A Erratica Tikmuun Maxakali Imagens Da Guerra Contra o Estado

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

    Programa de Ps-graduao em Antropologia Social (PPGAS)

    Museu Nacional

    A Errtica tikm!!n_maxakali:

    imagens da Guerra contra o Estado

    Roberto Romero Ribeiro Jnior

    Rio de Janeiro

    2015

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

    Programa de Ps-graduao em Antropologia Social (PPGAS)

    Museu Nacional

    A Errtica tikm!!n_maxakali:

    imagens da Guerra contra o Estado

    Rio de Janeiro

    2015

    Dissertao de mestrado apresentada aoPPGAS, Museu Nacional, UFRJ como

    pr-requisito para obteno do ttulo demestre em Antropologia Social.

    Autor: Roberto Romero Ribeiro Jnior

    Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

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    A Errtica tikm!!n_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado.

    Roberto Romero Ribeiro Jnior

    Dissertao submetida ao corpo docente do Programa de Ps-graduao emAntropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN) da Universidade Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessrios obteno dograu de mestre.

    Aprovada por:

    _______________________________

    Prof. Dr. Eduardo B. Viveiros de Castro (orientador)

    _______________________________

    Profa. Dra. Luiza Elvira Belaunde Olschewski

    _______________________________

    Profa. Dra. Rosngela Pereira de Tugny

    Rio de Janeiro, fevereiro de 2015.

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    Ficha catalogrfica

    Romero, Roberto.A Errtica tikm!!n_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado / RobertoRomero Ribeiro Jnior Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS-MN, 2015.

    Orientador: Eduardo B. Viveiros de Castro

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Rio de Janeiro/MuseuNacional/ Programa de Ps-graduao em Antropologia Social. 2015.

    1. Antropologia 2. Etnologia indgena 3. Tikm!!n/Maxakali 4. Botocudo5. Guerra indgena.

    I. Viveiros de Castro, Eduardo B. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.Museu Nacional. Programa de Ps- graduao em Antropologia PPGAS. III.A Errtica tikm!!n_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado

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    !g xapexop pu Apne Y!xux tute xak tmng

    Para os meus amigos em Aldeia Verdecom saudades

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    AGRADECIMENTOS

    Uma pesquisa feita de encontros. No seu percurso, encontramos autores, ideias, lugares,

    mestres, amigos... Encontros que no so tanto a consequncia, mas a motivao mesmo

    daquilo o que fazemos e sem os quais a concepo e realizao dos nossos projetos se

    revelariam mesmo impossveis. Sou, portanto, imensamente grato pelos encontros atravs

    dos quais esta pesquisa pde se desenvolver - ou melhor dizendo, se iniciar - ao longo dos

    ltimos dois anos. Ao Eduardo Viveiros de Castro, agradeo o interesse, a pacincia, a

    leitura atenciosa e todos os estmulos realizao deste trabalho. Suas ideias e textos j me

    orientavam h algum tempo e de minha parte um enorme prazer poder continuar esta

    orientao pessoalmente. Agradeo-lhe especialmente o conselho telegrfico e crucial:

    vai nessa.

    No PPGAS, agradeo a Marcio Goldman, Bruna Franchetto, Aparecida Vilaa, CarlosFausto, Luiz Fernando Dias Duarte, Adriana Vianna, Giralda Seyferth e Renata Menezes

    pelos cursos e reflexes que me propiciaram. Bruna, especialmente, agradeo por me

    preparar, sem que eu mesmo me sentisse preparado, para ouvir e exprimir outros sons e

    outros (muito outros) sentidos. Aos funcionrios do Programa, agradeo a gentileza e a

    pacincia com que sempre me receberam ou procuraram. Na Biblioteca Francisca Kelly,

    sou extremamente grato pela ateno e por toda a presteza da equipe em assistir um aluno

    talvez especialmente atrapalhado com impressoras, consultas e prazos. Agradeo CAPESe FAPERJ, pelos dois anos de bolsa e pelo financiamento desta pesquisa.

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    Ainda no PPGAS, agradeo aos meus colegas de mestrado, Everton, Brbara, Lucas,

    Aline, Marcela, Morena, Gustavo, Guilherme, Vlad e Daniel. Ao Vlad, especialmente, pela

    imensa generosidade, organizao e eficincia que facilitaram imensamente o nosso

    percurso acadmico e institucional. Ao Gustavo, pela cumplicidade em etnologia e

    conversas sempre estimulantes. A partir do PPGAS - e especialmente de todas as sextas

    na Quinta (e madrugadas de sbado no Bar Azul) - tive tambm a imensa felicidade de

    conhecer e conviver com pessoas como Beatriz Matos, Edgar Bolvar, Luisa Elvira

    Belaunde, Bruno Marques, Indira Caballero, Oiara Bonilla, Clarisse Kubrusly, Julia

    Sauma, Guilherme Heurisch, Marina Vanzolini, Ana Carneiro, Virna Plastino, Leonor

    Oliveira, Amanda Horta, Edgar Barbosa e Ana Morim. A todos eles devo momentos

    memorveis, conversas inspiradoras, orientaes valiosas, alegrias variadas. Luisa,agradeo o entusiasmo com que sempre me ouviu e o aceite em participar desta banca.

    Marina, por ter me apresentado s aulas de dana da querida Gleu Cambria, que fizeram

    de mim mais firme e dos ltimos anos mais leves.

    Na mudana para o Rio de Janeiro, tive a imensa sorte de encontrar Julia Bernstein, minha

    anfitri (hoje irm) carioca, companheira de todas as horas, com quem tenho tido o prazer

    de compartilhar as dores e as delcias dos ltimos tempos. A travessia entre BH e Rio,UFMG e Museu Nacional tambm no teria sido possvel sem o apoio constante de Maria

    Lusa Lucas, desde a candidatura ao Programa at a difcil reta final da dissertao. Sua

    presena e companhia sempre foram um alento e uma inspirao. Karen Shiratori,

    agradeo a recepo atenciosa, as conversas sempre instigantes, os almoos interminveis

    no centro do Rio, toda sua sensibilidade e ternura. uma sorte ser contemporneo seu!

    Ana Fiod, pela amizade, pelo carinho e por me acompanhar at os ltimos instantes da

    dissertao. Ao Fernando Vieira e ao Maurcio Siqueira, pela parceria e companhiaigualmente fundamentais nessa transio.

    Em Belo Horizonte, agradeo ao Paulo Maia por acompanhar este percurso com incentivo

    e interesse sem iguais. No teria concludo sem o seu apoio. Jnia Torres, pela alegria e

    carinho que sempre me acolhem e me animam. Ao Ruben Caixeta de Queiroz, que

    despertou em mim o interesse pela etnologia. Aos amigos todos da Filmes de Quintal, que

    de diversos modos esto na origem e no percurso deste trabalho. Ao Pedro Leal, por

    sempre me visitar aqui e me receber a. Aos meus pais, Cleuza e Roberto, pelo incentivo,

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    admirao, apoio e compreenso. Ao Bernardo, pela curiosidade em ouvir as conversas do

    irmo.

    No caminho at os Tikm!!n, agradeo a Renata Otto, Milene Migliano e Carolina

    Canguu, que me levaram a primeira vez at Aldeia Verde e que, de perto ou de longe,

    tm sido importantes companheiras desde ento. Rosngela de Tugny, por toda a

    motivao, confiana e generosidade. Sua sensibilidade e escuta so referncias constantes

    para mim e espero que estejam de algum modo refletidas nesse trabalho. Agradeo-lhe

    ainda a valiosa participao nesta banca examinadora. Marina Guimares Vieira, sou

    grato pelo apoio, pelo interesse e por no medir esforos para colaborar com esta pesquisa.

    Em Tefilo Otoni, no tenho palavras para agradecer ris Rocha, cuja dedicaocotidiana aos Tikm!!n o motivo da minha maior admirao. Aos demais funcionrios da

    Funai e Sesai, por facilitarem meu trabalho e especialmente meus deslocamentos. Sou

    ainda grato aos colegas Ricardo Jamal, Ana Estrela, Bruno Guanambi e Leonardo Pires

    Rosse pelos dias mais que agradveis que passei em sua companhia no Pradinho.

    Por fim, porque mais importante, agradeo aos Tikm!!n, por compartilharem comigo suas

    vidas, seus cantos, suas histrias. Sueli e ao Isael, pela generosidade e pacincia comque me receberam em sua casa e por todos os cuidados que a mim dispensaram. my

    Maysa, pela acolhida sempre afetuosa e por me fazer sentir em casa. xukuxNomia, por

    me receber em sua aldeia. xukuxDelcida, por me ensinar as histrias dosMnyxop.

    Jupira e ao Zezo, por cuidarem de mim na aldeia e na mata. Aos amigos Voninho,

    Julinha, Elisngela, Paulinho, Elizabeth, Gilmar, Nestor, Sulamita, Tmia, Bravinho,

    Rogrio, Alexandre, Ian, Ronaldinho, Mudo, Z Leo, Cassiano e Sessiano pela

    companhia sempre alegre. Aos professores Rominho e Pinheiro Maxakali, pela ajudaconstante. No Pradinho, agradeo a recepo de Guigui, Marquinhos, Manuel Damzio,

    Marilton, Damazinho, Pequi e Toninho Maxakali. Aos pajs Mamey, Tot e Gustavo, por

    me receberem em seu kuxex e me ensinarem a cantar, comer e danar com os Ymiyxop.

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    Resumo:

    At meados do sculo XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce

    permaneceram relativamente impenetrveis aos invasores portugueses. Os motivos eram

    vrios, desde uma certo dficit demogrfico inicial, passando pela difcil adaptao dos

    colonos aos revezes da vida tropical, esbarrando at mesmo num certo interesse poltico da

    metrpole em manter aquela zona como escudo geogrfico contra as temidas invases

    estrangeiras. Mas nenhum deles talvez se equipare ao verdadeiro terror que inspiravam

    aos colonos o vasto contingente populacional indgena que habitava desde h muitos

    sculos a regio e que se tornaria o principal dificultador para a implantao da empresa

    colonial. A partir de uma coleo de relatos histricos de viajantes e administradores

    regionais e instigado por uma breve experincia etnogrfica entre os Tikm!!n(Maxakali)

    e por uma srie de suas narrativas, o presente trabalho revisita aquela paisagem regional,

    articulando os temas da guerra indgena e da guerra contra os indgenas que ali tomaram

    lugar. Movimentos que, por sua vez, conduzem a reflexes em torno das relaes entre os

    ndios e seus outros (os brancos, inclusive) e das metamorfoses rituais tikm!!n.

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    Abstract:

    Until the midst of the 19thcentury, the extended and dense forests of the Mucuri and Rio

    Doce Valleys were kept relatively impenetrable to the Portuguese invaders. The reasons

    were many: starting with an initial demographic deficit, including the settlers difficult

    adaptation to the life in the tropics, and also a certain political interest in keeping that zone

    as a geographic barrier against the feared invasions of foreigner countries. But none of

    these are compared to the real terror inspired to the invaders by the vast contingent of

    indigenous people that had been living in that forest for centuries and that would turn to be

    the main obstacle to the settling of the colonial enterprise. Through a collection of

    historical records written by travellers and regional administrators and instigated by a brief

    ethnographic experience among the Tikm!!n(Maxakali) and a series of their narratives,

    the present work revisits that regional landscape, articulating the themes of the indigenous

    war and of the war against the indigenous that took place there. Movements that leads to

    some thoughts on the relations between the Indians and their others (white people

    included) and their ritual metamorphosis.

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    SUMRIO

    INTRODUO 13

    CAPTULO 01: O ESTADO DE GUERRA 14

    Entre-guerras

    Os Tikm!!natacados

    O imperativo da vingana

    Controvrsias canibais

    CAPTULO 02: A GUERRA DE ESTADO 51

    Da guerra anti-indgena

    A converso lavoura

    Converso e reverso

    CAPTULO 03: OUTROS, ENTRE OUTROS 81

    Ym!yxop mutix| Entre Ym!yxop

    O encontro inesperado com o diverso

    Cantos-movimento

    Relaes perigosas

    Os brancos canibais

    CONSIDERAES FINAIS

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 116

    23

    31

    39

    42

    51

    65

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    INTRODUO

    Errantes, vadios, vagabundos, corredores, ndios do corso, assim viajantes,

    naturalistas, missionrios, comandantes, chefes de ndios e administradores em geral

    costumaram caracterizar os povos que habitavam as extensas faixas de mata entre os Vales

    do Rio Doce e Mucuri, sempre com imenso desprezo por seu nomadismo, pela

    impermanncia dos seus assentamentos, pela fragilidade das suas habitaes, por seu gostoinveterado pela caa, pela pesca e pela vida na mata... Desprezo que, por sua vez, no

    deixava de ser revelador de um certo apego destes mesmos agentes por suas formas de vida

    sedentrias, pela rigidez e perenidade de suas edificaes, pelas formas centralizadas de

    organizao poltica, pelas prticas agrcolas e pastoris. Por muito tempo, verdade,

    contrastes como esses fomentaram imagens antropolgicas assimtricas e

    hierarquicamente ordenadas, de modo que os valores de uns (dos europeus) fossem

    projetados enquanto valores ltimos dos outros (dos indgenas), isto , ideais aos quaistodos estes povos deveriam naturalmente aspirar ou ascender. O esquema o

    evolucionismo clssico: a sociedade europeia como destino inexorvel, o colonialismo

    como catalisador sociolgico universal. Tudo o que Outro, assim, no passa de uma

    forma inferior, primitiva, arcaica do Eu e doravante deve ser dominado, convertido,

    civilizado, assimilado, includo... Fixao narcsica que por toda parte revelou-se uma

    fervorosa pulso messinica.

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    Poucos autores combateram de modo to contundente esses pressupostos quanto Pierre

    Clastres. Em A Sociedade contra o Estado (1974), o etnlogo criticava justamente toda

    tendncia a encarar as sociedades primitivas como verses plidas ou meros negativos

    das modernas sociedades ocidentais, rejeitando os motivos da falta e da escassez

    sociedades sem Estado, sem escrita, sem histria - como evidncias terico-

    descritivas. Rejeio que no deveria implicar, contudo, a dissoluo das diferenas entre

    os diversos coletivos humanos, o impulso inverso e simtrico de apontar na vida dos outros

    a lei, a ordem, a histria, como se a alternativa concepo da diferena como

    inferioridade fosse a sua reduo identidade. Por isso, na revoluo copernicana

    proposta por Clastres, o contraponto terico e poltico ao sem no o com, mas o

    contra. Passagem da ausncia agncia, a positividade que o autor reivindicava naabordagem das instituies indgenas no se contentava, assim, em indicar o mesmo no

    outro esta outra face do etnocentrismo mas revelava-se, isto sim, um esforo de

    encarar os outros nos seus prprios termos.

    Um esforo semelhante perseguido no artigo que d ttulo sua segunda coletnea de

    ensaios,Arqueologia da violncia (1977). Incomodado por uma certa omisso etnolgica

    quanto centralidade e universalidade da guerra e da violncia entre as mais diversassociedades primitivas ou por uma tendncia a igualmente aperceb-las de um ponto de

    vista estritamente negativo, Clastres provocativamente afirmava: as sociedades primitivas

    so sociedades violentas, seu ser social um ser-para-a-guerra (2011 [1977]: 217). A

    guerra era assim feita uma estrutura, uma lgica, um modo de existncia ou de

    funcionamento dessas sociedades e no o sinal de sua runa moral, econmica ou

    sociolgica. Mas neste ensaio, ainda, as sociedades para a guerra encontravam as

    sociedades contra o Estado; estes eram mesmo dois movimentos indissociveis namedida em que o efeito poltico da guerra era a disperso e a fragmentao, a atualizao

    permanente de uma lgica centrfuga que impedia justamente a unificao

    centralizadora, a exteriorizao do poder poltico enquanto esfera autnoma, a captura do

    mltiplo pelo Um - em outras palavras, a irrupo do Estado. Por isso, conclua Clastres,

    a sociedade primitiva sociedade contra o Estado na medidaem que sociedade-para-a-

    guerra. (2011 [1977]: 250, grifo meu). Guerra e Estado so assim como duas foras

    antpodas: a primeira agindo pela disperso, pela fragmentao, pela multiplicao do

    mltiplo; a segunda pela concentrao, pela unificao e centralizao. Para uma tal

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    relao de excluso j o havia atentado Hobbes ao propor que o Estado contra a

    guerra. O que Clastres destacava nas ltimas linhas do seu ensaio era que a proposio

    inversa tambm era verdadeira: Que nos diz indagava a sociedade primitiva como

    espao sociolgico da guerra permanente? Ela repete, invertendo-o, o discurso de Hobbes,

    ela proclama que a mquina de disperso funciona contra a mquina de unificao, ela nos

    diz que a guerra contra o Estado. (2011 [1977]: 250).

    Esta no , com efeito, uma introduo obra de Pierre Clastres. Mas este brevssimo

    retorno me pareceu importante guisa de introduo a este trabalho. No porque ele

    consista exatamente numa releitura das teorias clastreanas (uma tal avaliao depender

    naturalmente do que se entenda por releitura), mas porque todo seu desenvolvimento atravessado, por assim dizer, por preocupaes clastreanas. Preocupaes que orientam

    desde a sua eleio temtica a guerra e o nomadismo como fios condutores ou pontos de

    partida do percurso aqui proposto como tambm uma manifesta atitude

    epistemopoltica interessada sobretudo nas consequncias que aquela revoluo

    copernicana (talvez j se possa dizer clastreana) instaurava no somente para uma

    antropologia da poltica, mas especialmente para uma poltica da antropologia, isto ,

    para a compreenso de que qualquer antropologia poltica (Lima e Goldman, 2012[2003]: 24). A recusa do sem em favor do contra era, desse modo, uma recusa

    igualmente em abordar as sociedades primitivas desde um ponto de vista totalmente

    exterior a elas - sempre com referncia ao nosso prprio mundo (Clastres, 2012 [1977]:

    202); um ponto de vista eminentemente de Estado.

    uma semelhante recusa que me parece em questo na rotao de perspectiva (a

    expresso de Florestan Fernandes) que Viveiros de Castro (1999) reivindicava comoopo necessria rumo a uma antropologia na qual as sociedades indgenas no fossem o

    termo englobado pelos processos homogeneizantes postos em marcha pelos avanos do

    capitalismo global, do Sistema Mundial, dos Estados Nacionais ou das sociedades

    envolventes, mas antes o termo englobante, isto , a perspectiva na qual a antropologia

    deveria forosamente se fixar se almejasse se aproximar destas sociedades a partir das

    relaes que as constituem e que s podem, por sua vez, ser constitudas por elas (Viveiros

    de Castro, 1999: 120). A alternativa clara, distinguia ento o autor, ou se tomam os

    povos indgenas como criaturas do olhar objetivante do Estado Nacional, duplicando-se na

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    J, quando a partir de meados do sculo XX, os etngrafos (no muitos, verdade)

    visitaram os ndios da regio, voltaram suas atenes para essas fontes tendo em vista

    sobretudo uma reconstituio cronolgica do contato, interessada no mais das vezes na

    trajetria histrica de grupos especficos (quando e onde foram vistos pela primeira e/ou

    ltima vez). Os verbetes sobre os povos Patax, Malali, Maxakali e Botocudo escritos por

    Nimuendaju e Mtraux e publicados no Handbook of South American Indians (1946)

    ilustram bem essa preocupao. Por sua vez, os trabalhos publicados posteriormente - a

    maioria a partir da dcada de 1970 - costumaram usar estes verbetes como nico ponto de

    partida, sem almejar o cotejo das fontes histricas e, sobretudo, sem se deter especialmente

    no quadro das relaes mantidas, no passado, entre aqueles diversos povos. Assim

    procederam seja porque estavam mais interessados no histrico do contato entre ndios ebrancos (ver, nesse sentido, Rubinger, 1963, 1980; Marcato, 1980 ou Amorim, 1980 para

    os Maxakali) ou ainda numa caracterizao de cunho mais estritamente etnogrfico (como

    em Nascimento, 1984, Popovich, 1980, 1988; lvares, 1992 ou Vieira, 2006 tambm entre

    os Maxakali). No pretendo, evidentemente, desconsiderar as contribuies que ambas

    essas nfases aportaram etnologia da regio, mas apenas sublinhar que como seu efeito o

    interesse por sua histria indgena (Viveiros de Castro, 1993) ficou, me parece, um tanto

    relegado s pesquisas historiogrficas, que, por seu turno, detiveram-se mais especialmenteno processo de colonizao daqueles sertes ou numa certa histria do indigenismo

    local (Paraso, 1998; Mattos, 2002)1.

    Influenciado por essas impresses gerais, este trabalho consiste num experimento em outra

    direo. Tratou-se, aqui, de revisitar os principais relatos e documentos histricos

    disponveis sobre a regio, colocando-os em relao tanto com algumas preocupaes

    tericas/etnolgicas atuais, quanto com a etnografia dos ndiosTikm!!

    n, mais conhecidoscomo Maxakali. Ao longo do texto, portanto, tais movimentos se combinam e, por vezes,

    creio, se confundem, no esforo deliberado de evitar que um deles pudesse predominar ou

    englobar os demais redundando, assim, ou numa reviso bibliogrfica/histrica que

    ignorasse a etnografia ou numa espcie de linha do tempo que visasse apenas situar os

    Tikm!!nno seu interior. Desse modo, a estrutura perseguida ao longo deste texto reflete a

    1 Estou a fazer, naturalmente, um sobrevoo bibliogrfico. Para uma apresentao mais detalhada dessasfontes, ver Vieira (2006). Entre os trabalhos historiogrficos, de fato se destacam as teses de Maria Hilda

    Paraso (1998) e Izabel Missagia Mattos (2002), mas h diferenas importantes entre ambos. Este ltimo,vinculado tradio de pesquisas em etno-histria, representa um esforo considervel de aproximao doponto de vista indgena sobre a colonizao e foi uma referncia fundamental para o presente trabalho.

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    breve trajetria da prpria pesquisa que alternou-se entre um perodo de campo entre os

    Tikm!!n, uma certa imerso na literatura histrica e etnolgica das regies dos Vales do

    Rio Doce e Mucuri, alm dos cursos que pude frequentar no PPGAS/Museu Nacional.

    Permitam-me ento retraar rapidamente esta trajetria antes que eu passe a uma

    apresentao mais detalhada do texto que se segue.

    ***

    Ingressei no Programa de Ps-graduao em Antropologia Social do Museu Nacional em

    2013 sem uma ideia prvia do projeto de pesquisa que iria ento desenvolver. Vrias ideias

    e destinos chegaram a me ocorrer, desde um estudo bibliogrfico em torno dos usos do

    tabaco na Amrica Indgena, passando por uma etnografia de uma currutela de garimpo nosudeste do Par e ainda uma pesquisa sobre o avano das hidreltricas na Amaznia, a

    partir de uma comunidade indgena no Rio Tapajs. Por razes diversas, nenhum destes

    planos foram muito adiante e ao cabo do primeiro ano de mestrado o meu projeto era

    apenas um: passar um tempo (isto , quanto tempo eu pudesse) em campo. Eu ansiava

    ento pela oportunidade, mesmo que breve, de uma experincia de imerso etnogrfica;

    algo que, de alguma maneira, pudesse me tirar do lugar...

    Eu havia, durante minha graduao na Universidade Federal de Minas Gerais, tido a

    oportunidade de conhecer os Tikm!!n, durante a realizao de uma oficina de vdeo em

    Aldeia Verde, em cuja equipe a antroploga Renata Otto Diniz havia gentilmente aceitado

    me incorporar. Entusiasmado com a crescente produo audiovisual indgena, da qual eu

    me aproximava a partir das inspiradoras aulas de Cinema e Antropologia do professor

    Ruben Caixeta e do meu envolvimento com o Festival do Filme Documentrio e

    Etnogrfico - o forumdoc.bh eu me encontrava ento interessado em acompanhar umaoficina na prtica e nas aldeias, a partir da qual eu pudesse observar os usos do vdeo

    entre os indgenas, os problemas e as solues que um tal projeto suscitariam entre eles e

    entre ns, o que optariam por filmar e de que forma, como assistiriam a essas imagens e as

    fariam circular... A partir deste primeiro encontro, escrevi meu trabalho de concluso de

    curso, O mundo como olhar: uma experincia audiovisual entre os Tikm!!n_Maxakali

    (2012). Esta experincia foi ento o mote para que Eduardo Viveiros de Castro me

    encorajasse afinal a voltar aos Tikm!!nno mestrado e dar incio entre eles a um projeto de

    longa durao, no mbito do qual minha dissertao pudesse ser apenas um primeiro

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    ensaio. O apoio de Rosngela de Tugny foi igualmente fundamental nesta deciso. Assim,

    em Janeiro de 2014 eu partia para o Vale do Mucuri por um perodo, princpio,

    indeterminado.

    Os Tikm!!n habitam atualmente trs terras indgenas, situadas na regio nordeste do

    estado de Minas Gerais. Entre os municpios de Santa Helena de Minas e Batinga, na

    fronteira com o estado da Bahia, est a TI Maxakali, onde cerca de 1.500 pessoas vivem ao

    longo de 5.306 hectares. No municpio de Tefilo Otoni, cerca de 70 pessoas vivem hoje

    na Reserva Cachoeirinha/Mundo Verde. Prximo dali, no municpio de Ladainha, est a

    Reserva Aldeia Verde, onde vivem aproximadamente 300 pessoas numa terra de 523

    hectares. Apesar da curiosidade em conhecer as demais aldeias durante o perodo em que

    estivesse em campo, me encontrava ento de fato mais inclinado a permanecer por um

    tempo maior numa delas, a partir da qual eu pudesse comear a me situar. Minha

    experincia anterior em Aldeia Verde e a acolhida calorosa do casal de professores Isael e

    Sueli Maxakali foram dois fatores decisivos para que eu decidisse l me estabelecer.

    A visita de um pesquisador, especialmente nesta aldeia, estava longe de ser uma novidade.

    Nos ltimos anos, os Tikm!!ntm se engajado numa srie de projetos associados desde a

    polticas educacionais do governo, formao de professores indgenas nos cursos deFormao Intercultural da UFMG, ou ainda realizao de cartilhas, livros, filmes e

    exposies, dentre as quais se destaca a importante Imagem-corpo-verdade: trnsito de

    saberes maxakali, coordenada por Rosngela de Tugny entre 2005 e 2009. Com uma

    equipe que envolveu professores indgenas, linguistas, etnomusiclogos, antroplogos e

    cineastas, o projeto influenciou direta ou indiretamente uma srie de pesquisadores que nos

    ltimos anos contriburam para um verdadeiro salto qualitativo nas pesquisas entre os

    Tikm!!n, apoiado num trabalho minucioso de traduo e anlise de alguns dos seus

    repertrios de cantos e por uma nfase especial na relao entre os humanos e os espritos,

    os Ymiyxop (ver, nesse sentido, Alvarenga, 2007; Rosse, 2007, 2011, 2013; Campelo,

    2009, Tugny, 2009a, 2009b, 2011a, Jamal, 2012). Logo que cheguei, portanto, em Aldeia

    Verde, ainda um tanto desajeitado e sem saber muito bem por onde comear, um amigo me

    interpelou: voc veio passear ou trabalhar? E quando disse que tinha vindo trabalho,

    apressou-se em convocar outros trs homens e combinar um horrio comigo na escola,

    onde eu deveria gravar as histrias que desejasse ouvir. Registrar cantos e histrias tornou-se, assim, a minha primeira e principal atividade em campo.

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    Mas passemos, finalmente, estrutura da dissertao. No primeiro captulo, O estado de

    guerra, motivado pela pregnncia do tema da guerra indgena enquanto um dificultador

    da implantao da Colnia, introduzo a paisagem regional em foco e a configurao geral

    dos seus habitantes no momento da Invaso. Em seguida, a partir do relato de um antigo

    ataque botocudo a uma aldeia tikm!un e do cotejo da fontes histricas que escreveram

    sobre a regio suscito alguns elementos para uma (re)caracterizao da guerra

    permanente travada entre eles, movimento que introduz algumas questes cruciais

    desenvolvidas ao longo do trabalho, como as continuidades entre guerra, ritual,

    antropofagia e nomadismo. Passando da guerra indgena guerra contra os indgenas, o

    segundo captulo,A Guerra de Estado, retoma as caractersticas do avano da colonizao

    sobre os Vales do Mucuri e Rio Doce no sculo XIX, interessado sobretudo naquilo quecontrariava ou impedia os planos do Imprio, especialmente no que dizia respeito ao

    projeto de civilizao dos ndios, isto , da sua converso em mo de obra. Por fim, o

    terceiro captulo, Outros, entre outros, consiste num esforo de situar o encontro com os

    brancos e os problemas por ele suscitados a partir dos encontros que os Tikm!!ntravaram

    com uma multiplicidade de outros, os Ymiyxop, e das suas concepes particulares de

    relao e transformao. A questo do que significa tornar-se outro (Vilaa, 2000) feita

    ali ento encontrar uma outra, o que significa tornar-se tikm!!n?

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    CAPTULO 01

    O estado de guerra

    Entre-guerrasAt meados do sculo XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce

    permaneceram relativamente impenetrveis aos invasores portugueses. Houve,

    naturalmente, quem se aventurasse por elas pelo menos desde as primeiras dcadas aps a

    frota de Pedro lvares Cabral aportar nas praias de Porto Seguro, em abril de 1500. Logo

    nos primeiros anos da colonizao, a fama fantasiava ali imensas riquezas, terras

    resplandecentes de esmeraldas, rios levando diamantes, lagoas douradas. (Timmers,

    1969). No tardou, portanto, para que as promessas de riqueza e fartura impulsionassem asprimeiras expedies mata dentro e que ali fossem abertas as rotas que permitiriam aos

    colonos aos poucos se estabelecerem no interior do continente, mais tarde Capitania de

    Minas Gerais. Se estas primeiras incurses no encontraram ali todas as pedras e

    preciosidades que ambicionavam, depararam-se, contudo, com um vasto contingente

    populacional indgena habitando desde h muitos sculos aquelas terras e que se tornaria a

    partir de ento o principal obstculo para os objetivos da empresa colonial.

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    Fonte: Loukotka, 1955.

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    A diversidade e as caracterizaes destes povos vo se pintando (e se transformando)

    medida em que se intensifica o contato com os invasores estrangeiros, entre os sculos

    XVI e XIX. A princpio generalizados enquanto Tapuias e Aimors (como eram

    conhecidos os inimigos dos Tupiniquim, nos litorais sul da Bahia e Esprito Santo), aos

    poucos vo figurando na literatura como Kamak-Mongoy, Canarins, Patax, Malali,

    Maconi, Monox, Cumanox, Cutax, Paame, Maxacali, Baea, Puri, Gueren, Pojich,

    Aran, Naknenuk, Giporok, Krekmun, Pot, Krenh, Bakun, Urucu... As origens destas

    denominaes so variadas: alguns povos recebem a alcunha que destinavam em seus

    idiomas aos seus inimigos2; outros sero chamados pelos nomes daqueles que, dentre eles,

    eram identificados como lderes ou chefes do bando; outros ainda passam a ser

    chamados por alguma corruptela em portugus de uma expresso que lhes fosse cara ouque utilizassem com frequncia, quando no eram simplesmente tratados por um termo

    pejorativo estrangeiro, como ficaram mais conhecidos os Botocudos, assim chamados

    pelos portugueses devido ao costume que possuam de adornar os lbios e as orelhas com

    botoques feitos com a madeira da Barriguda, rvore abundante na regio.

    Logo nos primeiros anos da implantao da colnia, estes povos dariam provas de sua

    insatisfao e resistncia ao esbulho de suas terras pelos invasores. Nas recentes capitaniasde Ilhus e Porto Seguro as notcias de ataques e revoltas indgenas eram incessantes. Um

    dos primeiros cronistas da regio, Gabriel Soares de Sousa, assim descrevera a situao na

    segunda metade do sculo XVI:

    A capitania de Porto Seguro e dos Ilheos esto destrudas e quase

    despovoadas com o temor destes brbaros, cujos engenhos no lavram

    acar por lhes terem mortos todos os escravos e gente deles e a das mais

    fazendas, e o que escaparam de suas mos lhe tomaram tamanho medo,

    que em se dizendo Aimors despejam as fazendas, e cada um trabalha por

    se pr em salvo, o que tambm fazem os homens brancos, dos quais tm

    2Assim, o etnnimo Naknenuk, literalmente no da terra (nak = terra, nuk = negao) pode estarassociado ao fato histrico da fixao relativamente recente dos Botocudo naquela zona do Mucuri eGiporok quase um xingamento, uma ofensa teria o significado de mau, no sentido de perverso, sendoaplicado pelos Naknenuk aos seus sub-grupos rivais. (Missagia de Mattos, 2002: 130). J os Malali,Monox, Patax, Cumanox e Cutax, alm da terminao comum maioria deles, x, que remete

    partcula coletivizadora xop, recorrente nas lnguas da famlia Maxakali, tambm se assemelham aos nomes

    de alguns grupos rituais destes ltimos como My, Mnyxop, Putuxopou Kmyxop, como sugeriu M.Hilda Barqueiro Paraso (1994). J Pot e Krekmun so provavelmente nomes de chefes indgenas, pelosquais seus grupos foram igualmente identificados.

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    morto estes alarves de vinte e cinco anos a esta parte, que esta praga

    persegue estas duas capitanias, mais de trezentos homens portugueses e de

    trs mil escravos. (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).

    Os ataques prosseguiram, obstinados, nas dcadas seguintes e ainda em 1673 os colonos

    convocavam o reforo de bandeirantes paulistas para que levassem cabo a guerra justa

    contra os nativos, atividade regulamentada na colnia desde 1570 (Paraso, 1992: 414).

    Todos os esforos da metrpole para conter os ataques e sublevaes indgena da poca

    foram, contudo, insuficientes. As Capitanias de Porto Seguro e Ilhus faliram e a Coroa

    interrompeu os investimentos na rea. Como resumiu o Frei Olavo Timmers, mais tarde:

    (...) as correrias dos habitantes daquelas selvas, os ferozes Aimors, atacando os poucos

    engenhos no litoral e destruindo afinal Porto Seguro, foram a causa de que ningum mais

    se arriscava naquelas praias. (Timmers, 1969: 4).

    E por ainda mais tempo no se arriscaram muito alm delas. Outros fatores vieram, claro,

    contribuir para este relativo afastamento: a descoberta das minas de ouro e diamante

    atraram todas as atenes para as pores meridionais da futura Capitania, tornando os

    Vales do Mucuri e Rio Doce por um momento barreiras territoriais e humanas

    convenientes para a metrpole, que vivia sob constante ameaa de invases estrangeiras e

    do contrabando de pedras preciosas. Ademais, no se dispunha quela poca de um

    contingente populacional expressivo capaz de se impor sobre a populao indgena local e

    seu territrio j bastante hostil aos europeus. Como resumiu Tefilo Otoni sobre estas

    frentes pioneiras: (...) nenhuma caravana, por mais numerosa que fosse, tinha podido

    sustentar-se na mata em frente dos seus habitadores; nenhuma se retirou sem pagar s

    flechas o seu tributo de sangue. (Otoni, 2002 [1859]: 44). O viajante Johann Emanuel

    Pohl, no incio do sculo XIX, tambm comentava o principal motivo para aquela contida

    expanso territorial: temiam-se (...) encontrar muitas dificuldades e empecilhos por parte

    dos botocudos, que puniam com a morte qualquer incurso nas selvas que habitavam e

    consideravam como sua propriedade. (Pohl, 1976 [1817-1821]: 343).

    At o incio do sculo XIX valeria, portanto, a observao de outro viajante e naturalista,

    Auguste de Saint-Hilaire, segundo o qual dois motivos concorriam para afastar desta

    regio aos que desejassem estabelecer-se nela: o pavor das doenas e dos botocudos.

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    gente da fazenda correu ao local para ver o resultado, encontraram o

    canho arrebentado e trinta ndios mortos e mutilados (...). Dizem que os

    gritos dos fugitivos ainda se ouviam a grande distncia em redor. (Wied-

    Neuwied, 1958 [1815-1817]: 171).

    (...) tudo preparado para o combate, o capito Leonardo, prtico em

    liquidar com os selvagens, lanou mo de estratagema de tocar um realejo,

    ao som do qual os botocudos foram se aproximando, desconfiados a

    princpio, mas por fim, sem maior receio penetrando no ptio. Nesse

    momento os portes foram imediatamente fechados, comeando o ataque

    que terminou com a fuga dos bugres que deixaram numerosos cadveres

    que foram cremados. (Godofredo apudMissagia Mattos, 2002: 149).

    Mas, apesar de sua supremacia blica e afincada poltica de extermnio, os colonizadores

    no lograram sobre os ndios vitria imediata. Ataques recprocos foram registrados

    incessantemente entre os sculos XVI e XIX. Frequentemente, os ndios liquidavam

    famlias inteiras de colonos que iam se assentando em suas terras, estimulados pela poltica

    de doao de sesmarias praticada pela administrao colonial. Com igual ou maior

    frequncia, saqueavam e destruam as plantaes que encontravam em seus caminhos,

    alm de roubarem as criaes, destrurem ou simplesmente abandonarem os aldeamentos

    nos quais soldados e missionrios tentavam ardorosamente fix-los. Alm disso, os ataques

    dos portugueses e especialmente o sequestro de suas mulheres e crianas os enfureciam

    sobremaneira, instigando-lhes a raiva e a vingana, dois motores da guerra:

    Embora por um colono morram dez selvagens, os ndios sempre voltam,

    desassossegando os pobres moradores desta infeliz zona. Os ndios, que

    no trabalham, incapazes de todo esforo que exige perseverana epacincia temem o desaparecimento da mata pelo machado e pelo fogo e

    portanto de seu principal alimento, a caa. (Giesbrecht apudMissagia de

    Mattos, 2002: 65).

    A cada assalto que recebem das expedies contra eles organizadas,

    respondem os bugres com novos e traioeiros ataques, para realiz-los

    deixando apenas que passe algum tempo, de maneira a acharem mais

    desprevenidas e incautas as suas vtimas. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]:

    229).

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    Quando mais tarde se soube que em alguns lugares, no rio Doce, [os

    Botocudo] simularam disposies pacficas, batendo palmas, e depois

    mataram traioeiramente, com os formidveis arcos, os portugueses quedles se acercaram confiantes nas maneiras amigveis, extinguiram-se

    todas as esperanas de descobrir sentimentos de humanidade entre esses

    selvagens. (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 153).

    (...) A selvageria dos ndios, excitada ainda mais pela maldade e

    imprudncia de certos nacionais e portugueses, era causa de cruenta guerra

    entre as duas partes. Os ndios matavam com suas terrveis flechas,

    viajantes e animais carregados de mercadoria; roubavam tudo; em seguida,

    se retiravam para o centro das matas, onde se lhes deparava a segurana de

    inexpugnvel fortaleza natural. vista de to lamentveis acontecimentos,

    viu-se o governo obrigado a estabelecer alguns postos militares ao longo

    da estrada; esta providncia no deu resultado algum, pois, quando os

    soldados acudiam ao ponto em que se davam os cruis assaltos dos

    silvcolas, estes, consumado o ato, j se haviam metido pelas suas

    conhecidas brenhas, onde, sem receio, zombavam de tudo e de todos

    (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 34)

    Nem preciso dizer que muito mais sangue se derramou plvora e bala do que a

    flechadas em toda aquela regio. Ocorre, contudo, que a cruenta guerra que ali se travou

    no se limitou a essas duas partes: ndios, de um lado, nacionais e portugueses, do outro.

    Aos europeus ou neo-brasileiros que passaram ou viveram por ali, espantavam no

    somente as notcias de ataques, assaltos e revoltas desferidas pelos ndios contra seus

    patrcios quanto a guerra eterna e a inimizade generalizada que aqueles povos

    cultivavam entre si:

    Essas tribos, que em sua totalidade integravam a poderosa e temida nao

    Botocuda, viveram em contnua e fratricida guerra, que a fome ateou,

    obrigando-os a se disputarem pequenos territrios, onde encontrassem

    razes tuberosas alimentcias, alguma caa e peixe com o que manter a

    prpria subsistncia. Resultou deste ininterrupto e sanguinolento embate

    entre irmos como era fatal a derrota e absoro dos mais fracos pelos

    mais fortes. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 38-9).

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    Faz compaixo ver como essa gente mutuamente se extermina. Os

    naknenuks e aranaus, que habitavam na vertentes do Arapuca, so

    irreconciliveis, e se no h no presente conflitos sanguinolentos, porque

    os aranaus temem-se de vir ofender os naknenuks no centro dos seusnovos aliados cristos, e os naknenuks acham mais vantajosos arrancar

    puaia e plantar batatas para vender com os couros de veado em Filadlfia

    (...) (Otoni, 2002 [1859]: 85).

    Dos botocudos, que antes habitavam na regio de Salto Grande, vimos

    apenas dois. A horda que aqui vivia retirou-se alguns dias antes de nossa

    chegada para reunir-se a outros e lutar contra uma tribo com quem

    estavam em guerra por causa do assassinato de parentes. Disseram-nos que

    no se pde dissuadi-los de tal intento e que eles desapareceram mata

    adentro. (Pohl, 1976 [1817-1821]: 352).

    Os Macunis engajados como soldados, so muito teis nas espcies de

    caada que se fazem aos Botocudos, no s por causa da prtica que tem

    das florestas, como ainda porque um dio ilimitado os anima contra os

    inimigos. (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 217).

    certo que a crescente ocupao dos territrios indgenas pelos invasores tenha excitado

    o dio e portanto os conflitos entre aqueles grupos, uma vez que estes eram

    progressivamente reduzidos a pores cada vez menores de mata onde se refugiar.

    Tambm no pairam dvidas de que a situao colonial tenha introduzido uma srie de

    eventos, agentes e modos de relao diversas daquela que estes povos mantinham antes da

    catstrofe que se lhes abateu. Aqueles, por exemplo, dentre os ndios e dentre os

    portugueses, que mais rapidamente se familiarizavam com os hbitos, e especialmente a

    lngua, uns dos outros, tornavam-se figuras centrais nas mediaes locais. Lembre-se, porexemplo, dos chamados lnguas, como ficaram conhecidos os (em geral ndios) que se

    especializaram no contato e que, muitas vezes aliados aos estrangeiros, colaboravam nas

    caadas ou na atrao de ndios em toda a regio, ou ainda nas centenas de homens

    indgenas feitos soldados muito teis s tropas portuguesas e que s vezes chegavam a

    ser maioria nessas expedies.

    Vrias partes, portanto, se envolveram em alianas e guerras (in)constantes durante todoaquele perodo, sob motivaes diversas. Havia aqueles perseguidos h longa data pelos

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    traduzir como seus espritos ou rituais. So vrios e variados e possuem cada grupo

    deles um vasto repertrio de cantos que trouxeram a partir de diferentes encontros com os

    humanos, em tempos ainda remotos. Trataremos destes encontros e dessa formidvel

    interveno dos Ym!yxopna guerra no terceiro captulo. Por ora, permitam-me concentrar

    nos demais aspectos do combate que esta narrativa permite entrever.

    Que sejam os Y!mkoxeka aqueles a perseguirem e atacarem os Mnyxop do relato no

    parece uma observao fortuita. A crnica da regio sugere mais de uma vez uma certa

    supremacia blica dos povos Botocudo sobre os Maxakali, sugerindo inclusive que, s

    vsperas da invaso portuguesa, estes ltimos encontravam-se duplamente acuados: pelas

    investidas dos Botocudo, ao sul de seus territrios, e dos Tupiniquim, que ora osexpulsavam do litoral. Alguns cronistas chegam mesmo a sugerir que essas presses teriam

    movido os povos da famlia lingustica Maxakali, notadamente os Patax, Makoni, Malali,

    Monox, Comanox, alm dos prprios Maxakali, a se aliarem por diversas ocasies

    contra seus inimigos comuns:

    Do lado da costa martima os Botocudos vivem em guerra com diversas

    tribos, entre as quais destacam-se particularmente os Patachs e osMachacaris; mais para o interior, com os Panhamis e ainda com outras

    (...). Todos esses ltimos, por serem mais fracos, reuniram-se contra os

    Botocudos. As prprias hordas de tapuios travam entre si rudes combates,

    quando acaso se encontram. Empregam nessas circunstncias toda a sua

    astcia e todo o seu tino de caadores; (...). Ordinariamente trava-se

    terrvel batalha, em que todas as flechas so utilizadas por ambas as partes,

    cabendo geralmente a vitria a quem as possua em maior nmero. O

    ataque feito debaixo de enormes gritos e, quando os inimigos chegam-se

    mutuamente ao alcance das mos, entram em ao unhas e dentes. (...) O

    vencedor sai ordinariamente em perseguio aos vencidos, e, pelo menos

    no que respeita aos Botocudos, s faz muito poucos prisioneiros. (Wied-

    Neuwied, 1958 [1815-1817]: 311).

    Sobre a terrvel batalha travada entre eles, podemos acrescentar alguns detalhes. Como

    se viu, os inimigos eram constantemente perseguidos e os ndios acompanhavam as

    movimentaes uns dos outros, em busca do melhor momento e localizao para o ataque.

    No raro, tais movimentaes eram por si s um anncio de guerra, pois que os limites

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    que ainda crianas recebiam de seus pais, em verses menores. Distinguiam-se flechas

    para caa e guerra, mas em nenhum dos casos se usava envenen-las. Wied-Neuwied

    distingue trs tipos delas, geralmente idnticas em todos os tapuias da costa oriental, a

    saber: as flechas propriamente de guerra, feitas com pontas agudas de taquara; outras

    com pontas dentadas, feitas geralmente com a palmeira Ariri e ainda um terceiro tipo, de

    ponta arredondada, utilizada na caa de pequenos animais. (1958 [1815-1817]: 110).

    Devido ao longo comprimento, os homens usavam transport-las nas mos, em nmero

    mdio de seis ou sete. Tambm lanavam mo de estrepes de taquara, que costumavam

    fincar no caminho dos inimigos, para perfurar-lhes os ps. J o arco era igualmente feito

    com a madeira resistente e flexvel da Ariri ou do Ip, e as cordas com as fibras da embiraou do gravat. Acrescentavam-se ainda extremidade inferior das flechas penas de arara,

    mutum ou jacutinga, que lhes conferiam estabilidade e preciso no vo. As tcnicas de tiro

    pareciam, ademais, igualmente variadas e a extrema habilidade dos indgenas no uso de

    seus arcos e flechas no deixava de impressionar os europeus, que os acusavam tambm

    por isso de ardilosos e traioeiros em suas tticas de ataque:

    Os ndios preparavam e executavam as emboscadas de forma inteligente,sem que pudesse por esse modo escapar sequer um animal ou uma pessoa,

    logo que fosse avistado por entre a brecha. (...) Correspondente a cada uma

    das seteiras, ou brechas circulares, fincavam uma estaca ou forquilha,

    sobre a qual o ndios da frente apoiava a sua flecha, o seu imediato apoiava

    a flecha no ombro do da frente e o terceiro no segundo, de forma que,

    daquele ponto, partiriam pela mesma seteira trs flechas ao mesmo tempo

    (...). (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 35)

    Tem-se visto ndios atirarem as suas flechas quasi que

    perpendicularmente e na queda da flecha acertar em qualquer objeto de

    antemo. Em 50 passos, raras vezes erram o alvo, ainda que seja pequeno

    e vi um menino flechar uma tructa na distancia de 30 passos e isso depois

    de ter estado ao meu servio durante varios mezes em que elle nunca

    manejou o arco porque eu lhe tinha ensinado o uso da espingarda. (...)

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    Quando um ndio foi flechado e a flecha ficou na ferida, como quasi

    sempre acontece, quebra ele a ponta e tira o cabo da ferida, torcendo-o.

    (Freireyss, 1901: 244).

    Vivem estes brbaros de saltear toda sorte de gentio que encontram e

    nunca se viram juntos mais de vinte at cinquenta frecheiros; (...) toda sua

    briga atraioada, do assaltos pelas roas e caminhos por onde andam,

    esperando o outro gentio e toda sorte de criatura em ciladas detrs das

    rvores, cada um por si, de onde no erram tiro, e todas as flechas

    empregam, e se lhes fazem rosto, logo fogem, cada um para sua parte. Mas

    como vm a gente desmandada, fazem parada e buscam onde fiquem

    escondidos, at que passem os que seguem, e do lhes nas costas,empregando suas flechas vontade. (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).

    Que os combates durassem enquanto durassem as flechas um indicativo de que, se o

    nmero de mortos pudesse ser maior do que por vezes se estimara ou se gostaria de se

    estimar, no eram nem por isso comparveis aos ataques dos portugueses em seus

    objetivos ou efeitos etnocidas. Por mais que o desejassem, tudo indica que muito

    dificilmente um grupo conseguiria matar uma aldeia num s combate, a menos que

    estivesse em nmero muito superior. A paridade ou superioridade numrica entre os

    guerreiros das duas partes era, alis, um importante critrio para decidirem um ataque,

    posterg-lo ou mesmo dissimul-lo. Breve voltaremos com mais gente, anunciaram os

    ndios Aran em Itambacuri, aps as mulheres que tinham vindo resgatar terem se

    recusado a se juntarem a eles. E, de fato, voltaram:

    Dois anos, mais ou menos, se tinham passado depois das ameaas dos

    ndios de Poaia e, como haviam prometido, voltaram em nmero bemmaior e armados. Mas encontraram o que talvez no esperavam... Todavia

    cercaram a casa, ameaadoramente... Frei Serafim tomou imediatamente

    as medidas necessrias; mandou ficarem de prontido os soldados bem

    armados; armou tambm todos os camaradas ndios da casa e ficou

    esperando os acontecimentos. Quando os Arans se aperceberam que pela

    segunda vez se tinham enganado, diante daqueles homens armados e

    decididos luta, mudaram de ttica e, humilhados, se apresentaram a Frei

    Serafim, declarando que tinham vindo passear e que no tinham nenhuma

    inteno de brigar. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 57).

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    Alm disso, no difcil imaginar que, uma vez percebendo sua inferioridade numrica

    durante um combate, os ndios decidissem recuar e sumirem novamente na floresta, como

    fizeram os Y!mkoxeka do relato: vamos embora! somos s um pouquinho! estamos

    acabando! se continuarmos vamos morrer todos!. E, ainda que perseguidos pelos

    vitoriosos, dificilmente no lograriam escapar, at porque no seria problema esperar, de

    uma parte e de outra, para dar sequncia vingana. E, j que voltamos ao tema, notvel

    que a velha que morreu nas mos do Y!mkoxekalogo no incio do relato tenha se apressado

    em convocar os seus justamente a reconhecer as flechas inimigas, o que talvez indique uma

    preocupao fundamental para os ndios: saber contra quem se vingariam.

    O imperativo da vingana

    O imperativo da vingana e a obstinao com que a tarefa era perseguida pelos ndios so

    mesmo dos aspectos da socialidade guerreira os mais ressaltados pelos cronistas, aqui e

    alhures3. curioso, alis, que um tal sentimento tenha sido comumente atribudo a uma

    natureza antes do que a algum costume: a vingana neles como uma cousa inata,

    vaticinava o Frei ngelo de Sassoferato (apud Missagia Mattos, 2002: 404). No que

    Giesbrecht lhe fazia coro: os nossos selvagens so visceralmente vingativos e perversos,

    guardam por muito tempo a lembrana do mal que lhes foi feito, dos companheiros mortos

    e juram terrvel vingana aos seus perseguidores. (apudMissagia de Mattos, 2002: 65). E

    os colonos logo perceberam (e sofreram) as consequncias de se envolverem numa guerra

    de tal natureza: onde escapa um bugre, testemunha do ataque sua aldeia e da morte

    nele de companheiros, jaz um implacvel inimigo, sedento de dio e de vingana e

    espreita de oportuna ocasio para ofender os seus perseguidores. (Palazzolo, 1973 [1873-

    1952]: 230)4. A proeminncia da vingana tal, entre os ndios, que Henri Manizer, queconviveu com os Krenak j nos idos de 1915, chega mesmo a sugerir que a obrigao de

    vingar seria um dos principais vnculos de parentesco, como quem diz que parente

    3Sobre o tema da vingana, entre os Tupinamb, especialmente, ver o artigo seminal de M. Carneiro daCunha e E. Viveiros de Castro, Vingana e Temporalidade: os Tupinamb (1985).4Devido a constataes como essa, desde cedo os perseguidores de ndios eram instrudos e incentivados

    pela administrao colonial a no pouparem os homens em idade de guerra em seus ataques. Uma carta doGovernador Geral do Brasil, em 1688, recomendava explicitamente a degolao de todos os homens adultosporque poderiam vir a se rebelar no futuro... (Perrone Moiss apudParaso, 1998: 68).

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    aquele cuja morte se deve vingar: le lien dorigine nimpose qune obligation: cest la

    coutume de venger la mort dun parent (1919: 263).

    Assim, notvel que um provvel fragmento de mito contado pelos Malali a Saint-Hilaire

    quando questionados sobre a origem da guerra possa muito bem ser lido (ou confundido)

    com uma certa origem da vingana:

    Segundo eles, os Monoxs, originariamente denominados Munuchus,

    comearam a guerra que desde ento nunca cessou entre os Botocudos e as

    diversas naes de origem comum. As mulheres dos Monoxs no davam

    a luz seno crianas do sexo masculino. Para impedir a extino de sua

    tribo, esses selvagens raptaram as mulheres dos Botocudos, e essa a

    origem do dio que desde ento sempre existiu entre esses ltimos e os

    Monoxs, Malalis, etc. (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 182, grifo meu).

    Muito provavelmente, os aqui originariamente denominados Munuchus so os

    Mnyxopaos quais os Tikm!!nse referem atualmente. Alm disso, o rapto de mulheres

    e crianas, a apontado como a origem do dio, parece de fato uma das principais

    caractersticas da guerra entre os diversos grupos que ali viveram. Note-se novamente nahistria tikm!!n que o guerreiro insiste para que sua mulher no o acompanhe,

    provavelmente temendo sua captura no prenunciado combate. Ainda segundo Saint-

    Hilaire, desta vez sobre os Botocudo: para aumentar os prprios bandos os chefes raptam

    uns aos outros mulheres e crianas, e essa a causa das discrdias que entre eles reinam

    (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 257). A recorrncia dos raptos e a sua importncia na

    dinmica guerreira parece igualmente corroborada por um certo comportamento ou atitude

    das mulheres, que demonstravam relativa indiferena e por vezes certa volubilidade dianteda condio de cativas: as mulheres a princpio soltavam grandes gritos; mas apenas

    caminhavam um pouco e apegavam-se aos seus condutores (Saint-Hilaire, 1975 [1830]:

    184). Isto quando no resistiam, isto sim, a serem reincorporadas pelos antigos parentes,

    como no episdio comentado acima, envolvendo ndios do Aldeamento de Itambacuri e

    seus inimigos Aran:

    (...) os ndios de Itambacuri tinham furtado duas mulheres arans. Os

    arans ficaram furiosos e vieram para vingar-se e chegaram armados,

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    entretanto, especialmente sugestiva se quisermos revisitar uma indagao frequente tanto

    nas fontes histricas quanto no trabalho de alguns modernos historiadores: eram os

    botocudos antropfagos?

    Controvrsias canibais

    A aparncia dos ndios Botocudo despertava especial repulsa aos olhos dos europeus,

    como no esconde, dentre outros, o Prncipe de Wied-Neuwied: a vista dos Botocudos

    causou-nos indescritvel espanto. Nunca vramos antes seres to estranhos e feios. Tinham

    o rosto enormemente desfigurado por grandes pedaos de pau, que atravessam no lbio

    inferior e nas orelhas. (1958 [1815-1817]: 52). A esta imagem particularmente

    monstruosa que os colonizadores faziam deles, vinha se somar a crescente reputao de

    ferozes, belicosos e indomveis, que em pouco tempo alou-os a inimigos nmero

    um da colnia. Neste contexto, difcil discernir no que se disse acerca de seus hbitos o

    que fato do que juzo. Assim, a pecha de canibais, frequentemente atribuda aos

    Botocudo, parece no mais das vezes fruto do imaginrio do colonizador - para quem, no

    limite, todo ndio o era - antes que uma prtica observada entre eles. A hiptese, contudo,

    permanece em aberto, afinal foram em geral poucos, distantes ou muito breves os seus

    observadores. Um dos poucos dilogos entre indgenas registrado poca - a fala do

    capito pojich de nome Kan Jirun ao lngua que tentava dissuad-lo do combate - no

    deixa, por isso mesmo, de soar inquietante:

    Eu no gosto dos brasileiros, eu estou muito bravo. Eles nos so hostis, tu

    trouxeste essa gente aqui, que nos so hostis. A gente que trouxeste vou

    matar como hostis a ns. Vou fazer o fogo claro e comer a carne dessa

    gente. Vou assar a carne dessa gente com bananas verdes. Eu vou matar

    essa gente. Outros brasileiros mataram meu pai, eu estou muito bravo.

    (apudMissagia de Mattos, 2002: 573).

    Se modo de dizer ou modo de comer, no sei. Mas se praticaram a antropofagia real, esta

    muito provavelmente no obteve entre eles os mesmos contornos ou a mesma centralidade

    encontrada, por exemplo, entre seus vizinhos e inimigos costeiros, os Tupinamb. Neste

    ponto, a atitude do guerreiro botocudo que, frente captura, recusa a alimentao e prefere

    a morte ou mesmo a provoca, contrasta nitidamente com a postura que as fontes deram aconhecer dos cativos tupi. No porque estes ltimos rejeitassem a morte, mas porque

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    compartilhadas por vrios povos da regio. Trata-se, sobretudo, do temor de que os

    cadveres se transformem em onas ou seres canibais, o que se pode prevenir

    esquartejando ou cremando-lhes os corpos. Manizer menciona, por exemplo, entre os

    Krenak, a figura dos nanitiong:

    Le mort se mtamorphose en nanitiong, tre fantastique, quil suffirat de

    voir pour mourir. (...) Pour viter la reencontre dun nanitiong on ne

    sapproche sous aucune pretexte du lieu o un mort a t dpos. La

    terreur du nanitiongprend parfois le caractre dune panique. Une fois au

    campement des Krenaks, slevrent de tels cris et lamentations que

    linterprete pensa quun jaguar massacrait les indien. Or la nuit tant

    clairement ilumin par la lune, ctait quelquun qui avait aperu un

    nanitiong au bord de la rivire et la terreur stait empare de tout le

    monde. (Manizer, 1919: 266)

    Os Tikm!!n, tanto antigos como atuais, receiam igualmente que os mortos, depois de

    enterrados, transformem-se em !nmxa, uma espcie de morto-vivo, canibal e ferocssimo,

    cujo corpo escuro e duro como uma couraa e cujos ossos dos punhos se projetam para

    fora como duas lminas bastante afiadas. Extremamente gil e veloz, capaz de matar uma

    aldeia inteira em poucos instantes. Essa metamorfose indesejada sempre associada ao no

    cumprimento, ainda em vida, do resguardo. Contudo, ao contrrio do que afirmou Manizer

    sobre os Krenak, os Tikm!!nse aproximam das sepulturas justamente para conferir se o

    morto no se transformou em !nmxa. Se for este o caso, procedem exumao e

    cremao do cadver. Voltaremos a esses espritos canibais adiante. Por ora, o que estas

    ideias sobre o destinopost-mortemparecem sugerir que o hbito de mutilar e esquartejar

    os corpos dos inimigos mortos possa estar associado a este perigo de transformao.

    Afinal, no deveria ser muito tranquila a ideia, para os ndios, de que uma horda de

    inimigos assassinados pudesse vir a persegu-los e extermin-los nas florestas, sob a forma

    destes nanitiongou inmxa. E, ademais, como em geral no enterrariam os mortos de um

    combate e nem se arriscariam retornar ao local para averiguar o estado de seus corpos, no

    difcil imaginar que optassem por se prevenir.

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    Mas a histria que me contou Mamey no terminava ali, quando os Mnyxop rasgam as

    barrigas dos inimigos mortos, de onde jorra mel7. O seu desfecho outro: um Y!mkoxeka

    que, flechado, tentou fugir, morreu atravessando o rio, onde seu corpo boiava com a

    barriga para cima. OsMnyxopdecidiram abandonar a aldeia novamente e viram o corpo

    de Y!mkoxekaboiando. Pisando no peito dele, osMnyxopatravessaram o rio. Pisavam e

    atravessavam, pisavam e atravessavam, e assim fizeram todos eles. Como costumam dizer

    os Tikm!!n, essa histria tem canto. Hoje, Putuxop (papagaio-esprito) canta assim

    quando vm visitar suas aldeias:

    kukxeka xenex n!

    atravessando o rio pisandokukxeka xenex n!

    atravessando o rio pisando

    tapuux8xop

    nos inimigos

    kukxeka xenex n!

    atravessando o rio pisando

    ax i i ia

    tapuuxxop m

    naquele inimigo

    tapuuxxop m

    naquele inimigo

    kukxeka xenex nmi

    atravessando o rio pisandokukxeka xenex nmi

    atravessando o rio pisando

    kukxeka xenex n!

    7A imagem do mel jorrando das vsceras dos Yimkoxekade fato me intrigou. Enquanto traduzamos o relato,Sueli Maxakali me explicou que aquilo se devia ao costume yimkoxekade ingerir gua somente misturadacom mel. Manizer notara tal costume entre os Krenak: dans leau de boisson ils mlent souvent du miel,mais leur friandise consiste sourtout en larves. (1915: 259).8O termo tapuux como os antigos Tikm!!nglosavam inimigos, muito semelhante, de fato, ao termo em

    tupi antigo tapy'yapara glosar no tupi, estrangeiros em geral. Lembremos que os Tikm!!nestavamdentre os ndios conhecidos como Tapuias nas primeiras dcadas da invaso portuguesa.

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    atravessando o rio vieram

    yak hax hi hia

    tapuux

    xop m

    naquele inimigo

    tapuuxxop m

    naquele inimigo

    kukxeka xenex nmi

    atravessando o rio pisando

    kukxeka xenex nmi

    atravessando o rio pisandokukxeka xenexn!

    atravessando o rio vieram

    kukxeka xenex n!

    tapuux xop

    nos inimigos

    kukxeka xenex n!atravessando o rio vieram

    kukxeka xenex n!

    atravessando o rio vieram

    yak hax hia

    tapuux xop

    nos inimigostapuux xop

    nos inimigos

    kukxeka xenex nmi

    atravessando o rio pisando

    kukxeka xenex nmi

    atravessando o rio pisando

    kukxeka hahi

    o rio...

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    haaaai i i i i

    nm tut max n

    reparando o arco e as flechas

    nm tut max n

    reparando o arco e as flechas

    tapuux pot h

    preparando para o inimigo

    nm tut max n

    reparando o arco e as flechas

    punux xeka ng

    o chefe dos papagaios

    punux xeka ng

    o chefe dos papagaios

    tapuux pot h

    preparando para o inimigo

    tapuux pot hpreparando para o inimigo

    nm tut max n

    reparando o arco e as flechas

    yak ha ha hax hax hi hia

    punux xeka ng

    o chefe dos papagaiospunux xeka ng

    o chefe dos papagaios

    tapuux pot h

    preparando para o inimigo

    nm tut hahi

    o arco e as flechas

    haaaaai i i i i

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    Assim, a histria, que comeava com um deslocamento, conclui-se com outro. O evento

    guerreiro feito canto. O canto o prprio evento, o caminhar, o movimento. Terminado o

    combate, os homens reparam os arcos e as flechas. Seguem adiante sobre os inimigos

    tombados, preparando-se j para os inimigos que viro. Os Y!mkoxekaque sobreviveram

    partiram, furiosos, lanando suas flechas para o ar, hehe, hehe, hehe. Mais cedo ou mais

    tarde, voltaro para se vingar. Assim a vida e a guerra seguem... estes dois movimentos

    incessantes.

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    CAPTULO 02

    A Guerra de Estado

    Da guerra anti-indgena

    (...) Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tm

    subido minha real presena, sobre as invases que diariamente esto praticando

    os indios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes damesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no

    mesmo desaguam e onde no s devastam todas as fazendas sitas naquellas

    visinhanas e tem at forado muitos proprietarios a abandona-las com grave

    prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horriveis e

    atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e

    os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora

    dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na

    minha real presena a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenhomandado que se tente a sua civilisao e o reduzi-los a aldear-se e a gozarem dos

    Fixer, sdentariser la force de travail, rglerle mouvement du flux de travail, lui assignerdes canaux et conduits (...) ce fut toujoursune des affaires principales de lEtat, qui se

    proposait la fois vaincre un vagabondage debande et un nomadisme de corps.

    (Deleuze e Guattari)

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    bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas

    Leis que regem os meus povos; e at havendo-se demonstrado, quo pouco util era

    o systema de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os

    pontos de defeza em uma to grande e extensa linha no podiam bastar a cobrir opaiz: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os

    effeitos de humanidade que com elles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em

    primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Rgia,

    deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra

    offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estaes seccas e que no

    ter fim, seno quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitaes e

    de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que

    movidos do justo terror das mesmas, peam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das

    Leis e promettendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis, como j o

    so as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos Estados do Brazil se

    acham aldeados e gozam da felicidade que consequencia necessaria do estado

    social. (...) Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios

    Botocudos que se tomarem com as armas na mo em qualquer ataque; e que sejam

    entregues para o servio do respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais

    tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle emprega-los em seu servio

    particular durante esse tempo e conserva-los com a devida segurana, mesmo em

    ferros, emquanto no derem provas do abandono de sua atrocidade eantropofagia.

    (Carta Rgia, 13 de maio de 1808)

    Com estas palavras, o Prncipe Regente D. Joo VI mandava fazer guerra aos ndios

    Botocudo pouco mais de dois meses aps a transferncia da corte portuguesa para o Rio de

    Janeiro, em maro de 1808. A carta um registro eloquente da orientao que o Estado

    passaria a assumir em relao aos povos indgenas das capitanias de Minas Gerais, Esprito

    Santo e Bahia ao longo do sculo XIX. Se a guerra contra os ndios, oficial ou no, j se

    fazia h sculos naquelas partes, sua ofensiva desta vez declarada pela autoridade mxima

    do Imprio no deixava de ser reveladora dos interesses que ora se voltavam para aquela

    que at ento fora convenientemente conservada enquanto sua zona tampo.

    Vrias razes justificam este renovado interesse nos territrios at ento pouco explorados

    que se estendiam entre os Vales do Rio Doce e Mucuri. As minas de ouro e diamante j h

    algum tempo davam sinais de esgotamento e, naquele incio de sculo, o declnio da

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    minerao instalava uma crise econmica de grandes propores, que afetaria radicalmente

    os rumos da poltica interna e externa do pas. Outro marco histrico importante, a

    transferncia da sede do Imprio para o Rio de Janeiro, tambm daria novo impulso

    poltica expansionista e integracionista estatal, mais tmida durante o perodo colonial

    devido prpria distncia geogrfica da metrpole e suas maiores dificuldades em manter

    o controle sob o territrio. Alm disso, era necessrio abastecer a populao que se

    implantava ou crescentemente se acercava da capital.

    Naquele momento, portanto, tornava-se interesse mximo da Coroa interligar as provncias

    de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Esprito Santo, facilitando assim o comrcio e o

    escoamento dos produtos agrcolas do interior para o litoral9. Aquelas matas, ademaispouco conhecidas, alimentavam ainda esperanas de descoberta de novas jazidas minerais,

    ou pelo menos de abundncia de terras frteis para o avano da agricultura e pecuria.

    Todo esse contexto ainda seria embalado pela crescente divulgao das ideias e ideais

    iluministas que imbuam aqueles homens oitocentistas de uma nova misso religiosa: a

    civilizao. Impunham-se-lhes, portanto, as tarefas de converter a mata em pasto, estradas,

    vilas... e os ndios em vassalos teis, isto , mo de obra escrava ou barata. Assim

    recebiam e celebravam as boas novas os governantes e proprietrios locais:

    (...) as extensas e dilatadas brenhas que serviram at agora de covil s

    feras e aos Botocudos mais terrveis que as mesmas feras, transformar-se-

    o em povoaes deliciosas, prosperando a agricultura em terrenos novos

    e, por isso, fertilssimos; animando-se outra vez a minerao e criando-se,

    ao mesmo tempo, um comrcio ativo, que Minas nunca teve, nem esperou

    ter (...) (Santos apudParaso, 1998, p. 274 ).

    Mas a nova ofensiva que se anunciava muniu-se igualmente de novas estratgias. quela

    altura, os administradores regionais j haviam adquirido experincia suficiente para

    perceberem que o confronto direto com os ndios era ineficaz, que o seu resultado era

    somente acirrar os nimos dos guerreiros e estimular novos ataques, impedindo a

    penetrao e implantao dos colonos na regio. Era preciso, portanto, conquist-los, mas

    no somente atravs da fora e da supremacia blica como se havia tentado at ento. A

    9Lembremos que a primeira medida do Prncipe Regente ao chegar ao Brasil foi declarar a abertura dosportos s naes amigas e romper, com isso, o exclusivo colonial.

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    conquista aqui adquire aquele outro e pernicioso sentido, o de atrair ou seduzir os

    ndios, para s ento tra-los e reduz-los. Assim, ainda que declarada a guerra aos

    Botocudo, a orientao geral adotada pelos comandos da regio ao longo daquele perodo

    seria outra e, de fato, mais eficiente, pois os colonos no tardaram a perceber que (...) o

    mais enrgico meio de persuadir e convidar [os ndios] fazer-se-lhes presentes de certos

    gneros de que eles tanto tm preciso (...) (Miranda apudParaso, 1998: 359).

    Neste tocante, o manuscrito Como se deve tratar os indgenas para traz-los ao grmio da

    civilizao, do Frei ngelo de Sassoferato orientava: para atrair o ndio civilizao

    preciso presente-lo, trat-lo com lhaneza e jovialidade e, sobretudo, no mostrar-lhe

    desconfiana, o que exige do missionrio prodgios de habilidade e prudncia. S se lhepode impor autoridade com muita delicadeza. (apudPalazzolo, 1973 [1873-1952]: 229).

    O prprio Rei, alis, vendo os efeitos de tal orientao poltica renderem os primeiros

    frutos nos aldeamentos das margens do Rio Doce passaria a ver com bons olhos a medida e

    a recomendar igualmente "(...) captar a amizade e a aliana dos Botocudos mansos e para

    por seu modo principiar a fazer aldeias a que depois possam vir sucessivamente

    incorporar-se os Botocudos bravos, continuando a fazer-se-lhes uma dura guerra enquanto

    no quiserem pacificar-se e viver debaixo da proteo das Leis de S.A.R (...) (apudParaso, 1998: 245).

    Concomitante a essas orientaes viria se somar ainda outra ttica crucial, e talvez final, de

    perseguio aos indgenas: o devassamento da floresta. A ordem era avanar sobre o

    territrio, explor-lo, rasg-lo em estradas, sesmarias, vilas, aldeamentos... Desinfest-lo,

    como se usava dizer no jargo da poca, para ento aproveitar suas terras, madeiras, couros

    e mananciais. Assim, aos poucos, os colonizadores logravam reduzir a exuberante fauna evegetao de Mata Atlntica que tanto os assombrava: ao europeu escreve Frei ngelo -

    causavam pasmo as rvores seculares do Brasil, de 30, 40 e mais metros de altura e

    grossura extraordinria. (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 42); essas florestas virgens,

    densamente entrelaadas, em cujo interior reinam trevas quase eternas, so de encher a

    alma com arrepio e pavor. (Spix, 1981 [1781-1826]: 222)10. Alm disso, era muito

    10Rosngela de Tugny (2011b) dedicou um belo texto ao confronto entre os dois modos diametralmente

    opostos de relao com a floresta, notadamente o dos indgenas que a habitavam h sculos e o dos colonos enaturalistas europeus que a percorreram com um misto de terror e desprezo.

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    comum os cronistas constatarem que, por maiores que fossem seus esforos e

    investimentos em seduzi-los, nada parecia demover os indgenas de retornarem ao abrigo

    das florestas e ao convvio dos seus parentes. Nas palavras de Freireyss: pode-se tirar um

    selvagem brasileiro de suas matas e trata-lo de melhor modo, que elle sempre estimar,

    acima de tudo, poder voltar para os seus patrcios. (Freireyss, 1901: 247). E o Baro

    Johann Jakob von Tschudi conclua: (...) no se sentem bem por muito tempo entre os

    homens civilizados e tm uma saudade incontrolvel de suas florestas. (2006 [1866]:

    265).

    Por isso mesmo, os diretores dos aldeamentos, bastante importunados pela inconstncia

    dos indgenas e por suas frequentes deseres, costumavam concluir que enquantohouvesse mata haveria correrias de ndios (Gorzia apudMissagia de Mattos, 2002: 399) e

    o ento Governador de Minas Gerais, Atade e Melo, reforando as ordens de deitar

    floresta abaixo, vislumbrava o tempo quando (...) estes antropfagos se achariam na

    preciso de largarem suas habitaes; e uma vez perseguidos, se embestariam nos matos

    proporo que estes fossem desmanchando e com o andar do tempo se domariam (se

    possvel domar monstros deste toque). (apud Paraso, 1998: 180). No mesmo sentido

    caminharia a observao de D. Joo VI em outra de suas cartas s autoridades locais:

    (...) tendo mostrado a experincia que um dos melhores meios de se

    conseguir a pacificao e civilizao destas e de outras brbaras raas de

    ndios, que tanto merece o meu cuidado, consiste em se fazerem

    transitveis por muitas e diferentes estradas, os extensos bosques em que

    se acham abrigados, a fim de que por toda a parte hajam de encontrar os

    atrativos da civilizao, sendo convidados com brandura ao

    reconhecimento e sujeio s minhas leis e castigados pesadamente os quecometerem hostilidades (...) (apudParaso, 1998: 249).

    assim que - mais e mais acuados territorialmente, assolados pela fome e pelas doenas,

    alm de frequentemente ameaados pelos combates constantes com seus inimigos ndios -

    aos poucos, vrios povos comeavam a se apresentar nos aldeamentos e vilas da regio.

    Jak Jemenuk, estamos mansos, aprenderam a dizer aos Botocudo os portugueses e a

    expresso era por eles repetida, como um cdigo de aproximao, acompanhadas

    frequentemente por sincorana, capito paquej rehe, tenho fome, o capito

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    grande muito bom (Otoni, 2002 [1859]: 81). Com efeito, a distribuio de presentes -

    geralmente foices, machados, faces de metal, vestimentas e alimentos - seria muito mais

    eficaz enquanto estratgia de atrao e os nomes de Guido Marlire e Tefilo Otoni

    marcam especialmente dois momentos desta nova orientao poltica levada a cabo nos

    vales do Rio Doce e Mucuri do sculo XIX.

    Marlire era um oficial francs que aportou no Brasil com a famlia real portuguesa e que

    foi alguns anos mais tarde nomeado Diretor Geral da Civilizao dos ndios em Minas

    Gerais, onde comandou as sete divises militares distribudas entre as bacias dos rios

    Doce, Suau Grande, Jequitinhonha e Araua. Atuou especialmente entre os ndios Puri,

    Coroado e Naknenuk e tornou-se conhecido por estimular relaes pacficas com estesgrupos, reformando o quadro dos servidores dos destacamentos militares (composto em

    sua maioria por homens degredados ou condenados nos tribunais de deportao europeus)

    e coibindo as conhecidas prticas de caa ou extermnio dos indgenas to em voga em

    toda a regio. J Tefilo Otoni, comerciante e proprietrio oriundo de uma famlia

    tradicional do Serro, seguia carreira poltica como deputado no Rio de Janeiro quando

    convenceu o governo imperial a criar a Companhia de Comrcio e Navegao do Mucuri,

    da qual foi nomeado diretor. Animado pelos relatos do engenheiro Victor Renault, quepercorrera a bacia daquele rio em 1836, Otoni prometia finalmente cumprir o antigo ensejo

    da administrao colonial de interligar o serto de Minas, do Nordeste Mineiro, com um

    prto do mar, em linha reta, atravessando as matas virgens (Timmers, 1969: 12). Com

    este objetivo percorreu a bacia do Mucuri em 1847, aonde regressou e se implantou

    definitivamente a partir de 1852, fundando a cidade de Filadlfia, assim batizada devido

    admirao do diretor pela colonizao da Pensilvnia, nos EUA e mais tarde rebatizada

    com o seu prprio nome. Ali, naquele mesmo ano, Otoni se depararia com centenas dendiosNaknenuk:

    Os primeiros cumprimentos que lhes fiz foram uma larga distribuio de

    toucinho, farinha e rapaduras. Um dos ndios era Poton, cacique de uma

    das tribos que ocupavam um ribeiro, lgua e meia abaixo daquele lugar.

    (...) De Poton declarei-me parente, Poton-Otoni, e le acolheu rindo a

    demonstrao de que o ramos. Aceito o parentesco, disse-me que eu

    trouxesse os mais parentes, porque as terras eram muitas e chegavam paratodos. Peguei-lhe pela palavra e quinze dias depois abria-se, por conta de

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    diversos parentes, uma grande derrubada, que produziu trs magnficas

    fazendas (...) (Otoni apudTimmers, 1969: 20-1).

    A estratgia, contudo, no se demonstraria infalvel, como dela se rejubilavainicialmente o empreendedor. A Companhia e seus funcionrios frequentemente

    esbarrariam na firme oposio dos indgenas ao avano dos seus negcios e foi, por

    exemplo, aos gritos de no quero estradas nas minhas terras! que um chefe botocudo e

    seu grupo recebeu flechadas uma escolta de operrios a poucas lguas de Filadlfia, em

    junho de 1853 (Otoni, 2002: 77). Alm disso, mesmo aqueles ndios que pareciam oferecer

    menor resistncia aproximao com os colonos demonstrariam que, se era relativamente

    fcil atra-los, muito mais difcil seria fix-los. Por isso, se os administradores puderamcomemorar princpio a nova poltica de alianas, entusiasmados com a descida de

    centenas, s vezes milhares de indgenas aos seus vilarejos, no demorou at que seus

    nimos se arrefecessem. Uma vez nos aldeamentos, os ndios nem por isso demonstravam-

    se mais inclinados a neles permanecerem. Pelo contrrio, to logo chegavam naquelas

    paragens e j constatavam as reais intenes dos portugueses: submet-los a jornadas

    exaustivas de trabalho, castig-los caso se recusassem a obedec-los, separ-los de seus

    parentes mais prximos (especialmente as crianas dos seus pais)... No demorava muito,

    portanto, at que decidissem bater em retirada:

    Com promessa de dar-lhes ferramentas e armas, 2000 Puris foram

    attrahidos Villa Rica. Chegados eram logos agarrados e distribudos

    entre os portuguezes para os quaes deviam trabalhar, naturalmente sem ser

    em qualidade de escravos, mas, unicamente para tornarem-se cidados

    prestimosos. O plano era sem duvida bom e o meio empregado talvez

    tivesse sortido effeito, mas os autores do plano no conheciam os seus

    patrcios e alm do mais, commetteu-se o erro de no deixar os ndios

    viverem em famlia; marido e mulher, paes e filhos foram separados e

    mandados a lugares diversos. A consecuncia foi que, mal tinham os Puris

    trabalhado uns 8 dias que todos os homens fugiram, tanto por causa das

    pancadas recebidas, como amor liberdade e saudades da famlia.

    Fervendo de dio, por terem sidos obrigados a abandonar mulheres e

    filhos nas mos dos seus algozes, estavam estes poucos outra vez nas suas

    mattas, matando todos os portuguezes que podiam e, entre elles, aqueles

    que lhes enganaram a vir para Villa Rica. (Freireyss, 1901: 250).

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    Os malalis em 1787 perseguidos pelos naknenuks apresentaram-se no

    Alto dos Bois, nove lguas distante de Minas Novas, e a ficaram aldeados

    junto ao quartel das divises. (...) No Alto dos Bois, os malalis voluntriosou recrutados sentaram praa nas divises. Tendo alguns desertado

    sofreram castigos severos, bem como pessoas de suas famlias acusadas de

    haverem acoitado os desertores. A proteo dos cristos, assim exercida,

    comeou a parecer-lhes mais intolervel do que a guerra com seus irmos

    das florestas. E uma bela manh o comandante do quartel do Alto dos Bois

    achou a aldeia completamente abandonada. (Otoni, 2002 [1859]: 43).

    A chegada nos aldeamentos era ainda acompanhada por sucessivas baixas populacionais,devido aos surtos de gripe, sarampo e varola, doenas que dizimavam os ndios e contra as

    quais no podiam resistir. As numerosas mortes com frequncia confirmariam neles os

    receios de que os brancos (especialmente os padres) fossem os autores de tamanhos

    feitios, e estas eram sempre ocasies propcias a ataques e agitaes, afinal, quando entre

    eles morre algum - observava o Frei ngelo de Sassoferato - h sempre pavoroso

    alvoroo, vinganas estpidas, brigas e roubos, tudo acrescido do pranto das mulheres, a

    modo das carpideiras judaicas. (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 118). Alm disso,

    pelas mesmas razes evocadas no final do captulo um, envolvendo o potencial de

    transformao dos mortos em feras canibais, era comum que os ndios abandonassem suas

    aldeias quando da morte de um parente, geralmente queimando-se-lhes as casas: (...) pois

    jamais ocupam habitaes que tenham servido de tmulos (Wied-Neuwied, 1958 [1815-

    1817]: 268). Tambm por isso, no difcil imaginar que ao ver dezenas dos seus

    sucumbirem e serem enterrados moda crist, bem perto de onde viviam, aqueles grupos

    logo desejassem partir...

    Mas, com o tempo, suas estratgias de afastamento e contato tambm iam se inovando, e

    os ndios passavam a manipular com habilidade as imagens que os portugueses faziam ou

    esperavam deles, servindo-se delas em benefcio prprio, como demonstra exemplarmente

    o episdio registrado por Saint-Hilaire, envolvendo os Machaculis e que vale a pena

    transcrever na ntegra:

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    J h muito tempo que essa tribo se ps em contato com os portugueses,

    fugindo assim como os Malalis, Monochs, Macunis, etc., das

    perseguies dos Botocudos, inimigos de todas as demais naes ndias.

    Os Machaculis procuraram asilo, em primeiro lugar, em Caravelas, ondese fi