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A Escola da luta pela terra A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí. CURITIBA 2010

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A Escola da luta pela terra

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul,

Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí.

CURITIBA2010

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Ficha Catalográfica

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Governo do Estado do ParanáRoberto Requião

Secretária de Estado da EducaçãoYvelise Freitas de Sousa Arco- Verde

Diretor GeralAltevir Rocha de Andrade

Superintendente da EducaçãoAlayde Maria Pinto Digiovanni

Chefe do Departamento da DiversidadeWagner Roberto do Amaral

Coordenação da Educação do CampoVitor de Moraes

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Produção Setor de Educação (MST - PR) e

Secretaria de Estado da Educação (SEED) – Departamento da Diversidade -

Coordenação da Educação do Campo.

Elaboração Adilson de Apiaim

Alessandro Santos MarianoDaiane Maria Paz

Débora Nunes Lino da SilvaElizabete Witcel

Jurema de Fátima KnopfIsabela Camini

Marcela Nunes da CunhaMarli Zimermann de Moraes

Paulo Davi JohannSandra G. Scheeren

Sandra Luciana Dalmagro

CoordEnaçãoIsabela Camini

Sandra Luciana Dalmagro

Colaboração Caroline Bahniuk

Jeansley Lima

rEvisão Equipe de elaboração

Nina Fidelis

diagramação Rafael Araújo Saldanha

Fotos Setor de Educação do MST

dos estados de PI, AL, PR, SC e RS.

EXPEdiEntE

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SUMÁRIO

Apresentação

Parte I

Escola Itinerante do RS: pontos e contrapontosde uma escola em Movimento

Marli Zimermann de Moraes e Elizabete Witcel

Escola Itinerante no Paraná: aprendendo e ensinando na luta dos Sem Terra

Alessandro Santos Mariano, Jurema de Fátima Knopf e Sandra G. Scheeren

Escola Itinerante em Santa Catarina: luta e construção

Daiane Maria Paz e Paulo Davi Johann

A Escola Itinerante no estado de AlagoasMarcela Nunes da Cunha e Débora Nunes Lino da Silva

A Escola Itinerante no PiauíAdilson de Apiaim

Parte II

Escola Itinerante: do árduo e do beloSandra Luciana Dalmagro

A formação dos Educadores ItinerantesIsabela Camini e Jurema de Fátima Knopf

Anexos

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41

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6 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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7Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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8 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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APRESENTAÇÃO

Companheiros e Companheiras,

O Caderno das Escolas Itinerantes nº 5: A escola da luta pela terra: a Escola Itinerante nos estados de AL, PI, PR, RS e SC, retrata a trajetória, a luta e a resistência das Escolas Itinerantes nos estados em que foram reconhecidas e legalizadas pelo sistema público de educação. Embora o estado de Goiás tenha efetivado a Escola Itinerante por três anos (2006-2008), sua experiência não consta neste caderno em virtude das dificuldades conjunturais que impossibilitaram a participação dos educadores do estado nas quatro oficinas de produção deste material, ocorridas entre junho de 2009 e fevereiro de 2010.

Nestes termos, o presente caderno pretende socializar com todos os militantes do MST as experiências das Escolas Itinerantes em âmbito nacional e qualificar o trabalho com a escola. Desse modo, assume um caráter diferenciado em relação às edições anteriores desta coleção. Afinal, os cadernos nº 1 e nº 2 se dedicaram a retratar a história, projetos e experiências das Escolas Itinerantes do estado do Paraná. O caderno nº 3 se ateve às variadas pesquisas sobre o tema no meio acadêmico. O caderno nº 4 destacou as práticas pedagógicas voltada sespecialmente para os educadores das Escolas Itinerantes.

Ao ler este caderno, você terá um reencontro com o início da educação do MST, que teve origem nos acampamentos. Apesar das experiências aqui relatadas não refletirem a concepção de escola do MST, elas apontam as diferentes formas de apreensão do que é educação para o Movimento. O contexto social e a conjuntura da luta vivenciada nos estados interferem na produção dos textos, em que percebemos as contradições do processo e as questões a serem superadas.

Dessa maneira, o presente caderno está dividido em duas partes. A primeira compila os textos elaborados pelos coordenadores das Escolas Itinerantes nos estados correlatos, obedecendo à ordem cronológica de regularização da escola. Vale ressaltar que os referidos textos refletem as ideias dos seus autores, apesar do amplo debate ocorrido no decorrer das oficinas.

Dessa forma, o texto inicial deste caderno demonstra o caráter combativo das Escolas Itinerantes - no seu décimo terceiro ano de existência -, em meio à luta pela Reforma Agrária no Rio Grande do Sul, frente ao crescente processo de criminalização do MST e à truculência dos ruralistas. Assim, situa a escola neste contexto e aponta para os desafios organizacionais e políticos da escola e do MST no estado. Ao ler o relato das experiências destas escolas do Rio Grande do Sul, é possível observar como se aprende lutando e como se luta aprendendo.

O texto seguinte trata sobre a experiência das Escolas Itinerantes no estado do Paraná, que teve início em 2003. Ao contrário do que se possa imaginar aqueles que leram os cadernos 1 e 2 desta coleção, os temas abordados não foram suficientes para compreender as reflexões que educadores e militantes do Paraná têm feito em torno das Escolas Itinerantes.

9Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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Isso demonstra a complexidade dos aspectos identificados no decorrer do processo de sistematização e a necessidade de serem aprofundados. Da escola como instrumento de luta e resistência, perpassando por sua relação com a comunidade, a organização coletiva, o seu vínculo com a realidade, até a sua instituição como escola pública. É necessário atentar ainda o trabalho que o MST no Paraná tem dedicado à formação dos educadores.

Por sua vez, o estado de Santa Catarina, que teve seu processo regularizado em 2004, nos oferece uma descrição do processo de consolidação desta experiência, refletindo suas práticas e apontando perspectivas. Descreve a especificidade da Escola Itinerante no estado e a relação permanente de luta e resistência para mantê-la em atividade. O relato a respeito da caracterização da escola no estado remonta à relação conflituosa com o governo e aponta a dificuldade de se avançar no processo de sua consolidação. Contudo, a escola continua firme na sua caminhada ao lado do povo Sem Terra e sua luta.

O estado de Alagoas foi o primeiro da Região Nordeste a implementar a Escola Itinerante. Sua principal característica é a luta convergente com as demandas de outros movimentos sociais do campo. Desse modo, a luta por escolas nos acampamentos busca superar o descaso histórico do estado e da região com a educação. Esta experiência reitera que a luta pela Reforma Agrária e pela educação em Alagoas e no Nordeste, e se constitui um elemento central para a superação das desigualdades sociais e a emancipação do seu povo.

A primeira parte do caderno se encerra com o texto do Piauí. O último estado a regularizar as escolas de acampamento, em 2008. Essa experiência aponta um novo caminho, em que surgem vários desafios e perspectivas. O trabalho coletivo na construção da escola é um dos caminhos apontados para a superação das dificuldades e a qualificação da atuação nas escolas do MST. Demonstra, aliás, que a auto-organização e o vínculo com a comunidade são elementos centrais para a construção de uma escola que tem o compromisso de educar para transformar.

Desse modo, nos textos a seguir os leitores estarão diante de diferentes processos de luta e permanência da Escola Itinerante. Assim como identificará similaridades e objetivos comuns em torno da luta por escola. Exemplo disso é o fato destas escolas estarem diretamente relacionada à luta pela Reforma Agrária nos estados. No entanto, a diversidade sócio-cultural, a dimensão geográfica e histórica de cada estado/região, repercute na singularidade das escolas. Logo, se a luta em movimento e a relação desta escola com a realidade é o fator que as une, por outro lado, suas especificidades e distinções temporais produzem diversificadas formas de atuação e práticas pedagógicas.

Os relatos aqui publicados pretendem contribuir para a expansão das Escolas Itinerantes como experiência de educação do MST. Por conseguinte, se constituem um meio de reflexão e aprendizado sobre o trabalho nas escolas, especialmente as escolas de acampamento, sem perder de vista as escolas de assentamento. Assim, ao socializar a todos educadores e educandos as práticas, reflexões, avanços, limites e desafios frente a estas escolas de acampamentos, pretendemos contribuir para o avanço das Escolas Itinerantes como política pública e como contraposição à escola capitalista.

A segunda parte do caderno é composta por dois textos. O primeiro aborda a construção social da escola e o sentido atribuído a ela no MST, para então refletir sobre alguns limites e potencialidades da Escola Itinerante. O segundo texto é uma reflexão sobre a importância dos Seminários Nacionais das Escolas Itinerantes para o registro dessas experiências, como aprendizado e formação dos educadores.

10 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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O resultado deste trabalho é fruto de elaboração e reflexão coletiva. Apesar dos referidos textos terem autores que o assinam, todos passaram por um amplo processo de sistematização e reflexão. Os textos foram escritos pelos sujeitos que estão envolvidos no processo. Assim, entendemos que a sistematização das experiências das Escolas Itinerantes do MST se constituiu em um espaço de formação, onde foi possível ampliar a reflexão, identificando as possibilidades e os limites desta escola nos diferentes estados e em seu conjunto.

Nesse sentido, o primeiro resultado almejado com este caderno é refletir sobre a atuação nas escolas de modo a transformar a realidade. O segundo seria disponibilizar e difundir essa experiência escolar, para que todos sistematizem e qualifiquem a sua atuação. E, por fim, contribuir para que o Coletivo de Educação do MST se apodere deste novo instrumento de ação e reflexão.

Com isso, pretendemos que este caderno seja objeto de estudo de toda a militância Sem Terra, mas que possa servir para ampliar a interlocução entre aqueles que comungam do projeto da Educação do Campo e da Reforma Agrária.

Bom estudo!

Coletivo Nacional de Educação do MST Março de 2010

11Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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12 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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13Coleção Cadernos da Escola Itinerante

PARTE I

Escola Itinerante no Rio Grande do Sul

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14 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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15Coleção Cadernos da Escola Itinerante

Marli Zimermann de Moraes1 Elizabete Witcel 2

Enquanto as dores, frutos da contradição do capitalismo, estiverem aí, doendo, não dá para suprirmos os sonhos, os desejos e as insubmissões socialistas.

Paulo Freire

INTRODUÇÃO

Neste texto abordamos a educação e a escola no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), resgatando a trajetória da Escola Itinerante dos acampamentos no estado do Rio Grande do Sul (1996 - 2009). O registro que nos propomos fazer traz a memória, com os elementos da prática educativa, dos treze anos de existência desta escola. Retomamos os fatos, o movimento, as reflexões e os desafios que marcam a continuidade desta caminhada.

Buscamos significar permanentemente o processo organizativo e formativo ampliando nossa compreensão da luta de classes presente na luta pela Reforma Agrária e do enfrentamento ao latifúndio. Compreender e posicionar-se em relação às práticas desenvolvidas neste percurso não é um ato simples e artificial. É uma exigência que nos persegue sempre, desafiando-nos a ser sujeitos de transformação desse contexto.

As vivências adquiridas nos espaços da luta vão construindo referenciais de participação efetiva dos sujeitos que fazem parte desta organização. Estes desenvolvem valores humanos construídos coletivamente, participando dos processos educativos. Essa vivência vem demonstrando que ter Escola Itinerante nos acampamentos significa reconhecer que as crianças, ao mesmo tempo em que lutam por terra, têm acesso à escola, e, na condição de crianças, são protagonistas na luta organizada pelos pais.

Neste contexto trazemos presente as práticas e as reflexões, com avanços e limites, que a experiência pedagógica aqui relatada apresenta, no intuito de revelar a necessidade histórica almejada pelos trabalhadores: a de possuir escola para seus filhos.

Na primeira parte do texto, analisamos os diversos materiais divulgados na imprensa, as opiniões, os fatos abordados sobre o fechamento das Escolas Itinerantes, as considerações sobre a posição dos governantes do estado do Rio Grande do Sul e as reações geradas nos trabalhadores Sem Terra. São análises que demarcam claramente o campo da luta de classes e, em particular, o campo da educação como um dos componentes fundamentais dessa luta. Notadamente, a educação do campo, pela ação coletiva do MST, passa a exigir o posicionamento de todos. Não há neutralidade nessa luta.

1 Educadora do Setor de Educação MST-RS e da rede Pública Estadual do RS. Com Especialização em Educação do Campo e Desenvolvimento, pela UnB/ITERRA 2 Educadora do Setor de Educação MST-RS e da rede pública estadual do RS. Com Especialização em Estudos Latinos, pela UFMG.

ESCOLA ITINERANTE:PONTOS E CONTRAPONTOS DE UMA

ESCOLA EM MOVIMENTO

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Na sequência, elencamos um conjunto de atitudes e ações que foram tomadas como justificativas – por parte do poder público – para o fechamento das Escolas Itinerantes. Coerente com estas ações, percebe-se a desconsideração dos órgãos responsáveis em relação às práticas educativas realizadas pelo MST durante estes treze anos. É mais um capítulo da luta pelo direito negado à educação.

A parte central do texto procura abordar a contextualização sobre a aprovação da escola. Essa contextualização, evidentemente, vai revelando e forjando os principais pilares da pedagogia desenvolvida na luta itinerante dos acampamentos do MST-RS.

Por fim, apontamos os desafios e as perspectivas desta escola, já que esta foi impedida de funcionar. Mas a rebeldia do povo organizado almeja a sua continuidade, e se põe em luta, cada vez que necessário for, para garantir escola para as crianças, jovens e adultos nos acampamentos.

POR QUE ENTÃO FECHAR AS ESCOLAS ITINERANTES? No ano de 2007, o Conselho Superior do Ministério Público – MP do Rio Grande do Sul,

conforme Ata3 , declarou a ilegalidade do Movimento Sem Terra, designando uma equipe de promotores de justiça para realizar uma investigação minuciosa, com vistas a promover uma ação pública para sua dissolução.

Neste sentido, foram propostas diversas ações, dentre elas, a interferência dos órgãos públicos em escolas mantidas e/ou geridas pelo MST. Conforme o termo da Ata do referido Conselho: “...o voto é pela intervenção do Ministério Público nas três ‘escolas’ referidas afim de tomar todas as medidas que serão necessárias para a readequação à legalidade, tanto no aspecto pedagógico quanto na estrutura de influência externa do MST.” Sugeriu-se também se necessário:

...ocorrer o ajuizamento de ações civis públicas com vista a proteção da infância e juventude em relação às bases pedagógicas veiculadas nas escolas mantidas ou geridas pelo MST, nitidamente contrária aos princípios contidos na Constituição Federal e que embasam o Estado Democrático de Direito. (Ata nº 1116 p 02).

Esta mesma Ata orientou para que fossem tomadas medidas judiciais “...para impedir a presença de crianças e adolescentes em acampamentos, assim como em marchas, colunas ou outros deslocamentos em massa de sem-terra.” Um dos principais argumentos é que “este movimento fere os princípios democráticos” 4. E em nome da democracia a aposta é acabar com o MST.

Em novembro de 2008, o MP por meio de um inquérito civil investiga várias ações dos movimentos sociais e instaura um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), declarando o fechamento dos Cursos Experimentais Itinerantes – denominadas Escolas Itinerantes –, que atendiam, naquele momento, mais de 600 crianças, jovens e adultos nos acampamentos de Sem Terra do RS. Seguindo as instruções do TAC, o Governo, em conjunto com a Secretaria do Estado da Educação, delegou a responsabilidade para os municípios próximos aos acampamentos em absorver a demanda escolar dos educandos das Escolas

3 Ata n º 1.116 do Conselho Superior do Ministério Público.4 Fala de Gilberto Thums, em entrevista ao Jornal Zero Hora, no dia 18 de fevereiro de 2009.

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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17Coleção Cadernos da Escola Itinerante

Itinerantes. A decisão tomada pela Secretaria e o MP foi levada ao conhecimento das oito comunidades

acampadas onde havia Escolas Itinerantes. Com essa determinação, o governo pretendia encerrar, definitivamente, as atividades escolares no início do ano letivo, em 2009. A Escola Itinerante vinha se desenvolvendo há 12 anos.

No nosso entender, os instrumentos jurídicos utilizados pela classe dominante ferem os princípios da dignidade humana. E por diversas vezes, tem como objetivo a repressão dos trabalhadores e suas lutas.

Isto se expressa na agilidade nas reintegrações de posse, com a imediata comunicação aos órgãos da Brigada Militar, do Conselho Tutelar, entre outros. Autarquias públicas estão quase sempre sintonizadas quando se trata de legitimar e garantir a propriedade privada. Para protegê-la é válido o “legítimo” exercício do monopólio da violência por meio das ações truculentas nos despejos, a repressão e a tortura, acompanhado de inúmeros processos judiciais contra os trabalhadores. A luta pela terra, a defesa dos direitos humanos, dentre eles o da educação, passam a ser tratados como um ato criminoso. No caso em questão, com forte colaboração da mídia, e esta, enquanto parte da superestrutura política, jurídica e ideológica, sedimenta e consolida as ideias da classe dominante como universais.

Colabora com o que estamos expondo, as medidas judiciais denominadas de Interditos Proibitórios, cuja finalidade é impedir que os acampamentos se aproximem dos latifúndios e das grandes empresas. Neste caso, a medida vale para proibir, inclusive, que as famílias acampem na beira das rodovias.

A finalidade desta ofensiva é visível: criar situações adversas para desmobilizar e fragilizar o Movimento frente à sociedade, classificando a ocupação de terra como um crime hediondo5 . Evidentemente que tais medidas buscam colocar na defensiva todos os movimentos sociais que se opõem ao projeto da classe dominante, baseando-se em medidas mais extremas, como parte da criminalização, que questionem a sua ilegalidade e existência política.

As medidas tomadas pelo MP gaúcho são uma reação à luta conduzida pelos trabalhadores organizados. A intenção das medidas tomadas por este do órgão público ficam mais evidente. O que estava antes camuflado em aparente “neutralidade”, agora se mostra na defesa dos interesses econômicos e políticos dos grandes grupos transnacionais, nacionais e do latifúndio aliado do agronegócio.

Pela sua atuação ficou fácil de perceber que a governadora6 do RS, é a grande protagonista desta ofensiva. À frente do executivo gaúcho, ela articula as forças repressoras do Estado (Brigada Militar, judiciário, MP, entre outros) e os meios formadores de opinião (a mídia escrita, falada e televisiva) reforçando o argumento de que os movimentos sociais são antidemocráticos e devem ser tratados como caso de polícia. Portanto, precisam ser controlados, isolados e responsabilizados criminalmente por suas lutas. Como observa o ex-deputado federal, Plínio de Arruda Sampaio (2008)7 quando afirma:

5 Crimes que o legislador entendeu merecer maior reprovação por parte do Estado. Do ponto de vista da criminologia sociológica, são os crimes mais graves, mais revoltantes, que causam maior aversão. Ou seja, de extremo potencial ofensivo, “de gravidade acentuada”. São considerados crimes hediondos – tráfico ilícito de entorpecentes; tortura; terrorismo. (Wikipédia. Acesso em: out. 2009).6 Yeda Crusius (gestão 2007 a 2010)7 Entrevista realizada por telefone à IHU On-Line, em 25 de julho de 2008.

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O discurso continua sendo o discurso rancoroso do tempo da ditadura. Um discurso ameaçador, aterrorizante. E o que nos deixa mais assustado é ver o Ministério Público do Rio Grande do Sul usando esta linguagem, quando na verdade ela já estava descartada do vocabulário das pessoas e das instituições democráticas. O que está havendo, na verdade, é uma criminalização da pobreza. [...] O fato de haver um aumento da distância entre ricos e pobres está fazendo com que os ricos passem a considerar os pobres como seus inimigos...

Se por um lado são tomadas medidas judiciais duras, como o fechamento das escolas e a dissolução do MST, ferindo inclusive preceitos constitucionais, por outro, o MP acoberta as ações do agronegócio que ferem as leis ambientais. Vejam, para citar um exemplo, que grandes grupos econômicos nacionais e internacionais adquiriram mais de 500 mil hectares de terra para o monocultivo de eucaliptos para celulose no RS. Existem várias pesquisas que demonstram os danos ambientais que essa forma de cultivo ocasiona. As denúncias feitas pelas mulheres da Via Campesina, quando da sua mobilização no dia internacional da mulher, revelaram à sociedade as consequências danosas ao meio ambiente e, por extensão à vida humana, dos monocultivos de eucaliptos.

O fechamento das Escolas Itinerantes desconsidera todo o processo pedagógico construído ao longo destes doze anos, responsável pela escolarização milhares de crianças, jovens e adultos. Isto, a nosso ver, fere os Direitos Humanos. A decisão já mencionada acima foi tomada de forma autoritária, sem o diálogo com as partes envolvidas no Convênio8 , que são a Escola Estadual de Ensino Médio Nova Sociedade - Escola Base9 e o Instituto Preservar10 ; desrespeitou a Constituição Federal, que assegura o direito à educação para todos, e constituiu-se como um ato contra os direitos e as conquistas da sociedade civil.

O reconhecido jurista Jacques Alfonsin, em entrevista aos meios de comunicação, declara que: “[...] o fato de se cancelar o funcionamento de tais escolas atesta, mais uma vez, em que medida o preconceito ideológico da suspeita infundada pesa sobre os trabalhadores pobres do nosso país, não pelo que eles fazem ou dizem, mas sim pelo que são”11 . Concordamos com Alfonsin, e acrescentamos que esta é uma visão distorcida e preconceituosa de quem vê nos trabalhadores uma ameaça aos interesses do capital.

A conivência do Ministério Público explicitada nestas decisões declara sua posição contra os interesses da população trabalhadora e reforça a perseguição política, abrindo assim um perigoso precedente jurídico que fere os direitos individuais e coletivos dos trabalhadores.

Aos olhos da classe dominante, incomodada com as organizações populares, faz-se necessário enfraquecer e desmobilizar as iniciativas da classe trabalhadora. Ela, para continuar dominando como classe, precisa manter o seu modelo de sociedade opressora. Por isso, tenta controlar as iniciativas populares em nossa sociedade. Neste sentido, a educação, bem como outros espaços de formação da

8 Desde o início da aprovação da Escola Itinerante, todos os anos era renovado o Convênio firmado entre a Secretaria de Educação e o Instituto PRESERVAR que garantia a contratação de educadores para atuar nestas escolas.9 E.E.E. M. Nova Sociedade, localizada no Assentamento Itapuí em Nova Santa Rita, pertencente a 27ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), Canoas - RS. 10 Entidade jurídica sem fins lucrativos. Apóia projetos educacionais e ambientais e realizou convênios para contratação de professores para as Escolas Itinerantes.11 Entrevista concedida à IHU-Online, 2009.

18 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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consciência, são iniciativas controladas minuciosamente. Experiências como a das Escolas Itinerantes e as práticas pedagógicas a elas vinculadas devem ser derrotadas, pois questionam e ameaçam a pedagogia da supremacia da propriedade privada, da autoridade do Estado burguês e da legitimidade da dominação de classe. Tudo isso é feito em nome do respeito ao “estado democrático e de direito”. Se ficássemos apenas nos marcos dessa legalidade, veríamos que a própria Constituição Brasileira garante o direito à educação, mais que isso, o direito a desenvolver experiências pedagógicas respeitando-se as especificidades culturais, regionais e outras.

No nosso entender não há justificativas plausíveis para legitimar o fechamento das Escolas Itinerantes, pois não existe nenhuma garantia de cumprimento da determinação judicial por parte dos municípios e das escolas estaduais em atender a demanda escolar, com as especificidades da itinerância das famílias acampadas. O referido TAC, em suas resoluções, define que as redes públicas escolares usuais poderiam receber essas crianças em suas escolas, todavia, temos depoimentos que contrariam estas orientações, tais como a declaração do prefeito Rossano Gonçalves, do município de São Gabriel (2009), que afirmou não ter condições de receber, nem possibilidade de transportar as crianças acampadas para as escolas do município.

É cômodo impor que a rede pública de ensino receba as crianças em suas respectivas escolas, sem considerar a condição de itinerância em que vivem. Ou seja, a simples garantia da matrícula não resolve questões como a sociabilidade entre educandos e educadores, a continuidade dos processos de aprendizagem e o respeito às crianças Sem Terra.

Entre as razões apresentadas para o fechamento das escolas, podemos dizer que inúmeras delas eram atribuições da própria Secretaria de Educação, mas que não vinham sendo atendidas regularmente: falta de recursos humanos, a descontinuidade do pagamento dos educadores, os constantes entraves no envio de materiais de infraestrutura, o descaso com a compra de materiais didático pedagógico, a falta de merenda escolar, o não acompanhamento destas escolas, assim como a não preocupação do Estado com a formação pedagógica dos educadores itinerantes. Haja vista que esta escola é pública, estadual, reconhecida pelo Conselho Estadual de Educação, no ano de 1996.

Deste modo, primeiro houve um processo de sucateamento das condições estruturais destas escolas, ocasionado pelo descompromisso da Secretaria de Educação. A mesma que, posteriormente, questiona a qualidade das Escolas Itinerantes que se desenvolviam em precárias condições.

Outra questão alegada no TAC é de que os educadores que trabalham nas Escolas Itinerantes são pessoas que vivem nos acampamentos e indicadas pelo próprio Movimento e, por isto, o processo de ensino desenvolvido não é laico, pois está sob o “controle” do MST. Esta interpretação do MP não está fundamentada em nenhum instrumento legal, pois os educandos da Escola Itinerante participaram do processo de avaliação externa realizado pelo sistema de avaliação escolar - SAERS e pela Prova Brasil - MEC, no ano de 2007 e 2008, na qual os educandos das Itinerantes apresentaram desempenho similiar às demais escolas do Rio Grande do Sul. O que demonstra que estas Escolas Itinerantes não desconsideram os princípios universais da educação.

Percebe-se com isto que os órgãos públicos, em alguma medida, desconsideraram os seus próprios instrumentos legais de avaliação, pois como se tratam de questões de interesses de classe, aplicou-

19Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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se uma interpretação da lei que desconsiderou a história de doze anos de uma escola pública estadual, Itinerante, reconhecida pelas pesquisas12 existentes e que atende uma população que vive em itinerância, na luta pela Reforma Agrária.

Esta decisão desconsiderou também o projeto pedagógico desenvolvido nestas escolas e que foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação em 1996. Ignora que a maioria dos educadores se encontra em processos de formação em cursos profissionalizantes: ensino médio e superior - Magistério, Pedagogia, Licenciaturas e Especialização em Educação do Campo.

O referido TAC, ainda critica a natureza da Escola Itinerante, alegando que as crianças dos acampamentos, ao terem escolas em suas comunidades, estarão “condenadas” a seguir ao modelo de vida dos pais. Segundo o Promotor de Justiça13 , “Não é a questão do dinheiro, é dar um professor qualificado para essas crianças para que tivessem direito de um dia participar do processo de inclusão social e não receber um ensino que vai condená-las a repetir um modelo que é dos próprios pais”.

Quando se afirma “que a escola deve estar onde o povo está!” ou ainda “que ela existe porque existem povos itinerantes” é porque ela tem essas características e especificidades. Esta escola está assegurada na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional – LDB (96), nas Diretrizes Operacionais da Educação Básica das Escolas do Campo (2002), conforme o artigo 3 “A educação infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental serão sempre oferecidos nas próprias comunidades rurais, evitando-se os processos de nucleação de escolas e de deslocamentos das crianças”14. Este direito está assegurado também no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) de 1990.

A legislação assegura o direito aos Sem Terra de terem a escola próxima de onde vivem, porém sabe-se que somente será concretizada a partir da luta e da prática concreta.

Entende-se que os argumentos do TAC não sustentam a decisão de encerrar as atividades escolares nos acampamentos do MST, tendo em vista que diversas escolas estaduais do estado funcionam em contêineres, as chamadas escolas de lata. Além de serem escolas em precaríssimas condições de infraestrutura, o que por si só revela o descaso com a educação dos trabalhadores, são escolas sem projeto político e pedagógico e com deficiências na formação de educadores. Podemos nos perguntar: por que então fechar as Escolas Itinerantes?

REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA QUE APRENDE E ENSINA NA LUTA

O enfrentamento aos movimentos sociais já vem de longa data. Sucessivos governos (2003 a 2009) vinham construindo medidas no sentido de perseguir os movimentos sociais com o objetivo de desmobilizar as famílias acampadas, deslegitimar a luta pela terra e precarizar as condições das Escolas

12 Inúmeras monografias de magistério e pedagogia, seis dissertações de mestrado e uma tese de doutorado foram pesquisas realizadas sobre Escola Itinerante no período de 1998 – 2010.13 Gilberto Thums em Audiência Pública sobre a Escola Itinerante organizada por Deputados da Assembléia Legislativa, MST e diversas entidades apoiadoras da Reforma Agrária, em abril de 2009.14 Resolução número 2, de 28 de abril de 2008.

20 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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Itinerantes. Como consequência deste contexto, verificamos nos acampamentos que o número de

famílias diminuiu significativamente. Passamos rapidamente para um tempo de pouco diálogo, apatia e acomodações no conjunto da sociedade e, sobretudo, no conjunto das organizações dos trabalhadores. As promessas de um tempo novo para a classe trabalhadora não se realizam, ao contrário, direitos são sistematicamente negados. A Reforma Agrária, como parte das mudanças mais profundas da sociedade, também é negada aos trabalhadores. Por outro lado, e apesar de todas as dificuldades, esse é um momento oportuno de rearticular as forças, organizar a classe trabalhadora, definir as tarefas estratégicas e motivar a todos para continuar a luta.

Não alheio a este contexto, durante o ano de 2003, apesar das precárias condições, a Escola Itinerante manteve suas atividades educativas. Sem infraestrutura e sem remuneração dos educadores, a escola enfrentou enormes dificuldades para se manter, superada apenas pela disposição e decisão do MST de garantir a educação a todas as crianças acampadas. Essa mesma política de descaso e abandono por parte do Estado foi adotada nos anos seguintes pelos governantes. Já inconformados com tal situação, em outubro de 2008, os educadores e representantes de pais mobilizaram-se em frente à Secretaria de Educação reivindicando melhor tratamento às Escolas Itinerantes e reconhecimento aos educadores. Como parte dos protestos, realizaram um jejum que durou 72 horas, reivindicando que o governo estadual garantisse o convênio para a Escola Itinerante e reconhecesse a proposta pedagógica. Lamentavelmente, os governos se negam a reconhecer esta escola como parte da rede pública estadual de ensino em situação de itinerância15, que tem como objetivo garantir um dos direitos fundamentais do ser humano que é o direito a educação.

A Secretaria de Educação, nos últimos anos, ignorou a caminhada, a vida e o movimento pedagógico desta escola, construída e afinada com o projeto de educação do campo assegurado nas Diretrizes Operacionais da Educação do Campo, que é uma conquista dos movimentos sociais. Estas diretrizes apontam avanços na compreensão das políticas públicas específicas para as populações do campo.

Revelamos que os processos educacionais das Escolas Itinerantes estão abertos para pesquisas, orientações e supervisões dos órgãos da Secretaria de Educação e outros. Não há nenhum segredo que não possa ser revelado. A questão é a forma como a Secretaria vem fazendo as supervisões, pois esta se comporta apenas como órgão fiscalizador e controlador das ações pedagógicas nos acampamentos, fazendo vistorias nas escolas, interrogando os educadores, emitindo documentos/pareceres, desaprovando a forma escolar e as práticas educativas itinerantes.

Em tempos anteriores, quando as relações entre Movimento Sem Terra e governo estadual eram de diálogo, foi construído, conjuntamente, um processo educativo no qual a Escola Itinerante tornara-se uma política pública, efetivado por meio do Parecer nº 489/2002, que aprovou o Regimento Escolar16 e ampliou o direito à escolaridade dos acampados.

15 Itinerância significa acompanhar o acampamento nas situações vividas pelas crianças acampadas, sobretudo, naquelas que exigem a participação de toda a família nos processos de mobilizações e lutas para a garantia dos seus direitos fundamentais, incluindo o direito à educação.16 Aprovado em sessão plenária do Conselho Estadual de Educação, dezembro de 2002. Regimentou os Cursos Experimentais Itinerantes, garantindo a ampliação das séries iniciais para séries finais do ensino fundamental, educação infantil e EJA fundamental.

21Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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Destacamos que essa ampliação foi um marco importante na história da luta pela terra e possibilitou a garantia da escolarização para muitos jovens e adultos que a ela não tiveram acesso em seus tempos de infância, assim como a garantia do direito à educação para crianças e adolescentes em seu tempo devido.

A partir da conquista e ampliação garantida no Regimento Escolar, os governos que sucederam, omitiram-se a dialogar e reconhecer esta escola como parte da rede estadual de ensino, não respeitando suas características de itinerância e os sujeitos que a frequentam.

Desta forma, a educação nos acampamentos começou a ser também desatendida e submetida às regras comuns da escola pública estadual convencional. O efeito da institucionalização da escola fragilizou suas condições estruturais, impondo um conjunto de burocracias que limitaram sua funcionalidade, tais como: a informatização escolar (INE), a impossibilidade de mudanças no calendário escolar, entre outras. Estas medidas, principalmente a de tentar “engessar” a Escola Itinerante, distanciando-a da vida e das práticas sociais que a cercam, dificultaram o funcionamento da Escola tendo em vista seus diferentes contextos e circunstâncias.

O pano de fundo do constante entrave é que, na sua essência, essa escola estimula seus sujeitos a pensar e organizar-se em diferentes situações, visando mudanças sociais, pois impulsiona resolver questões que vão além das atividades escolares tradicionais.

No nosso entendimento, a Escola Itinerante questiona, de modo geral, as estruturas escolares capitalistas, sendo desafiada a criar e recriar dentro das condições apresentadas pela realidade, o seu jeito próprio de funcionar, provocando diversas opiniões sobre a sua condição de escola. Conforme aponta Isabela Camini em sua tese de doutorado:

[...] A proposta de itinerância vista sob tantos olhares até aqui, pode ser incluída entre as experiências pedagógicas significativas que se move em direção a uma escola diferente numa sociedade diferente. Porém, é bom lembrar que a instituição escolar, historicamente, não foi, e nem está sendo hoje, pensada para os trabalhadores ou pelos trabalhadores e muito menos tem sido incluída em um projeto de transformação social. (CAMINI, 2009. p.174)

A Escola Itinerante e a proposta de educação do MST se pautam por um projeto articulado

à luta da transformação social. Orienta-se por uma educação popular e transformadora que garante a escolarização para a classe trabalhadora em luta por seus direitos.

Esta escola torna-se uma ameaça para o sistema escolar vigente. A escola convencional, enquanto instituição hegemônica da classe dominante, fortalece a continuidade da ideologia burguesa pelos valores repassados, e quem nela não se “enquadra” sutilmente dela é excluída. Este sistema escolar cria normas que desconsideram as demandas educacionais e as condições reais da classe trabalhadora, que resulta no alto índice de analfabetismo, evasão escolar e baixa escolaridade da população brasileira.

Conforme citação de documentos que regem a legislação educacional estadual: “[...] A educação de qualidade social, direito de todos e dever do estado, passa pela democratização do acesso e

22 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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garantia de permanência e aprendizagem na escola pública sem discriminação de qualquer natureza” 17.Temos claro que se faz necessário manter a escola vinculada ao poder público, pois ela

representa uma conquista como política pública de educação. Contudo, não abrimos mão de sua essência que é ser pensada, construída e conduzida pelo movimento da luta, da resistência, das ocupações e da organização do povo Sem Terra. Porém, por ser desta natureza, e por não ignorar as contradições sociais em seu entorno, esta escola provoca tensionamentos e pressões até ser fechada por aqueles que se negam a entender a dinâmica desta forma escolar. Como podemos analisar a partir da afirmação de Bahniuk, em sua pesquisa de mestrado sobre a Escola Itinerante do Paraná:

As escolas Itinerantes possuem potencialidades maiores em questionar o modelo escolar vigente, pois se encontram num espaço de contestação da ordem legal e hegemônica - que são os acampamentos. E ainda, pautam-se em uma proposta educacional questionadora, tendendo a nos trazer maiores elementos para refletirmos sobre as potencialidades concretas de a escola direcionar-se à perspectiva de emancipação humana (BAHNIUK, 2008, p.12).

Pelo contexto mencionado no Rio Grande do Sul, existem ações contrárias a forma escolar

itinerante desenvolvida pelos trabalhadores em situação de acampamento. O Estado burguês não ficou desatento a esta realidade, desconstituindo aos poucos a autonomia desta escola em movimento, retirando as conquistas, dificultando seu desenvolvimento e legitimando, autoritariamente, o fechamento das Escolas Itinerantes.

AS MARCAS QUE PERSISTEM EMANTÉM A ESCOLA FUNCIONANDO

Mesmo sendo impedida de funcionar e sem o reconhecimento do Estado, as famílias acampadas não se omitiram em garantir a funcionalidade da Escola Itinerante nos acampamentos. Várias ações internas foram, e estão sendo, realizadas para retomar os rumos e continuar sua prática. Os apoiadores da luta pela Reforma Agrária, oriundos de sindicatos e outras entidades18 , também se evolveram. Quando as escolas foram notificadas do seu fechamento, todas as famílias já estavam preparadas para dar continuidade às atividades escolares.

Neste entendimento, foi necessário garantir a funcionalidade da escola, buscando apoios para adquirir materiais didáticos, pedagógicos e assegurar os recursos humanos. Campanhas externas foram realizadas com amigos, simpatizantes, organizações sociais, sindicatos, prefeituras, entre outros, com o objetivo de garantir as aulas e para resistir à perseguição aos movimentos sociais.

No início do ano letivo de 2009, realizaram-se aulas inaugurais em frente às Coordenadorias Regionais de Educação (CREs), que foram ministradas por apoiadores que se dispuseram a trabalhar com os

17 Princípios nº 1, temática 3 – documento elaborado sobre a Construção da Escola Democrática e Popular, 2001.18 Sindicato dos Professores do RS (CPERS) Sindicato dos Bancários RS, Deputados/as apoiadores, Comissão Pastoral da Terra(CPT), Associação de Educação Católica (AEC), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre outros.

23Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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Sem Terrinha, tratando de temas como o ECA, enfatizando o direito à escola. Essas aulas foram realizadas para exigir o reconhecimento da vida escolar dos educandos e a continuidade das Escolas Itinerantes. Foram realizados os registros nos diários de classe no final de cada bimestre, sendo estes protocolados nas CREs mais próximas aos acampamentos.

Também foi realizada uma Audiência Pública, organizada junto à Comissão de Educação da Assembléia Legislativa, onde a presidente do Conselho Estadual de Educação, Cecília Farias19, afirmou que “o TAC não tem base legal para sustentar o fim das Escolas Itinerantes”. Afirma também “que não chegou nenhum pedido de fechamento desta escola a este órgão público”. Buscamos nos fundamentar no artigo 81 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que diz: “é permitida a organização de cursos ou instituições de ensino experimentais”. No mesmo documento, o artigo 26 orienta que “os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela”. Isso aponta caminhos, os quais foram seguidos pelo processo desenvolvido nas Escolas Itinerantes, buscando ser mais próximo da sua realidade.

Segundo Wanessa Schin, representante do Ministério da Educação (MEC), na mesma audiência pública realizada para debater o assunto, afirmou que “o artigo 28 da LDB define que “na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região”. O inciso I define que poderão ser definidos “conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos das zonas rurais”. O inciso II fala de “organização escolar própria” e o III, em “adequação à natureza do trabalho na zona rural”. Ou seja, estes argumentos, presentes nas leis que regem a Educação, contam a favor da continuidade da Escola Itinerante.

Na semana da criança, no dia 13 de outubro de 2009, mais de 250 crianças, vindas dos assentamentos da região metropolitana, manifestaram seu repúdio à determinação do MP, em frente ao Palácio Piratini, na Praça da Matriz. Nesta manifestação, as crianças tiveram uma aula simbólica com apoiadores da Reforma Agrária, dentre eles a educadora, amiga do MST, Nita Freire. Dela, as crianças acampadas, ouviram a história da vida de Paulo Freire: “Paulo criou teoria embasada no entendimento de que através da Educação se pode mudar o rumo de uma sociedade. A Educação, segundo ele, serve para humanizar. Ele era esperançoso e acreditava que a qualidade da esperança faz parte da natureza humana”. Em entrevista à imprensa local, ela repudiou a ação do fechamento das Escolas Itinerantes.

Embora proibidos pela determinação do poder público em continuar estudando nestas escolas, mesmo com poucos recursos didáticos e pedagógicos, a decisão das famílias acampadas é de manter a continuidade das atividades escolares. Portanto, as crianças, jovens e adultos continuarão estudando nos acampamentos.

Sendo assim, a Escola Itinerante, tornou-se elemento fundamental para a garantia da participação das famílias. Quando se pensa na formação de um novo acampamento, vem junto a preocupação e os encaminhamentos necessários para garantir a educação dos acampados. Nosso entendimento é que a

19 Fala na audiência Pública realizada dia 07 de abril de 2009, no Plenarinho da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

24 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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Escola do acampamento provoca as famílias a pensar e a cuidar da escolaridade de seus filhos. A academia reconhece a Escola Itinerante por meio de diversas pesquisas já realizadas no

período entre 1998 e 2010. Em geral, as pesquisas apontam sinais de uma pedagogia diferente, com limites e possibilidades. Uma educação comprometida com a classe trabalhadora. Apontam a Escola Itinerante com germens de uma nova escola. Nosso entendimento é que essas pesquisas contribuem para a divulgação e o reconhecimento deste projeto de escola nos acampamentos do MST.

Ao tratar sobre o tema do fechamento das Escolas Itinerantes, Jacques Alfonsin20 afirma:

[...] as suas escolas têm de ser itinerantes. O direito humano fundamental à educação dessas crianças foi reconhecido à custa de muitos protestos públicos, alguns reprimidos com extrema violência, muitas reuniões com representantes da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul em sucessivas gestões públicas do Estado, dedicação cuidadosa e competente de sujeitos, com sacrifício pessoal, às duras condições de trabalho em tais circunstâncias.

Pelas manifestações e a luta de um conjunto de setores de nossa sociedade em defesa das

Escolas Itinerantes, se comprova que não é possível aceitar de forma pacífica esta brutalidade cometida por governos e órgãos públicos legitimados pelo “estado democrático de direito burguês”, que impõe à classe trabalhadora ainda maior exclusão, retirando direitos fundamentais, assim como, impedindo que se organizem e lutem por melhores condições de vida e trabalho. Neste sentido, estes ataques sofridos pelas famílias Sem Terra reforçam a necessidade de afirmação das políticas educacionais vinculadas com os processos de transformação social como caminhos imprescindíveis por onde passa a emancipação humana e a construção de um novo projeto de sociedade, justa e solidária.

A CAMINHADA HISTÓRICA E AS LUTAS DA ESCOLA ITINERANTE

A história da Escola Itinerante começa juntamente com a retomada da luta pela terra, em 1982, no Acampamento da Encruzilhada Natalino, no RS. A preocupação com a educação das crianças criou as condições para realizar o debate sobre a temática entre as famílias acampadas. A necessidade de envolver as crianças com práticas educativas possibilitou a discussão e a materialização destes espaços denominados de “escola do acampamento” com uma “pedagogia diferente”, pois deveria atender as demandas educacionais das crianças, jovens e adultos que ali viviam. Além disto, o trabalho educativo buscava estar articulado com o projeto a ser construído pelos trabalhadores, contrapondo-se ao modelo de escola existente. Deste modo, podemos dizer que a escola nasceu para atender as necessidades da própria comunidade acampada e ela continuou sendo buscada e reivindicada em outros acampamentos que se sucederam neste estado, no período de 1982 a 1995.

A existência desta prática educativa desenvolvida nos acampamentos garantiu a escolarização de muitas crianças e adultos e permitiu que esta experiência fosse reconhecida pelos órgãos públicos,

20 Advogado defensor dos Direitos Humanos da OAB. Faz uma entrevista Online em defesa dos trabalhadores em vista do fechamento das Escolas Itinerantes pelo Ministério Público Estadual.

25Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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amparada na legislação existente, que reconhecia o conhecimento adquirido, mesmo que apreendidos, fora de escolas legalizadas. Desta forma, quando um estudante saia do acampamento e buscava ingressar em uma escola regular, era submetido a uma prova que o classificava e indicava em qual série seria matriculado. O bom desempenho dos estudantes acampados nestas provas passou a ser incentivo ao trabalho pedagógico realizado e alimentou o sonho de buscar na legislação educacional o direito à escolarização para comunidades específicas.

Passados alguns anos, surge a necessidade concreta de lutar pela legalização da vida escolar dos Sem Terra. A princípio, o que motivou esta busca foi o estudo do ECA, realizado por crianças e adolescentes no II Congresso Infanto-Juvenil do MST, em 1995 no RS.

O projeto da Escola Itinerante precisou de muitos esforços para ser construído. Neste período, o Setor de Educação do MST/RS, junto com uma equipe da Secretaria da Educação, elaborou a Proposta de Escola Itinerante. Após ser analisada e debatida pelos membros do Conselho Estadual de Educação, a proposta foi aprovada, em sessão plenária deste mesmo Conselho, no dia 19 de novembro de 1996, sob o Parecer nº 1313/9621. A presença de setenta crianças vindas de dois acampamentos da região contribuiu fortemente para a aprovação, por unanimidade, da Escola Itinerante.

Com eta aprovação, foram legalizadas as práticas pedagógicas em dois acampamentos22. Esta escola se fazia nos espaços da luta pela terra, nos acampamentos, nas marchas, nas mobilizações, nas ocupações de prédios públicos e, em todos os lugares onde os Sem Terra estavam. Desta forma, a escola se tornava um espaço favorável de vivências sociais, articulada com o projeto em construção pelos trabalhadores e embasada na Pedagogia do Movimento e na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, entre outros.

O trabalho na escola era desenvolvido de forma coletiva entre educadores, educandos e comunidade. O planejamento era construído a partir de um diagnóstico feito da realidade, e, por meio dele, eram escolhidos os temas geradores. Isto acontecia, não apenas nos períodos de marchas, mas também nos momentos de retorno ao acampamento onde a escola se insere e retoma as atividades com estruturas mais fixas. Por estar imersa e encharcada nesta realidade, ela necessariamente precisa trabalhar conteúdos escolares que surgem da prática social que a cerca. Portanto, a vida real está conectada com a escola. Estas são marcas que a diferencia das demais escolas convencionais que, muitas vezes, segue um currículo e conteúdos distantes da vida.

A construção do currículo, do planejamento, da avaliação e da formação de educadores foi prioridade na Escola Itinerante, o que fortalece o trabalho didático e a apropriação do conhecimento historicamente produzido pela humanidade e socialmente útil, assim como estimula os educandos à pesquisa da realidade e a construção de um novo conhecimento. Por isso, nesta escola, se aprende e se ensina ao mesmo tempo.

Nas diferentes circunstâncias de vivências e resistências que a luta pela terra proporciona,

21 Sobre a história da Escola Itinerante, ver CAMINI, Isabela. Escola Itinerante: na fronteira de uma nova escola. São Paulo: Expressão Popular, 2009. Também existem dois cadernos (1998) e (2002) da Coleção Fazendo Escola, elaborados pelo Setor de Educação do MST que tratam dessa temática.22 Acampamento Palmeirão, no município de Santo Antônio e o acampamento Julio de Castilhos, no município de Julio de Castilhos.

26 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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a Escola Itinerante participa ativamente. Seja na confecção de materiais que venham protegê-las dos ataques e da intoxicação, causada pelo gás lacrimogêneo jogado pelos policiais entre os Sem Terra para dispersar sua mobilização, seja no estudo dos sintomas provocados por estes produtos, transformando-se em conteúdos escolares sistematizados na escola.

A escola carrega consigo as marcas da realidade, pois a todo momento é provocada a refletir sobre sua existência. Tomamos como exemplo o depoimento de um dos educadores desta escola, Luis Carlos Pilz23

Um acontecimento marcante na trajetória da Escola Itinerante aconteceu na manhã do dia 11 de março de 2006. A Brigada Militar do RS realizou o ato de desocupação da Fazenda Coqueiros (Guerra), município de Coqueiros do Sul, cumprindo uma determinação da Justiça Federal e forçando, de forma truculenta, os Sem Terra a deixarem a área ocupada. Montamos o Acampamento Sepé Tiarajú, com mais de 2 mil pessoas. Neste local, construímos uma Escola Itinerante que contou com todos os educandos e educadores dos acampamentos do RS. Foi um dos momentos mais ricos da história pedagógica da Itinerante, estávamos todos compenetrados no ensinar e aprender. Somávamos mais de 500 crianças e 40 educadores, que além de podermos trabalhar em grupos, trocamos muitas experiências pedagógicas. Foram dias em que o sonho de fazer um verdadeiro processo educativo aconteceu. Tudo foi interrompido naquela manhã quando, além de despejarem os Sem Terras, a Brigada Militar queimou nossa Escola , alimentou seus cães na frente das crianças com a merenda escolar e tentaram destruir nossos sonhos.

Ações como estas, frequentes na longa trajetória dos acampamentos, deixam marcas profundas, mas se somam nas reflexões e na análise que fazem os trabalhadores sobre a correlação de forças existente na luta contra o latifúndio e o capital. A Escola Itinerante está diretamente envolvida em situações como estas, ela não se distancia da realidade. Tanto é que o fato ocorrido durante a ação realizada mostra claramente a força que a escola tem, por isso, foi diretamente “atacada”. Para a burguesia, é inadmissível aceitar que crianças, jovens e adultos estejam em processo de aprendizado, no qual possam projetar o seu processo de formação, ampliando o entendimento sobre o mundo e a realidade.

No contexto da escola existe a possibilidade concreta de planejar os temas e conteúdos envolvendo o currículo escolar a ser trabalhado. Os educadores e educandos desenvolvem a capacidade de serem sujeitos atuantes, responsáveis pelos processos com os quais interagem, construindo novos conhecimentos por meio da pesquisa, do estudo, das situações reais e buscando elementos para subsídio na prática.

A comunidade assume a responsabilidade pelo conjunto da escola e referencia os educadores a trabalhar nela, incentivando a participação reflexiva e a apropriação dos conhecimentos entre os sujeitos. Como dizem os acampados, “a Escola é do Estado, mas a pedagogia é nossa”. Essa expressão amplia a visão sobre o papel da comunidade na escola, e torna-a participante dos processos vivenciados, ainda que de forma tímida.

23 Educador da Escola Itinerante. Atualmente, estudante no curso de Licenciatura em Educação do Campo, convênio entre UnB e ITERRA. Em CAMINI, Isabela. Eles queimaram a nossa escola, 2006. (Texto não publicado) há um registro desse fato.

27Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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O educador tem a oportunidade de dialogar sobre suas práticas e socializar os conhecimentos adquiridos nos estudos diários. Nas reuniões com a comunidade pode discutir questões sobre a escola. Nos espaços de formação organizados no Movimento como encontros, seminários, congressos e nos intercâmbios com outros movimentos, se dá a troca das experiências entre eles. Estes momentos fortalecem a compreensão sobre a educação com base concreta, o que estimula as transformações sociais e a vivência de novos valores.

Na Escola Itinerante a avaliação do processo escolar valoriza todos os momentos pedagógicos, isto é, o planejamento, a metodologia, o conteúdo, os educandos, os educadores e a comunidade, a partir das responsabilidades de cada um, tendo em vista o crescimento coletivo. A avaliação como forma de garantir as metas propostas pela escola, o aprendizado escolar e a vivência social, e também o avanço de etapas, certificando a escolaridade para fins de ingresso em outra escola.

Constam, nos registros da Escola-Base, dados de todos os acampamentos já existentes no RS, desde a aprovação em 1996, até os dias atuais, totalizando mais de sete mil educandos entre crianças, jovens e adultos e um número significativo de educadores que atuaram e forjaram sua formação proporcionada pela organização por meio de estudos nos cursos formais, com empenho coletivo em momentos de formação na escola e pelo desafio permanente da sua prática nos espaços da mesma.

ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DA ESCOLA

A organização curricular é por etapas de ensino, previstas na Proposta Pedagógica da Escola Itinerante, aprovada em 1996, permitindo com que as crianças ingressem na escola e avancem de etapa em qualquer época do ano letivo. Os componentes curriculares, conteúdos e didáticas, levam em conta os objetivos da própria escola, ou seja, respeita os sujeitos envolvidos nesta realidade e trabalha as várias dimensões humanas de forma flexível e organizada.

Em todos os processos da Escola Itinerante, os educadores e educandos são protagonistas do ensinar e aprender. Não existem receitas prontas, mas indicações de como fazer o processo de cada escola que se organiza no acampamento. As problemáticas colocadas são desafios a serem superados em cada realidade encontrada, pois as convicções pedagógicas refletidas sobre a escola direcionam os rumos que está sempre em construção e em movimento.

O educador Paulo Freire é um dos inspiradores da Itinerante, pois suas análises sobre as práticas de educação popular ajudam nos diálogos sobre a escolha dos temas geradores, implementando o princípio da “realidade como ponto de partida”. As reflexões sobre as tensões vivenciadas no contexto da escola vão sendo desenvolvidas em forma de conteúdos nas aulas e ajudam a direcionar o trabalho pedagógico. As decisões dos temas são tomadas na gestão coletiva da escola.

Muitas reflexões foram feitas em torno das listas de conteúdos vindos dos programas curriculares para as escolas públicas, porém estas nos levam a pensar que eles devem ser considerados, mas não são exclusivos. As opções do que estudar, quando e como fazer, são dialogadas nos momentos de estudo e planejamento coletivo. As práticas pedagógicas nas itinerantes têm demonstrado que o que

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é imprescindível é a vivência de um dos princípios educativos da proposta do Movimento, que é o do planejamento coletivo, realizado entre educadores, comunidade e escola, partindo da pesquisa da realidade.

Os conteúdos trazidos do contexto vivido apontam para a construção de um conjunto de ações que possibilitam a produção de conhecimentos novos. O desafio é buscar permanentemente o fazer coerente entre teoria e prática, para que os educandos possam compreender a realidade e construir o aprendizado por meio do estudo e da pesquisa, desenvolvendo a criatividade e as habilidades dentro do processo vivenciado na escola.

Diante da necessidade de uma elaboração sistematizada que subsidie os educadores, são referendados os Cadernos da Coleção da Escola Itinerante24 e as demais produções elaboradas sobre escola no MST, que contribuem nas orientações didáticas e pedagógicas a serem desenvolvidas nas Escolas Itinerantes.

O processo educativo é constantemente reconstruído pelo coletivo da escola e comunidade, aproximando-se da vida, ou nas palavras do educador russo:

A escola deve educar as crianças de acordo com as concepções, o espírito da realidade atual; esta deve invadir a escola, mas invadi-la de uma forma organizada; a escola deve viver no seio da realidade atual, adaptando-se a ela e reorganizado-a ativamente. (Pistrak, 2000, p.32-33)

A Escola Itinerante, por estar em constante itinerância busca caminhar junto com a comunidade. Isto possibilita que ela não se afaste da vida real, dos problemas e conflitos sociais enfrentados. A realidade é muito dinâmica e como nos diz Camini (2009, p.201), “é impossível ignorar esta realidade, porque ela invade a vida dos educandos, não permitindo que se viva um mundo fictício, no qual se inventa problemas para serem resolvidos”.

Esta escola mostra que é possível construir saberes em lugares e espaços não imaginados antes pela comunidade e pelas crianças e, a partir destes, se ensina e aprende. Como dizem as próprias crianças: mesmo numa “escola sem sala e paredes” a gente aprende. A Itinerância nos põe a dar aulas debaixo das árvores, em pavilhões, na beira do asfalto, no meio da estrada, nos parques de exposições, em frente aos órgãos públicos federais e estaduais, nas universidades e outros espaços educativos. Desta forma, se organiza aulas sobre diversos assuntos, tendo por base uma realidade que permite produzir conhecimentos sobre a vida, sobre o mundo, e também como tornar o cotidiano mais leve, justo, humano. Exemplo disso, foi o que aconteceu na ocasião da Audiência Pública, em 07 de abril de 2009, na Assembléia Legislativa, sobre o fechamento das Escolas Itinerantes. As crianças estavam mobilizadas na Praça da Matriz, em frente à Assembléia, fizeram o estudo do ECA, enfocando o direito de ter escola. Como resultado deste trabalho, construíram um livro em tamanho gigante com os direitos discutidos por eles e entregaram às autoridades presentes na audiência. As aulas concretizadas nestas situações, os processos de luta permanente e os desafios enfrentados, permitem uma visão politizada e significativa para o aprendizado. As aulas, desse modo, possibilitam momentos educativos jamais vivenciados em outros espaços.

24 MST. Pedagogia que se constrói na Itinerância: Orientações aos educadores. Cadernos da Escola Itinerante – MST. Ano II, nº 4, Curitiba, PR, maio, 2009.

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Este exemplo mostra a Escola Itinerante conectada com a vida, não fechada e nem gradeada. Ela se movimenta, a depender da realidade, do contexto em que se encontra.

O “OFÍCIO” DE SER EDUCADOR DESTA ESCOLA

Esta caminhada sempre contou com o trabalho de muitos educadores comprometidos com a Reforma Agrária. Esses são desafiados a desenvolver práticas pedagógicas diante das diversas situações que a realidade apresenta e, com estas, o compromisso de construir a Pedagogia do MST. Conforme o depoimento de uma das educadoras da Escola Itinerante:

Para mim, como pessoa e educadora. foi um período de extremo crescimento e aprendizagem. Aprendi nesses dois anos de acampamento o que não havia aprendido em todos os anos de escola. Posso afirmar que o confronto entre a teoria e a prática, a reflexão constante em um coletivo unido e em sintonia foi com certeza a alavanca para esse crescimento25 .

As angústias sentidas para fazer esta escola acontecer, as aprendizagens construídas e os caminhos que se abrem são inesquecíveis e de grande significado para os educadores.

É sempre um grande desafio formar coletivos de educação com educadores da comunidade. O Setor de Educação contribui neste processo organizando formações que trabalham temas relevantes à realidade, desde como organizar uma escola, fazer o planejamento escolar, organizar o currículo, a avaliação, entre outros.

A equipe de educação escolhida pelos Núcleos de Base de cada acampamento reúne-se periodicamente para estudo e planejamento. Nas reuniões são trabalhados elementos necessários para a organização e o funcionamento da escola.

Os educadores, ao perceberem a responsabilidade que lhes cabe na condução do trabalho pedagógico desta escola, sentem a necessidade de fazer estudos semanais com materiais de apoio pedagógico, desafiando-se a continuar a formação por meio dos cursos formais organizados pelo Movimento. O exercício de fazer o planejamento coletivo garante a funcionalidade da escola. A realidade vivida pelo acampamento aponta para outras perspectivas de educação. A luta social, os valores humanos e a coletividade, vão além do que a escola convencional, de modo geral, propõe.

A cada nova realidade, o coletivo de educação é desafiado a pensar e a recriar a escola, respondendo às necessidades apresentadas. Os recursos didáticos e pedagógicos são referenciados no contexto, que é dinâmico e novo ao mesmo tempo, necessitando de um processo continuado de reflexões. As situações cotidianas da escola são adversas e as condições precárias demandam muita responsabilidade com o trabalho desenvolvido pelos educadores.

O fazer pedagógico valoriza as questões que circulam próximas da escola e ampliam o conhecimento dos educandos e educadores para além do cotidiano vivido no acampamento. Os fatos

25 Maria Carlota de O. Amado - Educadora da Escola Itinerante nos primeiros anos desta escola. Atualmente atua em uma escola da rede pública estadual de ensino do RS.

30 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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que acontecem e as decisões tomadas sobre a continuidade da luta possibilitam conduzir o trabalho a partir das necessidades. São os elementos concretos que dão base para produzir conhecimentos e torná-los significativos. Ou seja, a formação humana está articulada a um projeto cultural em que as pessoas se educam dentro de um processo que contrapõe a prática individualista, tendo a práxis como eixo principal da própria formação humana.

Estes sem terra, formado pela dinâmica da luta pela reforma agrária, e do MST, pode ser entendido também como um novo sujeito sócio cultural, ou seja, uma coletividade cujas ações cotidianas, ligadas a uma luta social concreta, estão produzindo elementos de um tipo de cultura que não corresponde aos padrões sociais e culturais hegemônicos na sociedade capitalista [...]. (CALDART, 2000, p.26)

O educador, ao referenciar seu trabalho interpretando a realidade, possibilita ao educando construir novas práticas sociais. Neste sentido, a escola torna-se um espaço de referência dentro do acampamento, que é complementada com outros espaços de formação comunitários que ampliam o processo de ensino-aprendizagem dos educandos.

Os encontros locais, regionais e estaduais dos educadores das Escolas Itinerantes buscam dialogar sobre a educação no MST, realizando também trocas de experiências com outros estudantes e professores das Universidades sobre a luta pela terra, a apropriação do conhecimento, agricultura ecológica, sustentabilidade, dentre outros temas que ampliam as possibilidades das práticas pedagógicas e enriquecem sua vivência social.

Ser educador de um processo itinerante significa compartilhar com as crianças, jovens e adultos, momentos jamais imaginados antes, pois o sentido de viver profundamente o compromisso de educar e assumir o papel de fazer da escola um lugar de vínculo entre teoria e estudo da realidade, contribui para manter a escola conectada com a vida e com a história construída pela classe trabalhadora.

APRENDIZADOS DA ITINERÂNCIA

A Escola Itinerante marca o significado e o lugar da educação e da escola na vida das pessoas, com processos construídos e vivenciados pelos sujeitos que deste contexto fazem parte, conduzindo sonhos, fazendo lutas e produzindo conhecimentos.

Nas crianças e nos adultos, a marca da escola se concretiza na imagem das diferentes atividades e dos muitos espaços em que ela se concretiza. As vivências da luta organizada em movimento, os estudos proporcionados, ocupam o lugar na construção de significados que referenciam aprendizados e interrogam a função social da escola.

A necessidade de construir e reconstruir os espaços da escola na itinerância foi mostrando ao longo da história os caminhos possíveis de construir e relacionar a caminhada da luta pela terra com os estudos escolares, por meio de exemplos concretos vivenciados constantemente.

Ao organizar os estudos da Escola na Itinerância é necessário considerar o universo de conteúdos que cada momento apresenta, como a de uma marcha rumo ao latifúndio, por exemplo. Nas “paradas” para

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descanso acontece a organização das estruturas do acampamento e da escola, são feitas discussões nos núcleos e a formação por meio de estudos com as famílias. Na escola, o trabalho pedagógico é planejado e toma a dimensão de rever e registrar o que vivenciam durante a marcha. É momento de criar e recriar por meio das atividades desenvolvidas, superando as dificuldades, construindo saberes e aprendizados.

Os momentos de dificuldades são sempre mais complexos de serem trabalhados. Nem sempre é fácil falar sobre a dura e árdua realidade enfrentada. É propósito da escola dialogar sobre o assunto para entender os movimentos contraditórios que existem na dialética da luta de classes. Desta forma, é preciso canalizar as tensões em processos educativos, superando os desafios, e com isso compreendê-los e enfrentá-los.

Inúmeros são os exemplos que poderíamos citar de como acontecem as intervenções pedagógicas. Tomemos como referência a marcha Sepé Tiarajú, rumo ao coração do latifúndio, cujo objetivo era pressionar a desapropriação da Fazenda Southal26. Essa marcha durou mais que três meses e teve início em junho de 2003, com 800 participantes, mulheres, homens e crianças, e passou por várias cidades do centro sul do estado, denunciando o latifúndio e ampliando o diálogo sobre a Reforma Agrária com a sociedade.

A marcha ainda não havia chegado à cidade de São Gabriel e encontrava-se no município de Cachoeira do Sul. Nesta ocasião, circulavam pelas ruas da cidade um panfleto anônimo27 cujo conteúdo28 causou muita indignação aos marchantes e aos que defendem a Reforma Agrária. Este panfleto, altamente discriminatório e racista, provocou reflexões e debates nos diversos espaços de reuniões, formações e nos meios de comunicação, provocando as mais variadas reações.

Na escola, o panfleto serviu para muitos dias de estudo e discussões, pois as crianças liam atentamente as palavras escritas. Em suas afirmações buscavam compreender o por quê daquilo tudo, levantavam hipóteses de quem o havia escrito, ouviam e faziam comentários sobre o conteúdo lido. Também relacionavam ao debate as reportagens com a posição das autoridades de São Gabriel sobre o assunto.

Ao mesmo tempo em que os marchantes eram elogiados e acolhidos pela coragem e pela bravura de estar na marcha em condições precárias, enfrentando o rigor do inverno com frios e chuvas intensas, presenciavam também a crueldade explicitada pelos defensores do latifúndio.

Nesta marcha refletiram o por quê marchar, nos locais de paradas, estudavam: o território

26 Fazenda localizada no município de São Gabriel fronteira sul do estado, com mais de treze mil hectares de terra. A luta antiga pela desapropriação se concretiza ao final de 2008 com a conquista de parte da área para assentamentos. 27 Este panfleto está registrado no livro de Frei Sergio Gorgen (2004).28 “Gabrielenses e seus apoiadores dizem não à invasão - Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada nesses anos seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana.São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para as grandes doenças, fortes são os remédios. E preciso correr sangue para mostrarmos a nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Nossa cidade é de oportunidades para quem quer produzir e não há oportunidade para bêbados, ralé vagabundos e mendigos de aluguel. Se tu gabrielense amigo, és proprietário de terra ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar o gado na água que eles usem para beber, rato envenenado bebe mais água ainda. Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de caça calibre 22 atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1200 metros de distância”. Fim aos ratos. Viva o povo gabrielense!.

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geográfico, a quilometragem percorrida nos dias de caminhada, as características da vegetação, os costumes regionais, as culturas, entre outros. São aprendizados significativos construídos nas aulas e que possibilitam compreender a realidade vivenciada. Por serem trabalhados de forma criativa, envolvendo um conjunto de saberes, ajudam a amenizar as influências negativas, como esta causada pelo panfleto.

A comunidade escolar foi também se apropriando deste novo jeito de organizar a luta e a vida escolar, pois as situações concretas fazem as pessoas se posicionarem. Na marcha é possível dialogar com a sociedade sobre a vida, a esperança, os aprendizados e as perspectivas que a luta pela terra viabiliza.

A escola é reconhecida pela sua própria forma de funcionar e dialogar com a comunidade, pois acompanha a itinerância do acampamento e vai construindo referenciais pedagógicos que apontam perspectivas sobre o papel da escola nos movimentos sociais. As pesquisas apontam a Itinerante como um novo jeito de fazer educação. Os aprendizados se multiplicam. Desde colocar outro imaginário de escola a ser construído como a forma de organizá-la e conduzi-la, rompendo com a estrutura escolar das “quatro paredes” e reconstruindo a cada dia uma escola em movimento, indo além do seu papel historicamente construído.

DESAFIOS DA ATUALIDADE

“Vivam por mim, já que eu não posso mais viver a alegria de trabalhar com estas crianças e estes adultos, que com sua luta e com sua esperança estão conseguindo ser eles mesmos e elas mesmas.”

Paulo Freire

Os desafios que permeiam a atualidade são muitos. Entre eles, a continuidade da Escola Itinerante, tendo em vista a conjuntura social e política atual do RS. Considerando esta realidade, o MST vem desenvolvendo um conjunto de iniciativas, nas quais reafirma a necessidade de continuar a luta pelo reconhecimento do direito à escolarização para os acampados, reconstruindo a pedagogia e a estrutura organizativa da escola.

A presença das crianças reafirma a continuidade da luta pela terra, sendo elas parte significativa deste processo. Elas ingressam no acampamento junto com suas famílias e nessa luta ampliam a sua participação em todos os espaços, significando-a e construindo novos valores como a solidariedade, o companheirismo e a cooperação, entre outros.

As reflexões feitas apontam limitações no decorrer do processo escolar vivenciado na Escola Itinerante. Estes limites também fazem parte da realidade da escola de modo geral, porém para avançar em nosso projeto de escola, se faz necessário refletir e reconstruí-la constantemente. Neste contexto, reafirmamos o compromisso de construir uma educação comprometida com a classe trabalhadora e elencamos alguns elementos que apontam para esta continuidade.

a) Continuar construindo a Escola em MovimentoDiante das ofensivas sofridas pela Escola Itinerante, faz-se necessário retomar junto às

famílias o debate permanente sobre o significado da escola; Estudar os objetivos desta escola, que ensine

33Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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para a vida e tenha como centro de suas ações a formação humana, e que, nesse processo, crie condições de continuar existindo.

Atualmente, no RS, acompanham seus pais na luta por Reforma Agrária aproximadamente 500 crianças em idade escolar, bem como muitos jovens e adultos que não tiveram acesso a escolarização em seu tempo próprio. Por isso, é necessário ampliar os horizontes e parcerias e continuar na luta pela escola pública estadual nos acampamentos.

Nesta perspectiva, foi iniciado um diálogo com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Educação (FACED), e o Colégio de Aplicação (CAP), com o objetivo de promover a capacitação e formação de educadores para atuar na Escola Itinerante e, ao mesmo tempo, pressionar os órgãos públicos para garantir a continuidade da Escola Itinerante no RS.

b) Construir processos escolares que contemplem as demandas da atualidadeApresenta-se neste novo contexto da Escola Itinerante a reflexão sobre a estrutura da escola,

possibilitando o debate coletivo para reorganizá-la de acordo com a demanda atual. Neste sentido, precisamos estudar as concepções de educação e reconstruir seu Projeto Político Pedagógico com a intenção de contemplar a organização do trabalho da escola em ciclos de formação humana.

Outro aspecto de relevância neste novo contexto é o da auto-organização dos educandos. Este tópico, além de ter uma distribuição de responsabilidades no planejamento geral da escola, possibilita criar espaços próprios para que eles se organizem e recriem suas próprias formas de trabalho em equipe, planejamento e avaliação.

Inserir a escola na participação do processo de preparação das famílias para a transição da vida do acampamento para o assentamento, torna-se uma necessidade na continuidade da luta pela terra. Criar métodos de trabalho que possibilitem processos concretos nas atividades escolares, desenvolvendo linhas de produção agroecológicas que garantam às crianças envolver-se com o cultivo de diversos tipos de cultura ou criação de pequenos animais, aproximando a teoria e a prática, vivenciando os princípios da agricultura camponesa.

Envolver a escola no embelezamento dos locais de moradia e de lazer do acampamento, desenvolver práticas de reciclagem do lixo, tratamento e preservação das águas, estimular a convivência coletiva, também faz parte dos novos desafios da atualidade.

Organizar processos de cooperação na escola, em vista a alcançar os objetivos projetados pela mesma, garante a formação dos educandos para os processos produtivos cooperados e ampliam a visão crítica sobre as questões sociais da realidade aperfeiçoando também as habilidades técnicas. A prática e a socialização entre os sujeitos fortalecem as vivências organizativas e a formação integral e solidária.

Melhorar os mecanismos de registro da documentação escolar dos educandos é fundamental para a organização da vida funcional da escola, tendo em vista a rotatividade, a imprevisibilidade das transferências para outras escolas e ingressos de novos educandos.

Sistematizar e registrar todo o processo pedagógico torna-se uma necessidade a ser resgatada na escola, tendo em vista que os acampamentos sempre serão temporários e possuem uma característica de estar em movimento, pois o que não entra na memória escrita, tão logo se perde.

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35Coleção Cadernos da Escola Itinerante

c) Avançar na formação de educadores no processo escolarAmpliar a formação política e pedagógica dos educadores que desenvolvem o trabalho nos

acampamentos é uma demanda necessária para qualificar o processo de ensino-aprendizado nas Escolas Itinerantes. Sabemos que esse é um trabalho complexo, pois depende de um conjunto de questões, as quais nem sempre estão ao alcance de quem organiza as escolas. Porém, é necessário buscar alternativas viáveis para concretizar e ampliar a formação dos educadores.

Um processo escolar que contemple a formação integral de seus sujeitos depende principalmente da capacidade que os educadores desenvolvem em articular a teoria e a prática e em considerar processos já vivenciados, buscando construir aprendizados novos. A propósito disso, a formação dos educadores deve ser potencializada em vários momentos e de forma permanente.

Estudar, pesquisar, estar sempre em movimento, é responsabilidade de quem educa nos acampamentos. Os coletivos de educadores precisam dar exemplo no estudo.

d) Aprofundar o debate da Escola e seu papel formador no acampamentoSe a “Escola é mais que escola na Pedagogia do Movimento”, não é possível criar processos de

ensino aprendizado na Escola Itinerante sem discutir constantemente sobre a sua função no acampamento. É indispensável reconhecer que este deve ser um processo internalizado pela comunidade escolar, pois existe um fator favorável no acampamento: a facilidade de articular as famílias para reuniões, e, neste caso, conversar sobre a educação, combinando melhor os processos a serem construídos junto à comunidade para que cada parte desenvolva o seu papel.

A escola que forma para a vida tem como responsabilidade educar e inserir-se na luta e na defesa do projeto social da classe trabalhadora. Devemos educar na luta e na construção de novos valores, assim, seremos formadores de sujeitos sem perder de vista que educamos pelo exemplo. Por isso é compromisso do educador estar sempre à frente dos processos os quais irão comandar.

Dialogando sobre esse papel podemos referenciar o que diz Shulgin “É pouco conhecer os ideais da classe trabalhadora, é pouco querer construir. É preciso viver os ideais da classe trabalhadora, é preciso poder lutar por eles é preciso poder construir”. (in: A Escola-Comuna, Shulgin, 1924, p. 21-22).

Para compreender a atualidade, a escola precisa estar entrelaçada com o movimento da qual faz parte. Evidenciar suas contradições e nela projetar suas ações é um constante desafio. Significa também um comprometimento maior com processos que estão sendo construídos pela classe trabalhadora.

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REFERÊNCIAS

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CALDART, Roseli Salete. Escola e mais que Escola na Pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes. 2000.

CAMINI, Isabela. Dez anos de Escola Itinerante nos Acampamentos do MST-RS: qual o balanço? Boletim da AEC-RS Porto Alegre v. 26 n. 104, p 34-43, 2007.

CAMINI, Isabela. Educadores Itinerantes e sua Formação. In: MEURER, Ane Carine; DAVID, César de. Espaços-tempos de Itinerância: interlocuções entre universidade e Escola Itinerante do MST. Santa Maria: Ed. UFSM, 2006.

CAMINI, Isabela. Escola Itinerante dos acampamentos do MST: Um contraponto à Escola Capitalista?

Porto Alegre, 2009. 254 f. Tese. (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educaçao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.

DAVID, César de. Espaços – tempos de Itinerância: interlocuções entre universidade e Escola Itinerante do MST. Santa Maria: Ed. UFSM, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17º Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. GÖRGEN, Sérgio Antônio. Marcha ao Coração do Latifúndio. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

MELLO, Marco (org) Paulo Freire e a Educação Popular. Porto Alegre IPOA: ATEMPA, 2008. 264 pag.

PISTRAK, M.M Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2000.

PISTRAK (org.) A Escola-Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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39Coleção Cadernos da Escola Itinerante

Escola Itinerante no Paraná

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Alessandro S. Mariano Jurema de Fátima Knopf

Sandra G. Scheeren1

“[...] O acampamento é o lugar do sonho, da esperança e do conflito. Neste contexto, entre tantos desafios, ousa-se aprender a fazer a Escola Itinerante que de seus aprendizados pretende-se forjar a escola do assentamento, a Escola do Campo.”

Maria Izabel Grein

INTRODUÇÃO

Este texto é a síntese do processo de reflexão coletiva sobre a Escola Itinerante no Paraná que, em 2009, completou seis anos de reconhecimento legal.

A Escola Itinerante se efetivou como uma política educacional em que participam de sua gestão o Setor de Educação do MST e a Secretaria de Estado da Educação (SEED), envolvendo, neste período, aproximadamente 4.500 educandos da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio, e garantindo o direito à educação a cerca de 8.000 famílias acampadas.

Esta escola tem afirmado o compromisso em realizar a formação em direção à emancipação do ser humano, articulada a um projeto de transformação social. Em sua organização curricular considera as singularidades dos acampados que por meio da luta pela terra almejam viver e trabalhar no campo.

No registro e análise do percurso de construção da Escola Itinerante nos acampamentos do Paraná, buscamos refletir os aprendizados e os desafios deste projeto de escola, os quais iremos tratar nesse texto, organizado em três partes. A primeira apresenta a trajetória histórica da Escola Itinerante. Como se implementou e se efetivou neste estado. Na segunda, trazemos uma reflexão sobre as marcas e significados desta escola que aprende e ensina acompanhando a luta dos Sem Terra. Por último, apontamos os desafios a serem enfrentados para avançarmos no projeto de Escola Itinerante.

TRAJETÓRIA DA ESCOLA ITINERANTE NO PARANÁ

No Paraná, a legalização da Escola Itinerante se efetivou no ano de 2003 e não ocorreu de forma muito distinta dos demais estados que a conquistaram. Os Sem Terra neste estado também travaram

1 Membros do Setor de Educação do MST-PR e da Coordenação Pedagógica das Escolas Itinerantes, graduados em Pedagogia Para Educadores do Campo na Unioeste.

ESCOLA ITINERANTE NO PARANÁ: APRENDENDO E ENSINANDO

NA LUTA DOS SEM TERRA

41Coleção Cadernos da Escola Itinerante

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lutas com o poder público para conquistar esta escola2.No entanto, a necessidade de regularizar a vida escolar de crianças que frequentavam escolas

não reconhecidas pelos órgãos municipais, a falta de vagas e em alguns casos o forte preconceito sofrido pelos Sem Terrinha3, são determinantes na tomada de decisão do Setor de Educação em lutar por escolas nos acampamentos do Movimento.

No período anterior (1994-2002), no governo Jaime Lerner (PFL), a conjuntura política era distinta, pois o atual governo se recusava a dialogar com o MST e, nos oito anos de sua gestão, aplicou estratégias de aniquilação do Movimento, deflagrando despejos, prisões de lideranças, incluindo mortes. Segundo Maria Izabel Grein, “no governo Lerner nem sequer alfabetização nós [MST] podíamos discutir com o governo. Nós não podíamos nem entrar na secretaria de educação, pois nós não éramos reconhecidos como movimento social.” (MARIANO, 2008 p.13)

Todavia, é importante ressaltar que anterior à luta pelo reconhecimento da Itinerante neste estado, já havíamos experimentado fazer escolas em acampamentos. Como por exemplo, a organização da Escola “Terra e Vida” em frente ao Palácio Iguaçu, sede do Governo Estadual, em Curitiba, em julho de 1999. Sendo realizada em um prédio abandonado, a escola atendeu a Educação Infantil, os anos iniciais do Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos. Teve duração de quatorze dias e foi um marco importante na luta para garantir o reconhecimento da Escola Itinerante.

Em 2003, no início do governo Roberto Requião (PMDB), conseguimos abrir o diálogo entre MST e governo, o que contribuiu para avançarmos na luta pela efetivação deste tipo de política social4, em particular a Escola Itinerante. Considerando ainda que, neste momento, o MST no Paraná tinha aproximadamente quatorze mil famílias acampadas, dentre elas muitas crianças que estavam fora da escola.

Com o intuito de afirmar as demandas dos trabalhadores, uma das maiores ações que realizamos foi a Jornada de Lutas, em abril de 2003, que reuniu aproximadamente cinco mil integrantes do MST. Acampados em Curitiba, estes militantes também reivindicavam, entre outras pautas, escola para os acampamentos, impulsionando assim a discussão da Escola Itinerante como direito para as famílias Sem Terra.

Nesta conjuntura, os movimentos sociais conquistaram a Coordenação da Educação do Campo na Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED), possibilitando que o Setor de Educação do MST pudesse apresentar suas demandas e, por conseguinte, ter algumas delas atendidas.

A proposta da Escola Itinerante foi enviada em agosto de 2003 para o Conselho Estadual de Educação, referendada na Lei de Diretrizes e Bases, nas Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas escolas do Campo e na Constituição Federal, visando assegurar o direito do povo à educação, respeitando o lugar onde vive e garantindo sua participação. Uma educação vinculada à sua cultura e suas necessidades,

2 Segundo Mariano (2008, p.33) na medida em que o MST pressiona os governos pela legalização da Escola Itinerante, obriga o Estado a reconhecer, bem como a deliberar, uma política social, passando a fazer parte de suas ações governamentais. Ou seja, ela é fruto da pressão que os trabalhadores fazem ao governo do estado.3 Sem Terrinha são as crianças filhas dos Sem Terra que se encontram em luta.4 Para VIEIRA (1992) na composição do termo política social – “política” não assume no sentido estrito de atividade ou práxis humana ligada ao exercício de poder, mas relaciona-se à estratégia de governo que se compõem de plano, projetos, programas e documentos, onde é possível identificar diretrizes relativas às áreas em questão.

42 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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direito explicitado na LDB de 1996.O Conselho Estadual de Educação do Paraná, após analisar cuidadosamente o Projeto Político-

Pedagógico da Escola Itinerante, aprovou-o, por unanimidade, em 08 de dezembro de 20035, como escola pública estadual. Com a observação de que a Escola deveria ser acompanhada e avaliada durante seus dois primeiros anos, e os educadores dos anos iniciais deveriam participar de um processo de formação continuada promovido pela SEED.

No entanto, somente em março de 2004 se legitimou, de fato, a parceria entre o Setor de Educação do MST e a Secretaria de Estado da Educação (SEED), com a realização de um convênio que envolveu a Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná (ACAP), por meio do qual se efetiva o remuneração dos educadores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental da referida escola.

O Setor de Educação do MST, junto com a Coordenação de Educação do Campo (SEED), indicou o Colégio Estadual Iraci Salete Strozak, localizado no assentamento Marcos Freire, em Rio Bonito do Iguaçu, para assumir a função de Escola Base. Esta escola assume a responsabilidade legal das Escolas Itinerantes, tais como: a documentação escolar, as matrículas, as transferências, a certificação e registro da vida escolar dos educandos, além do suprimento de merenda e materiais pedagógicos, entre outros. Em 2006, pela expansão territorial das Escolas Itinerantes no Paraná, foi oficializada a segunda Escola Base, o Colégio Estadual Centrão, localizado no Assentamento Pontal do Tigre, em Querência do Norte, que passou a responder legalmente pelas Itinerantes da região noroeste e norte do estado.

Estas duas escolas, localizadas em assentamentos da Reforma Agrária, assumem o projeto educativo do Movimento e afirmam em seu trabalho pedagógico o desafio de ser uma escola do campo, comprometida com a formação dos trabalhadores rurais Sem Terra. No decorrer desta trajetória, estas escolas, em conjunto com as Itinerantes, tem tentado questionar a forma escolar convencional e capitalista ao buscar formas alternativas de escola com uma proposta pedagógica que contemple as diferentes dimensões do ser humano, dentre essas, a apropriação do conhecimento - que é tarefa fundamental da escola -, com tempos e espaços educativos que ajudem a desenvolver todas as dimensões.

Em relação à oficialização da Escola Itinerante, vale ressaltar que mesmo antes da sua aprovação, existiram experiências de escolas nos acampamentos. Em 2003, já haviam escolas com um ano de funcionamento, porém sem o reconhecimento do poder público e mantidas pelo MST. Estas envolviam cerca de 70 educadores voluntários que participaram do primeiro curso de formação de educadores da Escola Itinerante, realizado no acampamento 10 de Maio, no período de 29 de setembro a 03 de outubro de 2003.

Como uma das estratégias para agilizar a legalização desta proposta de escola, realizamos a inauguração da Escola Itinerante Chico Mendes, no acampamento José Abílio dos Santos, em Quedas do Iguaçu, no dia 30 de agosto de 2003. Além desta, nesta ocasião, também haviam outras escolas em funcionamento, no Acampamento Segunda Conquista que se localiza no município de Espigão Alto do

5 A Escola Itinerante no Paraná foi reconhecida em dezembro de 2003 pelo Conselho Estadual de Educação através do parecer n° 1012/2003 e autorizado seu funcionamento pela Secretaria de Estado da Educação resolução nº614/2004 de 17/02/2004.

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Iguaçu, e no Acampamento Dorcelina Folador6, no município Cascavel e no acampamento 1º de Maio, em General Carneiro.

O ano de 2004 foi o período de implantação das Itinerantes nos acampamentos, o que provocou um estranhamento na Secretaria de Estado da Educação, pois este formato de escola não era comum ao sistema oficial de ensino. Essa situação gerou diversos transtornos, como por exemplo, na distribuição da merenda, nas matrículas dos estudantes, na licitação de material para construção destas escolas, tais como: lona, madeira, quadro de tamanho especial, entre outros. Tudo isso exigiu pressão por parte do MST e das escolas, dada a lentidão na resolução desses problemas.

Ao final do ano de 2005, as Itinerantes já estavam presentes em nove locais, atendendo a 2.400 educandos. Neste período, o Movimento conquista o Assentamento Celso Furtado, no município de Quedas do Iguaçu, onde se localizavam duas Escolas Itinerantes: Chico Mendes e Olga Benário.

Em 2006, mesmo com a conquista do assentamento Celso Furtado, estas escolas permaneceram Itinerantes em função do município não se dispor, naquele momento, a se responsabilizar pelas mesmas nos anos iniciais. Somente em 2007, por meio da luta, estas escolas deixam de ser Itinerantes e passam a ser escolas de assentamento. Além dos próprios nomes, estas escolas levaram consigo os princípios de uma escola do campo vinculada a um movimento social que busca construir um novo projeto social de emancipação dos trabalhadores7.

Neste período, o esforço também se centrava na tentativa de avançar no Projeto Político e Pedagógico, a partir da organização curricular em Ciclos de Formação Humana8 experimentados nos espaços de acampamentos -Escolas Itinerantes - e assentamento - Colégio Estadual Iraci Salete Strozak.

Nessa trajetória, outras duas questões também foram priorizadas: a formação de educadores e o processo de sistematização das Escolas Itinerantes. Dada a sua emergência, este último foi desencadeado no Seminário Estadual de Avaliação dos três anos da Escola Itinerante no Paraná, em maio de 2006, em que organizamos o trabalho de registro e escrita da história de cada escola, envolvendo os coletivos de educadores na reflexão e escrita. A partir desse registro, decidimos sistematizar as experiências que culminaram na abertura da Coleção de Cadernos da Escola Itinerante, em novembro de 20079 .

Em fevereiro de 2010, existem Escolas Itinerantes em 10 acampamentos no Paraná, que atendem aproximadamente 1.000 educandos em 77 turmas, com 180 educadores.

6 Em 2005, esta escola recebeu o nome de Escola Itinerante Zumbi dos Palmares com o deslocamento das famílias para a ocupação de outra parte da fazenda Complexo Cajati, em Cascavel, passando a estar no acampamento 1ª de Agosto. A experiência desta escola está sistematizada no Caderno nº1 da Coleção Escola Itinerante, denominado de Escola Itinerante: Trajetória, Projetos e Experiências, 2008a. 7 Os Colégios Chico Mendes e Olga Benário continuam sob a responsabilidade do Estado do Paraná, porém atendendo os anos finais e Ensino Médio. Atualmente, existem oito escolas municipais que ofertam os anos iniciais e que estão espalhadas pelas comunidades do assentamento.8 Esta reflexão será retomada mais adiante nesse texto.9 Atualmente, a Coleção compreende os seguintes Cadernos: Escola Itinerante do MST: 1) História, Projetos e experiências, 2008a, 2) Itinerante: A Escola dos Sem Terra -Trajetórias e Significados, 2008b, 3) Pesquisa Sobre Escola Itinerante: Refletindo o Movimento da Escola, 2009a; 4) Pedagogia que se constrói na Itinerância: orientação aos Educadores 2009b. Ainda existem mais dois volumes que se encontram em elaboração.

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1-Tabela: Dados Escolas Itinerantes no Paraná

ESCOLA QUE APRENDE E ENSINA EM LUTA: MARCAS E REFLEXÕES

A Escola Itinerante no Paraná tem se firmado como uma escola pública, com a participação da comunidade acampada em movimento, que caminha junto com Sem Terra na esperança de uma vida digna com terra, saúde e educação. Em sua trajetória, esta escola foi evidenciando questões as quais deveria responder para materializar outro formato de escola.

Convém registrar que esse projeto de escola é fruto do acúmulo de experiências escolares desenvolvidas no decorrer dos 26 anos do MST, construídas nos diferentes processos de lutas, discussões e interações junto às comunidades Sem Terra. Nesse momento, buscamos sistematizar algumas marcas que se expressam na Pedagogia do MST e na especificidade das Escolas Itinerantes no Paraná. Essas marcas são dimensões, nem sempre evidentes, que ganharam força na trajetória dessa escola, e que caracterizam as particularidades das Itinerantes neste estado. As marcas também revelam as contradições que emergiram nessa caminhada, e nossa tentativa de superá-las. É sobre estas marcas que refletimos a seguir:

A primeira marca é a escola como ferramenta de luta e resistência que está na sua origem,

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desde as primeiras Escolas Itinerantes. Ela vem se constituindo como a escola do Sem Terra, que reflete e incorpora o movimento desta realidade, em específico, dos acampamentos onde se insere.

O acampamento é um território de luta permanente que se configura a partir dos sujeitos e da organização coletiva que envolve os Sem Terra, como protagonistas da sua história. Também é um espaço de aprendizado e vivência de valores humanos que unificam o grupo de famílias que lutam por objetivos comuns.

A vida no acampamento está sujeita às circunstâncias conjunturais da própria luta pela terra, o que exige posturas, ações e organização. A Escola Itinerante vive a dinâmica dos acampamentos e não pode ficar alheia às contradições desta prática social. Estas condições têm proporcionado às Itinerantes aprendizados que a escola convencional pouco proporciona.

Outro aprendizado importante é de que, na luta pela terra, a Itinerante tem se firmado como uma “ferramenta de luta”, por estar nos acampamentos que questionam a propriedade privada. O fato de existir escola nos acampamentos, por vezes, fortalece a luta desses trabalhadores, bem como é uma ação simpática diante da sociedade, uma vez que é uma instituição aceita por ela. No entanto, sabemos que a forma escolar capitalista não dá conta da formação que pretendemos, todavia, por estar nesse contexto e ser gestada pelos trabalhadores, tende a contrariar alguns aspectos da sociedade capitalista.

Neste sentido, o esforço que essa escola faz é de cumprir com sua especificidade de ensinar a ler, escrever, calcular, enfim, de possibilitar o acesso ao conhecimento elaborado (científico, filosófico, artístico). Contribuir também para a sistematização dos saberes vividos no contexto atual e socializar práticas educativas que contribuam com a formação humana. Desta forma, a escola pode ser vista como uma ferramenta a favor dos trabalhadores e das transformações que estes pretendem realizar.

A escola como resistência se expressa em alguns exemplos por nós vivenciados em acampamentos que enfrentaram conflitos mais diretos com o poder do latifúndio, como foi o caso da Escola Che Guevara, que viveu três despejos e continuou resistente aos incessantes ataques das milícias armadas. Ou pela Escola Sementes do Amanhã, em que suas crianças foram protagonistas na resistência à tentativa de um despejo. Estas escolas foram alvo de desmobilização por forças da burguesia na perspectiva de enfraquecimento das famílias acampadas. Por vezes, a escola, nos acampamentos em que a luta está mais acirrada, é combatida, pois ela materializa a organização comunitária e fortalece vínculos orgânicos internos.

Deste processo se expressa outra marca da escola: a relação com a comunidade acampada e a organização coletiva, que ocorre no processo de gestão que envolve a comunidade nos processos pedagógicos da escola, desde a construção física, a definição dos temas de estudos, a avaliação escolar, os trabalhos de manutenção, a preparação da merenda, entre outros. Ao exercitar a gestão coletiva na escola, essas famílias a incorporam como parte da organização dos acampamentos.

Tal questão vem sendo evidenciada nestes dois últimos anos (2008-2009), com a unificação de diferentes acampamentos do MST no Paraná, propiciando a junção de famílias de espaços distintos. Esta circunstância tem favorecido a continuidade da Escola Itinerante, pois, ao formar outro acampamento, as famílias que vivenciaram a experiência de Escola Itinerante reivindicaram a organização dela nestes territórios.

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Um exemplo dessa preocupação foi expressa em uma das caminhadas da Escola Itinerante Zumbi dos Palmares. Ainda em 2008, mais de 40 famílias se deslocaram para o município de Jacarezinho, em uma área de pré-assentamento. Em um primeiro momento, a organização da escola não foi uma das preocupações iniciais da coordenação do acampamento, porém, na primeira semana de ocupação, mesmo a prefeitura disponibilizando transporte escolar, as famílias exigiram a organização da Escola Itinerante neste espaço.

Isso também ocorreu no acampamento Herdeiros da Luta de Porecatu, quando em outubro deste mesmo ano, mais de 300 famílias ocuparam o complexo de terras improdutivas pertencentes ao grupo Atala10 . Novamente, a preocupação inicial não foi a organização da escola, todavia foi fomentada pelas famílias com crianças em idade escolar.

Tais fatos evidenciam que a experiência vivida pelas famílias de se envolver nos processos organizativos e pedagógicos da escola tem produzido significados importantes, pois elas, ao assumirem a escola como sua, dão outro sentido a escola, distinto daquela instituição alheia aos trabalhadores camponeses. Nesse aspecto Knopf (2008, p.40) aponta:

No acampamento, há uma necessidade real que tensiona para a construção de outro imaginário de escola, ou podemos dizer ainda, que direciona um olhar a escola para além dela mesma e, embora havendo estranhamento, devido, historicamente não participarem efetivamente dela, agora se inverte a lógica, se faz necessário o protagonismo dos sujeitos acampados, por isso ela torna-se ainda mais estranha. Porém, são esses momentos que demarcam a possibilidade de construir uma concepção de escola onde os sujeitos da comunidade ajudam a pensar e conduzi-la.

Diferente do início, em que famílias estranhavam a presença da escola no acampamento, por ainda não compreenderem como poderia funcionar uma escola naquele meio, com uma estrutura física igual aos seus barracos de moradia, com um método de ensino diferenciado, com sua efetiva participação, os exemplos apresentados demonstram que, ao se envolverem na gestão coletiva, as famílias foram percebendo a seriedade e a importância da escola na formação de seus filhos.

Outra marca da Escola Itinerante é o vínculo com à realidade. A educação e a formação dos sujeitos não se dão somente na escola. No caso dos Sem Terra, ocorre também nos demais processos organizativos da luta (mobilizações, congressos, cursos de formação etc.), porém a escola tem sua especificidade.

Na Itinerante, a educação acontece até mesmo nas ações que o acampamento realiza na perspectiva de compreender o mundo e também, é claro, nas atividades educativas específicas como estudos e interpretação de temas, apropriação e aperfeiçoamento da língua escrita. Entre essas ações, podemos destacar um momento em que a Escola Itinerante Carlos Marighella propôs-se a trabalhar com o tema referente à Marcha Nacional do MST, na oportunidade em que o acampamento estava em mobilização para a marcha a Curitiba (PR), no ano de 2005. Esta realidade foi estudada na escola, por meio das seguintes questões: O que é uma marcha? Como ela se organiza? Qual o percurso dos marchantes e o que eles pretendem com ela? Nesta oportunidade, a escola retomou as marchas já realizadas pelo Movimento. Esse

10 A área ocupada é de 1.400 hectares.

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tema, oriundo da organização do acampamento, desdobrou-se em textos argumentativos, descritivos, em conhecimento histórico, geográfico, matemático, artísticos, entre outros.

Em relação às atividades específicas de leitura e escrita nas Escolas Itinerantes, há um incentivo permanente à leitura crítica da realidade e à elaboração escrita articulada a uma função social, por meio da produção de cartas a educandos de outras escolas, textos reivindicatórios - como a carta elaborada pelas crianças da Escola Itinerante Ernesto Che Guevara, em protesto aos ataques sofridos pelas famílias do acampamento 8 de Março, do município de Guairaça. A carta foi lida durante o ato público de denúncia à violência sofrida pelas famílias, organizado pelo Movimento, no dia 12 de agosto de 2008, no município de Terra Rica.

Desta forma, a Itinerante pretende se articular à vida, porque ela é a própria vida. Por isso, busca formas de trabalhar o conhecimento não fragmentando em disciplinas estanques. A necessidade desta junção, conhecimento e vida, constitui-se como um ponto forte na caminhada desta escola, todavia, ainda existem questões a serem superadas e que serão retomadas adiante no texto.

Na caminhada da escola, outra marca que evidenciamos é a forma como a Escola Itinerante em luta se faz escola pública. Foi pela luta social que conquistamos sua legalização, passando a ser mantida pelo Estado - SEED, e gestada pela comunidade acampada. Como afirma Camini (2006), “é uma escola teimosa, dirigida pela teimosia lúcida dos trabalhadores Sem Terra que ainda exigem que este governo a financie, o que de novo, há muitos desagrada”. Concordando com essa citação, afirmamos que temos o direito de acessar a escola pública, financiada pelo Estado, porém, cabe aos trabalhadores educar a sua classe para outra postura diante das relações de submissão e exclusão vividas na escola capitalista.

Ao conquistar a Escola Itinerante como política pública e propor seu projeto político pedagógico alternativo, o Movimento tem provocado a Secretaria de Educação a pensar a escola pública da forma como ela está constituída, especialmente as escolas do campo. Neste diálogo, busca-se afirmar que os movimentos sociais, como é o caso do MST, luta para “ocupar” a escola pública e transformá-la em uma ferramenta da classe trabalhadora. Todavia, essa relação não ocorre sem tensões e contradições.

Neste campo da política pública, a partir do exercício de buscar fazer uma escola comprometida com a formação dos trabalhadores, identificamos outra marca da Escola Itinerante do Paraná que são os Ciclos de Formação Humana.

Reconhecendo os limites da escola capitalista, seriada, fragmentada, centrada na sala de aula, temos buscado construir e implementar o Projeto político-pedagógico, tendo por base os Ciclos de Formação Humana11 . O qual organiza os educandos em agrupamento por idades, sendo o primeiro ciclo (4 a 5 anos), o segundo ciclo (6 a 8 anos), o terceiro ciclo ( 9 a 11 anos), o quarto ciclo (12 a 14 anos) e o quinto ciclo (15 a 17 anos).

A organização por ciclos não significa apenas estruturar os educandos em agrupamentos, mas tem como referência outra concepção de avaliação, de formação humana. Outra perspectiva de trato do conhecimento, buscando a superação do conhecimento distante das questões atuais da vida e visando contemplar uma formação omnilateral, ou seja, que busque desenvolver o ser humano em suas diversas

11 O que não significa uma progressão automática e sim de fato, criar novas possibilidades para que o educando ao passar pela escola possa se apropriar do conhecimento. E que diferente da seriação não seja ele o culpado por seu fracasso escolar.

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dimensões, tais como o desenvolvimento das capacidades humanas superiores, a relação com a arte, a vivência coletiva na organização do trabalho, o desenvolvimento de diferentes emoções, entre outros. Uma das formas de realizar essa formação tem sido por meio dos Tempos Educativos.

Os tempos educativos como tempo leitura, recreio, oficina, vídeo, trabalho, reunião de núcleos, entre outros são vivenciados em algumas escolas que dão, a estes tempos prioridades diferentes, de acordo com suas necessidades. Percebemos que, quando estas atividades não estão bem articuladas à totalidade da organização do trabalho, ao longo do ano perdem a intencionalidade e tornam-se mecânicas, diminuindo sua potencialidade educativa.

Consideramos que para efetivar essa proposta de escola, a formação dos educadores itinerantes apresenta-se como um grande desafio, especialmente porque a formação por eles recebida está relacionada com a escola capitalista, por nós, contestada. No processo formativo, consideramos as especificidades dos educadores. Os que são acampados com pertença ao Movimento que atuam na Educação Infantil e nos anos Iniciais do Ensino Fundamental e os que são do quadro próprio do magistério do Estado e atuam nos anos finais e Ensino Médio.

Os educadores dos anos iniciais são escolhidos pela organicidade do acampamento a partir de alguns critérios12 estabelecidos junto às famílias acampadas. Estes educadores têm a vivência da luta do acampamento e podem melhor compreender sua lógica organizativa e, geralmente, por esta condição, se envolvem mais com o projeto de escola. Fator este importante para conseguir relacionar os conteúdos escolares e dimensões da vida social e material dos educandos.

Em sua maioria, estes educadores não entram na escola instruídos de metodologias de prática de ensino. Passam a aprender o exercício da docência e compreender a luta dos Sem Terra por meio da escola e, ao mesmo tempo, são integrados em cursos formais de educadores como: magistério, pedagogia, licenciatura, geografia, entre outros.

Por morarem próximos da escola, eles conseguem desenvolver e intencionalizar um processo de formação permanente. Para isso, também há um programa de formação local, com a realização de estudos coletivos semanais que propiciam uma formação continuada, com o objetivo de formar educadores que se identifiquem com a tarefa de educar e que se comprometam organicamente com esta função.

A maioria destes educadores aprende a planejar e ministrar aulas a partir do processo de vivência no acampamento, estudos e planejamentos coletivos, ou seja, desde a formação local e continuada.

O planejamento coletivo é um ponto forte do trabalho pedagógico das Escolas Itinerantes. Na Educação Infantil e anos iniciais do Fundamental, o planejamento se dá de forma coletiva, com a participação de educadores e comunidade na divisão de tarefas. A atuação no trabalho pedagógico é de responsabilidade do coletivo de educadores e não apenas do educador da turma. Estes coletivos possuem autonomia na definição da ordem dos temas e conteúdos, metodologias e estratégias de ensino, a partir das metas de aprendizagem e o plano de estudos de cada ciclo. Sendo assim, o planejamento coletivo é um elemento central no pensar e prever estratégias na escola.

Nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio atuam os educadores da rede Estadual

12 Ter escolaridade adequada para o exercício do Magistério, dedicação ao estudo, aprovação da indicação dos pais e da comunidade acampada.

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de Ensino, contratados por meio do Processo Simplificado de seleção (PSS). Essa forma de contratação do professor na Itinerante, geralmente, não permite que o educador retorne a escola no ano seguinte. A cada ano o trabalho na escola precisa ser retomado, fator que prejudica a continuidade dos processos organizativos e pedagógicos.

Estes educadores lidam com outra especificidade no trato com o conhecimento na escola e encontram também limites no processo, marcado pela fragmentação em que se formaram.

O fato do mesmo educador trabalhar em mais de uma escola, diminuindo seu tempo de convivência com os educandos e comunidade, também é um limite evidenciado, o que pode ocasionar o trato descontextualizado com o conhecimento. Tais preocupações tem sido debatidas com a SEED na busca de superar tais dificuldades. Não é nossa intenção nesse texto culpabilizar os professores de fora e nem exaltar os professores de dentro. Entendemos que ambos podem contribuir se tiverem condições materiais para tal, compromisso com a escola, e estiverem abertos a novos processos coletivos de formação, que em algumas vezes, contrariam sua própria formação.

A rotatividade dos educadores é um limite nas Escolas Itinerantes, tanto os que moram e os que não moram no acampamento. É notável a rotatividade também na natureza do acampamento, bem como em questões objetivas e subjetivas ainda não evidenciadas.

DESAFIOS DA ESCOLA ITINERANTENO CONTEXTO ATUAL

Ao fazer a Escola Itinerante colada à luta pela terra, nestes seis anos de existência, no Paraná, vários desafios e limites vêm se expressando para avançarmos nessa escola como contraponto a escola capitalista. Estes desafios, que emergem do processo, precisam ser refletidos para, a partir destes, construirmos estratégias e formas de superá-los. Nesse texto sistematizamos alguns destes desafios que pontuamos a seguir:

a) Continuar a estabelecer vínculo com a luta concreta dos acampamentos e assumir a itinerância como uma postura pedagógica

A natureza da Escola Itinerante é a itinerância. Caminhar junto com a luta, sempre que a realidade exigir. Porém, a situação dos acampamentos no Paraná, na atualidade, é de menor mobilidade. O que tem sido mais recorrente são mobilizações (marchas, ocupação do Incra, entre outros).

O desafio da escola é acompanhar este movimento de luta, participando, ensinando e aprendendo, educando nas mobilizações, nas ocupações de terra, pedágio, entre outros. Como a característica dos acampamentos no Paraná é de se movimentar pouco, a escola tem permanecido fixa, inclusive melhorando suas estruturas físicas com coberturas de folhas de eternite e madeiras, cozinhas, bibliotecas, porém essas melhorias, que ainda não são suficientes, não podem se constituir em um impedimento para a itinerância.

Assumir a postura de itinerância não significa somente acompanhar o acampamento em mobilizações, é também colocar em movimento todo o processo educativo, possibilitando o encontro da escola com a vida, na busca de realizar o ensino, vinculado a conhecimentos vivos.

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Para isso, uma questão importante é que a Escola Itinerante precisa ser construída, debatida constantemente com as comunidades acampadas em cada vez mais espaços e, principalmente, junto às brigadas orgânicas13 onde elas se inserem, considerando as particularidades de cada acampamento.

b) Desenvolver a formação dos educadores itinerantes colada à prática de ensino e da luta

A realização da formação política pedagógica dos educadores por meio do MST, nestes seis anos da Escola Itinerante no Paraná, tem nos ensinado que a formação não se dá de uma única forma. Ela ocorre na prática de ensino, na inserção nas atividades orgânicas do acampamento e também por meio dos curso formais e de formação continuada. Todos estes momentos precisam estar articulados num programa de formação refletido e debatido de forma coletiva. Tal programa precisa considerar o conjunto dos educadores da Escola Itinerante, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, abarcando a totalidade desta escola e as especificidades e peculiaridades dos educadores conforme as diferentes modalidades de ensino.

O trabalho coletivo é outro aspecto bastante relevante na formação dos educadores. Nosso desafio está em constituir e fortalecer os coletivos de educadores das escolas para realizarem estudos, planejamento e avaliações permanentes.

O processo de sistematização desta escola, por meio da Coleção de Cadernos da Escola Itinerante, tem se constituído como interessante espaço formativo. A escrita dos textos sobre as escolas tem provocado pensar e refletir sobre elas, no sentido de percebermos os limites e possibilidades de concretizarmos a escola que anunciamos no projeto educativo do Movimento.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito à combinação constante da formação política e pedagógica e a participação dos educadores em atividades não só vinculadas a educação, mas ao Movimento como um todo, reconhecendo o educador também como um militante.

Em relação à rotatividade dos educadores em geral, temos o desafio de mantê-los o maior tempo possível na escola, acolhendo-os independente do local onde moram, mas que se comprometam com o projeto político pedagógico da Escola. Em caso de troca de educadores, a coordenação da escola precisa ter presente que, por isso, o processo pedagógico não pode ser interrompido, devendo encontrar formas de continuidade.

c) Trabalhar os conteúdos escolares vinculados à vida, promovendo a formação para a atualidade

Em relação ao ensino concordamos com Pistrak (2005) quando afirma que “é preciso superar a visão de que escola é lugar apenas de ensino, ou de estudo de conteúdos, por mais revolucionários que sejam [...] é preciso passar do ensino à educação, dos programas aos planos de vida” (p.11). Os conteúdos e os estudos precisam ser profundos e ajudar os educandos a entender a vida, o mundo do trabalho, enfim a atualidade.

13 A Brigada é uma organização territorial de famílias vinculadas ao MST. Uma junção de assentamentos e acampamentos próximos, reunindo em média 500 famílias, tendo instâncias, organização própria, sendo um espaço ampliado de organização, no qual acontece as discussões organizativas, formação de base, entre outros.

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O trabalho com os Temas Geradores tem sido uma possibilidade de aproximar a escola da vida nas Itinerantes; e tem conseguido alguns avanços, principalmente, na conexão da atualidade com conteúdos escolares e a realidade do acampamento, permitindo que estas escolas reflitam as contradições existentes na vida da comunidade acampada.

Ao trabalhar os Temas Geradores encontramos alguns limites, pois em algumas situações eles não têm conseguido conectar o ensino à vida. O que tem ocorrido é que os problemas são discutidos na escola, são teorizados de forma ainda muito abstrata, distanciados da materialidade concreta. Ou então, tendendo a uma postura espontânea, priorizam somente os conhecimentos que tem relação mais evidente com os temas geradores, deixando de fora alguns conhecimentos e saberes que são importantes para a formação humana.

Na tentativa de superar esses limites, estamos buscando aprofundar essa temática e organizar um plano de estudos que abarque os conhecimentos e saberes na organização dos Ciclos de Formação Humana.

d) Implementação do Projeto Político e Pedagógico da Escola Itinerante em Ciclos de Formação Humana

O Projeto Político Pedagógico, sempre esteve em processo de avaliação e elaboração, desde a implementação da Escola Itinerante em 2003. Tendo por referência a Pedagogia do Movimento, a Escola Itinerante foi buscando e estudando a melhor forma de desenvolver os tempos educativos, a auto-organização dos educandos, a participação efetiva da comunidade, e outros. Nesse processo, percebemos que a seriação própria da escola capitalista limitava concretizar a escola que queremos. Nessa direção, houve um esforço que envolveu a Coordenação das Escolas Itinerantes e das Escolas Bases na reelaboração do Projeto Político e Pedagógico em Ciclos de Formação Humana. Sua construção teórica se deu a medida em que fomos percebendo sua efetivação na prática real.

O documento tramitou por aproximadamente três anos na SEED, para finalmente ser aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, em fevereiro de 2010. O desafio se coloca em avançar na implementação desse projeto no conjunto das Escolas Itinerantes e a aprovação do Projeto da escola base - Colégio Estadual Centrão.

Em seguida, sistematizamos algumas iniciativas que temos tentado realizar nas Escolas Itinerantes e Bases para avançar nesse projeto de escola:

1) Organizar os agrupamentos de educandos nos ciclos, sendo, em um momento inicial, por idade em cada ciclo, o que seria o ano referência. E organizar também outros reagrupamentos com metas pensadas não somente a partir das idades, mas a partir da maturidade do educando, da sua condição de abstração do conteúdo, reagrupando por potencialidades e necessidades educativas, o que significa fazer da escola um tempo de vida e não de preparação para a vida.

2) Propiciar a auto-organização dos educandos por meio de ações intencionalizadas que consigam agregar os educandos em espaços de organização coletiva dentro dos agrupamentos, com tempos e espaço próprio para analisar e discutir as suas questões, elaborar propostas e tomar as suas decisões em vista de participar da gestão democrática e da escola como um todo.

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3) Continuar a implementação dos conselhos de classe participativos com a intenção de ser um espaço-tempo onde os sujeitos centrais de toda ação educativa da escola (educandos, pais e educadores) tenham espaço para discutir e dar suas opiniões. E esta linguagem não é o silêncio, a passividade. É a voz, o diálogo, os limites de compreensão, as contradições. Efetivar o conselho de classe participativo como espaço-tempo de realizar a avaliação dialógica, articulada ao compromisso com o estudo e a formação não para obter notas. Sendo também um espaço de divisão do poder da instituição escolar, avalia-se cada sujeito e cada instância da escola envolvida no processo educativo.

4) Realizar a avaliação processual e diagnóstica por meio de parecer descritivo, por área e semestral, no qual serão apresentados os avanços e limites do processo educativo do educando, tendo como referência maior o processo de apropriação do conhecimento e o desenvolvimento das suas capacidades de análise, síntese, comparação, planejamento, participação, percepção, raciocínio lógico e outras.

Seguindo esta reflexão, sem a pretensão de finalizar, reconhecemos a importância da existência da Escola Itinerante no atual contexto da luta dos trabalhadores rurais sem terra. Sabemos que sozinha, a escola não transforma a sociedade, ela só é possível se fazer outra escola quando se agrega, se conecta diretamente a um projeto maior.

A escola é um espaço privilegiado para a transmissão de conhecimentos, e contraditoriamente reproduz a sociedade capitalista, mas abre brechas às contradições, daqueles que a querem a favor dos trabalhadores e daqueles que a querem a favor do capital. Nesse sentido, cabe à classe trabalhadora disputar a escola.

Desta forma, o maior desafio desta escola é continuar como política pública nos acampamentos e itinerante, independente de qual grupo político assumir o governo do Estado do Paraná nos próximos períodos.

Enfim, que a Escola Itinerante possa se realizar aprendendo e ensinando na luta pela emancipação da classe trabalhadora.

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REFERÊNCIAS

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PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

54 A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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Escola Itinerante em Santa Catarina

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Daiane Maria Paz 1

Paulo Davi Johann 2

INTRODUÇÃO

Este texto, que é a primeira publicação sobre as Escolas Itinerantes em Santa Catarina, parte de discussões e registros elaborados pelo setor de educação, em especial, no estado. Sua elaboração constituiu-se em um desafio e um importante espaço para reflexão da caminhada de cinco anos (2005-2009) da Experiência Pedagógica na modalidade de Escola Itinerante nos acampamentos do MST de Santa Catarina.

Esta reflexão traz presente a construção do projeto de Escola Itinerante em Santa Catarina, cujos processos pedagógicos buscam levar em conta o acúmulo do MST no que se refere à escola que queremos. Neste sentido, a Escola Itinerante se assume como Escola do MST, que tem centralidade no ser humano, na qual as atividades pedagógicas desempenhadas apontam para a formação, reconhecendo o conjunto das dimensões humanas. O conjunto das ações desenvolvidas na escola precisa contribuir para que as crianças possam aprender a ler, calcular, interpretar, confrontar, dialogar, debater, duvidar, sentir, analisar, relacionar, celebrar, saber articular o próprio pensamento, sem descuidar da vinculação a um projeto de campo e de sociedade.

Nesta perspectiva, não olhamos para a Escola Itinerante apenas como uma estrutura escolar. A escola do MST é uma Escola do Campo, vinculada ao sistema público e a um movimento de luta social pela Reforma Agrária no Brasil, com a participação da comunidade e que se vincula à construção de um projeto de sociedade socialista.

A dimensão educativa das crianças do MST é mais profunda que aquela vivenciada somente no espaço da escola. O significado do espaço do acampamento, as relações, as brincadeiras, as lutas, a violência, o despejo, a mística, são componentes que possibilitam aprendizagens para as crianças. A escola, neste contexto, precisa contribuir para o maior entendimento destes aprendizados e, ao mesmo tempo, deve ser um espaço para a reflexão e socialização de conhecimentos.

Neste sentido, o Projeto Político Pedagógico da Escola Itinerante propõe:

Uma escola dinâmica, aberta e capaz de responder a mobilidade dos acampamentos. Uma escola que auxilie as crianças a compreenderem o momento e o espaço em que vivem, que auxilie

1 Militante do Setor de Educação do Estado de Santa Catarina e do Coletivo de acompanhamento pedagógico das Escolas Itinerantes, e graduanda do curso de geografia (UNESP).2 Militante do Setor de Educação do Estado de Santa Catarina e do Coletivo de acompanhamento pedagógico das Escolas Itinerantes,e graduado em pedagogia para educadores do campo pela UNIOESTE.

ESCOLA ITINERANTE EM SANTA CATARINA:LUTA E CONSTRUÇÃO

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no resgate da dignidade e socialização da infância, que tenha identidade e compromisso com o projeto político das famílias acampadas, enfim, uma escola que seja conectada com a realidade e o desenvolvimento do campo brasileiro, sem perder a qualidade pedagógica, científica e humanista já acumulados por outras experiências.(Projeto Político Pedagógico das Escolas Itinerantes em Acampamentos do MST de Santa Catarina, 2007 p. 4)

Compreender que a educação escolar deve partir da vivência da criança, do acampamento, das lutas, das pressões sofridas, é fundamental quando se acredita que a escola não tem a função de ensinar conteúdos mecânicos, mas formar a consciência de seres humanos capazes de observar, analisar, intervir e transformar.

É por ter esta compreensão, que o MST de Santa Catarina se preocupou com a educação escolar dos filhos e filhas dos Sem Terra. Mas não qualquer educação e sim, uma educação que pudesse se desenvolver no interior dos acampamentos, onde a pedagogia a ser implementada poderia atender a esta perspectiva. É neste sentido, que o Movimento se articula e elabora um projeto de educação que viesse ao encontro com suas preocupações de uma educação numa perspectiva libertadora. Para que este projeto se tornasse real, houve a necessidade de mobilizar o conjunto do MST e empreender lutas para esse fim.

Para esta reflexão, tomamos como base as observações feitas no acompanhamento pedagógico às Escolas Itinerantes pelo Setor de Educação do MST e estudos acadêmicos sobre o tema.

O presente texto está dividido em quatro partes. A primeira traz presente a luta das famílias Sem Terra com a participação das crianças pelo reconhecimento legal das escolas dos acampamentos. Em um segundo momento, tratamos da caracterização e organização desta escola, quando também refletimos a formação dos educadores e a experiência pedagógica desta escola que caminha com o povo Sem Terra. Na terceira parte realizamos uma reflexão acerca da relação do Estado e da Secretaria de Educação com a Itinerante, as dificuldades e os esforços para manter viva esta experiência de educação dos trabalhadores do campo. Por último, apontamos os desafios que permanecem ao longo destes cinco anos de construção política e pedagógica das Escolas Itinerantes dos acampamentos do MST de Santa Catarina.

A LUTA PELA ESCOLA ITINERANTEEM SANTA CATARINA

A necessidade de se construir escolas nos acampamentos do MST em Santa Catarina está relacionada à sua origem, pois desde as primeiras ocupações havia a preocupação com a escolarização dos filhos e filhas dos Sem Terra. Para que isso se tornasse realidade era necessário travar lutas. Em um primeiro momento, o Movimento procurava as redes municipais de educação para a criação de escolas nos acampamentos ou a inclusão das crianças nas escolas existentes no município em que se localizava o acampamento. O frequente deslocamento dos acampamentos de um município para outro mostrava um grande limite de inserção das crianças nas redes municipais de ensino. A cada município todo o processo se iniciava novamente.

Nessa luta nem sempre havia a garantia de construção de escolas ou a inclusão das crianças nas escolas existentes no município, porque a estrutura física das escolas municipais não atendia a demanda

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e a construção de escolas levava algum tempo e, com isso, as crianças acabavam perdendo o ano letivo. Para que as crianças Sem Terra não ficassem fora do processo educacional escolar, a

comunidade acampada em conjunto com o setor de educação do MST organizava a escola, mesmo sem o reconhecimento legal do Estado. Os educadores eram escolhidos pela comunidade acampada, sendo que se observavam alguns critérios como: estar acampado, ter gosto pelo magistério e pelo estudo e ter o maior grau de escolaridade.

Assim como descrito anteriormente, neste primeiro momento se buscava legalizar as escolas dos acampamentos junto aos municípios em que estas se situavam. Onde as administrações eram mais simpáticas à luta pela terra, as escolas eram legalizadas como extensão de uma escola da rede municipal, mas em outros municípios, os representantes das secretarias municipais de educação argumentavam que a lei não permitia. A partir desta situação se percebeu que a solução do problema não era definitiva. Começa então uma nova etapa de luta pela escola das comunidades itinerantes.

Como no Rio Grande do Sul a aprovação da Escola Itinerante é de 1996, o MST de Santa Catarina buscou nessa experiência subsídios para a elaboração do projeto de Escolas Itinerantes no estado. A elaboração do projeto para a criação dessa modalidade de escola em Santa Catarina surge da demanda de garantir a escolarização das crianças e o reconhecimento das experiências de escolas já desenvolvidas. O projeto estava amparado na legislação vigente: a Constituição Federal e Estadual; o Estatuto da Criança e do Adolescente; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; a Resolução nº 01/2002/CNE/CEB que trata das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo e a Lei Complementar Estadual nº. 170/1998.

Nos acampamentos do MST no estado de Santa Catarina, quando da aprovação do projeto da Escola Itinerante, havia oito escolas em funcionamento. Algumas destas escolas não possuíam o reconhecimento legal e outras se encontravam legalizadas pelos municípios como extensão de outras escolas municipais. Nestas oito escolas em funcionamento contava-se com 11 educadores e 252 educandos e hoje (2009), estão funcionando com 11 educadores e 144 educandos.

No período em que funcionavam as escolas nos acampamentos sem o reconhecimento legal, em algumas situações houve uma forte pressão do poder judiciário para o fechamento delas. Um exemplo de como eram tratadas as escolas de acampamento, antes da aprovação da Escola Itinerante, foi o ocorrido no acampamento Manoel Aves Ribeiro, localizado no município de Três Barras, onde os pais e o educador foram intimados e processados pela justiça. O educador por se dispor a desenvolver atividades pedagógicas para educar as crianças do acampamento e os pais por quererem que seus filhos estudassem. Nas palavras do próprio educador Cléber: “Na delegacia, quando o delegado me chamou, olhou bem, dos pés à cabeça, e indagou:- Então, é você o criminoso? - Se dar aula de graça for crime, então sou eu mesmo - respondi.” (Menezes Mori, 2006 p.12).

Para a conquista do reconhecimento legal das escolas nos acampamentos foi necessário mobilizar o conjunto do MST e empreender lutas junto ao poder público estadual. As mobilizações utilizadas foram várias, tais como: a marcha no ano 2003, em que aproximadamente oitenta Sem Terra atravessaram o estado e um dos pontos de pauta foi a aprovação das Escolas Itinerantes. Além disso, foram feitas diversas audiências com a Secretaria Estadual de Educação e com o governador do Estado Luiz

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Henrique da Silveira3. Esta luta foi feita não só pelos adultos. Os Sem Terrinha também estiveram presentes. Exemplo

disso foi o 3º Encontro Estadual dos Sem Terrinha, realizado em 2004, em Florianópolis, quando ocorreu uma audiência com o Governador do Estado e o Secretário Estadual de Educação.

Os diversos espaços e momentos de luta, aliados a uma abertura do então secretário de educação para o diálogo, culminou na aprovação do projeto que autoriza o funcionamento das escolas dos acampamentos, na modalidade de Escola Itinerante como experiência pedagógica, pelo Conselho Estadual de Educação, sob parecer 263 de 21/09/2004, por um período de dois anos. Posteriormente, esta experiência foi prorrogada por um período de quatro anos.

Após a aprovação desse projeto foram realizadas reuniões de formação e discussão sobre a organização e funcionamento dessa escola em todos os acampamentos. O encaminhamento construído com as famílias foi de que todas as escolas dos acampamentos passariam a ser itinerantes e vinculadas à Escola Base 30 de Outubro e, portanto, à Rede Estadual de Ensino. A exceção foi a escola do acampamento Oziel Alves. O ano letivo teve início no dia 21 de fevereiro de 2005 em todas as escolas.

ORGANIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DAS ESCOLAS

A Escola Itinerante é uma escola de acampamento que tem por base legal a Escola de Ensino Fundamental 30 de Outubro, localizada no assentamento Rio dos Patos, município de Lebom Régis, que atende o ensino fundamental. Esta escola é a chamada Escola Base, cujo projeto político pedagógico se aproxima da Pedagogia do Movimento, embora tenha limitações devido a muitos educadores não possuírem vínculos orgânicos com o assentamento e o MST, se deslocando diariamente da cidade para trabalhar nessa instituição escolar. O assentamento Rio dos Patos, no qual está localizada a escola 30 de Outubro, é fruto da luta dos Sem Terra de Santa Catarina. Esta escola também é uma conquista da luta dos Sem Terra assentados e por isso se tornou a Escola Base.

Consta no projeto de criação da Escola Itinerante que a Escola Base assume as funções de: a) responsabilizar-se pela relação dos alunos nas turmas da Escola Itinerante com o Sistema Estadual de Registro e Informação Escolar/SERIE; b) manter organizada a escrituração e o arquivamento dos dados referentes à vida escolar dos alunos e funcional dos educadores; c) providenciar a documentação para contratação do corpo docente; d) emitir histórico escolar do aluno, quando do pedido de transferência ou no final do curso do Ensino Fundamental.

Além das atribuições descritas acima, tem sido acrescidas outras tarefas para a Escola Base, tais como ajudar na formação dos educadores e no debate acerca do fortalecimento da Escola Itinerante, a partir da qualificação dos educadores e contribuir com a luta pela continuidade da existência da Escola Itinerante.

Desde o início da implementação das Escolas Itinerantes do MST em Santa Catarina, há, no conjunto do Movimento, a decisão de que estas seriam organizadas em todos os acampamentos onde

3 Governador eleito em 2002 e reeleito em 2006, portanto, toda a trajetória da Escola Itinerante em Santa Catarina tem acontecido neste governo.

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houvesse demanda por escola e assim tem acontecido em todos esses locais.As aulas acontecem em barracos de lona construídos pelas famílias acampadas ou em áreas

onde há casas ou galpões que são destinados para a organização da escola do acampamento. As condições para a construção da escola e sua manutenção são pensadas e executadas pela comunidade acampada. Percebe-se a prioridade que as famílias dão ao espaço da escola, destinando para esta a melhor localização do acampamento, a melhor lona ou a melhor construção da área ocupada.

O MST no estado de Santa Catarina caracteriza-se por acampamentos menos numerosos, o que resulta em escolas com um número pequeno de educandos e educandas, fazendo com que boa parte das escolas sejam formadas por uma única turma. Das oito escolas, somente duas têm mais de trinta educandos, possibilitando fazer duas turmas, considerando as normas da rede estadual de ensino, que permite o desdobramento das turmas a partir de trinta alunos.

As avaliações feitas no coletivo de educadores e a prática das escolas apontam para duas constatações no que se refere à multisseriação: a) existe a possibilidade da troca de conhecimentos e experiências entre as crianças e o agrupamento por dificuldades, independentes das séries que antes frequentavam; b) tem-se a dificuldade de um acompanhamento individual das crianças devido à diversidade de níveis de aprendizado, idade e séries. A partir das avaliações e constatações decorrem ações concretas que contribuem, principalmente, no acompanhamento individual às crianças que é de trabalhar em contraturno, agrupando as crianças segundo as dificuldades encontradas, independente de série.

O Setor de Educação construiu uma proposta, no percurso de sua existência, de que o trabalho pedagógico precisa ser pensado e executado de forma coletiva. Pelo fato de a maioria das escolas ser formada por uma turma e apenas um educador ser contratado pelo estado, há dificuldade da efetivação desse princípio. Para a superação desta limitação tem-se buscado organizar nos acampamentos formas variadas de organização para que o trabalho coletivo se efetive como a constituição de coletivos de educação nos acampamentos, coletivo de pais e mães e trabalho voluntário de acampados e acampadas. Estes grupos permitem dar maior qualidade ao planejamento e à execução das atividades, e também permitem uma avaliação mais consistente de todo o processo ensino-aprendizagem e de organização e gestão da escola.

Tem-se buscado construir em todos os acampamentos um coletivo de educação que recebe nomes variados: equipe de educação, coletivo de educação, APP (Associação de Pais e Professores), Setor de Educação. Estes coletivos têm a função de acompanhar as audiências e propor pautas para as Gerências Regionais, contribuir em tarefas práticas na escola, como reparos na estrutura física e na horta, participar de reuniões e garantir que as discussões referentes à escola cheguem até os núcleos de base, participar das avaliações e planejamentos das atividades das escolas, inclusive propondo temas de estudo e de acompanhamento aos estudantes dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio que estudam fora do acampamento.

A Escola Itinerante tem uma equipe de coordenação pedagógica formada por três pessoas4, cujas funções são: manter relação com o Estado, com as Gerências Regionais de educação e com a Escola

4 A coordenação pedagógica é formada por três pessoas. Segundo o projeto de criação da Escola Itinerante, um dos coordenadores tem por função estabelecer relação com o Estado, com as Gerências Regionais de educação e com a Escola Base e os outros dois de fazer o acompanhamento pedagógico aos educadores e educadoras.

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Base; acompanhar os educadores e educadoras no trabalho pedagógico; contribuir com o educador nas questões legais das escolas; trabalhar a formação dos educadores; ajudar a organizar a escola no acampamento e contribuir na discussão acerca do papel da escola e da educação nos acampamentos. Nesse sentido, o trabalho dos coordenadores pedagógicos é fundamental, auxiliando tanto o trabalho do educador quanto contribuindo no fortalecimento do Setor de Educação e na organização do acampamento. Esta coordenação pedagógica tem ido aos acampamentos algumas vezes ao ano e acompanhado algumas aulas para observar seu desenvolvimento, com vistas a auxiliar os educadores na organização e no planejamento das atividades pedagógicas e nas reuniões com o coletivo de educação e pais, ajudando na compreensão de que escola queremos construir. Apesar de ter-se definido, no Setor Educação do MST, a orientação de que cada coordenador pudesse fazer uma visita por mês a cada escola, a condição financeira não tem possibilitado esta frequência, pois o Estado não repassa os recursos para que isso possa se efetivar, apesar de ser de sua responsabilidade esta atribuição.

Durante os cinco anos de atividade da Escola Itinerante, é possível perceber algumas limitações: a dificuldade em constituírem-se os coletivos e garantir a participação da comunidade acampada na escola; a falta de recursos pedagógicos e didáticos e a ausência de uma política de formação continuada e consistente dos educadores, aliada à grande itinerância de educandos, famílias e educadores. Observamos que o fato das escolas serem muito pequenas e com apenas um educador tem gerado dificuldades e isolamento, o que também se deve à distância entre elas. Todos esses aspectos, somados ao abandono por parte do Estado, são limites à construção e implementação da proposta pedagógica da Escola Itinerante. Para avançarmos no trabalho destas escolas, é necessário desenvolver maior formação com os educadores, mas também com o Setor de Educação e o acampamento. Dentre outras questões, é preciso debater sobre o trabalho pedagógico acerca dos conteúdos escolares, identificando quais conteúdos trabalhar e como é possível desenvolver a interdisciplinaridade a partir de temas do cotidiano. Estas questões precisam ser refletidas no Setor de Educação do acampamento, avançando para um trabalho educacional refletido e realizado coletivamente.

É importante indicar que a vivência no acampamento e a participação nas lutas são pedagógicas e contribuem na educação das crianças. Desta maneira, é necessário construir com as famílias a compreensão de que o ambiente educativo não é apenas a escola, portanto, muitas atitudes dos adultos na vida comunitária dos acampamentos devem ser repensadas. A escola, neste contexto, assume o papel de questionar as atitudes e valores expressos e contribui para que, além da compreensão da luta pela terra, as crianças possam questionar e participar da vida do acampamento.

Na elaboração dos planejamentos das aulas tem-se orientado buscar a integração entre aspectos da realidade com a organização do conhecimento e atividades práticas. As atividades escolares, quando da organização de um novo acampamento, têm potencializado a interação e socialização entre as crianças, a maior compreensão de o porquê lutar e do que se pretende conquistar, transformando essas vivências em reflexões sistematizadas. Para avançar na prática do planejamento acima descrito, trabalhou-se na construção de metodologias que possibilitem traduzir a realidade vivida em conhecimentos, cultura e valores. Com o tempo, a escola incorpora a organicidade do acampamento, organizando os núcleos de crianças e dividindo tarefas. As crianças vão construindo a compreensão do que é planejar e avaliar, dividem

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tarefas e participam da execução e da avaliação sobre elas. A escola também participa das atividades comuns do acampamento como mutirões, assembleias, trabalho na horta, celebrações e místicas.

No que se refere ao calendário escolar, as Escolas Itinerantes se organizam de acordo com o calendário da Escola Base das Itinerantes, no entanto, cada escola tem autonomia para readequá-lo, desde que garanta às crianças a carga horária de 200 dias letivos e o mínimo de quatro horas de aula diárias. As aulas que eventualmente deixarem de ser dadas no período de organização da escola são repostas, ou no contra turno, ou em sábados, sendo esta uma decisão do educador/educadora juntamente com o coletivo de educação.

A organização curricular exposta no Projeto Político Pedagógico da Escola Itinerante prevê a organização por ciclos, porém, como o registro é feito em sistema SERIE, este oficialmente não poderá ser feito por ciclos. Mesmo que a organização escolar oficial do Estado impeça de organizar o processo educativo por ciclo, se houvesse uma boa formação política pedagógica, seria possível uma maior aproximação ao trabalho por ciclos. O que acontece na prática das Escolas Itinerantes é uma organização que extrapola o sistema série, mas ainda não é ciclo. Os educadores organizam os educandos a cada duas séries, ou seja, trabalham alguns conteúdos conjuntos com a primeira e segunda série e, da mesma forma, de terceira e quarta série. Há três anos, iniciou-se a organização do Ensino Fundamental de 9 anos, então, como as turmas são multisseriadas, as atividades são organizadas por idade e/ou tempo de aprendizagem, conforme a realidade de cada espaço, levando-se em conta as especificidades e necessidades das crianças.

No que se refere a avaliação, até o ano de 2008, o Sistema Estadual de Ensino organizava-se por meio de notas. Em 2009, adotou-se a avaliação descritiva dos educandos nos três anos iniciais do Ensino Fundamental. As Escolas Itinerantes, além dos registros de avaliação exigidos pelo estado, organizam formas complementares e participativas de avaliação utilizando-se de instrumentos como cadernos de acompanhamento individual dos educandos, avaliações orais ao final de aulas ou atividades, reunião de pais e pareceres descritivos de cada criança, elaborados em processos participativos e socializados com os pais e comunidade. Independente da forma de registro adotada, a avaliação inclui aspectos como o aprendizado das crianças, o ensino, a organização da escola e a participação da comunidade acampada.

O Projeto Político Pedagógico das Escolas Itinerantes está em contínuo processo de construção desde a sua legalização e tem como base a construção que vem sendo feita ao longo dos anos da Pedagogia do Movimento. A metodologia de construção envolveu, e envolve, reuniões de um grupo de trabalho, estudo e construção no coletivo de educadores e estudo nos acampamentos. Nos cursos de formação de educadores, este projeto é estudado e são anotadas as sugestões, buscando assim a participação e o conhecimento deste por parte dos educadores que, juntamente com o Setor de Educação e coletivo de acompanhamento, têm a tarefa de realizar as discussões com as famílias acampadas.

OS EDUCADORES E O TRABALHO PEDAGÓGICO

O Setor de Educação do MST em SC tem por princípio que os educadores que trabalham na Escola Itinerante sejam escolhidos entre as famílias acampadas, a partir da discussão na coordenação e nos Núcleos de Base. Para o processo de escolha, respeitam-se alguns critérios como: fazer parte da

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comunidade acampada, ter o reconhecimento do acampamento, compromisso com a luta e pertença ao Movimento, ter gosto pelo magistério, ter concluído pelo menos o ensino fundamental, gostar de estudar e ter a disponibilidade de continuar estudando. A partir do levantamento dos nomes, faz-se uma discussão na coordenação junto com o Setor de Educação do acampamento e escolhe-se aquele que melhor preencher os critérios acima citados. Porém, em muitos acampamentos, devido ao processo escolar brasileiro historicamente ter excluído as famílias pobres da escola, tem-se dificuldade em encontrar pessoas que atendam a todos os critérios expostos. Nesse sentido, nesses acampamentos torna-se educador aquele que tiver completado o Ensino Fundamental. Observamos que a baixa escolaridade e a ausência de formação pedagógica são limites para maior qualidade do trabalho educacional. Dessa forma, é preciso que o MST e o Setor de Educação tenham maior preocupação em formar seus educadores, e que estes tenham a disponibilidade de morar nos acampamentos, qualificar sua atuação política e pedagógica, ao passo que o Estado deve garantir as condições para a formação continuada destes educadores.

Se de um lado, para uma parte dos educadores, falta formação pedagógica inicial, por outro, nos acampamentos do MST de SC, outra parte dos educadores tem clareza política ideológica de onde quer chegar. Isto quer dizer que buscam rever o papel do educador e da educação numa sociedade dividida em classes sociais. Nesse sentido, compreendem que a escola não pode ficar no conhecimento fracionado e que é preciso trabalhar o processo de organização dos educandos, ensinando além de ler e escrever, mas partindo da realidade vivida dos educandos. A formação dos educadores e educadoras é fundamental para qualificar os processos pedagógicos e sintonizá-los com a educação emancipatória. Esta formação também precisa levar em conta a especificidade das Escolas Itinerantes.

Segundo o projeto aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, a formação dos educadores deveria ser feita em parceria entre a Secretaria de Estado da Educação, o Setor de Educação do MST e Escola Base, porém, nesses quase cinco anos de funcionamento da Escola Itinerante, a formação dos educadores vem sendo trabalhada sem a participação da Secretaria Estadual de Educação. A formação dos educadores itinerantes vem sendo realizada apenas com o esforço do Movimento e da Escola Base, entretanto não temos condições para garantir maior regularidade nos encontros de formação. As frequentes requisições de formação encaminhadas pelo Setor de Educação do MST à Secretaria de Estado de Educação recebem como resposta a indicação dos cursos realizados pelas Gerências Regionais de educação, as quais não contemplam a especificidade antes apontada e seu projeto educacional. Como veremos no item da relação com o Estado, a posição deste tem sido de omissão em relação à Escola Itinerante e de negação das condições que asseguram a especificidade desta experiência.

Há a compreensão de que a formação dos educadores, além de um direito, é fundamental para que a experiência se firme enquanto uma proposta pedagógica que atenda às questões específicas da escola e das crianças acampadas. Desta forma, os acampamentos, o Setor de Educação, a Escola Base e os educadores, têm buscado diversas formas de garantir estes espaços/momentos de estudo e reflexão. Normalmente, a cada ano acontecem três momentos de formação com os educadores da Escola Itinerante no período de três a cinco dias. Os primeiros dois acontecem na Escola Base e o terceiro em uma das escolas nos acampamentos. O primeiro momento de formação acontece antes do início das aulas, em que se trabalham os temas referentes à organização e o planejamento das atividades pedagógicas que serão

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desenvolvidas durante o ano, além dos trabalhos de preenchimento do diário de classe e o calendário escolar.

O segundo momento acontece na metade do ano em que é estudado o Projeto Político Pedagógico e outros temas relacionados à Pedagogia do Movimento e a Educação do Campo. O terceiro momento , que acontece em uma das escolas, é desenvolvido em forma de oficina e denominado de Oficina de Capacitação Pedagógica - OCAP. Nessa OCAP trabalha-se a teoria aliada à prática. Ou seja, um período de estudo teórico relacionado à Pedagogia do Movimento, à educação libertadora de Paulo Freire e o planejamento e, no outro período, desenvolve-se a prática em sala de aula com a avaliação dos trabalhos.

Durante os quase cinco anos de desenvolvimento de atividades pedagógicas nas Escolas Itinerantes, conseguimos ter avanços significativos no que diz respeito à qualidade do ensino. No entanto, a rotatividade dos educadores ainda é um limite. Este é um desafio que deve ser assumido pela Escola Itinerante, Setor de Educação e o conjunto do MST. Neste sentido, é preciso avaliar melhor a vontade e disposição das pessoas indicadas a serem educadores e também as que são selecionadas para participar dos cursos de formação de nível médio e superior oferecidos pelo MST em parceria com o Pronera e com universidades.

É preciso potencializar a formação para criar um corpo docente com qualificação profissional, política e pedagógica. É preciso avançarmos na construção de uma escola capaz de formar os Sem Terrinha com conhecimentos universais, aliados aos conhecimentos do campo, da luta pela terra e do funcionamento da sociedade, para poder intervir nela e transformá-la. Isto implica formar educadores que tenham a capacidade de trabalhar os conhecimentos da realidade próxima como ponto de partida e, ao mesmo tempo, como ponto de chegada, relacionando-os com os conhecimentos científicos universais produzidos pela humanidade, associados à ampla formação humana.

No dia a dia percebe-se que parte dos educadores trabalha com o método tradicional, outros trabalham a partir de temas escolhidos pelo educador. Os que trabalham com o método tradicional não deixam de trabalhar os assuntos do cotidiano do educando, da organização do MST e do acampamento, pois a cada aula discutem junto com os educandos algum assunto da realidade vivida pelo educando. Os educadores que trabalham a partir de temas, em muitos casos não conseguem trabalhar os conteúdos das disciplinas escolares vinculados ao tema e de maneira não fragmentada. Isto quer dizer que as disciplinas escolares são trabalhadas de forma isolada, mesmo que todas tenham relação com o tema. Em pesquisa nas Escolas Itinerantes de Santa Catarina, Puhl (2008, p.76) verificou que “por falta de formação, muitos educadores dão mais ênfase à vida cotidiana do que aos conteúdos oficiais, pois se sentem mais seguros para tratar sobre estas questões”. Em relação ao aprendizado das crianças escreve:

Segundo pais e educadores, o acompanhamento das crianças oriundas da Escola Itinerante no momento em que ingressam na quinta série e são transferidas para outra escola (fora do acampamento) não fica aquém se comparado às crianças que tiveram seus estudos em escolas diferentes da Escola Itinerante. Todos os pais entrevistados demonstraram estarem satisfeitos com a aprendizagem de seus filhos (Puhl, 2008, p.68-69)

Mesmo com todos os limites encontrados em relação aos conteúdos escolares, podemos observar que as crianças da Escola Itinerante estão em condições de igualdade com as crianças que estudam

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em outras escolas. Porém, na Itinerante se aprende também sobre a vida do acampamento, os valores humanos que devem ser cultivados, o trabalho no campo, a preservação da natureza, etc. Em nosso ponto de vista, o que falta é desenvolver melhor o vínculo entre os conteúdos das disciplinas escolares e os temas relacionados à vida concreta do educando.

Outra questão que merece atenção é o envolvimento da comunidade acampada na condução dos processos pedagógicos da escola. Porém, esta participação está mais relacionada à construção e manutenção da escola e na preparação da merenda para os educandos do que ao trabalho pedagógico, especialmente na seleção de temas e conteúdos a serem abordados. Isto se deve ao fato de que, historicamente, a educação escolar foi destinada ao educador. Para muitos pais basta que a criança aprenda a ler e escrever. O envolvimento da comunidade acampada na definição dos meios e fins da educação escolar é um dos maiores desafios da Escola Itinerante. É fundamental para avançarmos na construção da Pedagogia do Movimento, pois a escola deve ser orgânica à comunidade e caminhar com ela rumo à emancipação humana, assim como apontam os acampamentos do MST.

A ESCOLA QUE CAMINHA COM O POVO SEM TERRA

A Escola Itinerante é uma escola pensada e organizada pelas famílias em situação de acampa-mento e tem por objetivo atender e garantir o direito à escolarização das crianças que acompanham seus pais na luta pela terra e, por isso, permanecem em situação de itinerância até que conquistem o direito de poder plantar e produzir.

Por acompanhar as famílias no processo de luta em que elas se encontram as aulas da escola, quando necessário, acontecem em momentos e lugares diferenciados como barracos ou galpões, marchas, prédios públicos, quando ocupados, e outros lugares. Os educadores atuam em conjunto com a organização dos acampamentos e são desafiados permanentemente a construir espaços pedagógicos nas diversas situações que encontram na itinerância e que os provoca a criatividade e espírito de sacrifício, pois nem sempre as condições estão dadas para o desenvolvimento do processo pedagógico.

Neste período de legalização das Escolas Itinerantes, tivemos algumas experiências de itinerância que vêm comprovar a importância desta conquista no que diz respeito à garantia da escola, à agilidade dos processos e à possibilidade de formação intencional e planejada. Por exemplo, no mês de abril de 2005, cinquenta famílias do acampamento Pátria Livre, de Abelardo Luz, deslocaram-se para o pré-assentamento no município de Correia Pinto e a escola, juntamente com o educador, acompanhou as famílias e as vinte e cinco crianças matriculadas.

Outro exemplo foi quando as famílias do acampamento no município de São Francisco saíram da área ocupada e se somaram às famílias do Pátria Livre. Todas as crianças passaram a ser atendidas na escola deste acampamento e uma outra escola também se constituiu em um novo acampamento no município de Rio Negrinho. Imediatamente discutiu-se o nome do educador, que foi organizando as crianças e a escola, para dar início às atividades.

No dia 10 de julho de 2005, aconteceu mais um momento de luta pela Reforma Agrária no município de Iriniópolis, onde as famílias dos acampamentos Raízes do Futuro, em Canoinhas, e Manuel

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Alves Ribeiro, em Mafra, se uniram e formaram o acampamento Dolcimar Brunetto. Com a mudança, educadores, crianças e escola se incorporaram às crianças do outro acampamento e às novas famílias que ingressavam na luta. E assim, a cada novo acampamento, uma escola ia sendo organizada pelas famílias acampadas em conjunto com o Setor de Educação.

Por exemplo, a escola do acampamento Dom José Gomes, que entre agosto e setembro de 2008 funcionou no prédio da superintendência do Incra em Chapecó. O órgão havia sido ocupado pelas famílias desse acampamento como forma de luta pela desapropriação da fazenda Seringa. A existência da Escola Itinerante possibilitou que as famílias participassem da luta sem paralisar a escolarização das crianças que, além de manterem-se na escola, também participavam das formações e atividades organizadas na ocasião. A escola retornou para seu local de origem no dia10 de setembro após publicação do decreto de desapropriação da área no Diário Oficial.

Outro exemplo de escola que caminha com o povo Sem Terra foi a organizada no ano de 2009, no acampamento Miguel Fortes da Silva, localizado no município de Santa Terezinha. Esta comunidade se formou por famílias vindas do acampamento São Roque, do município de Campo Erê, algumas famílias do acampamento Nova Esperança, do município de Mafra, e as famílias excedentes do recém criado assentamento 25 de Março do município de Correia Pinto. Este acampamento se constitui a partir da desapropriação da Fazenda Mato Queimado, no município de Taió. Ao chegarem perto do local da fazenda desapropriada, as famílias foram surpreendidas pela ação da Polícia Militar - aliada à força paramilitar do latifúndio -, sendo impedidas de entrar na área que por lei era destinada a elas. Além de impedir a chegada na terra, a força armada do Estado e do latifúndio obrigou as famílias a descarregarem toda mudança vinda em caminhões em um posto de ferro velho perto do local, enquanto os caminhões foram encaminhados de volta ao município de origem. As famílias ficaram das oito da manhã até as três e meia da tarde sem comunicação, sem água e comida, pois a alimentação estava nos caminhões, e no local não tinha área para comunicação. Às três e meia da tarde, após entrarem em contato com as demais famílias, organizou-se o deslocamento de todos para uma área provisória, gentilmente cedida pelo assentamento 25 de Maio, no município de Santa Terezinha. A escola está funcionando nesse local e as famílias aguardam o seu deslocamento para a fazenda Mato Queimado para tomarem posse da terra e assim constituírem o assentamento.

A Escola Itinerante surge para atender a escolarização das crianças que vivem no acampamento. Além de permitir que as famílias participem da luta, como marchas e ocupações de prédios públicos, a escola participa dessa luta na medida em que acompanha e não ignora o contexto em que se insere. Nesse sentido, os elementos que surgem no processo de luta dos acampamentos, em algumas situações, são temas de debate e estudo na escola. Entretanto, observamos que este entranhamento da escola em sua realidade, nos problemas que a cerca, ainda é momentâneo e eventual, pois não se tornou base e matéria prima permanente do trabalho escolar. Consideramos ainda que há muito por avançar para que a Escola Itinerante consiga refletir a luta pela terra, em conexão com os conhecimentos acumulados, e que poderiam em muito contribuir para um maior entendimento das crianças desta luta. Observamos que os temas trabalhados pela escola, muitas vezes, ocorre de forma isolada, momentânea e sem estabelecer relação entre os acontecimentos do local com os determinantes mais gerais desta mesma luta, com seus

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aspectos históricos, geográficos, econômicos, políticos, entre outros. Dessa forma, perde-se de vista o todo e se trabalha de forma fragmentada as questões do cotidiano e dos conteúdos.

Trabalhar a unidade entre os elementos do cotidiano da vida das crianças Sem Terra e os conteúdos escolares não é tarefa fácil, pois exige formação política e pedagógica, compreendendo os porquês da luta, contra quem se luta, o que se quer construir, qual a função da escola, como podemos, a partir das vivências do cotidiano, trabalhar o conhecimento já produzido e acumulado, como desenvolver a formação das várias dimensões do ser humano. É necessário aprofundar esta reflexão no Setor de Educação e no conjunto do MST para avançar na construção de uma nova escola que forme sujeitos críticos capazes de compreender a situação vivida e intervir para transformá-la.

RELAÇÃO COM O ESTADO

No projeto da criação da Escola Itinerante, apresentado ao Conselho Estadual de Educação e aprovado por este como Experiência Pedagógica, está previsto que o Estado, por meio da Secretaria Estadual de Educação e das Gerencias Regionais de Educação, se responsabiliza pela contratação dos educadores, merendeiros, coordenadores pedagógicos, e pelo fornecimento de material didático e pedagógico, formação dos educadores em parceria com o MST e Escola Base e a estruturação dessa última com telefone e internet. Além disso, é sua responsabilidade garantir os materiais para a estrutura física das escolas como lona especial para construção da sala de aula, lona para cozinha e refeitório, recursos para o deslocamento dos coordenadores pedagógicos e a merenda escolar. Neste sentido, a função do Estado é de ajudar a garantir o funcionamento das Escolas Itinerantes, pois estas escolas fazem parte da rede estadual de educação.

Logo após a aprovação da Escola Itinerante, realizou-se audiência com a Secretaria Estadual de Educação e Inovação para discutir como ocorreria a contratação dos educadores, coordenadores pedagógicos e merendeiros, bem como dos recursos para locomoção dos coordenadores pedagógicos, estrutura física para as escolas, envio de materiais didáticos, desdobramento de turmas e outros. Nesse encontro percebeu-se que o Estado apresentava algumas dificuldades do ponto de vista da operacionalização. Definiu-se de que os materiais seriam enviados às Regionais de Educação (GEREIS) onde estavam localizadas as escolas e que a contratação dos educadores obedeceria ao procedimento legal, encaminhado pela Escola Base. As outras questões precisariam de maior tempo de discussão para buscar alternativas legais.

As alternativas que a Secretaria de Educação se propôs buscar para operacionalizar as questões pendentes, passados cinco anos, continuam sem respostas. Além disso, os materiais e recursos repassados via Gerências Regionais são poucos e em algumas escolas não chegam. Nesses casos, as Gerências argumentam que é a Escola Base que recebe os recursos, ou ainda, que os acampamentos acontecem sem aviso e que as ações governamentais são baseadas em planejamento e orçamentos anteriores. Nas sucessivas audiências com a Secretaria de Educação em que expomos a situação das escolas, o não cumprimento dos acordos anteriores, seus representantes reconhecem a ausência de atendimento, entretanto, na prática, os acordos e encaminhamentos não chegam a se efetivar. Nesse sentido, a atuação do poder público estadual tem sido de conversar, dialogar, mas não encaminhar.

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Percebe-se o descompromisso do Estado por meio da Secretaria Estadual de Educação para com as Escolas Itinerantes. Ao olharmos a prática educacional ligada à Educação do Campo em Santa Catarina, compreende-se que este abandono acontece com o conjunto das escolas que atendem os trabalhadores do campo. Muitas são fechadas e algumas ainda persistem devido à luta e resistência dos camponeses, mas continuam carecendo de todo tipo de apoio estatal. Da mesma forma, a Escola Itinerante mantém-se pela luta e organização do MST, sobrevivendo com o mínimo de amparo do então governo estadual.

Avaliamos que num contexto político mais favorável, a Escola Itinerante foi aprovada como experiência pedagógica, porém com a mudança de Secretário de Educação e o fortalecimento de setores mais conservadores no governo do estado, a Escola Itinerante não se viabiliza de forma plena. Percebemos ao longo destes anos que falta vontade política da parte deste governo em viabilizar as condições mínimas de funcionamento desta escola. O Estado se esconde atrás da burocracia e da alegação de impedimentos legais para operacionalizar questões importantes que assegurem o funcionamento e a especificidade desta escola como o envio de materiais, o calendário escolar, os ciclos de formação, o deslocamento dos coordenadores e outras questões já mencionadas anteriormente. Evidencia-se assim o caráter de classe (dominante) a quem o Estado serve e a quem também atende o atual governo estadual. Da parte do MST, avaliamos, que neste momento de pequenos acampamentos e de tentativa de sufocar a luta do MST empreendida pela articulação das forças conservadoras no país, não temos conseguido pressionar o Estado para alterar este quadro que se perpetua desde a criação da Escola Itinerante.

Este quadro evidencia que a aprovação da experiência pedagógica Escolas Itinerantes em Acampamentos do MST de Santa Catarina não foi acompanhada das condições para a sua implementação. O Estado ignora que, sob certos aspectos, questões específicas da Escola Itinerante precisam ser asseguradas. O Estado atua na questão das matrículas realizadas e como todas as crianças da Itinerante se vinculam à Escola Base, desconsideram que efetivamente elas se encontram em diversos outros locais (que correspondem a outras Gerências5), que tais escolas se deslocam entre diferentes regiões do Estado e que tal dinâmica exige condições específicas para funcionar, o que extrapola o modelo único que atua o sistema estadual de educação.

Em relação aos educadores, estes são contratados como ACTs – Admitidos em Caráter Temporário - a indicação é de responsabilidade do MST nos acampamentos -, e vinculados à Escola Base. Recebem salários diferenciados de acordo com a formação e conforme previsto no plano de carreira do magistério público estadual. Com relação a isso não se enfrenta maiores problemas e os educadores têm recebido seus salários com regularidade. Este procedimento é diferenciado de outros estados que possuem a Escola Itinerante, em que está remuneração dos educadores se efetiva por meio de convênios e apresenta a vantagem de que, em Santa Catarina, o poder público “assume” os educadores itinerantes, contratando-os. De outro lado, este vínculo direto educador-Estado, por vezes, se torna mais forte do que a relação educador-acampamento. Esta forma de contratação também tem favorecido certo isolamento do trabalho do educador, na medida em que um único professor assume a escola e não dois como seria desejável. O Setor de Educação tem buscado criar uma dinâmica em que dois educadores assumam cada turma,

5 Cabe aqui uma explicação a respeito da Descentralização, prática de governo que prevê autonomia orçamentária e de planejamento as 30 secretarias regionais. Nestas secretarias funcionam as Gerências Regionais de Educação, mantenedoras das Escolas Itinerantes dos acampamentos.

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entretanto, isso não está resolvido. Enquanto o Estado não assume suas responsabilidades de assegurar a estrutura física da escola,

a formação dos educadores, o deslocamento de coordenadores, entre outros, as Escolas Itinerantes vêm sendo mantidas nos acampamentos com as condições que os próprios acampados e o conjunto do MST criam ou, em alguns casos, com ajuda de algumas Secretarias Municipais de Educação. Manter a escola no acampamento é uma definição do MST de que, apesar das dificuldades, nenhuma criança das séries iniciais do ensino fundamental estude fora do acampamento. Entretanto, a mobilização das famílias para manter a escola nos acampamentos não pode ser uma forma de isentar o Estado de suas responsabilidades. Precisamos ir além da garantia legal da escola, conquistando o direito aos recursos materiais e de formação para que a escola tenha condições de desenvolver todas as potencialidades, sem improviso ou sucateamento.

DESAFIOS QUE PERMANECEM

Diante das reflexões feitas ao longo do texto, podemos perceber os imensos desafios que precisam ser superados e que devem ser assumidos conjuntamente pela Escola Itinerante, pelo Setor de Educação e pelo conjunto do MST com vistas a qualificação dessa Escola. Sintetizamos estes desafios em alguns eixos:

1- Fortalecer a organização e as instâncias dos acampamentos para potencializar a participação e a relação acampamento–Escola. Estes devem ser espaços de efetivo estudo, formação e decisão. As famílias acampadas devem se apropriar do projeto de educação e escola do MST. Fortalecer os coletivos de educação nos acampamentos e intensificar o acompanhamento pedagógico aos educadores como forma de avançarmos na construção de uma educação de qualidade. Este é um dos caminhos para que a escola contribua no processo de formação humana de maneira ampla e colocá-la no rumo da construção de forma escolar articulada à luta pela transformação da sociedade.

2- Trabalhar na perspectiva de formar um grupo de educadores que possa atuar nas Escolas Itinerantes, evitando a excessiva rotatividade dos educadores nessas escolas. Para isto tem-se a necessidade de incluir os educadores que ainda não tem formação pedagógica nos cursos de magistério ou de pedagogia. Ao mesmo tempo, é necessário buscar parcerias com as universidades públicas na criação de cursos de pedagogia para que possamos formar o máximo de educadores que possam atuar nas futuras Escolas Itinerantes e nas escolas dos assentamentos.

3- Lutar para melhorar a estrutura da Escola Base e das Escolas Itinerantes, assim como o fornecimento de material pedagógico e didático, recursos para deslocamento dos coordenadores pedagógicos, contratação de merendeiras, entre outros. Fazer com que o Estado cumpra com suas responsabilidades, ao mesmo tempo em que a estrutura do sistema estadual de educação torne-se menos enrijecida às demandas populares. Ao mesmo tempo, o

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acampamento deve assumir a responsabilidade de construir hortas, jardins, espaços amplos e arejados, aproximando a escola da Pedagogia do MST e tornando orgânica a relação acampamento–MST e Escola.

4- Avançar no desenvolvimento de metodologias e instrumentos que possam auxiliar o educador para trabalhar com turmas multisseriadas, com qualidade no processo pedagógico e na aprendizagem das crianças. Assim como construir ferramentas para garantir o aprendizado das crianças que chegam ao acampamento com defasagem escolar, assegurando à elas o direito de aprender, evitando a evasão escolar comum entre as crianças que são retidas por várias vezes na mesma série.

5- Avançar na discussão pedagógica sobre a importância da Escola Itinerante no

MST na perspectiva da construção de uma nova escola ao mesmo tempo em que haja uma apropriação dos conhecimentos acumulados, estes vistos desde sua inserção nos processos amplos de ensino e formação, conforme aponta a Pedagogia do Movimento.

6- Estudar para compreender qual a implicação pedagógica que traz a organização escolar em sistema série em relação aos ciclos de formação humana. Organizar os acampamentos e o Setor de Educação para forçar a abrir espaços de diálogo junto ao Estado e a secretaria de educação para pautar mudanças no Sistema Estadual de Educação.

7. Fazer o debate nos acampamentos e assentamentos sobre a continuidade das escolas do campo na transição de acampamento para assentamento, uma vez que as negociações com os municípios, não raro, demandam de lutas prolongadas e tempo para elaboração e aprovação dos projetos.

Estes são alguns dos desafios que apontamos e que merecem a reflexão nos acampamentos, na Escola Itinerante, no Setor de Educação e no conjunto do MST, para que possamos avançar na construção de uma educação diferente, que esteja pautada na formação das várias dimensões do ser humano, articulada à socialização e à produção dos conhecimentos úteis à emancipação dos trabalhadores. Estes desafios devem ser vistos como possibilidades de construirmos um processo educacional que ajude na mobilização dos acampamentos, no fortalecimento das instâncias organizativas, na elevação do nível de consciência das famílias acampadas e na discussão de um novo projeto de agricultura que tenha suas bases na agroecologia. A educação, dessa forma, contribuirá na luta pela Reforma Agrária e na construção de um novo projeto de sociedade em que as pessoas terão livre acesso à terra, ao trabalho, e onde predomina a solidariedade e a cooperação entre os seres humanos.

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REFERÊNCIAS

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BRASIL. Diário Oficial da União, n.º 175, 10/09/2008 .

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

ESCOLA ITINERANTE SANTA CATARINA. Projeto de Criação da Escola Itinerante dos Acampamentos do Movimento Sem Terra de Santa Catarina. Chapecó, abril, 2003 .

____. Projeto Político Pedagógico. Chapecó, Julho de 2006.

FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987

MORI, Cleber Menezes. O processo de constituição da Escola Itinerante Sepé Tiarajú do acampamento Pátria Livre, no município de Correia Pinto no estado de Santa Catarina. Monografia (Pedagogia da Terra), Veranópolis, 2006.

PUHL, Raquel Inês. Escola Itinerante do MST: o Movimento da Escola na Educação do Campo. Dissertação (Mestrado em Educação), UFSC: Florianópolis, 2008.

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Escola Itinerante em Alagoas

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Marcela Nunes da Cunha 1

Débora Nunes Lino da Silva 2

Abordar a trajetória de luta, debates, reflexões e inquietações sobre a construção da Escola Itinerante em Alagoas, significa adentrar na história deste estado. Compreender a sua formação sócio-histórica e econômica, que permite descobrir muitas contradições no decorrer deste processo e que influem no jeito de conceber e fazer educação no estado. São mais de um milhão de pessoas sem acesso ao processo de escolarização, e sem que haja responsabilização, de fato, dos poderes públicos no trato da questão.

Resgatar esta experiência, ainda que embrionária, com seus limites e uma série de desafios a serem enfrentados, permite apontar que as mudanças necessárias se fazem em diferentes frentes, desde a desconcentração da terra à garantia do direito básico e inegável do acesso à escola. E que estes direitos só são possíveis de serem conquistados por meio da organização e mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras.

Alagoas é o segundo menor espaço territorial do país: 27.767.661 km2, com mais de 3 milhões de habitantes, conferindo-lhe uma densidade demográfica de 109,37 hab/km² (IBGE, 2007). Número bastante elevado em relação ao Brasil ou mesmo ao Nordeste, levando um escritor alagoano a expressar que: “É muita gente para pouco espaço” (LIRA, 1998).

No entanto, se verifica que os problemas do estado de Alagoas não se limitam à sua alta densidade demográfica. São problemas mais graves, de ordem econômica e social, expostas a olhos nus. O estado tem como base de sustentação de sua economia, até hoje, a monocultura da cana de açúcar voltada para exportação, com a exploração de grandes extensões de terra.

Esse processo assumiu especificidades na configuração fundiária de Alagoas, com a conformação de uma estrutura econômica, social e política oligárquica persistente, concentradora de terra, renda e poder, geradora de grande parte dos problemas sociais que parecem ter se hegemonizado, caracterizado por sua rígida hierarquia social. A concentração de renda é um dos itens mais reveladores das condições de vida extremamente precárias da maioria da população de Alagoas, onde os 10% mais ricos detinham 54% da renda total, enquanto 40%, constituídos dos mais pobres, ficavam com apenas 6,9% dessa renda.

A face mais perversa do estado de Alagoas se expressa na situação de extrema pobreza e miséria em que vive a maioria da sua população. Em relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1996, Alagoas figurava em segundo lugar entre os estados brasileiros que ofereciam as piores condições

1 Especialista em Educação de Jovens e Adultos e coordenadora pedagógica do MST de Alagoas.2 Socióloga e dirigente nacional do MST.

ESCOLA ITINERANTE NO ESTADO DE ALAGOAS

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de vida para sua população3. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Alagoas é de 0,677, segundo pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2005, e sua taxa de mortalidade infantil é de 44,3 por mil(Datasus, 2008).

Os indicadores de escolaridade da população alagoana é outro forte sintoma desse cenário de exclusão social. Em 1994, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), Alagoas ocupava o 2º lugar em analfabetismo entre a população de 7 a 14 anos, com uma taxa de 46,3%, quando a média brasileira, uma das mais elevadas do mundo, era de 17,5%. Em 2000, este índice caiu para 33,4%,, diminuindo para a atual taxa de 29,3%.

Frente a isto, ressalta SÁ, 2002, que:

É inquestionável, portanto, a importância e a necessidade da escolarização dos camponeses (...), no contexto atual da vida no campo, por representar, (...), uma das estratégias fundamentais no processo de elevação da qualidade de vida das populações rurais.

É este o cenário em que a Escola Itinerante cumpre importante tarefa no estado de Alagoas, e não apenas na Reforma Agrária, na medida em que potencializa e instrumentaliza, de maneira pedagógica, a luta e a organização como forma de garantir o direito à educação ao conjunto da sociedade.

O MST EM ALAGOAS: DA LUTA PELA TERRA À REIVINDICAÇÃO POR EDUCAÇÃO

Em janeiro de 2005, a Pastoral Rural participou do I Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizado no Paraná. Este momento é o marco na trajetória histórica do MST em Alagoas, em que se consolida a sua efetivação no estado, em meio à concentração de terra e de riquezas. Assim, em 26 de janeiro de 1987, ocorreu a primeira ocupação de terra no estado, no município de Delmiro Gouveia, alto sertão alagoano, na Fazenda Peba.

A partir desta ocupação, a luta pela Reforma Agrária tomou outro caráter em Alagoas. Foram organizadas ações para exigir providências do governo para a questão fundiária, como a desapropriação de terra, crédito e assistência técnica. Em abril do mesmo ano, a Secretaria de Agricultura do Estado, em Maceió, foi ocupada com o objetivo de garantir que o governo e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desapropriassem as fazendas Peba e Lameirão, fornecessem sementes para o plantio e cestas básicas para as famílias

Adiante, o Movimento ampliou seus espaços, foi para outras regiões do estado e contou com a presença de diversos militantes vindos do sul do país com a tarefa de formar e fortalecer o MST no Nordeste. Afinal, para que o MST se expandisse e se fortalecesse no âmbito nacional era necessário ocupar esta região. Em contrapartida, a força dos latifundiários, usineiros, do judiciário e da mídia, foi bastante

3 Das 26 Unidades da Federação pesquisadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), enquanto o Distrito Federal apresentava o mais elevado IDH (0,806) do Brasil, Alagoas ocupava a segunda pior posição, com um IDH < 0,677, tendo à sua frente apenas o Estado do Maranhão, com 0,456.

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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intensa na tentativa de impedir essa consolidação.O país, nesta época, se ressentia do autoritarismo e dos resquícios da ditadura militar. Logo,

eram comuns as prisões e torturas dos militantes. As ameaças de grupos de extermínio e dos pistoleiros eram cotidianas e a luta para consolidar o MST no estado era estratégica para a fixação do Movimento na Região. Apesar da repressão, em 1987, o Movimento conquista alguns assentamentos: Lameirão, Peba e Vitória da Conquista.

A conquista dos assentamentos, devido às novas demandas, exigiu mudanças de concepção e reivindicativas do Movimento. É um novo momento da luta pela terra. À ela, somava-se as demandas das família assentadas. Uma vez que “mesmo com a conquista da terra, os problemas das famílias com relação à saúde, educação, infra-estrutura básica, não foram resolvidos, de forma que se fez necessário ocupar as prefeituras municipais para cobrar estas reivindicações do poder local dos municípios (...)” (SILVA, 2008:p.42).

E estas lutas foram se intensificando:

Ainda em 1991, em Delmiro Gouveia, no Assentamento Lameirão, acontece o 1º Encontro Regional do MST, para discutir os rumos dos assentamentos. E no mesmo ano, em junho, é feita a primeira ocupação na prefeitura, pelos assentados do Peba e do Lameirão. para reivindicar professores, merenda escolar, posto médico, água para beber, dentre outras reivindicações necessitadas pelas famílias. (SILVA, 2008:p.27).

Até meados da década de 90, as reivindicações vão se dando em nível das prefeituras, muitas vezes, sem se ter resultados concretos e conquistas, pela própria forma como os gestores conduziam a gestão pública, bem como pela forte violência com que tratavam quem reivindicava ou os questionava.

É nesse contexto que se inicia a luta por escola. Nos acampamentos, praticamente não existiam escolas assistidas pelos municípios, e nos assentamentos, quando havia, se encontrava em estado precário. Assim, os acampados e assentados tinham que estudar nos povoados, fazendas ou usinas vizinhas, que tivessem escolas, ou irem para as cidades. Porém, na maioria das vezes, não iam às escolas e passavam a serem contabilizados nos indicadores de analfabetismo ou evasão escolar nos municípios e no estado.

Esta era uma situação que incomodava o conjunto do Movimento, que já compreendia que a luta pela terra era insuficiente para se avançar e construir os grandes objetivos do MST: a luta pela terra, pela Reforma Agrária e por mudanças estruturais na sociedade. Em âmbito nacional, no ano de 1998, foi criado pelo Governo Federal, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), acatando propostas e reivindicações de movimentos, entidades sociais e universidades brasileiras comprometidos com as lutas do campo.

Com a preocupação da necessidade de avançar na formação e escolarização dos trabalhadores, frente aos índices de analfabetismo alarmantes, no ano de 1998, o MST no estado, por meio de uma parceria com a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e o Incra, desenvolve o Projeto de Educação e Capacitação de Jovens e Adultos nas Áreas da Reforma Agrária em Alagoas (Projeral). O projeto teve como principais ações a alfabetização de jovens e adultos assentados e a complementação da escolarização, em nível fundamental, de outros jovens e adultos também trabalhadores rurais que assumiram a função de monitores.

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O projeto foi executado entre agosto de 1998 e dezembro de 1999, em 20 assentamentos, oito municípios, envolvendo um total de 1.224 jovens e adultos, distribuídos em 55 salas de aula. Esse processo contou com uma série de entraves, desde as questões orçamentárias, com atraso na liberação de recursos para a realização das metas estabelecidas, até as precárias condições de infra-estrutura nos assentamentos, indo da estrada de acesso à falta de cadeiras em salas de aula.

Os rumos que o Programa tomava, colocava em risco seu propósito de constituir-se como uma política de educação para o campo. Conforme SÁ, 2002, Apud BARRETO (1983):

O papel das políticas sociais no Nordeste, e em particular na área rural em que se situam os programas de educação rural, tem mais o objetivo de diminuir as tensões sociais geradas pela pobreza no campo, do que propriamente de enfrentar e resolver de modo satisfatório a questão do analfabetismo e do baixo nível de escolarização da região, ou de serem instrumentos de um modelo alternativo de desenvolvimento, tal como propugnam as teses que fundamentam os textos básicos que delineiam a atual política de ensino no país.

Com o término do Projeral e frente aos problemas enfrentados em sua execução, abre-se um vácuo até a aprovação do segundo Projeto – o Projeral II, que teria como meta dar continuidade à escolarização dos trabalhadores jovens e adultos. Em 2002, o Pronera retoma suas atividades em Alagoas e é marcado pelo aprofundamento dos problemas tidos anteriormente, indo somente até o ano de 2004.

Nesse momento, já existia um grande número de famílias assentadas e se intensificava a luta por estruturas para os assentamentos, tendo grande força a reivindicação por escolas, inclusive como uma condição necessária para a permanência de toda a família morando nas comunidades. Nesse processo, algumas poucas escolas foram construídas em aglomerações de assentamentos e assistidas pelo município. Porém, sem nenhuma preocupação ou trato com a especificidade da Educação do Campo.

Já havia também, mais elementos na compreensão do Movimento quanto à necessidade e importância da educação para a Reforma Agrária, não apenas como uma pauta de reivindicação de direitos, mas com elemento importante para sua própria organicidade, o que possibilita também o fortalecimento do Setor de Educação.

Nesse momento, a partir dos acúmulos obtidos com as atividades relatadas, dá-se início a discussão da Escola Itinerante, a partir de experiências que o Movimento tinha em outros estados, principalmente no Rio Grande do Sul. Afinal, os despejos eram frequentes e as crianças acampadas estavam fora da escola. Então, a Escola Itinerante entra na agenda política e na pauta de reivindicações do MST em Alagoas.

ESCOLA ITINERANTE PAULO FREIRE DOS PRIMEIROS PASSOS AOS DIAS ATUAISEM ALAGOAS

As primeiras negociações para o reconhecimento pelo poder público da Escola Itinerante teve

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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início no mês de abril de 2002, em uma audiência com o então governador do estado, Ronaldo Lessa. A audiência encerrou a Marcha Estadual, que saiu do Acampamento Dandara, em Arapiraca, para a capital do estado, Maceió, percorrendo mais de 130 quilômetros.

O tema sobre a Itinerante ganha destaque em 2004, quando, a partir do mês de julho, um grupo de educadores, vinculados ao Pronera, foi inscrito no Programa de Formação de Educadores do MEC (Proformação). Aqui, já se dava o processo de consolidação do Setor de Educação no Movimento Sem Terra em Alagoas.

Neste mesmo período, foi criado, o Fórum Estadual Permanente da Educação do Campo, em que as lideranças do MST começaram a pautar novamente a necessidade de se criar a Escola Itinerante para os acampamentos. Mas é no mês de outubro, segundo Gilberto Barden4, “que o sonho começa a se concretizar”, quando é realizado o 5º Encontro Estadual dos Sem Terrinha.

No último dia do encontro dos Sem Terrinha, em 10 de outubro de 2004, as crianças marcharam rumo ao Palácio do Governo Marechal Floriano Peixoto5 (atual República dos Palmares), com uma lista de reivindicações. Um dos pontos de pauta era a criação da Escola Itinerante para os acampamentos, de forma que atendesse as especificidades da realidade vivenciada pelas crianças acampadas. Na oportunidade, foi assumido o compromisso de iniciar a construção de um projeto para atender tal reivindicação, por meio da Secretaria Estadual de Educação e Esporte – SEEE/AL.

Assim, o Setor de Educação do MST intensifica os estudos e debates para a construção e apresentação do projeto da Escola Itinerante, com base na história e nas experiências de outros estados. Em abril de 2005, é instituída a Comissão Intersetorial para implementação do projeto de Criação da Escola Itinerante na rede pública de ensino do Estado de Alagoas, composta por diversos departamentos da SEEE/AL, Coordenadorias Regionais de Educação (CRE´s), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Comissão Pastoral da Terra (CPT6), Movimento Terra e Liberdade (MTL), Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) e o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC).

Foi com a instituição da Comissão Intersetorial que o debate da Escola Itinerante deixou de ser uma reivindicação apenas do MST, e assumida pelos outros movimentos e pela própria Secretaria de Educação, que passa a se debruçar sobre a temática, além de dialogar com outros setores, como o Fórum Estadual de Educação, o Conselho Estadual de Educação e a Universidade Federal de Alagoas, no intuito de percorrer os caminhos necessários para a efetivação das Escolas Itinerantes nos âmbitos da compreensão da Proposta Política Pedagógica e na esfera legal do estado.

Antes mesmo de instituída, a Comissão já realizava reuniões para debater o projeto pedagógico da Escola Itinerante, que começou a criar corpo a cada reunião realizada. Em maio de 2005, nos dias 18 e 19, Isabela Camini7 ajudou no debate sobre o que já havia sido construído no Projeto de Escola Itinerante de Alagoas. Assim, foi realizado um seminário para iniciar a interlocução, trazendo as experiências das Escolas Itinerantes do Rio Grande do Sul e Paraná. O evento forneceu subsídios para a reunião com o

4 Pedagogo, formado na primeira turma de Pedagogia da Terra.5 O prédio do palácio Marechal Floriano Peixoto foi transformado em museu, tendo a inauguração do atual palácio Republica dos Palmares em março de 2006, pelo governador Ronaldo Lessa.6 O Setor de Educação do MST foi representado por Gilberto Barden e a CPT pela Irmã Ligia.7 Membro do Coletivo Nacional de Educação do MST.

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governo, que ocorreu na SEEE/AL, com a presença dos diretores das escolas base, Comissão intersetorial, coordenadores pedagógicos, educadores das Escolas Itinerantes e representantes dos movimentos sociais envolvidos.

Na oportunidade, houve uma reunião, com um grupo de educadores do MST, no local definido para o funcionamento da primeira Escola Itinerante de Alagoas: o Acampamento Dandara8. Ali fora feito uma conversa com a comunidade sobre as expectativas da mesma sobre a Escola Itinerante. No momento, firmou-se o compromisso de que, em um curto espaço de tempo, três educadoras e o coordenador pedagógico iriam se deslocar para aquele acampamento para dar início à organização da Escola Itinerante.

No mês seguinte, junho de 2005, este grupo de educadores se desloca para o acampamento Dandara, dando início à implementação da Escola Itinerante, que começou com o cadastramento de todas as crianças do acampamento e um debate sobre o nome da escola. A comunidade definiu que aquela era a Escola Itinerante Paulo Freire. Em julho, deste mesmo ano, iniciam-se as aulas. Esta foi a única escola que funcionou independente de qualquer convênio firmado com o Estado, que passa a ser acordado somente no segundo trimestre de 2006, após a publicação no Diário Oficial do Estado, da autorização do Conselho Estadual de Educação, que aconteceu em 16 de março de 2006.

Após muitas reuniões e debates, a escola foi aprovada, em setembro de 2005, na forma de um projeto piloto, envolvendo quatro movimentos de luta pela terra, por meio do parecer 142/2005. Eram três turmas do MST, duas da CPT, duas do MTL e uma do MLST, atendendo crianças da primeira etapa do Ensino Fundamental, e mais outras duas turmas de jovens e adultos.

O governo disponibilizou material didático, alguns materiais permanentes e o pagamento dos educadores e coordenadores, por meio de um Termo técnico de cooperação entre a SEEE/AL e uma entidade parceira da Reforma Agrária. Mesmo assim, as crianças ficaram sem merenda neste primeiro ano, já que a merenda é ofertada pela Escola-Base, após a inserção no censo escolar. Foi necessária, então, uma discussão com a brigada e com o acampamento para a contribuição na merenda. Alguns alimentos da cesta foram repassados e os pais e acampados contribuíam. Atualmente, continuam no projeto o MST e a CPT, ambos com três turmas multisseriadas.

AS EXPERIÊNCIAS DAS ESCOLAS ITINERANTESEM ALAGOAS

A ESCOLA ITINERANTE NO MUNICÍPIODE ARAPIRACA

O sítio Sementeira, unidade abandonada da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Alagoas – Epeal, situado no município de Arapiraca, agreste alagoano, foi ocupado em 02 de fevereiro de 2002, com pouco mais de uma dezena de famílias, dando lugar ao atual acampamento Dandara. Ao final de uma semana, a ocupação já contava com 420 famílias, oriundas das cidades de Arapiraca, Lagoa da Canoa, Vila

8 O acampamento situa-se no agreste alagoano, a cerca de 130 quilômetros da capital, Maceió.

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Canaã, Capim e demais sítios vizinhos. Situado em uma área urbana, com pouco mais de 30 hectares de terra, o acampamento servia

como um espaço de formação e concentração de famílias conhecidas no trabalho de base. Foi neste acampamento que, em 2006, de maneira oficial, foram abertas três turmas da Escola Itinerante do MST. A Escola funcionava na “Casa Grande”, uma espécie de escritório da empresa, que dispunha de seis salas com piso vermelho e pouca iluminação, além de dois banheiros. Uma estrutura pouco adequada para o seu funcionamento diante do abandono que a mesma se encontrava desde a ocupação.

As educadoras da Escola Itinerante Paulo Freire eram: Áurea Cristina, Quitéria Paixão e Vera Lúcia, que já ensinavam as crianças do acampamento desde 2005, antes mesmo de sua autorização pelo Conselho Estadual de Educação. As três cursavam o magistério pelo Pronera e, com um calendário específico, desenvolviam suas aulas conforme o planejamento coletivo e aprendizagens do curso. Com a mudança de residência de uma educadora, não tendo outra para substituí-la, uma turma foi fechada, e seus alunos foram transferidos para as outras duas turmas.

Posteriormente, com a saída de algumas famílias do acampamento Dandara, uma das turmas é transferida para o acampamento Mandacaru, no município de Girau do Ponciano, com a educadora Quitéria. Permanecendo ali, apenas uma turma, agora assistida pelo educador Alexandre, que lecionava para 16 crianças, em uma turma multisseriada. O planejamento acontecia sempre junto com a educadora Quitéria, sob a orientação do coordenador pedagógico do MST, Sandro Roque. , como também das formações pedagógicas da escola base.

Após algumas dificuldades enfrentadas pelo educador, e com as famílias descontentes com o trabalho que era desenvolvido pelo mesmo, foi necessária uma nova discussão para o não fechamento da turma. Com muitas reuniões, avaliações e novos compromissos coletivos da coordenação do Movimento e das famílias acampadas, uma nova educadora, Maria Claudevânia, recém-formada em magistério, assume a turma.

A educadora iniciou suas aulas em março de 2008, motivando, comprometendo e compartilhando permanentemente as dificuldades e necessidades da Escola com as famílias, por meio de reuniões periódicas. Foram matriculados 18 educandos do 1° ao 5° ano. O planejamento continuava sendo construído mensalmente, juntamente com a educadora Quitéria. No início,o acompanhamento foi mais intenso, para conquistar a motivação dos pais e seus educandos, desde a realização de místicas ao desenvolvimento de projetos que levava a comunidade a participar da escola.

Com mais de sete anos de ocupação, o MST concebeu melhor a finalidade desta área de pouco mais de 30 hectares, em meio à cidade de Arapiraca, uma vez que já tinha claro que não seria para o assentamento de famílias. Assim, define pela constituição de uma Escola Agroecológica da Reforma Agrária9 que proporcionasse a escolarização, em especial a fundamental, com a qualificação técnica voltada para a agricultura camponesa. Desde o pensar tecnologias alternativas a uma nova matriz produtiva, por meio do ensino, pesquisa e extensão, que possa contribuir no desenvolvimento da produção nos assentamentos da Reforma Agrária do estado de Alagoas. E também realizar cursos não formais que permitam a abordagem

9 Este é um projeto que esta sendo discutido e construído pelo MST junto ao governo do estado e outras entidades parceiras.

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teórica com a prática.Desta forma, o acampamento deixa de receber novas famílias, visto que as atividades de

formação, estaduais e regionais, passaram a ser realizadas ali. O número de famílias que permaneceu na área foi diminuindo, chegando a ficar apenas 20 e não tendo crianças suficientes para continuar com a Escola Itinerante, foi encerrada em abril de 2009. As crianças que ainda permaneceram no acampamento foram matriculadas em uma escola de tempo integral numa comunidade vizinha, distante 300 metros, no Povoado Carasco.

A sala foi transferida para o acampamento Uruçu, no município de Craibas, na região do agreste alagoano. As reuniões e a mobilização no acampamento foram retomadas para as matrículas das crianças e pela construção da escola. As aulas tiveram início em julho de 2009, sob a orientação do educador João Clécio.

A ESCOLA ITINERANTE NO MUNICÍPIODE GIRAU DO PONCIANO

Com a saída das famílias do acampamento Dandara, em 2007, a Escola Itinerante Paulo Freire, as acompanha para o acampamento Mandacaru, no município de Girau do Ponciano. A educadora Quitéria acompanha a turma, mudando-se para o novo acampamento, que é de difícil acesso, situado entre as montanhas do município. Em tempo de chuva, por exemplo, o local fica isolado.

Quitéria é militante do MST e está envolvida nas atividades do Setor de Educação desde 1998. Fez o curso de magistério pelo Pronera. Sua turma é multisseriada e teve início com 30 educandos. Suas aulas são dinâmicas e interativas. A educadora desenvolve a mística, leitura, cultura e formação política e pedagógica. A turma é organizada por Núcleos de Base (NB) e, semanalmente, as crianças iniciam as aulas com a mística pensada por cada NB. As crianças, que se consideram Sem Terrinha, aprendem a ler e a escrever, mas também seus direitos e deveres. Reivindicam seus direitos em cada visita da SEEE.

Atualmente, a turma encontra-se com 18 crianças, as quais desejam continuar na Escola Itinerante e que, infelizmente, muitas terão que ser transferidas para outra escola a fim de continuarem os estudos.

A ESCOLA ITINERANTE NO MUNICÍPIO DE ATALAIA

A Escola Itinerante no município de Atalaia tem início em abril de 2008. O seu funcionamento, a princípio, se dá no prédio da Creche Dorcelina Folador10, no assentamento Milton Santos, pois é uma estrutura que ainda estava sem funcionamento e localizava-se em meio aos dois acampamentos que seriam

10 A creche Dorcelina Folador foi uma conquista do Movimento, que por meio de mobilizações conseguiu a construção do prédio, inaugurada em 2005. Mas está inativada, pois a prefeitura do município se nega a assumir a responsabilidade de funcionamento da creche.

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atendidos: Jaelson Melquíades11 e São José. Além das crianças destes acampamentos, a turma recebeu crianças dos assentamentos próximos, tendo uma turma multisseriada com 25 educandos.

A Secretaria Estadual de Educação exige que os educadores tenham Ensino Médio, com habilitação no magistério. Foi encontrado, com muitas dificuldades, no acampamento São José, um educador que se enquadrava nas condições da Secretaria, porém pelo pouco tempo de militância, ele não tinha conhecimento e domínio da Pedagogia do MST, necessitando de um acompanhamento mais próximo por parte do Setor de Educação.

Dada a emissão de posse do acampamento Jaelson, e o deslocamento das famílias para os lotes, a Escola Itinerante passou a funcionar na antiga casa grande do acampamento São José, atendendo agora apenas as crianças desse acampamento. A casa tem vários cômodos, iluminação precária, banheiros não equipados e, parte dela, se encontra destelhada. Mesmo assim, foi o lugar escolhido pela comunidade, por ser grande e protegido da chuva e dos ventos.

Com o atraso na liberação das parcelas do Termo de Cooperação, firmado com o governo do estado, e frente à necessidade de manter-se, o educador não pode continuar e desistiu de suas atividades. Seguiu-se a dificuldade de encontrar algum educador militante com a escolaridade exigida pela SEEE/AL. Para que a escola não fechasse, a coordenação do MST define pela indicação de uma educadora apenas com o Ensino Médio normal. Apesar dos esforços, a educadora não conseguiu desenvolver os tempos educativos, além de ter tido muitas dificuldades na relação com a turma.

No entanto, mesmo sem a efetiva firmação do Termo, por mais de oito meses sem renovação, e as turmas ficando prejudicadas, as aulas não pararam. A maior dificuldade dos educadores e da coordenação para manter o funcionamento das turmas era a falta de materiais didáticos e outros.

Atualmente, a escola funciona com a educadora Sandra, que se demonstra disposta a desenvolver práticas dinâmicas de leitura e formação.. Desenvolve atividades com textos do MST e projetos concomitantes junto ao acampamento, no entanto, sente dificuldades com mística e formação considerando ser esta a sua primeira experiência em sala de aula.

A Escola Itinerante, aqui, atende apenas a primeira etapa do Ensino Fundamental. Com isso, as crianças menores, de seis anos, ficam sem estudar e as que já passaram desta fase estudam na Escola Municipal do Povoado Ouricuri . O acompanhamento realizado pela coordenadora do Movimento acontece uma vez por semana, contribuindo no planejamento junto com a educadora da turma.

Apesar das dificuldades, as aulas são interativas e desenvolvidas conforme planejamento. A educadora consegue a participação da comunidade para resolução de problemas e união com a escola.

O PAPEL DOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO

A ESCOLA BASE

11 Dirigente Estadual da Brigada Carlos Marighella, assassinado em 29 de novembro de 2005, a mando do fazendeiro Pedro Batista.

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As Escolas Itinerantes são vinculadas à Escola-Base, que são selecionadas pela Coordenadoria Regional de Ensino. Para cada escola de acampamento é escolhida uma escola estadual mais próxima para arquivar toda a documentação. Sendo assim, temos duas Escolas-Base: Dr. João Carlos, em Atalaia e Dr. José Tavares, em Arapiraca.

A Escola-Base de Atalaia fica num pequeno povoado que enfrenta muitos obstáculos, pois é uma escola pequena, com uma péssima infra-estrutura. Não tem coordenação pedagógica, nem reuniões de planejamento e acompanhamento. O diretor está cursando a graduação e enfrentando diversas dificuldades para a realização de atividades de orientação de educadores. Apesar da disponibilidade do diretor em ajudar e apoiar a EI, não há um bom desenvolvimento da tarefa, pois ele não consegue sozinho, atender tantas demandas. Neste ano, a merenda escolar está sendo ofertada pela Escola-Base, pois as crianças foram cadastradas no censo. Os materiais didáticos e materiais de limpeza, até o momento, não foram ofertados. Segundo o diretor a verba para tal ainda não foi depositada.

A escola José Tavares está situada na zona urbana do município de Arapiraca. Possui mais condições estruturais, tem diretor e coordenador pedagógico. A escola foi a primeira a desenvolver atividades com a Escola Itinerante, sendo bastante exigente na questão documental e dando um apoio pedagógico intenso. Mesmo com a troca de diretor, a disponibilidade dos gestores está sendo muito favorável ao desenvolvimento da escola.

MST

O Movimento no estado está bem comprometido com a EI, tanto que, para a escola não parar de funcionar, tem viabilizado formas dos educadores os educadores e coordenadores se manterem, já que o novo convênio não foi aprovado. Nas mobilizações, o projeto sempre está em pauta. Apesar das dificuldades com pessoas para acompanhar exclusivamente as Escolas Itinerantes, o Movimento está ajudando no acompanhamento, nas reuniões e discussões dentro da SEEE e nos acampamentos.

A Direção Estadual, vendo a necessidade e a importância da escola para o estado, está organizando a abertura de mais três turmas, para atender cerca de 20 educandos, cada uma. No entanto, impossibilitado de sustentar as salas, pressiona a SEEE para a aprovação do atual projeto, que está parado no setor jurídico.

SEEE

A Escola Itinerante está vinculada ao Geduc, sendo de responsabilidade do gerente de educação do campo, José Raildo. Atualmente, o convênio está encerrado e o novo está em tramitação na SEEE, entre idas para o setor jurídico e voltas para o Geduc. O setor jurídico da secretaria sempre tem um empecilho para que o projeto volte. Por enquanto, a EI está legalmente funcionando, mas custeada pelo Movimento e atendida burocraticamente pela Escola-Base.

Apesar do gerente de educação do campo lutar internamente para o avanço da educação, principalmente com os movimentos sociais, nota-se a grande dificuldade do estado em atender as

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especificidades da EI. Com a troca de secretários, os desafios aumentam, pois a estrutura da secretaria é modificada. Hoje, não existe uma atenção especial voltada para a educação do campo, sendo que até esta gerência específica foi extinta.

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REFERÊNCIAS

DATASUS. Anuário Estatístico de Saúde do Brasil, 2008.

IBGE. Censo demográfico 2007. Disponível em:http://www.ibge.net/ibge/estatistica/populacao/censo2007/universo.php?tipo=31&uf=27>

LIRA, Fernando José de. Realidade, desafios e possibilidades: pensando em saídas para a crise de Alagoas. Maceió: Edufal, 1998.

SILVA, J.R.A. da. Da luta pela terra no Brasil: o MST em Alagoas. Curso Teorias Sociais e Produção do Conhecimento – UFRJ/ENFF. , , Rio de Janeiro – Julho de 2008.

SÁ, Maria Reneude. Conhecimento letrado e escolarização: a visão de camponeses assentados da reforma agrária em Alagoas, 2002. Dissertação (Mestrado em Educação).

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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Escola Itinerante no Piauí

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Adilson de Apiaim1

INTRODUÇÃO

Este texto busca sistematizar a experiência da Escola Itinerante do estado do Piauí nos acam-pamentos do Movimento Sem Terra, cuja origem visa forjar um processo educativo popular da luta pela terra, na conquista da Reforma Agrária e a transformação social. Para isso, conta como referência pedagó-gica a realidade social das famílias sem-terra.

Desse modo, a primeira parte deste trabalho será apontar um breve histórico da luta pela terra na região e, na segunda parte, se apresentará o método de construção do Projeto Político Pedagógico da Escola Itinerante, no período entre os anos de 2003 a 2008. Adiante, será apontado o processo de produção da proposta da Escola Itinerante como prática social e cultural do povo Sem Terra. Isto é, entendendo a educação como instrumento para fazer uma ponte de formação no que concerne aos objetivos dos quais emana a luta. Tendo a escola o compromisso de contribuir no processo de luta da Reforma Agrária e pela Educação do Campo, construindo a Pedagogia do Movimento do Sem Terra, a Itinerante trabalha práticas educativas de ensino-aprendizagem ligadas ao social, em que considera as dificuldades, os desafios e avanços, como marcas da construção do conhecimento.

Na terceira parte do texto, se busca refletir sobre as experiências das Escolas Itinerantes nos três acampamentos da região sul do estado do Piauí, na 12ª Gerência Regional de Educação. A proposta se consolida na luta do povo Sem Terra, nos processos efetivos das relações sociais, tendo como referência pedagógica a construção curricular dos temas geradores extraído da própria realidade cotidiana do acampamento. Para isso, é analisada a formação dos educadores, bem como o modo de elaboração do planejamento escolar e a prática educativa em sala de aula. Por fim, na última parte, são expostos alguns desafios e perspectivas que ao longo do processo foram surgindo diante desta experiência.

A RESISTÊNCIA CAMPONESA NO PIAUÍ

A experiência em desenvolvimento no Piauí tem um olhar para a região do nordeste brasileiro, que é marcada por contradições e disparidades socioeconômicas, políticas e culturais profundas, iniciadas e continuadas ao longo de sua história, expresso no trabalho escravo e materializado na monocultura (cana de açúcar, algodão e café), no latifúndio e no coronelismo2 .

1 Militante do Setor de Educação do MST e responsável pelo acompanhamento político das Escolas Itinerantes do estado do Piauí. É graduando em Licenciatura em Letras pela Universidade Federal do Pará.2 Coronelismo - Vocábulo cuja origem remonta aos falsos coronéis da extinta guarda nacional brasileira. Passou-se a ser chamado também de coronel, pelos sertanejos, todo e qualquer chefe político, a todo e qualquer potentado. A figura do coronel visualisa-se no fazendeiro, liderança política que se articula com o poder público para, de forma paternalista, arranjar favores, benefícios para a população rural, numa relação da patronagem e dependência que caracteriza o espaço rural brasileiro (Victor Nunes Leal. “Coronelismo, enxada e voto”, 1975).

ESCOLA ITINERANTE NO PIAUÍ

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Dado o contexto de desigualdade social e as condições de baixa qualidade de vida da maioria da população, o nordeste é também um lugar que, historicamente, os oprimidos constituíram formas de organização e resistência coletiva, recuperada da experiência de luta popular do passado histórico: Quilombos, Canudos, Ligas Camponesas e a Guerra do Jenipapo no Piauí. Atualmente, a luta dos movimentos sociais do campo pela realização da Reforma Agrária no país e, mais especificamente na região sul do Estado do Piauí, se expressa nas ações dos movimentos sociais do campo mediante a mobilização dos Quilombolas, Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outros.

O MST, em ocupações e acampamentos, vem contribuindo com a conquista de vários assentamentos pelo interior do país, território em que perdura ainda a falta de acesso às políticas públicas para os camponeses. Portanto, a história da luta pela terra e a Reforma Agrária no estado do Piauí se constrói junto a essas organizações do campo.

Dessa maneira, o MST nos últimos 25 anos vem se consolidando como principal movimento de resistência dos camponeses. Por intermédio das ocupações de terra denuncia a concentração do latifúndio, a grilagem e a posse de terras públicas ilegais. Participam também dessa luta diversas entidades sociais, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR).

No estado do Piauí, a primeira ocupação de terra ocorreu na Região do Semi-Árido, território geográfico conhecido hoje em dia como Região da Serra da Capivara, no município de São João do Piauí. Em 1989, 120 famílias derrubaram as primeiras cercas de um latifúndio, a 34 quilômetros da sede do município, na fazenda Marrecas.

Simultaneamente à luta pela terra, se iniciava o debate pelo direito à educação. Uma escola que pudesse atender às especificidades do campo e, em especial, que respeitasse a realidade social de seus sujeitos como ponto de partida no processo de formação e educação do povo acampado.

Todavia, no final de 2003, o debate em torno da educação no estado toma consistência com o início das discussões no Setor de Educação do MST, que elabora um Projeto Político Pedagógico de educação voltado ao atendimento dos camponeses em áreas de acampamentos da Reforma Agrária. Proposta esta que está de acordo com a realidade sócio-cultural desta população e busca transformar a sua realidade social. Dando início, então, à luta pela Escola Itinerante no estado do Piauí.

A HISTÓRIA DA LUTA PELA ESCOLAITINERANTE NO PIAUÍ

O projeto pedagógico da Escola Itinerante foi apresentado à Secretaria de Educação e Cultura (Seduc) do estado do Piauí como alternativa de educação aos acampamentos da Reforma Agrária organizados pelo MST. Tal projeto tomou como base as experiências de mesma natureza de outros estados brasileiros e a Legislação do Sistema Público de Ensino, como as Diretrizes Operacionais para a Educação

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Básica das Escolas do Campo, que possibilita entre outras coisas, a educação ao povo Sem Terra em situação de itinerância.

A Escola Itinerante nasce da necessidade do acesso à escola, especialmente das crianças em áreas de acampamentos. Na elaboração da proposta pedagógica compreendemos que é possível construir uma escola vinculada à vida política, social e cultural das famílias em movimento, vinculando-se ao tempo e ao espaço dos educandos como sujeitos. Ou seja, nas organizações populares toda a população participa e assume a responsabilidade de construir os princípios, objetivos e valores que orientam a ação pedagógica no cotidiano da escola. Notadamente, este projeto político-pedagógico não nasce fora da realidade de seu povo, isto é, inicia-se a partir de um conjunto de elaborações coletivas e nos debates nos quais a comunidade acampada se insere.

Esse percurso de elaboração da proposta de escola durou cinco anos, entre 2003 e 2008, com uma intensiva luta pela legalização, tendo a aprovação como experiência educacional reconhecida pelo Estado somente no dia 04 de agosto de 2008. Neste ano, o Conselho Estadual de Educação do estado do Piauí aprovou a Escola Itinerante por meio do Processo CEE/PI, n.º 306/20083, que regulariza a oferta de escolarização aos acampados. Esse momento de construção da Escola Itinerante representou uma longa história de idas e vindas, avanços e retrocessos, até a apreciação e aprovação pelo Conselho Estadual de Educação.

Alguns dos pontos principais desta caminhada serão delineados neste trabalho e, cada um deles, significa a síntese de uma luta que não tem tréguas. Afinal, não basta ter a Escola Itinerante regularizada. A cada dia ela se cria e recria entre educandos, educadores e comunidade na prática social e, por isso, deve ser refletida. A Itinerante representa um novo ideário de escola, sociedade, mundo e, junto com a comunidade, busca alterar o contexto social que se insere.

Desta forma, em 2003, foi apresentada a primeira proposta à Secretaria Estadual de Educação, juntamente com os responsáveis pela Supervisão de Educação do Campo (SEC) um departamento recentemente criado, resultado da mobilização do MST e dos demais movimentos sociais do campo. Esta supervisão tem o papel de acompanhar a educação do campo, em especial nas áreas de Reforma Agrária.

Neste período, haviam cinco acampamentos no Estado: 1º de Maio, no Município de José de Freitas; Francisca Trindade, Resistência Camponesa e 17 de Abril, em Teresina, e o acampamento tt, no município de Luzilândia, com aproximadamente quatrocentos educandos em período escolar nas séries iniciais. Nesses acampamentos, desde a origem do MST e no decorrer dos seus 20 anos de história no estado, há uma ‘escola de fato’, ainda que não de direito, mas com um trabalho pedagógico realizado pela própria militância do Movimento.

Em 1989, o ano em que o MST começa a ser implantado no Piauí, as escolas nos acampamentos eram vinculadas administrativamente às prefeituras municipais. A demanda por escola, entretanto, nem sempre era atendida pelos gestores municipais e a possibilidade iminente de mudança espacial do

3 Este parecer tem por objeto o Ofício SUPEN nº 51/08 no qual a Superintendente de Ensino da Secretaria Estadual de Educação e Cultura (Seduc) solicita autorização deste Conselho para a implementação do Projeto Escola Itinerante a ser assumido institucionalmente pela Escola Paulo Freire, localizada em São João do Piauí, no assentamento Marrecas. Os autos do processo protocolado sob o nº 306/2008, após diligências promovidas pela relatoria, encontram-se instruídos satisfatoriamente para os fins a que se destinam.

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acampamento para outro município impedia a permanência das crianças nas escolas. À medida que a escola muda de município, esta deixava de ser uma responsabilidade do seu gestor e passa a ser do prefeito no município em que se encontra a nova sede do acampamento. Estas situações fizeram da educação escolar nos acampamentos o “calcanhar de Aquiles” dos acampados.

Entre os anos de 1989 e 2003, geralmente, as aulas aconteciam de forma localizada nos acampamentos e, muitas vezes, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Educação, o que acarretava a subordinação da atividade pedagógica aos interesses políticos dos gestores locais, gerando divergências e desgastes políticos na luta pela terra. Isto acabava por tirar a autonomia do Movimento de realizar o método de ensino já construído em sua pedagogia.

Deste modo, o MST se contrapôs à forma de educar do município e elaborou uma nova forma de perceber e realizar a educação no acampamento. Ou seja, a dimensão educativa do Movimento está presente no cotidiano do próprio movimento social e na dinâmica de organização e mobilidade do acampamento. Na avaliação do Movimento, a relação com os municípios, acima descrita, acarretou diversos prejuízos para o avanço da proposta de educação do MST, o que levou a uma reivindicação política do Movimento por uma escola pública estadual em áreas de acampamento da Reforma Agrária. Assim, em 2003, foi elaborado a proposta pedagógica da Escola Itinerante, com o objetivo de fazer valer a obrigatoriedade e responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação. Então, em 2008, tem início a consolidação dessa proposta.

Assim, no período de 2003 a 2007, a luta pela escola não obteve resultado prático, concreto e legal. Porém, foi um período de maturação, elaboração teórica, reflexão e mobilização para pressionar a Secretaria de Educação Estadual a cumprir seu compromisso com a população acampada.

Paralelamente, o Movimento iniciava a formação e capacitação dos educadores juntamente com a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da Agricultura Familiar (Fetraf) e o Incra. Nesse período, formamos duas turmas de Magistério pelo Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (Pronera), somando 84 educadores para atuar nas séries iniciais e na escolarização de jovens e adultos, de forma a atender a demanda de educadores em áreas de assentamento.

No início de 2007, a demanda da Escola Itinerante foi apresentada ao governo do Piauí, por meio da Escola Estadual de Ensino Médio Paulo Freire, para o cumprimento da infra-estrutura e consolidação das metas a seguir: a) organizar três Escolas Itinerantes no estado, como projetos de experiências-piloto durante dois anos; b) contratar o quadro pessoal para estas escolas; c) realizar encontros de capacitação e formação permanente dos educadores; d) garantir infra-estrutura da escola, materiais pedagógico, didático e permanente.

Somente em 2008 saiu o parecer do Secretário de Educação e Cultura do Estado do Piauí, Antonio José Castelo Branco Medeiros e do Conselho de Educação do Estado, em nome de Diogo José Ayrimoraes Soares4, aprovando a Escola Itinerante como experiência pedagógica. Esse documento

4 Parecer CEE/PI nº 142/2008. Opina favoravelmente pela autorização da Escola Paulo Freire da rede estadual de ensino, localizada em São João do Piauí, para funcionar como suporte institucional do Projeto Escola Itinerante nos acampamentos dos Sem Terra, na região sul do estado. PROCESSO CEE/PI Nº: 306/2008. INTERESSADO: Secretaria Estadual de Educação e Cultura. ASSUNTO: Autorização de curso em regime experimental. RELATOR: Cons. Diogo José Ayrimoraes Soares. APROVADO: 04/08/2008. Estado do Piauí, Conselho Estadual de Educação, 2008.

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reconhece e aprova a realização das primeiras experiências educacionais nos acampamentos da regional sul, no município de São João do Piauí, acompanhada pela 12ª Gerência Regional de Ensino (GRE).

O referido Secretário de Educação do Estado, em audiência com representantes do MST, se comprometeu com a efetivação da Escola Itinerante, em especial em garantir: a remuneração e capacitação dos educadores e a liberação de materiais permanentes e didáticos para a demanda apresentada. Fora previsto que a cada dois meses de trabalho nas escolas, os educadores fariam uma atividade de formação, com 40 horas de duração, para refletir, estudar e aprofundar a prática pedagógica.

Houve também a proposta de liberação de um coordenador pedagógico para acompanhar a experiência, mas o governo não autorizou. Assim, a Escola Paulo Freire permaneceu sobrecarregada com uma coordenadora pedagógica para acompanhar o Ensino Médio no assentamento e também as três Escolas Itinerantes nos três acampamentos5. Mesmo assim, os educandos dos três acampamentos foram matriculados na Escola Paulo Freire, no começo de 2008. A demanda realizada cumpre o intuito de exigir o compromisso do Estado na contratação de 10 educadores para compor o quadro docente, sendo três educadores do acampamento e sete educadores de assentamentos, e também três trabalhadores para serviços gerais. Compondo, desta forma, o quadro pessoal de 13 trabalhadores com contrato temporário e remuneração de 20 horas cada.

Portanto, o projeto da Escola Itinerante é uma construção social e pedagógica que contempla as pessoas dos acampamentos do MST que lutam pela posse da terra, e tem como objetivo a conquista de uma educação digna, como garantia de seus direitos constitucionais. A seguir, apresentamos os primeiros e importantes passos desta experiência em curso no estado do Piauí.

ESCOLAS ITINERANTES: UMA EXPERIÊNCIAEM PROCESSO NOS ACAMPAMENTOS

As famílias, desde o início da construção do MST, ocupam um lugar central na constituição e legitimação da luta pela terra e Reforma Agrária e, acima de tudo, na luta por melhores condições de vida. Com o objetivo de massificar a luta no estado, em outubro de 2005, foram realizadas três ocupações de latifúndios improdutivos na região de São João do Piauí. A estratégia era intensificar a organização do MST na Serra da Capivara e lutar contra a política assistencialista de assentamento do governo do estado, via Crédito Fundiário.

Fruto desta luta, o acampamento Herdeiros de Che, localizado a 11 quilômetros do município de Nova Santa Rita, reuniu 150 famílias das regiões próximas como São Pedro do Piauí, Pedro Laurentino e Nova Santa Rita, na ocupação da fazenda São José.

Outra ocupação da fazenda Pajeú - latifúndio que “pertencia” ao senhor Dandau - foi realizada no mesmo dia, 08 de outubro, formando assim o acampamento Ernesto Che Guevara, com aproximadamente duzentas famílias de agricultores sem-terra. A área possui 1.118 hectares e está localizada no município de

5 Coordenadora Pedagógica da Escola Paulo Freire e das três Escolas Itinerantes dos acampamentos que compõem a 12ª GRE, Maria Marinalva de Araújo.

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João Costa do Piauí, a 46 quilômetros do município de São João do Piauí. A terceira ocupação, realizada por esse conjunto de mobilizações de camponeses sem-terra no

estado, aconteceu no dia 03 de novembro do mesmo ano, e formou o acampamento Barras6, no município de Ribeira do Piauí, a 70 quilômetros da sede Regional de Educação. ocupação não temos ainda o levantamento dos dados da fazenda, pois a inoperância do INCRA não permitiu contabilizar a área depois de quase quatro anos de ocupação.

Nos últimos três anos de ocupação as famílias enfrentaram várias dificuldades. Se alojaram debaixo de árvores e ficaram totalmente sujeitas às intempéries. A água é de difícil acesso até os dias atuais, sem condições básicas de higiene, além de muita salinização em um dos acampamentos. No entanto, com todas essas dificuldades, as famílias resistem acampadas e é ali que se realiza a experiência pedagógica das Escolas Itinerantes no Piauí.

AS ESCOLAS ITINERANTES

A conquista da escola dos acampamentos se configura como um processo coletivo de organização e participação da comunidade acampada na vida da escola. A primeira necessidade dos camponeses é a conquista da terra e, para manter-se nessa luta e resistir, foi preciso também a compreensão do papel da educação. Ressaltamos que o MST, desde sua origem, procura educar e escolarizar os filhos da terra pra compreenderem melhor a realidade que enfrentam.

As comunidades dos acampamentos, ao se convenceram da necessidade de instituir uma escola nos respectivos acampamentos, iniciaram os mutirões para a construção das mesmas. A comunidade Nova Santa Rita reuniu o acampamento Herdeiro de Che e decidiu em coletivo a distribuição de tarefas para cada Núcleo de Base na construção da escola. Contudo, antes de iniciar o processo, deliberaram que a escola iria funcionar em um barraco desocupado no acampamento. Para isso, ele seria reformado.

Assim, cada núcleo de família ficou responsável por uma parte da reforma da escola7. Uma das atividades foi comum a todos: a fabricação de adobes8. Cada companheiro, dentro de seu núcleo, tinha uma quantidade de adobes a ser fabricado. A cada semana um núcleo fabricava uma quantidade de adobes e, em seguida, outro núcleo com o mesmo espaço, tempo e as mesmas ferramentas dava continuidade na fabricação, até chegar à quantidade necessária para levantar a escola.

A lição extraída durante a fabricação dos adobes e a reforma da escola fortaleceu os valores defendidos pelo Movimento: o companheirismo e a solidariedade. A disponibilidade e a força de vontade entre os acampados em alterar a realidade coletivamente fortalecem a luta pela transformação social, como

6 Desta ocupação não temos ainda o levantamento dos dados da fazenda, pois a falta de agilidade do INCRA não permitiu contabilizar a área depois de quase quatro anos de ocupação.

7 Núcleo de família ou Núcleo de Base é um termo usado pelo MST para organizar o acampamento. Esse grupo varia de 10 a 15 famílias, e cada um possui um coordenador e uma coordenadora e mais uma secretaria. Todas as discussões e encaminhamentos referentes à luta e à organização do acampamento passa por esses grupos de famílias, ou seja, o Núcleo de Base é a célula organizativa do Movimento Sem Terra.8 Material de barro utilizado na fabricação do tijolo, mas com um viés artesanal que tem a mesma função do tijolo mássico na construção de casas de material.

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ressaltou o educador João Batista Gonçalves, ao afirmar que “só coletivamente seremos capazes de resistir a todas essas dificuldades”.

Nesse sentido, para a consolidação deste ambiente educativo, uma dispensa para a cozinha, as paredes, o telhado, e o piso foram reformados, as portas foram colocadas o reboco feito e as madeiras substituídas. A reforma foi realizada e deu-se início às aulas. Com o tempo, a comunidade do acampamento construiu uma escola em todas as áreas de ocupações. Além dessa estrutura, as comunidades escolares precisavam de carteiras, quadro de giz, gás para o funcionamento das aulas de EJA no turno da noite e fogões para fazer a merenda escolar.

Devido à carência desses materiais, formou-se uma comissão para negociar e participar de audiências com secretários de educação dos municípios, com o objetivo de solicitar materiais permanentes. Outra dificuldade enfrentada foi a falta de material didático. Os acervos que as escolas possuíam eram doações do Banco do Brasil, do Projeto de Escolarização e de outras entidades. O pouco que se conseguiu da Seduc foi distribuído pela Escola-Base Paulo Freire.

A distribuição deste material foi realizada pelos caminhões de “pau de arara”, utilizado na feira dos pequenos agricultores, que acontece toda segunda-feira no município de São João do Piauí. Estrategicamente, a direção da Escola-Base Paulo Freire, no assentamento Marrecas, fez uso deste transporte, que retorna com os produtores às suas comunidades, para levar o material didático até as Escolas Itinerantes. Atingido o mínimo necessário para começar as aulas, as comunidades com mais tempo disponível começaram a construir a escola com uma estrutura mais sólida. Foram criados núcleos para discutir a organicidade e funcionamento da escola nas três áreas de acampamento, onde cada membro da comunidade assume uma responsabilidade na consolidação do referido espaço formativo.

Adiante, após a aprovação do projeto das Escolas Itinerantes em 2008, a dificuldade inicial se ateve à matrícula das crianças nas Escolas Itinerantes. Como a Secretaria de Educação não havia lançado no sistema a matrícula dos educandos, os pais que tinham seus filhos matriculados nas escolas do município ficaram receosos de perder o ano letivo e inicialmente resistiram em transferir seus filhos para as escolas do estado recém instituídas. Por conseguinte, as famílias do acampamento temiam perder o benefício do Programa Bolsa Família, já que um dos pré-requisitos para receber tal contribuição é manter as crianças na escola, e não havia como comprovar que as crianças estavam matriculadas e também sua frequência escolar.

Diante deste limite, foi necessário um bom diálogo com todas as famílias acampadas para reverter este problema e garantir a matrícula dos educandos no sistema estadual de educação. Assim, foram feitas as transferências, o que não acarretou nenhum prejuízo à população pelo contrário, a Escola Itinerante se constituiu uma conquista de toda comunidade acampada.

O nome Itinerante agora tem significado próprio para o povo. É uma obra construída coletivamente, o que simboliza grande avanço entre os processos formais de escolarização e as relações sociais de convivência. O que mais encanta são os aprendizados que vêm dos próprios sujeitos da organização, ou seja, o próprio Movimento constrói conhecimento e a escola. Essa proposição vem da necessidade de obstruir a concentração da propriedade, da riqueza e do conhecimento, na busca de empregos, trabalho, moradia e acesso à educação.

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Entretanto, todo esse processo de lutas e conquistas não foi o suficiente para garantir a permanência das famílias no acampamento. O número de educandos nas Escolas Itinerantes vem gradativamente diminuindo devido, principalmente, aos seguintes fatores: a) o atraso no repasse da cesta básica para a alimentação das famílias; b) a dificuldade de acesso à assistência médica; c) a falta de incentivo na produção; d) a inexistência de uma infra-estrutura para a construção das barracas; e) a lentidão na implementação do projeto de assentamento do Crédito Fundiário na região. Todos esses fatores contribuem para a desmobilização das famílias acampadas e se constituem em obstáculos para os acampados. Nesse sentido, atualmente temos o seguinte cenário nas Escolas Itinerantes no estado do Piauí:

Portanto, esses obstáculos interpostos a todo o momento demonstram que a consolidação desta escola vem do próprio esforço do MST, que intensifica sua ação em torno da luta pela educação. Hoje é possível dizer que ela é reconhecida pelo sistema público de ensino em virtude do empenho de toda a comunidade acampada.

OS EDUCADORES E A SUA FORMAÇÃOA proposta de formação dos educadores na Escola Itinerante reflete sobre o significado, o

papel e a importância da prática pedagógica emancipatória na vida dos camponeses, sobretudo o papel social que ela representa na alfabetização e escolarização do sujeito Sem Terra. Trabalhar a realidade de um currículo que une o conhecimento humano, político, social e cultural, é uma das tarefas primordiais dos educadores. Compreende-se que educação do campo pressupõe o jeito pelo qual o ser humano se enraíza, produz existência na terra e constrói, a partir dessa relação, conhecimentos necessários para intervir na realidade com mais qualidade. Na formação e escolarização da Escola Itinerante, os saberes empíricos (a roça, o manuseio das ferramentas de trabalho, a convivência com os animais e a natureza) são elementos necessários para a construção das aulas e das reais necessidades dos camponeses como protagonistas da história.

A formação e educação se lançam no desafio de construir um processo de qualificação

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contínua e coletiva, voltada para realidade cotidiana da escola e comunidade. Nesse primeiro momento, dois desafios tornaram-se fundamentais. Primeiro, construir um processo de capacitação inicial com o objetivo de formar os educadores para atuar nas áreas de Educação Infantil, Ensino Fundamental (séries iniciais) e Educação de Jovens e Adultos; segundo, estudar e elaborar o Projeto Político Pedagógico das Escolas Itinerantes em cada acampamento.

Entre 24 e 27 de abril de 2008, realizou-se o I Encontro de Capacitação e Formação de Educadores das Escolas Itinerantes, no município de São João do Piauí, com a presença de vários segmentos envolvidos na experiência . O trabalho de formação foi realizado na perspectiva que a educação precisa emancipar o sujeito, formar educandos e educadores críticos e reflexivos, com uma visão dialética da realidade, tendo em vista que a educação reproduz ideologia. A capacitação se ateve ao compromisso de formar educadores com visão crítica, não tecnicista e mecânica. Formar pessoas realmente ativas na pedagogia social 9, para que cada educador assuma uma prática coerente e que aspire concepções coesas com o ideário de classe que pertence. Ou seja, o Movimento compreende que não basta conquistar a escola, é preciso também, junto às instituições competentes, formar seus educadores 10.

Os educadores são filhos de famílias assentadas da Reforma Agrária, que assumem o compromisso com a Pedagogia do Movimento, além de se inserirem no acampamento e conquistar a educação como espaço de transformação social. Assim está sendo a construção da Escola Itinerante no estado. O educador assume uma tarefa fundamental na formação do conjunto da organização do acampamento e da escola:

Para além dos planos de aula, da secretaria e do planejamento, nós temos a função de ajudar na prática do dia a dia do acampamento, nas reuniões, assembleias, trabalho coletivo, nos mutirões, e em tudo que é possível ajudar. Como na escola, nós somos meio tudo, educador, pesquisador e estudante, ajudar a organizar o acampamento e a resolver os problemas da vida que vai surgindo. Como força tarefa, somos um educador/militante. (Samara Pereira de Oliveira, Educadora da Itinerante, 2008)

No entanto, os educadores sistematizam as próprias práticas pedagógicas e constroem

conhecimento em respeito à dinâmica social de luta da comunidade acampada. Uma lição a extrair desse processo, é a responsabilidade que os educadores assumem no acampamento, de residirem junto às famílias acampadas, sendo filhos de pais assentados.

Constata-se que o pertencimento do educador como integrante da comunidade é essencial para o trabalho coletivo de ensino e aprendizagem dos educandos. Assim, ele assume a identidade e o compromisso social de modificar o que está estabelecido pelo sistema de ensino tradicional. Nesta perspectiva, os educadores envolvidos na construção de uma nova pedagogia para e pelos camponeses se sentem parte integrante no processo formativo.

A cada dois meses de atividades em sala de aula, os educadores se reúnem para dialogar e

9 Corpo docente da Escola-Base Paulo Freire; Supervisão de Educação do Campo da Seduc; dirigentes do Setor de Educação do MST; o responsável pela coordenação pedagógica da Escola Itinerante; 12 educadores da Escola Itinerante; Coordenação do Centro de Formação da Escola Agrotécnica Francisca Trindade.Ver Pistrak, Fundamentos da Escola do Trabalho. Ed. Expressão Popular. São Paulo, 4ª ed. 2005.10 Ver Antônio Gramsci. Cadernos do Cárcere. Volume 2. Os intelectuais; O principio educativo; Jornalismo. 1891-1937.

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planejar sobre todos os aspectos que envolvem a prática docente no acampamento. Antes de realizar o encontro, um dos responsáveis pelo Setor de Educação, a coordenação pedagógica da Escola-Base Paulo Freire e representantes da Instituição Estadual de Educação, realizam o diagnóstico das dificuldades, dos limites e desafios da escola, e elaboram intervenções por meio da capacitação. A convicção construída na proposta da Escola Itinerante é assumir o compromisso e realizar uma nova forma de educar, em que: “... a escola deve educar as crianças de acordo com as concepções, o espírito da realidade atual, adaptando-se a ela e reorganizando-a ativamente” (Pistrak, 2005 p. 33).

Os elementos elaborados na proposta de capacitação e formação propõem refletir a materialidade da metodologia de ensino na escola, em diálogo com os conhecimentos científicos sistematizados pela humanidade. A cada encontro são quarenta horas de capacitação (com interstício de dois meses), no qual todos se organizam para discutir a prática pedagógica realizada nas escolas. Essas atividades são construídas na Escola Agrotécnica Francisca Trindade - EAFT, ou na própria sede da Escola-Base Paulo Freire, junto com todos os responsáveis políticos da organização do projeto e da Supervisão de Educação do Campo.

Nesse espaço, é problematizado o fazer cotidiano de cada educador e, na discussão, todos ajudam a elaborar cada prática em sala de aula, área do conhecimento ou segmento escolar, seguida dos estudos de alguns textos de pensadores que compactuam com a proposta destacada11. Depois, é construído um planejamento escolar, que tem como princípio a realidade e a metodologia de ensino, baseado nos temas geradores, conforme orientações da educação popular. Essa dinâmica de formação foi realizada em quatro tempos de cinco dias cada.

PLANEJAMENTO: UMA NOVA FORMA DE VERA ESCOLA E CONSTRUIR O SABER

A educação no Movimento Sem Terra diz respeito à dimensão cultural presente no cotidiano da vida social de seus sujeitos. Procura valorizar as múltiplas relações humanas que a comunidade acampada ou assentada se insere. Tendo a realidade como base concreta de estudo, entendendo que o próprio Movimento, na maneira pela qual se organiza, já demonstra na experiência histórica seu processo de educação. Para consolidar a educação, foi preciso partir da execução de um planejamento escolar que responda as necessidades em que se encontra: que plano de aula é possível construir na prática pedagógica? Que conteúdos são socialmente úteis à vida desses educandos? Que currículo possibilita à ação próxima a realidade?

Se o currículo é movimento, realidade, construção e transformação do conteúdo em ação, logo, há uma proposta clara de educação no campo nas Escolas Itinerantes. Dessa maneira, o currículo tem a função de qualificar o ser humano na produção da existência na terra, construindo conhecimentos necessários para intervir com qualidade e dignidade. A elaboração e ação do plano de aula, e o planejamento, devem respeitar a dinamicidade que é construída na coletividade. Isto é, os educadores se reúnem semanalmente ou mensalmente para discutir, debater e identificar os avanços, limites e desafios e, por fim, traçar as

11 Ver estudos dos materiais de formação nos escritos de CALDART; FREIRE; GRAMSCI; MAKARENKO; PISTRAK.

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diretrizes para as próximas práticas em sala de aula. Dentre os desafios do Movimento na escolarização em acampamentos estão a mobilização da

comunidade em torno da luta pela Reforma Agrária, reiterar a mística em torno da educação da sua base, organizar as famílias para o trabalho coletivo e cooperado, e pressionar o Estado para que viabilize as condições materiais para o funcionamento da escola e a formação permanente dos educadores.

Na Escola Itinerante no Piauí, o currículo tem função de construir o conhecimento com os educandos a partir da realidade. Ao término da pesquisa de campo na, e com a comunidade pelos educadores, se realizam momentos de socialização com análise e debate dos dados levantados. A partir da sistematização dos dados coletados na pesquisa, é extraída uma questão problema e, portanto, se elabora o eixo temático, por meio do trabalho interdisciplinar, para propor os conteúdos que serão abordados na comunidade e na escola. Esse processo é significativo para as reflexões sobre o currículo e na elaboração dos planos de aula . Segundo uma das educadoras:

“Entender a realidade não é um ato de passar a mão para alguns problemas que vão surgindo na vida do acampamento. É entender da vida dos alunos que se dá com a nossa relação que temos com a prática social, vividas nos acampamentos. É através do interesse de entender essa realidade que vamos, aos poucos, mudar, por meio de orientação, e colocar a situação de nossa prática no acampamento para dentro da sala de aula. Precisamos então trabalhar na escola um plano de aula onde as pessoas se sintam responsáveis: sentem, conhecem, pensam e fazem parte do que lhes são de interesse”. (Percina dos Santos. Acampamento Herdeiros de Che, 2009).

O exemplo de uma prática social na formação e escolarização ocorreu na comunidade Herdeiros de Che, que, ao promover um mutirão de limpeza, envolveu toda a comunidade acampada com as seguintes atividades: recolher o lixo; varrer o pátio dos encontros e assembleias; fazer o embelezamento e a ornamentação dos espaços e podar árvores. No dia seguinte, a escola promoveu uma celebração religiosa em que as crianças participaram da leitura de trechos da Bíblia, dos pedidos de benção, na oração e na animação dos cânticos. Por outro lado, os educadores cuidaram do almoço comunitário e todas as famílias se responsabilizam pela confraternização do acampamento.

Na parte da tarde, a comunidade se reuniu para estudar os princípios éticos que norteiam o acampamento e o MST. Em seguida, foi debatida a trajetória da vida e os valores de Ernesto Che Guevara, que dá nome ao acampamento. A discussão foi mediada e problematizada pelos educadores da escola. Já no período da noite, a comunidade assistiu a um filme, seguido de um churrasco comunitário.

A lição extraída é de que é possível a comunidade fazer parte do processo de ensino e aprendizagem, em uma dinâmica de respeito à cultura como fonte de produção do conhecimento. Todavia, a aula na Escola Itinerante é mais que ler e escrever, calcular, brincar, desenhar e pintar. É criar e recriar o mundo, inventar e reinventar a própria vida no acampamento. Ou seja, busca refletir as relações sociais e a vida no acampamento, transformando a realidade em conteúdo socialmente útil à vida de cada sujeito que dela faz parte.

Na Escola Itinerante Odair Carvalho de Sousa, no acampamento de Barras, outra prática pedagógica é planejada e executada a partir do social: a fabricação de medicamentos caseiros. Os educandos

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pesquisam os tipos de plantas medicinais existentes no território do acampamento e as receitas caseiras para cada tipo de enfermidade e prevenção.

A pesquisa de campo é uma importante atividade prática, na qual os educandos observam o solo, a vegetação, o espaço geográfico, os rios, enfim, o meio ambiente de modo geral, e refletem sobre sua relação e da comunidade com a natureza.

Após a coleta de sementes e das plantas medicinais, todos organizam os recursos recolhidos na escola e explicam o que descobriram. Para melhor entendimento da função de cada planta, contamos com a participação do representante da Associação de Produtores de Remédio Caseiros do Assentamento Marrecas (Grecam), para realizar uma oficina de composição dessas plantas.

Os educandos produziram alguns medicamentos que ficaram disponíveis para o conjunto da comunidade acampada. Todo o processo da pesquisa teve continuidade em sala de aula, pois a função de cada planta virou conteúdo de sistematização do conhecimento dos educandos. Este é um exemplo concreto de que é possível a realidade virar conteúdo de alfabetização e escolarização, isto é, fazendo com que a vida da comunidade se insira no contexto escolar.

A Escola Itinerante propõe realizar ações novas, não mecanicistas, mas a partir do método dialético que relaciona teoria e prática, numa relação dialógica entre educando, educador e mundo social. Desta forma, o currículo presente no planejamento ratifica um diálogo com a estrutura prevista na filosofia da Escola Itinerante, expressa por uma educadora:

A Itinerante é um projeto novo, é uma experiência muito boa, é uma nova forma de educar trabalhando a vida dos educandos. Isso constrói uma aprendizagem com mais facilidade e mais rápido. Mas desenvolver as atividades como tem que ser feitas é muito difícil, por que, nunca trabalhamos dessa forma antes, e a escola que fomos formados é tradicional, agora sabemos que é possível com a prática. (Djanete Oliveira Araújo, Educadora da Escola Itinerante, 2008).

Portanto, precisamos explicar e construir as aulas a partir da vida dos trabalhadores, para

melhor compreender as relações sociais. Não se transforma o mundo, se a vida cotidiana não mudar, se a prática social não mostrar a diferença. A educação não pode ser revolucionária se não conseguir projetar a revolução cotidiana na comunidade, caso contrário, tudo ficará à mercê dessa sociedade a qual estamos submetidos. Enfim, a escola, a educação e o cotidiano, mudam se os sujeitos determinarem que eles precisem mudar, e se puserem a agir.

DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Desde sua origem, a Itinerante foi pensada e projetada no MST pelo conjunto da comunidade acampada. Não podemos ser ingênuos de imaginar que nesta experiência não existem limites e desafios. Afinal, as pessoas se educam e se humanizam exercitando escolhas sobre o processo na vida em que estão inseridos. E o confronto com a realidade aponta para os limites da escola e do acampamento, tendo a necessidade de se refletir e avançar no processo de luta pela Reforma Agrária.

O primeiro desafio das Escolas Itinerantes do estado do Piauí é intensificar a relação de

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proximidade entre a escola e a comunidade. Para isso, a escola deve continuar sendo pensada e planejada pelo conjunto das famílias acampadas, no intuito de responder a seguinte questão: como a escola pode ajudar a avançar nas relações sociais e na vida da comunidade? Desse modo, os acampados podem refletir sobre as condições materiais da vossa realidade e elaborar estratégias de ações coletivas que busquem um aprendizado contínuo que conteste e altere a vida material do acampamento.

O desafio seguinte consiste em criar o coletivo de educadores para que o processo de ensino-aprendizagem, a organização da escola, a elaboração dos planos de aula e dos conteúdos, a mística e a difusão dos princípios e valores éticos da organização, esteja integrada à participação da comunidade.

A formação permanente dos educadores é o terceiro desafio para as Escolas Itinerantes. O MST deve buscar alternativas para avançar na qualificação dos educadores para que eles possam, em princípio, contribuir para o avanço da escolaridade no acampamento e, por conseguinte, ajudar na organização política do acampamento e na organicidade do Movimento.

O quarto desafio proposto é trabalhar a interdisciplinaridade. Isso consiste em avançar em uma formação não seriada, mas que contemple as áreas do conhecimento sem fragmentar os conteúdos, alheios às condições materiais dos acampados.

O último desafio pretende fortalecer as Escolas Itinerantes como experiência pedagógica do MST. Para isso, a comunidade acampada tem que se manter mobilizada, reforçando os vínculos da solidariedade e do trabalho coletivo como instrumentos de luta pela Reforma Agrária. Afinal, a Escola Itinerante surge da luta pela terra, nela se consolida e se forja novos aprendizados. E assim, a Escola Itinerante se institui como unidade de resistência e símbolo da luta dos Sem Terra no acampamento.

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REFERÊNCIAS

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1983.

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002, 6v.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.

MAKARENKO, Anton. Vida e Obra. São Paulo: Expressão Popular, 2002.

PISTRAK, M.M.M. Fundamentos da Escola do Trabalho. Ed. Expressão Popular. São Paulo, 4ª ed. 2005.

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Sandra Luciana Dalmagro1

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é refletir sobre o papel da Escola Itinerante do MST, considerando-se o acúmulo existente nestes 20 anos do Setor de Educação, tendo como pano de fundo a luta do Movimento e as possibilidades da escola.

O termo papel/função da escola não será utilizado aqui com uma conotação meramente funcionalista, terá o sentido de afirmar que a instituição escolar, e portanto também a Escola Itinerante, tem uma especificidade, um papel a desempenhar, um sentido social, considerando-se sua condição de escola em um movimento social que luta por transformação. O papel ou o sentido social da escola não tem sido consensual entre os filósofos e historiadores da educação e nem tem sido iguais os papéis atribuídos à escola na atualidade. São diferenças e antagonismos que decorrem de distintas formas de entendimento do mundo e especialmente da luta de classes, cujo antagonismo de interesses gera oposições no papel atribuído à escola. Este texto, portanto, busca identificar um sentido (direção) à Escola Itinerante, considerando-se a atualidade da luta de classes, da qual o MST é uma parte importante. Para tanto, este texto se divide em três momentos. No primeiro, indicamos alguns elementos em torno da constituição histórica da escola, em vista de melhor conhecermos este espaço do qual muito se fala, mas pouco se aprofunda; no segundo momento, trouxemos algumas reflexões sobre a proposta de escola formulada no MST. Por fim, na terceira parte, refletimos algumas potencialidades e dificuldades da Escola Itinerante no processo de sua constituição, enquanto uma experiência importante para a classe trabalhadora.

UM POUCO DE TEORIA E HISTÓRIA

Os primórdios da escola que conhecemos hoje remontam longe na história. Seus primeiros sinais podem ser encontrados no Egito Antigo, em torno do século XVII a.C., segundo Manacorda (2000). Entretanto, este “embrião” de escola, bem como as características que ela foi assumindo ao longo do desenvolvimento histórico, eram diferentes da escola que conhecemos hoje. Mesmo a forma de denominá-la variava em diferentes épocas e regiões. Entretanto, o que há em comum nas diferentes sociedades,

1 Do Setor de Educação do MST e doutoranda em Educação pela UFSC.

ESCOLA ITINERANTE: DO ÁRDUO E DO BELO

PARTE II

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épocas e contextos, é que este lugar, hoje conhecido como escola, relaciona-se com o aprendizado da língua escrita e a apropriação de conhecimentos que demandavam um tempo maior para assimilação. A origem e desenvolvimento da escola também se ligam à certa separação entre ensino e trabalho, ou seja, quando o aprendizado não acontece no mesmo tempo e espaço do trabalho, mas em lugar separado, a escola inaugura um tempo e um espaço próprios para ensinar e aprender. Para que isso fosse possível, significava que deveria haver certo excedente social, isto é, estando asseguradas as necessidades fundamentais de sobrevivência de uma sociedade, permite-se que alguns de seus membros possam não estar batalhando pela sobrevivência imediata. Por isso, em seus primórdios, a escola era um “luxo” destinado há poucos membros da classe dominante.

Marilena Chauí (2000) indica que, em grego, escola é scholé, que significa ócio, ou seja, a escola era o lugar do não trabalho, de quem podia viver no ócio, do trabalho de outros. O excedente social se acumulou de tal forma, que hoje “todos” podem passar algum tempo na escola. Entretanto, como o excedente produzido social e coletivamente é apropriado de forma privada, as classes dominantes podem passar mais tempo na escola, e os mais pobres precisam trabalhar para sobreviver e, por isso, podem ficar menos tempo estudando.

Com o advento do capitalismo é que a escola passa a ser entendida como uma necessidade para todos. Por que isso acontece? Porque, com o capitalismo, ocorreu uma grande mudança nos processos produtivos, constituindo-se uma grande revolução em relação à forma de produção artesanal do feudalismo. Neste, o aprendizado para o trabalho ocorria no próprio local de trabalho (oficinas dos artesãos, na roça dos camponeses), e o aprendizado consistia basicamente em adquirir habilidades manuais (ainda muito utilizadas pelos sapateiros, pedreiros, bordadeiras...). Com a fábrica capitalista, entretanto, estas habilidades manuais foram, e ainda são, usurpadas dos trabalhadores e incorporadas nas máquinas; os trabalhadores tornam-se apêndice da máquina, tendo que trabalhar ditados por seu ritmo e estrutura. O trabalho, aponta Marx (1999), torna-se simples, igual e social, ou seja, a máquina simplifica ao máximo sua execução, permitindo que praticamente qualquer um possa fazê-lo (igual), mas cujas condições são criadas pelo conjunto/totalidade do trabalho humano (social). Trata-se, portanto, do trabalho abstrato2. Vê-se que não falamos de um trabalho/profissão específicos, falamos da forma de trabalho capitalista generalizada. Aprender a ler e a escrever torna-se algo fundamental para o trabalho da fábrica e com a dinâmica de vida urbana. Com a aplicação direta da ciência nos processos produtivos e uma revolução tecnológica permanente, os trabalhadores precisam dispor de uma formação básica, rudimentar, das letras e das ciências, para adaptar-se aos novos processos produtivos e com eles operar. Por exemplo, ler instruções e manuais, anotar, ter noções de proporção, química, física e biologia, base de diversos ramos da indústria. O conhecimento aprendido na escola nem sempre se relaciona diretamente com as necessidades da fábrica. Para chegar à escola, o conteúdo passa por diversos filtros e mediações e, na escola capitalista, fragmenta-se, desconecta-se da materialidade da qual ela se origina, mas sem dúvida guarda muitas relações com o mundo do trabalho e as aprendizagens a ele necessárias.

2 Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil, concreto, produz valores de uso (MARX, 1999, p. 68).

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Retomando aos primórdios do capitalismo, ao dizermos acima que a escola tornou-se uma necessidade deste modo de produção, não significa dizer que ela foi desejada e saudada por toda a classe burguesa. Ao contrário, ela foi combatida por muitos deles e vista como perigosa, isto é, que poderia instruir demasiadamente os trabalhadores ao ponto em que estes se revoltassem e não aceitassem mais sua condição de miséria e submissão. Frente a esta polêmica, Adam Smith, famoso teórico liberal e economista clássico inglês, sugeriu que o conhecimento deveria estar na escola, porém “em doses homeopáticas”. Ou seja, não se deveria ensinar todo o conhecimento existente, mas apenas aquele estritamente necessário para a produção e consumo nos limites do capital. Portanto, a escola não oferece apenas uma formação cognitiva, mas também comportamental, ética e política. Aponta-se que a escola também se estruturou para adaptar as crianças ao trabalho fabril e à sociabilidade capitalista, tanto adestrando o corpo – imobilizado e contido nos longos períodos na escola para mais facilmente adaptar-se à fabrica – quanto promovendo comportamentos e valores como a obediência, a ordem e disciplina próprias desta forma social. Então, a escola forma para a sociabilidade burguesa, não apenas no conteúdo que transmite, mas também na forma como se estrutura3. No MST discutimos bastante o conteúdo político da escola, repassado não apenas pelas matérias, mas pelo autoritarismo, centralização, homogeneização, etc. Entretanto, precisamos compreender melhor esta questão, pois nossas experiências de escola demonstram como é difícil romper com o formato e o conteúdo da escola capitalista.

Frente às divergências na classe dominante apontadas acima, em cada país se travou uma batalha específica para que a escola se instituísse para todos. No contexto europeu, os sistemas nacionais de ensino remontam aos anos de 1800. No Brasil, somente a partir de 1930, com a industrialização, é que iniciamos a constituição de um sistema nacional de educação. Estes sistemas passam por constantes reformas em sua organização geral e em seus métodos pedagógicos. Estas alterações decorrem das citadas mudanças nos processos produtivos e na luta de classes. Recentemente, no Brasil, vimos os empresários, representados na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), exigindo “maior qualidade” na educação, atualizando a escola aos novos tempos. O que eles exigem é que a escola se ligue mais às novas necessidades do mercado de trabalho, que tem sofrido grandes mudanças.

Como dissemos, a escola é o local onde a população vai adquirir esta formação básica, necessária para o trabalho e a sociabilidade burguesa. Entretanto, não significa que a escola realiza toda a formação para o trabalho. Esta ocorre também na empresa, na fábrica, nos locais de trabalho, em cursos profissionalizantes e de aperfeiçoamento específicos, e é indispensável para cada situação concreta. Outra questão importante é que a formação “mínima” necessária para o mercado de trabalho capitalista varia muito de acordo com as funções, como os chamados trabalhadores qualificados, semi-qualificados, especialistas, etc. Assim, o tempo que os trabalhadores destes respectivos setores passam na escola e a qualidade da formação recebida pode ser muito diferente. Entretanto, com a crescente complexificação do processo produtivo, este “patamar mínimo” da formação tende a se elevar. Se acompanharmos o que se passa no mercado de trabalho capitalista, vemos que o ensino fundamental tem sido insuficiente, diferente do que foi outrora. Agora, o mínimo é o nível médio (este tende a se tornar obrigatório) e até mesmo cursos

3 Sobre isso ver: Freitas, L. C. Crítica da Organização do Trabalho Pedagógico e da Didática, 7ª ed. Campinas: Papirus, 2005.

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profissionalizantes. Nas mais diversas áreas, o domínio da computação é essencial, com isso evidencia-se o quanto a escola se relaciona com o mundo (e o mercado) de trabalho, cujas alterações vão exigindo mudanças nos processos educativos das mais diversas ordens.

Entretanto, como se coloca a escola em face do crescente desemprego? Ela deve formar para o trabalho ou para o desemprego? Sem dúvida, hoje, do ponto de vista do capital, a escola, e ainda mais a escola de qualidade, não necessita estar disponível para todos. Porém, como o capitalismo aparenta ser uma forma de sociedade democrática, ele não pode deixar uma parcela da população sem escola. Isso mostraria o quanto esta sociedade não é igualitária (veja entretanto que o ensino médio não é disponível para todos). Mas há tempos, o capitalismo arranjou uma alternativa para este problema. Ele oferece uma escola de péssima qualidade para a maior parte dos trabalhadores. Como dissemos, a escola, desde seus primórdios na sociedade burguesa, fornece instrumentos elementares de formação para o trabalho e para a vida nesta forma de sociedade. Oferece o necessário para que a maior parte das pessoas se reproduza na condição de trabalhadores, explorados e submetidos à esta lógica. É claro que a sociedade dividida em classes desenvolve suas contradições em todas as esferas da vida social. A educação e a escola também são espaços de disputa e de projetos educacionais distintos, cujo embate resulta a educação que temos: hegemonicamente burguesa devido à forma de produção da vida se dar sob tais parâmetros. Com o crescimento do excedente de trabalhadores (exército industrial de reserva ou desempregados), o conhecimento na escola vai sendo ainda mais precarizado, até tornar-se quase um “faz de conta”. Na atualidade, a ausência de conhecimento elaborado e profundo na escola, por exemplo, se reveste com uma falácia democrática: a de que os conteúdos são autoritários, desligados da realidade da criança, etc.. Portanto, o que propõem é a valorização do local, dos conhecimentos que as crianças já possuem, da importância de respeitar sua cultura. Estas questões também são objeto de crítica à escola tradicional feita por educadores progressistas, mas para estes, a cultura popular e o conhecimento que a criança já possui é ponto de partida da escola, mas que jamais poderia ficar apenas nisso. Diferentemente das perspectivas conservadoras, travestidas de novidade educacional, este discurso é utilizado para esvaziar a escola de uma de suas funções essenciais – a socialização de conhecimentos significativos. Ora, se é para ficar naquilo que a criança já possui, em sua realidade local, não precisa ir à escola: a criança já possui! A escola precisa oferecer o conhecimento e a cultura elaborados, que não estão acessíveis espontaneamente para o estudante. Isso não quer dizer que este conhecimento elaborado deva ser ensinado de qualquer maneira, imposto e decorado, e que não devam ser buscadas mediações com a realidade da criança. O que temos hoje é em nome de um discurso democrático de respeito às diferenças, a negligência da escola em oferecer aquilo que é uma condição para a efetiva inserção social e, com isso, a manutenção das diferenças que viram desigualdade.

Tome-se, por exemplo, os dados alarmantes que indicam que milhares de estudantes concluem a 8ª série, mas não sabem interpretar um texto e fazer contas elementares (INEP, 2001). São semi-alfabetizados. À isso, Kuenzer (2004) denominou de inclusão excludente, ou seja, a criança está na escola, mas não aprende. Portanto, somos levados a concordar com Saviani (1999), para quem a transmissão de conteúdos significativos e relevantes, é fundamental, “justamente porque o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação política das massas” (p. 66). Para ele, “a transformação

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da igualdade formal em igualdade real está associada à transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos [por exemplo, da escola tradicional], em conteúdos reais, dinâmicos e concretos” (p. 74). Ou seja, se os conhecimentos elaborados são relevantes e de igual importância, que eles não sejam ministrados de maneira fragmentada, descolados da realidade concreta em que vivemos. Na proposta de educação do MST, o conhecimento elaborado é de fundamental importância para entender a realidade que nos cerca e o mundo em que vivemos, e eles são requisitados pelos processos de luta, de trabalho e de cultura. O ensino deve “partir da prática e levar ao conhecimento científico da realidade” (MST, 1992), é preciso despertar para a importância da história e da ciência de que muito precisam os trabalhadores.

Não há dúvida, entretanto, que uma escola articulada aos interesses dos trabalhadores não deverá somente rever a forma de trabalho com o conhecimento escolar, afinal, a escola não ensina apenas estes, mas também os conteúdos políticos, sociais, valorativos e éticos. Estes conteúdos também estão presentes na escola que serve ao capitalismo no sentido de formar para esta perspectiva. Isso está embutido de forma implícita ou explícita, sendo elitista e excludente, promovendo a competitividade, desenvolvendo o autoritarismo e a submissão, a resignação e o medo, etc. Enfim, a escola forma para os papéis sociais que diferentes setores e classes sociais desempenham. A escola que interessa para os trabalhadores deve eliminar este conteúdo que forma uns para dominar e outros para serem dominados, e promover a igualdade social, o respeito, a solidariedade e a cooperação, entre toda a humanidade. Para isso, precisa rever toda sua forma de organização e formar para saber comandar e ser comandado, para a participação efetiva, para a organização coletiva e à auto-organização (Pistrak, 2000). Enfim, deve educar para novos valores éticos e padrões de comportamento condizentes com a sociedade que se pretende construir. Estas questões são complexas e exigem nossa atenção permanente, estudo e experimentação prática. No MST, já temos um bom acúmulo neste sentido e é preciso que avancemos na construção de uma nova forma escolar.

A ESCOLA NO MST

Um movimento social como o MST, que se propõe a transformar a sociedade e construir o socialismo, precisa elaborar formas de educação que ajudem a alcançar seus objetivos. Não será com uma escola autoritária e esvaziada de conteúdos amplos e profundos que o MST chegará lá. Não é possível compreender a educação e a escola fora do contexto que as demanda (Figueira, 1985). A educação é um processo complexo e não homogêneo, resultante das estruturas e práticas sociais, também contraditórias, que tem por objetivo formar o homem para determinada forma de vida social. Como afirmou Mészáros “nenhuma sociedade pode perdurar sem seu sistema próprio de educação” (2006, p. 263). De modo que as formas e os objetivos educacionais de qualquer sociedade se encontram sempre em relação íntima com seu modo de vida, e, portanto, com suas relações de produção e de trabalho. O capitalismo, como apontou Mészáros (2005), constitui uma estrutura de internalização dos valores e aprendizados necessários à esta sociedade, da qual a escola é apenas uma parte.

O MST, ao organizar os Sem Terra para lutar por terra, moradia, trabalho, assistência técnica, também está educando quem dele participa. Estes, em luta, aprendem muitas coisas: que não dá pra ficar

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parado esperando as soluções, as imensas contradições e o antagonismo desta sociedade, que para os pobres e trabalhadores apenas a organização e luta traz conquistas efetivas. Aprendem que o capitalismo está impossibilitado de oferecer condições dignas de vida para todos. Aprendem que precisam construir outra forma de vida social, que só poderá sair das mãos dos oprimidos. Ainda que isso não seja fácil nem rápido. Estes aprendizados são obtidos na luta, na organização coletiva, no aprofundamento teórico, que somente uma organização que luta para mudar o mundo pode oferecer.

A escola está, de uma forma ou de outra, presente desde o início do MST. Seja decorrente de uma necessidade objetiva (escola para as crianças em idade própria) ou por motivos de formação política, a escola se tornou um espaço que deve contribuir com o MST em seus objetivos. Ela é incorporada no MST como um espaço que deve auxiliar na formação almejada. Se é curioso um movimento de camponeses, agricultores, tomar a escola como uma bandeira, é algo “normal” e necessário, como apontamos acima, que um movimento com uma perspectiva social distinta, constitua formas educacionais próprias. À medida que o MST foi crescendo, ampliando, incorporando novas bandeiras, alterando as formas de luta e seu público, a escola tem sido repensada e articulada com cada um desses momentos.

Vemos assim que: 1) o MST não é, em primeiro plano, um movimento por educação, mas por Reforma Agrária e transformação social; 2) em sua luta e organização, ele torna-se profundamente educativo, como demonstrou Caldart em Pedagogia do Movimento Sem Terra (Expressão Popular, 2004); 3) a escola é uma parte deste processo educacional, com funções específicas, mas nunca resumindo a educação à ela e nem a educação política, da luta, pode ser restrita à escola.

Considerando-se o conjunto da produção do MST sobre educação e escola, podemos sintetizar os objetivos/pilares da escola no MST em três: “o trabalho agropecuário, o conhecimento científico da realidade e o amor pela luta” (Boletim de Educação n.1, MST, 1992, p. 2). Podem existir diversas variações destes objetivos, a definição de objetivos pontuais, a acentuação de um deles, mas, como dissemos, em síntese, considerando-se o conjunto da proposta, eles podem ser desta forma resumidos. Há ainda dois detalhes. Veja que o texto é escrito em 1992, assim, alguns termos podem ter sido mais ou menos substituídos, mas seu conteúdo permanece. Por exemplo, “amor pela luta”, talvez hoje, se denomine mais como formação de militantes (que por definição devem ter amor à luta). A segunda questão é que o texto refere-se aos “três pilares das escolas de assentamento”. Em minha opinião, como depois desenvolveremos melhor, tais pilares cabem perfeitamente às escolas de acampamento e à Escola Itinerante, o que muda são as condições concretas, não os objetivos fundamentais. Vejamos rapidamente cada um deles, buscando uma atualização de seu conteúdo.

Em relação à formação para o trabalho do campo, entendemos como fundamental que a escola conheça e problematize as formas existentes de produção, desde as artesanais e manuais até as mais complexas e de ponta. É preciso analisar o sentido em que elas se colocam e sob o que se sustentam, avançando no sentido de dominar a tecnologia e a ciência embutidas nos processos produtivos, seja para incorporá-las ou rejeitá-las. É necessário estar atento às formas novas de produção que vão surgindo como a cooperação e a agroecologia, estudando-as em suas várias dimensões: econômicas, sociais, técnicas e científicas. A escola, queira ou não, formará para algum padrão produtivo. O que o MST propõe é que ela auxilie na superação da forma de produção capitalista e artesanal, rumo à produção e socialização coletiva

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da riqueza. Isso não é fácil, nem cabe unicamente ao MST e nem à escola, mas estes não são isentos de uma contribuição nesta direção. Entendemos que a escola auxilia neste processo quando problematiza e conhece em profundidade os processos produtivos nos seus diversos aspectos, quando busca a superação da divisão entre trabalho manual e intelectual e evita a inferiorização do trabalho do campo. Também se pode questionar até que ponto o trabalho do campo é essencialmente diferente do da cidade, ao que a literatura crítica indica, crescentemente aproximativos, preservando, entretanto, algumas diferenças. Em nosso ponto de vista, a escola não pode ater-se estritamente à formação para o trabalho no campo. De outro lado, se ela for às bases desta forma de trabalho, verá que ela guarda muitas relações com o trabalho urbano e industrial. A formação para o trabalho é um tema muito complexo que precisa ser aprofundado em nossos estudos, pois, se entendemos que a forma como produzimos nossa existência é que nos educa, torna-se fundamental que a humanidade crie novas bases produtivas para nos educarmos de um jeito inteiramente novo. A escola pode ajudar nisso.

Vemos então a importância do conhecimento científico, o segundo pilar da escola do MST. A ciência ou o conteúdo na escola não são vistos como fins em si mesmos, que devam entrar desconectados da realidade, fragmentados e “puros”. Eles são instrumentos imprescindíveis na compreensão e transformação da realidade. Ou seja, o ensino deve “partir da prática e levar ao conhecimento científico da realidade”. Não estamos de forma nenhuma ignorando ou desprezando os conteúdos, a teoria, a ciência. Muito pelo contrário, estamos colocando os conteúdos no seu verdadeiro lugar como instrumentos para a construção do conhecimento da realidade e não como fins em si mesmos” (MST, 2005, p. 61). Vemos então que a ciência é indispensável para o estudo da realidade e para a atuação nela. A ação só poderá ser revolucionária se capta corretamente a realidade. A ciência, o conhecimento por si mesmo, não muda o mundo, é preciso ação, mas esta, isenta de conhecimento profundo e amplo, é menos eficaz. Por exemplo, quando organizamos uma ocupação ou uma atividade no acampamento, elas dão melhores resultados quando nós consideramos bem a situação, não é verdade? O conhecimento elaborado e científico na escola do Movimento não pode colocar-se desvinculado da formação para o trabalho e a transformação social que busca o MST. Não se trata, entretanto, de uma ligação imediatista e superficial destes vínculos, porque a complexidade do trabalho e da luta por transformação social exige conhecimentos amplos e elaborados, e cuja relação muitas vezes não é tão direta e explícita.

Por fim, o amor à luta ou a formação de militantes. Este pilar deixa muito claro que a intenção do MST é buscar a transformação social. É educar para a ação revolucionária e para as diversas dimensões que ela exige. Vimos que os dois itens acima, a formação para o trabalho e o conhecimento científico, já apontam nesta direção. Os três pilares estão, então, profundamente interligados. Poderíamos dizer que um bom militante no MST é aquele que conhece os desafios do trabalho no campo, busca compreender a realidade de modo profundo e possui valores e ações coerentes com o projeto do Movimento. Educar para a transformação social significa que a formação para o trabalho não é o trabalho no capitalismo, mas a busca por superá-lo; conhecer cientificamente a realidade coloca-se como auxiliar para poder mudá-la. Então, é educar também para a ação, mas não qualquer ação, mas para uma planejada, coletiva, coerente e fundamentada. Esta dimensão, a da formação de militantes, chama atenção para a formação de novos valores como a cooperação, a solidariedade, o altruísmo, a autonomia. Atenta que as pessoas são uma totalidade

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e a escola deve formá-las como seres integrais, daí os “tempos educativos” elaborados na proposta do Movimento. O capitalismo acentua o trabalhador braçal, manual, diminuindo nossa capacidade de pensar; a escola tradicional acentua nossa formação cognitiva - mas de forma tão mecânica e fragmentada que não significa deixar-nos mais inteligentes. Ela nos enche de “conteúdos”, mas não quer dizer que aumente nossa compreensão de mundo. No MST e nas experiências socialistas, a escola deve nos formar como totalidade de múltiplas dimensões: cognitiva, afetiva, artística, física, social, ética. Entretanto, para ligar com o que dissemos acima e evitar um problema frequente, é preciso dizer que estas dimensões não devem ser trabalhadas na escola de qualquer jeito, não no senso comum. Pode até partir dele, mas alcançando a cultura elaborada, o conhecimento erudito, clássico. Newton Duarte (2007) indica que a escola deve ir do cotidiano ao não cotidiano, isto é, avançar do senso comum em direção ao pensamento elaborado, filosófico, científico, artístico... Aí então, efetivamente formará para a arte (e não sua banalização), a ética (e não o moralismo), a afetividade (e não o romantismo)...

Como temos apontado, a escola sozinha não conseguirá formar seres integrais numa sociedade que fragmenta, seres éticos e coerentes numa sociedade que se pauta na exploração e degenera as pessoas. A formação de seres humanos completamente novos não é possível no capitalismo. É preciso que saibamos disso para não cairmos em desânimo. Entretanto, dizer isso não quer dizer que qualquer ação é inválida, ao contrário, se não agirmos agora para a construção da nova sociedade e de novas mulheres e homens, eles nunca chegarão. É nossa ação, dentro dos limites possíveis do hoje, com clareza do horizonte que almejamos, que pode construir outro futuro. Não ao otimismo ingênuo nem ao pessimismo imobilista. A articulação dos três pilares indicados pelo Movimento pode ser um bom exercício.

Há diversas outras questões importantes na proposta de educação do MST que não foram aqui abordadas. Como elas se encontram mais desenvolvidas nos Cadernos e Boletins da Educação, esperamos que elas não sejam desconsideradas. Apenas para mencionar algumas, indicamos a gestão da escola, a auto-organização dos estudantes, o planejamento, a avaliação, a relação educador-educando, os tempos educativos, a formação dos educadores, entre outras, como questões importantes de serem estudadas e exercitadas na prática, buscando a construção de uma escola inteiramente nova e comprometida com a emancipação da classe trabalhadora.

A ESCOLA ITINERANTE

A Escola Itinerante é entendida como um espaço que traz em si a carga histórica da instituição escolar, de seus problemas e potencialidades. Também traz em si o acúmulo do Setor de Educação do MST, compondo sua proposta de escola. A Escola Itinerante, em sua essência, não é diferente da escola de assentamento ou das demais escolas do MST. Seus objetivos e princípios são os mesmos, que todavia, se aplicam de um modo determinado a depender da situação concreta. Então, a Escola Itinerante expressa embates de formas escolares distintas, antagônicas. Expressa, a seu modo, a luta social. Como toda escola, ela encontra-se num tempo e num lugar específicos. Poderíamos dizer que a Escola Itinerante, como as demais escolas de acampamento, acontece num lugar especial. O acampamento é sem dúvida um espaço onde se encontram pessoas em luta pela vida, por terra, por trabalho e moradia. Um lugar que expressa

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a incapacidade do capital em garantir a vida digna para todos. Por isso, o acampamento é o lugar que expressa a força e a fraqueza do capital. Força, já que mesmo com tantas contradições explosivas, mortes, miséria, desumanização, ele ainda se mantém. E fraqueza, porque na medida em que não garante que muitas mulheres e homens vivam sob sua forma típica, força-os a buscar outras formas de se organizar em sociedade. Acredito que a força e a beleza de um acampamento – dentre suas enormes dificuldades – está em revelar a busca dos Sem Terra por uma nova forma de vida social.

Claro que esta consciência não necessariamente é a de todo sem-terra que vai para um acampamento ou passa por ele. Mas, queira ou não, ele está “metido” nisso e nós queremos que sua consciência seja ampliada até ele perceber as muitas implicações daquilo em que ele se envolve. A Escola Itinerante está neste lugar!

O acampamento é, então, um espaço onde a luta de classes, a luta pela sobrevivência, a possibilidade de construir algo novo, está mais forte, mais evidente. É um lugar propício à contestação, à desestruturação daquilo que é arcaico. As relações de poder autoritárias se enfraquecem, favorecendo emergirem relações sob novos parâmetros. Entendemos que este é o pano de fundo daquilo que o professor Luis Carlos de Freitas tem indicado: a Escola Itinerante é um lugar propício à emergência, ao ensaio de uma nova forma de escola. Segundo ele, no acampamento, por tudo que falamos, a escola (lembremos que ela é uma instituição do Estado burguês) está mais livre das amarras do Estado, da burocracia e deste peso que traz a instituição escolar4.

Penso que os educadores itinerantes reconhecerão isto, pois tem sido muito comum eles se referirem que “quando o acampamento vai bem a escola está bem”. Dizem ainda que quando o acampamento está bem organizado, a coordenação e as equipes funcionando, com unidade e perspectiva, a escola funciona melhor, o acampamento se envolve e contribui mais com a escola, e a proposta de educação do Movimento acontece5. Já quando as coisas não vão tão bem no acampamento, na escola também tendem a decair; os educadores, mães e pais “se acomodam”, cria-se uma rotina e uma apatia pouco produtivas. Por estes depoimentos, podemos refletir o quanto a organização coletiva e a clareza na luta são educativas, motivam o que está ao redor, e são forças capazes de dar um horizonte à escola, fazê-la se aproximar da escola que queremos. Vemos assim que a escola não está isolada, e nem deve estar (nem pode estar). Mas esta tendência da escola acompanhar a dinâmica do acampamento não pode nos autorizar a desanimar quando o acampamento vai mal e a relaxar com os trabalhos na escola. É nesta hora que temos que agir com profissionalismo e militância.

Os estudos de Bahniuk (2008) e Camini (2009) comprovam a indicação de Freitas, mostrando diversos avanços que a Escola Itinerante apresenta rumo à Escola Socialista. Poderíamos dizer que a Itinerante é um embrião da Escola Socialista, mas que, para se desenvolver, precisa ser cuidada e superar muitas dificuldades e limitações que as autoras evidenciaram em suas pesquisas. Isso indica que há pontos fracos na Itinerante que precisam ser observados. É sobre estas potencialidades e estas dificuldades que queremos refletir:

1) Dizer que a Escola Itinerante (EI) está num lugar “especial”, que favorece experimentar

4 Síntese pessoal da fala do professor durante encontros e atividades do MST onde ele tem participado.5 Fala recorrente entre os educadores no processo de sistematização da Escola Itinerante no Paraná.

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a construção da Escola Socialista, não quer dizer, em hipótese alguma, que “naturalmente” por estar no acampamento a escola será melhor, que esta forma nova vai surgindo. Se não houver um longo trabalho, muito estudo e ação (coletivos), ficamos na mesma.

2) Por estar num acampamento, a EI enfrenta dificuldades que outras escolas não enfrentam nas mesmas proporções (de infra-estrutura física e pedagógica, de formação dos educadores...). Estas dificuldades, se por um lado podem operar como motivação para criar alternativas, no sentido que Freitas indica, de outro lado, não pode fazer-nos pensar que a miséria é boa, que para pobre “pode ser assim mesmo”, ou que a escola nova, a sociedade nova, se faz com poucos recursos. Considero importantes os “ensaios” que temos feito nas EI, mas sonho que todas as crianças possam ter escolas bem equipadas, com biblioteca e laboratórios, boa alimentação, educadores bem formados, etc.

3) A EI tem sido apontada como inovadora por ser uma escola que “vai onde o povo está”, ou seja, é uma escola que rompe com uma concepção tradicional de que escola é um “prédio”, e que, portanto, é imóvel e que as pessoas precisam se deslocar até ela. Considero um avanço da Escola Itinerante mostrar que a escola precisa se adaptar (em parte) às condições específicas de seu público. O que, aliás, é indicado na atual LDB 9394/96, ao dizer que a escola pode/deve se adaptar às condições locais, de trabalho, de clima, etc., mas que não pode abrir mão de uma série de outras coisas. Então, a Itinerante inova, pois para as concepções mais tradicionais, como aponta Camini (2009), é difícil conceber uma escola sem endereço fixo, que se move! Isso tem uma repercussão em nossa concepção de escola importante, pois, se a ela pode romper com um padrão de estrutura física, parece nos permitir romper com padrões pedagógicos. Aí a Itinerante pode se tornar muito perigosa, como sabem alguns... Veja que estamos no campo das possibilidades. Entrando no campo concreto das dificuldades, a experiência destas escolas mostra uma inversão curiosa: parece que alteramos mais a estrutura física, em muitos locais, do que as questões pedagógicas, conforme já indicaram Grein e Gehrke (2008). Ou seja, muitas vezes a EI parece ser muito diferente, inovadora, mas quando olhamos para o que acontece em seu interior, no processo pedagógico, vemos que reproduzimos muitas coisas que precisamos superar, como a falta de planejamento ou o planejamento “solto”, a falta de estudo e domínio de conteúdo do professor, relações autoritárias, descaso com a escola, avaliação classificatória, etc. Reafirmando: não é por estar numa EI que naturalmente estaremos construindo uma nova escola. Para isso é preciso muito trabalho, estudo, dedicação e organização coletiva. Neste item, também quero registrar algo que tem sido dito pelos educadores e coordenadores itinerantes. A participação da escola em marchas, mobilizações, saídas do acampamento, dá um grande ânimo para a escola, faz o trabalho pedagógico ficar mais vivo, ligado à realidade, reflexivo, e as crianças participam mais. Mas às vezes, um tempo depois, é comum voltar-se às velhas formas. Ou ao contrário, nas escolas onde se sai muito do acampamento, reclama-se de que não dá pra amadurecer as questões, que precisam ficar um tempo “paradas” para aprofundar os assuntos. Então, nos dois casos, o que se mostra é que a Escola Itinerante precisa fortalecer sua proposta, consolidá-la. Não poderá ser “um vento mais pra lá ou pra cá” que poderá revirar todo nosso trabalho. Nós precisamos ter clareza para onde queremos ir e avançar no entendimento da forma, dos métodos para chegarmos lá. Precisamos avançar na formação de educadores e dos coletivos de educação, compreendendo melhor como a escola deve se ligar à vida. Como superar a velha forma escola e construir uma nova e como é possível construirmos isso nas

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condições que temos. 4) Nas questões relativas ao ensino das disciplinas na escola, o que refletimos acima já indica

o caminho. Há uma dupla questão a se considerar: a) o conhecimento escolar precisa ser significativo, é preciso estabelecer relações com a realidade do estudante6. Veja que dissemos relações. Quanto menor a criança, esta relação precisa ser mais concreta e, com o passar dos anos, pode-se avançar na abstração, sem que a todo o momento se refira a uma circunstância ou objeto pontual. Entretanto, mesmo os níveis mais elevados de abstração, sempre possuem relações com o mundo concreto. Em Marx, partimos do concreto (caótico) ao abstrato (reflexão, fragmentação), depois novamente ao concreto, que ao fim do processo aparece como uma totalidade rica. Para Marx (1996), o conhecimento deslocado da prática não tem sentido, é a prática que, em última instância, diz se um conhecimento é verdadeiro – isso não quer dizer prática imediata e nem relativismo. Os complexos de que fala Pistrak (2000), ou os temas geradores de Paulo Freire (1983), são bons exemplos de como o conhecimento pode estar na escola. Ele não aparece isolado, “morto”, fragmentado, mas vem em função de uma situação-problema, de um tema atual, candente. A escola organiza seu trabalho para entender o mundo em suas múltiplas relações e em profundidade. Então, o conhecimento surge como uma necessidade da vida humana, que tem relações múltiplas e complexas. Por isso, o novo patamar alcançado no entendimento do tema/complexo deve voltar à realidade para ajudar a transformá-la. b) Pelo que foi dito, parece ficar claro que o conhecimento elaborado é de grande importância para a classe trabalhadora, e que a mudança na forma de abordá-lo não o nega, não o retira da escola, mas o coloca de um novo jeito, valorizando-o. As experiências demonstram que esta questão precisa ser aprofundada, avançando no método de trabalho que não negue o conhecimento acumulado e o coloque em função das questões do tempo histórico atual.

Neste caderno, estão expostos cinco textos dos estados que possuem Escola Itinerante. Vemos que são experiências bastante diferentes sob vários aspectos: no tempo de existência (no RS há doze anos, no PI há um ano), no tamanho das escolas, na quantidade de educandos, no jeito de acompanhar as escolas e fazer a formação dos educadores, na relação com o Estado, na organização das turmas, etc. Nos próprios textos, pode-se ver a avaliação feita, os pontos positivos e negativos, como prosseguir, em que avançar. Estas diferenças indicam tanto a riqueza e a diversidade que a EI comporta, quanto a dificuldade em se estabelecer diretrizes políticas e pedagógicas comuns, bem como fragilidades próprias à sua conformação em cada estado. Entretanto, apesar das diferenças, é possível falarmos da EI do MST, ou seja, é possível identificar um projeto comum, afinidades, unidade na proposta e na ação e dificuldades compartilhadas. Vejamos algumas delas:

a) A EI é uma experiência de escola (um projeto e uma prática) que se origina das condições da luta pela terra. É uma escola que se adapta a estas condições e se compromete com as famílias em luta. Este compromisso se dá em dois planos, pelo menos. O primeiro, por estar onde está o povo, deslocar-se com ele, acompanhá-lo no acampamento, na reocupação,

6 A experiência escolar coordenada por Pistrak avança ainda mais desta perspectiva. Para ele, como aponta Freitas (2009), a escola não se estrutura a partir do conhecimento elaborado para então se estabelecer relações com a realidade, mas o inverso. Parte-se da realidade atual, do mundo em sua totalidade que para ser entendido demanda o conhecimento elaborado, culto. A proposta educacional do MST compartilha desta perspectiva, como apontamos anteriormente.

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nas marchas, nas mobilizações... Então, se refere à dimensão da presença física, que é muito importante, pois assegura a escolarização das crianças e jovens onde estes se encontram, e nas condições de luta e conflito. A segunda dimensão é a do compromisso político e pedagógico que aponta para além da presença física, mas para o sentido do trabalho educacional que a escola desenvolve. É efetivamente uma escola do acampamento, que o MST se apropria e desenvolve. Esta questão já está indicada neste texto e nos cinco textos dos estados.

b) Por estas questões, a EI afronta os padrões rígidos de escola existente. É inovadora sob muitos aspectos e por isso o embate permanente com o Estado. O Estado não apenas possui um padrão de escola como, em certo sentido, cada vez mais engessa o sistema, tendendo à padronização e homogeneização. Tem especial dificuldade com a Escola Itinerante, pois esta não é apenas “diferente”, mas liga-se à luta pela transformação social. As longas e árduas lutas para conquistá-la e mantê-la, em cada um dos cinco estados, reflete esta diferença de fundo entre uma escola construída pelo povo em luta e a escola proposta pelo Estado burguês. Isso sem falar da maior parte dos estados do Brasil cujas escolas de acampamentos não são reconhecidas legalmente pelo Estado. Para o Estado burguês, aceitar a EI é de alguma forma aceitar a luta dos Sem Terra, fortalecê-la. E ainda mais, ela é uma escola gestada nesta luta e, em seu conteúdo e forma, traz uma nova pedagogia. Por isso, é tão difícil (ou mesmo impossível) para o Estado aceitar esta escola como ela é. A relação estabelecida tem sido tensa, de pressão por parte dos dois lados. Em geral, por parte do Estado tem sido o de cumprimento mínimo de obrigações, ou mesmo de não cumprimento de funções elementares, como o envio de materiais para as escolas, pagamento dos educadores, etc. Esta situação de enfrentamento chegou a tal ponto que, no RS, com um governo truculento como o de Yeda Crusius, do PSDB, a EI foi fechada. Esta escola é intolerável para aqueles que sempre tiveram o Estado a seu serviço e não estão dispostos a abrir mão disso. A experiência das Itinerantes revela o Estado de classe e também a necessária relação dos trabalhadores em luta com/contra o Estado burguês.

c) A Itinerante também tem se revelado um potencial laboratório de formação de educadores para a nova escola. Muitos, de forma inesperada, tornam-se professores, e assim, precisam aprender a ensinar, precisam estudar e fazer uma escola bem diferente daquela que tinham como referência. Tornam-se educadores em uma escola plena de luta, de disputas entre formas de escola e perfis de educadores. Tornam-se professores na dinâmica vida dos acampamentos, aprendendo com a luta e com a escola do MST, e, nestes embates difíceis e complexos, ensinam. As condições objetivas com as quais se deparam são, seguidamente, muito inusitadas. Nem tudo tem sido desejável, mas de maneira geral, podemos dizer que a formação dos educadores de escolas de acampamento e das EI revela uma potência de crítica e de experimentação de uma nova forma de escola, o que implica, inevitavelmente, outro educador. Quando os educadores se reconhecem como sujeitos ativos no processo de luta

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em que se pretende construir outra sociedade, homens e escolas, eles sentem-se motivados, fortes e orgulhosos. Não seria por acaso que estas são as características mais frequentes nos educadores itinerantes. Veja neste caderno o texto específico sobre a formação de educadores.

d) Deste acúmulo de mais de doze anos de EI, evidencia-se que esta escola encontra-se num lugar instável, física e politicamente. Vemos ainda que, em muitas ocasiões, tal instabilidade pode ser positiva para a escola, no sentido de que a auxilia a sair da “mesmice”, de um trabalho educacional cristalizado e inconveniente para um trabalho voltado para a classe trabalhadora. Forçando a escola a abrir-se e conectar-se à realidade concreta que a circunda, promovendo a aproximação e a participação do acampamento na escola. Mas nestes anos todos, aprendemos que a escola precisa aprender a lidar com esta instabilidade, preparar-se para ela (já que continuará acontecendo). Neste sentido, parece que precisamos distinguir entre o que podemos abrir mão e o que não, o que pode ser dinâmico e espontâneo e o que precisa ser planejado e estruturado. Isso não significa dizer que a escola não sentirá as mudanças que acontecem em seu entorno ou ignorará tudo que acontece, permanecendo fechada em si mesma, como é a velha escola que tanto criticamos. Quer dizer apenas que não podemos mais recomeçar sempre, é preciso continuidades no processo pedagógico. Neste sentido é que a relação escola e acampamento/MST é educativa nas duas direções, pois os acampamentos e o MST são por natureza dinâmicos, em movimento; a escola é de estrutura mais lenta e processos mais longos. A síntese que o MST tem feito é de que um tem aprendido e precisa aprender com o outro, guardadas as particularidades. É conflituoso e educativo quando estes tempos distintos se encontram, mas a escola prescinde de tempos e processos longos, sem os quais não se aprende certas coisas; o Movimento, por sua vez, demanda movimento, luta, garra e, seguidamente também, tem pressa.

Por fim, reafirmamos que este texto não pretendeu dar conta das diversas indicações acerca da EI que têm sido evidenciadas nas produções existentes. Maior aprofundamento se encontra em autores/educadores que já se debruçaram com mais afinco nesta experiência de escola. Assim como na Coleção Cadernos da Escola Itinerante pode-se acompanhar esta trajetória e experiência com maior detalhamento. Pretendemos sim, trazer um veio de análise de questões consideradas pertinentes e no calor dos debates realizados ao longo da produção da referida Coleção. Esperamos que elas possam ser frutíferas.

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Isabela Camini1

Jurema de Fátima Knopf2

INTRODUÇÃO

A formação humana3 dos sujeitos Sem Terra, no sentido mais amplo, sempre ocupou espaço importante na trajetória que constituiu o MST. No que diz respeito aos educadores, que atuam no Setor de Educação ou nas escolas, a sua formação recebeu atenção especial, pois, desde o início, havia a intenção de formar seus próprios professores para atuarem nas escolas de acampamentos e assentamentos. Para os educadores que se dedicam à educação e têm a responsabilidade de ensinar, educar e formar as novas gerações que frequentam as escolas de ensino fundamental e ensino médio nas áreas de Reforma Agrária, os processos de formação humana, pedagógica, social e política, têm se dado de forma mais intensa e permanente - por meio de cursos formais e/ou não formais.

Olhando para a trajetória histórica de formação de educadores neste Movimento, constatamos que, em 1990, tiveram início as duas primeiras turmas de Magistério do MST, no Departamento de Educação Rural (DER), em Braga, RS. E, em 1997, já na turma seis, o Curso foi transferido para a Escola Josué de Castro em Veranópolis/RS, mais tarde denominado de Instittuto de Educação Josué de Castro (IEJC). Esta iniciativa, que se prolonga até os dias atuais, nos permitiu formar centenas de educadores que atuam em escolas do campo, em vários estados onde o MST está organizado, possibilitando-os também a continuarem seus estudos. No que diz respeito aos cursos formais, atualmente, o MST tem Cursos de Magistério, Pedagogia da Terra, Licenciaturas e algumas especializações, funcionando em vários estados do país e realizados em parceria com Universidades Federais e Estaduais.

Outra iniciativa importante, que vem acompanhando as ações do Setor de Educação do MST, é sua preocupação com a formação de educadores por meio de seminários e encontros estaduais e nacionais, além dos significativos processos formativos que acontecem nas escolas. Em nosso entender, a realidade que cerca a escola, vinculada à luta pela Reforma Agrária, vai reeducando, ensinando e formando os educadores militantes. O contexto social onde se encontram as Escolas Itinerantes, por exemplo, as diferentes situações de enfrentamento na luta de classes e a dinâmica do Movimento Social, forjam processos formativos, humanos e pedagógicos, tanto dos educadores quanto dos educandos. Eles são um

1 Educadora do Setor de Educação do MST. Mestre e Doutora em Educação pela UFRGS. 2 Educadora do Setor de Educação do MST - Paraná. Pedagoga e estudante no Curso de Especialização em Ciências Humanas e Sociais/CHS - Convênio firmado entre UFSC e ITERRA.3 Compreendido aqui como um processo permanente de formação que se inicia com o nascimento e conclui-se com a morte. “As pessoas mudam, educam-se e são educadas, num processo que só termina com a morte. Quem não acreditar nisso não pode ser educador/a, porque estará realizando uma tarefa em que não acredita verdadeiramente e que, portanto, será vã”. Sobre isso, ver: Princípios da Educação no MST, Caderno de Educação nº 8, Porto Alegre, 1996.

A FORMAÇÃO DOS EDUCADORES ITINERANTES

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contingente da juventude que estão fazendo a diferença nas diversas Escolas Itinerantes do MST no Brasil. Se retomarmos a história da Escola Itinerante (1996 – 2009), considerando a especificidade

de sua forma escolar e as circunstâncias que a dinamizam, vemos que a formação dos educadores sempre foi um desafio enfrentado pelo Setor de Educação, pois de outro modo, a Escola Itinerante não teria construído a experiência, já reconhecida, de educar na itinerância, sem perder a seriedade que cabe a ela na formação dos trabalhadores em um contexto de luta de classe. Ou seja, mesmo que estivessem frequentando algum curso de nível médio ou superior, sua participação em outros espaços formativos (não formais) foi fundamental. E, neste sentido, o Setor de Educação nos estados onde existe a Itinerante aprovada e legalizada pelo poder público, não descuidou de oferecer oportunidades de formação a estes educadores. A própria expansão desta forma escolar, com sua complexidade na forma de atuar nos diversos espaços da luta pela terra, atualmente presente em seis estados da federação, (RS, SC, PR, GO, AL e PI), forjou o Setor de Educação a buscar formas de reunir os sujeitos que atuam nestas escolas, a fim de trocar experiências, avaliar a caminhada, planejar ações conjuntas e projetar o jeito de fazer a Escola Itinerante do MST em cada situação de acampamento onde ela é organizada.

Passaremos agora a refletir sobre os processos de formação por meio dos Seminários Nacionais de Educadores Itinerantes realizados nos últimos anos.

O PRIMEIRO SEMINÁRIO NACIONAL

Em fevereiro de 2005, realizou-se o I Seminário de Educadores Itinerantes da Região Sul, no Institudo de Educação José de Castro –(IEJC), Veranópolis – RS. O encontro contou com a presença de 70 educadores que atuam nas Escolas Itinerantes dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, além de representantes do Setor de Educação do MST dos estados de Goiás e Mato Grosso.

Este primeiro seminário nacional de educadores itinerantes teve como objetivos socializar as práticas pedagógicas construídas nas Escolas Itinerantes da Região Sul; refletir e analisar os limites e as possibilidades de atuação nestas escolas; reafirmar a necessidade de construir um referencial pedagógico metodológico que possibilite avançar na construção curricular; visualizar o que compete ao Estado construir como política pública educacional e qual é o papel do Movimento Sem Terra frente a esta demanda colocada pelas Escolas Itinerantes; bem como, refletir sobre o papel dos educadores que atuam nessas escolas.

Considerando o espaço e o número de educadores reunidos, o clima do seminário foi de estudo, reencontro e alegria, pois muitos destes educadores haviam estudado no IEJC e esta era a oportunidade de retornar ao Instituto e reencontrar os colegas de turma. Mas não só isso. A programação intensa que priorizou o estudo da história da educação do MST, da história da Escola Itinerante, assim como a troca de experiências pedagógicas construídas nessas escolas, tomou espaço e animou os participantes. O estudo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as Diretrizes Operacionais para as Escolas do Campo e o Estatuto da Criança e do Adolescente, veio esclarecer o papel dos movimentos sociais no que diz respeito a ampliar a política pública de educação nos acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária.

Podemos dizer que este Seminário teve marcas importantes. Inaugurou a possiblidade de

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construirmos um processo conjunto de formação de educadores que atuam em Escolas Itinerantes nos estados onde já a legalizaram. Também, o fato de reunir pela primeira vez os educadores dedicados à ensinar e educar na itinerância é muito significativo para o MST, pois são estes jovens, ainda muito jovens, que constrõem experiências pedagógicas importantes, em condições estruturais muitas vezes desfavoráveis, mas ricas em materialidade. Por isso mesmo não devem guardá-las só para si, ou deixá-las cair no esquecimento. O desafio é socializá-las, sistematizá-las, escrevê-las. Tarefa, diríamos, para grandes homens e mulheres! Em um texto sobre os educadores e sua formaçao, Isabela Camini sintetiza de forma precisa os diferentes sentimentos que demarcam esta vivência: “Todos foram chamados a uma luta maior num Movimento maior. Hoje, são educadores em situações, talvez, nunca imaginadas. Nem por nós, nem por eles mesmos, tampouco por suas famílias” (CAMINI, 2006, p. 34). Continua no texto afirmando o que dizem esses educadores, ”Somos hoje educadores, em escolas fincadas no chão do acampamento, um sonho, uma mística, uma identidade nos resgatou, nos confiou um ofício, nos chamou para sermos sujeitos” (p. 34) .

Por fim, o encontro também contribuiu para avançamos na compreensão da construção e elaboração do Projeto Político e Pedagógico dessas Escolas, articulado ao projeto de Educação do Movimento. O estudo sobre a Infância Sem Terra, e de como vai se construindo essa identidade no processo de luta pela terra, nos deu a certeza de que as nossas crianças precisam ter espaços próprios de auto-organização, vez e voz, poder dizer a sua palavra na escola e comunidade. A infância é uma das fases mais bonitas e importantes no processo de formação da personalidade, por isso precisa ser respeitada, valorizada. Se considerarmos que estas crianças e adolescentes têm sua primeira experiência no Movimento frequentando a Escola Itinerante, seguramente a nossa responsabilidade é maior.

O SEGUNDO SEMINÁRIO NACIONAL

No intuito de dar continuidade aos encontros de formação dos educadores itinerantes, em agosto de 2006, realizou-se o II Seminário Nacional das Escolas Itinerantes do MST. Desta vez, na cidade de Curitiba (PR).

Em um clima de grande empolgação, com 120 participantes dos estados do RS, PR, SC, GO, PE eBA, foi realizado um balanço dos 10 anos da Escola Itinerante dos acampamentos do MST, tomando por base as experiências em curso há mais tempo do Rio Grande do Sul e Paraná. O estudo e o aprofundamento do Projeto Político Pedagógico desta escola foram fundamentais para a decisão do MST de continuar forjando políticas públicas de Escolas Itinerantes nos acampamentos, contrariando propostas, municipais ou estaduais, que visam levar nossos educandos para estudar nas cidades. Princípio que comunga com o Projeto de Educação do Campo, em construção desde 1998.

O estudo sobre o tema “Educação do Campo, Escola e Infância, o MST na construção de um novo projeto de sociedade: implicações para a Escola Itinerante” nos deu elementos para o debate. A intenção foi fazer a relação entre projeto de sociedade e projeto de educação, e em como a Escola Itinerante dos acampamentos, que vem educando nossa infância, está envolvida e precisa deixar se envolver. O que

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significa fazer escola na perspectiva de um novo projeto, e como isso pode ser na escola da infância. O que queremos e precisamos para frente? Qual o papel estratégico da escola, e que possibilidades há de ela ser diferente da escola capitalista? E quando falamos no diferente, nossa escola é diferente em quê?

Outros três temas foram tomados para o estudo, por suas importâncias na construção da escola que queremos: a) Gestão democrática, b) Organização Curricular, c) Perfil dos educadores itinerantes. Estes temas foram estudados em grandes grupos, tendo por base a prática vivenciada nas diferentes Escolas Itinerantes. Aqui, serão trazidos em forma de questionamentos.

No primeiro, discutiu-se a Gestão Escolar. Há gestão democrática em nossas escolas? Quem dela participa? A comunidade escolar participa do dia a dia da escola? Há espaço para os educandos se organizarem? Nossa escola está organizada em tempos educativos? Quais?

No segundo, abordou-se a Organização Curricular. Como e porque organizamos o ensino em ciclos, em etapas? A forma como o Movimento se organiza, a Pedagogia do Movimento, tem inspirado a organização de escola? Quais conteúdos/conhecimentos historicamente acumulados são trabalhados em nossas escolas? Que conhecimentos novos construímos no dia a dia da escola? Trabalhamos com temas geradores? E as práticas sociais, as contradições sociais, como são trabalhadas em nossas escolas? O trabalho faz parte do currículo? Que formas de trabalho existem em nossas escolas?

O terceiro tema estudado foi o Perfil dos Educadores e educadoras: Qual o perfil necessário para ser educador das Escolas Itinerantes? Quais têm sido os limites na formação de educadores, e como temos selecionado e incorporado estes na escola? Que programas de formação nós temos, e o que é fundamental garantir nestes programas?

Considerando a riqueza e os aprendizados obtidos neste seminário, foi escrito um documento denominado - Manifesto dos educadores - que constará em anexo neste Caderno. Ele sintetiza, em boa parte, a trajetória de luta pelo reconhecimento da Escola Itinerante. Queremos deixar claro que a Escola apresentada no Manifesto é a escola do Sem Terra, por isso mesmo, ela precisa de seu reconhecimento e respeito, enquanto espaço e tempo onde se educam e se reeducam as crianças, os jovens e os adultos Sem Terra.

Neste segundo seminário, tomou-se a decisão de continuar realizando encontros estaduais e nacionais que visem a formação de educadores itinerantes, garantindo unidade da proposta pedagógica destas escolas, assim como da importância de darmos continuidade e criarmos novos espaços de formação permanente, incluindo a maioria dos jovens itinerantes em cursos formais do Movimento, de nível médio, superior e especialização.

Este encontro foi um momento oportuno de demarcar a importância de a Itinerante ser mais compreendida e assumida como escola do Movimento. Ou seja, a escola onde é possível trabalhar com mais liberdade, longe do controle do Sistema Escolar, nossa pedagogia, nossos símbolos, nossa mística. Neste sentido, a presença de alguns dirigentes, expressando a sua compreensão sobre a escola, foi fundamental. Em seus depoimentos ficou evidente a necessidade de não afastá-la das instâncias organizativas do Movimento, pois compreendem que essa prática educativa em acampamentos é a que mais se aproxima da Pedagogia do Movimento, assim como do projeto de sociedade que defendemos. É uma escola capaz de fazer o “contraponto” à escola hegemônica, e onde se encontra uma escola conectada com a luta social dos

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sujeitos que a criaram e que se mantém presente na luta.

O TERCEIRO SEMINÁRIO NACIONAL

Este Seminário, realizado em Faxinal do Céu, Paraná, entre os dias 05 e 09 de maio de 2008, trouxe como lema os “12 anos de Escola Itinerante no MST”. Teve aparticipação de 400 educadores de 13 estados da federação, havendo representantes de AL, BA, DF, GO, MA, MS, PA, PE, PI, PR, RS, SC e SP, e outras autoridades convidadas.

Diferente dos encontros anteriores, houve neste seminário um salto de qualidade no que diz respeito a participação de educadores itinerantes e de representantes de várias entidades. Isto se deve ao momento histórico em que se encontra a EI, sendo reconhecida e valorizada pelas instâncias públicas como uma escola que atua em diferentes espaços e tempos, ou seja, uma escola que não se fixa em lugar nenhum, dada sua função social de acompanhar aqueles que estão na luta pela Reforma Agrária.

Num clima de verdadeiro encontro e reencontro de pessoas que comungam do mesmo projeto social, o seminário teve como objetivos socializar e refletir sobre as práticas pedagógicas e os estudos realizados sobre as Escolas Itinerantes dos acampamentos do MST no período de 1996 a 2008; fortalecer os vínculos desta Escola com o Movimento; compreender a atual conjuntura de luta pela Reforma Agrária; fortalecer o vínculo e a pertença dos educadores itinerantes ao projeto de educação do MST e comemorar os 12 anos de existência desta Escola.

Também foi espaço de fortalecer a importância do registro das práticas vividas no Movimento e da produção literária para as crianças Sem Terra. Na oportunidade, houve o lançamento do primeiro caderno da Coleção de Cadernos da Escola Itinerante do MST, com o título: Escola Itinerante do MST: História, Projeto e Experiências (2008), e o livro Semente de letra (2009), da Expressão Popular. Momentos de estudo, reflexão, debate e comemorações perpassaram todos os dias do encontro e contribuíram para indicar as possíveis projeções referentes à organização da Escola Itinerante, colada à luta pela terra e à emancipação da classe trabalhadora.

Dentre os estudos realizados no decorrer do seminário, destaca-se a preocupação com o institucional, tendo em vista que a Escola Itinerante, mesmo estando num espaço de disputa, vem adquirindo um maior reconhecimento legal. Todavia, quando se torna uma escola de assentamento, distancia-se da Pedagogia do Movimento, o que expressa uma contradição. Portanto, precisamos garantir sim o seu reconhecimento pelo Estado, no entanto, ainda é preciso aprender a mexer com a “coisa pública” sem perder a autonomia que nos afirma enquanto movimento social de luta pela terra e pela Reforma Agrária.

Foi um momento forte, também por enfatizar o contexto de luta de cada estado onde há Itinerantes legalizadas, e a forma como as ações de enfrentamento do MST mexem com a Itinerante, por estar diretamente vinculada aos acampamentos, espaços encharcados de práticas sociais que perpassam o cotidiano da escola. Mesmo diante de uma conjuntura complexa, os educadores demonstraram a alegria de juntos poderem afirmar mais uma vez a escola como parte da trajetória do Movimento, sendo eles, em especial, sujeitos dessa conquista.

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Podemos dizer que o III seminário avançou significativamente em relação aos anteriores, principalmente pela qualidade dos debates e reflexões que ajudam a construir a escola que queremos. Neste sentido, destacamos a palestra do professor Luiz Carlos de Freitas, da Unicamp, com o tema “A construção histórica da escola capitalista e a perspectiva da escola socialista”.

Convencido de que precisamos estudar profundamente a história da escola capitalista, se queremos interrogá-la e contrariá-la no dia a dia da Escola Itinerante.

Quando se ensina em espaços de acampamentos, a possibilidade de mudanças é maior do que quando se tem todos os recursos disponíveis, o que não nega a importância de exigir os direitos que temos. A escola de lona representa a liberdade, livre das amarras da escola capitalista. É um espaço, momento privilegiado para construir a escola que queremos.

Desta forma, ajudou-nos a refletir sobre importância de darmos passos para frente, com segurança, negando a forma escolar capitalista à medida que vamos construindo outra e nova escola, na perspectiva da educação socialista. Precisamos ter coragem de interrogar o sistema de avaliação classificatório e excludente, o planejamento de cima para baixo, o poder excessivo do professor em da sala de aula, a relação estabelecida entre educador e educando e a matriz formadora conteudista que desconsidera as diversas dimensões do ser humano, a realidade e as contradições que cercam a escola. Enfim, estas são questões que demandam mais estudos e continuidade na reflexão desde a prática concreta das itinerantes.

Estimulou-nos ainda, a avançarmos na compreensão de duas categorias fundamentais da educação socialista: a atualidade – relação da escola com a prática social –, e a auto-organização dos educandos. Desafios que, embora já estejam sendo enfrentados pela Escola Itinerante, são questões que devem nos acompanhar sempre, pois são princípios que embasam a Pedagogia do Movimento e perpassam todo o seu projeto educativo.

No que diz respeito à Auto-organização, entendemos que a escola é um espaço fértil para estimular as crianças para uma nova vida, ou seja, abrir espaços para que elas aprendam a conviver de forma coletiva, sem que haja opressão de umas sobre as outras. Neste exercício cotidiano, elas entenderão a importância de, às vezes dirigir processos e, às vezes serem dirigidas.

Quando nos referimos à atualidade, entendemos que, na Rússia, a atualidade visava a necessidade de se construir o socialismo. E para nós, trabalhadores Sem Terra, qual a nossa atualidade? Quais as práticas, as contradições sociais, próximas e mais distantes, que não podemos deixar passar longe da escola?

Na escola capitalista, afastar-se da vida implica em não questionar a realidade vivida. Na escola socialista, trazer a vida para a escola implica em questionar a vida para atuar sobre ela. A atualidade na escola implica em uma análise crítica da realidade social para atuar sobre ela.

Algo novo, trazido para este seminário, foi o debate em torno das pesquisas - dissertações e tese - construídas sobre Escola Itinerante do MST, no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, ao longo dos 12 anos. Abordagens feitas sob vários aspectos desta forma escolar são pesquisas que levam

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reflexões importantes sobre Escola Itinerante para o interior da academia, apresentando-a como um germe de uma escola contra-hegemônica, conforme podemos verificar no Caderno nº 3, - Pesquisas sobre a Escola Itinerante: refletindo o movimento da escola, 2009.

Pela leitura e pelo debate em torno das pesquisas apresentadas, entendemos que o Movimento Sem Terra e as universidades têm dado passos importantes na compreensão da necessidade de haver pesquisas e pesquisadores intimamente ligados com as práticas sociais pesquisadas. Juntos, podem contribuir com a análise, a reflexão, e, sobretudo, com a disseminação destas experiências. Além de abrirem caminhos para novas investigações e pesquisas que venham contribuir na construção de uma nova escola e de um projeto educativo articulado a transformação social.

Como exemplo do Manifesto dos Educadores, construído e aprovado pelos participantes do II Seminário em 2006, nesse encontro, foi construída uma Carta pelos Educadores Itinerantes. Ela foi lida e aprovada em plenária pelos próprios educadores, e consta em anexo neste material.

QUAIS APRENDIZADOS TIVEMOS NESSE PROCESSO?

Neste percurso de encontros maiores de formação de educadores que acompanham a construção e expansão da Escola Itinerante, podemos apontar aprendizados importantes que se afirmam na trajetória dessa forma de fazer a escola do Sem Terra.

Em primeiro lugar, dizer que são momentos/seminários que tem valido a pena realizá-los. Embora dêem muito trabalho, se consideradas as distâncias geográficas, as condições econômicas e outras tantas questões, eles ajudam a manter viva a ideia de continuarmos lutando pela escola em condições de itinerância. Há consenso entre os Sem Terra de que a escola deve estar onde o povo está!

Os educadores itinerantes, todos os educadores do MST, gostam muito de se encontrar, de trocar ideias, de partilhar saberes. Eles se apóiam uns nos outros, porque comungam os mesmos objetivos, o mesmo projeto educativo e social.

Em segundo lugar, a formação dos educadores não se esgota nos seminários e encontros regionais, estaduais e regionais. Todos têm acesso às teorias pedagógicas que embasam o projeto educativo do Movimento, principalmente quando se encontram em processos de formação e em cursos mais prolongados. Podemos dizer que a formação destes educadores também tem sido uma marca da Escola Itinerante. Ela força processos de formação, dada à realidade e o contexto social onde está inserida. Não há como ser o mesmo educador após ter passado por uma experiência de EI.

Estes seminários têm ajudado a criar e a disseminar a identidade da Escola Itinerante do MST, tanto para dentro, quanto para fora deles e a dar sentido ao ser educador desta escola.

Embora reconhecida e atuando em regiões bem diferentes do estado brasileiro, na EI temos muitas coisas que nos unem e que são comuns entre nós. Temos claro que atuamos em uma escola do MST, da classe trabalhadora. Por isso mesmo precisamos colocar todo o nosso esforço para transformá-la, dando-lhe novo sentido e significado. E este esforço tem sido feito e expressado em depoimentos por muitos educadores.

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Os debates, realizados nos seminários e suscitados pelo estudo em torno do papel da escola no MST, afirmam aspectos da Itinerante como o vínculo com a vida e com a luta. Estas não podem passar ao largo da escola, à medida que se evidencia a importância de contrariar a lógica da escola capitalista, já estudada por nós como a escola que não atende às necessidades da classe trabalhadora. Todavia, o desafio a ser enfrentado por nós, a cada dia um pouco, é ter presente que esta escola foi uma conquista dos Sem Terra e, por estar fisicamente no contexto dos acampamentos e em luta, é um espaço privilegiado de gestação da escola que queremos.

Estes três grandes momentos de formação, realizados ao longo de 13 anos de Escola Itinerante, nos fazem entender que a EI, esteja onde estiver, ajuda a dinamizar os acampamentos e o próprio Movimento, refletindo a organicidade, a luta e a realidade como dimensão formadora. Nos acampamentos onde ela é pensada e planejada pelo conjunto da comunidade, que está bem organizada e articulada à Pedagogia do Movimento, que tem educadores comprometidos e educandos que gostam de sua escola, a desistência das famílias tem se tornado menor. Esta Escola tem desconstruído a idéia da luta como sacrifício, e apontado a possibilidade de se educar em luta e em luta se educar.

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REFERÊNCIAS

CAMARGOS, Márcia. Semente de letra. São Paulo, Expressão Popular, 2007.

CAMINI, Isabela. (Org.) Escola Itinerante do MST: História, Projeto e Experiências. Cadernos da Escola Itinerante – MST. Ano VIII, nº. 1, Curitiba, PR, Abril/ 2008.

CAMINI, Isabela. Dez anos de Escola Itinerante nos Acampamentos do MST/RS: Qual o Balanço? Boletim da AEC-RS. Ano XXVII, nº. 104. pp. 34-43. Porto Alegre, 2007.

CAMINI, Isabela. Educadores Itinerantes e sua formação. In: MEURER, Ane Carine; DAVID, César de. Espaços-tempos de Itinerância: interlocuções entre Universidade e Escola Itinerante do MST: Santa Maria: Editora da UFSM, 2006. ISBN 85-7391-076.

DALMAGRO, Sandra. CAMINI, Isabela (Orgs). Pesquisas sobre a Escola Itinerante: refletindo o movimento da escola. Cadernos da Escola Itinerante – MST, Ano II, nº 3, Curitiba, PR, maio, 2009.

MEURER, Ane Carine; DAVID, de César (Orgs). Interlocução Entre Universidade e Escola Itinerante do MST. Santa Maria: Ed. UFSM, 2006.

MST. Princípios da Educação do MST. Porto Alegre, 1996.

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II SEMINÁRIO NACIONAL DAS ESCOLASITINERANTES DOS ACAMPAMENTOS DO MST

Curitiba-PR, 21 a 26 de agosto de 2006.

“São verdadeiramente poucos aqueles que refletem e ao mesmo tempo são capazes de agir.

A reflexão amplia, mas debilita. A ação revigora, mas limita”.

(Goethe)

MANIFESTO DOS EDUCADORES E EDUCADORAS

Entre os dias 21 a 26 de agosto de 2006, 113 educadores e educadoras representantes das escolas itinerantes dos acampamentos do MST dos Estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Pernambuco; Escolas Base, dirigentes do Setor de Educação e Frente de Massa do MST, representantes das Secretarias Estaduais de Educação do PR e PE e educadores convidados, reunimo-nos em Curitiba, PR no II Seminário Nacional das Escolas Itinerantes dos Acampamentos do MST.

Os objetivos do seminário foram (1) realizar um balanço político e pedagógico dos 10 anos das escolas Itinerantes do MST; (2) refletir sobre a escola que estamos construindo por meio da Escola Itinerante; e (3) projetar o próximo período tendo por base o acúmulo construído até aqui em relação aos desafios colocados pelo MST no âmbito da educação das famílias acampadas.

Entre os vinte e quatro Estados onde fazemos a luta pela Reforma Agrária, temos Escolas Itinerantes legalmente aprovadas e reconhecidas pelo Conselho Estadual de Educação em cinco deles, sendo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Goiás e Alagoas e dois Estados em processo de legalização – Pernambuco e Piauí. São 32 escolas, 277 educadores e 2.984 educandos envolvidos num processo educativo permanente visando ao mesmo tempo à garantia do direito à educação, a elevação da escolaridade e a elevação do nível cultural da população acampada.

ANEXOS

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BALANÇO E PERSPECTIVAS DOS 10 ANOS DAESCOLA ITINERANTE DOS ACAMPAMENTOS DO MST

As escolas itinerantes se caracterizam pelo seu forte vínculo com a luta pela Reforma Agrária. A escola nos acampamentos é uma ferramenta de luta, fator mobilizador das famílias para participar da ocupação, para permanecer nos acampamentos e no campo pedagógico, ela é sementeira da escola que estamos construindo. De certa maneira, a escola itinerante é uma antecipação da escola do assentamento, nos seus aspectos organizativos, políticos e pedagógicos.

A Escola Itinerante é uma escola pública estadual e está onde está o povo em luta - no acampamento, nas marchas, embaixo das árvores, na beira do rio, nas beiras das estradas, nas ocupações, nas lutas, nos Congressos, nos Encontros, enfim, nas várias situações em que o MST se encontra, aí está a Escola Itinerante.

Organiza o processo educativo de diversas formas – por etapas, por ciclos, ciclo básico e por classes multisseriadas. Organiza os tempos educativos de acordo com as circunstâncias da luta do acampamento. Seus educadores e educadoras são do acampamento e formados pelo MST.

As organizações que respondem no cotidiano pela escola itinerante são os acampamentos, o MST, os educadores, a Escola Base e o Estado, cada um exercendo papéis distintos e complementares.

Uma vez consolidado este processo da organização da escola e do reconhecimento pelo Estado, uma nova realidade se expressa: a escola não é apenas elemento de luta, pois o direito à escola está assegurado. Aí, ganham importância outros elementos, como: que escola para dar conta dos intensos desafios colocados pela situação de acampamento, luta e resistência para uma criança, um/a jovem e um/a adulto/a? Que formação de educadores dará conta destes desafios?

Tais desafios têm provocado, nos acampamentos onde se organiza a Escola Itinerante, outro olhar sobre a escola e sua dimensão política, organizativa, pedagógica ao mesmo tempo em que impõem uma nova qualidade ao debate sobre a educação nas áreas de Reforma Agrária e maior valorização da escola para a população acampada e mesmo para o conjunto do MST nestes Estados. Tanto é verdade que constatamos que os avanços da escola estão diretamente ligados ao avanço da organização do acampamento. Onde o acampamento está bem organizado, esta organização se reflete na escola.

Ao par disso, se impõe a necessidade de observar os mecanismos de certificação e validação do tempo escolar, por meio do Regimento Interno, controle de freqüência, matrícula, registro da avaliação, etc. Talvez esta nova realidade indique que a cultura do direito à escola esteja a tal ponto instituído a ponto de vivermos um contexto em que a própria base exige a organização da escola já nos primeiros dias de acampamento. Isto revela, por conseguinte, uma grande valorização da certificação escolar para o nosso povo, como condição de auto-estima e dignidade.

Há que se registrar que nenhuma escola foi concedida gratuitamente pelo Estado, mas conquistadas pelos Sem Terra por fortes pressões e mobilizações. Ao mesmo tempo, na relação com o poder público - no que se refere ao reconhecimento das nossas iniciativas, mantivemos um nível de diálogo que se estabelece entre demandantes e proponentes como sujeitos de direitos, por um lado, e detentores dos

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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instrumentos necessários à sua efetivação, por outro. Uma relação necessária à realização dos nossos objetivos, quais sejam em primeiro lugar

assegurar a efetivação do direito à escola, depois a elevação do nível de escolaridade. Para tanto, precisamos do reconhecimento do poder público por meio da contratação de educadores, a instalação da infra-estrutura necessária ao bom desenvolvimento do trabalho pedagógico, os recursos para merenda escolar, biblioteca e aquisição de materiais didático-pedagógicos.

Temos articulado todas as formas de luta e pressão sobre o Estado, envolvendo as crianças e a juventude como protagonistas da luta pela educação, que junto com as famílias acampadas, ampliam o debate sobre a nossa luta no intuito de conquistar apoios na comunidade local, nos parlamentos, nas igrejas, enfim, nos diversos espaços onde a sociedade se organiza. Embora o direito à educação esteja legitimado pela trajetória da sociedade, nós sabemos que em se tratando de educação dos camponeses e camponesas em luta há que se mobilizar permanentemente.

Já compreendemos também que para qualificar esta relação, é necessário conhecer a Legislação Brasileira (Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e Diretrizes Operacionais da Educação Básica nas Escolas do Campo), assim como as brechas ali presentes que nos permitem avançar. Conhecer o funcionamento do sistema educacional assim como as atribuições e competências de cada nível e esfera de governo. Necessário também conhecer a organização, estrutura e funcionamento da escola – os processos administrativos que cuidam da vida escolar dos educandos, organizar bem a documentação dos educandos e lutar pelo direito à documentação para aqueles que não a possuem.

Neste particular, na condição de escola pública, uma exigência se manifesta: reafirmar a importância da nossa autonomia pedagógica, por meio da Pedagogia do MST – os protagonistas são os Sem Terra e têm o direito de pensar, propor e executar o seu projeto político-pedagógico, assegurado pela LDB. E ter este direito respeitado pelo Estado.

Neste sentido, concluímos pela importância de manifestar ao conjunto do MST, o que segue:

1. A Escola Itinerante, pela sua trajetória e pelos avanços conquistados nestes 10 anos, é uma prática recomendada para todos os acampamentos do País, mas não será implementada de forma mecânica. Cada Estado pode organizá-la de acordo com suas necessidades e compreensão da concepção de educação nas escolas itinerantes.

2. A Escola Itinerante se legitima e ganha importância na nossa organização por 10 razões:a. a garantia do direito ao acesso à escola para as crianças, jovens e adultos acampados/

as;b. é um instrumento de resistência da classe trabalhadora e mobiliza os acampamentos;c. exerce uma potencialidade sobre o processo de formação dos lutadores e lutadoras,

militantes e dirigentes do futuro, quando acampados;d. movimenta-se com autonomia sobre a organização e o processo pedagógico, sobre

os tempos educativos e mobiliza especialmente as energias da juventude. Os jovens estão

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assumindo a tarefa de educadores e a organização deve preocupar-se com sua formação;e. as crianças que convivem e participam deste processo percebem sentido na educação

neste contexto, pois assegura a identidade camponesa e Sem Terra, quebrando paradigmas pré-estabelecidos na educação;

f. a ocupação do latifúndio do conhecimento junto com a ocupação do latifúndio da terra;

g. Uma escola organizada no acampamento pela iniciativa do MST dá vida e impõe outra dinâmica ao acampamento, porque mobiliza forças, reúne a família e contribui para a afirmação da comunidade acampada como forma por excelência de pressão pela Reforma Agrária;

h. a elevação do nível de consciência e de criticidade das crianças contribui no processo da organicidade do acampamento e da escola e sinaliza para a consciência das famílias a importância da Educação do Campo, no campo, ou seja, que a nossa escola esteja no campo;

i. atua no resgate de valores imprescindíveis à formação do novo sujeito social para uma nova sociedade e se reflete na vida da comunidade acampada.

j. A Escola Itinerante é um direito que se institui em movimento.

3. A composição de um quadro de educadores formados e firmados na tarefa de conduzir o processo educativo, afirmando o princípio organizativo do profissionalismo no desenvolvimento de tarefas que exigem especialização, como é a educação, é um requisito fundamental. Os educadores conhecem e participam do processo histórico das famílias e da comunidade, componente essencial da qualidade na educação. À essas condições, se associa a organização coletiva dos educadores – grupos de estudo, sistematização e teorização das práticas.

Para tal intento, ganha importância a formação permanente dos educadores como forma de qualificar a prática no confronto com as teorias pedagógicas, por meio de núcleos de estudo nos acampamentos. E ganha importância fundamental a nossa luta por um Plano Nacional de Formação de Educadores/as do campo.

4. A Escola Base, responsável institucionalmente pela documentação escolar dos educandos em situação de acampamento, deve estar localizada num assentamento, numa escola do campo e de âmbito estadual, pois o território da escola itinerante é estadual. Deve ter uma posição política e pedagógica do MST e um Regimento que contemple as necessidades da comunidade acampada.

5. A Escola Itinerante deve caminhar na perspectiva da formação humana. Os conteúdos devem orientar-se pelos componentes da vida das crianças, jovens e adultos acampados que desafiam permanentemente o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade. Tendo como base a pesquisa da realidade, a pesquisa dos sujeitos e a intervenção refletida na realidade, mobilizando os instrumentos necessários à esta dinâmica.

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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6. Assegurar a concepção sistemática de registro nos diversos momentos pedagógicos, na teoria e na prática, em todos os momentos de formação dos educadores do MST, como forma de efetivar a prática nesse processo de construção da Escola Itinerante.

7. Nossa ousadia em romper com o desenho do latifúndio na terra deve se expressar da mesma forma na ousadia em romper com o tradicional desenho da escola proposta pelo capitalismo. Para tanto, devemos organizar a escola – currículo, tempos educativos e ações culturais coerentes com a perspectiva da formação humana.

8. A gestão da Escola Itinerante deve estar em acordo com os princípios organizativos do MST, que se faz por meio das instâncias e coletivos.

9. Criar a mística da Brigada da Escola Itinerante, como forma de contribuirmos generosamente com a implementação nos Estados que estão em fase inicial de organização.

10. Divulgação sobre as nossas práticas e o nosso jeito de educar – por meio de palestras, vídeos, cartilhas, livros, e pelas diversas formas de expressão artística; concursos nacionais ou estaduais para divulgar o trabalho realizado com as crianças acampadas na Escola Itinerante.

Curitiba, PR, 26 de agosto de 2006.

“Escola Itinerante, um marco na história. Poder estudar nela, para nós é uma vitória”.

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CARTA DOS/AS EDUCADORES/AS DAS ESCOLASITINERANTES DOS ACAMPAMENTOS DO MST

Faxinal do Céu – PR, 09 de Maio de 2008.

Companheiros e Companheiras,Reunimos entre os dias 05 a 09 de Maio de 2008, em Faxinal do Céu - Paraná, 400 educadores

de 13 estados da federação: AL, BA, DF, GO, MA, MS, PA, PE, PI, PR, RS, SC e SP, no III Seminário Nacional das Escolas Itinerantes dos acampamentos das áreas de reforma agrária. Este Seminário é continuidade dos dois anteriores, procurando dar seqüência ao debate/estudo sobre a Escola Itinerante. Neste sentido, reafirmamos o Manifesto dos Educadores e Educadoras da Escola Itinerante do MST, assumido no II Seminário, realizado em Curitiba, em agosto de 2006.

Dentre os participantes se encontram os educadores das escolas itinerantes; educadores das Redes Estaduais de Educação; integrantes do Coletivo Nacional de Educação, Frente de Massa e da Direção Nacional do MST; representantes das Secretarias de Estado da Educação; as Escolas Bases das Itinerantes; a Coordenação de Educação do Campo do MEC; pesquisadores e assessores, entre outros convidados.

O Seminário foi organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Secretaria de Educação do Estado do Paraná, com o apoio do Governo do Estado do Paraná e da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

Teve como objetivos a socialização e reflexão das práticas pedagógicas e dos estudos realizados sobre as Escolas Itinerantes dos acampamentos do MST, fortalecer os vínculos desta Escola com o Movimento, compreender a atual conjuntura de luta pela Reforma Agrária e comemorar os 12 anos da Escola Itinerante.

CONTEXTO

A Escola Itinerante vem se consolidando como a escola dos acampamentos do MST, associada à luta pela Reforma Agrária, buscando ampliar a capacidade crítica e organizativa dos seus sujeitos, construindo novas relações sociais.

Atualmente, dentre os 24 estados da federação em que o MST está organizado, a Escola Itinerante é reconhecida pelo poder público em seis deles: Alagoas, Goiás, Paraná, Piauí, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Contamos hoje com aproximadamente 37 escolas itinerantes, envolvendo 3600 educandos com 348 educadores, em cerca de 37 acampamentos das áreas de Reforma Agrária. Dados ainda insignificantes diante do grande número de acampamentos de sem terras existentes no Brasil.

O III Seminário Nacional acontece em um momento em que se amplia o número de estados que possuem Escolas Itinerantes legalizadas, o que exige ampliar o diálogo entre estes estados a fim de qualificar a proposta pedagógica da mesma. Ademais, a Escola Itinerante precisa fortalecer os seus

A Escola Itinerante nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Alagoas e Piauí

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vínculos com os desafios maiores do MST, uma vez que encontra-se em um espaço privilegiado que favorece a construção de uma escola que atenda os interesses da classe trabalhadora.

O balanço realizado neste seminário apontou para os avanços que obtivemos e desafios que persistem. Ressaltamos que vêm crescendo no MST a importância desta escola, dado seu papel social na formação das novas gerações, além de sua capacidade pedagógica em formar política e organizativamente os trabalhadores rurais sem terra.

Todavia, sabemos que a forma de organização das Escolas Itinerantes é diferenciada de um estado para outro, entretanto coloca-se o desafio de, considerando a dinâmica de organização do Movimento em cada estado, avançar na construção da Escola Itinerante do MST, resguardando os princípios da educação e a Pedagogia do Movimento.

Entendemos que os acampamentos são territórios potenciais para a materialização de uma nova forma escolar, que aponte para a superação da escola capitalista. A auto-organização dos educandos, a organização coletiva dos educadores, a gestão democrática, os processos avaliativos, os temas geradores, os ciclos de formação, os conteúdos socialmente úteis e a relação da escola com a prática social são indícios da escola que queremos, porém precisam ser compreendidos com profundidade a fim de avançarmos na construção da escola socialista.

Um limite destacado nas Escolas Itinerantes diz respeito à tendência de institucionalização das práticas pedagógicas. Isto ocorre no momento em que a escola deixa de atuar para a emancipação da classe trabalhadora, assumindo a lógica do Estado. É necessária, porém, muita atenção para evitarmos cair nesta armadilha.

Identificamos ainda, que no decorrer do tempo, tende-se à acomodação: diminuindo os vínculos orgânicos entre escola e acampamento, provocando a desmotivação dos educadores e a descontinuidade do processo pedagógico, pois percebe-se que a prática pedagógica das Escolas Itinerantes é fortalecida pela dinâmica da luta presente no acampamento.

Outro ponto crítico encontrado diz respeito à descontinuidade existente entre a escola do acampamento e do assentamento. Nessa transição há uma tendência para perder a riqueza do trabalho pedagógico desenvolvido nas Itinerantes, com maior adesão acrítica ao sistema escolar vigente. Compreendemos que isso se deve, em parte, às dificuldades encontradas na produção e organização dos assentamentos.

Por sua própria lógica a Escola Itinerante tem como característica a rotatividade dos educadores. Entretanto, a falta de um coletivo permanente de educadores itinerantes dificulta o processo de consolidação da proposta pedagógica desta escola. Isto acentua a necessidade de formação, que permita compreender as questões maiores da Pedagogia e da educação no MST, considerando-se a particularidade dos acampamentos.

PROPOSIÇÕES

Avançar na compreensão da Escola Itinerante do MST, que compartilhe os princípios e a

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Pedagogia do Movimento, respeitando a dinâmica e a itinerância dos acampamentos e as particularidades de cada estado;

Fortalecer os vínculos desta escola com a comunidade acampada, tanto no sentido de a escola estar em sintonia com a realidade social quanto de a comunidade assumir a escola como sendo sua. Isto permite a continuidade desta escola no assentamento;

Consolidar um coletivo de educadores para atuar nas Escolas Itinerantes, com o intuito de assegurar as conquistas e avançar na experiência;

Ampliar o diálogo entre os estados que possuem Escola Itinerante, no sentido de construir um programa de formação para os educadores, para a sistematização do trabalho desenvolvido, articulado junto ao Coletivo Nacional de Educação;

Buscar apoio junto ao MEC para agilizar a legalização de Escolas Itinerantes em outros estados, apoio para formação de educadores, infra-estrutura, sistematização e material didático;

Fortalecer a luta para que a Escola Itinerante seja ampliada para os estados que tiverem condições, devidamente apoiados, assegurando-se que a proposta pedagógica esteja coerente com os princípios da educação no MST;

Produzir material de apoio pedagógico ao trabalho dos educadores e ao conjunto do acampamento, que abordem a relação escola – comunidade, a organização do trabalho escolar e pedagógico, o processo de avaliação, a escolha dos temas geradores, a construção da estrutura física da escola, entre outras tantas temáticas relacionadas com a nova forma escolar.

Educadores e Educadoras das Escolas ItinerantesFaxinal do Céu – PR, 2008.

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