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7/23/2019 A Erratica Tikmuun Maxakali Imagens Da Guerra Contra o Estado
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)
Programa de Ps-graduao em Antropologia Social (PPGAS)
Museu Nacional
A Errtica tikm!!n_maxakali:
imagens da Guerra contra o Estado
Roberto Romero Ribeiro Jnior
Rio de Janeiro
2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)
Programa de Ps-graduao em Antropologia Social (PPGAS)
Museu Nacional
A Errtica tikm!!n_maxakali:
imagens da Guerra contra o Estado
Rio de Janeiro
2015
Dissertao de mestrado apresentada aoPPGAS, Museu Nacional, UFRJ como
pr-requisito para obteno do ttulo demestre em Antropologia Social.
Autor: Roberto Romero Ribeiro Jnior
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
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A Errtica tikm!!n_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado.
Roberto Romero Ribeiro Jnior
Dissertao submetida ao corpo docente do Programa de Ps-graduao emAntropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN) da Universidade Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessrios obteno dograu de mestre.
Aprovada por:
_______________________________
Prof. Dr. Eduardo B. Viveiros de Castro (orientador)
_______________________________
Profa. Dra. Luiza Elvira Belaunde Olschewski
_______________________________
Profa. Dra. Rosngela Pereira de Tugny
Rio de Janeiro, fevereiro de 2015.
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Ficha catalogrfica
Romero, Roberto.A Errtica tikm!!n_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado / RobertoRomero Ribeiro Jnior Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS-MN, 2015.
Orientador: Eduardo B. Viveiros de Castro
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro/MuseuNacional/ Programa de Ps-graduao em Antropologia Social. 2015.
1. Antropologia 2. Etnologia indgena 3. Tikm!!n/Maxakali 4. Botocudo5. Guerra indgena.
I. Viveiros de Castro, Eduardo B. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.Museu Nacional. Programa de Ps- graduao em Antropologia PPGAS. III.A Errtica tikm!!n_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado
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!g xapexop pu Apne Y!xux tute xak tmng
Para os meus amigos em Aldeia Verdecom saudades
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AGRADECIMENTOS
Uma pesquisa feita de encontros. No seu percurso, encontramos autores, ideias, lugares,
mestres, amigos... Encontros que no so tanto a consequncia, mas a motivao mesmo
daquilo o que fazemos e sem os quais a concepo e realizao dos nossos projetos se
revelariam mesmo impossveis. Sou, portanto, imensamente grato pelos encontros atravs
dos quais esta pesquisa pde se desenvolver - ou melhor dizendo, se iniciar - ao longo dos
ltimos dois anos. Ao Eduardo Viveiros de Castro, agradeo o interesse, a pacincia, a
leitura atenciosa e todos os estmulos realizao deste trabalho. Suas ideias e textos j me
orientavam h algum tempo e de minha parte um enorme prazer poder continuar esta
orientao pessoalmente. Agradeo-lhe especialmente o conselho telegrfico e crucial:
vai nessa.
No PPGAS, agradeo a Marcio Goldman, Bruna Franchetto, Aparecida Vilaa, CarlosFausto, Luiz Fernando Dias Duarte, Adriana Vianna, Giralda Seyferth e Renata Menezes
pelos cursos e reflexes que me propiciaram. Bruna, especialmente, agradeo por me
preparar, sem que eu mesmo me sentisse preparado, para ouvir e exprimir outros sons e
outros (muito outros) sentidos. Aos funcionrios do Programa, agradeo a gentileza e a
pacincia com que sempre me receberam ou procuraram. Na Biblioteca Francisca Kelly,
sou extremamente grato pela ateno e por toda a presteza da equipe em assistir um aluno
talvez especialmente atrapalhado com impressoras, consultas e prazos. Agradeo CAPESe FAPERJ, pelos dois anos de bolsa e pelo financiamento desta pesquisa.
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Ainda no PPGAS, agradeo aos meus colegas de mestrado, Everton, Brbara, Lucas,
Aline, Marcela, Morena, Gustavo, Guilherme, Vlad e Daniel. Ao Vlad, especialmente, pela
imensa generosidade, organizao e eficincia que facilitaram imensamente o nosso
percurso acadmico e institucional. Ao Gustavo, pela cumplicidade em etnologia e
conversas sempre estimulantes. A partir do PPGAS - e especialmente de todas as sextas
na Quinta (e madrugadas de sbado no Bar Azul) - tive tambm a imensa felicidade de
conhecer e conviver com pessoas como Beatriz Matos, Edgar Bolvar, Luisa Elvira
Belaunde, Bruno Marques, Indira Caballero, Oiara Bonilla, Clarisse Kubrusly, Julia
Sauma, Guilherme Heurisch, Marina Vanzolini, Ana Carneiro, Virna Plastino, Leonor
Oliveira, Amanda Horta, Edgar Barbosa e Ana Morim. A todos eles devo momentos
memorveis, conversas inspiradoras, orientaes valiosas, alegrias variadas. Luisa,agradeo o entusiasmo com que sempre me ouviu e o aceite em participar desta banca.
Marina, por ter me apresentado s aulas de dana da querida Gleu Cambria, que fizeram
de mim mais firme e dos ltimos anos mais leves.
Na mudana para o Rio de Janeiro, tive a imensa sorte de encontrar Julia Bernstein, minha
anfitri (hoje irm) carioca, companheira de todas as horas, com quem tenho tido o prazer
de compartilhar as dores e as delcias dos ltimos tempos. A travessia entre BH e Rio,UFMG e Museu Nacional tambm no teria sido possvel sem o apoio constante de Maria
Lusa Lucas, desde a candidatura ao Programa at a difcil reta final da dissertao. Sua
presena e companhia sempre foram um alento e uma inspirao. Karen Shiratori,
agradeo a recepo atenciosa, as conversas sempre instigantes, os almoos interminveis
no centro do Rio, toda sua sensibilidade e ternura. uma sorte ser contemporneo seu!
Ana Fiod, pela amizade, pelo carinho e por me acompanhar at os ltimos instantes da
dissertao. Ao Fernando Vieira e ao Maurcio Siqueira, pela parceria e companhiaigualmente fundamentais nessa transio.
Em Belo Horizonte, agradeo ao Paulo Maia por acompanhar este percurso com incentivo
e interesse sem iguais. No teria concludo sem o seu apoio. Jnia Torres, pela alegria e
carinho que sempre me acolhem e me animam. Ao Ruben Caixeta de Queiroz, que
despertou em mim o interesse pela etnologia. Aos amigos todos da Filmes de Quintal, que
de diversos modos esto na origem e no percurso deste trabalho. Ao Pedro Leal, por
sempre me visitar aqui e me receber a. Aos meus pais, Cleuza e Roberto, pelo incentivo,
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admirao, apoio e compreenso. Ao Bernardo, pela curiosidade em ouvir as conversas do
irmo.
No caminho at os Tikm!!n, agradeo a Renata Otto, Milene Migliano e Carolina
Canguu, que me levaram a primeira vez at Aldeia Verde e que, de perto ou de longe,
tm sido importantes companheiras desde ento. Rosngela de Tugny, por toda a
motivao, confiana e generosidade. Sua sensibilidade e escuta so referncias constantes
para mim e espero que estejam de algum modo refletidas nesse trabalho. Agradeo-lhe
ainda a valiosa participao nesta banca examinadora. Marina Guimares Vieira, sou
grato pelo apoio, pelo interesse e por no medir esforos para colaborar com esta pesquisa.
Em Tefilo Otoni, no tenho palavras para agradecer ris Rocha, cuja dedicaocotidiana aos Tikm!!n o motivo da minha maior admirao. Aos demais funcionrios da
Funai e Sesai, por facilitarem meu trabalho e especialmente meus deslocamentos. Sou
ainda grato aos colegas Ricardo Jamal, Ana Estrela, Bruno Guanambi e Leonardo Pires
Rosse pelos dias mais que agradveis que passei em sua companhia no Pradinho.
Por fim, porque mais importante, agradeo aos Tikm!!n, por compartilharem comigo suas
vidas, seus cantos, suas histrias. Sueli e ao Isael, pela generosidade e pacincia comque me receberam em sua casa e por todos os cuidados que a mim dispensaram. my
Maysa, pela acolhida sempre afetuosa e por me fazer sentir em casa. xukuxNomia, por
me receber em sua aldeia. xukuxDelcida, por me ensinar as histrias dosMnyxop.
Jupira e ao Zezo, por cuidarem de mim na aldeia e na mata. Aos amigos Voninho,
Julinha, Elisngela, Paulinho, Elizabeth, Gilmar, Nestor, Sulamita, Tmia, Bravinho,
Rogrio, Alexandre, Ian, Ronaldinho, Mudo, Z Leo, Cassiano e Sessiano pela
companhia sempre alegre. Aos professores Rominho e Pinheiro Maxakali, pela ajudaconstante. No Pradinho, agradeo a recepo de Guigui, Marquinhos, Manuel Damzio,
Marilton, Damazinho, Pequi e Toninho Maxakali. Aos pajs Mamey, Tot e Gustavo, por
me receberem em seu kuxex e me ensinarem a cantar, comer e danar com os Ymiyxop.
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Resumo:
At meados do sculo XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce
permaneceram relativamente impenetrveis aos invasores portugueses. Os motivos eram
vrios, desde uma certo dficit demogrfico inicial, passando pela difcil adaptao dos
colonos aos revezes da vida tropical, esbarrando at mesmo num certo interesse poltico da
metrpole em manter aquela zona como escudo geogrfico contra as temidas invases
estrangeiras. Mas nenhum deles talvez se equipare ao verdadeiro terror que inspiravam
aos colonos o vasto contingente populacional indgena que habitava desde h muitos
sculos a regio e que se tornaria o principal dificultador para a implantao da empresa
colonial. A partir de uma coleo de relatos histricos de viajantes e administradores
regionais e instigado por uma breve experincia etnogrfica entre os Tikm!!n(Maxakali)
e por uma srie de suas narrativas, o presente trabalho revisita aquela paisagem regional,
articulando os temas da guerra indgena e da guerra contra os indgenas que ali tomaram
lugar. Movimentos que, por sua vez, conduzem a reflexes em torno das relaes entre os
ndios e seus outros (os brancos, inclusive) e das metamorfoses rituais tikm!!n.
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Abstract:
Until the midst of the 19thcentury, the extended and dense forests of the Mucuri and Rio
Doce Valleys were kept relatively impenetrable to the Portuguese invaders. The reasons
were many: starting with an initial demographic deficit, including the settlers difficult
adaptation to the life in the tropics, and also a certain political interest in keeping that zone
as a geographic barrier against the feared invasions of foreigner countries. But none of
these are compared to the real terror inspired to the invaders by the vast contingent of
indigenous people that had been living in that forest for centuries and that would turn to be
the main obstacle to the settling of the colonial enterprise. Through a collection of
historical records written by travellers and regional administrators and instigated by a brief
ethnographic experience among the Tikm!!n(Maxakali) and a series of their narratives,
the present work revisits that regional landscape, articulating the themes of the indigenous
war and of the war against the indigenous that took place there. Movements that leads to
some thoughts on the relations between the Indians and their others (white people
included) and their ritual metamorphosis.
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SUMRIO
INTRODUO 13
CAPTULO 01: O ESTADO DE GUERRA 14
Entre-guerras
Os Tikm!!natacados
O imperativo da vingana
Controvrsias canibais
CAPTULO 02: A GUERRA DE ESTADO 51
Da guerra anti-indgena
A converso lavoura
Converso e reverso
CAPTULO 03: OUTROS, ENTRE OUTROS 81
Ym!yxop mutix| Entre Ym!yxop
O encontro inesperado com o diverso
Cantos-movimento
Relaes perigosas
Os brancos canibais
CONSIDERAES FINAIS
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 116
23
31
39
42
51
65
69
81
89
95
98
103
112
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INTRODUO
Errantes, vadios, vagabundos, corredores, ndios do corso, assim viajantes,
naturalistas, missionrios, comandantes, chefes de ndios e administradores em geral
costumaram caracterizar os povos que habitavam as extensas faixas de mata entre os Vales
do Rio Doce e Mucuri, sempre com imenso desprezo por seu nomadismo, pela
impermanncia dos seus assentamentos, pela fragilidade das suas habitaes, por seu gostoinveterado pela caa, pela pesca e pela vida na mata... Desprezo que, por sua vez, no
deixava de ser revelador de um certo apego destes mesmos agentes por suas formas de vida
sedentrias, pela rigidez e perenidade de suas edificaes, pelas formas centralizadas de
organizao poltica, pelas prticas agrcolas e pastoris. Por muito tempo, verdade,
contrastes como esses fomentaram imagens antropolgicas assimtricas e
hierarquicamente ordenadas, de modo que os valores de uns (dos europeus) fossem
projetados enquanto valores ltimos dos outros (dos indgenas), isto , ideais aos quaistodos estes povos deveriam naturalmente aspirar ou ascender. O esquema o
evolucionismo clssico: a sociedade europeia como destino inexorvel, o colonialismo
como catalisador sociolgico universal. Tudo o que Outro, assim, no passa de uma
forma inferior, primitiva, arcaica do Eu e doravante deve ser dominado, convertido,
civilizado, assimilado, includo... Fixao narcsica que por toda parte revelou-se uma
fervorosa pulso messinica.
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Poucos autores combateram de modo to contundente esses pressupostos quanto Pierre
Clastres. Em A Sociedade contra o Estado (1974), o etnlogo criticava justamente toda
tendncia a encarar as sociedades primitivas como verses plidas ou meros negativos
das modernas sociedades ocidentais, rejeitando os motivos da falta e da escassez
sociedades sem Estado, sem escrita, sem histria - como evidncias terico-
descritivas. Rejeio que no deveria implicar, contudo, a dissoluo das diferenas entre
os diversos coletivos humanos, o impulso inverso e simtrico de apontar na vida dos outros
a lei, a ordem, a histria, como se a alternativa concepo da diferena como
inferioridade fosse a sua reduo identidade. Por isso, na revoluo copernicana
proposta por Clastres, o contraponto terico e poltico ao sem no o com, mas o
contra. Passagem da ausncia agncia, a positividade que o autor reivindicava naabordagem das instituies indgenas no se contentava, assim, em indicar o mesmo no
outro esta outra face do etnocentrismo mas revelava-se, isto sim, um esforo de
encarar os outros nos seus prprios termos.
Um esforo semelhante perseguido no artigo que d ttulo sua segunda coletnea de
ensaios,Arqueologia da violncia (1977). Incomodado por uma certa omisso etnolgica
quanto centralidade e universalidade da guerra e da violncia entre as mais diversassociedades primitivas ou por uma tendncia a igualmente aperceb-las de um ponto de
vista estritamente negativo, Clastres provocativamente afirmava: as sociedades primitivas
so sociedades violentas, seu ser social um ser-para-a-guerra (2011 [1977]: 217). A
guerra era assim feita uma estrutura, uma lgica, um modo de existncia ou de
funcionamento dessas sociedades e no o sinal de sua runa moral, econmica ou
sociolgica. Mas neste ensaio, ainda, as sociedades para a guerra encontravam as
sociedades contra o Estado; estes eram mesmo dois movimentos indissociveis namedida em que o efeito poltico da guerra era a disperso e a fragmentao, a atualizao
permanente de uma lgica centrfuga que impedia justamente a unificao
centralizadora, a exteriorizao do poder poltico enquanto esfera autnoma, a captura do
mltiplo pelo Um - em outras palavras, a irrupo do Estado. Por isso, conclua Clastres,
a sociedade primitiva sociedade contra o Estado na medidaem que sociedade-para-a-
guerra. (2011 [1977]: 250, grifo meu). Guerra e Estado so assim como duas foras
antpodas: a primeira agindo pela disperso, pela fragmentao, pela multiplicao do
mltiplo; a segunda pela concentrao, pela unificao e centralizao. Para uma tal
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relao de excluso j o havia atentado Hobbes ao propor que o Estado contra a
guerra. O que Clastres destacava nas ltimas linhas do seu ensaio era que a proposio
inversa tambm era verdadeira: Que nos diz indagava a sociedade primitiva como
espao sociolgico da guerra permanente? Ela repete, invertendo-o, o discurso de Hobbes,
ela proclama que a mquina de disperso funciona contra a mquina de unificao, ela nos
diz que a guerra contra o Estado. (2011 [1977]: 250).
Esta no , com efeito, uma introduo obra de Pierre Clastres. Mas este brevssimo
retorno me pareceu importante guisa de introduo a este trabalho. No porque ele
consista exatamente numa releitura das teorias clastreanas (uma tal avaliao depender
naturalmente do que se entenda por releitura), mas porque todo seu desenvolvimento atravessado, por assim dizer, por preocupaes clastreanas. Preocupaes que orientam
desde a sua eleio temtica a guerra e o nomadismo como fios condutores ou pontos de
partida do percurso aqui proposto como tambm uma manifesta atitude
epistemopoltica interessada sobretudo nas consequncias que aquela revoluo
copernicana (talvez j se possa dizer clastreana) instaurava no somente para uma
antropologia da poltica, mas especialmente para uma poltica da antropologia, isto ,
para a compreenso de que qualquer antropologia poltica (Lima e Goldman, 2012[2003]: 24). A recusa do sem em favor do contra era, desse modo, uma recusa
igualmente em abordar as sociedades primitivas desde um ponto de vista totalmente
exterior a elas - sempre com referncia ao nosso prprio mundo (Clastres, 2012 [1977]:
202); um ponto de vista eminentemente de Estado.
uma semelhante recusa que me parece em questo na rotao de perspectiva (a
expresso de Florestan Fernandes) que Viveiros de Castro (1999) reivindicava comoopo necessria rumo a uma antropologia na qual as sociedades indgenas no fossem o
termo englobado pelos processos homogeneizantes postos em marcha pelos avanos do
capitalismo global, do Sistema Mundial, dos Estados Nacionais ou das sociedades
envolventes, mas antes o termo englobante, isto , a perspectiva na qual a antropologia
deveria forosamente se fixar se almejasse se aproximar destas sociedades a partir das
relaes que as constituem e que s podem, por sua vez, ser constitudas por elas (Viveiros
de Castro, 1999: 120). A alternativa clara, distinguia ento o autor, ou se tomam os
povos indgenas como criaturas do olhar objetivante do Estado Nacional, duplicando-se na
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J, quando a partir de meados do sculo XX, os etngrafos (no muitos, verdade)
visitaram os ndios da regio, voltaram suas atenes para essas fontes tendo em vista
sobretudo uma reconstituio cronolgica do contato, interessada no mais das vezes na
trajetria histrica de grupos especficos (quando e onde foram vistos pela primeira e/ou
ltima vez). Os verbetes sobre os povos Patax, Malali, Maxakali e Botocudo escritos por
Nimuendaju e Mtraux e publicados no Handbook of South American Indians (1946)
ilustram bem essa preocupao. Por sua vez, os trabalhos publicados posteriormente - a
maioria a partir da dcada de 1970 - costumaram usar estes verbetes como nico ponto de
partida, sem almejar o cotejo das fontes histricas e, sobretudo, sem se deter especialmente
no quadro das relaes mantidas, no passado, entre aqueles diversos povos. Assim
procederam seja porque estavam mais interessados no histrico do contato entre ndios ebrancos (ver, nesse sentido, Rubinger, 1963, 1980; Marcato, 1980 ou Amorim, 1980 para
os Maxakali) ou ainda numa caracterizao de cunho mais estritamente etnogrfico (como
em Nascimento, 1984, Popovich, 1980, 1988; lvares, 1992 ou Vieira, 2006 tambm entre
os Maxakali). No pretendo, evidentemente, desconsiderar as contribuies que ambas
essas nfases aportaram etnologia da regio, mas apenas sublinhar que como seu efeito o
interesse por sua histria indgena (Viveiros de Castro, 1993) ficou, me parece, um tanto
relegado s pesquisas historiogrficas, que, por seu turno, detiveram-se mais especialmenteno processo de colonizao daqueles sertes ou numa certa histria do indigenismo
local (Paraso, 1998; Mattos, 2002)1.
Influenciado por essas impresses gerais, este trabalho consiste num experimento em outra
direo. Tratou-se, aqui, de revisitar os principais relatos e documentos histricos
disponveis sobre a regio, colocando-os em relao tanto com algumas preocupaes
tericas/etnolgicas atuais, quanto com a etnografia dos ndiosTikm!!
n, mais conhecidoscomo Maxakali. Ao longo do texto, portanto, tais movimentos se combinam e, por vezes,
creio, se confundem, no esforo deliberado de evitar que um deles pudesse predominar ou
englobar os demais redundando, assim, ou numa reviso bibliogrfica/histrica que
ignorasse a etnografia ou numa espcie de linha do tempo que visasse apenas situar os
Tikm!!nno seu interior. Desse modo, a estrutura perseguida ao longo deste texto reflete a
1 Estou a fazer, naturalmente, um sobrevoo bibliogrfico. Para uma apresentao mais detalhada dessasfontes, ver Vieira (2006). Entre os trabalhos historiogrficos, de fato se destacam as teses de Maria Hilda
Paraso (1998) e Izabel Missagia Mattos (2002), mas h diferenas importantes entre ambos. Este ltimo,vinculado tradio de pesquisas em etno-histria, representa um esforo considervel de aproximao doponto de vista indgena sobre a colonizao e foi uma referncia fundamental para o presente trabalho.
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breve trajetria da prpria pesquisa que alternou-se entre um perodo de campo entre os
Tikm!!n, uma certa imerso na literatura histrica e etnolgica das regies dos Vales do
Rio Doce e Mucuri, alm dos cursos que pude frequentar no PPGAS/Museu Nacional.
Permitam-me ento retraar rapidamente esta trajetria antes que eu passe a uma
apresentao mais detalhada do texto que se segue.
***
Ingressei no Programa de Ps-graduao em Antropologia Social do Museu Nacional em
2013 sem uma ideia prvia do projeto de pesquisa que iria ento desenvolver. Vrias ideias
e destinos chegaram a me ocorrer, desde um estudo bibliogrfico em torno dos usos do
tabaco na Amrica Indgena, passando por uma etnografia de uma currutela de garimpo nosudeste do Par e ainda uma pesquisa sobre o avano das hidreltricas na Amaznia, a
partir de uma comunidade indgena no Rio Tapajs. Por razes diversas, nenhum destes
planos foram muito adiante e ao cabo do primeiro ano de mestrado o meu projeto era
apenas um: passar um tempo (isto , quanto tempo eu pudesse) em campo. Eu ansiava
ento pela oportunidade, mesmo que breve, de uma experincia de imerso etnogrfica;
algo que, de alguma maneira, pudesse me tirar do lugar...
Eu havia, durante minha graduao na Universidade Federal de Minas Gerais, tido a
oportunidade de conhecer os Tikm!!n, durante a realizao de uma oficina de vdeo em
Aldeia Verde, em cuja equipe a antroploga Renata Otto Diniz havia gentilmente aceitado
me incorporar. Entusiasmado com a crescente produo audiovisual indgena, da qual eu
me aproximava a partir das inspiradoras aulas de Cinema e Antropologia do professor
Ruben Caixeta e do meu envolvimento com o Festival do Filme Documentrio e
Etnogrfico - o forumdoc.bh eu me encontrava ento interessado em acompanhar umaoficina na prtica e nas aldeias, a partir da qual eu pudesse observar os usos do vdeo
entre os indgenas, os problemas e as solues que um tal projeto suscitariam entre eles e
entre ns, o que optariam por filmar e de que forma, como assistiriam a essas imagens e as
fariam circular... A partir deste primeiro encontro, escrevi meu trabalho de concluso de
curso, O mundo como olhar: uma experincia audiovisual entre os Tikm!!n_Maxakali
(2012). Esta experincia foi ento o mote para que Eduardo Viveiros de Castro me
encorajasse afinal a voltar aos Tikm!!nno mestrado e dar incio entre eles a um projeto de
longa durao, no mbito do qual minha dissertao pudesse ser apenas um primeiro
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ensaio. O apoio de Rosngela de Tugny foi igualmente fundamental nesta deciso. Assim,
em Janeiro de 2014 eu partia para o Vale do Mucuri por um perodo, princpio,
indeterminado.
Os Tikm!!n habitam atualmente trs terras indgenas, situadas na regio nordeste do
estado de Minas Gerais. Entre os municpios de Santa Helena de Minas e Batinga, na
fronteira com o estado da Bahia, est a TI Maxakali, onde cerca de 1.500 pessoas vivem ao
longo de 5.306 hectares. No municpio de Tefilo Otoni, cerca de 70 pessoas vivem hoje
na Reserva Cachoeirinha/Mundo Verde. Prximo dali, no municpio de Ladainha, est a
Reserva Aldeia Verde, onde vivem aproximadamente 300 pessoas numa terra de 523
hectares. Apesar da curiosidade em conhecer as demais aldeias durante o perodo em que
estivesse em campo, me encontrava ento de fato mais inclinado a permanecer por um
tempo maior numa delas, a partir da qual eu pudesse comear a me situar. Minha
experincia anterior em Aldeia Verde e a acolhida calorosa do casal de professores Isael e
Sueli Maxakali foram dois fatores decisivos para que eu decidisse l me estabelecer.
A visita de um pesquisador, especialmente nesta aldeia, estava longe de ser uma novidade.
Nos ltimos anos, os Tikm!!ntm se engajado numa srie de projetos associados desde a
polticas educacionais do governo, formao de professores indgenas nos cursos deFormao Intercultural da UFMG, ou ainda realizao de cartilhas, livros, filmes e
exposies, dentre as quais se destaca a importante Imagem-corpo-verdade: trnsito de
saberes maxakali, coordenada por Rosngela de Tugny entre 2005 e 2009. Com uma
equipe que envolveu professores indgenas, linguistas, etnomusiclogos, antroplogos e
cineastas, o projeto influenciou direta ou indiretamente uma srie de pesquisadores que nos
ltimos anos contriburam para um verdadeiro salto qualitativo nas pesquisas entre os
Tikm!!n, apoiado num trabalho minucioso de traduo e anlise de alguns dos seus
repertrios de cantos e por uma nfase especial na relao entre os humanos e os espritos,
os Ymiyxop (ver, nesse sentido, Alvarenga, 2007; Rosse, 2007, 2011, 2013; Campelo,
2009, Tugny, 2009a, 2009b, 2011a, Jamal, 2012). Logo que cheguei, portanto, em Aldeia
Verde, ainda um tanto desajeitado e sem saber muito bem por onde comear, um amigo me
interpelou: voc veio passear ou trabalhar? E quando disse que tinha vindo trabalho,
apressou-se em convocar outros trs homens e combinar um horrio comigo na escola,
onde eu deveria gravar as histrias que desejasse ouvir. Registrar cantos e histrias tornou-se, assim, a minha primeira e principal atividade em campo.
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Mas passemos, finalmente, estrutura da dissertao. No primeiro captulo, O estado de
guerra, motivado pela pregnncia do tema da guerra indgena enquanto um dificultador
da implantao da Colnia, introduzo a paisagem regional em foco e a configurao geral
dos seus habitantes no momento da Invaso. Em seguida, a partir do relato de um antigo
ataque botocudo a uma aldeia tikm!un e do cotejo da fontes histricas que escreveram
sobre a regio suscito alguns elementos para uma (re)caracterizao da guerra
permanente travada entre eles, movimento que introduz algumas questes cruciais
desenvolvidas ao longo do trabalho, como as continuidades entre guerra, ritual,
antropofagia e nomadismo. Passando da guerra indgena guerra contra os indgenas, o
segundo captulo,A Guerra de Estado, retoma as caractersticas do avano da colonizao
sobre os Vales do Mucuri e Rio Doce no sculo XIX, interessado sobretudo naquilo quecontrariava ou impedia os planos do Imprio, especialmente no que dizia respeito ao
projeto de civilizao dos ndios, isto , da sua converso em mo de obra. Por fim, o
terceiro captulo, Outros, entre outros, consiste num esforo de situar o encontro com os
brancos e os problemas por ele suscitados a partir dos encontros que os Tikm!!ntravaram
com uma multiplicidade de outros, os Ymiyxop, e das suas concepes particulares de
relao e transformao. A questo do que significa tornar-se outro (Vilaa, 2000) feita
ali ento encontrar uma outra, o que significa tornar-se tikm!!n?
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CAPTULO 01
O estado de guerra
Entre-guerrasAt meados do sculo XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce
permaneceram relativamente impenetrveis aos invasores portugueses. Houve,
naturalmente, quem se aventurasse por elas pelo menos desde as primeiras dcadas aps a
frota de Pedro lvares Cabral aportar nas praias de Porto Seguro, em abril de 1500. Logo
nos primeiros anos da colonizao, a fama fantasiava ali imensas riquezas, terras
resplandecentes de esmeraldas, rios levando diamantes, lagoas douradas. (Timmers,
1969). No tardou, portanto, para que as promessas de riqueza e fartura impulsionassem asprimeiras expedies mata dentro e que ali fossem abertas as rotas que permitiriam aos
colonos aos poucos se estabelecerem no interior do continente, mais tarde Capitania de
Minas Gerais. Se estas primeiras incurses no encontraram ali todas as pedras e
preciosidades que ambicionavam, depararam-se, contudo, com um vasto contingente
populacional indgena habitando desde h muitos sculos aquelas terras e que se tornaria a
partir de ento o principal obstculo para os objetivos da empresa colonial.
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Fonte: Loukotka, 1955.
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A diversidade e as caracterizaes destes povos vo se pintando (e se transformando)
medida em que se intensifica o contato com os invasores estrangeiros, entre os sculos
XVI e XIX. A princpio generalizados enquanto Tapuias e Aimors (como eram
conhecidos os inimigos dos Tupiniquim, nos litorais sul da Bahia e Esprito Santo), aos
poucos vo figurando na literatura como Kamak-Mongoy, Canarins, Patax, Malali,
Maconi, Monox, Cumanox, Cutax, Paame, Maxacali, Baea, Puri, Gueren, Pojich,
Aran, Naknenuk, Giporok, Krekmun, Pot, Krenh, Bakun, Urucu... As origens destas
denominaes so variadas: alguns povos recebem a alcunha que destinavam em seus
idiomas aos seus inimigos2; outros sero chamados pelos nomes daqueles que, dentre eles,
eram identificados como lderes ou chefes do bando; outros ainda passam a ser
chamados por alguma corruptela em portugus de uma expresso que lhes fosse cara ouque utilizassem com frequncia, quando no eram simplesmente tratados por um termo
pejorativo estrangeiro, como ficaram mais conhecidos os Botocudos, assim chamados
pelos portugueses devido ao costume que possuam de adornar os lbios e as orelhas com
botoques feitos com a madeira da Barriguda, rvore abundante na regio.
Logo nos primeiros anos da implantao da colnia, estes povos dariam provas de sua
insatisfao e resistncia ao esbulho de suas terras pelos invasores. Nas recentes capitaniasde Ilhus e Porto Seguro as notcias de ataques e revoltas indgenas eram incessantes. Um
dos primeiros cronistas da regio, Gabriel Soares de Sousa, assim descrevera a situao na
segunda metade do sculo XVI:
A capitania de Porto Seguro e dos Ilheos esto destrudas e quase
despovoadas com o temor destes brbaros, cujos engenhos no lavram
acar por lhes terem mortos todos os escravos e gente deles e a das mais
fazendas, e o que escaparam de suas mos lhe tomaram tamanho medo,
que em se dizendo Aimors despejam as fazendas, e cada um trabalha por
se pr em salvo, o que tambm fazem os homens brancos, dos quais tm
2Assim, o etnnimo Naknenuk, literalmente no da terra (nak = terra, nuk = negao) pode estarassociado ao fato histrico da fixao relativamente recente dos Botocudo naquela zona do Mucuri eGiporok quase um xingamento, uma ofensa teria o significado de mau, no sentido de perverso, sendoaplicado pelos Naknenuk aos seus sub-grupos rivais. (Missagia de Mattos, 2002: 130). J os Malali,Monox, Patax, Cumanox e Cutax, alm da terminao comum maioria deles, x, que remete
partcula coletivizadora xop, recorrente nas lnguas da famlia Maxakali, tambm se assemelham aos nomes
de alguns grupos rituais destes ltimos como My, Mnyxop, Putuxopou Kmyxop, como sugeriu M.Hilda Barqueiro Paraso (1994). J Pot e Krekmun so provavelmente nomes de chefes indgenas, pelosquais seus grupos foram igualmente identificados.
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morto estes alarves de vinte e cinco anos a esta parte, que esta praga
persegue estas duas capitanias, mais de trezentos homens portugueses e de
trs mil escravos. (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).
Os ataques prosseguiram, obstinados, nas dcadas seguintes e ainda em 1673 os colonos
convocavam o reforo de bandeirantes paulistas para que levassem cabo a guerra justa
contra os nativos, atividade regulamentada na colnia desde 1570 (Paraso, 1992: 414).
Todos os esforos da metrpole para conter os ataques e sublevaes indgena da poca
foram, contudo, insuficientes. As Capitanias de Porto Seguro e Ilhus faliram e a Coroa
interrompeu os investimentos na rea. Como resumiu o Frei Olavo Timmers, mais tarde:
(...) as correrias dos habitantes daquelas selvas, os ferozes Aimors, atacando os poucos
engenhos no litoral e destruindo afinal Porto Seguro, foram a causa de que ningum mais
se arriscava naquelas praias. (Timmers, 1969: 4).
E por ainda mais tempo no se arriscaram muito alm delas. Outros fatores vieram, claro,
contribuir para este relativo afastamento: a descoberta das minas de ouro e diamante
atraram todas as atenes para as pores meridionais da futura Capitania, tornando os
Vales do Mucuri e Rio Doce por um momento barreiras territoriais e humanas
convenientes para a metrpole, que vivia sob constante ameaa de invases estrangeiras e
do contrabando de pedras preciosas. Ademais, no se dispunha quela poca de um
contingente populacional expressivo capaz de se impor sobre a populao indgena local e
seu territrio j bastante hostil aos europeus. Como resumiu Tefilo Otoni sobre estas
frentes pioneiras: (...) nenhuma caravana, por mais numerosa que fosse, tinha podido
sustentar-se na mata em frente dos seus habitadores; nenhuma se retirou sem pagar s
flechas o seu tributo de sangue. (Otoni, 2002 [1859]: 44). O viajante Johann Emanuel
Pohl, no incio do sculo XIX, tambm comentava o principal motivo para aquela contida
expanso territorial: temiam-se (...) encontrar muitas dificuldades e empecilhos por parte
dos botocudos, que puniam com a morte qualquer incurso nas selvas que habitavam e
consideravam como sua propriedade. (Pohl, 1976 [1817-1821]: 343).
At o incio do sculo XIX valeria, portanto, a observao de outro viajante e naturalista,
Auguste de Saint-Hilaire, segundo o qual dois motivos concorriam para afastar desta
regio aos que desejassem estabelecer-se nela: o pavor das doenas e dos botocudos.
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gente da fazenda correu ao local para ver o resultado, encontraram o
canho arrebentado e trinta ndios mortos e mutilados (...). Dizem que os
gritos dos fugitivos ainda se ouviam a grande distncia em redor. (Wied-
Neuwied, 1958 [1815-1817]: 171).
(...) tudo preparado para o combate, o capito Leonardo, prtico em
liquidar com os selvagens, lanou mo de estratagema de tocar um realejo,
ao som do qual os botocudos foram se aproximando, desconfiados a
princpio, mas por fim, sem maior receio penetrando no ptio. Nesse
momento os portes foram imediatamente fechados, comeando o ataque
que terminou com a fuga dos bugres que deixaram numerosos cadveres
que foram cremados. (Godofredo apudMissagia Mattos, 2002: 149).
Mas, apesar de sua supremacia blica e afincada poltica de extermnio, os colonizadores
no lograram sobre os ndios vitria imediata. Ataques recprocos foram registrados
incessantemente entre os sculos XVI e XIX. Frequentemente, os ndios liquidavam
famlias inteiras de colonos que iam se assentando em suas terras, estimulados pela poltica
de doao de sesmarias praticada pela administrao colonial. Com igual ou maior
frequncia, saqueavam e destruam as plantaes que encontravam em seus caminhos,
alm de roubarem as criaes, destrurem ou simplesmente abandonarem os aldeamentos
nos quais soldados e missionrios tentavam ardorosamente fix-los. Alm disso, os ataques
dos portugueses e especialmente o sequestro de suas mulheres e crianas os enfureciam
sobremaneira, instigando-lhes a raiva e a vingana, dois motores da guerra:
Embora por um colono morram dez selvagens, os ndios sempre voltam,
desassossegando os pobres moradores desta infeliz zona. Os ndios, que
no trabalham, incapazes de todo esforo que exige perseverana epacincia temem o desaparecimento da mata pelo machado e pelo fogo e
portanto de seu principal alimento, a caa. (Giesbrecht apudMissagia de
Mattos, 2002: 65).
A cada assalto que recebem das expedies contra eles organizadas,
respondem os bugres com novos e traioeiros ataques, para realiz-los
deixando apenas que passe algum tempo, de maneira a acharem mais
desprevenidas e incautas as suas vtimas. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]:
229).
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Quando mais tarde se soube que em alguns lugares, no rio Doce, [os
Botocudo] simularam disposies pacficas, batendo palmas, e depois
mataram traioeiramente, com os formidveis arcos, os portugueses quedles se acercaram confiantes nas maneiras amigveis, extinguiram-se
todas as esperanas de descobrir sentimentos de humanidade entre esses
selvagens. (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 153).
(...) A selvageria dos ndios, excitada ainda mais pela maldade e
imprudncia de certos nacionais e portugueses, era causa de cruenta guerra
entre as duas partes. Os ndios matavam com suas terrveis flechas,
viajantes e animais carregados de mercadoria; roubavam tudo; em seguida,
se retiravam para o centro das matas, onde se lhes deparava a segurana de
inexpugnvel fortaleza natural. vista de to lamentveis acontecimentos,
viu-se o governo obrigado a estabelecer alguns postos militares ao longo
da estrada; esta providncia no deu resultado algum, pois, quando os
soldados acudiam ao ponto em que se davam os cruis assaltos dos
silvcolas, estes, consumado o ato, j se haviam metido pelas suas
conhecidas brenhas, onde, sem receio, zombavam de tudo e de todos
(Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 34)
Nem preciso dizer que muito mais sangue se derramou plvora e bala do que a
flechadas em toda aquela regio. Ocorre, contudo, que a cruenta guerra que ali se travou
no se limitou a essas duas partes: ndios, de um lado, nacionais e portugueses, do outro.
Aos europeus ou neo-brasileiros que passaram ou viveram por ali, espantavam no
somente as notcias de ataques, assaltos e revoltas desferidas pelos ndios contra seus
patrcios quanto a guerra eterna e a inimizade generalizada que aqueles povos
cultivavam entre si:
Essas tribos, que em sua totalidade integravam a poderosa e temida nao
Botocuda, viveram em contnua e fratricida guerra, que a fome ateou,
obrigando-os a se disputarem pequenos territrios, onde encontrassem
razes tuberosas alimentcias, alguma caa e peixe com o que manter a
prpria subsistncia. Resultou deste ininterrupto e sanguinolento embate
entre irmos como era fatal a derrota e absoro dos mais fracos pelos
mais fortes. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 38-9).
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Faz compaixo ver como essa gente mutuamente se extermina. Os
naknenuks e aranaus, que habitavam na vertentes do Arapuca, so
irreconciliveis, e se no h no presente conflitos sanguinolentos, porque
os aranaus temem-se de vir ofender os naknenuks no centro dos seusnovos aliados cristos, e os naknenuks acham mais vantajosos arrancar
puaia e plantar batatas para vender com os couros de veado em Filadlfia
(...) (Otoni, 2002 [1859]: 85).
Dos botocudos, que antes habitavam na regio de Salto Grande, vimos
apenas dois. A horda que aqui vivia retirou-se alguns dias antes de nossa
chegada para reunir-se a outros e lutar contra uma tribo com quem
estavam em guerra por causa do assassinato de parentes. Disseram-nos que
no se pde dissuadi-los de tal intento e que eles desapareceram mata
adentro. (Pohl, 1976 [1817-1821]: 352).
Os Macunis engajados como soldados, so muito teis nas espcies de
caada que se fazem aos Botocudos, no s por causa da prtica que tem
das florestas, como ainda porque um dio ilimitado os anima contra os
inimigos. (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 217).
certo que a crescente ocupao dos territrios indgenas pelos invasores tenha excitado
o dio e portanto os conflitos entre aqueles grupos, uma vez que estes eram
progressivamente reduzidos a pores cada vez menores de mata onde se refugiar.
Tambm no pairam dvidas de que a situao colonial tenha introduzido uma srie de
eventos, agentes e modos de relao diversas daquela que estes povos mantinham antes da
catstrofe que se lhes abateu. Aqueles, por exemplo, dentre os ndios e dentre os
portugueses, que mais rapidamente se familiarizavam com os hbitos, e especialmente a
lngua, uns dos outros, tornavam-se figuras centrais nas mediaes locais. Lembre-se, porexemplo, dos chamados lnguas, como ficaram conhecidos os (em geral ndios) que se
especializaram no contato e que, muitas vezes aliados aos estrangeiros, colaboravam nas
caadas ou na atrao de ndios em toda a regio, ou ainda nas centenas de homens
indgenas feitos soldados muito teis s tropas portuguesas e que s vezes chegavam a
ser maioria nessas expedies.
Vrias partes, portanto, se envolveram em alianas e guerras (in)constantes durante todoaquele perodo, sob motivaes diversas. Havia aqueles perseguidos h longa data pelos
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traduzir como seus espritos ou rituais. So vrios e variados e possuem cada grupo
deles um vasto repertrio de cantos que trouxeram a partir de diferentes encontros com os
humanos, em tempos ainda remotos. Trataremos destes encontros e dessa formidvel
interveno dos Ym!yxopna guerra no terceiro captulo. Por ora, permitam-me concentrar
nos demais aspectos do combate que esta narrativa permite entrever.
Que sejam os Y!mkoxeka aqueles a perseguirem e atacarem os Mnyxop do relato no
parece uma observao fortuita. A crnica da regio sugere mais de uma vez uma certa
supremacia blica dos povos Botocudo sobre os Maxakali, sugerindo inclusive que, s
vsperas da invaso portuguesa, estes ltimos encontravam-se duplamente acuados: pelas
investidas dos Botocudo, ao sul de seus territrios, e dos Tupiniquim, que ora osexpulsavam do litoral. Alguns cronistas chegam mesmo a sugerir que essas presses teriam
movido os povos da famlia lingustica Maxakali, notadamente os Patax, Makoni, Malali,
Monox, Comanox, alm dos prprios Maxakali, a se aliarem por diversas ocasies
contra seus inimigos comuns:
Do lado da costa martima os Botocudos vivem em guerra com diversas
tribos, entre as quais destacam-se particularmente os Patachs e osMachacaris; mais para o interior, com os Panhamis e ainda com outras
(...). Todos esses ltimos, por serem mais fracos, reuniram-se contra os
Botocudos. As prprias hordas de tapuios travam entre si rudes combates,
quando acaso se encontram. Empregam nessas circunstncias toda a sua
astcia e todo o seu tino de caadores; (...). Ordinariamente trava-se
terrvel batalha, em que todas as flechas so utilizadas por ambas as partes,
cabendo geralmente a vitria a quem as possua em maior nmero. O
ataque feito debaixo de enormes gritos e, quando os inimigos chegam-se
mutuamente ao alcance das mos, entram em ao unhas e dentes. (...) O
vencedor sai ordinariamente em perseguio aos vencidos, e, pelo menos
no que respeita aos Botocudos, s faz muito poucos prisioneiros. (Wied-
Neuwied, 1958 [1815-1817]: 311).
Sobre a terrvel batalha travada entre eles, podemos acrescentar alguns detalhes. Como
se viu, os inimigos eram constantemente perseguidos e os ndios acompanhavam as
movimentaes uns dos outros, em busca do melhor momento e localizao para o ataque.
No raro, tais movimentaes eram por si s um anncio de guerra, pois que os limites
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que ainda crianas recebiam de seus pais, em verses menores. Distinguiam-se flechas
para caa e guerra, mas em nenhum dos casos se usava envenen-las. Wied-Neuwied
distingue trs tipos delas, geralmente idnticas em todos os tapuias da costa oriental, a
saber: as flechas propriamente de guerra, feitas com pontas agudas de taquara; outras
com pontas dentadas, feitas geralmente com a palmeira Ariri e ainda um terceiro tipo, de
ponta arredondada, utilizada na caa de pequenos animais. (1958 [1815-1817]: 110).
Devido ao longo comprimento, os homens usavam transport-las nas mos, em nmero
mdio de seis ou sete. Tambm lanavam mo de estrepes de taquara, que costumavam
fincar no caminho dos inimigos, para perfurar-lhes os ps. J o arco era igualmente feito
com a madeira resistente e flexvel da Ariri ou do Ip, e as cordas com as fibras da embiraou do gravat. Acrescentavam-se ainda extremidade inferior das flechas penas de arara,
mutum ou jacutinga, que lhes conferiam estabilidade e preciso no vo. As tcnicas de tiro
pareciam, ademais, igualmente variadas e a extrema habilidade dos indgenas no uso de
seus arcos e flechas no deixava de impressionar os europeus, que os acusavam tambm
por isso de ardilosos e traioeiros em suas tticas de ataque:
Os ndios preparavam e executavam as emboscadas de forma inteligente,sem que pudesse por esse modo escapar sequer um animal ou uma pessoa,
logo que fosse avistado por entre a brecha. (...) Correspondente a cada uma
das seteiras, ou brechas circulares, fincavam uma estaca ou forquilha,
sobre a qual o ndios da frente apoiava a sua flecha, o seu imediato apoiava
a flecha no ombro do da frente e o terceiro no segundo, de forma que,
daquele ponto, partiriam pela mesma seteira trs flechas ao mesmo tempo
(...). (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 35)
Tem-se visto ndios atirarem as suas flechas quasi que
perpendicularmente e na queda da flecha acertar em qualquer objeto de
antemo. Em 50 passos, raras vezes erram o alvo, ainda que seja pequeno
e vi um menino flechar uma tructa na distancia de 30 passos e isso depois
de ter estado ao meu servio durante varios mezes em que elle nunca
manejou o arco porque eu lhe tinha ensinado o uso da espingarda. (...)
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Quando um ndio foi flechado e a flecha ficou na ferida, como quasi
sempre acontece, quebra ele a ponta e tira o cabo da ferida, torcendo-o.
(Freireyss, 1901: 244).
Vivem estes brbaros de saltear toda sorte de gentio que encontram e
nunca se viram juntos mais de vinte at cinquenta frecheiros; (...) toda sua
briga atraioada, do assaltos pelas roas e caminhos por onde andam,
esperando o outro gentio e toda sorte de criatura em ciladas detrs das
rvores, cada um por si, de onde no erram tiro, e todas as flechas
empregam, e se lhes fazem rosto, logo fogem, cada um para sua parte. Mas
como vm a gente desmandada, fazem parada e buscam onde fiquem
escondidos, at que passem os que seguem, e do lhes nas costas,empregando suas flechas vontade. (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).
Que os combates durassem enquanto durassem as flechas um indicativo de que, se o
nmero de mortos pudesse ser maior do que por vezes se estimara ou se gostaria de se
estimar, no eram nem por isso comparveis aos ataques dos portugueses em seus
objetivos ou efeitos etnocidas. Por mais que o desejassem, tudo indica que muito
dificilmente um grupo conseguiria matar uma aldeia num s combate, a menos que
estivesse em nmero muito superior. A paridade ou superioridade numrica entre os
guerreiros das duas partes era, alis, um importante critrio para decidirem um ataque,
posterg-lo ou mesmo dissimul-lo. Breve voltaremos com mais gente, anunciaram os
ndios Aran em Itambacuri, aps as mulheres que tinham vindo resgatar terem se
recusado a se juntarem a eles. E, de fato, voltaram:
Dois anos, mais ou menos, se tinham passado depois das ameaas dos
ndios de Poaia e, como haviam prometido, voltaram em nmero bemmaior e armados. Mas encontraram o que talvez no esperavam... Todavia
cercaram a casa, ameaadoramente... Frei Serafim tomou imediatamente
as medidas necessrias; mandou ficarem de prontido os soldados bem
armados; armou tambm todos os camaradas ndios da casa e ficou
esperando os acontecimentos. Quando os Arans se aperceberam que pela
segunda vez se tinham enganado, diante daqueles homens armados e
decididos luta, mudaram de ttica e, humilhados, se apresentaram a Frei
Serafim, declarando que tinham vindo passear e que no tinham nenhuma
inteno de brigar. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 57).
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Alm disso, no difcil imaginar que, uma vez percebendo sua inferioridade numrica
durante um combate, os ndios decidissem recuar e sumirem novamente na floresta, como
fizeram os Y!mkoxeka do relato: vamos embora! somos s um pouquinho! estamos
acabando! se continuarmos vamos morrer todos!. E, ainda que perseguidos pelos
vitoriosos, dificilmente no lograriam escapar, at porque no seria problema esperar, de
uma parte e de outra, para dar sequncia vingana. E, j que voltamos ao tema, notvel
que a velha que morreu nas mos do Y!mkoxekalogo no incio do relato tenha se apressado
em convocar os seus justamente a reconhecer as flechas inimigas, o que talvez indique uma
preocupao fundamental para os ndios: saber contra quem se vingariam.
O imperativo da vingana
O imperativo da vingana e a obstinao com que a tarefa era perseguida pelos ndios so
mesmo dos aspectos da socialidade guerreira os mais ressaltados pelos cronistas, aqui e
alhures3. curioso, alis, que um tal sentimento tenha sido comumente atribudo a uma
natureza antes do que a algum costume: a vingana neles como uma cousa inata,
vaticinava o Frei ngelo de Sassoferato (apud Missagia Mattos, 2002: 404). No que
Giesbrecht lhe fazia coro: os nossos selvagens so visceralmente vingativos e perversos,
guardam por muito tempo a lembrana do mal que lhes foi feito, dos companheiros mortos
e juram terrvel vingana aos seus perseguidores. (apudMissagia de Mattos, 2002: 65). E
os colonos logo perceberam (e sofreram) as consequncias de se envolverem numa guerra
de tal natureza: onde escapa um bugre, testemunha do ataque sua aldeia e da morte
nele de companheiros, jaz um implacvel inimigo, sedento de dio e de vingana e
espreita de oportuna ocasio para ofender os seus perseguidores. (Palazzolo, 1973 [1873-
1952]: 230)4. A proeminncia da vingana tal, entre os ndios, que Henri Manizer, queconviveu com os Krenak j nos idos de 1915, chega mesmo a sugerir que a obrigao de
vingar seria um dos principais vnculos de parentesco, como quem diz que parente
3Sobre o tema da vingana, entre os Tupinamb, especialmente, ver o artigo seminal de M. Carneiro daCunha e E. Viveiros de Castro, Vingana e Temporalidade: os Tupinamb (1985).4Devido a constataes como essa, desde cedo os perseguidores de ndios eram instrudos e incentivados
pela administrao colonial a no pouparem os homens em idade de guerra em seus ataques. Uma carta doGovernador Geral do Brasil, em 1688, recomendava explicitamente a degolao de todos os homens adultosporque poderiam vir a se rebelar no futuro... (Perrone Moiss apudParaso, 1998: 68).
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aquele cuja morte se deve vingar: le lien dorigine nimpose qune obligation: cest la
coutume de venger la mort dun parent (1919: 263).
Assim, notvel que um provvel fragmento de mito contado pelos Malali a Saint-Hilaire
quando questionados sobre a origem da guerra possa muito bem ser lido (ou confundido)
com uma certa origem da vingana:
Segundo eles, os Monoxs, originariamente denominados Munuchus,
comearam a guerra que desde ento nunca cessou entre os Botocudos e as
diversas naes de origem comum. As mulheres dos Monoxs no davam
a luz seno crianas do sexo masculino. Para impedir a extino de sua
tribo, esses selvagens raptaram as mulheres dos Botocudos, e essa a
origem do dio que desde ento sempre existiu entre esses ltimos e os
Monoxs, Malalis, etc. (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 182, grifo meu).
Muito provavelmente, os aqui originariamente denominados Munuchus so os
Mnyxopaos quais os Tikm!!nse referem atualmente. Alm disso, o rapto de mulheres
e crianas, a apontado como a origem do dio, parece de fato uma das principais
caractersticas da guerra entre os diversos grupos que ali viveram. Note-se novamente nahistria tikm!!n que o guerreiro insiste para que sua mulher no o acompanhe,
provavelmente temendo sua captura no prenunciado combate. Ainda segundo Saint-
Hilaire, desta vez sobre os Botocudo: para aumentar os prprios bandos os chefes raptam
uns aos outros mulheres e crianas, e essa a causa das discrdias que entre eles reinam
(Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 257). A recorrncia dos raptos e a sua importncia na
dinmica guerreira parece igualmente corroborada por um certo comportamento ou atitude
das mulheres, que demonstravam relativa indiferena e por vezes certa volubilidade dianteda condio de cativas: as mulheres a princpio soltavam grandes gritos; mas apenas
caminhavam um pouco e apegavam-se aos seus condutores (Saint-Hilaire, 1975 [1830]:
184). Isto quando no resistiam, isto sim, a serem reincorporadas pelos antigos parentes,
como no episdio comentado acima, envolvendo ndios do Aldeamento de Itambacuri e
seus inimigos Aran:
(...) os ndios de Itambacuri tinham furtado duas mulheres arans. Os
arans ficaram furiosos e vieram para vingar-se e chegaram armados,
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entretanto, especialmente sugestiva se quisermos revisitar uma indagao frequente tanto
nas fontes histricas quanto no trabalho de alguns modernos historiadores: eram os
botocudos antropfagos?
Controvrsias canibais
A aparncia dos ndios Botocudo despertava especial repulsa aos olhos dos europeus,
como no esconde, dentre outros, o Prncipe de Wied-Neuwied: a vista dos Botocudos
causou-nos indescritvel espanto. Nunca vramos antes seres to estranhos e feios. Tinham
o rosto enormemente desfigurado por grandes pedaos de pau, que atravessam no lbio
inferior e nas orelhas. (1958 [1815-1817]: 52). A esta imagem particularmente
monstruosa que os colonizadores faziam deles, vinha se somar a crescente reputao de
ferozes, belicosos e indomveis, que em pouco tempo alou-os a inimigos nmero
um da colnia. Neste contexto, difcil discernir no que se disse acerca de seus hbitos o
que fato do que juzo. Assim, a pecha de canibais, frequentemente atribuda aos
Botocudo, parece no mais das vezes fruto do imaginrio do colonizador - para quem, no
limite, todo ndio o era - antes que uma prtica observada entre eles. A hiptese, contudo,
permanece em aberto, afinal foram em geral poucos, distantes ou muito breves os seus
observadores. Um dos poucos dilogos entre indgenas registrado poca - a fala do
capito pojich de nome Kan Jirun ao lngua que tentava dissuad-lo do combate - no
deixa, por isso mesmo, de soar inquietante:
Eu no gosto dos brasileiros, eu estou muito bravo. Eles nos so hostis, tu
trouxeste essa gente aqui, que nos so hostis. A gente que trouxeste vou
matar como hostis a ns. Vou fazer o fogo claro e comer a carne dessa
gente. Vou assar a carne dessa gente com bananas verdes. Eu vou matar
essa gente. Outros brasileiros mataram meu pai, eu estou muito bravo.
(apudMissagia de Mattos, 2002: 573).
Se modo de dizer ou modo de comer, no sei. Mas se praticaram a antropofagia real, esta
muito provavelmente no obteve entre eles os mesmos contornos ou a mesma centralidade
encontrada, por exemplo, entre seus vizinhos e inimigos costeiros, os Tupinamb. Neste
ponto, a atitude do guerreiro botocudo que, frente captura, recusa a alimentao e prefere
a morte ou mesmo a provoca, contrasta nitidamente com a postura que as fontes deram aconhecer dos cativos tupi. No porque estes ltimos rejeitassem a morte, mas porque
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compartilhadas por vrios povos da regio. Trata-se, sobretudo, do temor de que os
cadveres se transformem em onas ou seres canibais, o que se pode prevenir
esquartejando ou cremando-lhes os corpos. Manizer menciona, por exemplo, entre os
Krenak, a figura dos nanitiong:
Le mort se mtamorphose en nanitiong, tre fantastique, quil suffirat de
voir pour mourir. (...) Pour viter la reencontre dun nanitiong on ne
sapproche sous aucune pretexte du lieu o un mort a t dpos. La
terreur du nanitiongprend parfois le caractre dune panique. Une fois au
campement des Krenaks, slevrent de tels cris et lamentations que
linterprete pensa quun jaguar massacrait les indien. Or la nuit tant
clairement ilumin par la lune, ctait quelquun qui avait aperu un
nanitiong au bord de la rivire et la terreur stait empare de tout le
monde. (Manizer, 1919: 266)
Os Tikm!!n, tanto antigos como atuais, receiam igualmente que os mortos, depois de
enterrados, transformem-se em !nmxa, uma espcie de morto-vivo, canibal e ferocssimo,
cujo corpo escuro e duro como uma couraa e cujos ossos dos punhos se projetam para
fora como duas lminas bastante afiadas. Extremamente gil e veloz, capaz de matar uma
aldeia inteira em poucos instantes. Essa metamorfose indesejada sempre associada ao no
cumprimento, ainda em vida, do resguardo. Contudo, ao contrrio do que afirmou Manizer
sobre os Krenak, os Tikm!!nse aproximam das sepulturas justamente para conferir se o
morto no se transformou em !nmxa. Se for este o caso, procedem exumao e
cremao do cadver. Voltaremos a esses espritos canibais adiante. Por ora, o que estas
ideias sobre o destinopost-mortemparecem sugerir que o hbito de mutilar e esquartejar
os corpos dos inimigos mortos possa estar associado a este perigo de transformao.
Afinal, no deveria ser muito tranquila a ideia, para os ndios, de que uma horda de
inimigos assassinados pudesse vir a persegu-los e extermin-los nas florestas, sob a forma
destes nanitiongou inmxa. E, ademais, como em geral no enterrariam os mortos de um
combate e nem se arriscariam retornar ao local para averiguar o estado de seus corpos, no
difcil imaginar que optassem por se prevenir.
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Mas a histria que me contou Mamey no terminava ali, quando os Mnyxop rasgam as
barrigas dos inimigos mortos, de onde jorra mel7. O seu desfecho outro: um Y!mkoxeka
que, flechado, tentou fugir, morreu atravessando o rio, onde seu corpo boiava com a
barriga para cima. OsMnyxopdecidiram abandonar a aldeia novamente e viram o corpo
de Y!mkoxekaboiando. Pisando no peito dele, osMnyxopatravessaram o rio. Pisavam e
atravessavam, pisavam e atravessavam, e assim fizeram todos eles. Como costumam dizer
os Tikm!!n, essa histria tem canto. Hoje, Putuxop (papagaio-esprito) canta assim
quando vm visitar suas aldeias:
kukxeka xenex n!
atravessando o rio pisandokukxeka xenex n!
atravessando o rio pisando
tapuux8xop
nos inimigos
kukxeka xenex n!
atravessando o rio pisando
ax i i ia
tapuuxxop m
naquele inimigo
tapuuxxop m
naquele inimigo
kukxeka xenex nmi
atravessando o rio pisandokukxeka xenex nmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex n!
7A imagem do mel jorrando das vsceras dos Yimkoxekade fato me intrigou. Enquanto traduzamos o relato,Sueli Maxakali me explicou que aquilo se devia ao costume yimkoxekade ingerir gua somente misturadacom mel. Manizer notara tal costume entre os Krenak: dans leau de boisson ils mlent souvent du miel,mais leur friandise consiste sourtout en larves. (1915: 259).8O termo tapuux como os antigos Tikm!!nglosavam inimigos, muito semelhante, de fato, ao termo em
tupi antigo tapy'yapara glosar no tupi, estrangeiros em geral. Lembremos que os Tikm!!nestavamdentre os ndios conhecidos como Tapuias nas primeiras dcadas da invaso portuguesa.
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atravessando o rio vieram
yak hax hi hia
tapuux
xop m
naquele inimigo
tapuuxxop m
naquele inimigo
kukxeka xenex nmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nmi
atravessando o rio pisandokukxeka xenexn!
atravessando o rio vieram
kukxeka xenex n!
tapuux xop
nos inimigos
kukxeka xenex n!atravessando o rio vieram
kukxeka xenex n!
atravessando o rio vieram
yak hax hia
tapuux xop
nos inimigostapuux xop
nos inimigos
kukxeka xenex nmi
atravessando o rio pisando
kukxeka xenex nmi
atravessando o rio pisando
kukxeka hahi
o rio...
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haaaai i i i i
nm tut max n
reparando o arco e as flechas
nm tut max n
reparando o arco e as flechas
tapuux pot h
preparando para o inimigo
nm tut max n
reparando o arco e as flechas
punux xeka ng
o chefe dos papagaios
punux xeka ng
o chefe dos papagaios
tapuux pot h
preparando para o inimigo
tapuux pot hpreparando para o inimigo
nm tut max n
reparando o arco e as flechas
yak ha ha hax hax hi hia
punux xeka ng
o chefe dos papagaiospunux xeka ng
o chefe dos papagaios
tapuux pot h
preparando para o inimigo
nm tut hahi
o arco e as flechas
haaaaai i i i i
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Assim, a histria, que comeava com um deslocamento, conclui-se com outro. O evento
guerreiro feito canto. O canto o prprio evento, o caminhar, o movimento. Terminado o
combate, os homens reparam os arcos e as flechas. Seguem adiante sobre os inimigos
tombados, preparando-se j para os inimigos que viro. Os Y!mkoxekaque sobreviveram
partiram, furiosos, lanando suas flechas para o ar, hehe, hehe, hehe. Mais cedo ou mais
tarde, voltaro para se vingar. Assim a vida e a guerra seguem... estes dois movimentos
incessantes.
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CAPTULO 02
A Guerra de Estado
Da guerra anti-indgena
(...) Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tm
subido minha real presena, sobre as invases que diariamente esto praticando
os indios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes damesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no
mesmo desaguam e onde no s devastam todas as fazendas sitas naquellas
visinhanas e tem at forado muitos proprietarios a abandona-las com grave
prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horriveis e
atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e
os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora
dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na
minha real presena a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenhomandado que se tente a sua civilisao e o reduzi-los a aldear-se e a gozarem dos
Fixer, sdentariser la force de travail, rglerle mouvement du flux de travail, lui assignerdes canaux et conduits (...) ce fut toujoursune des affaires principales de lEtat, qui se
proposait la fois vaincre un vagabondage debande et un nomadisme de corps.
(Deleuze e Guattari)
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bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas
Leis que regem os meus povos; e at havendo-se demonstrado, quo pouco util era
o systema de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os
pontos de defeza em uma to grande e extensa linha no podiam bastar a cobrir opaiz: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os
effeitos de humanidade que com elles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em
primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Rgia,
deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra
offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estaes seccas e que no
ter fim, seno quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitaes e
de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que
movidos do justo terror das mesmas, peam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das
Leis e promettendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis, como j o
so as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos Estados do Brazil se
acham aldeados e gozam da felicidade que consequencia necessaria do estado
social. (...) Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios
Botocudos que se tomarem com as armas na mo em qualquer ataque; e que sejam
entregues para o servio do respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais
tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle emprega-los em seu servio
particular durante esse tempo e conserva-los com a devida segurana, mesmo em
ferros, emquanto no derem provas do abandono de sua atrocidade eantropofagia.
(Carta Rgia, 13 de maio de 1808)
Com estas palavras, o Prncipe Regente D. Joo VI mandava fazer guerra aos ndios
Botocudo pouco mais de dois meses aps a transferncia da corte portuguesa para o Rio de
Janeiro, em maro de 1808. A carta um registro eloquente da orientao que o Estado
passaria a assumir em relao aos povos indgenas das capitanias de Minas Gerais, Esprito
Santo e Bahia ao longo do sculo XIX. Se a guerra contra os ndios, oficial ou no, j se
fazia h sculos naquelas partes, sua ofensiva desta vez declarada pela autoridade mxima
do Imprio no deixava de ser reveladora dos interesses que ora se voltavam para aquela
que at ento fora convenientemente conservada enquanto sua zona tampo.
Vrias razes justificam este renovado interesse nos territrios at ento pouco explorados
que se estendiam entre os Vales do Rio Doce e Mucuri. As minas de ouro e diamante j h
algum tempo davam sinais de esgotamento e, naquele incio de sculo, o declnio da
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minerao instalava uma crise econmica de grandes propores, que afetaria radicalmente
os rumos da poltica interna e externa do pas. Outro marco histrico importante, a
transferncia da sede do Imprio para o Rio de Janeiro, tambm daria novo impulso
poltica expansionista e integracionista estatal, mais tmida durante o perodo colonial
devido prpria distncia geogrfica da metrpole e suas maiores dificuldades em manter
o controle sob o territrio. Alm disso, era necessrio abastecer a populao que se
implantava ou crescentemente se acercava da capital.
Naquele momento, portanto, tornava-se interesse mximo da Coroa interligar as provncias
de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Esprito Santo, facilitando assim o comrcio e o
escoamento dos produtos agrcolas do interior para o litoral9. Aquelas matas, ademaispouco conhecidas, alimentavam ainda esperanas de descoberta de novas jazidas minerais,
ou pelo menos de abundncia de terras frteis para o avano da agricultura e pecuria.
Todo esse contexto ainda seria embalado pela crescente divulgao das ideias e ideais
iluministas que imbuam aqueles homens oitocentistas de uma nova misso religiosa: a
civilizao. Impunham-se-lhes, portanto, as tarefas de converter a mata em pasto, estradas,
vilas... e os ndios em vassalos teis, isto , mo de obra escrava ou barata. Assim
recebiam e celebravam as boas novas os governantes e proprietrios locais:
(...) as extensas e dilatadas brenhas que serviram at agora de covil s
feras e aos Botocudos mais terrveis que as mesmas feras, transformar-se-
o em povoaes deliciosas, prosperando a agricultura em terrenos novos
e, por isso, fertilssimos; animando-se outra vez a minerao e criando-se,
ao mesmo tempo, um comrcio ativo, que Minas nunca teve, nem esperou
ter (...) (Santos apudParaso, 1998, p. 274 ).
Mas a nova ofensiva que se anunciava muniu-se igualmente de novas estratgias. quela
altura, os administradores regionais j haviam adquirido experincia suficiente para
perceberem que o confronto direto com os ndios era ineficaz, que o seu resultado era
somente acirrar os nimos dos guerreiros e estimular novos ataques, impedindo a
penetrao e implantao dos colonos na regio. Era preciso, portanto, conquist-los, mas
no somente atravs da fora e da supremacia blica como se havia tentado at ento. A
9Lembremos que a primeira medida do Prncipe Regente ao chegar ao Brasil foi declarar a abertura dosportos s naes amigas e romper, com isso, o exclusivo colonial.
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conquista aqui adquire aquele outro e pernicioso sentido, o de atrair ou seduzir os
ndios, para s ento tra-los e reduz-los. Assim, ainda que declarada a guerra aos
Botocudo, a orientao geral adotada pelos comandos da regio ao longo daquele perodo
seria outra e, de fato, mais eficiente, pois os colonos no tardaram a perceber que (...) o
mais enrgico meio de persuadir e convidar [os ndios] fazer-se-lhes presentes de certos
gneros de que eles tanto tm preciso (...) (Miranda apudParaso, 1998: 359).
Neste tocante, o manuscrito Como se deve tratar os indgenas para traz-los ao grmio da
civilizao, do Frei ngelo de Sassoferato orientava: para atrair o ndio civilizao
preciso presente-lo, trat-lo com lhaneza e jovialidade e, sobretudo, no mostrar-lhe
desconfiana, o que exige do missionrio prodgios de habilidade e prudncia. S se lhepode impor autoridade com muita delicadeza. (apudPalazzolo, 1973 [1873-1952]: 229).
O prprio Rei, alis, vendo os efeitos de tal orientao poltica renderem os primeiros
frutos nos aldeamentos das margens do Rio Doce passaria a ver com bons olhos a medida e
a recomendar igualmente "(...) captar a amizade e a aliana dos Botocudos mansos e para
por seu modo principiar a fazer aldeias a que depois possam vir sucessivamente
incorporar-se os Botocudos bravos, continuando a fazer-se-lhes uma dura guerra enquanto
no quiserem pacificar-se e viver debaixo da proteo das Leis de S.A.R (...) (apudParaso, 1998: 245).
Concomitante a essas orientaes viria se somar ainda outra ttica crucial, e talvez final, de
perseguio aos indgenas: o devassamento da floresta. A ordem era avanar sobre o
territrio, explor-lo, rasg-lo em estradas, sesmarias, vilas, aldeamentos... Desinfest-lo,
como se usava dizer no jargo da poca, para ento aproveitar suas terras, madeiras, couros
e mananciais. Assim, aos poucos, os colonizadores logravam reduzir a exuberante fauna evegetao de Mata Atlntica que tanto os assombrava: ao europeu escreve Frei ngelo -
causavam pasmo as rvores seculares do Brasil, de 30, 40 e mais metros de altura e
grossura extraordinria. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 42); essas florestas virgens,
densamente entrelaadas, em cujo interior reinam trevas quase eternas, so de encher a
alma com arrepio e pavor. (Spix, 1981 [1781-1826]: 222)10. Alm disso, era muito
10Rosngela de Tugny (2011b) dedicou um belo texto ao confronto entre os dois modos diametralmente
opostos de relao com a floresta, notadamente o dos indgenas que a habitavam h sculos e o dos colonos enaturalistas europeus que a percorreram com um misto de terror e desprezo.
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comum os cronistas constatarem que, por maiores que fossem seus esforos e
investimentos em seduzi-los, nada parecia demover os indgenas de retornarem ao abrigo
das florestas e ao convvio dos seus parentes. Nas palavras de Freireyss: pode-se tirar um
selvagem brasileiro de suas matas e trata-lo de melhor modo, que elle sempre estimar,
acima de tudo, poder voltar para os seus patrcios. (Freireyss, 1901: 247). E o Baro
Johann Jakob von Tschudi conclua: (...) no se sentem bem por muito tempo entre os
homens civilizados e tm uma saudade incontrolvel de suas florestas. (2006 [1866]:
265).
Por isso mesmo, os diretores dos aldeamentos, bastante importunados pela inconstncia
dos indgenas e por suas frequentes deseres, costumavam concluir que enquantohouvesse mata haveria correrias de ndios (Gorzia apudMissagia de Mattos, 2002: 399) e
o ento Governador de Minas Gerais, Atade e Melo, reforando as ordens de deitar
floresta abaixo, vislumbrava o tempo quando (...) estes antropfagos se achariam na
preciso de largarem suas habitaes; e uma vez perseguidos, se embestariam nos matos
proporo que estes fossem desmanchando e com o andar do tempo se domariam (se
possvel domar monstros deste toque). (apud Paraso, 1998: 180). No mesmo sentido
caminharia a observao de D. Joo VI em outra de suas cartas s autoridades locais:
(...) tendo mostrado a experincia que um dos melhores meios de se
conseguir a pacificao e civilizao destas e de outras brbaras raas de
ndios, que tanto merece o meu cuidado, consiste em se fazerem
transitveis por muitas e diferentes estradas, os extensos bosques em que
se acham abrigados, a fim de que por toda a parte hajam de encontrar os
atrativos da civilizao, sendo convidados com brandura ao
reconhecimento e sujeio s minhas leis e castigados pesadamente os quecometerem hostilidades (...) (apudParaso, 1998: 249).
assim que - mais e mais acuados territorialmente, assolados pela fome e pelas doenas,
alm de frequentemente ameaados pelos combates constantes com seus inimigos ndios -
aos poucos, vrios povos comeavam a se apresentar nos aldeamentos e vilas da regio.
Jak Jemenuk, estamos mansos, aprenderam a dizer aos Botocudo os portugueses e a
expresso era por eles repetida, como um cdigo de aproximao, acompanhadas
frequentemente por sincorana, capito paquej rehe, tenho fome, o capito
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grande muito bom (Otoni, 2002 [1859]: 81). Com efeito, a distribuio de presentes -
geralmente foices, machados, faces de metal, vestimentas e alimentos - seria muito mais
eficaz enquanto estratgia de atrao e os nomes de Guido Marlire e Tefilo Otoni
marcam especialmente dois momentos desta nova orientao poltica levada a cabo nos
vales do Rio Doce e Mucuri do sculo XIX.
Marlire era um oficial francs que aportou no Brasil com a famlia real portuguesa e que
foi alguns anos mais tarde nomeado Diretor Geral da Civilizao dos ndios em Minas
Gerais, onde comandou as sete divises militares distribudas entre as bacias dos rios
Doce, Suau Grande, Jequitinhonha e Araua. Atuou especialmente entre os ndios Puri,
Coroado e Naknenuk e tornou-se conhecido por estimular relaes pacficas com estesgrupos, reformando o quadro dos servidores dos destacamentos militares (composto em
sua maioria por homens degredados ou condenados nos tribunais de deportao europeus)
e coibindo as conhecidas prticas de caa ou extermnio dos indgenas to em voga em
toda a regio. J Tefilo Otoni, comerciante e proprietrio oriundo de uma famlia
tradicional do Serro, seguia carreira poltica como deputado no Rio de Janeiro quando
convenceu o governo imperial a criar a Companhia de Comrcio e Navegao do Mucuri,
da qual foi nomeado diretor. Animado pelos relatos do engenheiro Victor Renault, quepercorrera a bacia daquele rio em 1836, Otoni prometia finalmente cumprir o antigo ensejo
da administrao colonial de interligar o serto de Minas, do Nordeste Mineiro, com um
prto do mar, em linha reta, atravessando as matas virgens (Timmers, 1969: 12). Com
este objetivo percorreu a bacia do Mucuri em 1847, aonde regressou e se implantou
definitivamente a partir de 1852, fundando a cidade de Filadlfia, assim batizada devido
admirao do diretor pela colonizao da Pensilvnia, nos EUA e mais tarde rebatizada
com o seu prprio nome. Ali, naquele mesmo ano, Otoni se depararia com centenas dendiosNaknenuk:
Os primeiros cumprimentos que lhes fiz foram uma larga distribuio de
toucinho, farinha e rapaduras. Um dos ndios era Poton, cacique de uma
das tribos que ocupavam um ribeiro, lgua e meia abaixo daquele lugar.
(...) De Poton declarei-me parente, Poton-Otoni, e le acolheu rindo a
demonstrao de que o ramos. Aceito o parentesco, disse-me que eu
trouxesse os mais parentes, porque as terras eram muitas e chegavam paratodos. Peguei-lhe pela palavra e quinze dias depois abria-se, por conta de
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diversos parentes, uma grande derrubada, que produziu trs magnficas
fazendas (...) (Otoni apudTimmers, 1969: 20-1).
A estratgia, contudo, no se demonstraria infalvel, como dela se rejubilavainicialmente o empreendedor. A Companhia e seus funcionrios frequentemente
esbarrariam na firme oposio dos indgenas ao avano dos seus negcios e foi, por
exemplo, aos gritos de no quero estradas nas minhas terras! que um chefe botocudo e
seu grupo recebeu flechadas uma escolta de operrios a poucas lguas de Filadlfia, em
junho de 1853 (Otoni, 2002: 77). Alm disso, mesmo aqueles ndios que pareciam oferecer
menor resistncia aproximao com os colonos demonstrariam que, se era relativamente
fcil atra-los, muito mais difcil seria fix-los. Por isso, se os administradores puderamcomemorar princpio a nova poltica de alianas, entusiasmados com a descida de
centenas, s vezes milhares de indgenas aos seus vilarejos, no demorou at que seus
nimos se arrefecessem. Uma vez nos aldeamentos, os ndios nem por isso demonstravam-
se mais inclinados a neles permanecerem. Pelo contrrio, to logo chegavam naquelas
paragens e j constatavam as reais intenes dos portugueses: submet-los a jornadas
exaustivas de trabalho, castig-los caso se recusassem a obedec-los, separ-los de seus
parentes mais prximos (especialmente as crianas dos seus pais)... No demorava muito,
portanto, at que decidissem bater em retirada:
Com promessa de dar-lhes ferramentas e armas, 2000 Puris foram
attrahidos Villa Rica. Chegados eram logos agarrados e distribudos
entre os portuguezes para os quaes deviam trabalhar, naturalmente sem ser
em qualidade de escravos, mas, unicamente para tornarem-se cidados
prestimosos. O plano era sem duvida bom e o meio empregado talvez
tivesse sortido effeito, mas os autores do plano no conheciam os seus
patrcios e alm do mais, commetteu-se o erro de no deixar os ndios
viverem em famlia; marido e mulher, paes e filhos foram separados e
mandados a lugares diversos. A consecuncia foi que, mal tinham os Puris
trabalhado uns 8 dias que todos os homens fugiram, tanto por causa das
pancadas recebidas, como amor liberdade e saudades da famlia.
Fervendo de dio, por terem sidos obrigados a abandonar mulheres e
filhos nas mos dos seus algozes, estavam estes poucos outra vez nas suas
mattas, matando todos os portuguezes que podiam e, entre elles, aqueles
que lhes enganaram a vir para Villa Rica. (Freireyss, 1901: 250).
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Os malalis em 1787 perseguidos pelos naknenuks apresentaram-se no
Alto dos Bois, nove lguas distante de Minas Novas, e a ficaram aldeados
junto ao quartel das divises. (...) No Alto dos Bois, os malalis voluntriosou recrutados sentaram praa nas divises. Tendo alguns desertado
sofreram castigos severos, bem como pessoas de suas famlias acusadas de
haverem acoitado os desertores. A proteo dos cristos, assim exercida,
comeou a parecer-lhes mais intolervel do que a guerra com seus irmos
das florestas. E uma bela manh o comandante do quartel do Alto dos Bois
achou a aldeia completamente abandonada. (Otoni, 2002 [1859]: 43).
A chegada nos aldeamentos era ainda acompanhada por sucessivas baixas populacionais,devido aos surtos de gripe, sarampo e varola, doenas que dizimavam os ndios e contra as
quais no podiam resistir. As numerosas mortes com frequncia confirmariam neles os
receios de que os brancos (especialmente os padres) fossem os autores de tamanhos
feitios, e estas eram sempre ocasies propcias a ataques e agitaes, afinal, quando entre
eles morre algum - observava o Frei ngelo de Sassoferato - h sempre pavoroso
alvoroo, vinganas estpidas, brigas e roubos, tudo acrescido do pranto das mulheres, a
modo das carpideiras judaicas. (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 118). Alm disso,
pelas mesmas razes evocadas no final do captulo um, envolvendo o potencial de
transformao dos mortos em feras canibais, era comum que os ndios abandonassem suas
aldeias quando da morte de um parente, geralmente queimando-se-lhes as casas: (...) pois
jamais ocupam habitaes que tenham servido de tmulos (Wied-Neuwied, 1958 [1815-
1817]: 268). Tambm por isso, no difcil imaginar que ao ver dezenas dos seus
sucumbirem e serem enterrados moda crist, bem perto de onde viviam, aqueles grupos
logo desejassem partir...
Mas, com o tempo, suas estratgias de afastamento e contato tambm iam se inovando, e
os ndios passavam a manipular com habilidade as imagens que os portugueses faziam ou
esperavam deles, servindo-se delas em benefcio prprio, como demonstra exemplarmente
o episdio registrado por Saint-Hilaire, envolvendo os Machaculis e que vale a pena
transcrever na ntegra:
7/23/2019 A Erratica Tikmuun Maxakali Imagens Da Guerra Contra o Estado
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J h muito tempo que essa tribo se ps em contato com os portugueses,
fugindo assim como os Malalis, Monochs, Macunis, etc., das
perseguies dos Botocudos, inimigos de todas as demais naes ndias.
Os Machaculis procuraram asilo, em primeiro lugar, em Caravelas, ondese fi