado de especialização,face a uma problemática que agora todo o mundo desenvolvido ou em desenvolvimentoconhece, ou seja, a dos quase quinhentos milhões de pessoas portadoras de deficiências, dasquais apenas menos de um terço tem possibilidade de receber algum tipo de serviço. Essenovo despertar para um problema tão grave aconteceu também por iniciativa da Organizaçãodas Nações Unidas, com o mais completo apoio das entidades não-governamentais, atravésdo Ano Internacional das Pessoas Deficientes.

CAPÍTULO SÉTIMO 1981 - ANO INTERNACIONAL DAS PESSOAS DEFICIENTES

Desde os primeiros dias do estabelecimento da Organização das Nações Unidas temhavido uma ênfase especial a programas destinados a encontrar soluções para toda a gamade problemas sociais sérios causados pela guerra e pelo sub-desenvolvimento, conformevimos anteriormente. E, como analisamos no capítulo anterior, o problema de deficiênciasocasionadas pelas atividades de guerra era tão significativo que demandou a concentração deesforços em programas de reabilitação das pessoas deficientes, quer tivessem elas sidoenvolvidas na guerra como integrantes das forças em conflito, quer como vítimas civis. No entanto, os esforços internacionais dirigidos para esse objetivo acabaram sendo muitopouco eficazes devido à sua falta de coordenação - na verdade não havia um plano mundialpara dar cobertura a toda a magnitude de dificuldades. E descobriu-se rapidamente que,devido à dispersa - apesar de grande - quantidade de esforços na tentativa de remediarproblemas de deficiências instaladas, pouca atenção estava sendo devotada à prevenção deoutras deficiências - situação que perdurou por vários anos do pós-guerra. Assim, hoje em dia não é muito de espantar que o mundo tenha um total deaproximadamente 500 milhões de pessoas que sofrem com algum tipo de restrição séria àsua atuação, devido a deficiências de naturezas variadas. Percebemos hoje que as guerras,apesar de serem uma das causadoras mais sérias de deficiências, certamente que não sãonem jamais foram as únicas. As sociedades continuam, talvez por falta de atenção ou pormera negligência, a produzir as pessoas com deficiências físicas e mentais, e aquelas quesofrem com os bloqueios de problemas sensoriais, orgânicos, comportamentais e sociais dosmais sérios. Ações preventivas são imperativamente importantes - talvez sejam mesmo tãoimportantes quanto a própria reabilitação. E uma importante razão para dar ênfase àprevenção de males é evitar o desperdício de recursos humanos, que são um componentebásico de qualquer processo de desenvolvimento, somados que devem ser aos recursosnaturais e financeiros.

- *As declarações de direitos e sua importância* Com esse tipo de raciocínio dominante, a Assembléia Geral da ONU tem mantido muitosesforços para dar cobertura a esse problema social de alto significado, tendo sempre suaatenção voltada para a grande variedade dos demais problemas de desenvolvimento. Assim éque no ano de 1971 a Assembléia Geral proclamou a aprovação de uma resolução de altosignificado a respeito das pessoas deficientes: a Declaração dos Direitos das Pessoas comRetardo Mental. No ano de 1975, por sua vez, aprovou a Declaração dos Direitos dasPessoas Deficientes. Este documento internacional é fundamental e o leitor não poderá em absoluto deixar deconhecê-lo pelo menos em seus postulados principais que são os seguintes: 1) O termo pessoas deficientes refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por simesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, emdecorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais. 2) As pessoas deficientes gozarão de todos os direitos estabelecidos a seguir nestaDeclaração. Estes direitos serão garantidos a todas as pessoas deficientes sem nenhumaexceção e sem qualquer distinção ou discriminação com base em raça, cor, sexo, língua,religião, opiniões políticas ou outras, origem social ou nacional, estado de saúde, nascimentoou qualquer outra situação que diga respeito ao próprio deficiente ou e sua família.

3) As pessoas deficientes têm o direito inerente ao respeito por sua dignidade humana. Aspessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências,têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implicaantes de tudo, no direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quantopossível. 4) As pessoas deficientes têm os mesmos direitos civis e políticos que outros sereshumanos: o parágrafo sétimo da Declaração de Direitos das Pessoas com Retardo Mentalaplica-se a qualquer possível limitação ou supressão desses direitos para as pessoasmentalmente deficientes. 5) As pessoas deficientes têm direito a medidas que visem capacitá-las a tornarem-se tãoauto-confiantes quanto possível. 6) As pessoas deficientes têm direito a tratamento médico, psicológico e funcional,incluindo-se neles os aparelhos de próteses e órteses, a reabilitação médica e social,educação, treinamento profissional e reabilitação, assistência, aconselhamento, serviços decolocação e outros serviços que lhes possibilitem o máximo desenvolvimento de suacapacidade e habilidades e que acelerem o processo de sua integração oureintegração social. 7) As pessoas deficientes têm direito à segurança econômica e social e a um nível devida decente e, de acordo com suas capacidades, a obter e manter um emprego oua desenvolver atividades úteis, produtivas e remuneradas, e a participar de sindicatos. 8) As pessoas deficientes têm direito de ter suas necessidades especiais levadas emconsideração em todos os estágios de planejamento econômico e social. 9) As pessoas deficientes têm direito de viver com suas famílias ou com pais adotivos e departicipar de todas as atividades sociais, criativas e recreativas. Nenhuma pessoa deficienteserá submetida em sua residência, a tratamento diferencial, além daquele requerido por suacondição ou por sua necessidade de recuperação. Se a permanência de uma pessoa deficienteem um estabelecimento especializado for indispensável, o ambiente e as condições de vidanesse local devem ser, tanto quanto possível, próximos da vida normal de pessoas da suaidade. 10) As pessoas deficientes deverão ser protegidas contra toda exploração, todos osregulamentos e tratamento de natureza discriminatória, abusiva ou degradante. 11) As pessoas deficientes deverão poder valer-se de assistência legal qualificada quandotal assistência for indispensável para a proteção de suas pessoas e propriedade. Se foreminstituídas medidas judiciais contra elas, o procedimento legal aplicado deverá levar emconsideração sua condição física e mental. 12) As organizações de pessoas deficientes poderão ser consultadas com vantagem emtodos os assuntos referentes aos direitos de pessoas deficientes. 13) As pessoas deficientes, suas famílias e comunidades deverão ser plenamenteinformadas por todos os meios apropriados sobre os direitos contidos nesta Declaração.

Esta Resolução foi aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em sua trigésima sessão, nodia 9 de dezembro de 1975, levando o número XXX/3447.

- *O significado de um "Ano Internacional"* Um ano depois, no dia 16 de dezembro de 1976, foi aprovada a Resolução n° 31/123,proclamando o ano de 1981 como o Ano Internacional para as Pessoas Deficientes(International Year for Disabled Persons). Estava muito claro o propósito dessa últimadeclaração universalmente conhecida: dar condições para a implementação das resoluções

anteriores, através da conscientização do mundo todo quanto à problemática das pessoasportadoras de deficiências. Muita gente que ouve falar de Anos Internacionais, questiona-os sob um ângulo apenas:fala-se muito daquele assunto durante um ano todo e depois tudo cai no esquecimento equase nada de concreto é feito. Será, entretanto, justo lembrarmo-nos que os princípios quelastreiam os chamados "Anos Internacionais" podem ser resumidos num único: Que acomunidade internacional tome conhecimento da existência de um certo problema que afetasegmentos da população, procurando soluções através de consultas internacionais, açãoconjunta e cooperação. Neste caso particular do Ano Internacional das Pessoas Deficientes,existe, de fato, um problema sério para a comunidade das nações concentrar toda a atençãode que puder dispor, dando-lhe a possível prioridade durante um ano todo. E o problema queestamos analisando é, de fato, o intolerável problema de "meio bilhão de pessoas" - sim,estamos falando de "meio bilhão de pessoas" - que se vê à margem de tudo e não desfruta deseus direitos. Caso, através de um Ano Internacional, a ONU consiga obter um nível de conscientizaçãointernacional bom, haverá pelo menos o início de uma mudança gradativa nas condições devida dessas pessoas marginalizadas devido à deficiência. As necessidades são tão grandes etão desproporcionais aos recursos disponíveis que a mudança jamais poderia ocorrer com amera soma de esforços individualizados de cada país, ou das instituições oficiais ouprivadas. Essa mudança requererá a interação de todos esses esforços, privados e oficiais,nacionais e internacionais. Apenas uma ação de caráter nacional e internacional, regional emesmo local, bem coordenada, poderá garantir qualquer sucesso aos ideais do AnoInternacional das Pessoas Deficientes.

- *O Ano Internacional das Pessoas Deficientes: trabalhos iniciais* Aprovada a idéia do Ano Internacional, era necessário que a própria ONU preparasse umplano de ação mundial de atuação. Para tanto, um Comitê Consultivo foi criado pelaAssembléia Geral, composto de representantes de vinte e três países, dentre os quais o Brasilnão estava incluído. As primeiras demonstrações de apoio à proposição do Ano Internacional das PessoasDeficientes começaram logo a chegar à ONU, como nos é relatado pelo Boletim n° 1/79sobre o assunto. Uma das primeiras veio da Organização de Unidade Africana que jáaprovara uma resolução de apoio ao Ano Internacional, em fevereiro de 1978, indicando apossibilidade de organizar um Seminário a nível regional para encontrar meios destinados aimplementar os objetivos do Ano. O Centro Europeu para o Treinamento e para a Pesquisaem Bem-Estar Social, a Organização Internacional de Padronização, o Conselho Mundialpara o Bem-Estar dos Cegos e a Federação Mundial dos Veteranos indicaram seu apoioirrestrito. O Comitê Consultivo apresentou seu relatório ao Terceiro Comitê da Assembléia Geral daONU em 1979 (34ª Sessão). Acabou tendo a satisfação de ver o substancioso documentoinserido no próprio Relatório do Secretário-Geral da Organização. - *O conteúdo básico das idéias consensuais para um plano de ação mundial* Desse relatório decisivo do senhor Secretário-Geral Kurt Waldheim é que muito daquiloque tem sido citado como básico, seja verbalmente seja por escrito, a respeito do AnoInternacional das Pessoas Deficientes, está inserido. E a maioria de seu conteúdo é de fatoconsideravelmente importante. Vejamos alguns trechos:

"16. Diversos membros do Comitê enfatizaram a necessidade de levar em conta asnecessidades e os problemas das pessoas deficientes no processo de planejamento dodesenvolvimento nacional, Pessoas deficientes devem ter o mesmo direito que todos osoutros cidadãos de se beneficiar dos serviços postos à disposição pelo Estado e pelasociedade em geral a seus cidadãos. Pessoas deficientes devem ser consideradas comocidadãos comuns com problemas especiais em vez de uma categoria especial de pessoas comnecessidades diferentes daquelas de outros cidadãos. Participação plena deve ser entendidacomo participação em todos os aspectos da vida comunitária: nas atividades políticas,econômicas, sociais, culturais e esportivas. Medidas que forem necessárias para tornar essaparticipação possível devem ser adotadas e colocadas em prática. Foi reconhecido que osobstáculos mais significativos à participação plena eram as barreiras físicas, os preconceitose as atitudes discriminatórias, e que devem ser desenvolvidas atividades para remover essasbarreiras. Foi também reconhecido que a sociedade, ao desenvolver seus ambientesmodernos, tendia a criar barreiras novas e adicionais, a menos que as necessidades depessoas deficientes fossem levadas em consideração nos estágios de planejamento.

“17. Alguns membros afirmaram que estava ocorrendo uma dramática mudança nasatitudes das próprias pessoas deficientes. Elas estavam assumindo cada vez mais o papel deum grupo consumidor que tinha seus próprios pontos de vista quanto à forma como asmelhorias de suas condições de vida deveria ser efetivada e desejavam que esses pontos devista fossem conhecidos daqueles que tomavam decisões. Alguns membrossugeriram que essa tendência deveria ser encorajada, e que os representantes de pessoasdeficientes deveriam desfrutar de plena participação não apenas no planejamento deprogramas a elas relacionados, mas também no planejamento do desenvolvimento social eeconômico da sociedade em geral. Foi também sugerido que as organizações internacionaisdeveriam dar exemplo nesse sentido”.

"22.Com relação ao programa de ação a longo prazo, alguns representantes enfatizaramque o Ano deveria marcar o início de um esforço internacional nesse campo e que oprograma deveria ser preparado pelo Comitê baseado nas sugestões dos países-membros, dasagências especializadas da ONU e das organizações não-governamentais próprias, no cursode 1980 e 1981. Poucos problemas poderiam vir a ser resolvidos durante o Ano e eratambém necessário considerar medidas baseadas em prazos mais longos de tempo, paraassegurar ao máximo possível a concretização dos objetivos do Ano em todos os países". O relatório do Comitê Consultivo, aprovado pela Assembléia Geral ao ser apresentadocomo parte integrante do próprio relatório do Secretário-Geral da ONU, prossegueenfatizando a necessidade de medidas preventivas de males incapacitantes, bem como deenvolvimento das próprias pessoas deficientes para a garantia de seus direitos. Havia, noentanto, membros desse mesmo Comitê que queriam saber de resultados práticos, deprogramas objetivos e de medidas exeqüíveis.

"24. Diversos membros expressaram sua preferência por programas práticos para o AnoInternacional, que deverão incluir o uso de tecnologia apropriada para a reabilitação dodeficiente, a concessão de bolsas de estudos para especialização, o desenvolvimento de umbanco de equipamentos e outros programas que possam trazer benefícios diretos para aspessoas deficientes e assim tornar a observância do Ano mais significativa. 25. Alguns membros indicaram que pessoas deficientes, de fato, formavam um grupobastante variado, dentro do qual havia pessoas com deficiências diferentes e que havia, em

conseqüência, grandes diferenças nas necessidades e nos requisitos para serviços. Foisugerido que o programa para o Ano deverá levar em conta diferentes deficiências e provermeios para assegurar a implantação dos objetivos do Ano para todas as pessoas deficientes".

"29. O representante da Organização Mundial de Saúde referiu-se particularmente a certoslevantamentos recentes indicadores de que, presentemente, apenas uma pequenaporcentagem de pessoas deficientes nos países em desenvolvimento recebiam os serviços deque necessitavam; o sucesso dos esforços para melhorar as condições de vida da maioria daspessoas deficientes da zona rural dos países em desenvolvimento depende da descoberta denovos meios para estender a prestação de serviços básicos necessários, a nível decomunidade, meios esses que devem estar em consonância com os recursos já colocados àdisposição para tal finalidade nos países em desenvolvimento, ou que podem serdisponibilizados para tanto".

- *As recomendações para atividades a nível nacional* Depois de discutir assuntos relacionados à cobertura de secretariado para o AnoInternacional, e de analisar algumas proposições que não chegaram a ser aprovadas, odocumento apresenta suas Recomendações que, devido à sua relevância, transcrevemos.

"III. RECOMENDAÇÕES A - Introdução - Princípios básicos adotados para as recomendações

57. A finalidade do Ano Internacional das Pessoas Deficientes é promover a concretizaçãode objetivos de "participação plena" de pessoas portadoras de deficiências na vida social eno desenvolvimento das sociedades nas quais vivem, "igualdade" significando condições devida iguais àquelas de outros cidadãos na sua sociedade e uma participação igual namelhoria das condições de vida que resultam do desenvolvimento social e econômico. Essesconceitos são aplicáveis da mesma maneira e com a mesma urgência em todos os países,independentemente de seu nível de desenvolvimento. 58. Problemas de pessoas portadoras de deficiências deverão ser apreendidos em suatotalidade e levados em consideração em todos os aspectos de desenvolvimento. Todavia,deve-se notar que, em vista dos muitos problemas de alta prioridade e de meios e recursosinsuficientes, os países em desenvolvimento têm-se visto impossibilitados de alocar osnecessários recursos para resolver os problemas de pessoas deficientes".

"B - Atividades a nível nacional

68. A Comissão Consultiva recomenda que os Estados-Membros sejam convidados, emconformidade com seus direitos e responsabilidades, a determinar com plena liberdade seusobjetivos de desenvolvimento e prioridades, e, à luz de suas próprias circunstâncias,considerar a adoção das seguintes medidas para a implementação e verificação dos objetivosdo Ano Internacional, conforme estabelecido pela Assembléia Geral em sua resoluçãon.°31/123. Os Estados-Membros são convidados a: a) Fazer uma proclamação no início do ano (1981) contendo as medidas prioritárias aserem implantadas para a plena participação de pessoas portadoras de deficiências nasociedade. b) Estabelecer como medida preparatória, Comissões Nacionais ou Grupos semelhantespara o Ano, cujo nível de representação deverá ser de tal natureza que possa assegurar a

implementação de suas metas, com a finalidade de planejar, coordenar e executar, ouencorajar a execução de atividades de apoio aos objetivos do Ano Internacional a nível locale nacional; dentre os que participam de Comissões deverão estar incluídos representantes deMinistérios, organizações governamentais e organizações não-governamentais e gruposvoluntários, inclusive aqueles que representam a juventude e a comunidade econômica. Aparticipação de representante de organizações de ou para pessoas portadoras de deficiênciasem tais Comissões deverá ser considerada como prioritária. c) Preparar, ao final de 1981, planos nacionais para o prosseguimento dos objetivos doAno, tendo em vista a revisão e a avaliação de resultados do ano, previstos para 1991. d) Promover campanhas de divulgação para disseminar informações sobre os objetivos doAno Internacional e esclarecer o público, aumentando seu conhecimento quanto aos direitosdas pessoas deficientes de participar e de construir para a vida econômica, social e políticade sua sociedade, elevando também a consciência da comunidade para o potencial daspessoas portadoras de deficiências de assim o fazer. e) Integrar os serviços destinados a pessoas portadoras de deficiências nos programas dedesenvolvimento geral da comunidade e adotar o conceito de reabilitação integral em todosos serviços de saúde, de educação e de serviços sociais. f) Treinar pessoal profissional e técnico nos números e nos níveis que garantam aimplementação de programas nacionais relacionados a todos os aspectos da reabilitaçãointegral, através, por exemplo, da inclusão no currículo das escolas, universidades e outrasinstituições educacionais, do conceito de reabilitação integral. g) Prestar atenção especial à coordenação e fornecimento de serviços governamentais noque diz respeito a pessoas portadoras de deficiências, particularmente nas áreas deprevenção, cuidados de saúde, educação, habilitação e reabilitação social e profissional. h) Estabelecer mecanismos apropriados governamentais para coordenação de toda apolítica relativa às pessoas portadoras de deficiências, particularmente nas áreas deprevenção, de cuidados com a saúde, de educação, de habilitação e de reabilitação social eprofissional. i) Rever a legislação existente para eliminar possíveis práticas discriminatórias comrelação à educação e ao emprego de pessoas deficientes. k) Tornar o planejamento para desenvolvimento e programação de prevenção e serviçosde reabilitação uma parte integrante no processo de planejamento nacional. l) Concretizar programas existentes relativos a medidas profiláticas de moléstias, comoimportante passo na prevenção de deficiências. m) Desenvolver todo o esforço para analisar com seriedade a incidência de deficiências,por exemplo, por pesquisas preliminares em residências, a fim de capacitar as organizaçõesque determinam a política de atuação a conhecer a natureza e a extensão das necessidadesque os serviços devem atender. Os órgãos de planejamento econômico e social deverão estarenvolvidos num nível mais elevado em questões relacionadas a deficiências, prestação deserviços de reabilitação, e a estimulação do treinamento de especialistas de planejamentoneste campo. m) Rever seus serviços e benefícios para assegurar que ajudem e encorajem as pessoasportadoras de deficiências a permanecer e/ou a tornar-se uma parte integrante da sociedadeonde vivem, em vez de provocar segregação e isolamento. n) Quando do estabelecimento de política para as pessoas portadoras de deficiências, darênfase ao desenvolvimento de suas habilidades e promover informação para o deficiente arespeito de serviços e benefícios que estão ao seu dispor.

o) Iniciar investigações quanto a restrições discriminatórias que limitam a liberdade dapessoa deficiente em participar plenamente da sociedade, e tomar as medidas que foremnecessárias para remediar a situação. p) Promover condições adequadas, inclusive acesso sem obstáculos a instalações, para aplena participação de pessoas portadoras de problemas físicos em educação, trabalho,esportes e outras formas de recreação. q) Manter-se alerta para a necessidade de introduzir legislação que assegure que todos osedifícios novos e edifícios nos quais adaptações de grande monta estejam sendo iniciadas,garantam acesso pleno para pessoas com deficiência, e reconhecer formalmente que pessoasdeficientes tenham o mesmo direito de acesso a todos os prédios públicos e sociais dasdemais pessoas. Isso deveria incluir também medidas para criar e aumentar o acesso àinformação pública para pessoas surdas e aquelas que têm deficiência auditiva e visual,através, por exemplo, do aumento de literatura gravada em cassetes ou transcrição emBraille e com a provisão de equipamentos auxiliares de audição em edifícios públicos eserviços de intérpretes para surdos. r) Com relação à habitação para as pessoas portadoras de deficiências, evitar programasde reabilitação segregados que provocam um ambiente semelhante ao da vidainstitucionalizada e, em países onde instituições estão sendo reduzidas, transferir recursos decuidados institucionais para cuidados relativos à integração e assegurar apoio adequado parapessoas portadoras de deficiências, em casa e junto à família. s) Rever e quando necessário revitalizar, programas destinados a prevenir a ocorrência dedeficiências. t) Promover a saúde no contexto de "cuidados básicos com saúde" para a prevenção dedeficiências, particularmente aquelas que são de origem pré-natal e natal, ou que ocorrem naprimeira infância, pela adoção de atividades destinadas a melhorar os programas dereabilitação, nutrição, serviços de saúde maternal e infantil, assistência adequada durante agestação e durante o parto, controle da doença microbacteriana e o controle de doençascrônicas, tanto transmissíveis como não-transmissíveis. u) Dar ênfase às normas de segurança no trabalho como medida preventiva, e adaptar suaaplicação à pessoa portadora de deficiência no trabalho às necessidades individuais. v) Tornar o ambiente de trabalho acessível à pessoa com mobilidade restrita, àquelas comproblema de orientação e àquelas com problemas alérgicos. Atenção devida deverá tambémser dada a fatores psicológicos no ambiente de trabalho e à influência das condições detrabalho sobre a saúde mental da pessoa. w) Possibilitar a isenção de taxas alfandegárias e de taxas sobre equipamentos,maquinaria, adaptação e outros materiais usados por e para benefício de pessoas deficientes,devido às suas incapacidades, e prover também a necessária licença de importação ealocações de câmbio para moeda estrangeira, quando aplicáveis. x) Assegurar, conforme for recomendável, que organizações não-governamentais estejamadequadamente envolvidas na preparação e implantação de programas nacionais no campode serviços sociais para pessoas deficientes. y) Dar alta prioridade às atividades iniciadas por pessoas deficientes e encorajar oestabelecimento de organizações de pessoas deficientes. z) Indicar, se possível, representantes de pessoas com deficiência, para delegações queparticipem de encontros internacionais, particularmente quando os assuntos se relacionem aelas e ao Ano Internacional. aa) Proclamar o Dia Nacional das Pessoas Deficientes.”

(Extraído do Documento n°. A/34/158, de 13 de junho de 1979 "International Year forDisabled Persons - Report of the Secretary-General" - United Nations, New York).

- *O Ano Internacional das Pessoas Deficientes a nível de Brasil* Foi através de uma carta datada de 25 de outubro de 1979 que Esko Kosunen, OficialEncarregado do Ano Internacional para as Pessoas Deficientes e Chefe da Unidade deReabilitação da ONU, remeteu-nos longos comentários e material farto e relevante quanto a1981, até então conhecido como o Ano Internacional para as Pessoas Deficientes.Trabalháramos um ano e meio juntos na ONU, em New York, no final de nosso período decinco anos de atuação na Organização, e sabíamos muito bem que a preocupação dele eraque alguém, fora de âmbito oficial federal, pudesse dar um primeiro impulso a nível deBrasil, para que o evento internacional surtisse efeitos em nosso meio. Por remessa postalseparada, enviou-nos também o seguinte material inicial, depois complementado por outrosmais atualizados: - Resolução da Assembléia Geral da ONU, n° 31/123, sobre o Ano Internacional para asPessoas Deficientes, datada de 2 de fevereiro de 1977; - Relatório do Secretário-Geral da ONU, datado de 11 de novembro de 1977, sobre o AnoInternacional; - Resolução da Assembléia Geral da ONU, n°. 32/133, de 28 de fevereiro de 1978,também sobre o Ano Internacional; - Relatório evolutivo do Secretário-Geral da ONU sobre Prevenção de Deficiências eReabilitação do Deficiente, datado de 19 de fevereiro de 1978; - Relatório do Secretário-Geral da ONU juntando a minuta do Programa Internacionalpara os anos de 1980/81, para consideração da Assembléia Geral; - Anexo II do Relatório sobre a Situação Social do Mundo, contendo medidasrelacionadas à Implementação dos Direitos das Pessoas Deficientes; - Circular n°. 3/79, de comunicação sobre o ano Internacional das Pessoas Deficientes; - Relatório do Secretário-Geral da ONU à Assembléia Geral, adotando o relatório daComissão Consultiva, e apresentando-o na íntegra para aprovação contendo todas asproposições sobre o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (transcritas em parte nestecapítulo).

De posse dessa documentação, tomamos providências pessoais para tradução dos trechosmais relevantes para o português, com o intuito de iniciar uma série de discussões sobre seuconteúdo, e de chegar ao final do ano de 1980 com algumas idéias bem estabelecidas. A primeira oportunidade surgiu em maio de 1980 quando um incipiente movimento deSão Paulo, até então conhecido como "Coalizão de Pessoas Deficientes" e hoje conhecidocomo "Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes" reuniu-se numa manhã de sábadoe discutiu as "proposições a nível nacional", contidas no documento. Os quase trintaparticipantes da reunião distribuíram-se em quatro grupos de trabalho e discutiram as vinte esete proposições, elaborando propostas novas para aplicação local daquilo que, nodocumento original, parecia mais uma colcha de retalhos de idéias. A segunda oportunidade para estudar essas proposições surgiu durante o SegundoCongresso Brasileiro de Reintegração Social, organizado em São Paulo, no mês de julho de1980. O tema "Ano Internacional das Pessoas Deficientes" foi incluído no programa paradebates durante uma tarde toda de trabalhos. O congresso aprovou uma série de conclusõesdos grupos de trabalho, bem mais profundas e mais incisivas do que as primeiras, devido àheterogeneidade dos grupos, à diversidade de sua composição, ao acervo de experiências de

seus debatedores e também devido ao fato de estar contando com os resultados das primeirasdiscussões durante o mês de maio, o que muito ajudou os membros integrantes dos gruposde trabalho. Também no início do mês de julho de 1980 surgiu em São Paulo um grupo conhecidocomo "de apoio e estímulo ao Ano Internacional das Pessoas Deficientes". Logo após suaprimeira reunião, convocada por Dona Dorina de Gouvêa Nowill, foi tomada a deliberaçãode remeter ao Senhor Presidente da República ofício co-assinado por entidades participantes,para que ele desse ao Ano Internacional o nome correto, ao assinar o decreto criando aComissão Nacional ao mesmo destinada. Ouvia-se falar de traduções inaceitáveis, tais como"Ano Internacional do Incapacitado", "Ano Internacional do Excepcional" e outros nomesque estavam sendo fortemente tentados. A mensagem, juntamente com outras de locais einiciativas diferentes, parece que chegou ao destino, pois em 16 de julho de 1980 oPresidente da República assinava decreto criando a Comissão Nacional do Ano Internacionaldas Pessoas Deficientes, vinculando-a ao Ministério da Educação e Cultura. Seus membrosforam nomeados por Portarias do Senhor Ministro da Educação em 28 de agosto e 17 desetembro de 1980.

- *A Comissão do Estado de São Paulo e seu relatório* A Comissão Estadual de São Paulo foi criada apenas no dia 5 de março de 1981, uma vezque a Secretaria de Estado da Casa Civil do Governador ficara aguardando orientações daComissão Nacional até então. Foi criada com o nome de Comissão Estadual de Apoio eEstimulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, por meio deum decreto datado de 5 de março de 1981 e teve em sua presidência o próprio Secretário-Chefe da Casa Civil do Governador. Recebeu o prazo de sessenta dias para apresentar seurelatório final. Prazo cumprido, o relatório foi impresso e amplamente distribuído parainformação de todos os interessados no assunto, além de servir de base para discussão deseus temas nos mais variados níveis. Trata-se de um documento "que representa um consenso de opiniões de todos os seuscomponentes, analisa em cores adequadas a extensão dos problemas das deficiências entrenós e apresenta sugestões de naturezas várias, não só para 1981, mas para toda a Década deOitenta, conforme indicado em suas considerações", segundo nota introdutória dodocumento em questão.

- *As propostas para ação em São Paulo* A Comissão Estadual de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional dasPessoas Deficientes inseriu em seu relatório uma série de propostas para ação, a curto,médio e longo prazos. A primeira dessas proposições dirige-se ao Governo Estadual e atodos os Governos Municipais do Estado, indicando pontos básicos para o estabelecimentode uma política de ação para toda a Década de Oitenta. Assim, o relatório sugere medidasquanto à prevenção de males incapacitantes e à redução das conseqüências das deficiênciasjá instaladas; sistemas municipais simples para a detecção precoce das deficiências, com opropósito de atender, tratar e reabilitar, levantando dados e adequando programas e açõesfuturas; acesso de pessoas deficientes de todas as idades à educação e à profissionalização;pesquisas das mais variadas naturezas nessas áreas; revisão de normas e padrões defuncionamento das entidades de atendimento; revisão tanto do Código de Obras quantodaquele relacionado a Normas Técnicas, e muitos outros pontos de relevância. Nesse importante documento a Comissão Estadual defende também a criação de um órgãode coordenação, a fim de verificar que a política de ação seja efetivada, assumindo a

responsabilidade de planejar, incrementar e coordenar as atividades de atendimento àspessoas deficientes e seus familiares. Segundo os postulados da Comissão Estadual, esseórgão deverá ser de caráter inter-secretarial, contando com representação não só dasSecretarias de Estado envolvidas, mas também de entidades de/para pessoas deficientes. Indica também a Comissão Estadual a necessidade da criação de um Fundo Especial dedesenvolvimento, com dotação orçamentária própria para subsidiar programasreabilitacionais. Esse Fundo, considerado um programa coordenado, só poderá ser geridopelo Órgão de Coordenação já indicado. Logo a seguir a Comissão Estadual entra em pormenores quanto a outros objetivos, taiscomo Educação, Prevenção, Reabilitação Global, Trabalho, Conscientização, Acesso eEliminação de Barreiras, Materiais e Equipamentos, e Legislação. Documento inédito em termos de Brasil, o relatório da Comissão Estadual de São Paulofoi amplamente distribuído para todas as Comissões Estaduais/Territoriais ainda emsetembro de 1981, com o intuito de dar subsídios e de ajudar na discussão dos problemas.

- *As realizações da Secretaria Executiva da Comissão Estadual* A Comissão Estadual para o Ano Internacional das Pessoas Deficientes que foiorganizada em São Paulo entregou seu relatório dentro do prazo estabelecido, e no ato desua entrega ela encerrou as suas atividades. Decidiu, entretanto, seu Presidente, manter ematuação sua Secretaria Executiva, cabendo a ela prosseguir os entendimentos até entãomantidos e assumir a responsabilidade de continuar todos os esforços viáveis para o objetivofundamental de levar a uma conscientização mais completa possível quanto à problemáticadas pessoas deficientes. Do mês de julho até setembro foram distribuídas mais de quinze mil cópias do Relatórioda Comissão Estadual, tendo cada Comissão Estadual ou Territorial recebido cinqüentacópias para seu uso e como subsídio da Comissão Paulista aos esforços que estavam sendofeitos a nível de cada Unidade Federada. Além disso, dentro do mesmo período de tempo, foram remetidas cópias para váriosorganismos internacionais, tais como a ONU e seu escritório central para o A.I.P.D., emViena, a Organização Mundial de Saúde, a Organização Internacional do Trabalho, aOrganização Pan-Americana de Saúde, a UNESCO, o UNICEF, a RehabilitationInternational, o Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos, a Federação Mundial dosVeteranos e diversas outras organizações não-governamentais de caráter internacional,envolvidas no assunto. Reações as mais diversas ocorreram a esse documento básico, trabalhado por São Paulo.A Organização das Nações Unidas solicitou cópias adicionais, pois pretendia estudar seuconteúdo com cuidado. A Rehabilitation International, por meio de uma correspondênciaatenciosa, chegou a se expressar da seguinte forma, por meio de seu Secretário-Geral,Norman Acton: "Prezado Otto, Com a maior sinceridade quero que me desculpe porque até agora não me foi possívelresponder pessoalmente à sua carta de 11 de agosto e todas as informações que mandou comela. Este foi um exemplo extremamente interessante dos tipos de coisas positivas queaconteceram durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, e eu sei que você deve teruma sensação de grande satisfação porque a atuação de vocês, em São Paulo, foi muitomaior e mais efetiva do que foi o caso ao redor da maior parte do mundo".

- *Dois Encontros Regionais discutem as propostas da Comissão Estadual*

O Relatório da Comissão Estadual foi discutido em dois Encontros Regionais organizadosespecificamente para esse fim: - I Seminário Regional de Habilitação e Reabilitação das Pessoas Deficientes, organizadopela Comissão Municipal de Ourinhos com a estreita colaboração da Comissão Estadual; - Encontro Regional sobre Integração das Pessoas Deficientes, organizado pela ComissãoMunicipal de Bauru em colaboração com a Comissão Estadual.

De ambos os Encontros conclusões interessantes foram encaminhadas à SecretariaExecutiva da Comissão Estadual, contendo não só uma análise do relatório em discussão,mas também proposições para sua implementação a nível local e/ou regional.

- *Conscientização: a meta para 1981* Mantendo-se na linha de garantir como prioridade para o Ano Internacional das PessoasDeficientes o objetivo de conscientização, a Secretaria Executiva traduziu e conseguiu quefossem impressas 50.000 cópias da "Carta para a Década de Oitenta - Declaração", das quais40.000 foram distribuídas até dezembro de 1981, tanto para Comissões Estaduais eTerritoriais, à base de 500 cópias cada, como também para entidades que congregam pessoasdeficientes, seminários, palestras, faculdades e outros pontos. Um volume de 500 cópias foitambém remetido para o Secretariado Nacional de Reabilitação de Portugal. A Secretaria Executiva da Comissão Estadual também coordenou a gravação de quinzemesas redondas na Rádio Cultura de São Paulo, para transmissão em ondas curtas e longas,com a ampla participação de pessoas deficientes discutindo informalmente temas de altarelevância, como a necessidade de conscientização, a realidade de trabalho, a vida afetiva, asbarreiras atitudinais e arquitetônicas e vários outros. Recebido o conjunto de gravações,providenciou também a Secretaria Executiva sua transcrição para o papel, com o intuito defuturamente preparar documento para impressão e distribuição. Esses conjuntos degravações têm sido usados em Centros de Reabilitação e têm sido muito importantes para adiscussão dos problemas de pessoas deficientes nos mais variados ambientes. Além disso, manteve também a Secretaria Executiva compromissos de palestras econferências sobre o Ano Internacional em vários pontos do território nacional. Atuação das mais marcantes, entretanto, foi a pormenorização do projeto de órgão decoordenação para sua apresentação aos órgãos competentes, e o trabalho de elaboração dosprojetos de reabilitação a nível comunitário, com o uso de tecnologia apropriada, e decooperação e assistência técnica em reabilitação. Ambos os projetos foram preparados paraserem colocados em prática tão logo o governo paulista se definisse quanto ao órgãocoordenador, sem o qual pouca coisa poderia ser feita ordenadamente. Assim, muito embora sem qualquer divulgação externa, a Secretaria Executiva daComissão Estadual do A.I.P.D. em São Paulo demonstrou que muito pode ser feito semalarde, com o lançamento de sementes que são de fundamental importância no futurodesenvolvimento de programas de reabilitação no Brasil.

- *O apagar das luzes para o Ano Internacional* Embora alguns artigos de jornal ou revista procurassem martelar uma certa sensação devazio quanto a realizações concretas do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, oEncontro Nacional das Comissões Estaduais para o A.I.P.D. parece que demonstrou comclareza que ela não se justifica, a menos que se procurasse chegar apenas a realizaçõesconcretas.

Na verdade, ninguém em sã consciência poderia esperar que séculos - milênios, para sermais preciso - de esquecimentos e de desvalorização pudessem ser suplantados em um anoapenas, com realizações marcantes, mudanças de atitudes, elevação de prioridadesgovernamentais, construção de centros, adaptação de meios de transporte, rebaixamentos deguias e eliminação de barreiras. Poucas foram as realizações concretas. A totalidade das Comissões Estaduais e da própriaComissão Nacional para o A.I.P.D. tiveram o bom senso de trabalhar com o objetivo de"conscientizar" o mais possível a sociedade quanto ao problema e quanto à necessidade detodos nos voltarmos para essas pessoas marginalizadas que aspiram uma participaçãoadequada, em condições de igualdade de direitos e deveres. O Encontro Nacional realizado na cidade de Contagem - ao lado de Belo Horizonte -avaliou as atividades desenvolvidas e aprovou algumas recomendações fundamentais paratoda a Década de Oitenta, relacionadas que devem estar a projetos a curto, médio e longoprazos. E finalizamos este trabalho com sua transcrição, esperando que não tenhamos todos nóspassado por um Ano Internacional das Pessoas Deficientes sem dele termos saídoconvencidos de que precisamos interiorizar a extensão e a gravidade desses problemas todosque afligem gente semelhante a cada um de nós, e que precisam de uma solução agora, hoje- e não no século XXI, quando o nosso País estiver melhor desenvolvido e houver recursosespecíficos para atender a todos os males.

- *Recomendações finais de todas as Comissões: um desafio para o futuro* "Irmanados na luta em prol da melhoria de condições de vida das pessoas deficientes, aComissão Nacional do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, os representantes dasComissões Estaduais/Territoriais e do Distrito Federal, de Entidades não-governamentais deassistência às pessoas deficientes e de organismos que congregam essas pessoas, reuniram-se em Contagem, Minas Gerais, de 23 a 26 de março de 1982. Este Encontro chegou a algumas conclusões fundamentais para o prosseguimento dostrabalhos ao longo da década, a partir das seguintes considerações: 1) As resoluções aprovadas pela Assembléia Geral da ONU, concretizadas na Carta paraos Anos Oitenta, enfatizam sobretudo o esforço conjunto para a consecução dos ideais deIgualdade e Participação Plena; 2) Há necessidade de mudança de atitudes visando a eliminar os estereótipos epreconceitos que impedem a consecução dos ideais acima mencionados, o que foiamplamente evidenciado neste Encontro; 3) O trabalho, a educação e a saúde são direitos inalienáveis de todo ser humano e quetantas vezes são negados às pessoas portadoras de deficiências, pela insistência de muitosem conceitos obsoletos, ultrapassados e claramente preconceituosos; 4) Torna-se premente a cooperação técnica internacional no sentido de intensificar edivulgar estudos e pesquisas nas diferentes áreas do conhecimento humano com o intuito deprevenir deficiências ou reabilitar pessoas tornadas deficientes; 5) Os ideais visados pela ONU realmente se efetivarão quando todo aquele que sofrer delimitações de ordem física, sensorial e mental, tiver acesso, em sua conotação mais ampla, aum ambiente livre de barreiras de qualquer natureza; 6) Os legisladores devem estar atentos para que as pessoas ditas deficientes usufruam dosmesmos direitos assegurados aos demais cidadãos;

7) O A.I.P.D. não teve a finalidade e nem a pretensão de solucionar a problemática emque se debate a pessoa dita deficiente, mas objetivou sobretudo ser um grito de alerta para aconsciência de todos nós. Com base nas premissas acima enunciadas, recomenda-se: 1. A utilização sistemática e continua dos veículos de comunicação de massa paradisseminar e realizar o intercâmbio de idéias e temas relativos as pessoas ditas deficientes,promovendo, assim, tanto uma sensibilização cada vez mais crescente de todas as camadasda população como uma mobilização das pessoas ditas deficientes e suas famílias; 2. A intensificação das medidas de imunização, diagnóstico e tratamento precoce, deatendimento materno-infantil, bem como programas de prevenção de acidentes e de proteçãoao meio-ambiente; 3. A implantação gradativa, na medida do possível, de Centros de Reabilitação, paraaprofundamento e intercâmbio de tecnologia específica e treinamento de pessoal, ao lado deCentros Regionais de Reabilitação e dinamização de programas de reabilitação a nívelcomunitário com utilização de tecnologia simplificada e aproveitamento de recursos locais; 4. A crescente ampliação do atendimento em educação especial a crianças, adolescentes eadultos, portadores de qualquer tipo de deficiência, bem como um maior incremento àcapacitação de recursos humanos; 5. O desenvolvimento de esforços para a adequação dos cursos profissionalizantesexistentes e a criação de outros, ao mesmo tempo em que se intensifiquem não só aconscientização do empresariado como também trabalhos integrados para oencaminhamento a empregos condizentes, as pessoas portadoras dos vários tipos dedeficiências; 6. Maior estímulo a projetos de pesquisa e construção e medidas práticas visando amelhoria de acesso das pessoas ditas deficientes a edifícios públicos e sistemas detransporte; 7. Gestão junto ao poder legislativo para a elaboração de novos projetos de lei visandoeliminar a discriminação de que ainda são vítimas as pessoas ditas deficientes;

Para que essas recomendações se efetivem ao longo da década, constatou-se, nesteEncontro, a necessidade da criação de um Órgão Nacional para dar continuidade àcoordenação desenvolvida pela Comissão Nacional durante o A.I.P.D. Esta medida viráresponder ao anseio das Unidades federadas que, através de órgãos já criados para os finspropostos ou em vias de criação, prosseguirem, a nível estadual, os esforços em prol daspessoas ditas deficientes, iniciados durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes queora se encerra."

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SEGUNDA PARTE A INTEGRAÇÃO DAS PESSOAS DEFICIENTES NA SOCIEDADE - O

DESAFIO DE NOSSOS DIAS

INTRODUÇÃO

Aqueles que se defrontaram com a problemática das pessoas portadoras de algum tipo dedeficiências pela primeira vez durante o ano de 1981 - por ter sido o Ano Internacional dasPessoas Deficientes – talvez não tenham tido oportunidade alguma de parar um pouco emsua própria vida e pensar sobre o assunto. Mas todos aqueles que têm algum tipo deproblema limitador que pode levar em muitos casos à deficiência, seus familiares e todos osque de alguma forma trabalham ou se dedicam ao seu atendimento e à sua assistência sabemmuito bem que tem havido uma inacreditável lentidão da sociedade e do governo em aceitaras reais dimensões do complexo de situações enfeixadas nas deficiências físicas, sensoriais,orgânicas e mentais. Podemos imaginar que essa atitude quase de imobilidade prevaleça devido à inexistênciade dados entre nós. Nossos recenseamentos nacionais não têm inserido estudos dessanatureza em seus questionários. Diga-se de passagem que desde o ano de 1959, quando oGeneral Lott ocupava provisoriamente a Presidência do Brasil, gestões tem sido feitas paratal fim, mas sem o menor vislumbre de sucesso. De outra parte, estimativas mundiais só começaram a ser profusamente divulgadasdurante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, que foi expressamente criado pelaOrganização das Nações Unidas para alertar o mundo todo a respeito da existência de umcerto percentual de pessoas marginalizadas por problemas físicos ou sensoriais, seus direitos,deveres e aspirações. Mas não é somente por falta de dados que a sociedade em geral e nossos governantes temse omitido. Existe uma certa dose oculta de rejeição, consciente ou não, que é muitoponderável nesse panorama todo que envolve pessoas com deficiências no mundo de hoje. Face a esses fatores é muito importante chamarmos a atenção para o fato de que,exatamente por haver desconhecimento quanto às verdadeiras dimensões dos problemasrelacionados a deficiências entre nós, e por ocorrer uma evidente rejeição das pessoas quesão diferentes devido a uma anomalia física ou mental, a maneira como o Brasil estáencaminhando programas e atividades voltadas para pessoas deficientes - salvo raras e muidistintas exceções - tem sido na melhor das hipóteses limitada. Na pior, poderá serinadequada, talvez inócua, irrelevante e mal fundamentada, quando não contra-producente. As conseqüências da falta de conhecimento e de convicção quanto à gravidade da situaçãoe à dimensão do problema, mesmo por pessoas altamente envolvidas, levará fatalmentenossos planejadores de governo, nossas organizações privadas, nossas repartições públicas enossa população em geral a não dar atenção própria, a eliminar possibilidades deestabelecimento de qualquer nível de prioridade, a preterir a adequada assistência a pessoasdeficientes por outros programas e a não apoiar qualquer tipo de ênfase nesse campo.Acresce a tudo isso que, por estarem mal informados ou desinformados por completo sobre averdadeira natureza do problema, todos aqueles que não estão diretamente envolvidostentam ignorá-lo, evitá-lo ou simplesmente pretender que ele não existe. Quase toda aresponsabilidade pelo atendimento dos casos concretos tem ficado nas mãos de algumasentidades privadas, bem ou mal preparadas para a tarefa, ou de órgãos governamentais,

lamentando-se de quando em quando, ao se deparar com situações mais chocantes, ainviabilidade de melhor ajudar a família que literalmente vive a dificuldade permanente. Temos visto e ouvido muito em nosso meio que as famílias "atingidas" acabam sentindo oproblema como exclusivamente seu. Muitas delas procuram esconder seu membro deficiente, a fim de evitar também situaçõessociais embaraçosas, tais como contínuas interpretações quanto à natureza e gravidade domal, esclarecimentos quanto a providências já tomadas, elucidações quanto a este ou àquelemédico especializado que resolveu casos semelhantes e tantas mais. Os documentos das organizações internacionais mais categorizadas indicam-nos que pelomenos 10%, da população de qualquer país do mundo em tempos de paz sofrem asconseqüências de algum tipo de problema físico ou mental ou da combinação de males, detal maneira que precisam de serviços especiais de alguma natureza. No entanto, se fizermosuma superficial análise da distribuição geográfica das populações no mundo e dos recursosdisponíveis para ajudar as pessoas portadoras de deficiências, verificaremos que a maioriadelas, por estarem localizadas em países sub-desenvolvidos, não teve, não tem e não teráqualquer oportunidade de acesso aos mesmos. A Rehabilitation International, em sua farta documentação para o Ano Internacional dasPessoas Deficientes e também para a Década de Oitenta, afirma categoricamente que asmodernas e por vezes palacianas instalações que costumamos chamar de "centros dereabilitação" ficam tão distanciadas de suas vidas quanto um carro de luxo de último tipo. Eum dos motivos é que a maioria das deficiências ocorre nas áreas mais pobres com muitaprobabilidade de complicações adicionais devido à falta de assistência. Nessas realidades oque conta é a sobrevivência, o pão, o teto e não as aspirações "mais altas". Como pensar emreabilitação quando não há dinheiro para a alimentação ou vestuário? As dimensões verdadeiras e realistas das deficiências no Brasil não podem serestabelecidas apenas por números de pessoas atingidas, conforme indicamos anteriormente. O claro estabelecimento da verdadeira extensão desses problemas deverá levar em contaos efeitos das deficiências sobre a vida das pessoas, tanto a vida daqueles que sãodiretamente atingidos, quanto a de alguns dos membros de seu grupo familiar, do povo, dacomunidade e da sociedade em geral. Por estudos realizados em países mais avançados que o nosso, sabemos que por causa dadeficiência física ou mental, 1/4 da população de uma nação poderá estar, de uma maneiraou de outra, limitada ou bloqueada quanto à plena utilização de suas capacidades e de seupotencial. É evidente que existe o reverso da situação. A sociedade, a comunidade, os círculos devizinhança ou de amizade, o grupo de referência familiar, têm uma reconhecida influênciano eventual agravamento da situação, ou seja, na transformação daquilo que é um"impedimento" físico, sensorial, orgânico ou mental numa "deficiência". E isso ocorredevido a atitudes, receios, estigmas, comportamentos, preconceitos e também àdiscriminação, que são mantidos consciente ou inconscientemente para com pessoas queapresentam essas limitações. As dificuldades que cada um de nós individualmente cria paraa sua educação, participação na vida social ou colocação em empregos, adicionais quesempre são às barreiras de acesso a edifícios, ao transporte, aos recursos relacionados àrecreação e ao lazer, geram problemas que tornam sua solução cada vez mais difícil. Ressaltemos, a bem da verdade, que não são poucos os segmentos da sociedadediretamente atingidos por deficiências físicas ou mentais. Adicione-se que há outros que sãoresponsáveis pelas conseqüências negativas das limitações acima referidas.

Uma redução objetiva dessas conseqüências poderá ser garantida por uma ação conjunta,dirigida a cada uma de suas origens. Como exemplo vale lembrar um maior provimento deserviços adequados de reabilitação para pessoas deficientes, incluindo nele serviços comtecnologia mais simplificada ou serviços baseados em recursos já existentes na comunidade. É fundamental que tenhamos programas de reabilitação mais dinâmicos, cujosprofissionais não trabalhem apenas no físico, mas também nas atitudes e no comportamentodas pessoas – tanto aquelas que são deficientes quanto as que não são portadoras dedeficiências – quer individualmente, quer em grupo. Estaremos dessa forma dando àquelesque chamamos hoje, com uma certa despreocupação e sem medir bem o significado dapalavra, de “deficientes”, oportunidades para superar o complexo de problemas que osafligem e passar a ser muito mais “eficientes” na sociedade. Analisarmos o quadro completo de evolução dessas situações no Brasil é tarefaimpossível nos dias de hoje. Um olhar para o futuro poderá nos sugerir que o volume deproblemas trazidos pelas deficiências continuará existindo e estará sempre vinculado àstendências mais gerais de evolução social e humana de nosso país. Essas tendências nos dias que correm mostram-nos taxas assustadoras de desemprego enum crescendo quase sem barreiras, o imenso acervo de pessoas sobrevivendo em situaçõesde sub-emprego, o que deixa – aparentemente – as pessoas deficientes numa dificuldadeainda maior para serem absorvidas pelo mercado aberto de trabalho. Continua existindo a migração de pessoas provenientes de regiões mais pobres para áreasmais promissoras, caindo quase sempre em favelas, em cortiços que se encontram super-povoados, ou em outros tipos de habitações infra-humanas. Boa porcentagem da população,em vez de estar trabalhando em produção de alimentos, volta-se para ocupações nãoqualificadas do meio urbano, tangida pela ambição de obter melhores condições de vida. Atudo isso acrescentemos o imenso abismo, em continua expansão, que existe entre a nossapopulação que possui bens daquela população que não os possui. Procuremos, deste pontoem diante, analisar a situação das pessoas chamadas deficientes, dentro do final do séculoXX e dentro de nossa realidade brasileira. Tentaremos iniciar discussões quanto aos motivosque poderão levar pessoas portadoras de deficiências a uma situação de marginalidade. Elaboraremos também um pouco quanto ao verdadeiro significado e às implicaçõesdaquilo que é verbalizado muito facilmente como "integração social das pessoasdeficientes". O que é que significam essas palavras bonitas em termos práticos? Como é que podemos traduzi-las para o nosso dia-a-dia? Analisaremos a importância do ajustamento do indivíduo portador de deficiência comopessoa, pois é a adequação pessoal o objetivo último do processo reabilitacional. É por meiodela que a pessoa poderá ter condições suficientes para sair de uma situação de dependênciae marginalidade para uma outra de auto-suficiência na sociedade em que vive. Focalizaremos também um pouco mais pormenorizadamente os componentes doajustamento à vida de trabalho, ou seja, a adequação da pessoa portadora de deficiência auma situação concreta de produção de bens e serviços. Por não podermos de forma alguma desconsiderar a importância de uma consagrada açãoque, sem a menor sombra de dúvida, desde os seus primórdios se caracterizou como umtrabalho multi-profissional que extrapola em muito às atuações de um só profissional,teremos um capítulo especial de discussão quanto às características e as dificuldades dotrabalho de equipe nos programas reabilitacionais de hoje. E finalmente iniciaremos pontosde discussão com o objetivo de dar uma visão de como poderá ser viável a avaliação e ocontrole das atividades de nossos centros e de nossos programas de reabilitação,

considerados tão dispendiosos para nossa sociedade, tão aparentemente fora de nossarealidade, mas tão fundamentais para aqueles que precisam de serviços especiais para teremcondições mínimas a fim de tentar a grande aventura da integração completa na sociedade,pois têm o direito de desfrutar de tudo aquilo que está implícito nos temas básicos do AnoInternacional das Pessoas Deficientes, ou seja, "participação plena e igualdade".

CAPÍTULO PRIMEIRO AS CAUSAS DA MARGINALIDADE DAS PESSOAS DEFICIENTES

A ignorada epopéia de parcelas da população mundial, através dos muitos séculos daHistória do Homem sobre a Terra, mostra-nos com muita clareza que a sociedade doshomens, em todas as partes do mundo e em todas as épocas, sem qualquer exceçãopraticamente, colocou e continuará colocando por muito tempo mais à margem de suacorrenteza principal certos tipos de indivíduos que dela poderiam fazer parte. A nossa sociedade, em seus múltiplos segmentos, não se apresenta como exceção, apesarde ser notória a pretensão que tem de muito aberta à integração de todos, sem adotarqualquer medida preconceituosa. A verdade dos fatos é outra, porém: as atitudesdiscriminatórias existem entre nós e com elas suas conseqüências mais lamentáveis, que sãoas situações reais de marginalidade social. Na tentativa de analisar com cuidado este tema, uma das primeiras e cruciais dúvidasaflora: quais os motivos que levam as pessoas ou os grupos a tomar uma atitudediscriminatória e muitas vezes repleta de idéias pré-concebidas, em detrimento de outrosindivíduos? Que tipo de raciocínio ocorre para alguém, sem muito pensar, simplesmente eliminar desua vida e de seu meio uma pessoa por apresentar um tipo qualquer de anomalia? Embora muitos pontos possam ser colocados à consideração do estudioso do assunto, umdos mais sérios e significativos mostra-nos que a sociedade marginaliza - ou seja, retira dacorrenteza principal - alguns indivíduos devido a motivos vários e definidos, mas cumpreque coloquemos em relevo aqueles que se relacionam à apresentação visual, ou aqueles queestão diretamente relacionados ao comportamento face ao grupo. Com isso ela demonstraque existem alguns padrões de aceitabilidade. Essa verdade é aplicável a várias situações, mas de um modo todo especial ela é quaseuniversal com relação às características físicas e/ou mentais dos indivíduos. Preconceitos e medidas discriminatórias existem concretamente contra quase todos ostipos de "anormalidades" ou de "anomalias", muito embora essas atitudes apresentemtonalidades de ênfase diferente, pois "a maioria das pessoas não tem contra os deficientes amesma espécie de preconceitos, que alimenta contra certos grupos religiosos, raciais oudesfavorecidos" ("O Indivíduo Excepcional", de Telford e Sawrey). Para todo aquele que procura melhor compreender as origens deste problema deponderável complexidade, será de grande valia conscientizar-se das característicasaproximadas da normalidade, em seu sentido sociológico, procurando especular um poucoquanto às características que o ser humano precisa apresentar para ser considerado como"normal", em nossos grupos sociais. É importante compreender com alguma segurança quaisos fatores que determinam ser o indivíduo assimilável, ou então, pouco aceitável. Essa preocupação levar-nos-á, sem dúvida, a lembrar primeiramente que não existe umindivíduo sequer que seja idêntico a outro. Na verdade, ser diferente é bem próprio danatureza humana e as diferenças são de caráter universal. No entanto, há vagos limites detolerância para essas diferenças individuais entre os homens, a tal ponto e de tal maneira queo grupo social poderá chegar mesmo a bloquear aquele seu membro "excessivamentediferente", colocando-o de lado. Para todos os efeitos, "ser diferente" é ser "colocado de lado", o que em linguagem derelações inter-pessoais, pode significar rejeição.

... "Muitos escritores têm também atribuído a rejeição de uma pessoa deficiente ao fatodela ser diferente. O "ninguém quer ser diferente" é aceito como uma lei óbvia do homem"("Physical Disability - A Psychological Approach" de B. Wright). Tudo aquilo que é muito diferente, que não é nada igual ao costumeiro, que foge ànormalidade, que é raro, chama a atenção. A diferença e a "excepcionalidade" podem existirtanto para melhor quanto para pior. Quando elas ocorrem para o lado positivo, como noscasos de beleza excepcional, da forma física perfeita, da inteligência fora do comum, elascausam deleite àqueles que com elas se defrontam. É a excepcionalidade positiva que estimula o homem a se aproximar ou a almejar o idealperfeito, sempre sonhado e nunca atingido. No entanto, todos sabemos muito bem que há exceções que nos levam para o ladonegativo e são essas as que mais causam dificuldades. Acontecimentos excepcionaiscatastróficos, grandes desastres coletivos, guerras ou revoluções como solução de disputassão acontecimentos que polarizam a atenção. Da mesma forma chamam a atenção oscomportamentos irracionais e os padrões de desenvolvimento físico ou de aparência anormaldo ser humano. Essas anomalias ou exceções preocupam as pessoas atingidas, as famílias envolvidas, ascomunidades às quais pertencem, os poderes constituídos e a própria estruturação dasociedade. E chamam a atenção porque, para a grande maioria dos membros ativos oupassivos de nossa sociedade, num certo sentido não só desagradam, como também ameaçama tranqüilidade, o bem-estar, o sentido de estética, a harmonia, a segurança pessoal e afamiliar, criando eventuais dificuldades para a posição social das pessoas afetadas, além dasrespectivas famílias ou grupos de relacionamento, quando não da sociedade maior. Quando ocorrem catástrofes naturais ou situações anormais de caráter geral a sociedademobiliza-se, pois ela sabe muito bem que esses eventos ou situações precisam sercontornados ou resolvidos - e mesmo eliminados - sempre que possível com a colaboraçãodos mais diversos setores da comunidade. Com essas providências ela se desenvolve cadavez mais e procura garantir melhores condições de vida e maior índice de segurança para opovo. As condições de divergência do usual atingem o homem como indivíduo e comomembro de um grupo. Nesses casos a sociedade mais consciente, por meio de grupos osmais diversificados, procura também tomar sua posição. Assim como no primeiro exemplo,neste também ela se sente ameaçada. Dependendo de valores culturais predominantes, suas necessidades globais, suacomposição, sua realidade política, seu grau e capacidade de desenvolvimento, seu modo dever o indivíduo, seu nível de conscientização, e outros fatores, ela age através de atividadesassistenciais que podem levar à compreensão do problema, à prevenção de males,eventualmente ao controle das pessoas afetadas por esses males e aos programas que levemà sua reabilitação global. Com isso ela "extermina" o mal, "elimina" a excepcionalidade,separa o contingente atingido, assiste-o financeiramente, abriga-o ou segrega-o do restanteda sociedade, ou parte para sua completa integração em bases equânimes.

- *Normal ou anormal: eis o problema* Será muito difícil para um estudioso afirmar com segurança que consegue indicar tudoaquilo que é "normal" ou "anormal" num ser humano, em dada realidade, seja em termos dedesenvolvimento pessoal, seja em termos de comportamento. Ninguém sabe, na verdade, atéque ponto uma diferença dos padrões da aceita "normalidade" poderá ser assimilada semmaiores dificuldades pela sociedade onde ocorre. O único ponto de conhecimentogeneralizado e que todos sabemos que existe um limite indefinido para as diferenças do

"normal" serem assimiladas pelo grupo social. Segundo cada realidade social e cada culturapodem ocorrer claras delineações quanto aos desvios da normalidade que são ou nãoaceitáveis, que podem até ser considerados como vantajosos, dependendo sempre dosresultados práticos provocados pela "anormalidade" e do papel que os indivíduos afetadospossam ter na sociedade. Vejamos um exemplo prático: Na época em que atuamos na Unidade de Reabilitação do Deficiente - Departamento deDesenvolvimento Comunitário e Bem-Estar Social da Organização das Nações Unidas -tivemos um dia a oportunidade de entrar em contato com uma situação "sui-generis", queestava embaraçando um consultor geral de reabilitação, em programa de assistência técnicanum país africano de antiga vinculação com a Inglaterra.O governo federal dessa nação mantinha uma equipe volante de bem-estar social quepassava parte do mês em viagens pelas aldeias da região norte do país. Rodava milhares dequilômetros para garantir o desenvolvimento contínuo de programas e para fazer osindispensáveis contatos oficiais. Um dos objetivos desse programa volante era também entrevistar pessoas deficientes eseus familiares para estabelecer um bom clima de relacionamento com os mesmos e comisso gradativamente encorajá-las a participar de um programa de capacitação para o trabalhorural. O relacionamento com o chefe da aldeia era fundamental sempre. No caso em pauta oobjetivo principal era garantir o encaminhamento de pessoas adultas cegas para um centro dereabilitação dos arredores da capital, que mantinha programações práticas para nativos quequisessem se dedicar a atividades próprias da aldeia. O Centro em si era muito simples e adaptado à realidade do país e todo o treinamento eracusteado por verbas federais. Quase sempre a equipe volante retornava à base com algunscegos dispostos a residir por alguns meses nas instalações do centro e aprender não sóhabilidades da vida de todo dia, mas também aquelas relacionadas ao cultivo do milho, damandioca, do café, de legumes e de hortaliças, além dos cuidados com animais domésticos. Numa certa aldeia localizada às margens de um sereno lago, entretanto, um velho eindecifrável chefe de aldeia protelava indefinidamente a viagem de três cegos.Aparentemente não havia motivo algum. O chefe não dizia um "não" categórico e os cegos,apoiados em seus bastões, sorriam e não diziam nada. Na comunidade em si ninguémapresentava qualquer explicação. Numa das últimas viagens empreendidas pelo especialista da ONU com a equipe decampo, foi feita uma visita especial à aldeia em questão. Como sempre, todos foramrecebidos muito bem e após os cumprimentos sorridentes sentaram-se ao redor do chefe-ancião. No grupo de negros de características muito puras, a tez clara do estrangeirosobressaía. E foi ele quem fez a pergunta direta que nenhum outro havia feito antes, seja porrespeito às decisões do chefe, seja em conseqüência de uma posição cultural:"Por que esses três jovens, que são cegos, não viajam para nosso centro para ali poderemaprender a ser independentes, a cuidar de si mesmos, a ter suas plantas, suas cabras e suaprópria cabana?". A resposta veio clara, embora repleta de cautela. Segundo os ancestrais daquela tribo, todaaldeia poderia ter motivos para ser valente e muito aguerrida. Mas só aquela que tivessemotivos para ajudar seus próprios membros é que poderia ser uma aldeia feliz. Ora, oscegos, os velhos, as mulheres sem seus maridos significavam uma bênção dos deuses e dosancestrais, pois todos eram muito bem cuidados por todas as famílias que repartiam entre sia responsabilidade pela sua alimentação, vestuário e abrigo. Se eles fossem levados a um

centro para voltarem independentes, cuidando por si mesmos de suas plantas e seus animais,o que restaria àquela aldeia fazer para merecer a felicidade que só a caridade trazia?...

- *As "diferenças" assimiláveis ou inaceitáveis* Situações que fogem aos padrões normais existem no mundo inteiro, mas ascaracterísticas próprias dos tipos de preconceitos e das diversas formas de discriminação aelas relacionadas dependem diretamente dos padrões culturais de cada povo. Têm elassignificado bastante variável de povo para povo e só poderão ser bem compreendidas nocontexto social onde ocorrem. Numa cultura primitiva, por exemplo, na qual a qualidade de vida, o bem-estar geral e orelativo conforto podem depender em grande parte dos resultados da caça, as aptidõesindividuais correspondentes a um físico ágil e forte são as mais relevantes para o gruposocial. Nele, a deficiência física, a debilitação geral, a velhice, as demonstrações de medo, oexcessivo cuidado com a segurança do corpo são graves desvantagens. Nessa mesmasociedade primitiva a inabilidade para falar desembaraçadamente, ou para fazer cálculos, aincapacidade para ler e para escrever, a falta de condições para o desenvolvimento deatividades artísticas são muito pouco relevantes. Numa outra realidade hipotética, escassamente habitada e de características agro-pastoris,o indivíduo mentalmente retardado ou aquele socialmente desajustado não oferecepreocupações relevantes para o grupo maior. A criança de uma região dessa natureza, que éincapaz de ler ou de escrever, sempre poderá ser muito útil para o desempenho de diversastarefas, podendo constituir-se num membro bastante produtivo da família ou do gruposocial, enquanto que num ambiente mais competitivo e desafiador, como o de cidades, asituação seria bem diversa. As diferenças individuais e que caracterizam cada um dos seres humanos serãoencontradas sempre. Será o grupo social, todavia, que irá estabelecer quais as divergênciasque poderão ser consideradas como prejudiciais ou como vantajosas e quais as queprovocarão depreciações ou valorizações do ser humano. Analisemos um outro exemplo concreto: Numa ilha do Oceano Pacífico, sempre cercada por cardumes de vorazes tubarões, aatividade de pesca, muito mais do que a atividade agrícola ou pastoril, é a fonte principal dealimentos de toda a população. Devido às circunstâncias próprias, apesar de atividade vital, ésempre muito perigosa. Ocorrem de quando em quando acidentes com os pequenos barcosde pesca que atiram às águas seus ocupantes. E muitas vezes eles são quase queimediatamente atacados por tubarões. Dessas vítimas poucas são as que sobrevivem. Nessaperdida ilha o fato de um adulto não ter um braço ou uma perna não leva a depreciaçãoalguma. Muito pelo contrário, a deficiência corresponde à garantia de uma inquestionávelposição de prestígio na comunidade, pois todos sabem que aquele homem enfrentou oinimigo mortal durante a luta pela sobrevivência do grupo. O homem amputado é ali olhadocom respeito e admiração.

- *A questão em termos de Brasil* Qual a situação que encontramos no Brasil de nossos dias a esse respeito? Todos sabemosmuito bem que existem no Brasil situações as mais díspares e costumes os mais estranhos,pois temos uma sociedade que no geral fala a mesma língua, distribuindo-se por umterritório de tamanho continental, com realidades bem evoluídas de um lado, enquanto queem regiões mais pobres e menos desenvolvidas há camadas da população que ainda nãochegaram a entrar em contato direto com o mundo moderno.

Nessa realidade vastíssima, tão cheia de contrastes, observa-se também que em geral aspessoas com menor capacidade física e mental, com menor e menos atualizadoconhecimento das implicações da vida moderna, vão sendo gradativamente marginalizadas.Com o desenrolar do tempo e com a real impossibilidade desses indivíduos conseguiremsuperar os problemas que os atiram à margem da sociedade atuante, acabam caindo, quer acontragosto, quer de bom grado, na dependência de membros mais ativos e produtivos. E háo contingente populacional de tamanho significativo que acaba como beneficiário dos bemou mal definidos programas assistenciais mantidos pela comunidade. Entre nós, como em muitas outras sociedades do mundo moderno, existem diferenças quevia de regra levam as pessoas a depreciar o indivíduo, quando essas diferenças são muitoevidentes. E nas eventualidades dessas diferenças consideradas desagradáveis não serempelo menos disfarçadas, escondidas ou reduzidas, acabam provocando reações quedeterminam providencias especiais para que o indivíduo seja separado, seja tratado ou sejasimplesmente mantido longe.

- *A visibilidade da deficiência* A visibilidade de uma diferença física menos agradável sempre dificulta tentativas deintegração da pessoa humana atingida ao seu grupo, principalmente devido às dúvidas e àansiedade que ela provoca. Há receios ocultos quanto às prováveis conseqüências das vinculações ou da convivênciacom o ser humano deficiente. A maioria das pessoas ditas normais não se sente à vontade napresença de pessoas gravemente deficientes que passam a ser tratadas como gente estranha enuma razoável distância social. As amputações de membros superiores (e em alguns casos as de membro inferiortambém), a paraplegia, a hemiplegia, a paralisia cerebral, as deformações congênitas emgeral, todas tem grande visibilidade, enquanto que os males orgânicos, alguns sensoriais, osdesvios psicológicos e sociais chamam muito menos a atenção e levam a menossignificativas reações. Provocam em contrapartida menor índice de boa vontade por parte dopúblico em termos de causas, de programas ou de campanhas. A visibilidade das alterações do padrão médio de normalidade física, às vezes precisa sermuito bem ponderada e cuidadosamente considerada por pais e educadores quandoformulam planos educacionais para uma criança. E uma das perguntas mais cruciais é esta:"Até que ponto poderá uma criança diferente - portadora de algum tipo de deficiência maisfacilmente perceptível - beneficiar-se de uma escola segregada ou de uma escola integrada?"

- *O problema do "comum" e do "normal"* Conforme analisado, aparentemente um dos motivos mais ponderáveis para que sedesencadeie um processo marginalizante é um certo desvio dos padrões da normalidadeaceita pelo grupo. Embora seja muito importante a compreensão exata das implicações da"normalidade", a sociedade em geral confunde aquilo que é "normal" com aquilo que é"comum". Sob o ângulo prático de análise dos termos, "comum" é aquilo que éencontradiço, enquanto que "normal" é o desejável. O comum em termos de Brasil, porexemplo, pode ser um no Estado do Amazonas e outro bem diverso no Rio Grande do Sul - eambos diferentes do que é encontradiço e considerado comum no Nordeste. Em algumasregiões brasileiras é comum vermos o homem analfabeto vinculado a situações quase queescravizadoras de trabalho. É comum a subnutrição, a ausência de recursos para ensino ousaúde. São situações comuns, mas não são normais, aceitáveis, dignas do homem. No

entanto, essas situações anômalas são tantas vezes tomadas como naturais, corriqueiras,usuais e sem maior importância, que ficam sendo consideradas como normais - e não o são! Nessa mesma linha de exemplificação prática de raciocínio, o "normal" é e sempre será odesejável e aquilo que está em plena concordância com a natureza humana e com adignidade do homem. Em qualquer sociedade do mundo civilizado de hoje, no qual nãoexistem mais barreiras de comunicação, a palavra "normal" deveria estar sempre incluindotodas as condições conseqüentes aos direitos básicos previstos na Declaração Universal dosDireitos do Homem. É muito difícil eliminarmos qualquer um dos direitos previstos nessa Declaração, poiscada um deles focaliza aspectos de inquestionável importância na vida do homem sobre aTerra. Entretanto, é nesse mesmo mundo de hoje, que aceita tranqüilamente uma DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem, adicionando a ela declarações subsidiárias relacionadas àmulher, às pessoas com retardo mental, às pessoas deficientes, que vemos de quando emquando situações realmente desumanas de natureza muito comum que acabam sendoassimiladas e aceitas por grupos da sociedade, inclusive pela nossa própria. Isso jamaispoderá significar que elas possam ou devam ser aceitas ou consideradas como "normais".

- *A grande variedade de condições marginalizantes* Esse ângulo da questão leva-nos, sem dúvida, a alarmantes conclusões quanto à situaçãoda maioria dos países do mundo - inclusive do Brasil - pois se formos levar até as últimasconseqüências a consideração do problema das deficiências, sob esse prisma, deveremosconsiderar como indivíduos colocados à margem da correnteza principal da sociedade todosaqueles que: - recebem salários injustos e insuficientes para seu sustento e para manutenção de seugrupo familiar; - não têm acesso aos benefícios da previdência social estabelecida; - são impedidos, na prática, de receber instrução básica; - passam fome ou alimentam-se inadequadamente por não terem condições financeiraspara adquirir alimentos; - habitam de forma infra-humana; - não conseguem livrar-se dessas situações apesar de tentarem.

- *Como classificar as condições marginalizantes* Mas estamos aqui procurando analisar somente o problema das pessoas que sofrem oestigma das deficiências físicas, mentais, sensoriais, orgânicas, ou conseqüentes a doençasmentais ou à idade. Para podermos dimensionar e avaliar concretamente o desafioapresentado por esse estigmatizado segmento da sociedade, procuremos uma forma declassificar as diferenças dos padrões de normalidade considerados usuais e por elaidealizados. Poderemos ter dessa maneira, uma idéia mais clara da verdadeira extensão dosproblemas daqueles que são muitas vezes conhecidos como "deficientes", "excepcionais","incapacitados" - e que passaremos a chamar de "pessoas deficientes" - e do seu desafio paraprogramas que pretendem ter como meta a sua integração plena na sociedade. Na bibliografia existente encontraremos vários tipos de classificação dessas diferenças ousituações de excepcionalidade. Uma das mais claras e mais felizes é aquela que analisa oproblema sob o ângulo do desvio básico dos padrões de normalidade, adotada também porTelford e Sawrey. Limitemo-nos, entretanto, a discutir os desvios de normalidade denatureza mais agravante, conforme referido acima, que podem levar o indivíduo a um tipo

de marginalidade mais difícil de ser superada sem o concurso de serviços especialmenteorganizados. Mantenhamos em mente que para nossa cultura o indivíduo normal é o que tem um corpopraticamente perfeito e sem aberrações, aquele que tem os órgãos e os sentidos funcionandobem, com uma inteligência pelo menos em nível adequado, dono de um acervo de hábitos ede comportamentos que não chegam a causar preocupações e dentro de uma faixa etáriaconsiderada como produtiva e não muito avançada. Quase tudo que escapa desses padrõespassa a ser visto com certa dificuldade e poderá levar o indivíduo a situações de certamarginalidade. É nesse sentido que poderemos citar os desvios intelectuais, os sensoriais, os motores, osfuncionais e os orgânicos; além disso, incluiremos os problemas de personalidade e ossociais mais sérios; e não deixaremos de lado as dificuldades encontradas por pessoas deidade avançada. Procuremos analisar um a um, em poucas palavras, esses diversos tipos de desvios de quefalamos acima.

- *Desvios intelectuais* Existem estudos muito interessantes a respeito de problemas intelectuais que levam acertos desvios, tanto para o lado positivo quanto para o negativo, partindo sempre de umponto médio. A preocupação básica de nossa sociedade, entretanto, tem-se centralizado nosdesvios para menos, ou seja, nos casos de deficiências mentais de vários graus, incluindo oslimítrofes, os educáveis, os treináveis e todos aqueles que não conseguem ser absorvidospela sociedade devido a um rebaixamento intelectual.

- *Desvios motores* Agrupados sob este tipo de desvio de normalidade encontraremos todos os casos deamputações, as malformações motoras congênitas ou adquiridas, os problemas ortopédicosde gravidade e provocadores de seqüelas incapacitantes, os males neurológicos com osmesmos tipos de conseqüências, dentre os muitos que poderiam ser aqui inseridos. Naverdade são os problemas que mais chamam a atenção quando se fala em reabilitação ouquando se menciona o problema das deficiências de um modo genérico.

- *Desvios sensoriais* Sendo normal o uso de todos os sentidos, o ser humano que se vê privado de um só delespode facilmente ser vítima de séria marginalização se não souber como superar o problemavivido. Assim é que, dentre os casos mais notórios, temos os cegos ou deficientes visuais, ossurdos e casos afins, conhecidos como deficientes auditivos, com diminuição ou gradativaperda do sentido da audição. A perda ou redução de outros sentidos como o olfato, o paladare o tato não é comum nem causadora de sérias dificuldades sociais, apesar de poderem serarroladas as muitas exceções que acabarão por confirmar a regra.

- *Desvios funcionais* Certas funções do organismo, quando prejudicadas por um defeito, por uma doença ou porum acidente poderão trazer sérios problemas para o indivíduo. Assim temos o caso dosafásicos ou daqueles que têm dificuldades de comunicação que é o tipo mais facilmenteencontradiço neste grupo.

- *Desvios orgânicos*

Dentre os desvios orgânicos que mais trazem problemas ao homem estão aquelesocasionados por vários tipos de cardiopatias sérias e por males da respiração, incluindo-senos mesmos os casos de tuberculose, dentre muitos outros.

- *Desvios de personalidade* Este tipo de dificuldade está diretamente ligado a problemas emocionais ou distúrbiosmais graves como as neuroses e as psicoses. Vários males relacionados à saúde mentalpodem também levar as pessoas a situações de marginalização.

- *Desvios sociais* Os delinqüentes juvenis, os criminosos adultos, certos tipos de contestadores, os viciadosem drogas, os alcoólatras, os fármaco-dependentes são alguns tipos que ilustram o chamadodesvio social. Muitos deles não têm absolutamente nada em comum e os programasmontados para sua assistência são muitas vezes totalmente separados ou alheios uns aosoutros.

- *Problemas de idade avançada* Os problemas ocasionados pela velhice são muito próprios e característicos. Apesar de emoutros tipos de situações encontrarmos eventualmente certas superposições sempreagravantes, na velhice e que sempre encontramos a maior incidência dessas superposiçõesque tornam a assistência a idosos muito difícil. São os casos de velhos cardiopatas, cegos,surdos e outros tipos.

- *Outras condições que levam à marginalidade* Cada um desses problemas mencionados separadamente poderá levar uma pessoa menospreparada ou menos protegida a certo grau de marginalização, ou pelo menos a uma série dedificuldades para garantir uma completa integração ao seu grupo. Nos casos de desviomotor, sensorial, orgânico, intelectual, de personalidade e de idade avançada, no entanto,verificamos muitas vezes que, além de ocorrer uma eventual superposição de dificuldades,existe também com muita freqüência a ocorrência de hábitos, de atitudes e decomportamentos inaceitáveis ou inadequados, provocando situações muito mais sérias doque o próprio desvio em si mesmo.

São também muito ponderáveis os problemas causados por certos tipos de rótulosestigmatizadores aplicados a indivíduos ou a populações que vivem em condições diferentesdaquelas consideradas como aceitáveis, ou seja os "favelados", os "aleijados", os"paralíticos", os "loucos" e tantos mais. As dificuldades, entretanto, não se limitam a essa questões ou a esses ângulos, pois aosproblemas ocasionados pela existência de uma deficiência qualquer ou pela ocorrência deestigmas rotuladores, eventualmente deve-se também adicionar uma série de situaçõescausadas por fatores pessoais ou sociais. Dentre os fatores pessoais convém que não nosesqueçamos dos males provocados pelo analfabetismo, pelas crendices e superstições, pelaignorância generalizada, pela inabilidade de resolver problemas e pela miséria material. Dos fatores sociais mais significativos causadores eventuais de situações demarginalização cumpre que destaquemos o crescimento vertiginoso e desordenado de nossasgrandes cidades, a falta ou a inoperância dos recursos humanos ou dos equipamentos sociaisda comunidade, o evidente descompasso existente entre a educação e o desenvolvimentotecnológico, além dos preconceitos e das atitudes discriminatórias.

- *Deficiência e incapacidade: distinção importante* Segundo consenso internacionalmente existente, quando, em conseqüência de algum mal,o ser humano é vítima de um certo impedimento de ordem física, por exemplo, temos ainstalação de uma deficiência. Essa deficiência poderá levar ou não a uma incapacidade, ouseja, a uma situação de desvantagem, de inferioridade. Claro que um impedimento semprepoderá causar uma deficiência inócua, pouco significativa e sem maiores conseqüências parao indivíduo afetado. Por exemplo, no caso de um auxiliar de caminhão perder o dedomínimo da mão esquerda. Esse mesmo impedimento, fisicamente observado ediagnosticado, trará conseqüências marcantes para um pianista, para um datilógrafo, para umclarinetista profissional. O que sucede é que quando essa deficiência é tomada como uma desvantagemsignificativa para com os demais, ou quando ela é rejeitada sem que o indivíduo atente parasuas conseqüências práticas, em geral a pessoa portadora da deficiência começa a agir e adesenvolver hábitos e atitudes tais que o grupo social se vê forçado a deixá-la de lado e cadavez mais à sua margem. Consideradas as circunstâncias em que acontecem e muitas vezes as pessoas que atingem,certas deficiências não podem nem devem ser tidas como "incapacidades", pois estas sãorealmente problemáticas e estão presentes sempre que ocorrer a somatória de três tipos delimitações: - a limitação objetiva, imposta pelo impedimento ou desvio (por exemplo, um paraplégiconão consegue mais andar e tomar uma condução pública sem a ajuda de muletas ou de umacadeira de rodas; um cego não poderá ler instruções em planilhas de trabalho; um amputadode mão, por mais hábil que procure ser, não poderá ser um violinista); - a limitação estabelecida por segmentos da sociedade com os quais o indivíduo serelaciona (por exemplo, clubes não aceitam pessoas com deficiências físicas, a sociedadeevita contatos próximos com vítimas de paralisia cerebral, ou procura manter os hansenianosfora de seu alcance); - a limitação que o próprio indivíduo atingido estabelece (por exemplo, o paraplégico queacha estar liquidado para a vida de trabalho ou a vida social; o cego que não se dispõe aaprender o Braille ou a andar sem a ajuda dos outros por medo de não o conseguir).

Conforme foi já comentado anteriormente, os objetivos da vida de cada um de nós é queacabam por determinar se uma deficiência pode ser desvantajosa, tornando-se umaincapacidade, ou não. Como indicamos, para um violinista profissional as conseqüências daperda do dedo mínimo da mão esquerda são muito mais contundentes do que para umajudante de caminhão. Uma datilógrafa poderá ter uma feia cicatriz no rosto, mas não umarecepcionista. Em síntese, a marginalidade existe entre nós, como existe em todos os países do mundomoderno. Ao analisarmos a história da humanidade descobrimos que o indivíduo deficientequase sempre foi relegado a segundo plano, quando não apenas tolerado ou exterminado. Verificamos, no entanto, que segmentos mais esclarecidos e politizados de nossasociedade, bem como parcelas significativas de nossos programas oficiais de assistência àpopulação, preocupam-se e armam-se para dar cobertura àqueles que sofrem asconseqüências da marginalização. Todos sabemos que essas providências não são fáceis,nem baratas, o que também nos leva a raciocinar em termos do desafio que significamatividades às vezes conhecidas como programas de reabilitação, programas de reinserçãosocial ou de integração social, sem que haja plena consciência de seu escopo e do seu valor.

Fica conosco a dúvida: "Por que existem esses programas"? Em que tipo de raciocínio prático ou de princípios filosóficos, ou mesmo de racionalismosbaseamo-nos para dedicarmos tempo e dinheiro destinados ao atendimento a portadores dedeficiências? Qual é o verdadeiro significado da integração social das pessoas deficientes?

CAPÍTULO SEGUNDO O SIGNIFICADO DA INTEGRAÇÃO SOCIAL DAS PESSOAS DEFICIENTES

Para muitos de nós o problema de integração de uma pessoa deficiente na sociedade éapenas questão de acomodação adequada, de equipamentos especiais, de arranjos práticos,de tratamento físico eficiente e muito pouca coisa mais. Acreditam muitos que a"integração" acontece naturalmente se a pessoa simplesmente voltar ao seu ambienteoriginal com o auxílio dos recursos que a medicina coloca à sua disposição e com a remoçãode alguns obstáculos físicos. Claro que esses fatores todos são importantes. No entanto, a desejada integração nãoacontece naturalmente; ela é resultante de um complexo processo cuja necessidade esignificado pretendemos aqui estudar e discutir - ou seja, ela não é uma "volta", pura esimples. Antes de mais nada cumpre que notemos o seguinte: há pessoas que hoje têm umadeficiência e que por causa dela sentem-se marginalizadas, quando na verdade podem tervivido e trabalhado em sua comunidade - antes da deficiência - sem ter estado realmenteintegradas nela. Viviam independentemente fazendo o que bem entendiam, sem se importarcom o mundo ao seu redor. Quando uma pessoa desse tipo torna-se deficiente, percebe quenão era tão integrada à sociedade quanto pensava. O contato restrito com os demais (que apessoa nota pela primeira vez quando adoece ou quando se torna deficiente) acabaassociando-se com a presença da deficiência. Se desejarmos trabalhar pela integração de pessoas deficientes na sociedade maior, émuito importante perceber que uma simples tentativa de fazê-la "voltar" à situação anterior àdeficiência muitas vezes não é suficiente. Outro fator muito importante a ser lembrado é que a personalidade de uma pessoadeficiente não é a mesma antes e depois da deficiência surgir em sua vida. Se atuamos nosentido de colaborar para que a pessoa portadora de uma deficiência atinja o grau melhorpossível de integração na sociedade, devemos estar preparados para ajudá-la a compreender-se melhor e a entender sua nova visão de vida, com a existência das limitações impostas peladeficiência. E isto é especialmente verdadeiro com aquelas pessoas deficientes que, antes dese tornarem deficientes, jamais se haviam preocupado com opções, com o significado de umbom ajustamento pessoal, e de repente notam a importância de tomar uma séria decisão facea esses requisitos invisíveis mas muito concretos e inseridos na vida social e familiar. Assimo processo de integração que a pessoa marginalizada por uma deficiência vive jamais poderáser estacionário, pois move-se continuamente numa direção ou noutra: seja na direção deuma boa integração, seja na direção da segregação e do isolamento cada vez maiores. Etodos os que trabalham em reabilitação ou que mantêm contatos com pessoas deficientesinfluenciam esse processo, quer o queiram, quer não. O processo de integração não acontece de repente ou só porque a pessoa deficiente de umlado, e o grupo social de outro, assim o decidem; ele demanda tempo para atingir suaplenitude e a plena consciência de todas as suas implicações. Em todas as comunidades e em todos os tempos encontramos pessoas que por algumarazão são segregadas, individualmente ou em grupos. Talvez elas mesmas tenham procuradoo isolamento, mas em muitos casos elas são simplesmente excluídas da sociedade. Algumasresignam-se à situação, outras protestam contra isso. Há alguns anos atrás o indivíduoportador de uma limitação física ou sensorial cedia à evidência de fazer parte de um grupomarginalizado e marcado. Hoje a situação está ficando cada vez mais diferente entre nós,

seguindo as tendências mundiais. As pessoas deficientes protestam e com muito boas razões.Elas demandam participação total em igualdade de condições; de sua parte a sociedade exigea contrapartida, ou seja, competência pessoal e profissional, independência de atuação,comunicação adequada, comportamento social aceitável e um papel definido. Nesse processo todo é muito importante que haja muita compreensão de todos os lados,pois a integração verdadeira só poderá ocorrer como resultado de cooperação entre duaspartes. Por essa razão resolver os problemas apenas em parte ou só de um lado não solucionará aquestão. Não é só a pessoa deficiente que deve ser trabalhada, mas também a realidadesocial na qual a integração é pretendida, para que todos entendam os problemas em suacomplexidade e ajudem na busca de suas soluções. Embora muitos peçam ou exijam mesmo a integração em bases equânimes, essaintegração é um sonho impossível. A sociedade não poderá jamais integrar uma pessoasequer. Ela poderá apenas oferecer as possibilidades de integração e ficar disponível paratanto. O trabalho de chegar a essa situação integrada dependerá da própria pessoa deficiente. Muitas pessoas que são marginalizadas procuram escapar a essa faceta do processo,esquecendo-se que apenas elas poderão atingir esse objetivo, responsabilidade da qualjamais poderão escapar. Os progressos da medicina, os recursos técnicos e a organização de serviços dereabilitação global poderão tornar o processo de integração bem menos difícil.

- *A complexidade do desafio* Por mais paradoxal e estranho que possa parecer, certos segmentos da sociedade em quevivemos colocam de lado o homem indesejável e que consideram fora dos padrões deaceitabilidade, enquanto que, ao mesmo tempo e muitas vezes dentro de uma idêntica áreageográfica restrita, outros setores da mesma sociedade procuram montar programas deassistência e proteção a esse mesmo homem. Dependendo muito do grau dedesenvolvimento da área em que as situações concretas acontecem esses pretendidosprogramas de atendimento podem chegar a ser bastante diversificados, indo desde a meraassistência segregativa e estigmatizadora, até modernos e sofisticados centros de reabilitaçãoou serviços de integração social. Que motivos poderiam ser tão fortes e tão ponderáveis para levar uma sociedade toda, oualguns de seus setores, a canalizar esforços, recursos financeiros, voluntariado e outrosprogramas das mais variadas naturezas para o desenvolvimento dessas atividades? Que tipode raciocínio lógico poderia ser tão convincente para levar autoridades a dar prioridade aprogramas tão complexos e de tão difícil concretização? Estaria a sociedade apenasinvestindo em reabilitação devido à sua preocupação com a solidariedade para com seusmembros mais fracos? Estaria ela preocupada com a magnanimidade que precisa demonstrarpara com os mais fracos? As injustiças que assolam nossa sociedade e a ameaça que elas representam levaram oPapa João Paulo II a assim se expressar em São Paulo no seu famoso encontro com osoperários: "O bem comum da sociedade requer, como exigência fundamental, que asociedade seja justa! A persistência da injustiça, a falta de justiça, ameaça a existência dasociedade de dentro para fora, da mesma maneira que tudo quanto atenta contra a soberaniaou procura impor-lhe ideologias e modelos, toda chantagem econômica e política, toda forçadas armas pode ameaçá-la de fora para dentro. Esta ameaça a partir do interior existerealmente quando, no domínio da distribuição de bens, se confia unicamente nas leiseconômicas do crescimento e do maior lucro; quando os resultados do progresso tocam

apenas marginalmente, ou não tocam em absoluto, as vastas camadas da população; elaexiste também, enquanto persiste um abismo profundo entre uma minoria muito grande dericos de um lado, e a maioria dos que vivem na necessidade e na miséria, de outro lado. Todo aquele que trabalha em programas de promoção humana ou desenvolve atividadesde atendimento - profissionais ou voluntárias - a grupos marginalizados, e basicamente todosaqueles que vivem uma situação concreta de marginalidade, prefeririam que a sociedade seenvolvesse nessas atividades principalmente devido ao reconhecimento quanto ao valor dohomem - mas isso nem sempre ocorre, uma vez que a sociedade dos homens mobiliza-seapenas de acordo com as circunstâncias, os interesses de grupos e as pressões que sobre elasão feitas. A sociedade mobiliza-se, por exemplo, diante de grandes desastres, de acontecimentosespeciais ou anormais, de catástrofes, porque esses eventos provocam mal-estargeneralizado, trazem desconforto, ameaçam a estabilidade da família e da sociedade, pondoem risco a propriedade. As sociedades mais evoluídas têm demonstrado uma crescente preocupação não apenascom seus membros mais problemáticos ou anormais, mas também com grupos minoritáriosque acabam sendo prejudicados por atitudes preconceituosas. A despeito dessa preocupaçãocrescente, nossa civilização tem dado mostras de suas fraquezas e de suas inconseqüências.Todos nós estamos acostumados e mesmo cansados de ouvir palavras ponderadas ealtamente recomendáveis, ou ler estudos muito bem elaborados e louváveis quanto ao valordo homem, em contraposição a atuações de caráter aviltante e desumano. Tem-se a nítidaimpressão de que o indivíduo é visto por prismas que provocam espectros distorcidos,irreconhecíveis e que não correspondem a um mínimo desejável e mesmo esperado. "Talvez uma das mais evidentes debilidades da civilização atual esteja na inadequadavisão do homem. A nossa época é, sem dúvida, aquela em que mais se escreveu e falousobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo. Entretanto,paradoxalmente, é também a época das mais profundas angústias do homem com respeito àsua identidade e destino, do rebaixamento do homem a níveis antes insuspeitados, época devalores humanos espezinhados como jamais o foram antes" (João Paulo II - no Encontrocom os Construtores da Sociedade Pluralista, em Salvador, no dia 7 de julho de 1980). Os programas destinados à adequada assistência ao homem marginalizado ou em francoprocesso de marginalização, e à sua integração à correnteza principal da sociedade, muitoembora dispendiosos e de difícil concretização, sempre foram verdadeiras e inquestionáveisdemonstrações da existência de uma sociedade voltada para os valores do ser humano etambém da objetividade de seus propósitos. Segundo alguns autores, mede-se o nível dedesenvolvimento e o grau de cultura de um povo pelo tipo e pela qualidade de preocupaçãoque demonstra para com os seus grupos minoritários e marginalizados, ou para com ospobres. Mas por que falarmos em "integração social" que é tão complexa e problemática? Nãoseria suficiente para a sociedade falar apenas em "assistência social", em "abrigo", em"institucionalização"? Por que não a separação pura e simples desses marginalizados oumarginalizáveis, como se faz, institucionalmente, com todos os elementos que podem causarperigo ou preocupação séria à sociedade? Talvez a sociedade tivesse muito maistranqüilidade se pudesse colocar, internar, segregar em organizações especiais aqueles quesão rotulados como "débeis mentais", "leprosos", "tuberculosos", "cancerosos", "paralíticos","cegos", "surdos" e ainda os "maloqueiros", "favelados", "pedintes", "trombadinhas","viciados em drogas" e outros mais que, sob os olhos dessa sociedade comodista constituem

a legião dos miseráveis, ou dos assim chamados "carenciados", "excepcionais", dos dias emque vivemos.

- *A integração social e seus porquês* Motivos para qualquer sociedade do mundo moderno e progressista valorizar o serhumano existem do sobejo. Muitos desses motivos, já estudados e arrolados, fazem partequase que obrigatória das Declarações Universais de Direitos do Homem, da Criança e daMulher. Mais recentemente a Organização das Nações Unidas, por meio de sua AssembléiaGeral, aprovou Declarações dos Direitos da Pessoa com Retardo Mental, da PessoaDeficiente e outras mais. Ao que nos parece, os motivos de que estamos falando são mais doque suficientes para o surgimento de programas destinados à assistência adequada e àintegração social de todos os grupos existentes na sociedade, mesmo que marginalizados.Não há, na verdade, necessidade de mais Declarações de Direitos. Há, sim, necessidade decolocá-las em prática, em todos os quadrantes de qualquer nação, pois estamos falando dohomem, a respeito do qual já se falou e escreveu tanto e tão bem, e pelo qual tão pouco temsido feito de concreto. Existem alguns tipos de considerações bastante convincentes que têm sido decisivas parao estabelecimento de programas objetivos das mais diversas naturezas, especialmente osdestinados à integração de grupos humanos colocados à margem da sociedade. No entanto, para não dispersarmos muito e entrarmos em divagações quanto à miríade defacetas existentes nos grupos especiais até aqui indicados, limitemo-nos a considerar oproblema de uma significativa parcela dessa população: os chamados "deficientes". Por "pessoas deficientes" entendemos todas aquelas que estão abaixo dos padrõesestabelecidos pela sociedade como de "normalidade", por motivos físicos, sensoriais,orgânicos ou mentais, e em conseqüência dos quais vêem-se impedidas de viver plenamente. Dentre as considerações mais relevantes e que têm sido utilizadas em muitas partes domundo para o estabelecimento de adequados níveis de prioridade e para a montagem deprogramas, podemos destacar as seguintes: a) *O elevado número de pessoas consideradas como "deficientes".* Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas e de suas AgênciasEspecializadas, o problema é dos mais graves, pois, "pelo menos 10% da população dequalquer país do mundo sofre de algum tipo de incapacidade física ou mental, sendo dasformas mais prevalescentes a limitação física, a doença crônica, o retardo mental e asincapacidades sensoriais". "Há mais de 400 milhões de pessoas deficientes no mundo" ("Rehabilitation of theDisabled - The Social and Economic Implications of Investments for this Purpose", UnitedNations). Infelizmente a dimensão desse problema não está vivamente impressa e muitas dasautoridades brasileiras o ignoram. A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,que ao final de 1980 realizou nosso recenseamento geral, não incluiu nos dados pesquisadosqualquer menção ao problema discutido aqui, de forma que precisamos continuar a utilizaras estimativas internacionais. Dessa forma, já que temos uma população de mais de 120 milhões de pessoas, temos maisde doze milhões delas com problemas limitadores e que as bloqueiam de uma plenaparticipação na sociedade. Segundo depoimento de Norman Acton, Secretário Geral daRehabilitation International, órgão consultivo da ONU, através de seu Conselho Econômicoe Social, "desconhecendo as reais dimensões da deficiência e suas muitas conseqüências,nossos planejadores, nossas instituições e nossos governos, com poucas exceções, não tem

dado atenção, prioridade ou apoio adequados a programas nesse campo. Desinformadosquanto à real natureza do problema, nossos cidadãos tentam ignorá-lo ou evitá-lo, deixandoa responsabilidade nas mãos das profissões e das instituições especializadas. Por vezes semconta nossas comunidades lidam com esses problemas, escondendo as pessoas seriamentedeficientes atrás dos muros de suas casas, ou então, nas áreas residenciais mais sofisticadas,por detrás das cercas-vivas dos jardins de rosas. A idéia de que nossos modernos conceitosde direitos humanos se estendam aos portadores de deficiências físicas e mentais é hoje maisrevolucionária do que a própria doutrina de Karl Marx" ("The Global Dimensions ofDisability", de N. Acton). Conforme indicamos no capítulo anterior, o volume de pessoas deficientes já é muitogrande na forma como é considerado pelos órgãos internacionais. Se adicionarmos a ele osgrupos de pessoas que são vítimas de outros males de natureza repulsiva ou de desvios deconduta, e ainda por cima somarmos aqueles indivíduos que ganham insuficientemente paraviver e sustentar a própria família, os que habitam sub--normalmente, os desajustados tecnológicos, os que são privados da assistência médica, osque passam fome crônica, os que não tem acesso à educação e à previdência social - etambém aqueles que não conseguem livrar-se dessas situações, ou seja, os deficientessociais, certamente que formaremos uma visão desalentadora.

b) *O valor próprio do ser humano* A idéia de se colocar o ser humano à margem da sociedade, sem que se estabeleça ou semque se possibilite um caminho de retorno, não é aceitável, pois o homem tem o direito defazer parte da correnteza principal da sociedade que gera e que consome bens, pelo simplesfato de ser um indivíduo dono de um valor intrínseco próprio e inalienável. Só mesmo a ignorância maliciosa e o barbarismo primitivo ou ultra-moderno de atitudeschegam a negar a importância que o homem tem como componente da sociedade e como serindividualizado. O ser humano pode, de fato, chegar a situações de marginalidade tal que sócom um preparo extraordinário passará a ter condições de ser assimilado pela sociedade.Ninguém pode se esquecer de que uma das características principais do homem é a suaperfectibilidade, ou seja, sua capacidade de melhorar sempre e de se superar. Além disso,nenhum grupo social pode se arrogar o direito de impedir um de seus membros de atingir omáximo do seu potencial latente, pois o direito à realização pessoal é muito próprio dohomem, independemente das diferenças individuais de cor, sexo, idade, credo, atividadespolíticas ou profissionais, ou das prioridades governamentais. A sociedade que assume as atitudes que são demonstrativas de sua posição decomiseração, de caridade piegas, de assistencialismo, monta seu próprio estilo de ajuda agrupos marginalizados que é muito característico, pois apresenta quase que exclusivamenteprogramas de natureza segregativa e assistencialista. São os orfanatos, os asilos, os lares, ascolônias especiais que se localizam longe dos núcleos populacionais, os internatos das maisvariadas naturezas, as casas especiais e muitos outros "recursos" da comunidade. No entanto, na medida em que a sociedade se conscientiza e raciocina concretamentequanto ao valor do ser humano, ela tende a se aparelhar para atendê-lo adequadamente epassa a demonstrar essa preocupação pelo desenvolvimento de programas muito maisdestinados à promoção humana, à libertação do homem da dependência odiosa, e à suaintegração ao grupo social. Embora todos acreditemos no valor próprio do ser humano, é necessário que se faça umaséria parada para um exame crítico, a fim de que passemos todos de uma cômoda posição

teórica, muitas vezes bem verbalizada, para uma atuação concreta, com o estabelecimento deprogramas objetivos de valorização do homem.

c) *O valor econômico da mão-de-obra não utilizada* Em qualquer realidade existe elevado percentual de elementos considerados naturalmentecomo não-produtivos, ou seja, crianças e pessoas em idade avançada principalmente. Essevolume é aumentado por pessoas enfermas, por pessoas aposentadas precocemente e porcontingentes populacionais marginalizados da força produtiva por muitos motivos epretextos. As pessoas portadoras de deficiências físicas, sensoriais, orgânicas, funcionais ementais encontram-se nessa situação, com a agravante de não só deixarem de produzir,como também de, apesar de terem potencial para o trabalho, serem ônus para a sociedade. No entanto, segundo Ballester Hoys, "nenhum país pode considerar-se hojesuficientemente rico para desprezar a mão-de-obra do incapacitado" (Apud Gonçalves). E,de fato, se raciocinarmos um pouco, verificaremos que, se dos 10% da população que évítima de males incapacitantes, pelo menos 25% estivessem de alguma forma engajados naprodução de bens e serviços, não estariam apenas consumindo e dependendo de elementosmais produtivos, recebendo por vezes a contragosto auxílios dos cofres públicos ou daprevidência social. Em termos de realidade brasileira, essa mão-de-obra em potencialpoderia chegar a mais de 3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, em idadeadulta, cujo objetivo principal de vida é trabalhar e sair da desagradável situação dedependência e de contínua frustração. O desemprego, a dependência econômica, o sub-emprego desumanamente remunerado eatividades muito pouco rentáveis são fantasmas que rondam significativa parcela dapopulação em nossa sociedade repleta de contrastes e injustiças. No entanto, quando oemprego mal remunerado, o sub-emprego ou o desemprego ocorrem pura e simplesmentedevido à existência de uma deficiência ou incapacidade de natureza física ou sensorial, ou delimitações orgânicas e mentais, eles passam a se tornar muito mais injustos e inaceitáveis,por melhores explicações que possam ser dadas ou encontradas para sua existência. Uma das principais tônicas de programas de bem-estar social com populações carenciadase/ou marginalizadas deve ser a preocupação com o trabalho, ao qual elas têm direito. Osnossos governos - a nível federal, estadual e municipal - têm papel relevante nessa grandebatalha de assimilação de mão-de-obra potencialmente produtiva, estando nela tambémengajados, além do poder público, o comércio, a indústria, o mundo dos serviços. Existem especialistas no assunto que se opõem à assimilação da mão-de-obra das pessoasdeficientes em detrimento daquelas pessoas|não-deficientes desempregadas, como se aspessoas deficientes fossem meros cidadãos de segunda classe, com direito à sobrevivênciaapós garantida a vida das pessoas consideradas como "normais". Esses argumentos são, nomínimo, "parvos", excessivamente pequenos para poderem ser levados em consideração.Cremos que talvez a colocação do argumento no sentido inverso poderia ser menos injusta,ou seja, aproveitamento da mão-de-obra das pessoas deficientes prioritariamente.

- *Os princípios básicos da reabilitação* Essas poderiam ser as três pilastras básicas para garantir o desenvolvimento deprogramações destinadas a minorar toda essa gama de dificuldades, através da integraçãosocial. Se realmente pensamos em integrar socialmente o homem marginalizado eprejudicado por certos tipos de deficiências, temos a obrigação de nos inteirar de comoiremos conseguir essa integração. Se as estimativas das organizações internacionais deinquestionável credibilidade são válidas para a nossa realidade - e por que não o seriam? -

precisamos analisar com muito cuidado em que ponto estamos na assistência adequada aesses grupos especiais de seres humanos que se vêem prejudicados em todos os seus direitos,inclusive no direito de participar. Muito embora possamos relacionar diversos pontos de partida para o deslanche deprogramas tendentes a resolver os problemas que levam as pessoas portadoras dedeficiências à marginalidade social (como, por exemplo, o estabelecimento de prioridadesgovernamentais nesse campo, incluindo ações de prevenção de impedimentos, atividades dedetecção precoce das deficiências e seu atendimento, financiamento de programas deatendimento especializado, garantia da formação de pessoal para essa atuação especial,organização de esquemas que garantam a profissionalização de pessoas deficientes,programas educacionais próprios, revisão da Consolidação das Leis do Trabalho,regulamentação da Emenda à Constituição Federal de n°. 12/78 e muitos outros), não hádúvida que o desafio maior estará sempre na interiorização individual e na aplicação de tudoaquilo que pode ser chamado de credo no homem: - O ser humano, mesmo portador de deficiência e marginalizado, tem um valor próprio,intrínseco e inalienável. Tem, portanto, direito a todo o respeito devido a qualquer indivíduo. - A dignidade do homem independe de sua inteligência, raça, credo, idade, sexo, ideologiae integridade física. - Ele é único, complexo e diferente de todos os seus semelhantes; ele só poderá serconsiderado globalmente e nunca em partes estanques. - O indivíduo, mesmo que marginalizado, tem um potencial que deverá ser enfatizado,apoiado e fomentado, pois todo homem é perfectível e tem condições de se superar. - Todo ser humano faz parte de uma sociedade na qual deverá ter seu papel; o indivíduotem também seu valor econômico como colaborador em potencial no processo de produçãode bens e de serviços. - *O despreparo nos programas reabilitacionais* Os problemas físicos, psicológicos, sociais, educacionais e de natureza profissional sãoaqueles que marcam a grande maioria dos casos de marginalização devido a deficiênciasdiversas, demandando soluções que jamais poderão olvidar o homem como um todo. Aotrabalhar com a problemática das pessoas deficientes, porém, a maioria de nossasorganizações, de orientação simplista ou puramente tecnicista (pseudo-técnica), consideramque a grande questão está relacionada apenas à eliminação ou redução quando não, àcamuflagem - da deficiência. Esquecem-se que o indivíduo sem uma perna ou sem umbraço, que não pode fazer uso da visão ou da audição, estigmatizado por algum mal ouincapacidade, faz parte (ou deveria fazer parte) de grupos e deseja legitimamente seu lugarna sociedade, sentindo que tudo isso está fora de foco e ameaçado. Esquecem-se essasentidades - e os profissionais nelas inseridos - que esse mesmo indivíduo, já frustrado emagoado, pode ter desenvolvido e adotado hábitos inadequados, apresentando umcomportamento inaceitável. Mais do que tudo isso, esquecem-se que esse indivíduo deficiente poderá ter algo a dizer ea contribuir quanto à evolução de seus problemas e das perspectivas para sua solução. Nessa infeliz somatória de atitudes de esquecimentos, de “não-lembrancas”, de “estar-fazendo-um-grande-favor”, de “a-gente-já-faz-muito-por-você-que-é-um-coitado-e-não-reconhece” - intencional ou não - percebemos uma velada e latente descrença no homemdiminuído, feito escravo das situações e das pessoas, que não tem importância em termossociais, cujos direitos são analisados e avaliados só muito contingencialmente.

As organizações a respeito das quais comentamos acabam se esquecendo de que amarginalidade do indivíduo ocorre por uma série de motivos e não apenas devido àexistência de uma anomalia, de uma deficiência física ou sensorial, por exemplo. Naverdade, a marginalidade surge no momento em que, além da deficiência apresentada,ocorrem limitações de graus e naturezas os mais variados quanto à estabilidade junto aogrupo e, de um modo todo especial, quanto a desvantagem sentida, pesada pelo próprioindivíduo, que é vítima do mal, da falta, da carência, da anomalia e de suas conseqüências.

- *A complexidade do trabalho de equipe em reabilitação* Conseqüentemente, para a integração social de um indivíduo que já está colocado àmargem dos grupos principais da sociedade, a questão não se limita e jamais poderia selimitar à mera solução de um problema físico, como não poderia se limitar à simplesobtenção de um emprego remunerado. A integração social ocorrerá, de fato, desde que seobtenha o pleno envolvimento do indivíduo atingido, e mais, se desenvolva com ele umtrabalho de reaquisição de valores perdidos, de sua dignidade, de seu amor próprio, de seureal sentido de homem. Trabalho de tal natureza só poderá ser desenvolvido em condições especiais, incluindoobrigatoriamente atividades que levam à valorização pessoal. Além disso, por menosagradável que possa parecer, é bom também que essas atividades mostrem ao indivíduo aimportância que pode ter em sua vida a criação ou a mudança de hábitos e de atitudes, odesenvolvimento de comportamento que a sociedade aceite, por estar de acordo com aquiloque ela espera de cada um daqueles que dela pretende participar e nela ter um papel definidoe digno. Estamos caracterizando, dessa forma, um trabalho que jamais poderia serresponsabilidade de uma pessoa só, requerendo uma atuação integrada e uma ampla epermanente colaboração da comunidade. Na verdade, é somatória de esforços nos quais dão-se as mãos diversos profissionais, tais como médicos, enfermeiros, assistentes sociais,fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fonoaudiólogos, além de educadores econselheiros diversos, para ajudar cada indivíduo a se definir quanto aos seus objetivos devida, numa situação de plena participação na vida da comunidade.

- *Os programas necessários em nosso meio* Trabalho dessa natureza e qualidade poderá ser desenvolvido em organizaçõesespecificamente criadas para esse fim, ou seja, em centros de reabilitação, cuja organizaçãoe manutenção não são de natureza nem fácil nem barata. Programas de integração a nível decomunidade, com o uso de uma tecnologia menos dispendiosa são também recomendados,face ao nosso nível de desenvolvimento, tendo sido uma preocupação contínua daOrganização Mundial de Saúde desde os meados da década de setenta. Tanto centros de reabilitação quanto programas que utilizam tecnologia mais simples emenos cara requerem profissionais muito bem preparados que, além de seus cursos básicos,dominam também uma série de conhecimentos adicionais relativos aos procedimentos e aoembasamento filosófico do processo de reabilitação e da própria integração social. Essaqualificação adicional e indispensável deverá ser sempre informada e alimentada poratitudes positivas quanto ao trabalho multiprofissional, sem as quais nenhum programapoderá ser produtivo e útil para quem dele necessita e muito mais do que isso, por atitudesde verdadeira e genuína crença no ser humano, em sua dignidade, em sua perfectibilidade, ede respeito ao indivíduo como ele é e onde ele está ou pretende ficar.

CAPÍTULO TERCEIRO ADEQUAÇÃO PESSOAL - O OBJETIVO ULTIMO DA REABILITAÇÃO

Analisamos anteriormente algumas idéias quanto às dificuldades que podem levarindivíduos a situações sérias de marginalização; formulamos alguns princípios básicos sobreos quais programas de assistência a esses mesmos indivíduos podem basear-se; delineamosas condições fundamentais para um envolvimento da sociedade face a essa problemática; echegamos à conclusão que os serviços destinados a dar apoio e cobertura de naturezaintegral a pessoas que vivem em situações dessa natureza não podem deixar de cobrir asnecessidades essenciais do ser humano, em todos os sentidos. Verificamos também, que praticamente todos os desvios da normalidade podem serconsiderados negativamente pelo grupo social e muitas vezes pela própria pessoa atingida,especialmente quando a anomalia provocadora do desvio não é bem aceita ou bemcompreendida. Para especialistas em reabilitação, essa anomalia poderá chegar a significaruma “perda”, uma “restrição” ou um “bloqueio” a atividades usuais tais como andar,escrever, olhar, contar e outras - ou seja, uma deficiência; poderá também significar uma“desvantagem” - isto é, uma incapacidade. - *Impedimento, deficiência e incapacidade* Nunca será demais repetirmos um pouco o raciocínio a respeito dessa questão, uma vezque não estamos aqui discutindo apenas ângulos de sinônimos, pontos de semântica, mas deconceituações que são fundamentais para quem pretende compreender esses problemas esuas soluções. Assim é que, verificada a “anomalia”, o “defeito físico ou mental”, a “falta deum membro” (e tudo isso é reconhecido no Brasil como “impedimento”), temos instaladoalgum grau de deficiência, ou seja, o indivíduo não ouve, não fala, não vê, não anda; ouvemal, fala mal, enxerga mal, anda mal; não leva a mão à boca, não tem controle deesfíncteres. São conseqüências diretas da anomalia no funcionamento da pessoa. Portanto, apessoa deficiente é aquela que vive em situações de bloqueios eventuais ou permanentes, emconseqüência de um mal, perda ou restrição. “Incapacidade” já e algo diferente. Na verdade, é o resultado da deficiência somado àsconseqüências pessoais e sociais, com evidente prejuízo para o ser humano. No sentido de caminhar para uma uniformidade de conceitos, muitos profissionais têmadotado uma nomenclatura próxima àquela publicada pela Organização Mundial de Saúde eque foi inserida num importante documento da Rehabilitation International,em cooperaçãocom o UNICEF, ou seja, “A Deficiência Infantil: Sua Prevenção e Reabilitação”. A guisa de esclarecimento: essa nomenclatura ou classificação terminológica é aquitranscrita: “Impedimento: um dano psicológico, fisiológico ou anatômico, permanente ou transitório,ou uma anormalidade de estrutura ou função”. “Deficiência: qualquer restrição ou prevenção na execução de uma atividade, resultante deum impedimento, na forma ou dentro dos limites considerados como normais para o serhumano”. “Incapacidade: uma deficiência que constitui uma desvantagem para uma determinadapessoa, porque limita ou impede o desempenho de uma função que é considerada normal,dependendo da idade, sexo, fatores sociais e culturais, para aquela pessoa”.

O documento prossegue com esclarecimentos que são relevantes para a diferenciaçãodesses conceitos, ao afirmar: a) Um impedimento pode ser uma parte do corpo, ausente ou defeituosa; uma pernaamputada, uma paralisia pós-poliomielite, diminuição da capacidade pulmonar, diabetes,miopia, retardo mental, diminuição da capacidade auditiva, deformação da face, ou outracondição anormal. b) Deficiência como resultado de um impedimento pode consistir de dificuldade demarcha, visão, fala, audição, escrita, de contar, de levantar-se ou de interessar-se em fazercontato com o meio-ambiente. c) A deficiência pode tornar-se uma incapacidade quando interfere com a execução do queseria normal em determinada época de uma vida. Crianças com deficiências podem tornar-seincapacitadas para cuidar de si próprias, relacionar-se socialmente com outras crianças eadultos, manifestar seus pensamentos e preocupações, aprender na escola e fora dela edesenvolver a capacidade para atividade econômica independente (A Deficiência Infantil:Sua Prevenção e Reabilitação, da RI/UNICEF). Pormenorizando um pouco e referindo-nosao que foi expresso no Capítulo Oitavo, a incapacidade (o handicap dos ingleses e norte-americanos) ocorre quando existe a desvantagem - e esta acontece sempre que exista asomatória de três tipos de bloqueios ou de limitações: os impostos pelo próprioimpedimento, objetivamente falando; os estabelecidos pelo grupo, ou grupos sociais, ou pelacomunidade da qual a pessoa deficiente é oriunda; e aqueles que o próprio indivíduoestabelece. Às vezes uma deficiência quase imperceptível pode ser transformada em incapacidadedevido basicamente as expectativas relacionadas aos propósitos, aos objetivos de vida dapessoa deficiente. Um nariz extremamente desproporcional poderá ser uma grande vantagema um comediante, enquanto que uma pequena cicatriz no rosto poderá determinar o fim decarreira de uma estrela de cinema.

- *Programas de reabilitação global* Muitas deficiências, quando transformadas em incapacidades, levam as pessoas atingidasà marginalidade de algum tipo, provocando muitas vezes situações de tal natureza ecomplexidade que apenas serviços especializados poderão possibilitar sua reintegração nasociedade. Tais problemas ocorrem principalmente nos casos de desvios mais evidentes oulimitadores, como os desvios motores, sensoriais e orgânicos, e muitos de natureza neuro-psiquiátrica grave. Para situações dessa natureza criou-se aquilo que é convencionalmenteconhecido como programa de reabilitação. Esse programa destina-se a prover serviços especiais e especializados para possibilitar àpessoa deficiente superar dificuldades de ordem física, psicológica, social e profissional,sempre através da prestação de serviços de uma forma integrada por meio de equipesmultidisciplinares. O objetivo desse trabalho é levar a pessoa deficiente a uma participaçãomais completa em todos os aspectos de sua vida. O objetivo último da reabilitação é aindependência dos indivíduos, como membros da sociedade e não como meros recebedoresde serviços, em débito com ela, considerados sempre seus direitos, seus deveres e suadignidade. A solução global é necessária, pois o indivíduo, ser complexo e potencialmenteconsiderável, repleto de respeitabilidade e de valor, não pode deixar de ser consideradoquanto às suas necessidades de ajustamento físico, psicológico, social e profissional. E todosos serviços de reabilitação precisam invariavelmente envolver a pessoa deficiente nos

programas de tomada de decisão que ocorrem, pois ela é o agente principal de sua integraçãosocial. Embora seja possível encontrarmos situações especiais, nas quais, conforme o tipo deproblema físico ou mental apresentado, a tônica do recurso em discussão possa serligeiramente alterada, basicamente o que se deve pretender em reabilitação é uma adequaçãopessoal que poderá ser obtida com o concurso de três áreas principais de atuação técnica,que podem ser identificadas como: - condicionamento físico; - ajustamento psico-social; - ajustamento à vida de trabalho.

- *Condicionamento físico em reabilitação* Qualquer recurso que seja destinado à reabilitação integral das pessoas deficientes, querdo físico, quer do sensorial ou do orgânico, e em muitos casos até das vítimas de problemasmentais e sociais, deve pretender levar o indivíduo à otimização de seu potencial físico. Aspessoas deficientes poderão ter ou não capacidade para se locomover para superar asdificuldades materiais de seu meio-ambiente, mas em um centro de reabilitação toda aequipe de profissionais deverá estar voltada para situações mais complexas e desafiadoras,pensando em termos do indivíduo lançado num ambiente absolutamente hostil e competitivoonde apenas o aspecto mobilidade não chega a ser satisfatório. Deve-se pensar e programarem termos de uma movimentação diuturna de casa para o trabalho, com qualquer tipo detempo e condução, na deambulação e movimentação dentro do trabalho, na volta para casa etodas as demais circunstâncias previsíveis ou não, mas que o indivíduo precisará superar. Um programa reabilitacional precisará, portanto, manter serviços que possam orientar apessoa deficiente a superar essas dificuldades de ordem física. Conforme situaçõesindividualmente consideradas, poderemos ter problemas com um ou dois membros inferioresamputados, com membros inferiores paralisados, com fraqueza generalizada, com vícios depostura, com rigidez muscular e muitas outras, para não citar problemas especiais compessoas que são cegas ou surdas, por exemplo. Além disso, poderemos encontrar situaçõesque requeiram assistência especial para membros superiores, como nos casos de amputações,paralisias, malformações e outras. Um recurso destinado à reabilitação deverá contar com alguns profissionais especialmentepreparados para levar a pessoa deficiente a superar dificuldades físicas, ou seja, médicosversados, experimentados ou formados em fisiatria,enfermeiras especializadas emreabilitação, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e técnicos em próteses e aparelhosortopédicos. Conforme o tipo de pessoas atendidas no centro de reabilitação, poderá serindispensável a presença de técnicos em aparelhos ortopédicos ou talvez a especialidademédica requerida não seja a fisiatria, mas a relacionada a problemas de visão ou de audição.No entanto, teremos sempre a presença de um grupo de profissionais voltados para o melhorcondicionamento físico possível das pessoas em atendimento e sua independência pessoal,pois, conforme foi já explicado, todo o potencial físico da pessoa deficiente deverá sermelhorado em muito para que ela possa enfrentar a vida em competição que a espera fora dorecurso de reabilitação. Um centro de reabilitação cuja clientela tenha problemas de ordem física deverá manterseus serviços de medicina física, de atividades da vida diária, de terapia ocupacional, defisioterapia, conforme as necessidades apresentadas pelas pessoas que se submetem aoprograma. As dificuldades mais sérias que encontramos neste aspecto dos centros dereabilitação não estão tanto na disponibilidade de pessoal, mas num correto conhecimento do

conteúdo de cada área e na sua respectiva coordenação. Dificuldades sem conta têm surgidoem programas de reabilitação graças ao eventual despreparo dos profissionais envolvidos - eisso é aplicável não só em condicionamento físico mas em todas as áreas - e o problematorna-se muito sério em condicionamento físico quando vemos médicos, fisioterapeutas eterapeutas ocupacionais digladiando entre si. Problemas surgem também quanto àsresponsabilidades face à programação usualmente reconhecida como de atividades da vidadiária, na qual por vezes chocam-se enfermeiras, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.

- *O ajustamento psico-social no processo de reabilitação* Uma das áreas de reabilitação que luta com grandes dificuldades é aquela que tem sob suaresponsabilidade o desenvolvimento de atividades destinadas a levar a pessoa deficiente aum bom ajustamento social e psicológico. Envolvem-se aqui alguns profissionais que atuamcom uma forte interdependência com as áreas de condicionamento físico e ajustamentoprofissional. Psicólogos, assistentes sociais e educadores, principalmente, desenvolvem assuas atividades procurando dar à pessoa deficiente condições de iniciar seu processoreabilitacional pela exata compreensão de seu problema e pela assimilação do significadoque ele pode ter em sua vida; desse ponto o processo poderá ter condições para umaevolução satisfatória e equilibrada, tanto nos aspectos físicos quanto pessoais ouprofissionais. Dentre as funções existentes num centro de reabilitação aquela assumida por assistentessociais, desde que considerada com profundidade e na sua globalidade, é das mais difíceis.Cabe a esses profissionais uma atuação que não só elimine os eventuais bloqueios àparticipação da pessoa deficiente em seu programa de reabilitação, mas também que as ajudeno necessário ajustamento à vida em geral, à situação familiar e ao seu grupo de referência. Distorções na organização de muitos centros de reabilitação limitam a atuação deassistentes sociais apenas e tão somente para resolver problemas que nunca saem dasdificuldades financeiras, questões ligadas a problemas de acesso ao centro, ou listas declientes que são oriundos de organizações financiadoras ou conveniadas. Nesses centrostodos os problemas práticos ou que possam dificultar a pessoa deficiente e sua família sãoencaminhados às cegas ao serviço social. Contatos mais profundos da pessoa deficiente como assistente social para discussão de problemas individuais relacionados às dificuldades deaceitação ou de assimilação do processo nunca ocorrem e ficam parecendo esdrúxulos. Emcentros nos quais assistentes sociais limitam seus papéis a essas funções simples e de merosprovidenciamentos, há um permanente corre-corre e os profissionais ou seus auxiliaresenvolvidos trabalham suas seis ou oito horas diárias duramente, mas não atingem o âmagode sua função precípua. Na verdade, não chegam nem a arranhar a problemática que é aprópria causa de sua inserção num centro de reabilitação. De um modo geral assistentes sociais envolvem-se numa avaliação social de triagem daclientela do centro de reabilitação. Essa avaliação em geral contém estudo e relato objetivoda situação familiar, do posicionamento da pessoa deficiente nela, da pessoa que buscareabilitação como integrante de uma vizinhança ou de um círculo de pessoas com as quais sevincula de alguma forma, do regime de sua vida familiar e seu ajustamento ao mesmo, dasdificuldades e das barreiras que demonstra como um ser social, de sua vida extra-familiar,seja escolar, seja de ordem cultural. Além disso, assistentes sociais podem ter um papel muito relevante na interpretação doprograma do centro de reabilitação, procurando, ao lado de outros profissionais, e com elesentrosados, levar a pessoa deficiente ao aproveitamento máximo da oportunidade que tem,

procurando afastar eventuais obstruções ao seu progresso, quer elas partam do própriocliente, quer partam de seus amigos e colegas, quer partam de algum profissional da equipe. Quanto ao psicólogo, teremos uma atuação muito significativa no processo de triagem,pois uma avaliação psicológica é fundamental a fim de que a equipe atue com propriedadeem cada caso. O valor de uma adequada avaliação psicológica não pode ser minimizado,pois é através dela que a equipe do centro de reabilitação terá condições de não só selecionarbem os casos, como também de trabalhar bem com eles. A avaliação preparada pelopsicólogo, devidamente complementada e feita por médicos e assistentes sociais, ajudará oprograma de condicionamento físico, o de avaliação e ajustamento ao trabalho, o detreinamento profissional, os vários aspectos e momentos de aconselhamento no centro e foradele, e facilitará a compreensão do cliente e a adequação do programa conforme suascaracterísticas e necessidades. Uma boa avaliação psicológica deverá conter tudo aquilo quepode ser conhecido como atividade intelectual, análise de personalidade e seus traçosprincipais, análise dos interesses e aptidões e a opinião do profissional quanto arecomendações e contra-indicações. Não pode nem deve ser um mero relatório de altasofisticação a ser inserido no prontuário do cliente, mas um instrumento de utilização práticapara toda a equipe. Deve ser claro e objetivo, com indicativos seguros quanto às aspiraçõesdo cliente e quanto às condições psicológicas de natureza positiva ou negativa, e daorientação do que ele necessita para melhorar. Durante o processo de reabilitação, o psicólogo poderá estabelecer um programa deassistência psicológica regular para casos que considerar oportunos face a dados em seupoder desde o processo inicial de triagem, ou para casos nos quais pode ocorrer umasolicitação da própria equipe do centro de reabilitação. Nem o assistente social nem o psicólogo podem atuar isoladamente em seus papéis narealidade de um centro de reabilitação. Hoje em dia, em centros de reabilitação de orientaçãomais moderna e objetiva, existe uma pequena equipe de ajustamento psico-social quetrabalha com o propósito de colaborar com a pessoa deficiente para que ela consiga seposicionar face às exigências da vida em competição e consiga assumir as responsabilidadescorrespondentes à vida independente. Essa atuação de alta necessidade inclui, em diversoscasos, educadores que desenvolvem programas de treinamento mental para tomadas dedecisão ou atividades práticas destinadas a levar a pessoa deficiente a um bom ajustamentopessoal, por meio da educação de base, em estreita colaboração com a programaçãoespecífica do serviço social e da psicologia.

- *Ajustamento à vida de trabalho* O trabalho muito contribui para a auto-estima e confiança e para determinar o status dapessoa adulta. Seu papel é de fundamental importância para o indivíduo obter um meio devida satisfatório e produtivo. Pode-se perceber, com muita clareza, a extensão com a qual otrabalho contribui para o bem-estar do ser humano, pelo grau de ajustamento emocional,físico e intelectual que pode provocar, desde que o trabalhador esteja nele bem ajustado. Esta observação é de um modo todo especial verdadeira com indivíduos portadores dedeficiências físicas ou mentais de alguma severidade, para os quais obstáculos para uma vidaútil e feliz no trabalho e na vida social assumem proporções bem maiores do que para outraspessoas que não têm problemas da mesma natureza. Estes pontos de reflexão nos chamam a atenção para a necessidade de um programa quenunca poderá deixar de ser completo, global, onde todos os aspectos da vida do ser humanoprecisam entrar em consideração. E em tudo aquilo que se relacionar, direta ou

indiretamente, à vida de trabalho, a adequação da pessoa deficiente às exigências de umaatuação produtiva requer um cuidado todo especial. Dentre os múltiplos requisitos para um programa dessa natureza, é fundamental que hajaum aconselhamento prático que ajude a pessoa deficiente a raciocinar com segurança quantoàs perspectivas reais do mercado de trabalho e das possibilidades dela ser por ele absorvida;é necessário que o centro de reabilitação estabeleça um método próprio destinado àavaliação do potencial da pessoa deficiente para a vida de trabalho, avaliação essa quedeverá ser capaz de indicar um trabalho específico que seja adequado não só ao físicoprejudicado, mas às aspirações do indivíduo. Além disso, torna-se necessário desenvolverprogramas de ajustamento a situações de trabalho, de treinamento profissional para dar àpessoa deficiente armas bastante poderosas para poder enfrentar o mundo competitivo dotrabalho, e de colocação e seguimento dos casos colocados, para garantia de seu sucesso. As dificuldades usuais que uma pessoa deficiente que tenha enfrentado o processo dereabilitação poderia encontrar para se integrar na sociedade produtiva, deve-se acrescentarproblemas relacionados a atitudes muito pouco adequadas que ela vai encontrar por parte desegmentos da sociedade. Devido a esses tipos de atitudes a reabilitação não pode deixar detrabalhar com o indivíduo para que ele domine quase perfeitamente as condições quepoderão facilitar sua aceitação como um ser normal. Os aspectos específicos do processo de reabilitação que se relacionam ao ajustamentoprofissional estão normalmente divididos em atividades que são variáveis, dependendo dotipo de centro e da orientação seguida; mas de um modo geral essas atividades englobam: - avaliação e ajustamento ao trabalho; - treinamento profissional; - colocação e seguimento dos casos. Para muitos centros de reabilitação essas atividades podem se confundir numa só,enquanto que certos recursos levam sua programação da área de ajustamento profissionalapenas até os aspectos de avaliação e ajustamento ao trabalho, deixando aos própriosreabilitandos a responsabilidade de obter e manter sua colocação. Teremos oportunidade demelhor analisar estes assuntos no capítulo especificamente dedicado a eles.

- *Hábitos, atitudes e comportamentos* Como em diversos outros tipos de empreendimentos, as tonalidades da programação deum centro de reabilitação também podem divergir e acabam dependendo não apenas daorientação de seu elemento diretivo, mas também do tipo, da adequacidade e daprofundidade de preparo de componentes de sua equipe de reabilitação. Por que existem os Centros de Reabilitação? Para prover um programa centralizado eindividualizado para pessoas portadoras de deficiências que vivem em situação demarginalização e que não conseguem sair dessa situação por seus próprios meios,procurando cobrir suas necessidades básicas em todos os sentidos, para com isso levá-las aum nível mais adequado possível de atuação individual e social. No entanto, um centro de reabilitação só poderá atingir esses propósitos com um trabalhomuito sério e voltado para a imperiosa necessidade de fazer com que pessoa deficiente seja“integrável” na sociedade. Para tanto, é básico que trabalhe não só com o físico ou com apreocupação de encontrar uma colocação ou re-colocação em trabalho competitivo, mas coma eventual alteração de hábitos, atitudes e comportamentos do indivíduo face à suadeficiência, face à família, à comunidade, ao mundo que nos cerca em todos os momentos denossa vida.

Assim, a questão não é apenas dar emprego a um portador de deficiência física que viveda caridade pública, mas levá-lo a lembrar valores médios e aceitos pela sociedade à qualpertence (ou pretende pertencer), que talvez ele tenha esquecido, perdido ou posto de ladoface às circunstâncias e à necessidade de sobreviver. O sentido de dignidade e o amorpróprio devem também ser trazidos à tona por meio de atividades próprias reforçadas pelaatuação de toda a equipe de reabilitação. Essas atividades específicas precisam ser criadas,pois elas favorecerão o ressurgimento ou a criação de hábitos, de atitudes e decomportamentos que a sociedade pode esperar de cada um daqueles que dela pretendemfazer parte. Em poucas palavras: A pessoa deficiente precisa ter meios para tornar-se“competente” para enfrentar as situações que esperam todos aqueles que são integrados auma vida social. Não é repetição desnecessária voltarmos a lembrar os princípios fundamentais dareabilitação, pois se considerarmos, de fato, que lidamos com pessoas que - apesar dadeficiência - têm dignidade, valor, potencial e direitos inalienáveis, é necessário queverifiquemos com critério se o centro ou programa de reabilitação do qual participamos nãosó mantém programação que esteja de acordo com esses princípios, mas também se essaprogramação funciona concretamente. Precisamos manter-nos alertas para o fato de que areabilitação, ou o processo de integração social que todos defendemos, não é apenas oresultado de um processo tecnológico ou do surgimento de grupos profissionais novos nocenário das profissões. Onde quer que esse programa se desenvolva com pujança ele éconseqüência de uma linha de pensamento humanista predominante, passado para a prática.O humanismo prático depende muito da atitude mental de cada um de nós em darimportância ao homem, às suas faculdades, ao seu potencial, à sua individualidade, à sualiberdade e ao seu bem-estar. Onde quer que essa tecnologia moderna surja só como conseqüência do progresso técnico,da mera importação de conhecimentos sem a indispensável depuração, ou do interessepuramente econômico de alguns profissionais, ela vacila e se descaracteriza no correr de suaimplantação. Há um certo ceticismo a respeito de alguns técnicos inseridos em reabilitação (sejam elesmédicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutasocupacionais, fonoaudiólogos, conselheiros de reabilitação - não importa) que não atentampara a necessidade de se conscientizar e de assumir uma linha de pensamentos básicosquanto ao homem que procuram atender e que nela permanecem apenas pela remuneraçãoou pela inexistência de opção para outras áreas. Existe também uma atitude de reserva paracom pessoas que apenas visam rentabilidade econômica, números, estatísticas, grandes emodernas construções e que se esquecem do homem portador de deficiência para o qual foicriado o processo de reabilitação. Considerada a expectativa que as pessoas deficientes têm quanto à atuação deprofissionais que se dedicam à reabilitação - sejam eles bem preparados ou não - aprogramação de um centro de reabilitação, completamente voltada para o ser humano comdeficiência, deverá estabelecer como sua meta última a integração social do indivíduo, masesta só poderá ocorrer bem se a sociedade estiver conscientizada e se o homem que nelapretende se integrar estiver bem consigo mesmo e se considerar como um membro útil deum grupo familiar e social.

- *A adequação pessoal e seu significado* Todo ser humano tem necessidades que precisam ser satisfeitas, objetivos a serematingidos, sonhos a serem colocados em prática, qualquer que seja seu nível intelectual, seu

tipo de personalidade, seu grau de cultura. E todo ser humano sente necessidade de eliminarou de minimizar desconfortos e dificuldades, como a fome, o cansaço, o sono, o fracasso, ainsegurança, a raiva, a pobreza, a carência. Precisa também satisfazer sua necessidade desucesso, de afeto, de segurança, de repouso, de “status” e outras mais. Muitos de nós atingimos esses objetivos sem dificuldades maiores e sempre que issoocorre existe uma automática retomada de equilíbrio que estava provisoriamente suspensopela presença do problema. O processo de ajustamento ou de satisfação de uma necessidade,no entanto, nem sempre ocorre na hora certa, desejada, ou desejável; ou na forma planejada,pretendida ou sonhada. Surgem barreiras diversas que podem impedir - e impedem mesmo -o indivíduo de eliminar o problema ou de satisfazer a necessidade sentida, em todo ou emparte. O que sucede, então? O ser humano utiliza-se de vários meios e de situações parasuperar essas dificuldades e não é sempre que os meios empregados são os maisrecomendáveis ou aceitáveis. E neste ponto do processo surge uma situação de óbviodesequilíbrio, de desajustamento, de quebra de princípios éticos, de infração a normasestabelecidas. É evidente que quando os objetivos são atingidos por meios normalmenteaceitáveis a pessoa sente aquela esperada sensação de realização, de alívio, eliminandocompletamente ou reduzindo o volume de atividades destinadas a contornar o problema e aatingir o alvo em mira. Psiquiatras e psicólogos têm estudado abundantemente as causas que dão origem anecessidades e a frustrações para o homem em geral. Aqui estamos interessados apenas e tãosomente naquelas advindas de motivos mais significativos que podem levar uma pessoa aum programa de reabilitação: uma deficiência física, sensorial, mental ou orgânica e todos osestigmas sociais criados contra ela. As deficiências podem trazer ao indivíduo tensões emocionais múltiplas, pois são fonteconstante de frustrações as mais variadas, dentro dos diferentes níveis de atuação do serhumano integrante de uma sociedade como a nossa. Todos nós – pessoas com ou semdeficiências - tomamos todos os dias diversas providências ou adotamos as mais variadasatitudes para satisfazer necessidades obstaculizadas por problemas vários que se interpõementre nossos desejos ou necessidades e o bem almejado. Isso acontece através daquilo que ospsiquiatras e psicólogos chamam de “mecanismo de ajustamento” a situações. Em qualquercompêndio de psicologia encontraremos explicações suficientemente claras a respeito e quenos mostram que mecanismos de ajustamento podem ser evidenciados por compensações,projeções, sublimações, racionalizações e diversos outros tipos de comportamentos. Essesmecanismos, que podem ser de fuga, de defesa, de ansiedade, dentre muitos outros, acabamlevando o indivíduo a criar hábitos por vezes inadequados, pouco aceitáveis ou combatidospelo meio em que vive ou do qual faz parte. É teoricamente admissível o enquadramento do homem a uma situação concreta, comcomportamentos considerados normais, mesmo que ele traga dentro de si motivos de sobejopara lançar mão de mecanismos de ajustamento os mais variados. Em reabilitação, todavia, apessoa deficiente revela às vezes comportamentos inadequados, com hábitos e atitudes quasesempre rejeitados pela sociedade. Ao trabalhar com pessoas deficientes, voluntários e mesmo profissionais razoavelmentebem preparados acham que a solução dos problemas da clientela de reabilitação poderáencontrar-se na eliminação, na diminuição ou na camuflagem pura e simples de umadeficiência. Há outros que consideram estar a dificuldade resolvida com a solução doproblema do trabalho remunerado. Entretanto muitos são os profissionais de reabilitaçãomelhor conscientizados da profundidade dos problemas que atingem a pessoa deficiente eque acabam se preocupando com o ser humano como um todo, que percebem ter o problema

facetas várias e que é fundamental envolver o cliente para fazer com que ele assuma aresponsabilidade de fazer tudo para superá-lo. Considerando que, além das dificuldades ocasionadas por certos tipos de desvios ou deimpedimentos, são os comportamentos inadequados e a manifesta incompetência pessoal esocial que levam as pessoas a situações de marginalidade, a redução do impedimento jáconsiderado, a eliminação consciente de comportamentos menos aceitáveis e a conquista deum certo grau de competência pessoal, familiar e social tenderão a gradativamente levar oindivíduo às faixas de normalidade. Não é sem motivo, portanto, que na programação de um centro de reabilitação, o enfoquedeve ser sempre globalizante, apesar de se notar que, conforme o caso, o processo deajustamento pessoal poderá ser desenvolvido com diferentes ênfases e isso ninguém podecondenar. Em um centro de reabilitação para o trabalho, por exemplo, o ponto principal deconcentração de esforços poderá estar voltado, e com muita razão, para hábitos e atitudes noambiente de trabalho.

- *Adequação pessoal - fator decisório na integração social* Adequação pessoal é um objetivo e é conseqüente a um processo sistemático detratamento e de treinamento em reabilitação que utiliza vários profissionais voltados todospara um trabalho individualizado ou em grupo, com o intuito de propiciar às pessoasdeficientes condições de compreender o completo significado da vida familiar e social, ovalor de seu próprio envolvimento e as exigências da sociedade em termos de vida familiar,social e profissional. Dentro desse tipo de ênfase o processo reabilitacional procurará garantir condições paraajudar a pessoa deficiente a alterar, se necessário, e a desenvolver atitudes e comportamentosmais próprios à sua realidade e a manter uma atuação aceitável nessa mesma realidade. Para que a equipe que trabalha em reabilitação possa, ao desenvolver suas atividadesespecíficas, atingir esse objetivo, é preciso que auxilie, treine e ensine as pessoas deficientesa desenvolver por si mesmas: - conhecimentos mais claros do processo reabilitacional e de sua importância paraatingimento do objetivo de integração social; - melhor aproveitamento do tempo de que dispõem no centro; - o melhor condicionamento físico que puderem atingir; - níveis aceitáveis de estabilidade emocional; - habilidades sociais mínimas de acordo com seus objetivos de vida; - confiança em seu potencial e aspirações realistas; - estabelecimento ou reaquisição de valores pessoais; - hábitos normais de trabalho, tais como comparecimento pontual e constante,envolvimento em todas as etapas do dia de trabalho, higiene pessoal e apresentaçãoadequada ao ambiente, nível correto de relacionamento no trabalho e fora dele, perseverançano trabalho em todas as suas fases; - resistência à fadiga e tolerância às rotinas da vida de trabalho; - habilidade de ouvir críticas consideradas menos justas, e de analisá-las sem reaçõesimpróprias; - atuação de trabalho sem atitudes e comportamentos tendentes a interrompê-la; - capacidade de resolver problemas por seus próprios recursos; - equilíbrio no reconhecimento de suas limitações e na busca de ajuda.

Os componentes indispensáveis de um programa de adequação pessoal desenvolvido numcentro de reabilitação global, por sua equipe multidisciplinar de trabalho, são vários. Em primeiro lugar devemos procurar garantir a todos os membros da equipe apossibilidade da observação direta para a identificação de problemas ocasionados por certoshábitos e atitudes das pessoas deficientes e o estabelecimento dos objetivos a seremperseguidos com a sua ampla participação. Concomitantemente a isso, é fundamental que setrabalhe com a pessoa deficiente e sua família, por meio de entrevistas ou de atividades degrupo, na identificação dos problemas mais significativos de sua vida familiar e social. Émuito importante também que seja feita uma clara análise dos problemas que podem causardificuldades comportamentais e uma definição operacional do programa destinado à suaeliminação, com a integral colaboração do cliente. Assim sendo, é básico que todos os técnicos disponham-se a fazer anotações eobservações sistemáticas, relatando-as com objetividade. Dentre vários tipos de material que poderão ser úteis na elaboração de um programa dessanatureza, a equipe poderá tomar como parâmetros orientadores para tal fim, um indicativopara identificação de problemas de comportamento, que cada centro deve manter, com odevido critério, para avaliação e para controle (V. anexos I e II). Um programa de adequação pessoal da pessoa deficiente, como aqui pretendido, épossível com a aliança das atividades próprias de cada setor do centro de reabilitação com asatividades destinadas especificamente à melhoria dos hábitos, atitudes e comportamentosdos clientes. Deverá tal programa ser objeto de constantes estudos por parte da equipe que o adotar,podendo a parte relacionada à adequação pessoal ser aplicada e desenvolvida através deentrevistas, de atividades de grupo, de terapia de apoio e de programações especiais deeducação de base. A preocupação com a eventual mudança de hábitos e comportamentos das pessoasdeficientes em programas de reabilitação nunca poderá ser isolada a de um só profissional,ou meramente individual. Toda a equipe, durante todo o programa, deverá voltar-se para ela. Caberá ao setor de ajustamento psico-social do centro de reabilitação a coordenação deprogramações dessa natureza.

ANEXO I

INDICATIVO PARA IDENTIFICAÇÃO DE COMPORTAMENTOS

Nome do cliente: Treinamento na área de: Data do início: Encaminhado por: Observações deste Indicativo válidas na data: Levantamento feito por: CONCEITOS: A = Ótimo, sem problemas; B = Deve ser melhorado; C = Deve sermodificado; D = Inaceitável.

Observação: segue quadro: categorias – comportamento observado – conceito.

CATEGORIAS

1. Aparência pessoal; 2. Hábitos irritantes; 3. Dificuldades de comunicação; 4. Assiduidade às atividades; 5. Pontualidade em geral; 6. Capacidade de resolver problemas; 7. Queixas pessoais; 8. Vitalidade nas atividades; 9. Resistência à fadiga; 10. Persistência na atividade; 11. Capacidade de seguir regulamentos; 12. Distração durante atividade; 13. Reações à mudança de tarefas; 14. Reações à monotonia; 15. Habilidade social com colegas; 16. Requer supervisão após tarefa nova; 17. Aceitação da supervisão; 18. Tensão devido à proximidade da supervisão; 19. Necessidade de ajuda da supervisão; 20. Reação à crítica ou pressão da supervisão; 21. Organização com equipamentos e materiais; 22. Comportamentos estranhos;

Comentários adicionais no verso Assinatura.

ANEXO II. LISTA DE COMPORTAMENTOS OU HÁBITOS INADEQUADOS

CATEGORIA 1. Aparência pessoal - costuma comparecer com a pele ou cabelos sujos; - tem mau hálito; - excesso de gordura; - mantém cabelos mal penteados; - tem barba mal cuidada, para os que a usam crescida; - barba mal feita ou por fazer, para os que se barbeiam; - não usa desodorante quando deveria usar, devido ao odor; - veste roupas manchadas; - veste roupas amassadas; - usa roupas rasgadas; - veste roupas de tamanhos errados; - veste roupas inadequadas (formais ou ao contrário); - veste roupas necessitando de revisão ou conserto; - usa roupas soltas que podem causar acidentes; - usa sapatos muito largos, soltos e desamarrados; - usa sapatos sujos, não-engraxados ou de má aparência descuidado com vestuários, comzíper aberto, bolso cheio;

- usa cosméticos inadequadamente; - tem posturas inadequadas; - mantém dentes sujos, que necessitam ser escovados; - tem caspa e não cuida do assunto; - tem odor característico da falta de asseio corporal; - costuma ter olhos sujos; - mantém unhas compridas, mal cuidadas e sujas; - costuma ter mãos sujas; - costuma ter nariz sujo;

CATEGORIA 2: Hábitos irritantes - assobia sem parar ou com muita persistência; - cantarola sempre; - canta continuadamente; - mantém riso constante; - tosse em excesso e sem necessidade; - tem respiração funda e sonora; - funga sempre, aparentemente, sem necessidade; - limpa a garganta com freqüência excessiva e desagradavelmente; - cospe sempre que limpa a garganta; - tamborila os dedos incessantemente; - tamborila sempre com ferramentas, lápis, pés, dedos e outros objetos; - mastiga goma de modo desagradável; - chupa ar pelos dentes; - morde a dentadura de modo muito visível; - balança o corpo enquanto trabalha ou estuda; - costuma coçar o nariz ou o rosto; - coça a barba ou o cabelo com freqüência; - coça partes do corpo com freqüência e ruidosamente; - vive pregando peças nos outros; - chupa ar barulhentamente pelo nariz; - estala os dedos com freqüência; - encara as pessoas distraidamente; - roe as unhas; - costuma virar os olhos quando conversa; - faz caretas ou palhaçadas constantes e em momentos inadequados;

CATEGORIA 3. Dificuldades de comunicação - gesticula demais ao falar; - fala demais, sem dar chance aos outros; - tem fala inaudível; - fala fanhosamente; - fala excessivamente rápido; - gagueja sempre ou ocasionalmente; - fala alto demais; - mantém tons de voz guturais; - usa palavras de baixo calão;

- usa gíria em excesso; - deixa de fazer perguntas na hora certa; - vocabulário limitado, não dando nomes certos às coisas ou pessoas; - fala em linguagem extremamente errada;

CATEGORIA 4. Assiduidade às atividades - falta à atividade várias vezes sem dar a mínima justificativa; - fica ausente da atividade diversos dias consecutivos; - fica ausente da atividade diversos dias alternados; - deixa a área de atividade por meia hora, pedindo a colega para justificar-se diante dosupervisor ou técnico; - fica freqüentemente ausente devido a motivos particulares; - fica ausente duas horas para uma entrevista de meia hora; - inventa pretextos para se ausentar ou manter-se ausente; - falta à atividade por motivos triviais; - inventa motivos graves para faltar, mentindo ao supervisor;

CATEGORIA 5. Pontualidade em geral - esquece-se de marcar o cartão do ponto; - começa a atividade apenas depois dos outros terem começado; - conversa com os colegas cinco minutos antes de começar; - habitualmente atrasado nas atividades; - gasta muito tempo nos intervalos para descanso; - chega atrasado após o intervalo do almoço ou do lanche; - é o último a chegar após o intervalo; - demora-se muito para começar nova tarefa; - sempre atrasado para entrevistas com pessoal de supervisão; - não aceita que o relógio do ponto esteja certo; - procura chamar a atenção pelos constantes atrasos;

CATEGORIA 6. Capacidade de resolver problemas - indiferente a problemas que ocorrem por perto; - interrompe sua atividade e espera ajuda nos mínimos problemas; - grita pelo técnico ou supervisor quando encontra dificuldades; - acusa os colegas de causadores de seus problemas; - persiste por mais de uma hora tentando resolver problemas sem pedir ajuda, quando aajuda é indispensável; - pede ajuda imediatamente, sem experimentar resolver o problema por sua própriainiciativa; - fica apertando e torcendo as mãos ou fica tremulo quando solicitado a desenvolvertrabalho de cooperação com colegas; - bate com ferramentas e materiais na bancada para obter ajuda;

CATEGORIA 7. Queixas pessoais - expressões de doença ou de mal-estar; - queixas de dor de cabeça; - queixa-se constantemente de dores de estômago, em várias partes do corpo, musculares eoutras – hipocondríaco;

- queixa-se de câimbras, calafrios, cansaço generalizado e sono; - indicativos de dores físicas, de depressão, de desconforto: franze a testa, manca, suspiraalto, geme, tem respiração rápida, boceja; - declarações evidentes de desagrado pelas atividades que desenvolve; - queixa-se do ambiente onde desenvolve suas atividades: temperatura, iluminação,equipamentos, bancadas, assentos, ferramentas, barulho; - verbalizações negativas ou depreciativas por outras pessoas, tais como colegas, técnicos,supervisores e outros; - expressões de inconformismo ou de remorso por causa de certos infortúnios, tais comodoenças, mortes de membros da família, problemas financeiros, falta de amigos,inadequacidade pessoal;

CATEGORIA 8. Vitalidade nas atividades - move-se com lentidão e produz abaixo da média de produção na parte da manhã; - é lento em atividades ou tarefas que deve desenvolver parado, numa bancada, mostrandomaior vitalidade em trabalhos movimentados; - trabalha vagarosamente quando sozinho, mas recobra velocidade quando colegas esupervisores estão envolvidos; - mostra-se cansado durante todo o dia de trabalho; - é constantemente apático e indiferente ao trabalho; - atua com ansiedade e grande agitação;

CATEGORIA 9. Resistência à fadiga - trabalha com maior lentidão no período da tarde do que da manhã; - queixa-se de tarefas pesadas e puramente braçais; - produtividade evidentemente reduzida durante a sexta-feira; - mostra sinais de fadiga no final do dia de atividades; - pede para repousar duas ou três vezes por dia; - descansa a cabeça na bancada em intervalos freqüentes; - sente falta de ar e reclama quando colocado em área de trabalho mais pesado; - mantém postura inadequada na bancada de trabalho;

CATEGORIA 10.Persistência na atividade - faz quatro ou mais intervalos por hora para fumar ou relaxar; - vagueia longe da área de trabalho; - fica olhando para o vazio durante o dia várias vezes; - encontra diversas desculpas para interromper o trabalho, perguntando coisas irrelevantesao supervisor; - leva duas vezes mais o tempo em tarefas que não aprecia; - gasta uma boa parte de seu tempo de trabalho arrumando e re-arrumando materiais eferramentas de trabalho; - tem manifestações repentinas de velocidade por menos de meia hora e então reduz aprodutividade para quase zero ao final da hora; - começa novas tarefas antes de terminar as iniciadas;

CATEGORIA 11.Capacidade de seguir regulamentos - tenta ou arrisca-se a operar equipamento ou máquina potencialmente perigosos,sempermissão e sem supervisão;

- fuma em áreas proibidas; - deixa ferramentas, materiais, máquinas ou equipamentos em corredores, no chão ou emlocais inadequados; - deixa de colocar em boa ordem áreas de trabalho e não devolve aos respectivos lugaresferramentas e equipamentos utilizados; - distrai outros que estão trabalhando com o uso de equipamento potencialmente perigoso; - deixa de se proteger e de vestir aventais de segurança, sapatos, óculos de proteção eoutros; - faz brincadeiras de mau gosto com colegas, pondo em perigo a si próprio e aos outros pornão escolher local ou momento adequado; - mantém atitudes viscosas, face ao regulamento em vigor;

CATEGORIA 12.Distração durante a atividade - interrompe seu trabalho diversas vezes numa hora; - olha peia janela a cada dois minutos; - cumprimenta cada pessoa que passa pela sua bancada, mesmo que já o tenha feito antes; - levanta os olhos do trabalho cada vez que um ruído mais alto do que um sussurro éouvido; - lança olhares distraídos pela oficina ou ambiente a intervalos regulares; - leva mais de cinco minutos para retomar uma tarefa interrompida por qualquer motivo; - não consegue concentrar-se quando por perto haja alguém do sexo oposto;

CATEGORIA 13. Reações à mudança de tarefas - aceita com má vontade sua indicação para qualquer tipo de nova tarefa; - rejeita sua indicação para alguns trabalhos mas não para outros; - aceita alterações nas tarefas, mas é necessário uma grande quantidade de apoio e deencorajamento; - aceita alterações de má vontade, mas tornará sua atuação mais lenta ou sabotará otrabalho propositadamente, fazendo-o incorretamente; - adapta-se com dificuldade à maior parte das alterações em suas tarefas; - fica confuso com as rápidas e freqüentes alterações nas tarefas; - mostra-se inconformado com mudanças de tarefas;

CATEGORIA 14. Reações à monotonia - recusa-se a realizar a tarefa; - reluta, exigindo encorajamento ou pressão da supervisão; - reduz significativamente a velocidade ou qualidade de trabalho; - há aumento de distração ou de falta de atenção; - reclama constantemente com os colegas; - há aumento de reclamações por motivos físicos; - interrompe seu relacionamento com colegas; - boceja ruidosamente e sem necessidade;

CATEGORIA 15.Habilidade social com colegas - dá as costas ou vai embora quando um colega se aproxima; - demonstra indiferença quanto ao progresso social dos colegas (por exemplo, deixa deresponder a cumprimentos, deixa de responder adequadamente a perguntas que lhe sãodirigidas);

- esquiva-se de qualquer tipo de contato social com pessoas do sexo oposto; - foge de todo contato social, exceto com um ou dois indivíduos; - comporta-se de maneira exagerada ou é dado ao flerte indiscriminado com pessoas dosexo oposto; - nunca inicia saudações ou conversas; - faz tentativas exageradas para fazer amigos ao ponto de o indivíduo passar a serconsiderado uma praga pelos demais; - interrompe conversa dos colegas para poder juntar-se ao grupo; - domina as conversas dos colegas ao ponto deles deixarem o grupo; - fica freqüentemente irritado com seus colegas; - tenta freqüentemente incitar discussões, por puro antagonismo; - estimula rivalidades entre colegas através de mentiras ou de mexericos; - ridiculariza os problemas físicos dos outros; - mantém uma interação com colegas muito variada devido ao próprio humor; - faz constantes mexericos e é dado às fofocas;

CATEGORIA 16.Supervisão após tarefa nova - dispensa a supervisão de imediato após as primeiras orientações quanto a novas tarefas; - precisa de considerável apoio e encorajamento para poder produzir a nível aceitável; - solicita supervisão e orientação de colegas para novas tarefas; - necessita de repetidas explicações com freqüência; - gasta considerável tempo do supervisor na identificação de falhas; - tende a ser descuidado quando trabalha com ferramentas ou com máquinas elétricas; - chama constantemente o supervisor após receber tarefas novas;

CATEGORIA 17.Aceitação da supervisão - relaciona-se inadequadamente com todos os supervisores; - trata supervisores como amigos, esperando ser tratado diferentemente dos demais colegasde trabalho; - dá a impressão de reconhecer a autoridade do supervisor, mas faz seu trabalho à suaprópria maneira quando ele se ausenta; - reconhece a autoridade de todos os supervisores, mas dá a impressão de trabalhar melhorsob supervisão mais permissiva; - recusa-se a aceitar supervisão, exceto que venha de certo indivíduo ou de certo tipo desupervisor (por exemplo: que seja homem, ou que seja mulher, que dê apoio, etc.); - recusa-se ruidosamente a aceitar a supervisão e mantém atitudes de quem sabe e podefazer como quiser;

CATEGORIA 18.Tensão devido à proximidade da supervisão - aumenta a velocidade da atividade com prejuízo de sua qualidade; - melhora a qualidade, mas diminui a velocidade; - fica desajeitado, derruba materiais, aumenta volume de erros; - agita-se, tremem suas mãos, transpira fortemente, ruboriza-se; - parece perder o fio da meada, esquece-se de fases do trabalho, deixa de seguir instruções; - não muda visivelmente com a proximidade da supervisão, mas fica em tensão que poderávir a ser prejudicial; - interrompe completamente a atividade quando o supervisor está próximo;

CATEGORIA 19.Necessidade de ajuda da supervisão - pede freqüentemente e exageradamente a ajuda do supervisor a fim de obter sua atenção; - continua trabalhando em vez de pedir ajuda quando incerto se o trabalho está sendo feitocorretamente; - chama o supervisor aos gritos, de modo a chamar sua atenção; - pede ajuda aos colegas por receio de parecer pouco inteligente aos olhos do supervisor; - interrompe o supervisor quando ele está ocupado ou conversando com alguém;

CATEGORIA 20. Reação à crítica ou pressão da supervisão - mostra sinais de ansiedades ou de temor, incluindo gagueira, transpiração, choro, mãostrêmulas; - fica desajeitado, derrubando ferramentas ou materiais; - demonstra resistência ao supervisor, inclusive discutindo, queixando-se de problemasfísicos, responsabilizando os colegas, as ferramentas ou o próprio local de trabalho, pedindopara ser transferido para trabalho diferente, com mau humor e recusando-se a continuar notrabalho; - há um decréscimo imediato na velocidade, acompanhado de aumento no número de erros; - passa a trabalhar mais rápido, sem alterações perceptíveis; - culpa companheiros de trabalho ao receber críticas da supervisão;

CATEGORIA 21 .Organização com equipamentos e com materiais - tem movimentos inadequados; - usa inconvenientemente ou impropriamente ferramentas; - deixa o local de trabalho com freqüência para obter ferramentas ou materiais; - estoca materiais de maneira imprópria ou perigosa; - mantém movimentos desnecessários e sem utilidade; - gasta muito material como resultado de seus descuidos; - costuma fazer trabalho mal feito; - costuma furtar material ou ferramentas;

CATEGORIA 22. Comportamentos estranhos - há mudanças freqüentes e/ou extremas entre períodos de muita e de pouca atividade, commudanças conseqüentes na disposição geral; - períodos de alta produtividade podem ser caracterizados por risadas inadequadas; - palavreado rápido e inconseqüente; - barulho, movimentos rápidos e exagerados do corpo; - períodos de baixa produtividade coincidem com isolamento de contatos sociais, choro ouopiniões negativas a seu próprio respeito; - mantém o olhar no vazio por longo período de tempo, ao ponto de parecer totalmentealheio ao ambiente que o cerca; - tem reações inadequadas à crítica, com riso, choro, explosão de temperamento oucompleta falta de reação; - fala ou ri consigo mesmo nos momentos em que parece alheiado ao que faz ou aoambiente que o cerca - incapaz de responder, quando solicitado, a informar a respeito do quefala ou ri; - faz comentários ou dá resposta totalmente estranhos ao tópico de conversação ou decomentário;

- conta estórias ou faz declarações que são evidentemente mentirosas especialmente quandoo indivíduo não parece estar alerta quanto às inverdades; - faz freqüentes tentativas de ouvir conversas, olhando diretamente os outros, olhando porsobre ombros, devido à própria crença de que estão falando de si, estão gozando de suapessoa ou por não gostar de sua pessoa; - tem preocupação excessiva com limpeza, ordem e higiene, demonstrada pelas constantesidas ao banheiro para lavar as mãos; - demanda excessivo tempo para ordenar seus materiais e ferramentas; - faz freqüentes limpezas na área de trabalho, ou estudo, ou atuação, ao ponto de essasatividades ocuparem mais tempo do que a principal;

(Esta lista está parcialmente baseada em levantamento contido em trabalhos de Luís CarlosDutra - Ver Bibliografia)

CAPÍTULO QUARTO PREPARO PARA A VIDA DE TRABALHO

Conforme verificamos anteriormente o programa de ajustamento profissional dentro doprocesso de reabilitação de pessoas deficientes tem vários componentes que são basicamenteos seguintes. - aconselhamento para a vida de trabalho; - avaliação e ajustamento ao trabalho; - treinamento profissional; - colocação em emprego e seguimento.

O ajustamento profissional pressupõe, é óbvio, bons níveis de ajustamento psico-social eum bom condicionamento físico. Muito embora haja padrões já reconhecidos para o funcionamento dos componentes deum programa dessa natureza, para alguns clientes o processo poderá significar a inclusão emtodas as atividades programadas, enquanto que para outros poderá se resumir numa simplestomada de posição quanto a problemas de ordem prática de trabalho, ou talvez numa simplescolocação. De acordo com princípios anteriormente expostos, pelo simples fato de areabilitação lidar com seres humanos, sua programação deverá ser adaptada às suaspeculiaridades e deverá ser flexível, pois cada caso considerado individualmente apresentarácaracterísticas próprias e demandará soluções específicas.

- *Aconselhamento para a vida de trabalho* O processo de aconselhamento para a vida de trabalho é iniciado logo após adeterminação da elegibilidade da pessoa deficiente ao programa reabilitacional, através deavaliações que cobrem os aspectos do potencial físico e problemático correspondente, de suaestrutura psicológica e de seus problemas sociais e familiares. O conselheiro de reabilitaçãodeverá fazer seu primeiro contato com a finalidade de obter da pessoa deficiente certos tiposde informação e também de formar seu próprio juízo quanto aos seguintes pontos de básicaimportância em sua vida:

- Características pessoais; - Experiência educacional; - Experiência profissional; - Aptidões e potencialidades; - Interesses; - Capacidade física para o trabalho; - Capacidade mental.

A finalidade desse estudo é a elaboração de um plano concreto de atuação nos diversostipos de atividades do programa do centro de reabilitação, com a participação consciente dapessoa portadora de deficiência em busca de sua Integração social. Vejamos, porém, alguns importantes ângulos do conteúdo do processo de aconselhamentode pessoas deficientes em reabilitação, com a finalidade de obter o seu melhor ajustamentoprofissional. E para tanto, nada melhor do que analisar, ponto por ponto, os itens acimaindicados. a) Características pessoais: As características individuais e as atitudes da pessoa para como trabalho são, juntamente com a destreza manual, fatores muito importantes nadeterminação da adequação de uma pessoa deficiente para um trabalho em competição nomercado aberto. Entretanto, o simples fato de viver ou de ter a pessoa vivido uma deficiência física, porexemplo, e as contínuas dificuldades encontradas na vida familiar e social, podem levar oindivíduo a se sentir em uma posição desvantajosa no mundo do trabalho. A mensuraçãodesses fatores não é nada fácil e o conselheiro de reabilitação deverá, para tanto, basear-seem resultados dos estudos ou da atuação dos médicos, dos psicólogos, dos assistentes sociaise de diversos outros profissionais que atuam em reabilitação. Técnicos bem treinadospoderão chegar a posições bem delineadas com relação a esses problemas, devido à suaatuação diária e devido às observações que são rotineiramente feitas nas oficinas deavaliação ou de ajustamento profissional. As entrevistas com o conselheiro de reabilitação poderão ser um excelente instrumentopara a obtenção de um quadro bem objetivo das características pessoais do reabilitando, bemcomo de suas atitudes para com o programa do Centro e, é evidente, de sua futura vidaprofissional e social. Vale lembrar, todavia, que, por melhor e mais tarimbado que oconselheiro de reabilitação seja - e esta observação é válida para toda a equipe - quando essequadro de características e atitudes não for informado por um estudo psicológico, familiar esocial da pessoa deficiente, ele poderá se tornar simplesmente inconclusivo e muito limitado. Já que as características pessoais são aquelas que mais influenciam na formação e namanutenção de hábitos, de atitudes e de comportamentos da pessoa, sua observação poderádar à equipe condições para trabalhar com mais segurança em seu ajustamento global.

b) Experiência educacional e profissional: A entrevista do conselheiro de reabilitaçãoprocurará fazer uma verdadeira análise das experiências relacionadas à vida escolar, à formacomo a pessoa deficiente vê o problema de sua educação e o que isso poderá significar emsua vida futura. Será necessário também que o profissional analise com cuidado asexperiências de trabalho já vividas pela pessoa sob orientação, com informações quanto aotipo de empresa em que trabalhou, remunerações percebidas, atribuições e requisitos para odesempenho de suas funções, ambiente de trabalho, motivo de desligamento e ida para umanova empresa, quando for o caso.

Será, portanto, de extrema valia essa análise quanto à vida educacional e de trabalho,tendo em vista o papel que a vivência anterior representa nas atuais atitudes do reabilitando,face a um programa de aprendizado. Dessa análise poderão ser retirados e utilizados muitosdados e informações de real valia para a pessoa portadora de uma deficiência planejar com aequipe o desenvolvimento de seu programa de atividades no centro de reabilitação.

c) Aptidões e potencialidades: A simples existência ou a constatação de uma aptidãorevela o fato límpido de a pessoa ser dona de uma facilidade ou de uma habilidade paraaprender e para fazer, a qual, pela prática ou pelo treinamento sistematizado, poderá sertransformada em experiência. A aptidão em geral envolve mais do que a simples capacidadede adquirir conhecimentos. E ela que faz desabrochar o interesse e o desejo de aprenderalgo. Ela não promete à pessoa o sucesso, mas é indicativa de alguma facilidade na aquisiçãode técnicas de atuação e de habilidades no trabalho. Notemos, porém, que para uma aptidãoser transformada numa habilidade concreta, ou seja, numa capacidade real efetiva, eladepende de muitos fatores e de esforços de seu detentor. Assim, a capacidade já é uma habilidade adquirida, em geral conseqüente a uma tendênciaou a aptidões. Mas também uma capacidade poderá não estar ligada a qualquer aptidão e sima esforços contínuos, conscientes e bem determinados por parte da pessoa. A capacidaderetrata um estado razoavelmente estável que precisa de constante prática para se manter. As aptidões, normalmente classificadas em sensoriais, motoras e mentais, manifestam-sede diversas maneiras. Assim é que as aptidões SENSORIAIS dizem respeito aos sentidos(audição, olfato, paladar, visão e tato). As MOTORAS são a velocidade, a força, a direção, atração, a precisão, a destreza e diversas outras, enquanto as MENTAIS são a inteligência, aimaginação, a atenção, a memória e outras. É básico esse tipo de conhecimento para todo profissional que trabalha em reabilitação.No entanto, o conhecimento dessas características em cada um dos reabilitandos dependeráde uma avaliação psicológica completa, incluindo não só aptidões e capacidades, mastambém seus traços de personalidade e análise de seus interesses.

d) Interesses: O interesse pelo trabalho, por parte de uma pessoa deficiente em processode reabilitação, poderá ser consideravelmente aumentado com a obtenção de certassatisfações pessoais, conseqüentes à constante participação nas atividades a esse fimdestinadas no centro de reabilitação. O nível de interesse aumentará conforme crescer o seuprazer diante do trabalho, isto é, além de desenvolver bem as atividades, ela deve ver essasatividades com resultados que lhes sejam favoráveis. O interesse não depende, todavia, "in totum", da qualidade do trabalho executado. Apessoa deficiente poderá ter interesse por certos tipos de trabalho ou atividade que nãoconsegue executar com perfeição, devido a circunstâncias várias, inclusive devido a umadeficiência adicional até então não considerada. Para alguns clientes de reabilitação, a dificuldade de certos tipos de tarefa significadesafio, sendo esse um motivo mais do que suficiente para tentar executá-la bem, dedicando-se ao máximo a ela. O pessoal que trabalha em oficinas de reabilitação na qualidade deavaliador de atividades precisa ter condições para distinguir o que a pessoa deficiente fazapenas para superar um desafio e aquilo que ela faz por puro interesse. A atitude para comum desafio é de extrema importância no processo de integração social, principalmente ao seanalisar, em confronto, suas atitudes em outras atividades no programa. Se essa atitude foradequada e equilibrada, a equipe poderá ponderar melhor as suas possibilidades de sucessona vida após terminado o processo de reabilitação.

O reabilitando demonstra interesse no trabalho pela sua aplicação e dedicação a certostipos de função, bem como pelo esforço intelectual e físico dispendido na obtenção demelhorias ou de aperfeiçoar os resultados até então conseguidos. Essas demonstrações deinteresse ficam patenteadas de várias formas, como, por exemplo, pela vontade de dedicarmais tempo do que o indicado na tarefa, pela curiosidade e desejo de aprender mais, pelodesagrado ao ter que interromper sua atividade na oficina, pela ordem, pelo cuidado, pelalimpeza que demonstra na bancada, pela atitude de permanente colaboração com o instrutorde oficina. O conselheiro de reabilitação deve estar informado quanto a alterações nos interessesexpressos pela pessoa deficiente e o avaliador de oficina é o profissional mais indicado paradiscutir o assunto, na área de trabalho, especialmente se tiver um preparo especial, como ode terapeuta ocupacional, por exemplo.

e) Capacidade física: Ninguém pode medir a adequacidade de uma colocação profissionalapenas pela habilidade que a pessoa deficiente demonstra na bancada de trabalho. Umapessoa que possui a indispensável habilidade ou capacidade de trabalho para certos tipos detarefas, pode não ser considerada boa para certa colocação no mercado competitivo detrabalho se não tiver, além da habilidade requerida, a capacidade física para o trabalhodurante o dia todo, todos os dias da semana e todas as semanas do mês. A mesma restriçãopoderá ser feita se puder trabalhar apenas por limitado número de horas ou de dias.Problemas surgem também em outras áreas de extrema importância, como, por exemplo, noque diz respeito a comportamentos durante o trabalho, relacionados com colegas, comsuperiores e outros mais. Quando, no setor de avaliação e de ajustamento ao trabalho, o indivíduo conseguirdemonstrar pela sua atuação que pode ampliar o volume de horas de trabalho diário atéchegar às oito horas diárias, sem grandes dificuldades e gradativamente, com a mesmaprodutividade, durante os cinco dias da semana, teremos um resultado significativo emtermos de condicionamento físico para o trabalho. Dependendo da cronicidade do mal e das características físicas da pessoa deficiente,somente um período significativo numa oficina protegida de trabalho poderá determinar comsegurança sua resistência à fadiga e demais desafios colocados pela situação de trabalho. O conselheiro de reabilitação deverá estar perfeitamente a par desses aspectos da atuaçãoda pessoa deficiente em processo de reabilitação, uma vez que só o gradativo aumento desua capacidade física, por meio de um programa constante de melhoria de suas condiçõesfísicas, supervisionado, sempre que viável, por fisioterapeuta familiarizado com problemas ecaracterísticas da deficiência, é que poderá dar condições dela enfrentar a vida de trabalhocompetitivo, após sua passagem pelo centro de reabilitação.

f ) Capacidade mental: A capacidade intelectual de uma pessoa deficiente que se submetea um programa de reabilitação global precisa ser conhecida e devidamente considerada portoda a equipe. De um modo especial, precisa ser contínua e concretamente lembrada peloconselheiro de reabilitação, em seu programa de aconselhamento para a vida de trabalho,pois é fator de preponderante importância na determinação dos planos de trabalho. Os níveis requeridos de aprendizagem para determinada área diferem muito e chegammesmo a contrastar marcadamente com os níveis para áreas afins. O conhecimento dacapacidade mental de um cliente de reabilitação é importante também para oestabelecimento de planos exeqüíveis de colocação profissional. Certos empregoscompetitivos exigem habilidades físicas e mentais de determinada natureza, e se a pessoa

deficiente não chegar aos níveis requeridos, a colocação poderá redundar num grandefracasso. Nesse sentido o conselheiro de reabilitação poderá ser ajudado não só pelos resultados daavaliação psicológica como também pelos trabalhos desenvolvidos no setor especifico docentro de reabilitação, destinado a atividades de avaliação do potencial do indivíduo para otrabalho e de ajustamento a situações concretas de trabalho em competição. O processo deavaliação colabora muito com todo o esquema de orientação e expõe muito às claras ascapacidades que correspondem aos requisitos da colocação competitiva pretendida. No anexo I deste capítulo o leitor encontrará uma proposição de roteiro para análise decada caso que for encaminhado para programas de ajustamento profissional.

- *Avaliação e ajustamento ao trabalho* A avaliação para a vida de trabalho, ou "avaliação profissional" como é de um modo geralconhecida, é um recurso fundamental que todo centro de reabilitação global deveria procurarmanter. Essa avaliação deverá ser processada em unidade física praticamente acoplada atodos os demais aspectos de ajustamento profissional do centro de reabilitação. Trata-se de um processo que procura ajudar os indivíduos a entender o significado, o valore as exigências do trabalho; procura também colaborar para que atitudes e hábitos positivossejam corroborados, adquiridos ou modificados e que características pessoais oucomportamentos voltem-se para a demanda diuturna do ambiente de trabalho. Um programa dessa natureza não poderá deixar de levar os clientes a desenvolver hábitosfuncionais.Usa, para tanto, a atividade de trabalho - e não a terapia. Esse trabalho poderá serreal ou simulado e através dele procura conhecer melhor o indivíduo e fazer um pouco deexploração profissional. Uma oficina de reabilitação organizada para esses fins deve serparte integrante do processo de orientação de cada caso, sendo um dos mais positivosveículos de capacitação do cliente, pois conscientiza-o praticamente do alcance das medidase do plano de reabilitação. Dentre os aspectos que fazem parte das contínuas preocupações dos sistemas de avaliaçãoe de ajustamento ao trabalho, os mais relevantes e que jamais poderão ser esquecidos são osseguintes:

a) Potencial do indivíduo para o trabalho: Para ter utilidade concreta no programa dereabilitação, as atividades de avaliação e de ajustamento ao trabalho devem oferecer aocliente de um centro de reabilitação toda oportunidade possível para demonstrar o seguinte: - sua capacidade de preencher todas as condições necessárias para um empregocompetitivo, após o programa de reabilitação; - sua aptidão para alguma das diversas oportunidades de treinamento oferecidas pelo centroou mantidas pela comunidade.

É necessário que a oficina de avaliação e de ajustamento ao trabalho esteja planejadasobre bases sólidas não só quanto ao seu papel no processo reabilitacional, mas tambémquanto às exigências do mercado aberto de trabalho, relacionando-as ao potencial dessemesmo mercado quanto às oportunidades de assimilação de pessoas deficientes, masdevidamente qualificadas. Isso não significa nem que a oficina deve ter possibilidade de testar o cliente dereabilitação em todas as possíveis funções existentes no mercado de trabalho, nem que apessoa deficiente deva passar por todas as suas áreas de análise. Significa, isso sim, que asatividades do setor devem ter aplicabilidade ampla e estar bem relacionadas com as

oportunidades de emprego, de tal forma que o avaliador de oficina possa fazer umjulgamento quanto ao potencial do reabilitando para as oportunidades existentes. Um fato que precisa ser levado em consideração num programa de avaliação do potencialdo indivíduo para o trabalho é que no campo das profissões semi-qualificadas, de um modogeral, são os esforços físicos de mediana intensidade e habilidades mais ou menos uniformesque são requeridos, não interferindo muito com o fato de a pessoa ter ou não problemasorgânicos ou deficiências não-aparentes, como nos casos de cardiopatias ou de males darespiração. O problema está localizado muito mais no ambiente de trabalho - calor, barulho,poeira, tensão, velocidade - do que no dispêndio de energias físicas para desenvolver aatividade. O cliente de reabilitação deve gradativamente dominar tudo aquilo que é comumenteindicado como mínimas condições para o trabalho, uma vez que ele só conseguirá vencer navida profissional se chegar a essas condições mínimas aceitáveis de qualidade, de quantidadede produção, de adequado relacionamento, de organização, de assiduidade, de pontualidade,de apresentação pessoal, de atitudes - enfim, de bom ajustamento pessoal.

b) Significado para o indivíduo: A pessoa deficiente em programa de reabilitação poderábeneficiar-se de muitas maneiras de uma boa programação mantida por uma oficina deavaliação e de ajustamento ao trabalho. Como acontece com a maioria das pessoasdeficientes que nunca trabalharam, mas que almejam muito uma situação efetiva de atuaçãoremunerada, o cliente de reabilitação vive num mundo de suposições e de fantasias quanto àssuas possibilidades, quanto às suas qualificações e pretensões para o futuro profissional,logo após o término do programa. Ao passar por um organizado sistema de avaliação e deajustamento ao mundo do trabalho, passará a sentir melhor a realidade e procurará, com aajuda da equipe do centro, planejar e concretizar um futuro profissional realista e atingível. Nesta fase do programa de reabilitação, essa posição é conquistada não apenas com osucesso nesta ou naquela área avaliada, mas também com os eventuais resultados medíocresou de má qualidade, ao desenvolver as mais variadas tarefas. É interessante notar que,enquanto alguns clientes de reabilitação enfrentam um esquema de avaliação na certeza deque dominam tudo, ou de que sabem tudo, especialmente quando se fala em hábitos detrabalho, outros tomarão parte do programa com reservas e com temor de mais um fracasso,pois tem a impressão de que nada mais sabem e de que não tem experiência alguma válida.Ambos os tipos, e todos aqueles que são intermediários, encontrarão o seu momento deverdade, pois o sistema avaliativo poderá deixar muito claro que o primeiro não é tão bomquanto gostaria de ser, enquanto que o outro extremo pode saber e sair-se muito.melhor doque julgava. Atividades de avaliação para o trabalho inseridas numa programação mais ampla deajustamento profissional muito beneficiará as pessoas deficientes na gradativa eindispensável modificação de toda a gama de atitudes e de hábitos inadequados que poderãotornar-se um bloqueio e interferir seriamente em seu sucesso fora do Centro. O indivíduo precisa absorver o verdadeiro papel do trabalhador, com todos oscomportamentos que o grupo pode esperar dele, tais como: ser pontual, ser cordial, seguirorientações, concentrar-se, manter produção sem reduzir qualidade e outros mais. Com amelhoria dos hábitos de trabalho, passará o cliente de reabilitação a notar pessoalmente suaspossibilidades de sucesso e a ter mais confiança em seu futuro profissional. Em geral, um programa de ajustamento às peculiaridades do trabalho a mais longo prazo éindicado para casos de baixa produtividade, de atrasos ou ausências constantes, de má reação

às ordens da supervisão, da falta de interesse, de dificuldades comportamentais, dedificuldades de relacionamento com colegas, principalmente. Devendo funcionar basicamente como unidade avaliativa e, conforme as circunstâncias,como unidade destinada ao melhor ajustamento do indivíduo ao trabalho, à oficina dereabilitação caberá elevar as possibilidades do reabilitando para as atividades indicadasnuma certa situação de trabalho competitivo. Deverá sempre a oficina levar em consideraçãoos pontos indicados pela equipe de técnicos durante todo o programa de reabilitação.

c) O processo de ajustamento à vida de trabalho: Passado pela fase de tomada de contatocom o programa por meio das atividades que determinam a elegibilidade para o centro dereabilitação, deverá o cliente adulto iniciar de imediato sua programação no esquema dediscussão de seus planos profissionais. O seu primeiro contato nessa área será com oconselheiro de reabilitação, pois será ele o coordenador de sua atuação nas atividades deavaliação, de ajustamento, de treinamento profissional e de colocação, conforme foiindicado mais acima. O conselheiro de reabilitação deverá manter-se informado quanto ao condicionamentofísico e quanto à evolução das programações de ajustamento psico-social do reabilitando.Logo após o primeiro contato o cliente de reabilitação deverá ser encaminhado e iniciarimediatamente o programa da oficina, para uma análise rápida de seu potencial paraatividades de trabalho. Com essa análise inicial será possível ao conselheiro discutir com oreabilitando sua programação a prazo mais curto ou mais longo, na oficina de avaliação e deajustamento ao trabalho. Assim, a oficina procurará, observadas as solicitações e as recomendações do conselheirode reabilitação, desenvolver uma avaliação inicial mais pormenorizada e logo após procurarátrabalhar o potencial do cliente para o programa de ajustamento à vida de trabalho eeventualmente para treinamento profissional de algum tipo, mantido pelo centro ou pelacomunidade. No sistema de funcionamento usual de um centro de reabilitação global, caberá aoconselheiro de reabilitação - como coordenador da área de ajustamento profissional - fazersolicitações especificas à oficina quanto à observação de hábitos e comportamentos, bemcomo quanto à observação destinada a determinar o potencial do indivíduo para o trabalho,que deverá ser medido pelos avaliadores de oficina através de um formulário próprio, noqual uma lista de requisitos deverá deixar bem claro o que deve ser observado e/ou medido,para um concomitante aproveitamento daquilo que poderá prejudicar a pessoa em sua vidade trabalho e/ou social. Ao ser concluída, uma avaliação para o trabalho poderá sugerir uma ou várias dasseguintes providências: - colocação imediata do indivíduo; - necessidade de educação complementar; - desejo e necessidade de um treinamento formal; - necessidade de atividades para correção ou alteração de falhas em sua atuação comotrabalhador; - colocação em oficina protegida de trabalho; - outras soluções a critério da equipe do centro de reabilitação;

d) A importância dos instrumentais de avaliação: Os hábitos e atitudes do indivíduo numprograma dessa natureza deverão ser analisados e trabalhados de forma sistemática em todoo centro de reabilitação e por toda a sua equipe. Para tanto, os avaliadores de oficina deverão

ter à sua disposição um instrumental adotado pelos mesmos, em discussão com oconselheiro de reabilitação. Como anexos II e III deste capítulo estão transcritosinstrumentais à guisa de orientação para a organização inicial de uma oficina. Apresentamaos avaliadores de oficina fatores diversos a serem identificados, conceituados e trabalhados- todos eles de alto interesse no mundo empresarial, ou seja, no mundo competitivo detrabalho. O instrumental de avaliação para o trabalho e de ajustamento aos seus requisitos mínimos- corresponde ao anexo III - inclui todos os hábitos e atitudes que deverão ser observados outrabalhados, conforme o caso podendo seu conteúdo ser confrontado com o instrumentalrelativo à adequação pessoal - desde que adotado pelo centro - para fins de ampliação daanálise por parte do avaliador de oficina. A lista apresentada no instrumental de avaliação retrata uma tentativa de estabelecer comclareza o conteúdo inicial do sistema de avaliação. A necessidade da existência de um rol deobservações é devida ao fato de o potencial de um reabilitando não poder ser apenassuposto. Deve ser medido o mais acuradamente possível. O próprio conselheiro de reabilitação, ao fazer contatos com os dirigentes de empresas,notará a diferença nas reações do empregador entre ser procurado para empregar uma pessoadeficiente (por ser deficiente ou coitada ou algo assim) e colocar uma pessoa deficiente quejá passou pela reabilitação global e cujo desempenho observado nas áreas de ajustamentoprofissional foi de um certo nível quanto à pontualidade, à assiduidade, à rentabilidade, àconcentração, ao interesse, ao relacionamento com colegas e supervisores, e tantos outrosdados pormenorizados de atuação em situações reais de trabalho, que podem ser tirados doinstrumental acima proposto. "Sacar informações", apelar para o senso humanitário, "inventar comportamentos desuper-heróis", usar das amizades, dar dados errôneos quanto a um determinado indivíduo ougeneralizar comentários quanto à maior seriedade ou produtividade de pessoas deficientes,não corresponde nem a princípios básicos de atuação profissional, nem ao respeito que sedeve a cada um.

- *O treinamento profissional em programas de reabilitação* Muitos autores de reabilitação consideram fundamental que a pessoa portadora dedeficiência deva ter ao seu dispor algumas oportunidades para treinamento em profissõesespecíficas, a fim de que tenham possibilidade de lutar por boas condições de trabalho, comoprofissionais desses ramos selecionados. Quando as limitações físicas ou sensoriais assim o permitem, a pessoa deficiente deveráprocurar, no entanto, os recursos da comunidade, do tipo SENAI e/ou SENAC, quando nãoas próprias empresas, para tal propósito enfrentando sem maiores regalias os sistemas e ospadrões adotados na seleção dos alunos. Deve ficar muito claro que não caberá jamais acentros ou programas de reabilitação montar sistemas paralelos e segregados de treinamentoprofissional, não só por serem segregativos, mas por serem também inteiramente descabidose muito dispendiosos. A experiência de integração da pessoa deficiente com colegas que não têm dificuldades oulimitações físicas, nos programas já existentes na comunidade, poderá sempre ser válida eútil para adaptação ao trabalho em condições competitivas, ajudando inclusive a pessoa não-deficiente a se posicionar melhor e eventualmente a se despojar de preconceitos, revendoconceitos e reformulando idéias. Tal tipo de linha de orientação está perfeitamente consoante com os princípios da própriaintegração social das pessoas deficientes. Seria sua própria negação manter instalações e

programas segregados de treinamento profissional, quando o que o processo de reabilitaçãobusca é a inserção do indivíduo em seu meio. Para as pessoas deficientes que têm sérias limitações e para as que requerem métodos etécnicas especiais de ensino, poder-se-á pensar no planejamento de cursos especiais detreinamento profissional através de programas, técnicas e métodos seletivos, considerando: - A necessidade de uma instrução mais individualizada; - a organização de cursos profissionalizantes bem selecionados e de maior duração.

Cursos dessa natureza que os centros de reabilitação possam desejar manter, precisarãoconter exigências adicionais devido ao fato de serem mais flexíveis em alguns aspectos, afim de que obtenham o reconhecimento oficial e para que tenham o nível requerido. Centrosde reabilitação que dão atendimento a deficientes visuais, por exemplo, também podemorganizar treinamentos profissionais válidos em certas funções próprias para tais casos,usando técnicas especiais de comunicação. Não se pode, entretanto, confundir o treinamento profissional que prepara profissionaispara áreas definidas (como tornearia mecânica, fabricação de calçados, eletrônica,eletrotécnica, artes gráficas, funilaria e outras) com os meros adestramentos para algumasfunções existentes especialmente no grande e variado mundo dos serviços (tais comotelefonistas, consertadores de eletro-domésticos, barbeiros, sapateiros, consertadores derádio e tantos mais) que realmente podem ser mantidos por centros de reabilitação. Seja num, seja noutro caso, porém, o importante é que o cliente de reabilitação aprendaque ele não poderá ser aceito simplesmente pelo diploma ou certificado que tiver em mãos,mas pela competência como "trabalhador" que domina uma área de conhecimentosespecíficos que nunca poderá ser dissociada de sua atuação como "pessoa humana". Seusucesso estará muito mais na dependência desse tipo de competência pessoa!/profissional doque de outros fatores.

- *Colocação em emprego* A finalização do processo de reabilitação total é a colocação da pessoa deficiente emalgum tipo de trabalho condizente com seu potencial, suas aspirações e seu preparo, e poderásempre ter sucesso se trabalharmos dentro dos princípios que se aplicam ao emprego depessoas não-deficientes, ou seja, dos demais trabalhadores. No entanto, são freqüentes oscasos em que se requer a aplicação de métodos especiais na escolha de empregos parapessoas portadoras de deficiências. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dever-se-á sempre levar em contacertos fatores particulares que tornam mais difícil a colocação de pessoas deficientesreabilitadas. Deve se procurar uma colocação que corresponda, não às deficiências docandidato, mas às aptidões, como é feito, aliás, com boa parte de todo o contingente de mão-de-obra assimilado pelo mundo de trabalho. Será necessário considerar não apenas suaqualificação profissional ou suas qualidades pessoais, seus conhecimentos e sua disposiçãoou preferências, mas também - e com cuidado todo especial - sua capacidade física paradesenvolver o trabalho indicado. Não se deve esquecer que a pessoa deficiente precisa sentir que tem uma tarefa adesenvolver e que poderá fazê-lo com a mesma chance de sucesso que seus demais colegas,sem perigo para si mesma e sem que se tema um agravamento de suas condições físicas ousuas limitações. Para se determinar o trabalho e as condições mais adequadas para cada pessoa deficienteem situações de trabalho, é necessário que o conselheiro de reabilitação ou o profissional

encarregado de promover sua colocação faça a indispensável análise de diferentes postos,comparando seus requisitos às capacidades residuais e qualidades da pessoa que procuraemprego, ou seja, uma "análise de trabalho". "Análise de trabalho é usada para vários propósitos na empresa, e pode ser utilizada demaneira mais significativa na área de reabilitação humana e nas oficinas de reabilitação. Seuuso maior é como um instrumento através do qual os atributos e as exigências do trabalhopodem ser combinados com os traços comprovados dos clientes, que vieram à tona e foramposteriormente desenvolvidos durante sua estada nas oficinas de reabilitação. Um estudocuidadoso dos traços característicos de um dado trabalho ou trabalhos, e os traçoscaracterísticos verificados no cliente, resultará em uma colocação melhor e maissatisfatória". ("Análise de Trabalho (Job Analysis)", de Vieira). Numa análise de trabalho não podem deixar de constar os requisitos de educação,aptidões, interesses, traços de personalidade, exigências físicas ou mentais, e tambémcondições de trabalho, tais como temperatura, poluição ambiental, barulho e muitas mais. É fundamental que sejam feitos levantamentos de ocupações disponíveis, com o cuidadode não caracterizá-las como "funções para deficientes". Dentre os profissionais que atuamem reabilitação, há aqueles que visualizam seus clientes em funções não-qualificadas,sedentárias e despidas de maiores envolvimentos, independentemente do nível intelectual, daformação, dos planos e aspirações, ou mesmo do potencial do indivíduo. Essa posiçãoprofissional não deixa de ser injusta, demonstrando a descrença no processo de reabilitação.Ela é também encontradiça entre dirigentes empresariais e predomina entre selecionadoresde pessoal. Apesar de sempre ser trazido à baila o momento de recessão do mercado como fatordecisivo para a não-abertura da contratação de pessoas deficientes, encontramos nasempresas uma atitude de reserva quanto à colocação aberta, indiscriminada de pessoasportadoras de deficiências. Há temores que elas possam se tornar pontos de atrito naempresa, ou que assumam atitudes inadequadas; há também uma generalizada propensão ajulgar que pessoas deficientes têm mais possibilidade de se acidentar no trabalho e que seurendimento e produtividade sejam menores. Muitos desses receios e tendências são plenamente justificáveis, pois o mundoempresarial tem seus canais de comunicação formais e informais e os sucessos ou insucessosde pessoas deficientes no trabalho correm muito velozmente. E nesse sentido é fácil deduzirque más experiências em política de pessoal - no que se relaciona a empregados comdeficiências, evidentemente chegam a todos os cantos. Uma das causas dos eventuais fracassos na colocação de pessoas deficientes vem do fatomuito simples de muitas delas não terem condições de trabalho, seja devido a atitudesinaceitáveis, seja devido à falta de condições físicas ou psicológicas para o trabalho. A conquista dos empregadores e de seus gerentes de pessoal, diretores de relaçõesindustriais, diretores de produção chefes de seleção e outros elementos categorizados numaempresa não dependerá nunca de campanhas inconseqüentes por meio de programas decomunicação de massa, como sucedeu durante o Ano Internacional das Pessoas Deficientes,através de um canal de televisão no Brasil todo. A idéia "empregue um deficiente" é péssimasob todos os ângulos e traz dentro de seus termos a própria condição para seu fracasso, poiso termo "deficiente" em si já é depreciativo e tem conotações de insucesso, de perda, defracasso. Se qualquer um de nós for um empregador convicto de sua função e do seu papelno mundo da produção de bens e serviços, levantaria a questão: "Empregar um deficientepor que? Eu preciso de empregados produtivos e não de deficientes que sempre sãoproblemáticos, cheios de dificuldades, revoltados, limitados, criadores de problemas" ... Essa

é a imagem que a grande maioria tem de pessoas deficientes - até que provemos o contráriopor casos bem colocados e de sucesso. O envolvimento do mundo empresarial deverá se dar pela competência que as pessoasportadoras de alguma deficiência poderão mostrar - e essa "competência" elas precisamadquirir através de uma educação adequada em casa e na escola, ou num centro dereabilitação que não seja apenas um simulacro de centro. Aliás, é um requisito que é válido eé aplicado a toda a mão-de-obra, sem qualquer exceção. Pessoas incompetentes, criadoras deproblemas, sem escolaridade ou preparo de natureza profissional, sem experiência, semdocumentação em ordem, são pessoas consideradas inaceitáveis. quer tenham, quer nãotenham qualquer tipo de deficiência. Por mais incrível que possa nos parecer o grande problema que temos no Brasil é aexistência de muitas entidades que trabalham em reabilitação e, seja devido a dificuldadesfinanceiras, seja devido à verdadeira noção das implicações desse processo complexo detrabalho com o ser humano portador de deficiências, não conseguem atingir plenamente osobjetivos propostos. Elas sabem que a reabilitação finaliza o processo com vida de trabalho efazem a promoção da colocação do indivíduo sem tê-lo realmente preparado para tanto. E entramos num círculo vicioso no qual o elemento mais prejudicado é o ser humanodiretamente envolvido numa colocação inadequada que ele logo perde; mas a longo prazotemos prejuízos muito mais sérios e lamentáveis para a própria causa da reabilitação, pelodescrédito do processo reabilitacional. Assim, vislumbramos um caminho apenas: a conquista individual de cada empresa,oferecendo a ela mão-de-obra bem preparada, conhecedora das implicações da vida detrabalho, pronta para uma atuação normal. E essa conquista individual funciona muito bem -sempre funcionou, aliás. O problema da absorção da mão-de-obra de pessoas portadoras de deficiências é muitosério e já mereceu estudos profundos em países mais evoluídos que o nosso. Entre nósmereceria também um estudo crítico, pois não é em duas ou três páginas de consideraçõesque ele poderá ser dissecado com propriedade.

ANEXO I ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL ACONSELHAMENTO DE REABILITAÇÃO

RELATÓRIO. I. IDENTIFICAÇÃO 1. Dados pessoais: Sexo; Estado Civil; Data de Nascimento; Local/Nascimento; Filiação:Pai; Mãe. 2. Localização: Endereço residencial; Bairro; CEP; Cidade; Endereço Atual; Bairro; CEP;Cidade. 3. Documentação: Carteira Identidade RG n°; Est; Carteira de Trabalho n°; Série; Est;Título de Eleitor n°; Zona Eleitoral; C.P.F. n°; Outros. 4. Problema físico: 5. Situação familiar/social: 6. Procedência (encaminhado por): 7. Observações especiais:

II. EXPERIÊNCIA ESCOLAR 1. Curso primário: Escola; Relacionamento cliente-escola; Matérias preferidas.

2. Curso secundário: Escola; Relacionamentos cliente-escola; Matérias preferidas. 3. Outros cursos: Escola; Relacionamentos cliente-escola. 4. Comentários sobre: a) Experiência escolar; b) Significado dos estudos feitos. 5. Planos de estudos:

III. ORIGEM DA IDENTIDADE PROFISSIONAL 1. Profissão/ocupação dos pais ou equivalentes: a) O que os pais pensam do própriotrabalho; b) O que o cliente pensa do trabalho dos pais. 2. Profissão/ocupação dos irmãos: a) O que os irmãos pensam do próprio trabalho; b) Oque o cliente pensa do trabalho dos irmãos. 3. Interesse profissional de amigos/colegas; O que o cliente pensa a respeito. 4. Interesse profissional do grupo de referencia; Como o cliente se vê nessasprofissões/ocupações. 5. 0 que o próprio cliente imagina vir a ser no trabalho: 6. Opinião do cliente quanto a: a) Trabalho de pessoas deficientes e não-deficientes; b)Trabalho de pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto; c) O papel do trabalho na vida dohomem..

IV. EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL 1. Comentário geral sobre vida profissional: 2. Empregos especificados: a) Primeiro local de trabalho: Nome da organização; Tipo de empresa; Endereço; Funçãoexercida; Período de permanência; Como conseguiu emprego; Motivos de saída;Remuneração (última); Horário; Observações quanto a: - Aspectos percebidos comopositivos; - Aspectos percebidos como negativos; - relacionamento com superiores;relacionamento com colegas. b) Empregos intermediários (comentários): c) Último local de trabalho: Nome da organização; Tipo de empresa; Endereço; Funçãoexercida; Período de permanência; Como conseguiu emprego; Motivos de saída;Remuneração (última); Horário; Observações quanto a: - Aspectos percebidos comopositivos; - Aspectos percebidos como negativos; - Relacionamento com superiores; -Relacionamento com colegas; - Comentários adicionais relevantes. d) Informações sobre "situação de trabalho": e) Significado do trabalho na vida do cliente: f) Situação atual face ao trabalho (fatos): g) Atividades atuais: - Como ocupa o dia da semana; - Como ocupa o fim de semana; h) Como vê sua situação atual frente ao trabalho e como procura resolvê-la: - Fantasias desolução do problema; - Papel atribuído ao progr. ajust. Profissional. i) Planos para a vida de trabalho, após a reabilitação: - Como espera atingir o objetivo; -Caso não consiga atingi-lo. j) Conhecimento do universo ocupacional: l) Expectativa a respeito do futuro (global):

V. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CASO a) Síntese interpretativa: b) Planos de atuação para os primeiros 3 meses: VI. PONTOS ESPECIAIS A CONSIDERAR:

LOCAL, DATA E ASSINATURA.

Nome do cliente:

VII. EVOLUÇÃO NO PROGRAMA a) Condicionamento físico: Data – observação. b) Ajustamento psico-social: Data – observação. c) Problemas especiais, intercorrências e outros:

VIII. PLANOS PARA O AJUSTAMENTO PROFISSIONAL (EVOLUÇÃO): a) Programa de aconselhamento: Data – observação. b) Avaliação para o trabalho: Data – observação. c) Ajustamento à vida de trabalho: Data – observação. d) Treinamento em área específica: Data – observação. e) Colocação: Data – observação. f) Seguimento: Data – observação.

IX. CONCLUSÕES PARA O CASO:

Local, data e assinatura.

Anexo II. ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL

AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO

RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO INICIAL I. IDENTIFICAÇÃO: nome; data de nascimento; local; estado civil; residência; bairro;cidade; escolaridade; experiência de trabalho; diagnóstico; observações.

II. ASPECTOS FUNCIONAIS Desempenho qualitativo; desempenho quantitativo; ritmo de execução; organização naatividade; conhecimento/habilidade no manuseio de materiais/ferramentas; resistência psico-física; tolerância; utilização de resíduos e/ ou tato; observações especiais. III. ASPECTOS INTELECTIVOS Atenção/concentração; compreensão/ assimilação.

IV. ATITUDES Motivação; iniciativa; independência; relacionamento. V. OBSERVAÇÕES FINAIS QUANTO AO CLIENTE:

PROGRAMA DE ATUAÇÃO PARA OS TRÊS PRIMEIROS MESES: ... Data de início do programa:

Local, data e assinatura.

Anexo III ÁREA DE AJUSTAMENTO PROFISSIONAL AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO

RELATÓRIO EVOLUTIVO DO CASO Nome do cliente: Avaliação inicial em:

FATORES A SEREM AVALIADOS – CONCEITO/SEMANA. (1, 2, 3 E 4)

FATORES PROFISSIONAIS Quantidade de trabalho; Qualidade de trabalho; Aceitação de crítica do supervisor; Aceitação de crítica de colegas; Organização da bancada de trabalho; Ordem e limpeza no trabalho; Relacionamento com colegas; Relacionamento com superiores; Trabalho em situações difíceis; Assiduidade; Pontualidade;

FATORES SOCIAIS E PESSOAIS Comunicação; Sociabilidade; Embasamento cultural; Atitude perante a vida como um todo; Atitude perante a vida de trabalho; Habilidades relacionadas à vida diária; Apresentação pessoal;

Conceitos simplificados: E = Excelente (sem maiores dificuldades no trabalho); B = Bom(quase aceitável, mas precisa melhorar); R = Regular (demonstra algum potencial); P =Péssimo (cliente com hábitos inaceitáveis).

Outros conceitos poderão ser dados por extenso, no verso deste instrumental, chamando oavaliador a atenção para o mesmo ponto relevante. OBSERVAÇÃO: Outros fatores poderão ser inseridos, à vontade, tais como: Persistênciana atividade de trabalho; Vitalidade no desempenho; Disciplina em trabalho; Cuidado commateriais e ferramentas; Perseverança nas atividades; Resistência à fadiga.

AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO RELATÓRIO DE AVALIAÇÃO E AJUSTAMENTO AO TRABALHO(EVOLUÇÃO)

PORMENORES QUANTO AOS FATORES AVALIADOS Quantidade de trabalho: Total produzido comparado com o total do mesmo produto anível competitivo de trabalho industrial. Qualidade de trabalho: Habilidade de produzir peças perfeitas e executar tarefas semerros, continuamente. Aceitação de crítica de seu supervisor: Aceitação e uso construtivo quanto aos pontoscriticados pelo supervisor. Aceitação de críticas de colegas: Com ou sem discussão de pontos de vista de colegasmais experientes, com boa vontade e sem irritação. Organização da bancada de trabalho: Mantém seu local de trabalho com ferramentas nolocal certo, sem perigos para si e para os outros, com maior produtividade. Ordem e limpeza no trabalho: Não apenas na bancada propriamente dita, mas também nasimediações de seu local de trabalho. Ansiedade no trabalho: Não tem preocupações e receios evidentes; está bem enquadrado esem tensões aparentes. Relacionamento com superiores: Faz contatos adequados que trazem como conseqüênciamaior produtividade e melhor ambiente. Relacionamento com colegas: Estabelece bons níveis de relacionamento que acabamcontribuindo para melhoria do ambiente de trabalho. Trabalho em situações difíceis: Consegue desenvolver seus trabalhos sem maioresdificuldades, em condições consideradas difíceis e fora do normal. Assiduidade: Inexistência de ausências sem constantes justificativas. Pontualidade: Marca o ponto nas entradas e saídas, nos horários estabelecidos. Comunicação: Tem habilidade de se expressar no trabalho e fora dele. Sociabilidade: Tem conduta aceitável na área de trabalho, durante os eventuais intervalose em outras situações, tanto com colegas individualmente, quanto com grupos e comsupervisores. Embasamento cultural: Tem nível cultural adequado ao seu potencial e aos seus planos detrabalho. Atitudes perante a vida como um todo: Tem atitude positiva com relação à sua vidapessoal e familiar. Atitude perante a vida de trabalho: Tem atitude positiva com relação ao trabalho e comrelação aos seus planos profissionais. Habilidades relativas à vida diária: Mantém-se diária e diuturnamente bem com relaçãoaos componentes da vida de todos os dias. Apresentação pessoal: Bem penteado, bem barbeado, limpo, vestido de forma adequadapara o trabalho.

CAPÍTULO QUINTO AS EQUIPES DE REABILITAÇÃO NOS PROGRAMAS DE HOJE

Na assistência à pessoa deficiente, através dos tempos, podemos reconhecer os diversosmétodos de trabalho, os objetivos dos programas estabelecidos e os procedimentos adotadospara levá-la a sair da situação de dependência. O processo de reabilitação, conforme hoje concebido e posto em prática, reconhece ummétodo apenas, um único objetivo e apenas um tipo de procedimento que são aceitáveis. Ométodo precisa ser devidamente centrado na pessoa portadora de deficiência e com issogarantir seu tratamento como um todo e nunca em partes estanques. O objetivo do processoreabilitacional, que é respeitado universalmente e não apenas em nosso meio, é o de provermeios para que o indivíduo satisfaça suas necessidades, enquanto que o procedimentoreconhecido adota o tratamento global do homem deficiente. Para que esses pontos fundamentais possam chegar a ser concretizáveis num centro dereabilitação e para que, como resultado prático, a pessoa deficiente possa se sentirbeneficiada, é básico que exista e que de fato ocorra a reunião de vários especialistas, cadaum dono de suas próprias habilidades de caráter profissional, para formar o que todosconhecem como "equipe de reabilitação”.

- *O trabalho de equipe em reabilitação* O trabalho de equipe tem se tornado cada vez mais importante e recomendado. Ouvimosfalar a respeito desse tipo de atuação em atividades do mundo industrial, nas ciências, nosesforços comunitários, na medicina, na educação, nos esportes, na reabilitação e em quasetoda atuação na qual as pessoas trabalham juntas para atingir objetivos comuns. Não é deestranhar que a expressão "trabalho de equipe" tenha sido muito utilizada, própria ouimpropriamente, para todas as experiências que demandam esforços cooperativos. O trabalho de equipe, na acepção correta do termo, porém, supõe um modo especial detrabalhar em conjunto, com a indispensável integração de todos os que compõem o grupo.Especialistas podem ser agrupados e podem encontrar-se para trabalhar juntos ou emcolaboração com outros, sem que essa atuação resulte num típico trabalho de equipe. Verifica-se que em certos tipos de atividades a atuação de equipe é tão fundamental quesua inexistência acaba provocando seu mais contundente fracasso. Uma dessas atividades é areabilitação, que somente tornou-se viável após o estabelecimento de uma atuação conjuntade ciências diversas, com a participação de profissionais pré-determinados que conseguemoperacionalizar um programa de atividades indispensáveis ao desenvolvimento do serhumano que é portador de uma deficiência física, sensorial, orgânica ou mental. A qualidade de sua atuação e os seus resultados dependem muito da maneira como otrabalho de equipe é desenvolvido, e esse trabalho só funcionará se cada um dosprofissionais reconhecer o entrelaçamento existente entre seu campo de atuação e os dasdemais profissões, assumindo todas as conseqüências dessa posição. Em reabilitação daspessoas portadoras de deficiências não existe simplesmente um tratamento físico, ou apenasum trabalho que leve ao ajustamento psico-social, uma vez que, por definição mesmo, otratamento deverá ser sempre "global", somando os esforços dos diversos profissionais. Étambém importante notar que um trabalho de equipe, no campo da reabilitação, bemcoordenado e bem dosado, evita duplicações de esforços, conflitos de objetivos e a eventualomissão de um determinado tipo de atendimento pela suposição de que outro profissional jáo tenha providenciado.

Consideradas as finalidades da reabilitação, a equipe de profissionais nela atuante jamaispoderá tornar-se um mero aglomerado de detentores de habilidades específicas e nãorelacionadas entre si, uma vez que terá significado e valor quando conseguir funcionar comouma unidade. É interessante notar que uma equipe de reabilitação é mais complexa do queuma outra formada, por exemplo, para trabalhos de comunidade, na qual um certo númerode representantes de entidades e empreendimentos participa. A equipe multiprofissional dereabilitação no seu sentido mais global é também mais ampla do que uma equipe médica oudo que uma equipe destinada à "reabilitação hospitalar" que é necessariamente limitada emsuas possibilidades de bem lidar com as necessidades globais do ser humano. A equipe destinada a centros de reabilitação global não pode deixar de incluir todos osprofissionais necessários para cobrir tudo aquilo que for considerado essencial para um bomdesempenho físico, social, psicológico e profissional de cada indivíduo atendido. E pelomenos alguns dos membros dessa equipe de reabilitação devem compreender e assimilar osprincípios básicos e os conhecimentos que são necessários para ajudar uma pessoa deficienteem sua reabilitação. Considerações importantes quanto aos fundamentos de um trabalho reabilitacionalpoderão ser levantadas outra vez, mas três delas são básicas, e não podem jamais seresquecidas: - o ser humano, dinâmico, perfectível, único e integrado, funciona à base de interações; - o processo de tratamento de reabilitação deve ser dinâmico e suficientemente fluido parase manter na mesma velocidade de evolução e progresso da pessoa em mudança,considerada sempre a globalidade de seus problemas, o conjunto de suas potencialidades esua participação no processo; - para o desenvolvimento de um programa de reabilitação que dê um atendimento àpessoa como um todo, o trabalho de equipes multiprofissionais é indispensável, uma vez queenseja atividades de associação de vários profissionais que interagem e que se especializam.

O trabalho de equipe, conforme deve ser aplicado num centro de reabilitação, é a uniãopróxima, democrática e multidisciplinar, devotada a um propósito comum, ou seja, otratamento mais completo possível do indivíduo portador de deficiência, com base em suascapacidades, necessidades e aspirações. A equipe de reabilitação não deixa nunca de ser um grupo distinto em suas partes, que agecomo uma unidade. Tanto isso é verdade que nenhuma ação importante quanto ao clientedeve ser adotada pelos membros de uma profissão sem que haja a ciência e mesmo aconcordância da equipe como um todo. Para que isso venha a acontecer, é necessário que todos os que fazem parte da equipedominem um embasamento técnico que inclua não apenas pontos fundamentais do processode reabilitação, mas também: - o reconhecimento dos limites de sua atuação profissional; - a compreensão da linha básica de funcionamento do centro de reabilitação onde atuam; - o conhecimento essencial das práticas e o alcance das diversas ciências ou técnicas que,no trabalho de equipe, se fazem companheiras.

É fundamental também que todos os componentes de uma equipe que se responsabilizapelo desenvolvimento de um processo complexo como é a reabilitação, tenham mentalidademadura e flexível para discutir novas idéias e aceitar novos desafios, sempre muito comunspara quem trabalha nesse campo. Sendo assim, é claro, todos devem sentir-se seguros emsuas áreas de atuação.

- *As garantias para um verdadeiro trabalho de equipe* Para assegurar o atingimento dos desideratos acima indicados, há que se considerar emprimeiro lugar a própria planta física do centro de reabilitação, pois as instalações devem serde tal natureza e distribuídas de tal forma que dêem a todos os membros da equipe detrabalho oportunidades para o estabelecimento fácil de discussões entre si – e, talvez mais doque isso, que virtualmente levem a esse tipo de contato. As salas do diversos profissionais de uma equipe de reabilitação devem ficar próximasumas das outras – especialmente aqueles que cobrem áreas afins ou convergentes, comocondicionamento físico, ajustamento psico-social e ajustamento profissional – de modo queeles se encontrem com freqüência durante o dia de trabalho, mesmo fora de reuniõesprogramadas, para discutir pormenores que talvez possam ficar omissos ou deixados de lado,caso seja necessário procurar alguém muito distante. É necessário garantir também, com bastante persistência, uma atmosfera agradável detrabalho, o que implica em não apenas haver salas e equipamentos suficientes, mas tambémem manter muito clara e presente a noção de que a cooperação deve ser mútua e constantedentro de um centro de reabilitação. A administração do centro, nesse desejável ambiente de trabalho, deve ser suficientedemocrática para permitir a livre troca de informações profissionais no desenvolvimento dotratamento do cliente. Sem essa liberdade, o nível ideal de atuação dificilmente poderá seratingido por uma equipe consciente de seu papel. Todos os membros da equipe devem ter acerteza de que, respeitada a linha hierárquica e garantidas as normas vigentes na instituição,não há bloqueios aos contatos com a administração do centro e que os problemas por elesanalisados serão sempre devidamente considerados.

- *A liderança de uma equipe de reabilitação* Palavra super-valorizada, tanto em reabilitação quanto em atividades as mais variadas domundo moderno, "equipe" tem problemas inerentes e muito característicos, de grandeseriedade. Um desses problemas é o de sua "liderança". No caso da reabilitação, já ficou claro que o trabalho de equipe é essencial; nenhumprofissional conseguiria desenvolver o processo sozinho. Essencial como ele é, o trabalho deequipe - seja em reabilitação, seja em outras atividades - historicamente surgiu e foi adotadonão só em conseqüência de decisões estabelecidas pela observação científica, mas poranalogia com atividades esportivas em grupo. Pois foi essa mesma analogia que semprelevantou a idéia de que uma equipe necessita de um "capitão", um "líder". E, de fato, écrença generalizada que grupos de pessoas não conseguem atuar e trabalhar juntos sem quehaja um líder, um capitão, um responsável, um diretor. Qual dos profissionais poderá ser o líder de uma equipe de reabilitação? Existem líderespré-determinados? Por mais técnicos e objetivos que os profissionais que atuam em reabilitação queiram serem sua atuação, todos eles, sem qualquer exceção, reconhecem que há um problema queafeta diretamente uma equipe (dentre os muitos que podem afetá-la que se resume nestapergunta: "quem é o líder do grupo?"). Todos, sem exceção, concordam que é importante estabelecer claramente essa questão deliderança ou coordenação, e quase todos concordam que deve haver "um" líder. No entanto,a grande maioria dos médicos fisiatras acha que não deve haver "um" líder, mas "o" líder,que precisa, necessariamente, ser o médico. Claro que há motivos sérios para esseposicionamento, motivos esses que vão desde a etiologia dos males e das deficiências, até a

urgência de se iniciar o processo reabilitacional ainda no hospital. Um outro motivo muitosério que tem sido constantemente alegado é a evidente liderança que muitos médicos têmexercido no desenvolvimento geral da reabilitação em todo o mundo. O questionamentodessa posição de médicos não nasce e nem poderia nascer desses argumentos,evidentemente, mas de alguns outros. Há, por exemplo, profissionais de reabilitação que defendem a posição de que o ato decoordenar o trabalho de uma equipe ou de liderá-lo depende muito mais de habilidade parafazê-lo do que do cargo ou da formação profissional do líder ou do coordenador - e hácarradas de razão nesse argumento. Outros acham que a liderança ou a coordenação de uma equipe muito tem a ver comquestões e padrões de produtividade e essa missão deve caber a um elemento em cargo dechefia ou ligado à administração do centro, que pode ser médico ou não. Há também aquelesque defendem esta posição: deve coordenar a equipe o profissional detentor da ênfaseprincipal no programa do cliente. Se a ênfase for médica, o médico coordena; se ela forprofissional, o conselheiro de reabilitação coordena, e assim por diante.

- *A ausência da coordenação formal de uma equipe* Há uns poucos centros no mundo que defendem uma linha de atuação mais aberta e maismoderna, que não mantêm coordenação alguma para suas equipes, pois partem dapressuposição de que seus profissionais devem ser maduros e muito conscientes de suasobrigações, e com noção clara das possibilidades e necessidades de entendimentoscomplexos e objetivos. "Um grupo de profissionais pode, portanto, funcionar sem necessidade de supervisão oude controle. O próprio grupo coordena ou dirige sua atuação e garante os serviços de quecada cliente necessita. A continuidade dos serviços pode ser mantida sem qualquer direçãopor parte de uma pessoa especialmente designada para tanto. Cada profissional continua atrabalhar com o cliente, do início ao fim do processo de reabilitação ou pelo tempo que tiveralgo a contribuir. O tratamento não é, ou não deveria ser uma questão de passar um clientede um especialista para outro. A qualquer tempo, dependendo das necessidades do cliente,qualquer um dos profissionais poderá ter responsabilidade mais séria de prestar serviçosespeciais ao cliente. O grupo em si mesmo, através de contatos informais ou reuniões, bemcomo através de contatos formais, coordena os serviços e atividades destinadas ao cliente"("Is the Team Concept Obsolete?", dePatterson). O autor acima refere-se a certos pré-requisitos para um funcionamento dessa natureza. Eleacha que cada membro da equipe deve aceitar o outro profissional em bases de igualdade ecada profissional deve ser competente em seu próprio campo de ação. A pressuposiçãoprincipal para que um centro de reabilitação funcione bem deveria ser a de que toda a suaequipe é composta de profissionais bem treinados e competentes em seu campo - o queraramente sucede entre nós. Existem centros de reabilitação, em vários pontos do Brasil, quenão contam com profissional algum especializado. Pessoalmente vivenciamos uma situação de observação e análise de uma equipe dereabilitação que adotava há anos a chamada "auto-coordenação" - a equipe em questão nãodispunha de líder ou de coordenador estabelecido. À época admiramo-nos da versatilidade eda naturalidade de fluência do processo, bem como da objetividade das colocações enotamos que, de fato, é um sistema viável de atuação em equipe, desde que ela conte comprofissionais de boa vivência e muito bem preparados quanto à reabilitação e ao trabalho em

cooperação. Não cremos que seja impossível tal sistema funcionar entre nós, emborasomente possa ter sucesso e a indispensável continuidade em situações bastante especiais. O fato concreto e irretorquível é que uma equipe precisa trabalhar num bom equilíbrio,com respeito mútuo, competência e dentro de um ordenamento bem estabelecido que acatetodos os procedimentos básicos adotados pelo centro de reabilitação - e isso não podeocorrer em climas de tensão criados por líderes inadequados ou impostos.

- *As dificuldades principais em coordenar uma equipe* O trabalho de equipe em reabilitação não pode ser deturpado. Ele não pode existir, porexemplo, apenas para colecionar opiniões dos vários profissionais, cada um considerando ocliente sob o seu especializado ângulo de visão, de forma estática, sob a coordenação dealguém que acaba assumindo a função de uma espécie de "arranjador-mestre", cujaobrigação é fazer todo o possível para combinar esses pontos de vista, a fim de chegar a umaconclusão. Temos em diversas partes do Brasil centros de reabilitação - ou organizações que usamesse título - das mais variadas naturezas e objetivos e que funcionam dessa maneira. E assimo fazem, quer devido à reduzida experiência profissional de alguns membros de sua equipe,quer pela necessidade que algumas diretorias de centros sentem de manter o poder detomada de decisões em suas mãos. Há também a tendência de algumas diretorias de mantero poder de tomada de decisões nas mãos de um só elemento, ou seja, do coordenador daequipe, que assume essa função sem apresentar condições básicas de preparo profissional,sem ter vivenciado outras experiências, ou sem ter condições mínimas de liderançareconhecida pela equipe que com ele atua. As equipes assim "comandadas" apresentam, de um modo geral, um fenômenocaracterístico e muito sintomático: alguns profissionais menos experimentados procuramtornar seus relatórios de um nível tão alto e sofisticado, ou de um linguajar técnico tãorebuscado, que se torna quase impossível qualquer tentativa de sumariação. Emconseqüência, não ocorre a necessária assimilação do conteúdo dos relatórios pela equipecomo um todo e os programas dos clientes ficam repartidos e sub-divididos em áreas quaseque estanques. Dessa forma, os profissionais acabam se prejudicando, e muito mais do queisso, os clientes sempre levam a pior de todas as desvantagens, uma vez que seus programasperdem a objetividade. O difícil papel de coordenador de uma equipe de reabilitação não se reduz à simplescobrança de relatórios ou providências, nem à re-escalação de clientes para uma reavaliação.Não se reduz também à simples função operacional de facilitar o diálogo entre profissionaisdurante as reuniões da equipe, ou à tentativa de levar a uma assimilação das informaçõesprofissionais contidas em relatórios. Cabe ao coordenador de uma equipe levar seus profissionais a entender a importância dotrabalho multiprofissional bem ajustado às capacidades da clientela e ao andamento daequipe como um todo. Para que isso ocorra é preciso que eles se mantenham alertas quanto ànecessidade de elaborar seus relatórios com propriedade, considerados os fins propostos pelareabilitação, sem que caiam no extremo oposto e indesejável de transformá-los num merorelato formal, cronológico e frio dos acontecimentos verificados durante o desenvolvimentodo programa, por vezes muito pouco úteis para os demais serviços. Cada profissional deverá dar sua contribuição em bases quase que equivalentes com osdemais colegas, para uma tomada de decisão ou julgamento de situações, considerada aprópria posição profissional.

A despeito das dificuldades características desse tipo de trabalho, o respeito mútuo e ointeresse pelo reabilitando e por seu programa de atividades devem impedir, ou pelo menosrefrear, irretratáveis diferenças de opinião que podem transformar uma reunião de equipenum verdadeiro campo de batalha, na tentativa de obter vitórias de argumentação quanto aprocedimentos e formas de atender a pessoa deficiente.

- *Problemas típicos encontrados num trabalho de equipe* Além das dificuldades características relacionadas à liderança e/ou coordenação deequipes, dentre os problemas que podem bloquear, impedir ou dificultar o desenvolvimentodas atividades de reabilitação poderemos citar os seguintes adicionais: a) Falta de confiança e respeito mútuos: Às vezes os membros de uma equipe dereabilitação não demonstram na prática as necessárias doses de confiança e respeito mútuos.Outras vezes agem como se considerassem seus colegas de equipe como meros defensoresde um determinado campo de atuação de suas áreas profissionais, mantendo-se alertas paraeventuais "invasões" de campos alheios. b) Excesso de importância à própria atuação: Para alguns profissionais o longo processoeducativo e formativo em sua área profissional leva a uma quase certeza de que o tratamentodo cliente precisa ser centrado em sua atuação ou em sua profissão. Isso ocorre em quasetodas as profissões envolvidas, pois eventualmente cada profissional acaba dando maiorênfase à sua atuação por considerá-la a mais importante para o cliente. Na verdade, emqualquer programa de reabilitação, toda entrevista, teste, prova, atividade ou esforçoprofissional sistematizado deve ser apenas um ponto de referência a mais e nunca umtrampolim para diagnósticos isolados e apressados. c) Desconhecimento das demais profissões: É um fato sobejamente conhecido que todasas profissões envolvidas no processo reabilitacional procuram ser dinâmicas, mantendo-seem constante processo de mudanças e de adaptações. Se o profissional consciente de hoje jáacha difícil manter-se atualizado com os progressos de sua própria profissão, torna-se tarefasobre-humana procurar atualizar-se com relação a outras profissões. Além do mais, oconhecimento que adquirimos de um campo profissional alheio ao nosso, acaba sendo quaseque invariavelmente superado. Tem sido notório o engano de imaginar-se o serviço socialcomo uma profissão que só se preocupa com providenciamentos de ordem prática, porexemplo. Pensar que fisioterapia limita-se a massagens é também um erro que acontece.Outro engano usual é julgar que psicólogos só aplicam testes. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas o que nos importa aqui que saibamosque em muitos centros de reabilitação essas interpretações errôneas ou tendenciosas poderãolevar a prescrições ou a recomendações causadoras de mal-estar e mesmo de agressividade.É fundamental que os profissionais de reabilitação conheçam os campos de competência dosdemais colegas, sem que essa preocupação os leve a excessos. d) Falta de atitudes de cooperação sistemática: Mesmo conhecendo as atribuições oupapéis dos vários profissionais engajados em reabilitação, existem aqueles que não adotamatitudes de cooperação sistemática, tornando a atuação de todos bem mais difícil do que ausual. A cooperação profissional é uma condição básica e insubstituível para o bomdesenvolvimento do processo. e) Comportamentos inadequados numa equipe: Certos tipos de comportamentos no grupode técnicos às vezes causam dificuldades ou constrangimento. Alguns profissionais mantêm-se em competição quase que inconsciente para um efetivo "controle" do cliente que estãoatendendo. Alguns outros são excessivamente rígidos ou inseguros no trabalho com outraspessoas. Há também aqueles que são excessivamente permissivos no relacionamento com os

clientes, eliminando tudo aquilo que é característico da relação profissional-cliente,causando com isso situações de sérias dificuldades para a equipe. De quando em quando encontramos em equipes de reabilitação profissionais com umestranho domínio da noção de ética funcional/pessoal/profissional. Conhecemos umprofissional participante das reuniões de equipe que contava aos clientes as opiniões dosdiversos colegas quanto a assuntos delicados de seus casos. O tom de suas informações erade tal natureza que a equipe começou a sentir sérias dificuldades no desenvolvimento deseus trabalhos f) Falta de experiência em trabalho de equipe: Devido ao fato de terem vivenciado apenasexperiências de trabalho isolado, com pleno sucesso, mas limitadas no sentido de não terocorrido trabalho em colaboração com outras profissões, alguns profissionais, ao ingressarnum centro de reabilitação, não se adaptam com facilidade ao trabalho de equipe.Experiências dessa natureza às vezes dificultam a atuação em equipe, embora tais problemaspossam ter sido estabelecidos mais por ignorância do que por conhecimento das diversasáreas de competência profissional. Além da atitude própria para trabalhar em equipe, umtécnico que trabalha em reabilitação deve dominar bem seu campo de atuação e ter umaidéia clara de quais os aspectos de outras atividades por eles desenvolvidas que podem sermais adequadamente executadas por algum profissional de outro setor ou área profissional. g) Estilo inadequado de relatório: Por vezes ocorrem situações em que membros da equipesimplesmente "relatam" em vez de "interpretar". A linguagem precisa e especializada damedicina ou da fisioterapia, por exemplo, rivaliza-se com as expressões técnicas do serviçosocial ou da psicologia. Alguns profissionais chegam a utilizar-se de termos apenas adotadosem circuitos fechados, termos esses que acabam tornando-se pouco compreensíveis para osque não militam no mesmo campo ou área de atuação. E muitas vezes ocorrem dificuldadesnos termos homógrafos que podem ter, em certas profissões, conotações diferentes. Muitosexemplos poderiam ser citados, mas apenas alguns são suficientes para alertar quanto aoestilo inadequado de se relatar em reabilitação. - De um relatório de terapia ocupacional: "Tônus normal, tendendo à hipertonia doproximal para distal - MSE" ... "Sensibilidade: testada bilateral p/MMSS" ... "Topognosia:percebeu difusamente no dorso da mão e na região palmar" ... - De um relatório de fisioterapia: "Resistência: FC antes da prova 86 bpm. Após a prova aFC não se alterou" ... "Quadrupedia: adota a posição. Duplo apoio heterolateral do MSE eMID" ...

Claro que são relatórios que precisam ser interpretados para aqueles profissionais que nãosão versados em terminologia ou abreviaturas de origem médica. Mais do que isso, precisamser reformulados face aos objetivos do processo de reabilitação. Estudos desenvolvidos em países mais evoluídos no atendimento a pessoas deficientesmostram que profissionais de formação equilibrada e seguros de sua própria atuação ou desuas posições em geral, conseguem explicá-las, interpretá-las e elucidar dúvidas, podendocom essa atitude educar e ser educados. h) Metodologia de cooperação quase inexistente: Embora prejudicial para todos osprogramas destinados ao atendimento global da pessoa deficiente, nenhum grupoprofissional dele participante tem desenvolvido qualquer tentativa válida para o ensino demétodos de cooperação com as demais profissões. Em alguns programas de reabilitaçãosabe-se de tentativas e esforços isolados de alguns profissionais para fomento dessaindispensável cooperação, mas a eventualidade do esforço não o torna consagrado para todasas situações.

i) Jogos de prestígio e de poder e seus malefícios: Os chamados jogos de poder, doprestigio político ou pessoal, e dos compromissos já assumidos existe muito forte eimpregna toda nossa realidade, e não apenas a reabilitação. A atitudes conseqüentes a essestipos de expediente afetam seriamente um trabalho que precisa ser desenvolvido em equipe.Exemplos dessas inadequacidades de atuação podem ser facilmente encontrados, como porexemplo, a influência indevida de quem controla a situação financeira da entidademantenedora do centro de reabilitação; a pressão de certos políticos; a influência do prestígiode certos membros da equipe; o sutil e desagradável efeito da atuação de profissionais quenão se preocupam ou nunca se conscientizaram quanto a certos princípios éticos, e que comisso procuram manter situações sob seu controle indevido. j) Ausência de uma boa política de pessoal: Uma administração ou direção de entidadeque não adota uma boa política de pessoal pode surgir - como de fato tem surgido - comoum bloqueio dos mais sérios à atuação da equipe de reabilitação. O interesse autêntico deprofissionais, o envolvimento constante, a vitalidade do processo, as possibilidades decrescimento profissional, precisam ser garantidos pela direção do centro, em dosagensadequadas.

Em resumo, uma equipe de técnicos de muito boa qualidade individual num centro dereabilitação terá valor apenas limitado para as pessoas deficientes, a menos que, além dedominar com segurança os princípios fundamentais e os propósitos da reabilitação, osdiversos técnicos que dela tomam parte se vejam como membros de uma equipemultiprofissional, onde cada um tem seu papel específico e um determinado valor. Trabalharem diversas direções, ou pior ainda, trabalhar em direções antagônicas, mesmo que seja comhabilidade e grande virtuosismo, não levará nunca à reabilitação e certamente prejudicará oreabilitando.

- *A necessidade de tratamento global do cliente* Existe certa uniformidade de conceito - pelo menos em tese - e uma concordânciageneralizada quanto à consideração da pessoa humana do cliente de reabilitação como umtodo, como um ser global. Esse conceito é tão universalmente aceito que trabalhos escritosem cada área profissional, seja ela qual for, quase sempre indicam a necessidade de seusprofissionais ficarem alertas para os muitos aspectos da natureza humana e para anecessidade de disseminação desse conhecimento às disciplinas componentes da equipe dereabilitação, de tal maneira que essa criatura diferente, repleta de valores próprios e deaspirações que é o ser humano portador de uma deficiência, receba um tratamento cada vezmais adequado e de natureza global. Dentre as várias razões que podem ser alegadas para justificar esse tipo deposicionamento, cumpre destacar aquilo que vem ocorrendo há muitos anos já na medicina:tem-se observado a psiquiatria e a medicina psicossomática procurando levar médicos eoutros profissionais que colaboram direta ou indiretamente com a medicina, a reconhecerque há problemas que afetam seus pacientes que vão muito além de sua esfera decompetência. Com a complexidade crescente de todas as ciências e a necessidade cada vezmaior de especializações, fica sempre mais evidente que, dentro de uma única área, oprofissional não pode trabalhar com alguns sintomas especiais, sem uma consulta ou trocade opiniões paralelas com outros profissionais. A expansão da reabilitação que colocou uma certa variedade de profissionais em contatocom o outro, tem adicionado certo impulso a essa tendência na Europa e na América doNorte. Surgem nesses países, hoje em dia, muitas críticas quanto à profundidade de

treinamento de médicos, por exemplo, no entanto, se considerarmos o volume de tempo quetem demandado o preparo de um profissional de medicina de bom nível, ficaremos surpresoscomo esse treinamento tem aumentado através dos tempos e admiraremos o esforço quasesobre-humano que tem sido dado por estudantes de medicina que desejam levar a sério suaprofissão. O campo a ser coberto é tão vasto que o currículo médico é considerado, e comverdade, indevidamente reduzido sob certos pontos de vista Mesmo assim, o médico émuitas vezes educado somente em parte nas muitas das crescentes especialidades e elepoderá muito bem não estar alerta quanto à problemática inserida na faixa deresponsabilidade do serviço social ou da psicologia. É evidente que a profissão médica não é a única à qual esse tipo de observação éaplicável. A verdade é que nenhum profissional consegue entender outro ramo profissionaltão bem quanto possa desejar. A falta de tempo, por si só, seria um impedimento para tanto. Mas, tal falha decompreensão, quando não for sanada por atitudes demonstrativas de genuíno interesse econfiança, acaba gerando conflitos justificáveis ou não, num trabalho de equipe, levandoinclusive alguns profissionais a invadir a área dos outros; é a temida superposição deatividades que acontece.

- *Superposição de atividades em equipes de reabilitação* Os motivos que acabam provocando desentendimentos e conflitos em equipes dereabilitação não são apenas conseqüentes à parcial ignorância das funções e dasresponsabilidades de cada um dos profissionais. Decorrem igualmente da falta de clareza nadefinição dessas funções, somada à eventual tendência de algum profissional "resolverproblemas práticos" pela simples aplicação da tática do bom senso (subjetivo, claro) ou pelaampliação das funções em seu campo de trabalho. Essa tendência surge devido a problemas provocados por certos profissionais omissos emsuas obrigações para com o cliente; surge também devido ao desejo de colaborar de ummodo mais rápido, menos burocratizado, mais efetivo. A conseqüência indesejável daampliação indevida de funções é a ocorrência de superposições e a eventual desorientaçãodo reabilitando. Apesar de reconhecer que todas as outras profissões são importantes, o que ocorre comesses profissionais que avançam nas funções alheias é que eles acham que as necessidadesmais relevantes do cliente estão infalivelmente dentro de seu campo de ação e todas asdemais profissões acabam consideradas como "auxiliares" de sua própria. Desta forma, umprofissional que trabalha dentro dessa linha de raciocínio acaba tentando usurpar a função deoutro, minimizando sua importância face ao elemento mais interessado que é a pessoadeficiente em busca de uma solução para seus problemas. Essa verdadeira invasão à custa docliente bloqueia o trabalho de reabilitação, pois o reabilitando fica inseguro em sua definiçãode vida de trabalho, por exemplo, se um profissional qualquer que não o conselheiro dereabilitação lhe diz: "Você poderá se tornar um joalheiro ou consertador de relógios" ... Omal feito nesses casos poderá ser considerável, dependendo do tipo de profissional que tiverfeito o infeliz comentário. Opiniões mesmo que veladas em forma de pergunta, ou expressasdevido a uma atividade qualquer, podem ser avidamente tomadas, dificultando a elaboraçãode planos mais objetivos e concretizáveis relacionados à vida de trabalho. Evitar problemas dessa natureza é muito importante e a cooperação para esse fim poderáser intensificada não só pelo respeito sistemático aos limites de atuação de qualquer dasprofissões envolvidas, como também pela ação integrada em um plano mais global, ou ainda

em planos desenvolvidos juntamente com outros colegas de trabalho, seja por meio decontatos individuais, seja através das reuniões de equipe. Para se trabalhar numa equipe de reabilitação não é necessário apenas ser possuidor de umdiploma de curso superior, mas é fundamental ser profissionalmente maduro. Emdecorrência dessa maturidade exigível, o profissional precisa entender que a simplesalegação de conhecimento de um campo de trabalho alheio ao seu, será sempre inadequada.Só poderá alegar conhecimento e domínio de um campo de trabalho quem vivecontinuamente nele, formou-se nele, preocupa-se com ele e nele toma decisões, por vezesdifíceis, vendo seus resultados e ganhando conhecimento em profundidade. A identificação,o prognóstico e o diagnóstico de uma necessidade podem ser elaborados somente porprofissionais especificamente orientados por um sistema de formação profissional, além daexperiência e treinamento para assim fazê-lo.

- *O trabalho de equipe: perspectivas* Considerada a realidade da reabilitação, e da formação de pessoal que normalmente irácompor suas equipes, qual poderá ser a solução para o tratamento mais adequado do cliente,globalmente considerado? Estará na obtenção de maior volume de especialização? Estará noaumento do treinamento acadêmico ou na maior profundidade quanto a conceitos básicos? Cremos que qualquer tentativa de resposta não poderá ignorar os seguintes pontos: a) Existem, concretamente, as várias áreas funcionais e as respectivas limitações de cadauma delas, nos programas de reabilitação. Assim é que, consideradas as características doprograma global que deve procurar levar o individuo com deficiência a um estado deadequação pessoal de acordo com seus planos e realidade, teremos o condicionamentofísico, o ajustamento psico-social e o ajustamento profissional, dentro dos quais se inseremtodos os componentes da equipe de reabilitação. b) Há uma incontestável vantagem na combinação dessas áreas, ou seja, num trabalhoharmonioso desenvolvido por meio de uma equipe multiprofissional, que deve ser obtidaapós o atendimento bem coordenado em cada uma das áreas acima indicadas.

Em nenhuma outra situação temos encontrado maior necessidade de integração deconhecimentos e de combinação de várias profissões do que no campo da reabilitação. Acomplexidade da missão de integrar pessoas portadoras de deficiências na sociedade abertatem levado centros de reabilitação a adicionar serviços novos, a fim de encontrar soluçõescada vez mais complexas às necessidades das pessoas que apresentam problemas interrelacionados. No entanto, considerada a realidade de trabalho inter-profissional de um centrode reabilitação a tendência para um treinamento mais amplo e sem profundidade, ou para aespecialização extrema, deve ser evitada. Para chegarmos a soluções que concretamente beneficiam os programas de assistênciareabilitacional e muitos outros que dão atendimento ao ser humano através de trabalhos deequipe, algumas ponderações precisam ser feitas, pois algumas alterações fundamentaisprecisam ocorrer e algumas delas bem significativas, tais como: - A escola primária precisa enfatizar continuamente os trabalhos em cooperação, ênfaseessa que deverá ser adotada e/ou mantida também nos níveis secundário e superior,procurando dessa maneira levar as pessoas a trabalhar em grupo. - É muito importante que haja em todas as faculdades um ensino realista de métodos e/oude fórmulas de atuação inter-profissional, além da indispensável oportunidade da prática decooperação com profissionais de outras áreas, sempre informada pela noção objetiva daimportância que têm as outras profissões.

- É muito importante que, em reabilitação, sejam enfatizados os conhecimentos básicos eas atitudes profissionais para o trabalho de equipe, a fim de que treinamentos bem orientadospossam suprir as falhas decorrentes da ausência de temas específicos em cursos superioresnormais. - É fundamental que sejam desenvolvidos e sempre encorajados estudos e pesquisas arespeito dos processos de trabalho em colaboração e de caráter multiprofissional.

Não resta dúvida que o trabalho de equipe num centro de reabilitação é um ideal a seratingido em sua plenitude. No entanto, há muito que se aprender dentro de nossa realidadede atuação. Experiências já vividas nunca deixarão de ser de valor muito concreto, podendolevar-nos a uma cuidadosa análise da realidade que nos cerca, pois essa realidade mostrar-nos-á como é importante um trabalho cooperativo. Àqueles que trabalham em programas de reabilitação restará o desafio de bem utilizaressas experiências, para o bem-estar de todos aqueles que pretendem dedicar-se àreabilitação e para benefício de todas as pessoas deficientes que dela necessitarem.

CAPÍTULO SEXTO A AVALIAÇÃO E O CONTROLE NOS PROGRAMAS DE REABILITAÇÃO

Ninguém pode negar que um centro de reabilitação pode determinar, por iniciativaprópria, a ênfase que deseja dar aos seus trabalhos. Encontramos, por exemplo,organizações que dão maior volume de atendimento médico e para-médico, outras que dãoênfase aos aspectos profissionais da reabilitação, procurando levar o indivíduo a umajustamento significativo em sua vida de trabalho. No entanto, ao nos aprofundarmos noestudo de alguns recursos existentes aqui no Brasil, notamos que há iniciativas que denotammenos uma opção de ênfase técnica do que um real desconhecimento do que sejareabilitação. Encontramos em nossa realidade centros de reabilitação que trabalham muito mais comoambulatório médico para males ortopédicos do que como centro destinado à reabilitação doindivíduo. Há clínicas de fisioterapia que se intitulam centros de reabilitação. A própriapalavra "reabilitação" é utilizada indiscriminadamente pelos próprios profissionais que nelaatuam, patenteando um desconhecimento real do assunto. Aberrações dessa natureza ocorrem à nossa volta com certa insistência, causando àreabilitação muito mais mal do que bem. Em centros de reabilitação de caráter geralencontramos, via de regra, todos os profissionais e serviços usualmente requeridos. Naverdade, há vários serviços que são óbvios em termos de utilidade prática imediata, enquantoque outros ainda permanecem como grandes dúvidas e são tolerados principalmente devidoao fato de que sem eles a entidade passaria a ser mal conceituada ou, então, teria seusconvênios com organizações financiadoras cancelados. Essa seria uma das poucas razõespara manterem seu lugar ao sol.

- *Os profissionais envolvidos em reabilitação* Analisemos um pouco o passado de certos serviços que cuidavam de pessoas comdeficiências físicas. A ociosidade era o que mais preocupava os voluntários e profissionaisde então. Importou-se a idéia de certa ocupação por atividades de trabalho - a então chamadalaborterapia. Diga-se de passagem que muita gente que procura atuar nesse campo semqualquer tipo de curso, ainda batiza a atividade de laborterapia, ignorando por completo oque sucedeu de avanço técnico na reabilitação desde 1956 no Brasil. Sabemos muito bemque hoje em dia temos profissionais formados e que a terapia ocupacional integra sempre oscentros de reabilitação. Ela não só faz o específico, mas também colabora significativamentena avaliação dos clientes para atividades de trabalho. De quando em quando vemos comfrustração, entretanto, que a terapia ocupacional serve mais para ser mostrada a visitantes doque a propósitos realmente terapêuticos. Isso tudo é verdade também para a fisioterapia que evoluiu de métodos muito maldefinidos de massagem, aplicação de calor, aplicação da água e da eletricidade e outrosrecursos, para uma gama de atividades que é de responsabilidade de profissionaisdevidamente formados. No entanto, temos verificado que a fisioterapia - ou melhor, algunsfisioterapeutas - tem servido mais aos propósitos de alguns médicos que desejam fazerfisiatria, pois assim como certos médicos recorrem à enfermagem para curativos, injeções eserviços menos elevados, recorrem à fisioterapia para o desenvolvimento prático daprogramação de exercícios que não se preocupam nem em aprender nem em executar.Embora possa haver uma carrada de razão da parte desses médicos, é necessário que elesreconheçam, mais do que todos os demais profissionais, que a fisioterapia é fundamental emreabilitação e traz evidentes benefícios aos clientes que recorrem aos centros. Assim sendo,

embora vivendo hoje em dia como profissão auxiliar da medicina e sendo mal interpretada,ela tem um papel certo e valioso e não sofre muitas pressões por parte de diretores de centrosde reabilitação. No entanto, com certos outros serviços a situação é bem diversa. O serviço social, porexemplo, sofre injustiças bem piores e muitas dessas injustiças são causadas pelos própriosprofissionais que acabam se sujeitando a um tipo de trabalho um tanto marginalizado nocentro de reabilitação, ou seja: estudos simples de levantamento socioeconômico do cliente esua família, preparo de relações de vagas para pagamento de "per capita" pelo INPS ouSecretaria da Promoção Social, dificuldades financeiras do cliente, escala para remoção dosclientes, financiamento ou plano de pagamento do tratamento e vários mais. É com os profissionais de serviço social, em geral, que ocorrem os mais sérios atritos porparte da diretoria de centros de reabilitação, pois argumentam diretores que, para fazer o queos assistentes sociais fazem, não se requer diploma de curso superior. E se considerarmos oque alguns assistentes sociais fazem ou sujeitam-se a fazer, concordaremos plenamente. Asatribuições que às vezes são passadas a assistentes sociais poderiam ser desenvolvidas porsecretárias bem preparadas. Isso tudo não quer dizer que as coisas estejam caminhandocorretamente, pois não estão. Os profissionais precisam lembrar que o serviço social tem umpapel muito sério e complexo num programa de reabilitação e compete a cada profissionallutar por ele. Mas ficamos por vezes com a dúvida: será que ele sabe por que papel lutar?... Com psicólogos acontecem situações semelhantes, mas menos graves. A psicologia tem,em seu socorro, certos tipos de estudos que são menos óbvios, tem seus testes e oconhecimento técnico indispensável para sua interpretação. Assim sendo, o máximo que àsvezes sucede é o médico tentar questionar o papel do psicólogo como válido, chegandomesmo a indicar sua dispensabilidade. Reduzindo-se despesa considerada inútil, obtém-secom facilidade o aval de diretores da organização. Assim sendo, seja por pressão de outrosprofissionais, seja por falta de objetivo prático no programa, encontramos vários centros quenão contam nem pretendem contar com psicólogos. No entanto, vale aqui lembrar que opsicólogo tem um papel relevante em reabilitação, cabendo também aos seus profissionaislutar por uma boa definição de sua atribuição.

- *A falta de especialização e suas conseqüências* Para qualquer área ou ramo profissional o que alarma acima de tudo é verificarmos quecertos profissionais procuram emprego num centro de reabilitação, sem se inteirar comseriedade quanto ao que deles poderá ser esperado. Essa observação é perfeitamente cabívelpara três tipos de profissionais: médicos, assistentes sociais e psicólogos. Por que nãoconselheiros de reabilitação? Porque esses surgem de uma das últimas profissões e em geraltrazem um bom acervo de conhecimentos específicos. Devido ao fato lamentável de não termos cursos de reabilitação, a situação tende ageneralizar-se, pois o mercado de trabalho vai ficando difícil e um profissional de nívelsuperior precisa de emprego. Vemos, então, uma reabilitação estagnada como técnica, e aleva de clientes a procurar serviços, graças a financiamentos do governo ou do sistemaprevidenciário, que acabam sendo apenas aquilo que procuram: serviços, isto é, consultamédica, uma prótese, sessão de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, entrevistade serviço social, testes de psicologia, etc. Reabilitação propriamente dita ... bem, cada profissional acha que fez o seu quinhão como máximo de consciência profissional, o que não deixa de ser verdade. Essas situações sãotão generalizadas que se torna muito difícil repetir frases verdadeiras como esta: “O centro

de reabilitação deve desenvolver seu serviço de forma integrada e coordenada, para levar ocliente a um ajustamento global, a fim de que tenha condição de se reintegrar à sociedade”. Esta verdade precisa ser dita e repetida por mais que ela soe inexeqüível. A maioria denossos centros de reabilitação faz, sim, fisioterapia, faz terapia ocupacional, faz algumtreinamento profissional um tanto marginal e conta com alguns profissionais que se debateme procuram (ou não procuram) seus papéis reais. As exceções existem e elas confirmam aregra, infelizmente. Quando relembramos que a reabilitação, como processo, deve ajudar o cliente a escolhermetas práticas viáveis, nas quais haja oportunidade para a independência, satisfação pessoal,contribuição social e outras, oferecendo uma bateria de serviços multidisciplinares querestauram, preservam e desenvolvem a capacidade física, psicológica, social e profissionalpara enfrentar a realidade da vida, verificamos que muita coisa anda bem fora dosparâmetros corretos e que algo de muito sério precisa começar a ser feito. Resta perguntarmos: O que pode, afinal, ser feito para melhorar a situação de vários denossos centros de reabilitação? O caminho para situações mais adequadas é bastante árduo e repleto de problemas. E,como todo caminho, ele tem um início. Em nosso modo de ver, esse deve ser através doestabelecimento de sistemas de avaliação: Avaliar um centro de reabilitação não é e nãopode ser o mesmo que avaliar outro tipo de instituição social ou entidade de assistênciamédica. O centro de reabilitação é entidade “sui-generis” de atendimento a pessoas comsérios problemas marginalizantes. Procuremos, portanto, estudar o assunto com cuidado para encontrar a aplicabilidade acada centro que procura desenvolver seus trabalhos de reabilitação.

- *Métodos de avaliação em centros de reabilitação* Avaliação é uma formulação de juízos a respeito do sucesso de um centro de reabilitaçãoou de qualquer outro tipo de empreendimento. Ela é, basicamente, uma técnicaadministrativa que se destina a alimentar a direção da organização com a finalidade deaprimorar cada vez mais sua atuação. Ela não é e não pode ser uma atividade isolada, masprecisa ser programada e acontecer periodicamente. O objetivo básico da avaliação é fornecer dados e informações que ajudem o centro dereabilitação no processo de tomada de decisão Com isso, a avaliação colaboradefinitivamente na melhoria dos serviços, na maior rentabilidade dos investimentosfinanceiros feitos, no melhor aproveitamento e no aprimoramento de seu pessoal técnico eadministrativo e na mais adequada alocação de recursos destinados ao seu desenvolvimento. A avaliação tem propósitos utilitários, pois sua função é descobrir evidências dosresultados dos programas e das atividades, para que aqueles que têm a missão de planejar,supervisionar ou dirigir, possam julgar e tomar decisões adequadas no presente e no futuro.Conforme as evidências dos resultados denotarem que o centro de reabilitação vai chegandomais próximo de seus objetivos e vai atingindo suas metas, a avaliação poderá ir setransformando num instrumento de apoio para a continuação ou para a expansão dosserviços prestados.

- *Modelos de avaliação* Não existe nenhum modelo de avaliação que seja adequado a todas as situações. Umaavaliação que transmita a informação pura e simples da adequacidade ou da impropriedadede uma atividade num centro de reabilitação, além de quase que infalivelmente inútil, acabasendo prejudicial trazendo em geral conseqüências indesejáveis. Assim sendo, é

aconselhável que o modelo de avaliação adotado e os avaliadores (que devem serprofissionais de alto gabarito e grande vivência de reabilitação) tenham muito mais a dizer ea sugerir do que simplesmente relatar que a atividade está ou não atingindo seus objetivosparcial ou integralmente. A avaliação precisa contribuir com os tipos de dados que dêem aosdiretores de um centro de reabilitação a possibilidade de fazer suas opções dentro docontexto em que atuam. Tais considerações a respeito de avaliação podem, evidentemente,ser aplicáveis a programas gerais de reabilitação ou a centros de reabilitação comoempreendimento isolado, e também a entidades sociais afins.

- *Sistemas de avaliação* Não é fácil nem prático indicar qual seria o melhor sistema para avaliar um centro dereabilitação. Dentre alguns dos sistemas reconhecidos pelos estudiosos do assunto o maisaplicável poderá ser, em nossa opinião, o do claro estabelecimento do grau deresponsabilidade perante seus "públicos". Verifiquemos então, qual o grau deresponsabilidade de um centro de reabilitação perante seus públicos, e quais seriam essespúblicos. Há diferentes tipos de "público" para um centro de reabilitação: a) O "público" em geral ou seja, os componentes da comunidade onde o centro atua, asociedade da qual faz parte. Embora entre nós, brasileiros, esse tipo de responsabilidade sejaum tanto relativa e bastante diluída (indefinida talvez seja o melhor termo) e as entidadessociais não a sintam nem se preocupem com ela, é ela de considerável importância. O quesucede no Brasil é que as entidades sociais acham que pelo simples fato de existirem jáfazem muito. Entretanto, a comunidade merece uma atenção, e esse tipo de responsabilidadeprecisa ser gradativamente bem estabelecido e enfatizado. As equipes de profissionais quetrabalham em centros de reabilitação precisam se voltar para ela e ficar alertas a esserespeito. b) O "público" financiador - é aquele do qual provém o numerário destinado à coberturadas despesas de todos os gêneros, ao desenvolvimento dos programas, à construção oureformas. Pode ser o governo federal, estadual, ou municipal; pode ser o usuário que retribuiremunerativamente pelos serviços prestados; podem ser empresas participantes, entidadesconveniadas, doadores, sócios beneméritos. Seja qual for o público financiador, ele temdireito a certa atenção e o centro tem definitivamente certo grau de responsabilidade paracom ele. c) O "público" clientela - pode parecer espantoso para certos tipos de entidadesvoluntárias dever satisfações ao público-clientela, pois muitas vezes encontramosexatamente no seio delas as maiores distorções quanto aos princípios básicos de sua atuação.No entanto, por não acreditarmos em reabilitação a não ser que seja sedimentada nosprincípios de respeitabilidade, dignidade e potencialidade do ser humano, achamos tal tipode posicionamento muito correto. A clientela tem direito aos serviços de um certo padrão. d) O "público" das famílias da clientela - O centro de reabilitação tem uma sériaresponsabilidade para com as famílias dos clientes, não apenas nos casos de crianças comotambém de adultos das mais variadas idades. O "modus fasciendi" brasileiro coloca asentidades sociais e médicas num pedestal inatingível, inquestionável. No entanto, as famíliasdos clientes de um centro de reabilitação merecem consideração e respeito e assim devemser tratadas. O grau de responsabilidade de um centro para com as famílias pode serfacilmente delineado.

e) O "público" das entidades - Sejam essas entidades conveniadas ou não, que usam osserviços do centro, para ele encaminhando casos ou dele recebendo encaminhamentos,também merecem respeito, havendo inquestionável grau de responsabilidade para com elas.

- *Conseqüências de uma avaliação* Um centro de reabilitação não poderá nem deverá ficar imobilizado após um estudoavaliativo. Ao tomar alguma atitude séria a respeito do trabalho avaliativo e seus resultados,poderá ter que enfrentar alguns tipos de decisão. Conforme o interesse da direção do centrode reabilitação, três tipos de decisão poderão ser tomados: a) Decisão política - Esta decisão deverá ser sempre a nível alto, em resposta a indagaçõescomo esta: O centro de reabilitação deverá continuar seus trabalhos ou não? O centroampliará, reduzirá ou simplesmente manterá suas atividades? O centro deverá reformular oumanter seus objetivos? b) Decisão estratégica - Esta decisão relaciona-se com as eventuais opções em termos de"modus operandi". Assim é que poderemos colocar o centro em situação própria pararesolver pendências como estas: Quando analisados os objetivos, como atingi-los após suareformulação, decidida numa tomada de decisão de alto nível? Como interferir para manteros padrões aceitáveis e recomendáveis de atuação técnica? c) Decisão tática - Este tipo de decisão diz respeito aos problemas de atuação prática docentro de reabilitação, às atividades rotineiras nele existentes, ao sistema interno defuncionamento técnico ou administrativo e muitas outras. Há providências na vidaadministrativa, na política de pessoal, no fluxo de papéis, na gestão financeira e mesmo naatuação técnica que muitas vezes precisam ser tomadas após uma análise avaliativa. - *Controle num centro de reabilitação* Verifiquemos o que é controle para determinarmos sua utilidade num centro dereabilitação. Controle é uma função administrativa intimamente ligada à avaliação, que sedestina a medir e a corrigir o desempenho das diversas atividades a fim de se assegurar queos objetivos sejam realizados. Consiste o controle em verificar cuidadosamente se tudoocorre corno foi planejado originalmente, se tudo está de acordo com os princípios básicosestabelecidos. Em palavras diferentes, controle consiste em aferir resultados, numacomparação intencional com os resultados esperados ou planejados. O estabelecimentopreciso dos objetivos de um centro de reabilitação, além de ser uma condição "sine quanon", torna mais fácil a tarefa de elaboração de instrumentos próprios de controle. Ressaltemos neste ponto que não é de utilidade tentar controlar fatos passados. Controla-se o presente. As informações sobre fatos passados podem ser muito úteis, se analisadas sobângulo correto, para a elaboração de julgamentos quanto à Situação atual e à formulação deplanos que possam eliminar ou corrigir desvios notados no presente.

- *Sistemas de controle utilizáveis em centros de reabilitação* Qual poderá ser o melhor sistema de controle num centro de reabilitação? Sem maiorespreocupações poderemos afirmar que o melhor sistema de controle que um centro dereabilitação poderá adotar será aquele que indicar com clareza e objetividade os desvios doplano originalmente traçado, ou dos objetivos vigentes, na medida em que esses desviosocorrem. Muitas vezes encontraremos profissionais das áreas técnicas achando que o controle emalto nível será mais do que suficiente, com a clara presunção de que o controle em níveis

inferiores passa a ser supérfluo. Na verdade, o controle nos níveis altos só se realiza comadequação quando for bem realizado nos níveis inferiores.

- *Características do sistema de controle* As características desejáveis de um sistema de controle implantado num centro dereabilitação poderão ser as seguintes: a) Deve refletir sempre a natureza daquilo que é indispensável às atividades do centro.Todos os instrumentos de controle do nível operacional ou dos trabalhos administrativos, porexemplo, devem ser específicos àquele nível ou aos trabalhos indicados. b) Deve mostrar com presteza os desvios ocasionais. As informações sobre os desviosdevem fluir com rapidez para o nível que é responsável pela decisão, como pura rotina e nãocomo medida especial, a fim de que o responsável possa tomar as providências próprias quecorrijam os desvios notados eliminando dessa forma a repetição ou mesmo a perpetuação delapsos. c) Dependendo do sistema a ser adotado ou da finalidade ele deve ser efetuado através daprópria direção do centro de reabilitação, ou do sistema diretivo do programa, conforme foro caso. Evidentemente essa observação não é válida "in totum" para problemas de ordemtécnica de cada área profissional dentro da equipe do centro de reabilitação. d) O controle deverá ser simples e econômico. Mais do que isso, deverá ser facilmentecompreensível. Não é recomendável montar esquemas caros e sofisticados de controle,sendo menos recomendável ainda controles de difícil compreensão. Sua simplicidade eclareza são os requisitos básicos de seu sucesso.

A conclusão lógica que tiramos é que um centro de reabilitação só poderá beneficiar-se damontagem de esquemas de avaliação e do estabelecimento de sistemas objetivos de controlede suas atividades. Terá condições, dessa forma, de prestar serviços cada vez maisadequados à sua clientela, assumindo gradativamente o papel de respeitabilidade que merecenuma comunidade. Sua programação melhorará, seus profissionais terão maior e melhorparticipação, seus clientes serão os maiores beneficiados. A avaliação não pode nem deve ser a mera análise crítica das atividades de um centro dereabilitação. A avaliação pretendida para um centro de reabilitação não é do tipo auditório-contábil. Ela deve estar voltada para as soluções viáveis, de ordem técnica e administrativa.Os problemas advindos da inexistência de análises avaliativas num centro de reabilitaçãosempre foram notórios e não podem perdurar. Esses problemas são perfeitamente superáveis. O ser humano que precisa dos serviços deum centro de reabilitação, suas famílias, a comunidade onde ele se insere, o seu públicofinanciador, sua equipe de profissionais, merecem melhor consideração que certamentesurgirá se todos estiverem realmente voltados para a perfeita adequação do recurso modernoe muito importante que é um centro de reabilitação.

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