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ESSÊNCIA DO CATOLICISMO

A essência do Catolicismo (Karl Adam)

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Page 1: A essência do Catolicismo (Karl Adam)

ESSÊNCIA DO CATOLICISMO

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KARL ADAM

A ESSÊNCIADO

CATOLICISMOTRADUÇÃO

DE

TASSO DA SILVEIRA

19 4 2

E D I T O R A V O Z E S L T D A.PETRÓPOLIS — EST. DO RIO

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I M P R I M A T U R P OR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR. BISPO DE NITERÓI, D. JOSE PEREIRA A L ­VES. PETRÓPOLIS, 16-12-1941. FREI ATICO EYNG, O. F. M.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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Introdução

A verdade vos liber­tará (Jo 8, 32).

Que é o Catolicismo? — Responder a esta pergunta não será apenas mostrar o que o caracteriza e distingue das outras confissões cristãs, mas também, de maneira mais profunda e mais íntima, revelar-lhe a idéia-matriz, a fonte de que derivam todas as energias que nele des­cobrimos, o princípio fundamental que domina e unifica, a alma que informa esse conjunto complexíssimo a que chamamos o Catolicismo.

Visto de fora, o Catolicismo apresenta o aspecto de uma reunião confusa, de uma mistura factícia, de uma acumu­lação de elementos heteróclitos e mesmo opostos. Não se lhe chegou a chamar uma “complexio oppositorum”, um amálgama dos contrários? Neste conjunto formidável descobriram-se nada menos que sete camadas de estra­tificações radicalmente diferentes (1).

Ao olhar do historiador das religiões, os elementos de que se compõe o Catolicismo parecem de uma riqueza tão extraordinária, de uma variedade e heterogeneidade tais, que ele não pode coibir-se, antes mesmo de qual­quer estudo aprofundado, de recusar-se a ver nisto o des­envolvimento orgânico do germe primitivo de vida reli­giosa, puramente evangélico, que o próprio Cristo ha­veria plantado. Vem-lhe, pelo contrário, a idéia de um denso emaranhamento de elementos evangélicos e não evangélicos, judaicos, pagãos, primitivos, numa palavra, a idéia de um formidável sincretisnio, que acabou por englobar e fundir como lhe foi possivel todas as formas religiosas nas quais vasaram as almas inquietas as suas angústias e esperanças.

1) F. H e i l e r , Der Katholizismus, seine Idee und seine Er­scheinung, 1923, p. 12.

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6 Introdução

Para o historiador das religiões, o Cristianismo seria, desta sorte, utn microcosmo do mundo religioso (2).

Quanto a nós, católicos, nada teremos a dizer deste ponto de vista do historiador, desde que ele se mantenha estritamente em seu domínio — o dos dados que a his­tória pode apreender — e não tenha a pretensão de for­mular juizo a respeito do princípio deste conjunto reli­gioso. Não temos dificuldade nenhuma em reconhecê-lo, pomos até nisso um pouco de orgulho: o Catolicismo não se confunde pura e simplesmente nem com a mensagem de Cristo, nem com o cristianismo primitivo, como se não confunde o carvalho da floresta com a semente que de começo foi. Sua identidade não deve ser procurada na aparência exterior: é.orgânica. Podemos acrescentar mes­mo que, dentro de um milênio ou mais, o Catolicismo aparecerá ainda mais rico, mais diversificado em seu dogma, sua moral, sua legislação e seu culto do que o Catolicismo do nosso 20° século. Quem sabe se um his­toriador das religiões do ano 5.000 não descobrirá nele idéias, produtos, formas tomadas à fndia, à China, ao Japão, e não verificará nele uma “complexio opposito- rum” mais violentamente marcada ainda? Sim, é inegá­vel, o Catolicismo é uma reunião de contrastes, porém contraste não é contradição. A vida implica força de ex­pansão, desenvolvimento e contrastes. Alesmo no cristia­nismo tal como no-lo mostra a Escritura, mas especial­mente na religião do Antigo Testamento, aparecem essa força expansiva, esse desenvolvimento e esses contrastes. Trata-se apenas de crescimento e aparição incessante de formas novas. Estaria viva a mensagem que trouxe o Cristo, o grão que semeou seria, porventura, verdadeira semente se houvesse permanecido o grão minúsculo do ano 33, sem ter posto raizes, sem haver assimilado subs­tâncias estranhas, se não se houvera tornado, graças a elas, uma grande árvore, em cujos ramos podem pousar os pássaros do céu?

Não temos, pois, vontade nenhuma de perturbar a sa­tisfação que encontra o historiador das religiões em con-

2) A. H a r n a c k , Die Aufgabe der theologischen Facultäten u. die allgemeine Religionsgeschichte, em “Reden u. Aufsätze”, 1904, tom. II, p. 170.

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tar os nós do tronco do Catolicismo ou em etiquetar os vários elementos estranhos que, com a sua força vital, hauriu do solo e assimilou. O que lhe proibimos, isto sim, é que pretenda haver encontrado, só porque enumerou esses elementos, a forma essencial, e mesmo que diga simplesmente que neles temos “os elementos constitutivos do Catolicismo”, como se fora a eles que devesse o Cato­licismo a sua importância histórica. O Catolicismo tem conciência de haver permanecido idêntico a si-mesmo, tanto no presente como no passado; espontaneamente afirma que seus princípios essenciais aparecem desde o instante em que fez sua entrada no mundo, que o próprio Cristo foi quem insuflou o espírito de vida no jovem or­ganismo e o dotou de todas as capacidades de desenvolvi­mento, que, no curso dos séculos, se desdobraram por uma espécie de adaptação espontânea às necessidades e exigências sucessivas dos tempos e dos lugares. Nada existe no Catolicismo que lhe seja estranho ou não consti­tua o desenvolvimento do seu primitivo fundo.

Daí, a insuficiência de todas essas descrições históri­cas. Elas mantêm-se à superfície, não atingindo senão o invólucro exterior. Fazem lembrar aquelas idéias ex­cessivamente simples de certos polemistas apaixonados, para os quais o Catolicismo se resume na ambição de dominar, no culto aos santos ou no jesuitismo. Nem mes­mo suspeitam da fonte profunda, de que irrompem sua vida e todas as suas manifestações, e que constitue a sua unidade orgânica. Tocais-lhe os membros, falta-vos in­felizmente o principal, o liame espiritual e vital! O pro­cesso do historiador assemelha-se — é o que de melhor se pode dizer — à tentativa dos sábios que pretendem haver explicado a vida de uma célula só com o haverem enumerado e descrito os diversos elementos de uma cé­lula viva. Uma simples descrição está longe de ser uma explicação completa. Eis por que os estudos de pura des­crição histórica das religiões reclamam outro método, ca­paz de dar-nos cientificamente a essência, a alma do Ca­tolicismo.

Deste estudo científico, da própria essência do Catoli­cismo só é capaz um católico que viva de sua fé. Não é possivel uma visão do interior se o coração aí não está. A pura objetividade, a fria observação positiva em tal

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8 Introdução

sentido nada podem, ou antes: a plena e completa reali­dade objetiva, só está em condições de verificá-la quem por si mesmo esteja mergulhado na corrente da vida ca­tólica, quem sinta, por sua própria vida de todos os dias, as forças que animam o organismo gigantesco do Cato­licismo e lhe dão a sua realidade. Njio é porventura a imagem de uma mãe mais familiar a quem viva junto dela e a envolva da sua afeição? O que há de mais íntimo nos sentimentos de uma mãe, a ternura e a profundeza do seu devotamento, não se demonstra, mas experimen­ta-se, vive-se. Desta sorte, só o católico que crê e que ama pode penetrar no interior. Só ele, graças ao que sente, ao que experimenta, ao que vive, ao que Pascal chama “o es­pírito de finura", isto é, a intuição de todo homem, — só ele pode perceber essas forças intimas, essa potência ex­pansiva que constituem o Catolicismo.

Procurar a essência do Catolicismo é o mesmo, pois, que explicitar o conteúdo da conciência católica. Não é e não pretende ser outra coisa senão a simples análise dessa conciência, a resposta a esta pergunta: Que é que um católico vê em sua Igreja e como age esta sobre ele? Onde põe o crente as forças vivificantes, o coração, o centro do seu catolicismo?

Não é sem razão que, mesmo bem para além do círculo restrito dos crentes, a questão apaixona os espíritos con­temporâneos. F. H e i 1 e r assinala com insistência o interesse crescente que o Catolicismo excita (3): “A Igreja Romana exerce hoje, diz ele, um forte poder de atração sobre o mundo dos não-católicos. Os mosteiros Beneditinos da Alemanha, em particular os de Beuron e de Maria Laach, tornaram-se verdadeiros centros de pe­regrinação para não-católicos que aí se entusiasmam pela liturgia católica. No seio do protestantismo, o movimen­to “Alta-Igreja” caminha, se aproxima de cada vez mais da Igreja Romana; um de seus chefes já se integrou mes­mo em seu seio. Na Inglaterra é ainda mais extenso o movimento das conversões. Conventos e mosteiros angli­canos passam inteiros para a Igreja Romana. Intensa pro­paganda católica acentua esta simpatia pelo Catolicismo. A Igreja romana faz atualmente esforços consideráveis

3) F. H e i I e r, Op. cit., pág. 8.

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8 Introdução

sentido nada podem, ou antes: a plena e completa reali­dade objetiva, só está em condições de verificá-la quem por si mesmo esteja mergulhado na corrente da vida ca­tólica, quem sinta, por sua própria vida de todos os dias, as forças que animam o organismo gigantesco do Cato­licismo e lhe dão a sua realidade. N^o é porventura a imagem de uma mãe mais familiar a quem viva junto dela e a envolva da sua afeição? O que há de mais íntimo nos sentimentos de uma mãe, a ternura e a profundeza do seu devotamento, não se demonstra, mas experimen­ta-se, vive-se. Desta sorte, só o católico que crê e que ama pode penetrar no interior. Só ele, graças ao que sente, ao que experimenta, ao que vive, ao que Pascal chama “o es­pírito de finura”, isto é, a intuição de todo homem, — só ele pode perceber essas forças íntimas, essa potência ex­pansiva que constituem o Catolicismo.

Procurar a essência do Catolicismo é o mesmo, pois, que explicitar o conteúdo da conciência católica. Não é e não pretende ser outra coisa senão a simples análise dessa conciência, a resposta a esta pergunta: Que é que um católico vê em sua Igreja e como age esta sobre ele? Onde põe o crente as forças vivificantes, o coração, o centro do seu catolicismo?

Não é sem razão que, mesmo bem para além do círculo restrito dos crentes, a questão apaixona os espíritos con­temporâneos. F. H e i 1 e r assinala com insistência o interesse crescente que o Catolicismo excita (3): “A Igreja Romana exerce hoje, diz ele, um forte poder de atração sobre o mundo dos não-católicos. Os mosteiros Beneditinos da Alemanha, em particular os de Beuron e de Maria Laach, tornaram-se verdadeiros centros de pe­regrinação para não-católicos que aí se entusiasmam pela liturgia católica. No seio do protestantismo, o movimen­to “Alta-Igreja” caminha, se aproxima de cada vez mais da Igreja Romana; um de seus chefes já se integrou mes­mo em seu seio. Na Inglaterra é ainda mais extenso o movimento das conversões. Conventos e mosteiros angli­canos passam inteiros para a Igreja Romana. Intensa pro­paganda católica acentua esta simpatia pelo Catolicismo. A Igreja romana faz atualmente esforços consideráveis

3) F. H e i 1 e r, Op. cit., pág. 8.

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para reunir os cristãos separados do Oriente e do Oci­dente. No túmulo de são Bonifácio fundou-se uma asso­ciação que visa a união das diversas confissões cristãs... Certas da vitória, vozes católicas anunciam a ruina pró­xima do protestantismo". Heiler viu justo ao verificar o despertar do Catolicismo, mesmo entre os incréus, mas engana-se ao falar da certeza da vitória coni que anuncia­ríamos a ruina próxima do protestantismo. A palavra “vi­tória" é profana, de maneira nenhuma religiosa. Reduzi­ria a religião a um negócio de partido. Religião implica

humildade, respeito, reconhecimento e alegria, mas ex- clue qualquer pretensão a uma vitória. O que será do pro­testantismo é segredo de Deus. Depende dele que o Oci­dente saia de sua dispersão, do seu esmigalhamento, para reunir-se fraternalmente, como outrora, no seio da Igre­ja, mãe comum. Tudo o que podemos fazer é dar testemu­nho da verdade, pedindo a Deus que se digne abrir os corações e pôr de cada vez mais Iimpidamente no campo de visão espiritual dos melhores entre nós a tarefa que se impõe de maneira tão urgente. Consiste esta em fazer desaparecer, de uma vez para sempre, o rasgão perpetua­mente doloroso que há séculos nos mantém separados uns dos outros, em criar uma nova unidade espiritual, uma pátria religiosa, e em assentar por esta forma o único fundamento possive! de uma reconstrução, de uma res­surreição da velha Europa. Com grata satisfação, veri­ficamos que a conciência de tão premente dever se torna cada vez mais viva, e que iá passou o tempo em que se considerava o Catolicismo como um amálgama de tolice, de superstição e de espírito de domínio.

Pode-se atribuir a es<e despertar do ideal católico uma dupla causa.

A primeira, inteiramente exterior, é sem dúvida essa sensação, sempre atoai e particularmente viva, das espan­tosas consequências da grande guerra, do terrivel des­moronamento de nações e civilizações brilhantes. Em pre­sença das ruínas das antigas potências políticas e econô­micas, exhaustas da guerra, o olhar instintivamente se volta para essa sociedade que se estende sobre o mun­do inteiro, semelhante ao rochedo que permaneceu in­tacto e dominante em meio das ruinas, sem ter sido nem mesmo abalado pela tempestade, a qual, única

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10 Introdução

entre todas as formações políticas, econômicas e re­ligiosas, não foi tocada pelo tempo e continua jovem como nos primeiros dias. Vemos, por assim dizer, com os nossos próprios olhos, tocamos com o dedo o que es­crevia o célebre historiador inglês M a c a u l a y a res­peito da incompreensível e indestrutível força de vida do Catolicismo (4): “Não há e não houve jamais sobre a terra obra devida à sabedoria dos homens que mereça, tanto quanto a Igreja Católica romana, deter nossa aten­ção. Sua história reíiga os dois grandes períodos da civi­lização humana. Não existe mais nenhuma outra institui­ção que se possa reportar aos tempos em que do Panteão subia o incenso dos sacrifícios e em que, no anfiteatro de Vespasiano, pulavam os tigres e os leopardos. Já se comparou a lista dos papas com as mais orgulhosas famílias reais de antanho. Esta lista nos faz remontar, por uma série ininterrupta, do papa que, no século XIX, coroou Napoleão, ao que, no VIII século, sagrou Pepino o Breve... A República de Veneza era o mais antigo dos Estados. Moderníssima com relação ao Papado, ela contudo desapareceu, ao passo que o Papado continua. Continua a viver, não em estado de decadência, ou como um simples vestígio do passado, mas em pleno vigor e em toda a força da juventude. Ainda hoje a Igreja católica en­via, até aos paises mais afastados do mundo, mensageiros de sua fé, não menos ardentes do que os que desembarca­ram na Inglaterra em companhia de Agostinho. Ainda hoje, os Papas sabem resistir aos soberanos hostis tão corajosa­mente quanto a Átila resistiu Leão Magno. Nada anuncia o fim próximo da sua longa soberania. A Igreja romana viu começarem todos os poderes e todas as confissões que atualmente existem. Não ousaríamos garantir que não os verá acabar. Ela era grande e cheia de honras muito an­tes que os Saxões pusessem o pé na Inglaterra e os Fran­cos tivessem transposto o Reno, quando a eloquência grega brilhava ainda em Antioquia e os ídolos eram ado­rados no templo de Meca. Poderá ainda existir em toda a sua força quando, um dia, até aqui vier um viajante da Nova Zelândia, e, ao meio do imenso deserto de ruí­nas, instalado sobre um pilar demolido da ponte de Lon-

4) Essay on L. von Ranke’s History of the Popes.

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A d .1 ni, A essGnda do Catolicismo I I

dres, desenhar as ruinas da catedral de São Paulo”. O que, no meio do deserto do presente, atrai nosso olhar, é, com efeito, essa perenidade, esse vigor que a tudo afron­ta, essa eterna juventude da velha, velhíssima Igreja. Daí, naturalissimamente, da parte de muitos, os melhores, esta pergunta: de onde lhe vem tal força de vida? pode ela comunicá-la ao Ocidente enfermo? e o quererá? e o fará?

A segunda razão a atrair para o Catolicismo a atenção do homem contemporâneo, do homem da guerra e da Revolução, é de ordem íntima, resultado da observação aprofundada que cada um pode fazer de si mesmo. A característica do homem moderno é ser um desenraiza­do. À história cabe mostrar como chegou ele a esse es­tado. O grito do XVI século “Los von der Kirche” (nada de Igreja), provocava por uma lógica fatal o “Los von Christus” (nada de Cristo), do XVIII, depois o “Los von Gott" (nada de Deus) do XIX século. Por esta forma a vida interior moderna viu-se cortada do seu mais indis­pensável, mais profundo princípio, do que a fazia mergu­lhar no Absoluto, no Ser dos Seres, no valor dos valores. A vida perdeu seu verdadeiro, seu grande sentido, seu impulso interior para o Alio, seu ímpeto de amor eficaz e possante que só o Divino pode suscitar. Em lugar do homem ancorado no Absoluto, firmado em Deus e, por isto, forte e rico, passámos a ter o homem independente e autônomo.

Além disso, renunciando, pela sua revolução religiosa, à comunhão dos fiéis da Igreja, a essa vida de interação mútua dos crentes, cortou ele a segunda das raizes que

serviam a alimentar-lhe a vida: o laço da comunidade. Privou-se da união estreita no sofrimento e na alegria,

na oração e no amor, que se traduz pelo “Vós” e o “Nós”,

a união primitiva com esta unidade que desborda toda personalidade, na qual pode cada um beber indefinida­mente para renovar as próprias forças, c sem a qual per­

manece esteril e ressequido. — Em nenhuma outra con­

fissão ou religião, a comunhão na vida, na ação e no so­

frimento, na oração e no amor, o crescimento e a forma­

ção pela união fraternal, se apoiam tão firmemente sobre

o dogma, a moral e o culto como na Igreja católica. A

ruptura da comunidade religiosa provocou naturalmente

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o afrouxamento dos laços da comunidade social, e cor­rompeu, por este mesmo motivo, as fontes profundas dc uma humanidade sadiamente constituída e forte, da hu­manidade na mais plena acepção do vocábulo.

O homem autônomo tornou-se, na verdade, o homem isolado. Acentua-se ainda mais a desagregação. Desde que o progresso da cultura destronou a razão, quer dizer, o pensamento que unifica, que percebe o todo, e a substi­tuiu por esse conhecimento que se aplica ao pormenor e que desperdiça, a personalidade do homem, sua unidade espiritual, desmoronou numa confusão de forças e de fun­ções. Não mais se fala de alma, porém de processos psi­cológicos. A conciência, o Eu, o substrato das energias vitais, tudo isto desaparece de mais em mais do pensa­mento filosófico contemporâneo. Depois que Kant e sua escola fizeram do Sujeito transcendente o legislador au­tônomo do mundo do Objeto, e até da própria conciência empírica, depois que, em lugar da objetividade das coisas e do Eu, se passou a f<tlar de valor lógico objetivo, de um “sujeito puramente lógico”, como que ficou paralisada toda confiança no real (5). Aqui, a filosofia do “como se”, acolá, o “Solipsismo” ficavam sendo o espetro que furtou todo o conteúdo da vontade e da ação. Tornado autônomo, pela sua separação de Deus, isolado, por se haver separado dos irmãos, de toda comunhão, o homem se viu, ademais, cortado do seu eu puramente empírico. Não conservou mais do que as aparências de um homem verdadeiro. Por isto mesmo, tornou-se esteril, corroido, devorado, como é, pelo espírito de crítica, de negação ab­soluta (6).

Este homem exangue, esteril, que se limita a negar, não pode continuar por mais tempo. Não se vive de negações. Ora, o homem quer viver. Mais forte nele é o impulso vi-

5) Cf. E. P r z y w a r a , Gottgeheimnis der Welt, 1923, p. 120 e seguintes.

6) Sobre "As tendências atuais da filosofia alemã”, que mar­cam uma reação parcial contra o Néo-Kantismo, cf. a obra de G. G u r v i t c h , Paris, 1930. Para a filosofia do "Como se”, nossas idéias são simplesmente ficções cômodas e práticas, mas nenhuma relação têm com a verdade. Este movimento de idéias foi lançado na Alemanha pelo livro de H a n s V a i l i i n g e r , Die Philosophie des “Ais Ob”, Berlim, 1911.

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A d a in, A essência do Catolicismo 13

tal do que toda essa fria filosofia. Ele clama com todas as suas forças pela vida, a vida plena, inteira, pessoal. Está cansado de negar, quer poder afirmar. A ação, a vida, tem necessidade de afirmações nítidas, de posições francas e audazes.

Será, pois, surpreendente que esse homem tome pelo Catolicismo um interesse que não é simplesmente especu­lativo, acadêmico? Mostraremos minuciosamente que o Catolicismo — e é o que o distingue das outras confis­sões cristãs — é essencialmente tese, afirmação, aferi­ção de todos os valores e realidades do céu e da terra. As confissõc3 não-católicas se colocam todas, não no ter­reno de uma afirmação firme e absoluta, mas no da ne­gação, da supressão, da escolha subjetiva. A história do Catolicismo é a da afirmação sem restrições, rigorosa, completa, da inteira realidade da revelação, da plenitude do Espirito de Deus, que se propagou no Cristo com toda a sua força de desenvolvimento. Dá a resposta decisiva, absoluta, completa à vida interior do homem sob todos os aspectos, fornecendo-lhe as suas bases verdadeiras. An­tes de nada mais, a afirmação absoluta do primeiro fun­damento do nosso ser, Deus vivo, Deus no sentido pleno, Deus da força criadora e da justiça, e não apenas o Deus- Pai das crianças e dos pecadores, e ainda menos simples­mente o Deus da filosofia e do deismo, que tem medo aos milagres, ou o Deus dos acomodatícios; o Cristo tam­bém completo, o Cristo em quem Deus se nos revelou, o Cristo em duas naturezas, o Homem-Deus em quem o Céu e a Terra se unem, e não somente o Cristo-Bom Pas­tor do Salão ou o Cristo extático dos círculos de escol; a comunidade completa igualmente, isto é, o conjunto da humanidade da terra, na qual enxergamos o próprio Cristo.

A comunidade é o só dado primitivo que permite às individualidades cristãs o ser e o crescer. — Ora, a per­sonalidade deve desenvolver-se toda inteira: não apenas o sentimento de piedade, mas a fria razão que examina; não apenas a razão, mas também a vontade enérgica e ativa; não apenas o homem interior e espiritual, mas o homem exterior e sensivel. O Catolicismo, na sua essên­cia integral, responde completamente e fortemente ao ho­mem todo. O Catolicismo é, numa palavra, a religião po­sitiva, essenciàlmente tese, afirmação no sentido pleno

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14 Introdução

do vocábulo e sem nenhuma supressão, ao passo que to­das as outras confissões não-católicas são essencial­mente antítese, essencialmente combate, contradição, ne­gação (7). Por isso tambem, sendo a negação por si mes­ma infecunda, não possuem elas, pelo menos em medida igual, a força fecunda, criadora. Toda a história do Ca­tolicismo aí está para testemunhá-lo.

Deste positivo o homem contemporâneo sente que tem necessidade, e começa a voltar os olhos para o Catoli­cismo. Quem sabe se ele não será em seu favor? Bons espíritos convidam a que se olhe para esse lado, ou, pelo menos, a que.se mostre m2is largueza de alma para ver o catolicismo sem prejuizos. Soederblom, arcebispo pro­testante de Upsala, conhecido pelos seus estudos de filoso­fia e de história religiosa, não teme escrever, para atrair a atenção dos seus crentes (8): “O cristianismo romano representa, no seu verdadeiro fundo, algo de diverso do desejo de dominar, do culto aos santos e do jesuitismo. Constitue, na realidade, um tipo de piedade, diferente da­quele do cristianismo evangélico, mas completo em seu gênero, direi mesmo, mais completo do que o tipo evan­gélico. Nós todos continámos muito pouco no sentido do

grandioso projeto de Schleiermacher, de uma apologética que estudasse a essência das diversas religiões e confis­sões históricas. Tal crítica nada teria de comum com as querelas confessionais, mas, sim, em nome do principio

fundamental, se insurgiria contra as contrafações que,

nessas igrejas, vão de encontro à sua essência”. Ainda

recentemente, queixava-se H e i I e r (9) de conhecerem

tão pouco os protestantes o verdadeiro catolicismo. “A po­

lêmica protestante não vê habitualmente senão certas pare­

des exteriores da catedral católica com as suas fendas e o

7) T e r t u l i a n o dizia já a respeito dos mesmos: nihil enim in­terest illis, licet diversa tractantibus, dum ad unius veritatis ex- pugnationem conspirent (de praescript., c. 41). Schisma est enim unitas ipsa (C. 42). Santo Agostinho, da mesma forma: dissen- tiunt inter se, contra unitatem omnes consentiunt (Serm. 47, 15, 27).

8) N. S f f i de r b l om, Religionsprobleme, I, 1910, n. 4 (cita­do por Heiler). S o e d e r b l o m está à frente do movimento que impele à união de todas as Igrejas e confissões cristãs.

9) H e i I e r, op. cit., p. 5.

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seu aspecto surrado pelo tempo, no passo que as mara­vilhosas obras de arte do interior lhe ficam escondidas. As formas mais vivas c mais puras do catolicismo fica­ram, tanto vale dizer, desconhecidas da simbólica pro­testante. Tanto a visão do conjunto quanto a visão do interior lhe são igualmente interditas".

Se isto acontece com relação ao Catolicismo entre os teólogos protestantes, será de espantar que nos meios estranhos aos estudos teológicos, cultos ou não, reine uma completa ignorância do verdadeiro catolicismo, ignorân­cia de que se queixam os mais clarividentes protestan­tes? Ela é que é a fonte dos peiores prejuizos, dessa indi­ferença, dessa antipatia, mesmo desse desprezo pela vida religiosa católica; ela é que acentua essa lamentavel cisão e divisão entre a parte católica e protestante do país. O mestre da história da Igreja e do dogma entre os protes­tantes, H a r n a c k, escreve a tal respeito (10): "Os es­tudantes, ao sair do colégio, sabem um pouco de tudo re­lativamente à história da Igreja, porém, quasi sempre, pude muitas vezes verificá-lo, sem ligação nem vista de conjunto e, pois, sem nenhuma verdadeira inteligência. Conhecerão, porventura, até os sistemas gnósticos e toda sorte de minúcias perfeitamente inúteis para eles, mas da Igreja Católica, a mais fenomenal criação religiosa e po­lítica da história, absolutamente nada sabem. Fabricam a respeito dela idéias desarticuladas, vagas e muitas ve­zes ridículas. Como nasceram as grandes instituições do Catolicismo, o papel que desempenharam na vida da Igreja, por que funcionam de maneira tão segura e im­pressionante, são coisas que constituem, pelo que vejo,

para todos, salvo raras exceções, terra incógnita”.

Nosso dever é introduzir nessa terra incógnita os jo­

vens estudantes, que nela não viveram desde a infância,

que não fruiram do seu sol nem comeram do seu pão.

Inutil observar que, nisto, escrupulosamente se evitará

toda polêmica que não seja indispensável, como tudo o

que possa ferir o sentimento religioso dos que não têm a nossa fé. De outro lado, é preciso não esquecer que o

mais nobre, mais elementar dever do que pesquisa é “pro-

10) A. H a r n a c k , j4us Wissenschaft u. Leben, I, p. 96 e seg.

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16 Introdução

fcssar”, “confessar”. O que, na sinceridade de sua alma, graças às luzes trazidas pelos meios científicos de que dispõe, premido pela evidência da verdade, descobriu de decisivo, de verdadeiro e real, deve reconhecê-lo como tal. Deixemo-nos dos “Talvez que s im ...” ou dos “De um lado ... Do outro la d o ...”. Ou um “sim” ou um “não”. E’ neste sentido que estas conferências devem ser abordadas. A cada um de nós aplica-se a palavra do Se­nhor: A verdade libertar-vos-á...

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Ca p i t u l o I

Cristo na IgrejaEis que estarei convosco até ao fim dos séculos. (Mt 28, 20).

Se perguntamos à Igreja católica: que conciência tens, que dizes de ti mesma, que pretendes ser? — os seus mais autorizados Doutores de todos os séculos respon­dem-nos: A Igreja é a realização do reino de Deus na terra: “A Igreja de hoje, a Igreja atual é o Reino do Cristo e o Reino dos céus”, emocionado proclama santo Agostinho (De Civit. Dei, XX, 9, I). O “Reino dos céus”, o “Reino de Deus” que o Cristo anuncia após a profe­cia de Daniel (VII, 9-28) e que, semelhante ao grão de mostarda, cresce e se desenvolve, e, semelhante ao fer­mento, penetra e leveda o mundo, e, semelhante a um cam­po, contêm, a um só tempo, o trigo e o joio até ao fim da colheita, esse “Reino dos Céus” a Igreja o encontra rea­lizado em si mesma. Tem conciência de ser a manifes­tação do novo, do sobrenatural, do divino que aparece no Reino de Deus, a manifestação da Santidade. Sob a apa­rência das coisas que passam, ela é a realidade sobre­natural, nova, trazida à terra pelo Cristo, o divino que se apresenta sob invólucro terrestre. E como foi na pessoa do Cristo que a plenitude dessa divindade se comunicou de maneira criadora, são Paulo, o apóstolo dos Gentios, exprime o seu mais profundo Mistério quando, empre­gando uma fórmula familiar ao pensamento grego, cha­ma a Igreja o corpo do Cristo (1 Cr 13, 27; Col 1, 18, 24; Ef 1, 22; 4, 12): “Todos, com efeito, fomos batiza­dos num só espírito para formar um só corpo, sejamos

judeus ou gregos, sejamos escravos ou livres, fomos to­dos saciados de um só espírito” (1 Cr 12, 13).

O Cristo, o Senhor, é, propriamente falando, o Eu da Igreja. A Igreja é o corpo penetrado, animado das ener­gias vivificantes de Jesús. Esta união do Cristo com a

A essência — 2

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18 Cap. I. Cristo na Igreja

Igreja é tão intima, tão indissolúvel, tão natural e tão essencial que são Paulo, em suas Epistolas aos colossen- ses e aos efésios, chama, em termos próprios, ao Cristo a cabeça do corpo da Igreja. E’ preenchendo a função da cabeça unida ao corpo que Cristo faz do organismo da Igreja um todo completo, que a si mesmo se basta. Não se concebe o Cristo e a Igreja separados um do outro, como se não concebe a cabeça separada do seu corpo (Cl 1, 18; 2, 19; Ef 4, 15 sg). Esta doutrina da vida do Cristo na Igreja, da orgânica, essencial ligação da Igreja com o Cristo é ponto fundamental da mensagem cristã. Desde Orígenes, até ao pseudo-Dionísio, passando por santo Agostinho e continuando até santo Tomaz de Aqui- no, e depois até ao nosso M oe h 1 e r, o Mestre de Tubin- ga (1), esta convicção é o ponto central da doutrina ca­tólica sobre a Igreja. Apraz-lhes repetir sob todas as for­mas a frase que santo Agostinho emprega para celebrar a unidade misteriosa do Cristo e da Igreja: os dois não são “mais do que um", “um corpo”, “uma carne”, “uma só e mesma pessoa”, "um homem”, "um só Cristo”, “o Cristo total”. Para dar seu verdadeiro sentido a essas re­lações do Cristo com a Igreja, a essa unidade intima entre ambos, e traduzi-la de maneira impressiva, nada melhor do que a imagem do noivado entre o Cristo e a Igreja, que s. Paulo, ao gosto das imagens caras a muitos profe­tas (Os 1, 3; Jr 2, 2; Is 54, 5) emprega pela primeira vez (2 Cr 11, 2). Segundo são Paulo, a Igreja é a noiva do Cristo, pela qual ele se entregou à morte. Na mesma ordem de idéias, o autor do “Apocalipse” celebra o “Noi­vado do Cordeiro”, e fala da “noiva” que está pronta. Foi daí que, mais tarde, a teologia mística católica ex­traiu esta idéia audaz: o Cristo, esposo e senhor, e a Igreja, sua esposa, por uma união íntima, dão à luz os filhos da vida nova.

Esta realidade sobrenatural da Igreja se manifesta, em primeiro lugar, nas suas mais autênticas criações: seu dogma, sua moral e seu culto.

1) A. Mceh l e r (1796-1838), professor na Universidade de Tubinga, é um dos teólogos mais notáveis do século 19. Suas principais obras, “A Unidade da igreja” e a “Simbólica" foram traduzidas em francês. G o y a u publicou-lhes excertos em "La pensée chrétienoe".

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A d ii in, A cRsôncia do Catolicismo 19

Seu Dogma pretende não scr mais do que a proposição feita à nossa fó, pela Igreja, infalivcl no seu ensino, da verdadeira revelação do Cristo, já jubilosa mensagem que nos traz toda a preciosa realidade, toda a plenitude de vida que ao mundo do espaço e da tempo desceu com o Verbo incriado.

Os dogmas da Cristologia propriamente dita revelam- nos a pessoa do Homem-Deus, o reflexo da “Majestade de Deus” na figura de Jesús. — Os da Redenção descre­vem-nos sua atividade redentora manifestada pela sua vi­da, paixão e morte, e, finalmente, tambem a sua postura à direita do Pai. — Os dogmas da Trindade conduzem- nos à fonte primeira desta vida divina, no seio do Pai, re- ligando o aparecimento de Jesús no tempo à sua nascen­ça eterna no interior da Trindade. — Os dogmas mario- lógicos ensinam-nos as relações de Maria, a Mãe de Je­sús, com a humanidade de seu Filho e com sua obra re­dentora. — Os ensinamentos sobre a graça afirmam a gratuidade absoluta da redenção de Jesús e fornecem-nos os fundamentos dos sentimentos novos de que devem ser animados os que foram resgatados: amor, paz, alegria no Espírito Santo. — Quanto aos dogmas da Igreja, dos sa­cramentos e dos sacramentais, dizem-nos de que manei­ra, praticamente, esta vida, que surde do Cristo, é comu­nicada aos homens de todos os paises e de todos os tem­pos. — Os dogmas dos novíssimos mostram-nos em Je­sús o juiz e o consumador que, depois de haver cumprido a obra da redenção, põe todo o seu poder nas mãos do Pai afim de que "Deus seja tudo em todas as coisas”.

Trazem assim todos os dogmas da Igreja católica a marca do Cristo; exprimem um aspecto da sua revelação e nos põem sob os olhos, em toda a extensão do seu des­envolvimento histórico, o Cristo vivo, Salvador, Rei, Juiz.

O mesmo se dá com a moral e o culto da Igreja cató­lica.

A idéia fundamental da educação dada pela Igreja, de todo o seu ensino, sua prédica e sua disciplina, é a de fazer do crente um “outro cristo”, de "modelá-lo pelo Cristo”, segundo a expressão dos santos Padres. E’ tal e tão elevado ideal que dá à moral católica a sua unidade. Não há duas morais na Igreja, porque não se trata nunca senão de edificar o Cristo. O que varia, quasi indefini-

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20 Cap. I. Cristo na Igreja

damente, são as vias de acesso a esse fim único, vias tão variadas quanto os homens mesmo que se devem erguer para o Cristo e nele transformar-se. Muitos não chegam a traçar em si mesmos senão um leve e assaz confuso es­boço da imagem do Cristo. Em compensação, assim co­mo a natureza se compraz, por vezes, em fazer aparecer o melhor dela mesma em alguns exemplares de todos os pontos de vista perfeitos, em lhes comunicando, por as­sim dizer, o supérfluo de suas energias, de igual ma­neira, na Igreja, acontece que a plenitude do Cristo, a ri­queza de sua graça se manifesta, em todas as épocas, neste ou naquele dos seus santos, em feixes luminosos, em pro­dígios de abnegação pessoal e de caridade para com os outros, de pureza, de humildade, e de devotamento. A obra do professor Merkle sobre “Os educadores religio­sos na Igreja católica” (2) permitirá, mesmo a homens que não participem de nossa fé, o fazerem uma idéia da seriedade profunda e da heróica força que a Igreja cató­lica tem desdobrado através das idades para tentar reali­zar essa imagem do Cristo, para introduzir o seu espírito no homem que não é mais do que carne e sangue, para incarnar Jesús em cada um.

A mesma atividade, a mesma plenitude do Cristo, res­pira o culto, a liturgia da Igreja.

Cada uma das orações da liturgia termina pela tradi­cional conclusão: Per Dominum nostrum Jesum Christum (por nosso Senhor Jesús Cristo), como cada reunião litúr- gica, desde o santo Sacrifício da missa até ao mais sim­

ples gesto de oração, relembra o Cristo (âváfivrjou;

X q io tov ). Mais ainda: a liturgia católica não é somente um relembrar filial do Cristo, mas uma real participação, sob formas sensíveis misteriosas, de Jesús e de sua força redentora, um contacto reconfortante da borla de sua túni­ca, um contacto libertador das suas santas chagas, eis o verdadeiro sentido, o sentido profundo da liturgia católi­ca: tazer de toda a vida do Cristo uma realidade presente, sensivel e operante. — Assim, no batismo, ao olhar da

2) Religiöse Erzieher der katholischen Kirche aus den letzten vier Jahrhunderten, Leipzig, S. d. E’ uma série de capítulos sobre os mais notáveis "educadores” católicos, a começar de Santa Teresa e até Newman.

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A d a ui, A essência do Catolicismo 21

conciCncia cristã, é o sangue do Cristo derramado na cruz que cscorre sobre a alma, purifica-a de todas as enfer­midades do pecado original e a penetra de sua própria força vital santificante, para dela fazer um homem novo, regenerado, uin filho de Deus. — Na confirmação, Jesús envia o seu “Consolador", o Espírito de Força e de Fé, à alma cristã que desperta, para fazer desse filho de Deus uin soldado. — No sacramento da Penitência, Jesús, o Salvador misericordioso, consola a alma, entristecida do seu pecado, dizendo-lhe: “Vai, teus pecados te são per­doados”. — Pelo sacramento da Extrema-Unção, o Bom Samaritano se aproxima do leito do pobre doente e der­rama nesse coração ferido um vigor novo, ao mesmo tem­po que o espírito de sacrifício. — No sacramento do ma­trimônio, faz com que o amor do homem e da mulher par­ticipem do seu amor profundo, fiel até à morte, pelos seus, pela comunidade cristã, pela Igreja. — Enfim, na impo­sição das mãos da ordenação sacerdotal, transmite os seus plenos poderes de Messias, seu poder de benção aos que escolheu como discípulos, afim de continuar, pelo seu mi­nistério, a fazer com que saiam do império da morte ho­mens novos, filhos de Deus.

Os sacramentos nos dão a certeza sensivel, garantida pela própria palavra de Jesús e a prática dos apóstolos, de que Jesús continua a operar em meio de nós a cada curva importante, alegre ou triste, de nossa pequena exis­tência. No altar do casamento, no berço conio no leito de dor, nos momentos de crise e de penosos trancos, Jesús ai está, sob o véu da graça sacramental, aí está como amigo e consolador, como médico das feridas da alma e do cofpo, para dar-nos a verdadeira felicidade. Santo Tomaz de Aquino (3) descreveu de maneira particular­mente luminosa esta penetração constante da vida inteira do cristão pela fé dos sacramentos e do Salvador. Goethe disto fala com emoção no VII livro da segunda parte de "Dichtung und Wahrheit”. Termina por esta reflexão no­tável: “E dizer que esse conjunto espiritual tão bem or­ganizado foi deslocado pelo Protestantismo, que dele não conserva como autêntica senão uma parte mínima, rejei­tando todo o resto a título de ser invenção posterior! De

3) Summa theol. — 3 p. q. 65 art. 1.

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22 Cap. 1. Cristo na Igreja

que modo a indiferença com que olhamos para alguns den­tre eles poderia preparar-nos para considerar os outros com o respeito devido ao que vem de Deus?”

E, no entanto, os sacramentos, por mais santos que se­jam, não são ainda o que há de mais profundo e maissanto. Jesús liga-se de tal maneira aos seus crentes, tãoativa, tão penetrante é a sua graça, que ele se dá a si mesmo, pessoalmente, como uma realidade ativa e bené­fica. Jesús comunica aos seus sua realidade íntima, o que ele tem de mais precioso, o seu eu, a sua personalidade divina. Comemos o seu corpo, bebemos o seu sangue. Ama Jesús de tal forma os seus, que não se contenta com o vivificá-loS com a sua graça e a sua força, anima-os realmente da sua pessoa humano-divina, põe-se em co­munhão de carne e sangue com eles, une-os ao seu ser como a rama ao cepa da vinha. Não, em verdade, não fomos abandonados como orfãos neste mundo. Sob a apa­rência do pão e do vinho, o Mestre continua a viver emmeio dos seus discípulos, o “Senhor” em meio do seupovo, até que do alto do céu ele retorne em toda a sua majestade. O sacramento do altar é o memorial mais pos­sante, mais profundo, mais íntimo do Senhor, à espera do seu glorioso retorno. Malgrado as centenas ou milhares de anos, malgrado a sucessão dos povos e das civilizações, Jesús não poderia ser esquecido. Nenhum coração, na terra, nem mesmo o de nenhum pai ou de mãe nenhuma, tem sido amado tão verdadeiramente, tão fielmente, tão fortemente e com devoção tamanha, por milhões e milhões de seres humanos, quanto o coração de Jesús.

Nos sacramentos, especialmente no do altar, aparece da maneira mais patente a idéia fundamental da Igreja: a incarnação do Cristo em seus fiéis. Por isto mesmo, um católico acharia que pretender encontrar a origem, não somente deste ou daquele rito exterior, mas do conteúdo próprio e do sentido dos sacramentos, em crenças e ritos estranhos ao cristianismo, talvez mesmo nos mistérios do paganismo, seria ver as coisas muito pela superfície. Os sacramentos da Igreja nos reportam, pelo contrário, à vida cristã das origens, a realização sensível da idéia cen­tral — que encontramos desde as origens cristãs — de uma união indissolúvel com o Cristo, de “um ser no Cris­to” em continuidade até hoje. Na doutrina mística dos

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A d a m , A essência do Catolicismo 23

sacramentos, o Cristo é compreendido imediatamente co­mo o Senhor da comunidade fiel, como o princípio invisí­vel de força e de atividade. Assim se traduz de maneira concreta a idéia fundamental da Igreja: o Cristo que con­tinua a viver nela, a incarnação do divino no humano.

Dogma, moral e liturgia manifestam, acabamos de mos­trá-lo, antes de nada mais a conciência que tem a Igreja de ser o corpo do Cristo.

Esta mesma conciência inspira tambem suas regras e instituições, os métodos e procedimentos pelos quais a Igreja traduz sua vida sobrenatural e, antes de tudo, a idéia que ela própria faz de sua autoridade e de sua dou­trina dos sacramentos.

Depois de haver mostrado a vida sobrenatural na Igre­ja, assinalemos a forma especial sob a qual essa vida se nos apresenta.

A Igreja, dizíamos, pretende ser simplesmente o corpo do Cristo, a manifestação do seu ser humano-divino na história. Segue-se daí que o Cristo glorificado é a ver­dadeira fonte original de todos os seus poderes; todos aqueles de que a Igreja faz uso só são exercidos em no­me do Cristo e, num sentido ultra-verdadeiro e profun­do, lhe pertencem.

Por isto, a constituição da Igreja é inteiramente aristo­crática, vinda do alto, do próprio Cristo, e de maneira nenhuma democrática. Nela, a autoridade, o poder, não vem de baixo, da comunidade, porém de cima, do Cristo. De Deus, tornado visível pelo Cristo, decorre, por inter­médio dos apóstolos, todo poder, na Igreja. Ouçamos o velho teólogo da África, Tertuliano, exprimir de maneira impressiva essa origem: “A Igreja vem dos apóstolos, os apóstolos do Cristo, e o Cristo, de Deus (de przescript. 37). Não era em seu próprio nome, porém como “embaixa­dores” e representantes do Cristo que os apóstolos agiam: “Quem vos escuta, escuta-me; e o que me despreza, des­preza Aquele que me enviou” (Lc 10, 16; Mt 10, 40). Os apóstolos, por sua vez, como no-lo mostram os escri­tos do Novo Testamento, em particular as Epístolas pas­torais (4), após haverem fundado alguma nova comuni-

4) Cf. Tito I, 5; IV Timot. IV, 14; 2* Timot. I, 6; Atos dos Apóst. XX, 28.

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24 Cap. I. Cristo na Igreja

dade, impunham as mãos aos “primícios”, quer dizer, aos

recem-convertidos, para fazer deles os chefes ( tiqoeo-

rützcç) que, em seu lugar, deviam “pascer o rebanho de Deus”, segundo a expressão tão bela e impressiva de s. Pedro (1 Pd 5, 2). Não eram, pois, as comunidades as depositárias, os sujeitos de plenos poderes apostólicos, mas, sim, os que eram escolhidos, em nome do Cristo, pelos apóstolos, para em seu lugar exercerem a função de Anciãos, de Presidentes, de Bispos. Após a morte dos apóstolos, eram ainda esses Anciãos que, pela imposição das mãos, transmitiam seus poderes e ordenavam as no­vas comunidades em torno dos que haviam sido, por essa forma, investidos em missão. As comunidades, é verdade, davam seus sufrágios e opiniões no sentido de designar aqueles aos quais tais poderes seriam confiados, mas os poderes mesmo eram exclusivamente de origem apostó­lica. Eram comunicados pelos Epíscopos, que, por sua vez, os tinham recebido dos apóstolos. Testemunha-o toda a antiga literatura cristã. Encontramos o desenvolvimento desta idéia, já particularmente evidente e considerada clássica, numa obra do primeiro século, a primeira Epís­tola de s. Clemente (ad Cor 44, 3).

A autoridade, na Igreja, repousa sobre a sucessão apos­tólica, sobre a continuação dessa missão que os apósto­los haviam recebido do Cristo e que se transmite pela im­posição das mãos. Essa missão apostólica, transmitida de Bispo a Bispo até nossos dias, outra coisa não é. no fun­

do, senão o pleno poder messiânico de Jesús. Pela via da

sucessão apostólica, ele se propaga e estende, distri­

buindo aos homens a verdade e a graça de Jesús. Por de­

trás da autoridade da Igreja é, pois, o próprio Jesús que

devemos ver. Segundo a expressão da teologia, o Cris­

to é a “causa principalis” de todas as funções que a

Igreja exerce, a fonte primeira de sua força sobrenatu­

ral e de sua ação; o homem não é senão a “causa instru­

mental" de tudo o que o próprio Cristo ensina, santifica

e ordena. Assim, em toda função, em todo ministério da Igreja, a personalidade humana, o indivíduo como tal,

desaparecem. Em lugar da pessoa mesma do ministro, é

a força redentora de Jesús, espalhada no corpo místico do Cristo, que age. Quando ela se exprime e se faz sensível,

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A d a m , A crsCncia do Catolicismo 25

chama-se ministério eclesiástico, serviço do Cristo essen­cialmente, quer dizer, serviço só executado em nome do Cristo, segundo sua ordein, e que só da autoridade do Cristo é que toma seu sentido. Evidentemente, a persona­lidade do ministro que se compenetra das intenções do Cristo contribuirá poderosamente para dar ao exterior um carater edificante e santificante, mas a substância mesma do seu ministério, o fundo de sua atividade, é totalmente independente da sua superioridade ou da sua fraqueza pes­soal. Não é ele, com efeito, não é a sua personalidade que prega, batiza e ordena na Igreja, é somente o Cristo. A concepção da autoridade e das funções na Igreja decorre, pois, diretamente dessa doutrina fundamental da pene­tração, da animação da Igreja pelo seu “Senhor”. Não de­vemos ver nisto uma espécie de empréstimo, estranho ao Evangelho, feito às religiões pagãs, ou, mesmo, ao direito judaico ou romano, mas, pelo contrário, a expressão da pu­ra doutrina evangélica: “E’ o Cristo que prega, é o Cristo que batiza”. A Igreja não tem outra pretensão senão a de conservar o grande pensamento cristão primitivo, se­gundo o qual nela não há senão uma única autoridade le­gitima, um único mestre, um sé autor e distribuidor da graça, um só Pastor: o Senhor, o Cristo.

Não constitue, pois, a concepção da autoridade e das

funções na Igreja nada de hirto, de mumificado, mas uma

direção da vida e da atitude do crente para o Cristo, e

só para o Cristo. Entre o Cristo e o fiel, nenhuma autori­

dade humana, nenhuma pessoa estranha se interpõe. E’

diretamente do próprio Cristo que devem descer às almas

a verdade, a graça e a vida divinas. A Igreja assegura pre­

cisamente — por iimis paradoxal que possa parece: esta

afirmação — pelo seu carater impessoal, a liberdade da

personalidade cristã. Preserva da dominação espiritual e

da pretensão a se erigirem em mediadores indispensáveis

que poderiam ter certas personalidades. Colocando dire­

tamente em face um do outro o Cristo e o fiel, a interven­

ção da Igreja não separa, pois, une, pelo contrário, ou

antes, protege e assegura essa misteriosa e maravilhosa

comunicação entre o Cristo e a alma. Protege e assegura

o contacto e a permuta de vida entre a cabeça e os seus membros.

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26 Cap. 1. Cristo na Igreja

Vale essa doutrina tanto para a missão doutrinal quan­to para a missão sacerdotal e pastoral. O Ensinamento da Igreja repousa sobre a palavra do Senhor, não tendes senão um único Mestre, o Cristo (Mt 23, 10). Quando o padre católico anuncia a palavra de Deus, não é um ho­mem que prega, é o próprio Cristo. Neste sentido, a prédica do Papa na Capela Sixtina, aos olhos da verda­deira fé cristã, não tem mais valor do que a do mais mo­desto cura da mais ínfima aldeia. Porque não é Pedro, nem Paulo, nem Pio, “é o Cristo que prega”. Toda a his­tória das lutas da fé cristã é dominada por esta convicção de que o Cristo é o Doutor único na Igreja. Porque a sua prédica vem exclusivamente do Cristo, a Igreja pode ater- se firme e corajosamente à mensagem do Cristo, que trans­mite. Eis por que ela não poderia pensar em “moderni­zar-se”, isto é, em acompanhar o espírito do tempo. Seu ensinamento não é e não quer ser mais do que a continua­ção, para os homens do seu tempo, da mensagem do Cristo, pregada pelos apóstolos. A tão urgente recomen­dação de s. Paulo a seu discípulo: “Timóteo, guarda o depósito que te foi confiado!” (2 Tm 1, 14; 1 Tm 4, 18; 6, 14) é o programa de toda a prédica da Igreja. Seu espírito tradicional e conservador decorre direta e logicamente do a que se poderia chamar seu fundamen­tal Cristocentrismo.

Por isto mesmo, sempre se manteve em guarda a Igreja contra a tirania das personalidades, das escolas, das cor­rentes que porventura lhe quisessem impor a sua direção. Nunca jamais ela hesitou, quando lhe pareceu que a con- ciência cristã dos fiéis, a mensagem do Cristo conser­vada pela tradição, se achavam perturbadas ou ameaça­das, em pronunciar-se até contra os mais brilhantes dos seus filhos, um Orígenes, um Agostinho mesmo. E de to­das as vezes que, em lugar do fundo tradicional, do solo firme da história dos dados cristãos primitivos, da con- ciência cristã que continua, foi a especulação, a pequena experiência pessoal, numa palavra, a pobre individualida- dezinha que pretendeu fazer-se portadora da mensagem de Cristo, a Igreja imediatamente pronunciou o seu anáte­ma. E esse anátema, não hesitaria em pronunciá-lo mes­mo se um anjo vindo do céu trouxesse uma doutrina di­ferente da que lhe foi desde os apóstolos transmitida. A

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A d a m , A essência do Catolicismo 27

história do ensinamento da Igreja outra não é senão a de uma ligação tenaz ao Cristo, de um aprofundamento rigoroso da mensagem de Jesús: Não deveis ter senão um Mestre, o Cristo (5).

O Cristo, o “Senhor” da comunidade cristã, é, na rea­lidade, como acabámos de ver, o único que ensina na Igreja. E’ também o único que opera quando a Igreja ad­ministra os Sacramentos. E' preciso não conhecer essa doutrina fundamental para ousar escrever que “na teo­ria escolástica da eficácia dos sacramentos reencontram- se as concepções primitivas de uma força automática atri­buída a certas ações” (6).

A Igreja católica ensina que os sacramentos agem ex opere operato, e não ex opere operantis, isto é, que a graça sacramental é produzida, não pelos esforços pes­soais de boa vontade e de oração do que recebe o sacra­mento, mas pela eficácia objetiva do próprio signo sacra­mental. Em cada sacramento, algo há de exterior que é posto (opus operatum). Entendamos por isto uma certa união, especialíssima, conforme a instituição feita pelo Cristo de uma coisa (a matéria) e de uma ou várias pa­lavras (a forma). Desde que este rito seja cumprido de acordo com a intenção da Igreja, o sacramento existe e a graça sacramental opera como “obra do Cristo” (opus Christi), independentemente da parte de atividade com que contribue o que o recebe (opus operantis), e simples­mente porque foi administrado validamente. Pelo só fato de, em nome da santíssima Trindade, ser a água do ba­tismo derramada sobre a cabeça da criança que acaba de nascer, é esla admitida na amizade de Deus; sem mais demora, abre-se o céu e a voz do Pai proclama: “Tu és meu filho bem-amado!”

0 rito sacramental comunica efetivamente a graça da salvação, “sem intervenções do sujeito”, pelo menos quan­do se trata da entrada em graça de uma criança que ain­da não se encontra em uso da razão. Ao adulto, no qual

5) S t o. A g o s t i n h o : Christus est qui docet. Cathedram in caelo habet.. . schola ipsius in terra est et 9chola ipsius corpus ipsius est. Caput docet membra sua, lingua loquitur pedibus suis. Christus est qui docet: audiamus, timeamus, faciamus (De disc. christ.. 14, 15).

6) H e i I e r, Op. cit., p. 12.

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Cap. 1. Cristo na Igreja

a conciência moral e religiosa despertou, é necessária uma preparação subjetiva — pelos atos de fé, de penitência e de arrependimento — à graça objetiva trazida pelo rito sacramental. A Igreia ensina que os esforços do adulto que recebe o sacramento não são a causa que produz ou atrai a graça (causa efficiens): constituem simplesmente uma preparação que põe em estado de recebê-la (causa dispositiva). A causa produtriz é exclusivamente o pró­prio Cristo, que, instituindo os signos sensiveis da graça, manifesta e oferece a vontade de distribuí-la. Originaria­mente, in actu primo, a graça é algo de dado, algo que, afora e acima de qualquer esforço do sujeito, é conferi­do pelo rito sacramental. Esta graça, assim objetivamente oferecida, será, porventura, eficazmente recebida em mim? Isto dependerá de minha disposição subjetiva. De fato, pois, a penetração real da graça na minha alma não de­pende da graça apenas, mas resulta da colaboração de dois fatores: a graça do Cristo e a minha boa vontade. Pode-se, acaso, ver nesta doutrina sacramental algo da crença primitiva que atribue forças sobrenaturais a cer­tos objetos estranhos?

Falar de uma “eficácia mágica” do sacramento é des­prendê-lo de sua raiz única, o Cristo, exclusivo distribui­

dor da graça, e conferir-lhe uma existência separada. O

sacramento, assim, ao invés de ser o signo sensive! da gra­

ça, tornar-se-ia uma fonte independente, dotada de força

sobrenatural, verdadeira “feitiçaria” sagrada. Na realidade,

o sacramento não existe por si mesmo. Só tem o seu sen­

tido inteiro, e sua realidade, no Cristo e pelo Cristo. Santo

Tomaz explica muito bem que ele não passa da causa ins­

trumental da qual o Cristo, distribuidor da graça, se ser­

ve; o signo, perceptível aos sentidos, do qual ele utiliza

a significação simbólica para produzir na alma do crente

efeitos sobrenaturais correspondentes a esse simbolo. E até mesmo, segundo a opinião escotista, sustentada em

nossos dias por um bom número de teólogos, não contém

o signo sacramental nenhuma causalidade “física” ; cai

a graça imediatamente de Jesús na alma do crente; o sa­cramento mais não é do que um signo que Jesús quis tor­

nar exterior e sensivel, ao qual ligou, como a uma con­

dição moralmente determinante, a distribuição da sua gra­

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A d a m , A essência do Catolicismo 29

ça. E’ um “Eu o quero, sê puro!” que se tornou sensível e eficaz.

Algo de objetivo, de impessoal, permanece na doutrina católica do sacramento. E’ verdade que depende a graça de Cristo, como de sua causa, não dos esforços religiosos c morais do sujeito, mas do signo sensível, dado efeti­vamente. Por que assim acontece, no entanto? Porque nesse carater impessoal, objetivo, do sacramento, como no do ensinamento da Igreja, se manifesta o que ele tem de mais profundo, de mais íntimo, a saber, a sua ligação tão especial com o Cristo, sua ação que vem simplesmen­te da plenitude do Cristo, seu poder santificante devido à só força do Cristo, porque, precisamente, não é o que nela há de humano que santifica os homens, mas a força do Cristo, unicamente. A graça do Cristo não se prende a atos humanos, à fé ou à penitência do pecador ou mes­mo á oração c ao sacrifício das almas santas, unidas a Deus, das pessoas gratificadas de carismas, dos santos profetas, bispos ou padres; prende-se a algo de totalmen­te impessoal, a um signo morto que, por si mesmo, outra vantagem não oferece senão a de ser um signo querido pelo Cristo, uma autêntica expressão de sua vontade de distribuir a graça. Esta fórmula “ex opere operato” garante o que há de mais profundo no Cristianismo, aqui­lo pelo que lutou e sofreu são Paulo, a inteira gratuidade da graça e a doutrina segundo a qual o Cristo é “tudo em todos” (nnnia et in onmibus Christus).

Como a doutrina da objetividade do sacramento está no coração mesmo do cristianismo, é evidentemente tão antiga quant» ele, tão antiga quanto o corpo do Cristo, a Igreja.

A teologia bíblica insiste fortemente no sentido de mos­trar que já em s. Paulo e em s. João encontramos esse carater de independência do sacramento com relação à pessoa, a ação ex» operato, senão em termos expressos, pelo menos de maneira equivalente. Soa sua doutrina sa­cramental com timbre nitidamente semelhante ao do en­sinamento católico atual. E como poderia deixar de ser assim? Desde que Cristo é o centro da atividade da Igre­ja, e que é bem realmente de sua plenitude que tudo re­cebemos, desaparecem, por isto mesmo, todas as fontes puramente humanas da salvação. Não há mais interme­

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30 Cap. 1. Cristo na Igreja

diário humano, como observava santo Agostinho dirigin­do-se aos Donatistas. Só Cristo opera. Quando, na co­munidade dos primeiTos cristãos de Corinto, ligavam-se alguns a personalidades favorecidas de carismas, forman­do-se, assim, os partidos de Pedro, de Paulo, de Apoio, como se acreditassem alcançar a salvação de uma ou ou­tra dessas personalidades humanas, s. Paulo ergueu-se, com todo o seu zelo de testemunha de Cristo, contra se­melhante “humanização do Evangelho”. Quem é, pois, Apoio, quem é Paulo? ministros por meio dos quais vies­tes a crer... Ninguém pode assentar outro fundamento, senão o que já está assentado, quer dizer, Jesús Cristo (1 Cor 3, 4). A doutrina católica dos sacramento*; afirma simplesmente com firmeza esse fundamento de todo o cristianismo. Nas lutas, que duraram séculos, contra os Montanistas, os Novacianistas e os Donatistas, mais lar- de contra os Valdenses, os Albigenses e os Hussitas, a Igreja retomou sempre e sustentou a palavra de santo Agostinho: “E’ por si mesmos que os sacramentos santi­ficam, não pelos homens que os conferem”. Não são, com efeito, os homens que batizam ou absolvem, mas Cristo. Precisamente porque o Sacramento cristão, pelo seu ca- rater independente das pessoas, exclue toda mediação das autoridades humanas, garante as permutas imediatas de vida entre a cabeça e os membros. Resulta daí que em nenhuma parte a liberdade pessoal na vida religiosa é tão amplamente assegurada quanto no catolicismo. Como as folhas inumeráveis de uma árvore, das quais nenhuma absolutamente se parece com a outra, as formas da pie­dade cristã, nas quais se manifesta a vida católica com o Cristo, são tambem, na sua variedade, inumeráveis.

Ainda algumas palavras sobre a função pastoral, o po­der de governar, na Igreja.

O Evangelho de s. João (21, 15 s) refere que o Cristo ressuscitado, dirigindo-se ao apóstolo Pedro, disse-lhe: “Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ove­lhas!” Não são as suas próprias ovelhas que Pedro é en­carregado de apascentar, são as ovelhas do Cristo. O po­der pastoral aparece, por esta forma, claramente, em s. João, como uma função de lugar-tenente, como um poder a ser exercido em nome do Cristo. E ’, aliás, neste sentido que dele usa s. Paulo com relação ao incestuoso de Co-

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A d n m, A essência do Catolicismo 31

rinto: ó “em nome de nosso Senhor Jesús Cristo” e “com todo o poder do mesmo Senhor Jesús Cristo” que ele o en­trega “a Satanaz para a morte da carne, afim de que o es­pírito se salve no dia do Senhor Jesús” (1 Cor 5, 3 s). Todas as medidas disciplinares da Igreja são inspiradas pela idéia de que devem ser tomadas em nome e na for­ça de Jesús. Contudo, a função pastoral na Igreja, o po­der de governar, não se exerce, como o poder doutrinal e sacerdotal, imediatamente sobre as realidades sobrena­turais dadas de uma vez para sempre na revelação do Cristo, isto é, sobre as realidades do Dogma e do Sacra­mento. Tem por objeto a introdução dessas realidades sobrenaturais na vida prática, a aplicação das normas e dos valores cristãos na vida dos povos e dos indivíduos. Ora, como esta vida de dia a dia se desenvolve e modi­fica, não poderia a Igreja pretender que cada uma de suas medidas de governo esteja, de maneira absolutamente cer­ta, na linha e no espírito de Jesús. E’ possivel que, segun­do a observação várias vezes feita por sto. Agostinho, nas prescrições do governo da Igreja algo de humano, de muito humano, consiga insinuar-se, e que nelas se notem erros e falhas. Se tais medidas particulares, porém, po­dem parecer lamentaveis, o fim perseguido, os princípios inspiradores nem por isto deixam da manifestar,- para o fiel, o espírito autêntico do Cristo, seu amor e sua força. O católico sabe que a autoridade da Igreja reveste o prin­cípio absoluto da Verdade, da Justiça e do Amor. Para ele está resolvido o problema que de maneira tão aguda propõe Dostoiewski na sua lenda do Grande Inquisidor, ou, melhor, no romance “Os irmãos Karamasoff”, que não é lendário, senão, em parte, problema que consiste em perguntar-se se não será a autoridade humana sinônimo de opressão. Pois bem, sim! toda autoridade puramente humana é necessariamente tirania, quer se exerça por meio de um só ou por meio de uma multidão. Só na “teocra­cia” se vê o homem livre do homem, porque só nela serve ele não ao homem, mas a Deus. Explica-se por esta forma o mistério, desconcertante para quem olha de fora, da obediência filial com que o crente aceita as prescrições da Igreja, e que lhe faz submeter docilmente seu próprio pen­samento e vontade à vontade do Cristo, que dirige a

Igreja. Por este meio o crente deliberadamente alarga o

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32 Cap. I. Cristo na Igreja

seu eu estreito e mesquinho, confundindo-o com o eu da Igreja. Não se trata de modo nenhum de obediência de cadaver ou de mentalidade de escravo, mas de um ato verdadeiramente religioso, pois que representa submissão absoluta à vontade de Jesús, que opera na Igreja. Tal obe-r diência não é nem urna covardia nem uma fraqueza, mas, sim, um ato de força e generosidade, um ato viril e al­taneiro mesmo em face dos tronos. Em sua leal fidelidade, ele vai até ao sacrifício dos bens da terra, mesmo da vi­da: é um sacrifício de si mesmo ao Cristo que anima a Igreja. Nessa fidelidade se mostra a nobreza do sangue que corre nas artérias do crente.

Se amanhã uma tempestade desabar sobre as comuni­dades cristãs, ou tiverein elas de derramar seu sangue para confessar sua fé, não sei se todos se manterão fir­mes e fiéis na sua união ao mesmo Cristo, se os laços que, em tempos calmos, bastavam para mantê-las unidas entre si, não se partirão em mil bocados como falripas de palha dispersas pelo vento. Mas sei que, quanto ao laço que une a Igreja e seus membros, nenhum espírito mau poderá rompê-lo, porque ele não é da terra. Foi trançado pelo “Senhor" da Igreja, pelo Deus feito homem, o Cristo- Jesús.

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C a p i t u l o II

A Igreja, corpo do CristoA Igreja é seu corpo, a

plenitude daquele que enche tudo em todos (Ef 1, 23).

Se a Igreja é o reino de Deus e o corpo do Cristo, sua primeira característica será a de ser sobrenatural, ce­leste. Por essa face, a Igreja se situa no invisivel, no es­piritual, no eterno. Acabámos de mostrá-lo na primeira conferência. A Igreja, porém, não é somente invisivel. Se é o reino de Deus, não constitue uma simples juxtaposição acidental, mas, sim, uma comunidade cujos membros são ligados à cabeça e entre si mesmos. Tal organização é necessariamente visivel. Corpo do Cristo, é essencialmente algo de orgânico, isto é, de coordenado e subordinado, um organismo visivel. Esta, a segunda particularidade da Igreja. O divino na Igreja não é, como certos autores an­tigos ou recentes possivelmente imaginam, uma espécie de entidade santificante — com uma existência indepen­dente, e que vem de maneira invisivel pousar sobre um c outro. Nela, o divino como que se objetivou, fez-se car­ne numa comunidade enquanto comunidade.

Em outros termos: a graça redentora de Jesús, tal co­mo se aplica por intermédio da Igreja, não se prende a uma pessoa enquanto tal, não se manifesta numa indivi­dualidade, mas, sim, essencialmente, numa comunidade, num conjunto de pessoas. O espírito de Jesús não se in­troduz neste mundo contingente por meio de individua­lidades dotadas de carismas, mas exclusivamente na e pela comunidade; manifesta-se sobretudo pela unidade que cria na multidão. O veículo, se assim se pode dizer, do Espírito de Jesús é, pois, a Igreja, não enquanto multidão de indivíduos, enquanto soma de pessoas cada uma das quais animada desse espírito, mas a Igreja enquanto forma

A essência — 3

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34 Cap. 11. A Igreja, corpo do Cristo

uma unidade de crentes, uma comunidade distinta das pessoas particulares que a compõem. Esta unidade nova, esta comunidade, é o dado cristão primitivo, não forma­do, nascido do agrupamento livre ou forçado dos iiéis, não repousando sobre a boa vontade dos fiéis individual­mente considerados e não fruindo, assim, senão de uma existência derivada, secundária, mas algo que, na sua própria essência, é dado antes das individualidades cris­tãs, espécie de essência transpessoal, unidade superior da qual se não poderia dizer que resulta dos fiéis cristãos que a compõem. Não são os fiéis que fazem a existência da comunidade, é, antes, o inverso que se verifica, ou seja, é a comunidade que faz com que os indivíduos, en­quanto cristãos, existam. A comunidade cristã, a Igreja enquanto comunidade, é o dado primeiro, ao passo que a personalidade cristã, vale melhor dizer: a Igreja enquan­to soma de pessoas cristãs só depois é que vem. E’ o mesmo que dizer que a Igreja não nasceu no dia em que Pedro e Paulo, Tiago e João compreenderam, cada um por seu lado, o mistério de Jesús, sua personalidade hu- mano-divina, e, conjugando a sua fé em Jesús, fundaram uma comunidade que se chamou cristã; mas que já exis­tia — em germe, virtualmente — antes que Pedro e João se houvessem tornado crentes. Como Todo, como comu­nidade, como unidade orgânica, a Igreja é uma institui­ção divina. Porque, no seu fim último, é verdadeiramen­te a unidade de todos os homens que deviam ser resga­tados, o cosmos dos homens, a humanidade como todo, a multidão como unidade, e tudo isto realizado pela san­ta humanidade de Jesús.

À primeira vista pode esta idéia surpreender; é, no en­tanto, a única que explica o lado visivel da Igreja, e nos dá o sentido de sua história. Se, como a Igreja o procla­ma, Cristo é o Deus-Homem, redentor da Humanidade — e ele o é de fato — para realizar sua obra, deve ligar a Deus, reconciliar, não estes ou aqueles indivíduos, mas a Humanidade como Todo. A miséria da humanidade de- caida, a essência do pecado original que sobre ela pesa­va. consistia em que o laço sobrenatural que a prendia a Deus desde a sua criação, e graças ao qual ela era ca­paz de realizar a plenitude, a perfeição de seu ser, e de atingir ao seu destino — esse laço tinha sido rompido

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Ad a m, A essêndn do Catolicismo 35

pelo pecado de Adão. Não foi apenas Adão que se sepa­rou de Deus, mas, sim, nele, e por ele, a Humanidade inteira. E’ este um dos dogmas fundamentais do Cristia­nismo, do qual já encontramos alguns vestígios nos escri­tos judaicos, posteriores ao canon das Sagradas Escritu­ras, c claramente formulado como dogma cristão, sobre­tudo por são Paulo. Este dogma do pecado de nossos primeiros pais, que se tornou o pecado original, e de nossa redenção pelo homem novo, o Cristo, é o núcleo central de todo o Cristianismo. Constitue o fundamento da tão forte e comovente consideração de que não deve­mos olhar a humanidade como a soma dos seres que nas­cem uns dos outros e se sucedem; nem mesmo como o conjunto dos homens que, tendo um pai comum e, pois, fazendo parte de uma só e mesma espécie, entre si mes­mos se unem. E’ preciso representar-nos a humanidade co­mo um só homem. Os homens são, com efeito, de tal for­ma unidos e dependentes uns dos outros, em sua natu­reza, em seu ser tanto espiritual quanto corpóreo, em seus pensamentos, suas vontades, seus sentimentos e seus atos; de tal forma é solidária sua vida inteira, com suas virtudes e seus erros, que mister é considerá-los como um Todo, como uma Unidade, como um Homem único para o plano divino da Redenção. Não é o homem indivi­dual, mas a inteira Humanidade, exprimindo-se sob mi­lhões de formas nos indivíduos, que constitue o homem total, a plenitude de todos os homens, que existe desde há milhares de anos e que por milhares de anos ainda existirá. Assim é que não há senão um homem, o Homem total, e que o erro e o destino de um indivíduo não são somente o seu erro e o seu destino pessoais, mas, sim, repercutem na Humanidade inteira, na proporç3o do pa­pel distribuido pela Providência a esse indivíduo no fun­cionamento e na marcha do organismo imenso que a Hu­manidade constitue.

Pensamentos que parecem, ou, antes, ainda há póuco pareciam bastante estranhos à mentalidade moderna. O individualismo da alma ocidental, que veio a flux com o Renascimento, e em seguida o desmembramento e a ato- mização, se se pode dizer, do homem e de suas potências, sobretudo essa exorcização da Coisa, do Objeto, de uma realidade fora do Sujeito, que penetrou no pensamento

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moderno em sequência a Kant, e o subjetivismo sem saida, que daí resultou, fizeram-nos perder a conciência de nos­so ser e antes de tudo mais do verdadeiro fundamento do nosso ser, isto é, da Humanidade que nos gera, nos con­duz e nos contém. Encerramo-nos nos limites do nosso Eu, e não mais encontramos o caminho da Humanidade, do Homem completo, total. A categoria “Humanidade” tor­nara-se estranha ao nosso pensamento. Não mais pen­sávamos, não mais vivíamos senão na categoria do Eu. A Humanidade como Todo, como Plenitude, precisava ser de novo descoberta.

Vemos agora pouco a pouco desenhar-se uma orien­tação diversa do pensamento moderno — sem falar das profundas mudanças que tambem se notam do ponto de vista puramente filosófico nas teorias do conhecimento. Devemos atribuí-lo à persistente gestação do pensamen­to cristão mais autêntico (1). Devemos tambem ver nisto, em parte,* a influência do socialismo e da Grande Guerra.

Sentimo-nos pouco à vontade no estreito eremitério do nosso Eu e procuramos fugir-lhe. Descobrimos, então, que não somos sós, mas que ao nosso lado, conosco, em torno de nós, e em nós, há a Humanidade. Não sem sur­presa verificamos que fazemos parte dela, que lhe estamos ligados por uma comunidade de ser e de destino e uma solidariedade obrigatória, e que só assim nosso próprio Eu poderá desenvolver-se plenamente, e que só inserindo- nos nessa Humanidade e vivendo por ela é que nos tor­naremos verdadeiramente homem. E esta atitude nova do pensamento permite apreciar melhor a extraordinária im­portância do dogma católico fundamental do primeiro ho­mem, Adão, e do homem novo, o Cristo, ambos represen­tando a Humanidade. Em Adão, o primeiro homem, cha­mado à participação da vida divina, se continha aos olhos do Deus Criador a Humanidade toda inteira. Após se ha­ver desviado do fim sobrenatural que Deus primitiva­mente lhe designara, a Humanidade, como um planeta que saisse de sua órbita, se pôs a girar ein verdadeiro turbilhão, em torno de si mesma. O Eu tornou-se o ponto central dos seus desejos e esforços, e Deus, fonte primei-

30 Cap. II. A Igreja, corpo do Cristo

1) Cf. R. Q u a r d i n i, Vom Sinn der Kirche, 1922, p. 2 sgs., 7 sgs.

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ra de sua vida espiritual, lhe apareceu como um fardo. No dia em que colheu o fruto da árvore da ciência do Bem e do Mal, Adão se fez o primeiro homem “autôno­mo”, do ponto de vista moral e religioso. O homem, des­de então, não mais tinha necessidade senão do seu frá­gil Eu como fonte de forças espirituais. Abandonou a Fonte, em fluxo eterno, da água vivificante e tentou ca­var em seu Eu uma pobre cisterna. As águas dessa cis­terna não tardaram a esgotar-se. O homem adoeceu, mor­reu da procura do seu próprio eu. A humanidade inteira ficou com ele ferida de morte. Foi então que, conforme o decreto eterno do conselho de amor mantido por Deus, apareceu o Homem novo, o Homem da união nova, du­radoura, infrangivel, com Deus, o Cristo, o Senhor. Em

sua pessoa, continha-se a Humanidade que se havia des­viado; o homem arrancado pela raiz à vida divina se viu de novo ligado, de maneira definitiva e normal, a Deus, à Vida de toda vida, à Força, à Verdade, ao Amor perso­nificados. A Humanidade — não apenas este ou aquele indivíduo, eu ou tu apenas, mas a Humanidade tomada como um todo, a unidade de todos os homens — era res­tituída, de sua lamentável dispersão, de seu esmigalha- mento, ao Deus vivo. O homem total se via restabeleci­do, unido a Deus de maneira duradoura e de tal forma que, doravante, não mais poderia, enquanto Humanida­de. por nenhuma espécie de erro, ser outra vez arrancado a essa vida divina. Assim, o Cristo, em sua pessoa divino- humana, é a humanidade nova, o novo começo, o homem total no sentido pleno do vocábulo (2).

No próprio mistério da Incarnação, já se encontrava, de direito, a Igreja como comunidade orgânica. Os indi-

2) Entre os Padres da Igreja, nenhum melhor do que Santo Agostinho pôs em relevo a unidade do Cristo e dos crentes. E’ nessa unidade que ele vê o carater essencial da Igreja: Cum ille caput, nos membra, unus est Filius Dei (in ep. Joan., tr. 10, 3). Aliter enim est in nobis, tanquam in templo suo, aliter autem, quia ct nos ipse sumus, cum secundum id, quod ut caput nostrum esset, homo factus est, corpus ejus sumus (in Joan. Ev. tr. 111,5). Et nos Ipse est (serm. 133, 8). Ille caput cum ceteris mem- bris unus homo est. Et cum ascendere nemo potest, nisi qui in ejus corpore membrum ipsius factus fuerit, impletur: quia nemo ascendit, nisi qui descendit... igitur jam non duo, sed una caro

(serm. 91, 6, 7).

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víduos inumeráveis, a massa de todos os resgatados, são doravante, em sua mútua ligação interior, em sua interde­pendência vital, em sua comunidade orgânica — são real­mente o corpo do Cristo, absolutamente inseparaveis dele por toda a eternidade.

Eis como, à luz do dogma da Redenção, devemos re- presentar-nos as coisas: não foi somente no dia em que Pedro, João e Paulo começaram a crer em Jesús, que nasceu a Igreja. Ela existia já realmente quando o Verbo de Deus se uniu à Humanidade, quer dizer, ao conjunto dos homens que seriam resgatados para formar uma Na­tureza divino-humana. A Incarnação, com o seu fim de­terminado de Redenção universal, é, para o fiel católico, o fundamento, o princípio orgânico dessa comunidade nova a que chamamos a Igreja. O corpo do Cristo e o Reino de Deus já eram algo de objetivo, de realmente realizado, pelo fato de o Verbo fazer-se carne para a salvação de todos os homens (3).

E’ mister que nos penetremos dessas idéias dogmáti­cas fundamentais se quisermos apreciar com exatidão a noção de Igreja em toda a sua extensão e profundidade. Só deste ponto de vista poderemos plenamente compre­ender por que tão preponderante é nela a idéia de comu­nidade, e por que motivo não resulta a comunidade da turbamulta dos crentes. Ela é algo de transpersonal, a Unidade que penetra, domina a Humanidade resgatada. Não constitue, pois, como se vê, nada de vago ou de inde­terminado: é a unidade interior concreta da humanidade resgatada e unida ao Cristo. O que caracteriza a Igreja católica é compreender ela, não apenas estes ou aqueles indivíduos, mas, sim, o homem total (4).

Daí, duas importantíssimas consequências. Já assina­lámos a primeira: o orgão do Espírito de Jesús Redentor

3) S t o. A g o s t i n h o : Dominus autem securus moriens dedit sanguinem suum pro ea, quam resurgens haberet, quam sibi jam conjunxerat in utero virginis. Verbum enim sponsus et sponsa caro humana; et utrumque unus Filius Dei et idem Filius ho- minis, ubi facrus est caput Ecclesiae, ille uterus Virginis Maria: thalamus ejus, inde processit tamquam sponsus de thalamo suo (In Joan. Ev. tr. 8, 4).

4) Encontrar-se-á, de outro ponto de vista, uma justificação desta concepção na obra de G. R e n a r d. La théorie de flnsti- tution, Essai íontologie juridique, Paris, 1930.

38 Cap. II. A Igreja, corpo do Cristo

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feito homem, sua incorporação, sua manifestação visivel, não é uma personalidade particular, mas a comunidade como tal, não o Eu, mas o Nós. O Espírito do Cristo rea­liza-se na comunidade, no Nós. A visibilidade da Igreja não consiste apenas na visibilidade dos seus membros in­dividualmente considerados, mas na visibilidade de sua unidade, de sua comunidade. Ora, quem diz comunida­de, unidade que domina os membros, diz coordenação e interdependência de partes. E aqui está a segunda con­sequência do dogma da Incarnação redentora. Esta uni­dade no Cristo não é puramente mecânica, resultante de juxtaposição, mas, sim, orgânica, comportando diferen­ciação interna. Como todo organismo superior, o corpo do Cristo deve dispôr de membros e orgãos com seus respectivos papéis e funções, os quais, por sua vez, dão ao corpo sua constituição especial e servem uns aos ou­tros. Já são Paulo, o primeiro apóstolo que emprega & expressão “corpo do Cristo”, claramente se explica a es­te respeito na Epistola aos Coríntios (1 Cor 12): “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversi­dade de ministérios, mas é o mesmo o Senhor; diversi­dade de operações, mas é o mesmo Deus que opera em todos. Porque, como é um e tem vários membros, e co­mo todos os membros do corpo, não obstante a sua di­versidade, formam um corpo apenas, o mesmo acontece com o Cristo. . . Vós sois o corpo do Cristo e seus mem­bros, cada um de sua parte. Deus estabeleceu na Igreja, primeiramente, apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro lugar, doutores, e em seguida os que têm o dom dos milagres, depois, os que têm os dons de curar, de assistir, de governar, de falar diversas línguas”. Acha, pois, o apóstolo claramente que esta comunidade consti- tue, por essência, um organismo diferenciado, que o cor­po opera pelas diferentes funções dos seus diferentes membros, e que é, portanto, o só e mesmo Espírito do

Cristo que se conserva na unidade dessa plenitude. Evi­dentemente, são Paulo ainda não fala da distinção teo­lógica precisa entre as diferentes funções vitais de um organismo. Esta só foi introduzida pelo desenvolvimento posterior da especulação teológica. Precisou, com efeito, o progresso do pensamento, que certos dons, tais como o do apostolado, o do ensino, o do governo, pertencem

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à constituição mesma da Igreja, que sem eles se não pode conceber, ao passo que outros tais como o de pro­fecia, o dos milagres, o das línguas, provêm de uma es­pécie de superabundante plenitude de vida cristã, e são antes sinais e manifestações da vida cristã do que fun­ções essenciais.

E’ bem de são Paulo, contudo, a doutrina que faz do corpo do Cristo um ser organizado, agindo essencialmen­te por orgãos diversos, embora permanecendo interior­mente uno pelo Espírito do Cristo, que o anima. Consti- tue ela parte fundamental da mensagem cristã que nos foi transmitida.

Onde se encontra, de maneira mais precisa, esta orga­nização dos membros no corpo do Cristo, esta unidade no múltiplo, esta multidão na unidade?

Façamos, antes do mais, uma primeira observação: desde que é, não o indivíduo, o particular, mas a Unida­de, a comunidade que se faz depositária do Espirito de Jesús, e uma vez que a sua visibilidade consiste sobretudo na visibilidade dessa Unidade essencial, o organismo vi- sivel da Igreja exige, precisamente para ser visivel, um princípio real de unidade. De alguma forma deverá nele traduzir-se e manifestar-se a unidade transpessoal de to­dos os fiéis a um só tempo, e ele protegerá essa unidade que conduz e conserva. E’ o Papa que lhe é a expressão visivel e o penhor permanente. Deste ponto de vista, fá­cil é compreender-se que o Papado exprime da maneira mais pura a forma essencial da Igreja. Fossem mudos os Evangelhos a respeito da vocação de Pedro, como rocha sobre a qual a Igreja será construída, como guardião das chaves, como paetor de ovelhas e cordeiros, ainda assim o princípio essencial de vida divina, que reside na Igreja, pela lógica mesma da vida, que impele todo ser a desen- volver-se plenamente, haveria feito surgir o papado. Nele, com efeito, a comunidade cristã procura e encontra a conciência de sua essencial unidade; ele se percebe e a si mesmo se propõe como o Reino uno, o corpo uno de Cristo na terra. O fiel jamais considera o Papa como uma grandeza subsistente independentemente dessa uni­dade, como uma espécie de personalidade, semelhante a Moisés ou Elias, dotada de um carisma, de um pleno po­der supra-terreno. O Papa é, para todo fiel, a incarnação

40 Cap. II. A Igreja, corpo do Cristo

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visivel da unidade da Igreja, esse princípio real, objetivo, no qual toma forma a humanidade resgatada e consti­tuindo uma unidade definida. Para ele, no Papa, se torna visivel a unidade dos irmãos. O olhar passa, desse jeito, por sobre as fronteiras dos povos e das civilizações, por sobre os mares e os desertos. A imensa cristandade, as relações de interdependência espiritual entre seus mem­bros, sua grande e santa comunidade de amor se mostram visiveis no Papado como uma nobre e sublime realidade. Pode-se assim compreender que nem os abusos desse po­der pontifical, nem a fraqueza humana de alguns dos que usaram a tiara são bastantes a roubar-lhe o respeito e o amor ao papado em si mesmo. Quando, respeitosamen­te, ele beija a mão ao Papa, tem conciência de estar oscu­lando todos os seus irmãos que no Papa se reunem; di- lata-se-lhe o coração até ao coração da cristandade in­teira, da unidade na plenitude.

E, por sua vez, o Papa ensina, age, luta, sofre em no­me dessa unidade. Pode, sem dúvida, visto que, segundo a sábia disposição da Providência, é ao mesmo tempo bispo da comunidade de Roma, baixar decretos e deci­sões que só visem e atinjam a Igreja de Roma. Quando, porém, é como Papa que fala, como sucessor de Pedro, exprimindo, na qualidade de depositário visivel e de pe­nhor da unidade, a plenitude definida do corpo de Cristo, ele é o princípio no qual a unidade transpessoal do corpo do Cristo se faz realidade visivel neste mundo. Fala, não como um déspota, como um soberano absoluto no sentido antigo, mas, sim, como chefe da Igreja, em relação inte­rior e vital com o conjunto do organismo da Igreja. Não Mie será permitido, como a uma pítia de Delfos, decidir questões de fé ao sen bel-prazer ou segundo suas idéias pessoais. Pelo contrário, como expressamente o diz o Con­cílio do Vaticano, ele é em conciência e estritamente obri­gado a não promulgar, depois de os haver distinguido, senão os dados revelados, contidos na conciência escrita e não escrita da Igreja, nas fontes da fé que são a Sa­grada Escritura e a Tradição.

De outro lado, é da essência mesma da Igreja como unidade transpessoal, e, por este motivo, é da essência do papado, que o Papa não possa ser considerado como o simples delegado da Igreja e o porta-voz da opinião ge­

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ral. Se o “Nós” da comunidade cristã não resulta do con­junto dos membros, por mais forte razão não se confunde com eles. Constitue uma unidade transpessoal situada num Deus feito homem, um princípio de organização que age em si e por si, uma espécie de princípio de ser com a sua atividade própria, o Papa, em quem o Cristo quis que esse “Nós” tomasse forma visível. O Papa governa, pois, em virtude de um direito próprio, independente, ex sese, o que vale dizer: em sua ação ele não é de nenhum ponto de vista dependente de qualquer função que seja do corpo de Cristo, nem do consenso do episcopado, nem dos bispos em particular, nem dos outros fiéis, embora lhe seja obrigatório discernir, captar a doutrina revela­da na tradição sempre viva (5). Ele não é somente um “Pastor” ao lado de outros, é, antes, o só Pastor que re­cebeu do Pastor Supremo, o Messias, a missão de pas­cer as ovelhas (cf. Jo 21, 15 s). Da mesma maneira, não é apenas uma das pedras do sagrado edifício da Igre­ja, não lhe é mesmo apenas a primeira pedra, é o roche­do (cf. Mt 16, 18), sobre o qual todas as outras pedras repousam. E’ dele que todo o edifício tira a sua existên­cia e solidez. O novo Código de Direito canônico acen­tua esta idéia de maneira particularmente enérgica quan­do fala (can. 218, § 1, 2) desse pleno poder do Papa que “é independente de toda autoridade humana” e se exerce de maneira imediata não apenas sobre as “Igre­jas” particulares, mas sobre todos os “Pastores e fiéis” (suprema et plena potestas jurisdictionis in universam Ec- clesiam).

O que é o Papa para a Igreja universal é-o tambem o Bispo, em sentido análogo, para a comunidade parti­cular a ele confiada, a sua diocese. E’ a expressão, a rea­lização de sua unidade interior, o amor, que se tornou vi- sivel, dos membros da comunidade uns pelos outros, a comunhão e a interdependência, que se fizeram sensiveis, dos fiéis (Moehler). Por isto, para um católico, não há vocábulos mais respeitáveis na terra do que os de Papa e Bispo. Nas épocas em que o mundo inteiro animava o sentido católico, nenhuma honra parecia bastante gran­de, nenhum ornamento bastante precioso para o Papa ou

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5) Cf. S c h e e b e n, Dogmatik, t. 1, livro 1, C. 11.

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A d a ni, A essência do Catolicismo 43

o Bispo. Nada disto sc dirigiu ou se dirige à pessoa mes­ma do Papa e do Bispo — ninguém melhor do que o ca­tólico distingue entre a pessoa e a função — tudo isso

se dirigia exclusivamente ao seu carater e à sua função sublime, que consiste em representar e guardar a unidade do corpo do Cristo na terra. Quem, assistindo a uma missa solene celebrada pelo Bispo, e, suspenso de tão extraor­dinário desdobramento de pompa e magnificência, de tão grandiosas ceremônias em torno da pessoa do Bispo, só visse nisto uma reprodução, um resíduo das ceremônias da corte de Roma e de Bizâncio, estaria percebendo ape­nas uma face da verdade. A idéia viva, muitas vezes in- conciente, que inspira toda essa magnificência, é a ale­gria do crente em presença de sua Igreja, de sua pos­sante unidade, da afirmação da comunhão com seus ir­mãos no mesmo corpo do Cristo personificado em seu Bispo e como que nele realizado pelo carater episcopal. Um só Deus, uma só fé, um só amor, um só homem: tal é o pensamento que anima todo o esplendor das cere­mônias e impele a dar-lhes forma grandiosa e impres­sionante. E’ uma preocupação e uma invenção do amor, do amor pelo Cristo e pelos irmãos unidos nele.

À luz desta grande idéia do Papado e do Episcopado como que por si mesmas se esvaem as objeções que fre­quentemente nos fazem em nome da humildade e do amor fraternal que o Cristo exige dos primeiros representantes da autoridade em sua Igreja. Nas palavras pelas quais aplanou Jcsús a discussão dos apóstolos a respeito da preeminência entre eles, supôs-se encontrar “o mais deci­sivo argumento interno” contra a pretensão de ter sido o Papado instituído pelo próprio Jesús (6). Mostravam- se os apóstolos descontentes pela pergunta formulada pela mãe dos filhos de Zebedeu, que os desejaria ver um à direita, outro à esquerda do Senhor. Chama-os Jesús: “Sabeis que os que são reconhecidos como chefes das Nações as governam como Senhores, é que sobre elas exer­cem os grandes seu império. Entre vós não deve ser as­sim; o que quiser ser grande entre vós deverá fazer-se vosso servidor; e o que quiser ser o primeiro entre vós, deve fazer-se o escravo de todos. Porque o Filho do ho-

6) F. H e i 1 e r, Op. cit., p. 40.

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mem veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de um grande número” (Mc 10, 42 s).

Aqui, evidentemente, repele Jesús, com relação a seus discípulos, o exercício brutal da autoridade dos monaT-

cas do seu tempo, particularmente no mundo pagão. Os discípulos de Jesús serão reconhecidos, não por essa am­bição de domínio, mas pelo seu anelo de servir. No Rei­no de Deus, nada de “querer ser Senhor” nem “autori­dade que se faça sentir brutalmente”, mas apenas um Ser­viço amoroso e um Amor humilde. Os terrros mesmos claramente indicam que o Senhor pretende excluir de sua Comunidade, não toda espécie de autoridade, mas so­mente a que se mostra brutal e despótica. Tal sentido mais claro ainda aparece se o compararmos com a pas­sagem de são Lucas (22, 24), que assim transforma o logion de são Marcos: “Que o maior de entre vós seja como o último, e o que governa como o que serve”. E’, pois, evidente que, na comunidade dos seus discípulos, deve haver os que sejam “maiores” e “governem” . A re­comendação de humildade e de amor fraternal vem con­tra o abuso egoista do princípio de autoridade, e de ma­neira nenhuma contra o próprio princípio. De que ma­neira, sem isso, poderia Jesús dar-se a si mesmo como o tipo do amor, servo dos irmãos, quando se apresenta, na mesma proporção, e com certa ênfase, como o “Filho do homem”, isto é, como o Senhor do futuro, do juizo, co­mo o que de todo o poder dispõe. As«im como o seu amor servo dos irmãos não exclue sua eminente dignidade de Filho do homem, seu mandamento de humildade e de amofr aos irmãos não exclue a hierarquia. Ver na idéia de primado uma contradição direta da recomendação de Jesús sobre a humildade e o amor, com ela inconciliável, seria dar falsa interpretação ao pensamento do Mestre. Pelo contrário: esta palavra do Cristo só se explica e ple­namente realiza quando bem se compreende a idéia do Papado e do Episcopado: o cargo do soberano Pontifi­cado, considerado do ponto de vista da realidade sobre­natural da Igreja, outra coisa não sendo senão o amor que se fez uma pessoa, a unidade, que se tornou visivel, na caridade do corpo de Cristo na terra. Em si mesmo, é precisamente o contrário de um poder despótico, deve sua origem, não à violência e ao orgulho, mas à cari-

44 Cap. II. A Igreja, corpo do Cristo

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Ad a m, A essência do Catolicismo 45

dade. O encargo do Papa e do Bispo é o pleno poder divino a serviço da caridade.

As conciências católicas, é verdade, acharão por vezes um pouco rude e exclusivo o acento das advertências pon­tifícias. E’ são Paulo que exclama: '‘Vou bater-vos a va­ra!” (1 Cr 4, 21). Por vezes mesmo a sua excomunhão repercutirá através do mundo com o mesmo tojn e o mes­mo estilo empregados por são Paulo quando excluiu o incestuoso da comunidade de Corinto. Mesmo assim, essa caridade que se irrita e bate continua sendo caridade, ca­ridade pela comunidade que deve ser preservada.

O Papa tem, pois, o primado da Caridade. Na Igre­ja, nenhuma hierarquia tem o direito de ser outra coisa que não a caridade. Desgraçado do Pontífice que abu­sasse do seu primado de caridade para fazê-lo servir a fins egoistas, à satisfação de ambição pessoal, de algu­ma cupidez, ou de outras paixões humanas! Pecaria con­tra o corpo do Cristo, violentaria o Cristo. Ele é sujeito ao julgamento exatamente como o último dos membros do Cristo. Que terrivel não lhe será a palavra que lhe dirija o Cristo no dia do juizo: “Pedro, tu me amas? amas-me mais do que estes outros?” Eis, com efeito, o grande, o precioso privilégio do seu cargo: amar a Cris­to e a seu corpo mais do que os outros, realizar o título de honra que o Papa são Gregório Magno a si mesmo se conferira de “Servo dos Servos de Deus”. “Os que detêm a autoridade, declara Pio XI, em sua primeira En­cíclica Arcanum Dei, são simplesmente os servidores do bem público, os servos dos Servos de Deus, e, a exem­plo do Senhor, dos fracos sobretudo, dos que estão na miséria” (7).

O encargo pontifício é, antes de tudo, serviço à comu­nidade, caridade, devotamento. Desde que não está mais o cargo em jogo, que não mais se trata do Papa ou do Bispo, mas simplesmente da sua pessoa privada, não tem mais posto na Igreja. Aplica-se então a palavra de Je- sús: “Vós sois todos irmãos" (Mt 23, 8). Na Encíclica que acabámos de citar, o Papa Pio XI põe eni forte re-

7) Santo Agostinho compraz-se em mostrar na autoridade ecle­siástica o “serviço” da caridade. Cf. principalmente C. F a u s t. 22, 56: prajsur.t, non ut prasint, sed ut prosint; C. ep. Pa r m. , 3. 3, 16: sic praest fratribus, ut eorum servum se esse meminerit.

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46 Cap. II. A Igreja, corpo do Cristo

levo esta idéia: “Só neste reino existe verdadeira igual­dade de direitos, são todos providos da mesma grandeza e nobreza, conferida pelo mesmo precioso sangue do Cristo". No reino do Cristo, não existe senão uma espé­cie de nobreza, a da alma. O que traz a tiara possue, é verdade, o carisma que dele faz o rochedo sobre u qual se ergue a Igreja, mas tal privilégio não existe em seu proveito, mas, sim, no de seus irmãos. Pessoalmente, não tem mais direitos cristãos, nem menos obrigações do que o mais pobre dos caminheiros. Ele tambem, e antes de todos os outros, é devedor da misericórdia de Deus, tem necessidade das orações dos seus irmãos. Se está carre­gada de pecados a sua conciência, tambem ele deve sub­meter-se ao tribunal da penitência, mesmo que seja dian­te do mais simples dos Irmãos menores. E se fosse tenta­do acaso, a exemplo dos filhos de Zebedeu, a clamar ao Senhor: “Senhor, fazei-me sentar à vossa direita ou à vossa esquerda, em vosso reino”, o guia de sua alma de­veria responder-lhe: “Não sabeis o que pedis. Podeis be­ber o cálice de Jesús?” A todo espirito sem prevenção, a história da Igreja dá testemunho da seriedade e austeri­dade que tantos Papas puseram no cumprimento do de­ver do seu cargo. AÀostra-nos tambem ela que a elevação das suas funções, longe de ter sido incompatível com a humildade, a caridade e o devotamento, conduziu-os, pelo contráTio, à mais profunda vida interior. Dir-se-á, talvez, que estes ou aqueles Papas, do X século ou do Renasci­mento, pagaram seu tributo à fraqueza humana. Confes­semos que, em verdade, eles quasi nada contam em face da brilhante multidão de santos e de mártires que a Sé de Roma já deu à Igreja. Pode-se aplicar, mutatis mu- tandis, à maioria dos Papas o que um teólogo protestan­te, Walter Koehler (8) escreve do Papa Pio X: “O que diz respeito à dominação política na sociedade atual, não o interessava. Ele era o sacerdote que, erguendo a hós­

tia bem alto, sem olhar à direita nem à esquerda, só se preocupava com levar o Salvador através do mundo". Sim! esforçar-se por fazer com que o Salvador passe pelo meio do mundo, devotar-se ao Cristo servindo a comu­nidade, é este o papel essencial do Papado.

8) Christliche Welt, 1914, p. 913 (O mundo cristão).

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Devem ser, pois, rigorosamente excluídos da Igreja to­do despotismo e todo poder pessoal. Nela se realiza o mais audacioso sonho de igualdade democrática. Nela er­gueram sua morada a unidade c a caridade fraternais. E nessa morada só habitam, segundo a expressão de são Cipriano, usada por santo Agostinho (9), os que têm um mesmo coração e um mesmo espírito. Nela circula o espírito do Mestre, o espírito que ditou esta luminosa palavra: Vós tendes um só Senhor, sois todos irmãos".

9) De baptismo contra Donatistas, VII, 49.

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C a p í t u l o I I I

Ao Cristo pela Igreja“Onde dois ou três se re­

unem em meu nome, estarei no meio deles” (Mt 18, 20).

A questão da “alma” do catolicismo levanta necessa­riamente a do Deus vivo e do Mistério do Cristo.

E’, evidentemente, impossível tratar ou resolver aqui, mesmo sumariamente, todos os problemas que se referem a essa questão. Contentemo-nos com indicar simplesmen­te, de modo mais claro, o caminho que toma o fiel para chegar ao Deus vivo e ao Cristo. Seguindo por ele, per­ceberemos muitas claridades que iluminarão o próprio ca­tolicismo, e nos permitirão compreender melhor a maneira de ver, de pensar, de sentir do católico.

A posição fundamental do catolicismo se resume nesta frase: Atinjo Deus através do Cristo em sua Igreja. En­contro o Deus vivo através do Cristo que age em sua Igreja.

O dogma católico repousa sobre esta augusta trin­dade: Deus — o Cristo — a Igreja.

De que modo chega o católico à certeza da existência de Deus e pode dizer seu Credo in Deum? De maneira plena e completa, por meio da Revelação e da Graça, mas já pela razão natural pode conhecer com certeza. O Con­cilio do Vaticano ensina que, pelo mundo visivel, Deus pode ser conhecido com certeza como princípio e fim de tudo. Tão mais facilmente se adquire este conhecimento quanto mais claramente se tome conciência do carater particularíssimo da questão de Deus e da Igreja, assim como das pesquisas que ela exige. Ela é muito diferente, com efeito, da dos costumes dos insetos, por exemplo. Tal particularíssimo carater da questão religiosa resulta na­turalmente da dependência, da limitação e da itnperfei-

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A d a m , A essência do Catolicismo 49

ção de nosso ser. Desde que me considero, percebo, sem esforço, que não sou um ser absoluto. De todos os lados, minha dependência me aparece com evidência. Por toda parte, sinto meus limites, minhas fronteiras; por toda parte, direções subitaneamente cortadas. O descobrimento

de um absoluto não é, pois, resultado laborioso de pro­fundas pesquisas filosóficas, é simplesmente consequên­cia de uma pura e simples reflexão sobre mim mesmo. Por haver encontrado meu carater de dependência, estabeleço o fundamento da existência do absoluto. Daí, sem mais nenhum outro raciocínio, o juizo prático seguinte: meu ser, tão integralmente dependente, liga-se, prende-se, evi­dentemente, a um absoluto. Não estou no mesmo plano que ele. Por isto, minha atitude interior, com relação a esse absoluto, deve revestir-se de carater moral e religioso, vale dizer: ser cheia de humildade, respeito, pureza e amor.

Constituiria lamentavel incompreensão do fundamento mesmo da realidade e uma maneira inadmissível de eri­gir-se a si mesmo em absoluto, o abordar-se o problema de Deus, não com aquela atitude moral, mas como ho­mem orgulhoso de sua autonomia e suficiência, como se se tratasse de questão inteiramente indiferente, sem rela­ção com os interesses essenciais da vida — com mais forte razão se é um juiz que vai interrogar um acusa­do suspeito.

Enganamo-nos fundamente a nós mesmos quando nos metemos na esfera do absoluto como se estivéssemos no seu plano ou como se ele se houvera incarnado cm nós. Quem trata a questão de Deus como se ele fosse indife­rente ou tomando a atitude de um pensador autônomo, na realidade se erige a si mesmo em absoluto. Esta se­creta pretensão é a verdadeira causa a impedir que as questões relativas a este assunto jamais recebam resposta satisfatória. Se Deus existe, se é uma pessoa viva, não depende de mim, que sou tão relativo e dependente, mas dele só, que eu seja chamado a conhecê-lo. A pergunta que se apresenta não é: Tenho o poder? porém sim: Te­nho o direito de conhecer Deus? Chama-me ele a esse co­nhecimento? Propô-lo de maneira toda profana e como se se tratasse de coisa indiferente seria não a compre­ender e não ter por Deus o respeito exigido. Deus não

A essência — 4

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50 Cap. ill. Ao Cristo pela Igreja

deixa roubar o fogo de sua lareira. Se a transponho para o terreno moral e religioso no sentido que acabamos de indicar, minha atividade de espírito se torna, se se pode dizer, positiva, preensora e construtiva, em lugar de per­manecer negativa, negadora e dissolvente. Só esta pos­tura me permite perceber com certeza a verdadeira reali­dade misteriosa do mundo e nele encontrar os vestígios de Deus. Vejo então muito bem os milhares de círculos concêntricos do macrocosmo e do microcosmo em torno do mesmo ponto central. E só deste centro se pode per­ceber a unidade e o sentido verdadeiro. Chega por esta forma a um primeiro princípio de tudo, a uma idéia e a uma vontade suprema que domina e governa o mundo; e mesmo, indo mais longe, a um ser real dotado de von­tade, absoluto e pessoal, em sentido superior e transcen­dente, e que age no mundo.

A razão natural para aí, quer dizer, num Deus vivo, pessoal, princípio e Providência do mundo. Não poderia fazer com que eu conhecesse a existência, nem mesmo a simples possibilidade de uma permuta de vida e amor com ele. A criação, sem dúvida, testemunha a onipotência, a sabedoria e a bondade de Deus, mas unicamente na medida em que todas essas qualidades nela se refletem. Não poderia dar testemunho da infinita riqueza do seu amor criador, nem permitir que penetrássemos no cora­

ção, no íntimo de Deus. Não me permite ultrapassar os

frios dados da natureza. Será Deus apenas criador e con­

servador do meu Ser? E’, quererá ser mais do que isto

para mim? “Ele que habita um esplendor inacessível”

(1 Tm 6, 16) ficaria sendo, na intimidade de sua vida, “o mistério por toda a eternidade impenetrável” (Rm 16,

25), se, por um ato da mais livre generosidade pessoal,

para além das leis da natureza, se não nos revelasse por uma palavra viva. A nós, homens, Deus, em sua vida

íntima, total, “o mistério oculto aos séculos e às gerações

passadas” (Col 1, 26), não se descobre senão de manei­

ra sobrenatural, pela palavra que ele mesmo pronuncia. Esta é a jubilosa mensagem do Cristo: “Por várias ve­

zes e maneiras, Deus falou aos nossos pais, pelos profe­

tas, e nestes últimos tempos nos falou por seu Filho” (Hb 1, 1 e 2).

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A d a m , A essência do Catolicismo 51

Em Cristo, a penetração do divino no humano se tornou uma realidade permanente, vivificante. E o Verbo se fez Carne. Esta fé em Jesús, num Deus incarnado, constitue# a segunda das colunas que suportam o edifício da fé cristã.

Como, porém, é levado o católico a crer em Jesús, o filho de Deus? Para responder a esta pergunta, faz- se-nos mister apelar para um carater distintivo do catoli­cismo: a importância preponderante da comunidade da Igreja na produção da certeza da fé. O católico jamais chega a Jesús de maneira mediata, por meio dos docu­mentos da literatura, isto é, das Sagradas Escrituras, mas, sim, de maneira imediata, por uma espécie de to­mada pessoal de contacto com o Cristo vivo em sua co­munidade. Expliquemo-nos.

A Bíblia é evidentemente para o católico um livro san­to, ditado por Deus e, pois, infalivel no que ensina. O católico acolhe com alegria cheia de reconhecimento o retrato fiel que os Evangelhos nos traçam de Jesús. “Sem a Escritura, diz Moehler (1), não teríamos tido as expres­sões mesmas de Jesús, não saberíamos como falava o Homem-Deus, e parece-me que eu não poderia mais vi­ver se não o ouvisse mais falar”. Não é, no entanto, no Evangelho que o católico encontra a sua fé, pois que já havia fé antes que a primeira carta de apóstolo ou o pri­meiro evangelho houvessem aparecido. Sua fé começava quando são Pedro, em Cesaréia de Felipe, confessava: “Vós sois o Cristo, o Filho do Deus vivo”.

Foi nesse afetuoso comércio com Jesús, sob a impres­são de suas palavras a um só tempo finas e profundas, dos prodígios que ele operava, mais ainda pelo contacto imediato de sua pessoa viva, que, na pequena comunida­de dos discípulos, começou a surdir esta claridade, à idéia nova que em Jesús Cristo se havia manifestado. O ho­mem não pode contemplar a majestade de Deus direta­mente, sem intermediário, mas apenas como num espe­lho, como em enigma, sob as formas deficientes do hu­mano e do finito; é-lhe mister um impulso de Deus, uma

1) J. A. M ce h 1 e r, Die Einhcit in der Kirche oder das Prin- zip des Katholizismus, 1825, p. 55 (A Unidade da Igreja ou o Princípio do Catolicismo).

4*

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52 Cap. UI. Ao Cristo pela Igreja

iluminação divina, novos olhos para ver melhor e, atra­vés do envoltório criado, apreender com uma certeza ab-

•soluta Deus em Jesús. Por aí se explica a palavra de Je­sus a Pedro: “Não foram nem a carne nem o sangue que isto te revelaram, porém meu Pai que está no céu”. Des­de o começo da prédica cristã encontramos a convicção de que não é o simples conhecimento, nem a ciência, nem mesmo a ciência teológica que leva ao mistério de Jesús, mas a graça de Deus; e de que, sendo assim, as disposi­ções de humildade, respeito, amor são muito mais impor­tantes para penetrar o mundo sobrenatural do que qual­quer conhecimento científico, seja o mesmo qual for. “Ninguém vem ao Filho se não for atraido pelo Pai” (Jo 6, 44). A alma que procura não pode tomar, em face do divino, senão uma atitude de espectativa, de docili­dade. A resposta pacificante, só do Alto a espera. Por isto mesmo, tomará falso rumo com o exigir uma de­monstração tão rigorosamente científica da divindade de Jesús que o homem indiferente do ponto de vista moral e religioso, ou mesmo corrupto, e o egoísta e mesmo o que se deixa totalmente absorver pelos sentidos, numa palavra, todos, sem excepção, possam tocar com o dedo a divindade de Jesús e sejam forçados a aceitá-la. Como se a fé acaso fora uma verdade que se pudesse impor como dois e dois fazem quatro! Deus, o Infinito, o Santo, não se deixa tocar por mãos profanas. Não se entrega se­não aos que se lhe dirigem com profundo respeito. Que

seria, porventura, um Deus que se deixasse calcular por qualquer um como a soma dos ângulos de um triângulo, e

cujos mais ardentes fiéis — se a divindade de Jesús Cris­to se calculasse matematicamente — poderiam ser os sá­

bios e os prudentes deste mundo, os satisfeitos e os egois-

tas, em lugar dos pobres de espírito e dos que têm o co­

ração puro! O mistério e a graça são da essência do Di­

vino. Pode-se agora compreender o sentido profundo da

palavra de Jesús a Pedro: “Não foi a carne nem o san­

gue que isto te revelaram, mas o meu Pai que está no

céu”.

A tempestade do dia de Pentecostes fez surdir em cha­

mas vivas o fogo que estava latente no coração de Pe­

dro, e este fogo tombou sobre todos os que o rodeavam.

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Ad a m, A essência do Catolicismo 53

Desde então, não era mais uma simples idéia, era uma certeza vivida, mais forte do que a certeza da cólera do sanedrim e dos imperadores romanos. “Este Jesús, Deus Pai o ressuscitou e foi erguido à direita do Pai” (At 2, 32 s). Era a hora do nascimento da nova fé, ao mesmo tempo que da nova Igreja. Por que acreditaram os após­tolos? Porque o sopro do Espírito Santo os havia tor­nado clarividentes para as realidades de que estavam rodeados: a aparição de Jesús, a sua vida, a sua morte e a sua ressurreição. Foi o que permitiu que todos vis­sem, numa espécie de intuição de conjunto e sem nenhuma dúvida possível, através de sua humanidade, a “Majesta­de divina”, que irradiava do seu rosto. Tudo o que eles tinham pressentido, esperado, crido no mistério de Jesús enquanto viviam com ele na terra, tudo isso não passara de fé ainda humana e, portanto, de frágil certeza. De

quando em vez apenas, como em Cesaréia de Felipe (Mt

16, 16, 17), uma visão mais profunda lhes fora conce­dida. Mas esta mesma não os havia penetrado inteira­

mente e, em breve, sob as impressões da vida quotidiana,

e sobretudo em face do terror da sexta-feira da Paixão, fora expelida para o recanto mais exterior de sua con-

ciência. Hoje, na viva e quente claridade do Pentecostes,

acabava de nascer a fé verdadeiramente divina e salutar.

Neste dia, todos os raios da luz ainda fracos e esparsos

se tinham reunido num feixe de fulgurante claridade que

diretamente lhes fizera ver a divindade de Jesús, assim como todo o mundo de realidades sobrenaturais que a acompanham. Tão clara foi essa visão intuitiva, tão gran­

de essa certeza, que inteiramente os transformou. Esses homens de pouca fé, preocupados sempre em fazer per­

guntas, esses egoístas de infantil ingenuidade, agora se lançavam, cheios de espírito de sacrifício e de coragem,

à conquista do mundo civilizado. Iam levar a flama nova

tanto aos palácios de Cesar quanto às cabanas dos es­cravos. Doze pescadores simples e sem cultura apanha­

ram o mundo em suas redes e isto sem outros meios que

não o de sua fé e a disposição em que estavam de afron­

tar a morte por ela. Assim, a fé nova não fez a sua en­

trada na história como uma obra humana, mas, sim, como

uma manifestação do Espírito, como uma Força divina.

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54 Cap. III. Ao Cristo pela Igreja

O historiógrafo não pode negar o fato. Pode, sem dú­vida, apreciar de maneira diversa essa manifestação, mas sob condição de desprezar os dados psicológicos. Por­que a manifestação do Pentecostes não ficou isolada: foi o ponto de partida de um abrasamento do mundo, inau­dito na história, de uma fusão religiosa, que ainda dura, dos espíritos. Semelhante união e religação das conciên- cias seria psicologicamente inexplicável se as predisposi­ções do homem ao Divino não houvessem nela encontrado e não continuassem a encontrar sua plena satisfação. Por esta forma, o que aconteceu no dia de Pentecostes corresponde a um fato: a predisposição da alma huma­na para o sobrenatural divino. E’ o que lhe dá significação e importância que ultrapassam as de um simples fato par­ticular e o transforma num fato humano. A todos os ou­tros fenômenos religiosos particulares registados pela his­tória, quer se trate de Simão Mago, ou de Menandro, ou de Dositéia, ou de Elcasai, falta esse carater, único que lhes poderia dar valor: o de ter criado um laço dura­douro entre as almas. Eles desaparecem tão rapidamente como apareceram, mostrando bem que o seu carater re­ligioso era puramente aparente e fictício, não correspon­dendo a nada verdadeiramente humano.

O fato de Pentecostes foi um incêndio que se propagou na humanidade e que ainda se não apagou. Eis o que o distingue e continua sendo decisivo, eis o que o his­toriador não tem o direito de esquecer. O psicólogo, de seu lado, deve lealmente verificar que não se trata de um fenômeno de sugestão das massas, nem de uma qual­quer alucinação, mas, sim, de uma experiência autênti­ca, original, do despertar, experimentalmente verificado, de uma realidade nova, mais alta, na conciência da mul­tidão no dia de Pentecostes. Uma filosofia sem prejui- sos pode, sobre esta base, edificar a credibilidade da ori­gem sobrenatural do fato do Pentecostes e assim racio­nalmente justificar o que são Paulo diz do Evangelho: “E’ uma força divina para salvação de todo homem que crê" (Rm 1, 16).

Manifestação do divino, o Pentecostes dos primeiros discípulos, apresenta dois caracteres: catolicidade ou uni­versalidade e rigorosa unidade. A catolicidade, que faz com que ela convenha a todos, é essencial ao que é di­

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A d a m , A essência do Catolicismo 55

vino. Onde está Deus, não há “acepção de pessoas”. Fora impossível que a realidade divina aparecida no Cristo se destinasse a uns e não a outros, aos judeus e não aos bárbaros. O que é divino convém evidentemente a todos. Deus só pode operar na plenitude, no conjunto dos ho­mens, e não em alguns apenas. Um Cristo limitado não seria um Cristo. Esta característica do primeiro Pente­costes se mostra no milagre das línguas: “Como pode acontecer que os entendamos falar cada um no idioma particular de nossa terra natal? Nós todos, partos, medas, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Ca­padócia” . . . (At 2, 8 e 9). No mesmo tempo em que a fé nova fazia sua entrada no mundo, abarcava a huma­nidade inteira, era uma fé católica. “A Igreja nascente já era anunciada em todas as línguas” (2). — E essa cato- licidadc era uma catolicidade na unidade. Estavam todos conjugados cm torno do colégio apostólico, em torno de Pedro, e todos os compreendiam. Um só Deus, um só Cristo, uma só fé, uma só língua. Plenitude na unidade, unidade na plenitude. Foi assim que a nova fé fez a sua entrada no mundo.

De que modo, a seguir, progrediu ela no mundo? de que modo veio ela até nós, até mim? Da mesma maneira por que tinha vindo aos apóstolos, isto é, pela Palavra viva e pelo Espírito vivificante.

Já o observámos antes: pela sua palavra viva, tinha Jesús preparado os discípulos para o prodígio do Pente­costes. Pretendiam seus discípulos nada mais ser do que “as testemunhas oculares e os primeiros servidores da Pa­lavra” (Lc 1, 2). Desde que se produziu o milagre do Pentecostes, vemo-los a anunciarem o Evangelho e a da­rem testemunho de Jesús, “em Jerusalém e na Judéia, na Samaria e até nas extremidades da terra” (At 1, 8). Alguns compuseram narrativas para tornar conhecida a vida de Jesús e a atividade dos principais apóstolos. A al­gumas pessoas e a algumas comunidades escreveram igualmente cartas, nas quais expunham o ensinamento de Cristo e sua vida, para responder a perguntas particu­lares formuladas segundo as circunstâncias ou as situa­ções especiais dos destinatários. Essas comunicações es-

2) St o. A g o s t i n h o , Sermo 266, 2.

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56 Cap. III. Ao Cristo pela Igreja

critas, porém, só as faziam os apóstolos conforme as oca­siões, ou para reforçar certos pontos, ou para preparar a prédica oral. Mesmo as Epístolas aos romanos, aos efé- sios, aos hebreus, cujo conteúdo é de ordem geral, têm sobretudo em vista as necessidades particulares das co­munidades a que se destinaram. Não pretendem de modo algum ser uma exposição completa da fé cristã. Havia preocupação tão pouca de fixar por escrito a mensa­gem evangélica que muitos dos apóstolos nada nos dei­xaram em tal sentido e até foi talvez possível desapare­cerem escritos de apóstolos (1 Cor 2, 9; Col 4, 16). Era, pois, antes de tudo mais, a palavra viva que devia levar aos homens a fé nova. “Os ensinamentos que de mini re­cebeste em presença de numerosas testemunhas, confia-os a homens seguros, capazes de instruir a outros”. Tal a recomendação que fazia são Paulo a seu discípulo Timó­teo (2 Tm 2, 2). No entanto, só a palavra viva não basta. Não produziria ela senão uma fé humana, uma certeza simplesmente humana. A fé sobrenatural, a última e mais alta certeza, só o Espírito a dá. Ora, o Espírito Santo, como tudo que é de Deus, dirige-se essencialmen­te a todos os homens, à comunidade, é essencialmente vida criadora, iluminativa. Por isto, não opera senão por e em uma comunidade viva, pela unidade do amor, pela uni­dade na plenitude. A catolicidade e a unidade do milagre do Pentecostes tiveram continuidade no espírito de cari­dade e de união das comunidades de fiéis penetradas da vida do Cristo e prendendo-se aos apóstolos, especial­mente a Pedro. Não eram senão “um só coração e uma só alma”, plantados por uma palavra apostólica e levados ao crescimento interior pelo só e mesmo Espirito. Pelos sinais sensíveis do Batismo e da Confirmação, esse Es­pírito era sacramentalmente distribuído às comunidades. O Batismo concedia a admissão na nova comunidade espiri­tual; a Confirmação selava-a, dando-lhe pleno desenvol­vimento. Comunicava esse Espírito à prédica apostólica uma força de ação mais profunda, que fazia sentir, de lato, que “o Senhor é o Espírito” (2 Cr 3, 17).

Não é, pois, por meio dos documentos literários, dos irrefragaveis testemunhos dos textos, que a mensagem de Jesús foi, de começo, transmitida aos homens. Na reali­dade, foi por meio da larga corrente da fé cristã da Igre­

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ja primitiva movida pela prédica dos apóstolos e inteira­mente penetrada do Espírito Santo. Como poderia ter sido de outra maneira? Umas poucas proposições escritas e fi­xadas não poderiam conter toda a profundeza e extensão da vida. Só uma doutrina abstrata se presta a uma com­pleta exposição escrita. O que é vivo desborda sempre das fórmulas nas quais dada época deve necessariamente en­cerrá-lo. No próprio instante em que se tenta fixar um ponto do seu desenvolvimento, a vida, que sempre avança, ultrapassou-o já. Tudo o que por escrito se fixa, inclusive as próprias Sagradas Escrituras, se apresenta sob a for­ma, sob o invólucro do tempo. Por mais vivificante que lhe permaneça o conteúdo, não deixa esse invólucro de dar às gerações posteriores a impressão de algo de rígido,, que se lhes tornou estranho. Eis por que os escritos apos­tólicos e evangélicos convidam-nos a buscar, para além de sua letra, a vida de fé sobrenatural da primitiva Igre­ja, de que eles próprios nasceram. O Novo Testamento não constitue uma fonte independente, desligada da vida cristã primitiva: é-lhe um produto. Numerosas comuni­dades cristãs existiam antes que um Apóstolo tivesse to­mado da pena. Eis por que a Bíblia não pode ser uma au­toridade, independentemente da fé da Igreja. Através das fendas e frestas do Novo Testamento, irrompem águas vivas da larga corrente da fé primitiva que carreia a Bí­blia e que é o que lhe dá a existência e o verdadeiro sen­tido. Não nos fornecem os Evangelhos senão fragmentos

da vida de Jesús. Só com os seus dados, não poderíamos

traçar um retrato inteiro de Jesús. O Cristo completo,

encontro-o, não nas Sagradas Escrituras, mas na vida

da Igreja cristã, fecundada pela prédica apostólica. Sem

a tradição da Igreja una, traços essenciais da fisionomia

do Cristo teriam permanecido ocultos ou enigmáticos para nós. Sem ela, eu não chegaria nunca, nem a um contacto

religioso, nem mesmo a um contacto histórico com Jesús.

Este é o sentido da palavra profunda de santo Agosti­

nho: “Eu mesmo não creria no Evangelho se a autoridade da Igreja a isso não me conduzisse” (3).

3) S a n t o A g o s t i n h o : C. ep. Man. c. 5. Também ele en­sina que se náo pode apreender o Cristo senão pela Igreja, que é o seu corpo. Cf. de lide rer. qua non vid., 3, 5: proinde, quí

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58 Cap. UI. Ao Cristo pela Igreja

Das comunidades apostólicas a nova corrente de vida religiosa continuou a propagar-se de cada vez mais e inun­dou o mundo. Após a morte dos apóstolos — a história claramente o estabelece — os discípulos, de que aqueles haviam feito presidentes e bispos, tomaram a si o encar­go da pregação. E, depois desses primeiros discípulos, a série dos missionários do Evangelho continuou sem in­terrupção até nós. Com esta série de missões, aparece a comunidade dos crentes no tempo e no espaço, a Igreja. A unidade e identidade da prédica apostólica fora obtida e garantida pelo contacto constantemente mantido com as igrejas fundadas pelos apóstolos, sobretudo com a de Ro­ma, na qual Pedro fixara a sua sé, ou, melhor, após o martírio, fora sepultado. A essa unidade e identidade da prédica apostólica juntava-se a unidade, isto é, a comu­nidade, no espaço e no tempo, do Espirito Santo. A co­munidade do dia de Pentecostes se alargava e se tornava a Igreja universal, a Igreja católica. Nas lutas que tem de sofrer, as suas formas exteriores, sem dúvida, se pre­cisam e fixam; seu organismo se faz mais diferenciado e rico. Mas é sempre o mesmo Espírito e o mesmo corpo. O mesmo orgão pregando sempre o mesmo Cristo, a mes­ma comunidade de caridade, a unidade na plenitude, vivi­ficada pelo Espírito, que traz aos indivíduos, por uma experiência direta, a certeza da fé cristã.

Por esta forma, apreendo o Cristo vivo na Igreja viva, tajito hoje como nos primeiros dias. A fé é preparada em minha alma pela prédica apostólica viva, e recebe sua plenitude de vida pelo Espírito de Pentecostes, sempre vivo e ativo. A mim, como aos apóstolos, apresenta a Igreja, em seu ensinamento vivo, a figura do Senhor, a i;m só tempo com os traços luminosos que a Bíblia lhe confere e tambem tal como ela mesma a trouxe, ainda mais sangrenta e brilhante, no próprio coração, durante sécu­los. Em plena verdade, ela pode dizer que o viu, a esse

putatis nulla esse indicia, cur de Christo credere debeatis, quae non vidistis, adtendite, quae videtis: ipsa vos Ecclesia ore ma- terna; dilectionis alloquitur; 3, 7: me adtendite, vobis dicit Eccle­sia, me adtendite, quam videtis, etiamsi videre nolitis. — Da mesma forma, serm. 116, 6: quomodo illi, sc. apostoli ilium sc. Christum videbant et de corpore credebant, sic nos corpus vide- mus, de capite credamus.

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Jesús e que esteve aos pés da crüz, e que ouviu a sua mensagem da paz no dia da Páscoa. Por isto me propor­ciona as mais íntimas relações históricas com Jesús. Eli­minando mesmo da fisionomia do Cristo a marca do tempo, garante-me um contacto religioso com ele. A mensa­gem de Jesús, pode ela dizer, não foi apenas escrita sobre um pergaminho sem vida; vem assinada com o sangue dos milhares de mártires que morreram por ele. Ainda hoje, milhões de almas dele vivem, e a milhares de seus filhos, homens e mulheres, deu ele um coração novo e um conciência nova. Jamais pode ela ainda observar, ne­nhuma fé na terra se aproximou, mesmo de longe, de se­melhante altitude de vida religiosa e moral. E ainda em torno de nós, por fim, mesmo para os que não olham se­não de fora, o esplendor do divino irradia de numerosas

e esplêndidas figuras de santos, e constantemente se ma­nifesta por novos carismas e milagres.

Fazendo valer todos esses títulos, e muitos outros ain­da, em favor da mensagem apostólica, torna-me a Igreja crivei o mistério sobrenatural. Sua prédica prepara-me para crer em Jesús.

Para empregar uma expressão da Escola, o testemu­nho da Igreja é para mim motivo de credibilidade, mas não ainda, propriamente falando, o motivo de minha fé. O que ele me dá é uma fé humana, uma certeza que não é absoluta e ainda se mostra fragil.

Mas à palavra viva vem juntar-se o Espírito, o sopro dum espírito divino na comunidade dos crentes. Só ele torna mais profunda a certeza moral produzida pelo en­sinamento da Igreja, e faz da fé humana uina fé divina de absoluta firmeza, uma espécie de experiência. Quanto mais se mantém um católico em contacto, não apenas ex­terior, porém íntimo, com a sua Igreja, com a sua oração e o seu sacrifício, com a sua prédica e os seus sacramen­tos, tanto mais se torna sensível e docil ao sopro do Es­pírito na comunidade, tanto mais abundantemente sorve essa força vital divina que circula através do organismo da Igreja. Meditando e orando, sofrendo e lutando com a Igreja viva, experimenta uma purificação, um aprofun­damento, uma plenitude do seu ser inteiro. Adquire por esta forma uma espécie de certeza direta da verdade de que a vida por excelência, que a ele mesmo o conduz, re­

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60 Cap. III. Ao Cristo pela Igreja

side verdadeiramente nela; que, segundo a expressão de são Paulo (2 Cr 3, 17) descrevendo esta experiência, em verdade “o Senhor é o Espírito”. Tal certeza é, para ele, uma experiência pessoal, a mais pessoal possivel. Não pode nunca senão esboçá-la e descrevê-la grosseiramente e de maneira aproximativa, quando quer dar-lhe uma jus­tificação racional; não pode, evidentemente, comunicá-la, dado que ela repousa sobre um contacto inteiramente pes­soal de sua alma com o Espírito do Cristo que sopra na comunidade. Mas, por isto mesmo que é uma certeza ex­perimentada, ninguém lha pode roubar. A falar verdade, o em que creio desde então não é precisamente na Igre­ja, mas no Deus vivo que a mim se me mostra na Igreja. E não sou eu quem crê, mas o Espírito que crê em mim. O católico, em definitivo, apreende e afirma Jesús na cor­rente de vida divina de sua Igreja, em seu corpo místico.

Aí temos a linha de nítida separação entre o fundamen­to da fé para um católico e para um protestante, ou, an­tes, aí temos o que separa a fé católica de uma aprecia­ção puramente racionalista do Cristo, que começou a in- troduzir-se na Teologia chamada critica.

No intuito de conformar-se ao espírito moderno e aos métodos científicos que, nas ciências profanas, são indi­cados pelo seu próprio objeto, a Teologia crítica se com­porta como se o Cristianismo fosse e devesse ser puro ob­jeto de conhecimento, puro objeto de pesquisa científica, como se o impulso cristão no mundo fosse susceptível de resolver-se num conjunto de idéias e conceitos, que se pudessem redescobrir em sua origem, compreender e clas­sificar. Não seria, assim, o Cristianismo uma vida, isto é, um princípio de unidade, mas, sim, uma série- de idéias, uma síntese de concepções provenientes dos mais diversos meios filosóficos ou religiosos. Sob a influência da fé da comunidade, ter-se-iam eles progressivamente concentra- do e organizado em torno da pessoa de Jesús de Nazaré, e teriam contribuído a fixar-lhe a fisionomia. Este ponto de vista, que está na base de toda a teologia chamada crí­tica, repousa sobre lamentavel ignorância da essência do Cristianismo, como, aliás, da religião em geral. Ora, os estudos mais recentes de psicologia religiosa — baste- nos citar os seus mais autorizados representantes: W. James, Oesterreich, Scheler, Scholz — já claramente es­

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tabeleceram, mesmo para profanos, que a religião é um fenômeno, não derivado, mas primitivo; não simplesmen­te um conjunto de idéias, mas um fato que se descobre na vida mental e espiritual da humanidade; uma vida original que tem as suas leis próprias, sua unidade e seu fim. E’ inadmissível que se julgue um fenômeno religioso exclu­sivamente segundo seu conteúdo intelectual ou mesmo se­gundo estas ou aquelas idéias dominantes, em lugar de apreciá-lo segundo a plenitude das formas de vida que gerou no passado e no presente e é capaz de produzir no futuro. Se isto se aplica à vida religiosa em geral, com quanto mais razão à vida do Cristo e ao cristianismo! A história do cristianismo nos mostra bem que ele é uma vida que, irrompendo fortemente da pessoa mesma de Je­sus desde a origem, imediatamente se propagou, não ape­nas no círculo estreito de alguns discípulos, mas, e isto com rapidez desconcertante, em todo o mundo antigo, e nele suscitou civilizações novas, povos, homens novos, e continua a agir em meio de nós com toda a sua força vi­tal original.

Nenhum movimento filosófico ou religioso que não o cristianismo, ao que eu saiba, de começos tão simples — conduzido unicamente pelo seu princípio interior e não por nenhum fator externo — exerceu tão unificante, ab­sorvente, eficaz e vivo influxo sobre a humanidade.

Precisamente porque o cristianismo não é simples e fria doutrina filosófica, mas, sim, uma vida religiosa unifi­cante. uma plenitude de vida, pode-se declarar previa­mente votada ao fracasso a tentativa, que a Teologia crí­tica renova, de explicar o cristianismo por alguma idéia trivial ou ,por algumas expressões infladas, tal como Deus Pai, ou então a intimidade e a iminência do Reino de Deus, ou ainda, falando de um cristianismo do Cristo, de uma comunidade primitiva, das comunidades helenís- ticas, de um cristianismo joânico, paulino. Como se aca­so, naquilo que por essa forma se designa, nenhum vestí­gio nem desenvolvimento houvesse da vida do Cristo, fonte original, mas puras séries de concepções totalmente alheias ao cristianismo e vindas todas de fora. Na realidade, o cristianismo constitue uma unidade orgânica, uma unidade vital que, sem dúvida, progredindo e crescendo, se des­envolve, mas que, em todos os estádios do seu desenvol-

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vimento, permanece um todo uno, o cristianismo do Cris­to. Para conhecer todas as virtualidades contidas na glan­de, a mim se me faz necessário esperar que tenha em face de mim o carvalho possante em todo o seu pleno desen­volvimento. A simples embriologia da semente não mas daria. Da mesma forma, para apreender toda a extensão e profundeza da mensagem do Cristo, as incriveis rique­zas de sua vida íntima e de sua prédica, numa palavra, toda a sua "plenitude”, é preciso esperar o cristianismo na maturidade e no pleno desenvolvimento do seu princípio de unidade e de vida, tal como hoje existe aos meus olhos.

Três coisas ressaltam limpidamente da história dos dog­mas: antes de mais nada, o catolicismo sempre seguiu, com seu desenvolvimento, uma linha reta, nunca interrompida, nunca desviada violentamente de sua direção. — Em se­gundo lugar, seu desenvolvimento se deve, não a indiví­duos poderosos e originais, mas ao espírito da comuni­dade cristã, em conformidade com a prédica dos apósto­los. Nas sucessões das missões apostólicas, assim como no espírito de comunidade viva, nenhum lugar se abriu para o fantasma estranho de uma invenção, por parte da co­munidade, de dogmas mais ou menos fabulosos. — Em terceiro lugar, enfim, durante toda a sua história, o cris­tianismo católico sempre se opôs com verdadeira angús­tia a tudo o que lhe apareceu como novidade; e sempre se agarrou com rigidez intransigente ao que lhe fora trans­mitido e guardou sempre como precioso legado a reco­mendação do apóstolo são Paulo: “Timóteo, guarda bem o que te foi confiado” (2 Tm 1, 14). Desde santo Inácio de Antioquia até nossos dias, este princípio da apostoli- cidade, de um firme conservantismo, de um contacto com a tradição a ser zelosamente mantida, claramente se veri­fica na história. Há, pois, no catolicismo, uma corrente una de vida, uma vida de unidade na plenitude, uma vida poderosa. E para lhe conhecermos a célula primitiva, para apreendermos o conteúdo desse cristianismo do Cristo, de nada nos serviria estraçalhar a grande árvore com o escal­pelo da crítica. Basta-nos tomar essa vida como um todo e apreciá-la em seu conjunto. Não será nem por uma vaga crítica de texto, nem por um historicismo ou um filolo- gismo estereis que apreenderemos o mistério do Cristo, mas, sim, mergulhando com amor nessa corrente plena

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de vida que dele flue. Através dos séculos, ela se conser­vou una e organizada; hoje, como nos primeiros dias, não pretende ser mais do que uma vida que haure seu prin­cípio do Cristo, a vida do Cristo.

E’ só aí que a revelação para mim assume seu inteiro sentido. Se, realmente, existe um Deus pessoal — e incon­testavelmente esse Deus existe, porque toda a nossa vida espiritual nele mergulha — se é verdade que esse Deus pessoal — precisamente porque é uma pessoa — quis co­municar-se comigo de maneira imediata e pessoal ein Je­sus Cristo, não é possivel que, para apreender essa reali­dade, tão cheia, para mim, de consequências, me seja mis­ter fazer austeros estudos de história e de filologia, e ape­lar para todos os recursos da crítica textual. Não, o mis­tério divino deve ser bastante simples e estar bem ao meu alcance para penetrar meu coração, o coração de qualquer homem, por mais modesto que seja. Este mistério sim­ples, humilde, encontro-o na fé tranquila, viva, na espe­rança fiel, forte, na caridade generosa e devotada da Igre­ja, que, no seu dogma, sua moral e seu culto, respira o próprio espírito de Jesús, e, que, desde há tantos séculos, não obstante as perseguições, as faltas e as dificuldades, continua a dar testemunho dele, com sempre renovado vi­gor. “Onde dois ou três se reunirem em meu nome, es­tarei entre eles”. Não são somente três, porém milhões de corações que, não obstante a insignificância e o desfaleci­mento de grande número, estão unidos nessa Igreja em nome de Jesús. Por isso mesmo, Jesús está verdadeira­mente entre eles.

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C a p í t u l o I V

A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

Eu não vim abolir... mas cumprir (Mt 5, 17).

A fé nova e a comunidade animada dessa fé entra­ram na história no dia de Pentecostes. Deve, pois, ser a Igreja considerada como uma fundação exclusiva do Espí­rito Santo nesse dia, como um produto da fé, ou, para falar de maneira mais teológica, como uma fundação do Cristo glorificado manifestando-se por meio de seus fiéis crentes? — Ou remonta a Igreja a uma fundação posi­tiva e imediata do Jesús histórico?

A questão nos importa, não apenas porque vai permitir que precisemos o fim e as intenções de Jesús, e lhe tra­cemos, por esta forma, um retrato histórico mais comple­to, como, ainda mais, porque vem dar fundamento e for­talecer as pretensões da Igreja. Assim como a experiên­cia dos discípulos no dia de Pentecostes teria sido, por assim dizer, uma experiência no ar, sem base, se o con­tacto histórico de Jesús não lhes houvesse preparado a fé, tambem à autoridade duma Igreja que reivindicasse uma origem puramente sobrenatural faltaria fundamento his­tórico inconteste. “A graça supõe a natureza” — o que, na questão proposta, assim se deve traduzir: as experiências sobrenaturais supõem dados historicamente verificáveis. Experiências que não repousem de maneira nenhuma so­bre dados naturais evidentemente não podem, por falta de precisão, atribuir-se valor que por si mesmo se im­ponha. A Igreja católica tem, pois, deste ponto de vista, interesse primordial e vital em estabelecer o fato de que não deve sua origem exclusivamente à fé dos discípulos no dia do Pentecostes, mas, sim, que suas raizes se pren­dem aos pensamentos e intenções historicamente verifi-

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caveis de Jesús; que é uma função, não apenas do Cris­to glorificado, mas do Jesús “histórico”.

A teologia “crítica” contesta qualquer espécie de rela­ções imediatas entre Jesús e a Igreja. Para ela, é fato histórico definitivamente assentado que “Jesús de Naza­ré não fundou a Igreja que devia viver na história. Jesús e a Igreja romana não se ligam por laço de nenhuma es­pécie. Entre ambos há um abismo”. De outro lado, não nega que esse abismo entre Jesús e a Igreja seja “bastante raso e estreito” e mesmo que “por fim, parece fechar-se inteiramente”. A distância temporal entre Jesús e o catoli­cismo é pequeníssima. O cristianismo apostólico já está em vias de se tornar católico; a catolicização do cristia­nismo começa imediatamente após a morte de Jesús” (1).

A quem aborda a questão simplesmente como historia­dor, pode parecer estranho, logo de começo, que haja en­tre Jesús e a Igreja um abismo “tão estreito que parece fechar-se completamente”. Não achará esse alguem menos estranho que os primeiros discípulos do Mestre, os que, tendo sido suas testemunhas oculares e auriculares, eram os que melhor podiam compreendê-lo, tivessem começa­do a catolicizar o cristianismo “imediatamente após a morte de Jesús". À primeira vista parece-nos que deve

haver uma falha qualquer no raciocínio “crítico”. Para

verificá-lo, estudaremos primeiro a atitude de Jesús com

relação ao culto judaico e de sua organização religiosa; poderemos assim ficar desde logo conhecendo a sua posi­

ção pessoal em face da Igreja em geral. Examinaremos a seguir as idéias fundamentais de sua mensagem, as

quais pretendem alguns se oponham à fundação de uma Igreja. Por fim, interrogaremos os textos bíblicos que dão

testemunho da fundação direta da Igreja por Jesús.

Nenhum historiador contesta que, na época de Jesús,

fosse o Judaismo uma religião essencialmente cultural e possuísse uma autoridade religiosa que exercia e conser­

vava o culto. H e i 1 e r (2) afirma com razão que a co­

munidade religiosa judaica, na qual Jesús vivia e se mo­via, “apresenta surpreendente semelhança com o catolicis-

1) F. H e i 1 e r, Op. cit., p. 43.2) F. H e i 1 e r, Op. cit., p. 25.

A essência — S

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mo”. Qual foi a atitude de Jesús em face dessa Igreja ju­

daica?Muito ao contrário do que puderam ou podem preten­

der certas histórias — ou, antes, romances — nunca em sua vida foi Jesús o insolente reformador que, em nome da interioridade e do amor, se houvesse insurgido contra todas as prescrições exteriores. São muito claros a este respeito os textos das Sagradas Escrituras. A questão que se possa propor — e será unicamente em tal sentido que a proporemos — é a de saber se Jesús, direta ou indire­tamente, isto é, pelas novidades contidas em sua mensa­gem, minou e cortou, ou não, pelas raizes essas prescri­ções exteriores, de maneira a invertê-las e abatê-las.

Sobre sua atitude com relação à mais alta autoridade legislativa judaica, a Tora, a Lei, temos, dele mesmo, uma declaração fundamental, à qual ele deu certa soleni­dade: “Não penseis que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim aboli-los, mas, sim, cumprir. Porque, em verda­de vos digo, o céu e a terra passarão, mas nem um só iota ou um só traço da Lei passará antes que tudo esteja cumprido”. Aí temos, com certeza, uma das sentenças pri­mitivas de Jesús, porque são Lucas, que se aproxima da atitude hostil de são Paulo com relação à Lei, nos trans­mite essa importante palavra sob a forma seguinte, gran­demente curiosa: “Mais facilmente o céu e a terra pas­sarão antes que um só traço da Lei pereça” (16, 17).

A atitude de Jesús com relação à Lei mosaica — e esta Lei não comportava apenas prescrições morais, mas enor­me número de prescrições cultuais — não é, pois, a de um indiferente ou de alguem que a suporte contra a von­tade. Ele considera parte essencial de sua missão, não apenas não suprimir um só traço da Lei, mas, pelo con­trário, cumprí-Ia. De que modo entende esse cumprimen­to, ele mesmo no-lo explica nos versículos que seguem, e nos quais aprofunda a Lei num sentido interior absoluto: “Aos antigos foi dito, não matareis. Eu, porém, vos di­go: o que se põe em cólera contra seu irmão peca con­tra a Lei”. O cumprimento da Lei consiste, para Jesús, em aprofundá-la em seu sentido moral e religioso, mais precisamente, em penetrá-la do amor de Deus e do pró­ximo. Nada, mas absolutamente nada, deve ser feito de maneira puramente exterior, unicamente porque se trate

66 Cap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

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A d a.m, A essência do Catolicismo 67

da Lei, mas deve vir tudo de dentro, ser animado e inspi­rado pelo amor de Deus e do próximo, porque nestes dois mandamentos “consistem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22, 40). Os seis exemplos que Jesús nos dá tendem ao cumprimento absoluto do preceito do amor a Deus e ao próximo. Esta orientação tão elevada para a caridade nos obriga, em verdade, em quatro circunstâncias diferentes, a marchar contra a própria letra do preceito mosaico. Ele se erige em legislador soberano, pôr a própria autoridade de Moisés, não para a negar e destruir, mas para esclare­cê-la até ao seu mais profundo sentido e torná-la verda­deiramente operante. Cumprir a Lei, segundo ele, é des­cobrir até suas últimas profundidades a vontade de Deus; pôr em relevo seu sentido interior mais elevado e celeste. O cumprimento sem reservas do amor a Deus e ao pró­ximo é a regra de ouro para a interpretação de toda a Lei.

A esta regra submete Jesús a outra grande prescrição do culto mosaico: a santificação do sábado. Na medida em que o amor ao próximo nada tem a sofrer com a sua observação, precisamos submeter-nos a ela; desde que, porém, aquela Lei superior seja por ela obstada, deve se lhe subordinar. Exemplo: quando proibe aos discípulos, que estão com fome, colherem espigas no dia de sába­do: “Porque, acrescenta ele, o sábado foi feito para o o homem e não o homem para o sábado”.

A mesma atitude com relação aos sacrifícios da lei ju­daica. Por duas vezes, cita Jesús a palavra do profeta Oséias (6, 6): “E’ a misericórdia que eu quero, e não o sacrifício” (Mt 9, 13; 12, 7). Das duas vezes, pelo mes­mo motivo: tornar interior o sacrifício. Deus é um Deus de misericórdia. O que se contenta com oferecer um sacri­fício exterior, sem praticar interiormente a misericórdia, não oferece verdadeiro sacrifício, agradavel àquele que é todo misericordioso. A mesma idéia é expressa magistral­mente no Sermão da Montanha: “Se levas tua oferenda ao altar e lá te lembras de que teu irmão tem algo contra ti, deixa tua oferenda ao pé do altar, reconcilia-te com teu irmão, e volta depois para apresentar tua oferenda” (Mt 5, 23-24). Não pretende Jesús suprimir o sacrifí­cio; adverte, pelo contrário, que se deve voltar, para apre­sentar a oferenda depois que se houver feito a reconcilia­

5*

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ção. Deve ser, porém, um sacrifício na caridade, um sacri­fício de caridade. Em suas apóstrofes contra os fariseus, nas quais, com o entusiasmo todo de um profeta, fus­tiga o carater inteiramente exterior do farisaismo, deve­ria ele — se tivessem fundamento as afirmações da teo­logia crítica — mostrar de maneira muito especial seu es­pírito anti-cultural e anti-eclesiástico. Pelo contrário, sua indignação contra os fariseus é inspirada pelo mais ínti­mo respeito com o templo e seu culto. “O templo, que san­tifica o ouro, é maior do que o ouro, e o altar, que san­tifica a oferenda, é maior do que a oferenda. O que jura pelo templo, jura por aquele que nele habita” (Mt 23, 17). O templo e seu serviço são, para ele, tão necessários, que sua profanação pelos cambistas e mercadores de pombos o leva a verdadeira cólera, que lhe põe uma vergasta nas mãos (Mc 11, 7; Jo 2, 17). No entanto, o Templo está longe de ser o Altíssimo. Não passa de uma grandeza pas­sageira. “Dele não ficará pedra sobre pedra”. Em sua pessoa, acaba de aparecer alguem que “é maior do que o templo”. Quando aquele que está em Jesús se houver manifestado, o Pai não será mais adorado somente em Sião, “por toda parte será adorado em espírito e em ver­dade”.

Da mesma forma que em relação à Lei, sua atitude com relação ao Templo e aos sacrifícios é inspirada pela pre­ocupação da interioridade, do espírito a ser nele introdu­zido. Não protesta e não suprime senão na medida indis­pensável para marcar a necessidade do interior. E era tambem na medida em que o dogma rabínico se mostra­va incompatível com essa espiritualização que ele dirigiu sua prédica contra tal exageração e tal espécie de dimi­nuição do Templo: suas objurgatórias, porém, não visam nem o Templo nem o culto em si mesmos.

Esta fundamental preocupação do interior explica ain­da a atitude de Jesús na sua luta contra a autoridade ju­daica. E’ verdade que seu coração se inflama de santa in­dignação contra esses hipócritas e esses guias cegos que são os escribas e os fariseus, que pagam o dízimo do mento e do cuminho, mas desprezam o que há de mais importante na lei, a saber: a justiça, a misericórdia e a fi­delidade (Mt 23, 4). O começo dessa ardente diatribe cla­ramente indica que seus protestos visam, não a cá­

68 Gap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

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tedra de Moisés e sua autoridade, mas unicamente os guias cegos que a ocupam. Distingue Jesús expressa­mente entre a cátedra e o que a ocupa, diríamos nós: en­tre a função e a pessoa. “Tudo o que vos dizem, fazei-o, mas não façais o que eles mesmos fazem”. Jesús quer por esta forma pôr de parte e salvaguardar a autoridade do ensinamento oficial. Contenta-se com atacar a maneira pe­la qual os escribas e os fariseus cumprem suas funções. E’ verdade que, sendo a própria essência do farisaismo essa maneira de desfigurar o ensinamento, os seus ataques contra os guias cegos atingiam por isso mesmo a própria autoridade ensinante, tal como era entre os judeus do seu tempo, não, porém, o princípio de uma autorida­de ensinante. Tal princípio, ele expressamente o reivindi­cava para si mesmo no seguimento desse discurso: "Só tendes um Mestre, o Cristo” (Mt 23, 10). E estando en­carregados de propagar a mensagem de Jesús, os discí­pulos, Pedro à frente, são, por isso mesmo, chamados

a ser mestres no reino dos céus.

Mostram essas observações todas que a posição de Je­sús com relação às prescrições do Antigo Testamento não consiste nem em rejeitá-las, com rudeza, em bloco, nem a sofrê-las contra a vontade, nem tambem puramente e sim­plesmente em aceitá-las. E’ a posição de quem quer com­pletá-las e cumpri-las; representa, pois, uma aceitação con­dicional. Como o judaismo farisaico tinha esvaziado do seu conteúdo interior, de seu espírito e do seu carater moral, a Lei, o culto do Templo e o ensinamento mosai­co, não podia Jesús senão claramente rejeitar essa forma rabínica da religião mosaica. “Não se deve coser um pedaço de pano novo em velhas roupas, nem guardar vi­nho novo em odres velhos”. Jesús é um renovador con- ciente. Como, porém, o judaismo do seu tempo repousava sobre as ordenações que haviam sido consagradas pela autoridade de Moisés e tinham em vista a vida moral do homem, ele nitidamente os aprova em seu valor interior. “E’ preciso fazer isto, e não omitir aquilo”. Esta fórmula do próprio Senhor nos informa exatíssimamente de sua atitude fundamental com relação ao Mosaismo (Mt 23, 23).

Jesús, pois, não toma a atitude de quem, tendo abro- gado inteiramente tudo o que era ritual, cultual, hierárqui­

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co, tê-lo-ia, contudo, tolerado como a uma espécie de “re­ligião inferior”, mas sem que jamais o houvesse apro­vado de modo positivo.

A teologia “crítica” com excessiva facilidade comete o engano de fazer consistir a mensagem de Jesús somente na face nova que o Mestre queria sobrepor ao judaismo. O novo, pelo contrário, repousa sobre o antigo e não deve ser dele separado. Para termos a mensagem com­pleta de Jesús, precisamos tomar o novo, mas sem des­prezar o antigo. A base da mensagem de Jesús não é al­go de puramente espiritual; é esta base larga, sensivel e espiritual, cultual e moral, hierárquica e pessoal da reli­gião do Antigo Testamento, pregada por Moisés e os Pro­fetas. Sobre ela, ergueu a sua construção nova, ou, antes: fez o novo com o antigo. A mensagem de Jesús, sem dú­vida, oferece o carater “duma simplificação, de uma re­dução e de uma concentração” (3), no sentido de que ele subordinou todas as ordenações e prescrições exterio­res ao único preceito necessário: o amor a Deus e ao próxi­mo. Restituiu ao culto uma direção, uma alma, a sua significação moral e religiosa. Mas, precisamente, fazen­do isso, restituiu-lhes o seu conteúdo original, seu verda­deiro sentido, que é o de ser um meio de exprimir o que não é sensivel. Não o matou, restituiu-lhe, pelo contrário, a vida. O antigo foi no novo transformado para com ele constituir um Todo novo.

Assim, na atitude de Jesús em face da Igreja judaica, nada autoriza a dizer que o próprio catolicismo seria, para Jesús, uma espécie de “religião interior”, que ele ape­nas tolerasse. Porque o que Jesús não encontra no culto e no ensinamento rabínico, a saber, a orientação para o espiritual, para o amor a Deus e ao próximo, é precisa­mente o que faz — como os ensaios precedentes o mos­traram — o fundo mesmo do catolicismo. Dogma, moral e culto da Igreja são cristocêntricos, são espírito e vida, e o seu organismo não é senão a caridade que se fez prá­tica. No catolicismo, nada existe que seja, ou, pelo menos, deva ser puramente exterior, sem relações interiores com o amor a Deus ou ao próximo. Pelo visível ao invisível: tal a idéia que dirige toda a face exterior do catolicismo,

70 Cap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

3) F. H e i 1 e r, Op. cit., p. 35.

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A d a m , A essência do Catolicismo 71

como era a que dominava a atitude de Jesús em presen­ça da organização religiosa, digamos, da Igreja judaica.

Reconhecendo-se, embora, que não seria a sua oposi­ção ao judaismo que impediria Jesús de fundar, por si mesmo, uma Igreja, não se verificará, porventura, que o conjunto de sua mensagem era dominado por um pen­samento que excluia a própria idéia da fundação de uma Igreja duradoura? Em outros termos, não teria vivido e pregado Jesús com a persuasão de que o fim do mundo estava próximo e de que o reino dos céus se inauguraria já para a geração do seu tempo? E’ o grande argumento da Escola “escatológica”. “O descobrimento do carater essencialmente escatológico do Evangelho de Jesús” pode ser considerado como o “descobrimento de Copérnico da teologia moderna”. “De um só golpe, põe ele por terra todo o sistema dogmático do catolicismo e suprime o pino sobre o qual girava o gigantesco edifício da Igreja ro­mana” (4).

De fato, se acreditava Jesús estar vivendo ao fim dos tempos, não podia ser de longa duração a comunidade dos seus discípulos, e não podia ultrapassar a própria pes­soa deles a missão que lhes confiava.

Não podemos, pois, evitar o problema escatológico na pesquisa dos fundamentos históricos da Igreja católica. Compreende esse problema duas questões: Io era o reino de Deus, que Jesús vinha trazer-nos, algo de completa­mente supra-terrestre que, como um prodígio ofuscante, desceria do céu em momento dado — ou é ele um rei­no, um reino de Deus, cujos começos e cujas raizes se encontram desde agora neste mundo, embora só deva atin­gir o seu pleno desenvolvimento e sua maturidade na vida futura? E’ evidente que só esta segunda hipótese nos au­toriza a atribuir a Jesús o pensamento de fundar uma Igreja propriamente dita; 2° a segunda questão, intima­mente ligada à primeira, é a seguinte: partilhava Jesús o erro de certos meios apocalípticos de seu tempo, segun­do o qual o Dia do Senhor era iminente? Evidentemente, na afirmativa, não se poderia tratar da fundação de uma comunidade destinada a durar. Elucidemos antes de tudo a primeira questão.

4) F. H e i 1 e r, Op. cit., p. 3.

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A própria Escola “crítica” é forçada a confessar que a teoria — que Reimar criou e João Weiss, depois Al­berto Schweitzer, aperfeiçoaram — segundo a qual Je­sús nunca jamais tivera em vista senão um reino supra- terrestre, que pura e simplesmente desceria do céu, nunca pôde ser admitida por uma teologia verdadeiramente cien­tifica. Basta-nos um olhar sobre os Evangelhos para nos darmos conta de que Jesús não era um apocalíptico. Pren­dia-se ele, como Weinel o faz notar com razão (5), não àquela corrente secundária que, no povo judeu, tão pou­cos vestígios deixou e a círculos tão restritos ficou limitada, mas à grande corrente profética e moral”. E’ sua preocupa­ção fazer penetrar o reino de Deus no homem vivo do pre­sente. Tem, sobretudo, em vista os “pobres”, os desherda- dos da Lei, os pecadores, os doentes e as crianças, os que têm fome e sede de justiça. E’ no coração que ele é chamado a semear a nova semente da palavra de Deus: a mensagem dessa confiança em Deus, capaz de trans­portar montanhas, dessa caridade e dessa humildade até ao sacrifício da vida, dessa necessidade de pureza que vai até à raiz profunda dos pensamentos e desejos. O reino de Deus é, para ele, tudo o que M de puro, de santo, de interior, fazendo-se carne na terra inteiramente renovada do ponto de vista moral. Colocado neste pon­to de vista absolutamente fundamental, ele muito expres­samente explica aos fariseus que o reino de Deus não po­deria aparecer como uma espécie de prodígio, que se pu­desse observar e controlar nos ares. “Ele não vem de ma­neira a deslumbrar os olhos. Não se dirá: ele está aqui, ou: ele está alí”. Está, na realidade, “em meio de vós” (Lc 17, 21), o que quer dizer que é uma força espiritual interior, um reino de Deus que, sem atrair a atenção, já lançou rai­zes entre os judeus atuais e que, por menor que se apre­sente ainda, e não obstante os obstáculos exteriores, con­

tinua a crescer e a se desenvolver exatamente como o

grãp de mostarda ou a levedura (Mt 13, 31), ou como a

semente que brota por si mesma (Mc 4, 26). E Jesús

tem a conciência nítida de que esse reino de Deus na

terra, de que essa manifestação da Santidade e da Pu-

72 Cap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

5) H. W einel, Biblische Theologie des Neuen Testaments, 1918, p. 82.

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reza na carne é essencialmente ligada à sua própria pes­soa. A humanidade se não poderia renovar simplesmen­te por um sistema de idéias, mas, sim, pelas profundida­des da própria vida divina, da vida divina personificada. Jesús sabe que nele mesmo se realiza essa plenitude de vida. Ele é mais do que Jorias e mais do que Salomão (Mt 12, 41-42). Os tempos antigos, com João, o maior dos filhos dos homens, passaram. Os tempos novos, o rei­no dos céus, aí estão. Por isto, o que nesse reino é o me­nor, é maior do que João (Mt 11, 11). Jesús pode teste- munhá-lo: Eu vi Satã tombar do céu como um raio (Lc

10, 18). O forte está agora algemado e « reino dos céus tem o caminho livre (cf. Mt 12, 29). A quem se obstina em reclamar um qualquer sinal exterior de sua missão, indica ele o seu poder com relação aos demônios. “Se ex­pulso os demônios pelo poder de Deus, é porque o reino de Deus chegou” (Mt 12, 28). Ele próprio é esse reino. E já começam a nascer e a se tornar perceptíveis os pri­meiros rebrotos desse reino de Deus, e que sSo os ho­mens que vêm a ele com uma confiança infantil, são as almas humildes e amantes de um Zaqueu e de uma Ma­dalena, são esses discípulos que venderão tudo para com­prar uma pérola preciosa. E mesmo aquele escriba que

conhece o preceito do amor “não está longe desse reino”

(Mc 12, 34). Estes textos e ainda muitos outros do Evan­

gelho, não deixam a menor dúvida: o reino que Jesús anuncia já está presente, não apenas como “a nuvem que

projeta a sombra sobre a terra” (J. Weiss), mas como

uma luz que brilha nas trevas (cf. Mt 4, 16), e que acaba

por dissipá-las e por produzir a plena claridade do dia.

E’, aliás, nesta necessidade de desenvolver-se plenamente

expulsando as trevas que aparece o carater original desse reino de Deus atual. Ele ainda não está plenamente rea­

lizado. Tem de lutar contra as potências más do mundo.

E’ como o campo de trigo no qual, durante a noite, o

homem mau veio semear a erva má (Mt 13, 25). E’ co­

mo a rede do pescador que se enche a um só tempo de

peixes bons e ruins. Não é nada de plenamente acabado

ou realizado, contém elementos que deverão ser elimi­

nados, espera a colheita definitiva e a triagem dos bons e dos maus.

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E’ aqui que aparece o outro aspecto da prédica dc rei­no, o aspecto escatológico, isto é, o pendor a falar no fim dos tempos, da justiça que vem. O reino de Deus atual re­clama, precisamente pelo seu carater essencialmente in- coativo, o tempo em que toda erva má terá sido arran­cada, em que o reino de Deus sé apresentará em toda sua pureza, como o reino dos que praticaram a caridade e, em nome de Jesús, deram de comer aos que tinham fome e de beber aos que tinham sede.

Quando Jesús emprega a expressão “Reino de Deus” em seu pleno sentido, visa o reino em que o reinado de Deus se realizarg plenamente. E’ em tal sentido que de­

vem ser tomadas as “bem-aventuranças” e o pedido do Pater: venha a nós o vosso reino! Em numerosas pará­bolas e promessas expressas, orienta o Senhor o coração e a imaginação sensivel dos seus discípulos para esse grande acontecimento: cingi vossos rins, tende à mão vossa provisão de óleo, porque o Esposo se aproxima! Daí esse algo de premente, de inflamado em sua Tien- sagem. Ele não admite nenhuma tranquila acomodação com o presente, exige que estejamos constantemente pron­tos, em tensão viva, para o grande momento. Com rela­ção a este aspecto escatológico, relevante, da mensagem do Reinado, nenhuma séria contestação é possivel.

Mais dificil de julgar, à luz dos textos do Evangelho, é a maneira precisa pela qual Jesús se representava a si mesmo o advento desse último dia: seria como uma apa­rição subitânea da Justiça, ou como um desenvolvimento progressivo dos poderes de Deus que tudo desmoronariam e plenamente fariam reinar a “Justiça” ?

Notemos, desde logo, que o ensinamento de Jesús é claríssimo a respeito dos seguintes pontos: o reino im­plantado por ele no presente é ainda de todo embrioná­rio, é a menor de todas as sementes, um grãozinho de lê- vedo; só depois de sua morte e pela sua morte é que, graças a uma ação prodigiosa do céu, desse estado em­brionário passará ao de possante desenvolvimento. “Quan­do eu for erguido à cruz atrairei tudo a mim”. Não so­mente são João e são Paulo, mas tambem os sinópticos registam a promessa de Jesús, segundo a qual, após sua morte, um grande acontecimento devia produzir-se, algo de novo, a visitação dos discípulos pelo Espírito Santo,

74 Cap. IV. A fundação da Igreja â luz da mensagem de Jesús

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“pela virtude do alto”, como diz são Lucas (24, 49), pelo “Consolador”, como lhe chama são João. Era nitidamen­te persuasão da comunidade primitiva que essa promessa se realizaria no ruido e na tempestade do Pentecostes, e que a partir desse momento o pequeno embrião do Reino de Deus começaria a desenvolver-se e a encher o mundo da plenitude de sua vida e de seus frutos.

Podemos daí tirar esta conclusão: o anúncio do fim dos tempos feito por Jesús não visava o fim dos tempos considerado em si mesmo, mas, sim, tudo o que de fato lhe era essencialmente unido, isto é, os acontecimentos que iam produzir a grande separação dos espíritos, e antes de tudo mais, sua morte e sua ressurreição, a descida do Espírito Santo, a fundação da Igreja neste mundo e — em relação necessária com essa fundação — o fim da antiga aliança e a ruina de Jerusalém. Jesús sabia que o reino de Deus estava já fundado em sua própria pessoa; era, para ele, um dos pontos fundamentais de sua mis­são, que já com a sua própria pessoa começava, se rea­lizava já a grande discriminação dos espíritos, a justiça do mundo. Sendo assim, todos os acontecimentos que de­viam ocorrer e saíam, por assim dizer, de sua pessoa, apareciam-lhe necessariamente como momentos do julga­mento do mundo, de fato e essencialmente ligado à sua própria pessoa. Sua maneira profética de ver e apreciar não distinguia entre o presente e o futuro. Não chegava a misturar uns com os outros os acontecimentos históri­cos, mas ligava, numa possante intuição de conjunto, sua unidade essencial, efetiva e a dependência, em que eles estavam, de sua própria pessoa. O futuro em conjunto,

tanto a ruina de Jerusalém quanto o estabelecimento e a

difusão de sua Igreja, lhe era presente, era o presente de

sua Justiça. Pode-se por esta forma compreender que a

sua expectação do fim do mundo incluia o futuro da ge­

ração presente, e que ele podia ameaçá-la com a vinda

do Filho do Homem.

Quais serão o dia preciso e a hora exata de sua vinda?

Propor a questão por esta forma é fazer-lhe ressaltar a

inteira ingenuidade. Tal como pelos Evangelhos o conhe­

cemos, o Mestre tão positivo, tão mais preso ao essencial,

à substância das coisas do que às circunstâncias secun­

Page 76: A essência do Catolicismo (Karl Adam)

dárias de tempo, evidentemente não podia ter a intenção de fixar uma data.

Tal preocupação de uma data precisa só na imagina­ção dos seus discípulos é que viveu. Seduzidos pelas es­peranças apocalípticas do tempo, que mantinham os es­píritos em crescente agitação, eles sobretudo se interes­savam pelo lado exterior da mensagem escatológica, a data. Arriscavam-se, por esta forma, ao ouvirem falar Je­sús dos dias derradeiros, a tomar por isto. os principais eventos que ele lhes pregava, não em suas relações inter­nas, essenciais — como Jesús o fazia — mas unicamente em suas relações cronológicas, tirandc-lhe assim à profecia toda a força e todo o alcance. — Dão-nos aí os evan­gelistas um exemplo notabilíssimo da simplíssima fideli­dade de seu relatório, porque, reproduzindo os discursos escatológicos de Jesús, religando-os entre si e com as outras palavras do Senhor, deram-nos simplesmente a ma­neira, influenciada pelas concepções correntes, pela qual os discípulos haviam compreendido as palavras do Mes­tre. — O próprio Jesús muito expressamente repele a in­tenção de ter querido anunciar o dia e a hora do fim do mundo. Quando lhe perguntaram os discípulos em que tempo se produzirão sinais de sua vinda e do fim do mundo (Mc 13, 4), declara-lhes ele, sem nenhuma restri­ção: “Esse dia e essa hora, ninguém as conhece, nem os anjos do céu, nem o próprio Filho, mas só o Pai” (Mc 13, 32). Esta palavra do Mestre é das que nos são garan­tidas da mais segura maneira. Porque uma geração pos­terior, na qual a fé em Cristo já se havia tornado objeto de reflexões teológicas, não teria ousado introduzir esta declaração suscetível de interpretação perigosa: que o pró­prio Filho ignora o dia do Juizo. E’ à luz desta frase, in­contestavelmente autêntica, de Jesús, que devemos inter­pretar as outras afirmações. Notemos que ele não faz a distinção que a questão parecia comportar. Não diz que, sem dúvida, o Filho do Homem virá em breve, mas, sim,

que só o Pai conhece a hora exata. Sua resposta é pura e simplesmente: "Não sei” (6). Da mesma forma deve

76 Cap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

6) A teologia explica de que modo se pode conciliar esta pa­lavra com o que sabemos, por outro lado, da ciência sobrenatu­ral do Cristo.

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explicar-se a frase que imediatamente precede, a saber, que esta geração não passará antes que tudo isso se cum­pra. Não se aplica ela ao dia e à hora do Juizo final no sentido estrito, mas apenas aos eventos de que se trata nesse discurso do Senhor e que desde esta geração co­meçam o Juizo e, antes de tudo, a ruina de Jerusalém. Se Jesús tivesse tido em vista um Juizo final iminente, não teria podido citar, nesse mesmo discurso, toda uma sé­rie de signos anunciadores diferentes que manifestamen­te não se poderiam produzir no espaço dessa geração: guerras cruéis entre os povos, fomes e tremores de terra, ódio e sublevação de todos os povos contra o Cristo, apa­rição de falsos profetas, pregação do Evangelho no mun­do inteiro (Mt 24, 5). Pouco antes da sua morte, havendo a pecadora de Betânia derramado sobre ele seus perfu­mes, voltou a insistir nesta última profecia: “Por toda parte, oo mundo, o Evangelho será pregado, e por toda parte se falará disto que seu amor fez que fizesse” (Mt 26, 13). Tem Jesús em vista uma crise do mundo que durará longamente, e compreenderá fatos numerosos.

Quando será o fim? E’ o segredo do Pai.Certo número de suas parábolas se desenvolvem no

mesmo sentido. E’ o intendente culpado que maltrata os servos do seu senhor e lhe desperdiça os bens, dizendo consigo mesmo: meu senhor “tarda” a chegar (Mt 24, 48). E ’ o esposo que “tarda” de tal maneira que as vir­gens que o esperam, tanto as sábias quanto as loucas, se deixam adormecer (Mt 25, 5). São os servos laborio­sos que podem fazer com que produzam o dobro os ta- .lentos que lhes foram confiados, à espera de que “muito tempo depois” o senhor volte (Mt 25, 19). Uma crítica literária sadia não permite que se obscureçam tão signi­ficativos textos, unicamente porque contradizem eles a concepção fundamental da iminência do Juizo final. Se quisermos considerar atentamente as expressões todas do Senhor relativas à escatologia em seu verdadeiro sen­tido, em relação com a mensagem central de que ele es­tava encarregado, nela encontraremos apenas um apelo grave, premente, no sentido de estarmos sempre pron­tos, sempre vigilantes à espera do dia do Senhor, que seguramente virá, embora não saibamos quando. “Não sabeis quando virá o dono da casa, será à tarde, à meia

Page 78: A essência do Catolicismo (Karl Adam)

noite, ao canto do galo, pela manhã? Praza aos céus, pelo menos, que ele não chegue de surpresa, encontrando- vos a dormir! O que vos digo, digo a todos: velai!” (Mc 13, 35; Lc 12, 37). Quer Jesús sublinhar que, precisa­mente, não se pode prever o momento de sua chegada que será subitânea, tão inesperada quanto a do ladrão na

noite (Lc 12, 39), tão súbita quanto o raio (Lc 17, 24),

tão imprevista como a rede que tomba sobre o animal

(21, 35). Psicologicamente, foi naturalíssimo que mui­

tos dos discípulos, saturados das superstições apocalípti­

cas do tempo, e que não haviam tão profundamente pene­trado como os Doze o pensamento do Mestre, tenham,

mesmo depois de sua ressurreição, transformado essa su-

bitaneidade, essa imprevisibilidade da volta de Jesús nu­

ma vinda próxima, iminente. Tal engano, entretido, favo­

recido pelos seus desejos pessoais e as esperanças do seu

tempo, ter-se-á mantido longamente ainda em seus cír­

culos próprios. Quanto aos apóstolos e aos evangelistas,

estavam suficientemente convencidos de que o próprio

Jesús lhes falara de uma vinda, não próxima, mas súbita.

Os Atos dos Apóstolos referem que Jesús ressuscitado,

glorioso, se havia expressamente recusado a responder aos

discípulos que lhe perguntaram se seria ainda no tempo

deles ( ê v to v tc ú X Q Ó w ú) que ele restabeleceria o reino

de Israel. “A vós não vos cabe saber o tempo nem a

hora que o- Pai escolheu para manifestar o seu poder”

(At 1, 7). A convicção de que o rumor da vinda próxima

do Juiz do mundo repousava, não sobre claras promessas

do próprio Senhor, mas apenas sobre o seu próprio de­

sejo e opinião, permitiu que as jovens comunidades cris­

tãs evitassem as desilusões e as crises que, sem isso, não

teria deixado de causar-lhes a indefinida demora dessa

vinda. Foi sem extremeções e sem crises que as espe­

ranças antigas desapareceram pouco a pouco. Na IIa Epís­

tola de são Paulo aos tessalonicenses, percebe-se um eco

que se apaga: já no Evangelho de são João, completa­mente desapareceram. O que, nas cristandades e no cris­

tianismo, não desapareceu; o que permaneceu até nossos

dias, foi o que Jesús disse e profetizou de maneira clara,

sua grande mensagem: o Esposo vem, tende-vos prontos!

78 Cap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

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Sc, terminando, quisermos apreciar a Igreja à luz desta mensagem escatológica, duas coisas parecem-nos claras. Antes do mais, que a fundação de uma Igreja estava bem na lógica do pensamento do Senhor. Porque o seu Reino dos céus é, ao mesmo tempo, uma grandeza, uma realida­de presente, que deve esperar a vinda do Esposo tanto quanto praza ao Pai, se faz necessário a esta pérola pre­ciosa um invólucro protetor, se faz necessário a este novo Espírito do reino de Deus um corpo exterior e visível, que o possa conduzir sem perigo através da história. Mas tam­bém, porque esse reino não se deve realizar plenamente senão no futuro, é em torno do futuro que a vida da Igreja gravita. A Igreja outra coisa não é senão a comu­nidade de Parúsia fundada só sobre Pedro. Seu traço fundamental é escatológico. Não pretende dar-nos seu dogma senão o germe do que veremos um dia. “Hoje ve­mos como num espelho.. . mas então vê-lo-emos face a face’’. Seu símbolo termina pela afirmação da vida eter­na. Seu culto se propõe, por meio de signos visiveis e que passam, anunciar e amontoar os bens invisíveis, eternos. Seus sacramentos são signos precursores que fazem pres­sentir a plenitude futura. E’ o papel deles preparar a luz da graça que, um dia, se transformará na luz da glória.

Toda a sua oração, a sua penitência, a sua ação de gra­

ças são conduzidos por esta grande esperança: o Senhor

vem. Ela é feita para a vida futura, não para a vida ter­

rena. Olha, sem dúvida, para as coisas daqui debaixo,

e não desdenha de se ocupar das mesmas, mas unica­

mente na medida em que elas se relacionam com o além e

o Eterno. Exatamente como seu Mestre e Senhor que só

considerava c apreciava os acontecimentos do seu tempo

segundo suas relações reais, essenciais com o grande acon­

tecimento vindouro, a Igreja só vê no mundo presente

o que interessa ao mundo vindouro, o mundo eterno. Ela

alarga e transforma nossa vida; daquilo que passa faz o

que é Eterno. Apreende, no presente, o futuro, no tempo,

a eternidade. O Cristo que ora não conhece o tempo como

tal, não se deixa violentar pelo tempo e suas agitações.

Sua vida não passa, ele não é arrastado pelo tempo. Não

é “vivido”, ruas, sim, “vive” para sempre. Sua atitude é

concientemente intemporal. Usa do mundo como se não

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usasse, porque ela passa, a face deste mundo” (1 Cor 7, 31).

Por isto mesmo, a vida intelectual e moral da Igreja não se encadeia ao que passa, porém, sim, à eternidade. Trata-se, para ela, de fazer penetrar o reino de Deus no homem interior, e se uma civilização puramente terrestre quer instalar-se com a pretensão de bastar-se a si mes­ma, a Igreja se apresenta como sua irreconciliável adver­sária. Nisto é que ela melhor mostra quão completamente se separa do mundo. Não se pode encontrar repouso no que passa. Jamais cessará de clamar por toda parte: “Ten- •de-vos prontos!”, de toda vez que uma cultura puramente terrena, digamos leiga, quiser impôr-se nas Universida­des, na Bolsa ou no Mercado, ou mesmo nas escolas das criancinhas. E’ isto que provoca os conflitos entre a Igreja e a terra. Por toda parte em que a Igreja encontra o mun­do, na filosofia e na ciência, na política e no direito, na arte e na literatura, choca-se o eterno com o temporal, o divino com o humano, o reino de Cristo com o reino do Mundo.

Este é o primeiro ponto. Eis aqui o segundo, que res­

salta da mensagem de Jesús sobre a sua vinda no dia der­

radeiro: o carater essencialmente incoativo, imperfeito da

Igreja. A Igreja visivel não é o reino de Deus completo,

acabado. E’ ainda um campo de trigo a que muito joio

se mistura, uma rede cheia de peixes bons e ruins. Sem

dúvida, o Espírito que a anima é bem o espírito de Jesús;

sem dúvida, as forças vitais que lhe dão movimento e vida

são bem as forças vitais do Ressuscitado; mas os ho­

mens sobre os quais esse elemento divino quer agir são

retidos pela sua carne e seu sangue corrompidos. Por

isto, não passam de homens imperfeitos e permanecem

tais até que o Senhor venha. Haverá sempre, além disso,

homens nos quais a palavra de Deus não penetrou, não

se enraizou, e que, semelhantes ao joio, continuam a cres­

cer até ao tempo da colheita. E’ o que há de trágico na

Igreja, neste reino de Deus da terra: a distância entre es­

tas manifestações terrenas e seu ideal divino, esta subli­

midade e esta santidade que ela traz em si. Mas nossa es­

perança não engana. No dia em que o Cristo aparecer,

80 Cap. IV. A fundação da Igreja à luz da mensagem de Jesús

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A d a m , A essência do Catolicismo 81

esta face tão trágica e dolorosa encontrará sua solução liberadora. O crente desvia o olhar de tudo o que per­cebe de imperfeito, de penoso, de culposo em si mesmo e nos outros membros de sua Igreja, e dirige-o, com o co­ração cheio de confiança — exatamente como os primei­ros cristãos de Corinto e Tessalonica — a esse dia em que o Esposo há de vir. Maran Atha — vinde, Senhor Jesús, vinde!

A essência — 6

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C a p í t u l o V

A Igreja e Pedro"Sobre esta pedra construirei

minha Igreja” (Mt 16, 18).

A mensagem do Reinado dos Céus exigia a fundação de uma Igreja visível. Quanto mais nitidamente manifes­tava Jesús sua oposição às autoridades religiosas de seu tempo, tanto mais evidente se tornava que ele destronava a lei judaica e em lugar dela punha a sua própria lei, que o novo reino se prendia à sua pessoa e à adesão que se lhe desse, que era o seu reino (cf. Lc 32, 29-30; 33, 42; Mt 13, 41), a nova aliança em seu sangue, e tanto mais se impunha, em favor dos seus discípulos, a progressiva libertação do liame que os prendia à religião judaica. “Não se deve coser pano novo a uma roupa velha*’.

Tão mais íntima e conciente, pois, devia tornar-se a comunidade que uns aos outros ligava os seus discípu­los. Quantas vezes tentara ele inculcar-lhes tal sentimen­to! “Eis pelo que se reconhecerá que sois meus discípu­los, será porque vos amareis uns aos outros”. Eles de­viam chamar-se irmãos, ser os seus familiares (cf. Mt 10, 25), seus convidados, que se não deviam deixar entristecer enquanto o Esposo estivesse com eles (Mt 9, 15) e que bebiam juntos no mesmo cálice, o da nova aliança. Por esta forma, seriam seus eleitos, chamados a participar do jubiloso banquete, sentados à sua mesa, no seu reino (Lc 22, 29).

A conciência do seu papel messiânico necessariamente compelia Jesús a fundar uma comunidade. Com Jesús, já havia começado o julgamento, a fé e a repulsa à fé, a separação dos espíritos, a Parúsia. De maneira suficien­temente clara, havia-lhes dito ele: “Não penseis que eu tenha vindo trazer a paz à terra. Não, não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10, 34: cf. Lc 12, 51). Com Je-

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sús, o reino de Deus fazia irrupção no reinado do mun­do e imediatamente começava a separação, isto é, emer­gia o Novo do Antigo, para tornar-se autônomo. Para modelar e formar esse Novo, reunia Jesús pouco a pouco seus “Discípulos” em torno de si. Em vinte e nove per­sonagens do Evangelho, são nomeados esses Doze. Em

são Paulo, esses “doze” (òcóôexa) já têm um carater de instituição. Quer o nome de apóstolos tenha sido dado aos doze pelo próprio Jesús (como o indica são Lucas, 6, 13), quer tenha sido introduzido apenas em terra he- lenística, é, em todo caso, certo que o próprio Jesús es­colheu os doze apóstolos. Deviam ser exatamente doze, nem mais nem menos. Devia esse número doze — o Mes­tre claramente o indicara — representar a nova Israel com as suas doze fontes, “o germe a um só tempo real e sim­bólico” (Kattenbusch) do povo dos Santos que Jesús, co­mo Filho do Homem, segundo a descrição de Daniel (1), viera fundar. A título de novo Israel, eles eram o núcleo do novo reino, seu arcabouço espiritual, os eleitos encar­regados de sua mensagem, o “sal da terra”, a “luz do mundo”. Consideravam-se eles como os que, um dia, ha­veriam de julgar as doze tribus de Israel (Mt 19, 28; Lc 22, 30). Estavam os Doze tão compenetrados da impor­tância fundamental de seu Colégio que, depois da Ascen­são do Senhor, consideraram seu primeiro dever preen­cherem pela eleição de Matias a vaga aberta entre eles pelo suicídio de Judas (At 1, 15). Eram os apóstolos, pois, a forma primeira e fundamental do novo reino. E’ como Igreja apostólica, “construída sobre o fundamento dos apóstolos” (Ef 2, 20), que o novo reino inicia a sua exis­tência histórica. E’-Ihe essencial, e não poderia ser-lhe retirado, o carater de apostolicidade, isto é, de continui­dade histórica e real com os Doze.

Mas, de entre os Doze, desde a eleição de Matias, um há que emerge: Simão, filho de Jonas, cognominado Pe­dro. E’ ele quem propõe e dirige a eleição. No dia de Pen­tecostes, é ainda Pedro que, pela sua palavra inflamada, faz nascer a primeira comunidade na fé (At 2, 14). No Templo (3, 12) e, novamente, diante do Grande Conse-

1) Cf. F. K a t t e n b u s c h , Die Vorzugstellung des Petrus a. der Charakter der Urgemeinde. Festgabe fiir Karl MiiUer, 1922.

6*

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lho (4, 8; 5, 29) é ainda Pedro que se faz o porta-voz do colégio dos Doze. As maravilhas que opera ultrapas­sam mesmo as do Senhor. “A extraordinária e única for­ça miraculosa que lhe é atribuída... mostra que recorda­ção tinha ele deixado e que lhe dava posto à parte entre os Doze” (2). E’ ainda ele que, admitindo o centurião Cornêlio, antecipa a solução de uma questão vital para a Igreja nascente, qual a de saber se podiam os pagãos ser recebidos na Igreja sem passarem pelo judaismo, e quem, em seguida, não obstante as resistências, faz com que prevaleça e por todos seja admitido o seu ponto de vista (At 2, 4). Quando, de outra vez, levanta-se a ques­tão de saber se é preciso submeter à circuncisão os pa­gãos convertidos, é ainda a palavra de Pedro a decisi­va (15, 7). E quando, em Antioquia, ameaça reacender-se a discussão, é da presença de Pedro que se espera a paci­ficação dos espíritos (cf. GI 2, 11). — Aliás, não é só na comunidade primitiva, mas tambem nas comunida­des helenísticas, nas quais exercia são Paulo o aposto- ' lado junto dos incircuncisos (cf. GI 2, 9), que sua opi­nião é preponderante. Paulo indica que Pedro era, com Santiago e João, considerado uma das “colunas" da Igre­ja (GI 2, 9). E’ dos que "servem de regra” (2, 6). Se­gundo são Paulo, Pedro é encarregado do ministério dos circuncisos, como ele próprio o é dos incircuncisos; Paulo o considera, pois, como o verdadeiro fundador e guia da comunidade judeu-cristã (GI 2, 7). E’ a ele que, antes do que a qualquer outro, tem em vista na sua primeira visita a Jerusalém. Pelo mesmo motivo, depois de uma estadia de três anos na Arábia e em Damasco, transporta- se a Jerusalém com o intuito de “conhecer Pedro pessoal­

mente” (iazoQrjaai). E junto dele permanece quinze

dias (GI 1, 18). Manifestamente, há nele uma necessidade de se explicar e de sentir-se de acordo com Pedro. Em certa circunstância, não pôde manter esse acordo; deve “resistir-lhe de face”, porque Pedro cometeu o erro de re- tirar-se da mesa dos pagãos e de, praticamente, assim renegar os princípios fundamentais que ele mesmo havia assentado (GI 2, 11, 12). Mas sente-se, precisamente, a persuasão de que, mesmo para a Igreja de Antioquia, a

2) K a t t e n b u s c h , Op. cit., p. 335.

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conduta de Pedro deve servir de regra e que, sendo assim, uma maneira de proceder oposta à sua não podia ser per­

mitida nas assembléias.Assim, pois, a atitude do próprio Paulo com relação

aos Doze, e a Pedro em particular, nos confirma a fisio­

nomia que já nos apresentava a Igreja primitiva de Je­

rusalém.Por esta forma, pertence aos apóstolos a direção da

Igreja; o mais influente, o de relevo maior entre os após­tolos, é Pedro. Era com Pedro à frente que os Doze dirigiam o conjunto da Igreja. Jerusalém, ou antes, o Co­légio dos Doze tendo Pedro como chefe, era a cabeça, a capital das comunidades cristãs. Como acaba de mos­trá-lo com razão K. H o 11 (3), e contrariamente ao que pensava Sohm, essa capital fruia de competência especial para julgar em última instância as questões que surgiam, assim como do direito formal de exercer vigilância sobre todo o apostolado e conferir credenciais aos missionários. Paulo frisa, com satisfação visivel, que “os que servem de regra a Jerusalém" reconhecem a sua vocação para a evangelização do Gentio, e lhe “deram a mão, em sinal de comunhão (G1 2, 9), sem que nada mais lhe impuses­sem” (2, 6). As próprias comunidades fundadas por são Paulo estavam, pois, sob a alta direção de Jerusalém. Paulo acrescenta: “Recomendaram-nos eles apenas que pensássemos nos pobres, o que me tenho esforçado por fazer com muito zelo” (GI 2, 10). Vários críticos con­

temporâneos não hesitam em ver neste encargo dos po­bres de Jerusalém, dado a Paulo, uma espécie de imposto • Heiler diz, mesmo, um “óbulo de são Pedro” — que as comunidades cristãs da dispersão, em testemunho de sua dependência, deviam pagar a Jerusalém, exatamente como as sinagogas da dispersão judaica deviam pagar

seu tributo ao Templo de Jerusalém.Tal estudo da Igreja cristã primitiva em seu elemento

fundamental, dominante, permite-nos compreender por que chama Heiler ao cristianismo primitivo “o período de formação do catolicismo”, e diz precisamente da co­munidade primitiva de Jerusalém que ela deixa perceber,

3) Sitzungs - Ber. d. Preuss. Akad. d. Wiss. (Atas das

sessões da Academia da Prussia), 1921, p. LXXX.

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“de maneira incontestável”, os traços que se deveriam juntar para produzir os elementos fundamentais do ca­tolicismo em formação” (4). O mais relevante é a auto­ridade de Pedro que emerge no colégio apostólico.

Como explicar esta preeminência de Pedro na Igreja primitiva?

Para Welhausen e sua escola, unicamente pelo fato de ser Pedro o primeiro e ter visto o Salvador ressuscita­do. Sua fé tinha despertado a dos outros; a fé pascal de Pedro se havia tornado, de fato, o fundamento e a raiz do cristianismo, todo ele nascido desta fé na mensa­gem da Páscoa. Holl tentou aperfeiçoar a explicação, di­zendo que Pedro não teria acordado e inflamado, mas somente despertado a fé cristã. A fé dos discipulos, que a Paixão e a Morte do Senhor havia tornado tão tími­da, ter-se-ia reafirmado em face da segurança de Pedro, que se fizera assim o fundador da nova fé. — Nenhuma destas teorias se apoia sobre sério fundamento histórico. Evidentemente, aos olhos dos primeiros cristãos, Pedro é uma testemunha decisiva da Ressurreição do Senhor. Seu testemunho parece, sem dúvida nenhuma, ainda mais apreciado do que o dos outros apóstolos. Enumerando, contra os que negavam a ressurreição, as mais impor­tantes testemunhas do fato, Paulo cita Pedro em primeiro lugar, e depois os Doze em bloco (I Cr 15, 5). E’ bom notar que o anjo do túmulo, segundo são Marcos (16, 7), encarrega as mulheres de dizerem “aos discípulos e a Pedro” que Jesús os precederá na Galiléia. Tambem Mar­cos, pois, distingue, bem expressamente, Pedro e seu tes­temunho dos outros discípulos. Em nenhuma parte, po­rém, como observa com razão Kattenbusch (5), vemos, porventura, que Pedro tenha sido o primeiro a quem o Senhor ressuscitado apareceu. Nada existe, igualmente, que seja bastante a fazer-nos suspeitar que os primeiros discípulos e a primeira comunidade tenham fundado sua fé na ressurreição unicamente sobre o testemunho de Pe­dro, ou estivessem persuadidos de que sua fé dependia da fé de Pedro. As narrativas da Ressurreição, principalmen­te a segundo são Paulo, preocupam-se sobretudo com citar

4) F. H e i l e r , Op. cit., p. 49.5) K a t t e n b u s c h , Op. cit., p. 326.

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toda uma série de testemunhas da Ressurreição, entre as quais 500 irmãos “dos quais a maior parte ainda está viva”. Não é só Pedro, mas, sim, o conjunto dos discí­pulos que se nos apresenta como testemunha e penhor da Ressurreição. E’ sobre este testemunho global que se apoia o acontecimento de Pentecostes.

Se o testemunho de Pedro tem um valor especial, se é o mesmo invocado antes do testemunho dos Doze, não é porque tenha sido Pedro a única verdadeira, ou a pri­meira testemunha autêntica da Ressurreição, mas, sim, porque a sua palavra, aos olhos da comunidade primi­tiva, tinha peso maior do que a dos outros discípulos, porque ele tinha mais vivo relevo. Em outros termos: a preeminência de Pedro não se explica pela prioridade de sua fé na Ressurreição; pelo contrário, é a sua preemi­nência, já admitida, que explica o valor particularíssi­mo atribuído à sua fé na Ressurreição. A importância es­pecial que se deu ao testemunho de Pedro, a menção que, à parte dos Doze, lhe fazem Marcos e Paulo, visivel mes­mo em Lucas (24, 34), força o historiador a pensar que, desde antes da Ressurreição, deve algo ter conferido a Pedro particular relevo. E’ o que teria dado ao seu tes­temunho um valor, não exclusivo, porém preponderante. Poderemos encontrar, acaso, o momento a que essa pre­eminência remonta?

O evangelista são Mateus conservou-nos uma narrativa que por si só muito bem explica a preeminência de Pedro na comunidade primitiva, e o valor especial que ao seu testemunho se reconheceu.

Era nos arredores de Cesaréia de Felipe, ao sul do Hermon, em face dos possantes rochedos a pique das nascentes do Jordão. O Senhor fez aos discípulos esta pergunta: “E vós, quem crêdes que eu seja?" A que Si- mão Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Foi então que Jesús tornou: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas; porque não foi nem a carne nem o san­gue que to revelaram, porém meu Pai, que está no céu. E eu te digo: Tu cs Pedro (o rochedo), e sobre esta pe­dra erguerei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E te darei as chaves do reino dos céus. E tudo o que ligares na terra será ligado no

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céu, e tudo o que desligares na terra será no céu desliga­do" (Mt 16, 15). — Do ponto de vista literário, temos aí, evidentissimamente, uma construção aramaica. O jogo de palavras com Képhas (pedra) não é possível senão em arameu. Em grego, fora preciso dizer Petra e Petros. As expressões “Simão, filho de Jonas”, “Portas do infer­no”, “chaves do reino dos céus”, “ligar e desligar” e a oposição entre “terra” e “céu”, tudo isto pertence à ma­neira aramaica. Por isto os especialistas das línguas se­míticas repelem decisivamente a pretensão de fazer desta passagem de são Mateus uma interpolação acidental, ro­mana. Do simples ponto de vista linguístico, não é possí­vel. Esta passagem não pode ter sido escrita senão num meio palestinense, judeu-cristão. — E’ ele, porventura, autêntico? Examinemos, antes do mais, se ele fazia parte, desde a origem, do texto de são Mateus, ou se foi inter­calado mais tarde.

A coerência perfeita da passagem é evidente, e nada nela faz pensar numa emenda artificial. À confissão de Pedro: “Tu és o Cristo”, corresponde a afirmação do Cristo: “Tu és pedra (rochedo)”. A pergunta do mestre inquirindo a opinião que dele fazem os homens e a enumeração das idéias inexatas destes últimos preparam com perfeito sen­so psicológico a resposta de Pedro e as felicitações que recebe do Senhor: Os outros homens só têm de mim uma idéia falsa, terrestre. Mas tu, tu penetraste meu mistério, és bem feliz.. . Um teólogo protestante, B o 11 i g e r (6), faz esta observação: “As partes desta passagem de são Mateus se prendem umas às outras como os membros de um mesmo corpo. Têm o sabor absolutamente inimitável de uma hora histórica. Mesmo do ponto de vista da forma, a passagem é das que só convêm às grandes personagens, e, mais ainda, só aos momentos mais solenes de sua vida. Um interpolador não a teria conseguido”.

Se agora a recolocarmos no conjunto do contexto, com relação à idéia geral do Evangelho de são Mateus, a au­tenticidade geral da passagem se torna evidente. A in­tenção manifesta deste Evangelho é, com efeito, mostrar em Jesús o Messias profetizado no Antigo Testamento, ou,

6) B o 11 i g e r, Markus, der Bearbeiter des Math. Evangeliums, 1902, p. 86.

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mais precisamente, o legislador e o doutor que explica o Antigo Testamento em seu mais profundo sentido, e lhe dá pleno cumprimento. Seu ensinamento substancial e no­vo deprecia e substitue o falso ensinamento dos Escribas e Fariseus, que filtram uma mosca e engolem um came­lo (Mt 23, 24). A tendência geral de são Mateus é anti- farisaica, porém não anti-judaica. O verdadeiro doutor que prega o reino dos céus é só Jesús. E como os discí­pulos escolhidos por ele devem propagar seu ensinamen­to relativo a uma justiça melhor, constituem eles um novo colégio destinado a ensinar em lugar dos cegos escribas e fariseus. Notemos que a constituição de uma nova au­toridade religiosa visivel, de um novo corpo ensinante, de uma nova Igreja, destinada a substituir a sinagoga, está na lógica desta tendência de são Mateus. Natural­mente, o discípulo que antes de todos os outros apreendeu o mistério do reino dos céus e proclamou a filiação divi­na, está designado para ser a pedra fundamental desse novo edifício. Será o Dono da casa, e o Doutor do reino, o que terá de ligar e desligar (isto é, de proibir e permi­tir), não à maneira dos fariseus, mas segundo o espírito de Jesús. A tendência anti-farisaica de são Mateus atin­ge o seu ponto culminante na fundação de uma nova Igre­ja e na instituição de pleno como provido de poderes plenos. A promessa feita a Pedro não é estranha à ten­dência geral do Evangelho. Entra, pelo contrário, muito bem no plano primitivo do Evangelista.

Não se poderia, contudo, supor que o próprio Evan­gelista — com o intuito de favorecer a tendência judaica anti-paulina — tenha encontrado os vocábulos “pedro” e “chave” para fortalecer a autoridade de Pedro contra Paulo ou da Igreja de Jerusalém contra as pretensões das comunidades helenísticas? Nossa passagem seria, neste caso, produzida por clérigos judeu-cristãos de Jerusa­lém para poderem opor Pedro a Paulo, ou, melhor, seria uma piedosa invenção do autor evangélico. — Seria lon­go reproduzir aqui a prova, feita de maneira definitiva tanto pelos teólogos protestantes quanto pelos católicos, de que na Igreja primitiva não se poderia cogitar de uma oposição, que fosse até à hostilidade, entre Pedro e Pau­lo, ou entre a comunidade de Jerusalém e a do mundo helenístico. E’ igualmente supérfluo procurar provar que

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o Evangelho de são Mateus não é de inspiraçção anti-pau- lina. O que para nós, neste momento, se torna decisivo, é que a palavra essencial da promessa de Jesús a Pedro, a palavra “pedra”, bem antes que são Mateus houvesse composto o seu Evangelho — pouco tempo antes de 70, ainda antes da ruina de Jerusalém — era conhecida e ad­mitida no cristianismo primitivo, e isto não apenas no mundo judeu-cristão, mas tambem no mundo dos cristãos convertidos do paganismo. Não somente são Mateus, mas tambem são Marcos (3, 16) e são João (1, 42) nos di­zem que Pedro, de começo, se chamava Sinião, e que fora o próprio Senhor que, antes de todos os mais, lhe dera o nome de Kephas = Petros = rochedo. Marcos diz igual­mente que Jesús mudou os nomes de Tiago e João para os de Boanerges (3, 17). Não é inutil observar — como o fez Holl — que nem o nome de Boanerges, nem o de Bar- nabé deixaram vestígios na Igreja primitiva, ao passo que o de Pedro ( = rochedo) obteve o maior sucesso. Este cognome de Simão tornou-se na Igreja inteira seu verdadeiro nome. São Paulo o designa quasi exclusiva­mente por esse nome arameu helenizado de Kephas. Na epístola aos gálatas (1, 18; 2, 7, 8), dá-nos ele a tra­dução grega de Petros; nas comunidades helenísticas, será este nome Petros o utilizado; o de Simão desapare­cerá completamente. Coisa tão mais surpreendente, por­quanto nem o nome aramaico Kephas, nem o nome grego Petros haviam sido empregados como nomes próprios antes de Cristo. Encontravam, pois, as comunidades cris­tãs, algumas dezenas de anos antes que são Mateus, par­ticularmente considerado, escrevesse seu Evangelho, pelo menos por volta do ano 35, quando são Paulo se conver­teu, interesse em chamar a Simão, não Simão, porém Pe­dro. “Todos os crentes deviam saber que ele era pedra” (Kattenbusch). Por que isto? Simplesmente porque a co­munidade cristã primitiva achava nisto claramente indi­cada a situação particular de Pedro na Igreja, situação

que ela sabia ter sido expressamente criada por Jesús mesmo. Em outros termos, a substância da nossa passa­gem de são Mateus, a designação de Simão como pedra sobre a qual será erguida a Igreja e, pois, o estabeleci­mento da Igreja sobre são Pedro fazia parte do fundo sólido da tradição primitiva, mesmo antes de são Paulo.

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Impossível ver-se nisto a criação de um círculo judaico estreito, animado de tendências anti-paulinas, por volta do fim do primeiro século. — Explica-se, assim, que não seja só são Mateus, o pretenso adversário de Paulo, es­crevendo para os judeus, a falar de Simão “Pedra”, mas que tambem o helenístico Lucas, que se dirige aos pagãos e depende de Paulo, nos tenha conservado uma expres­são do Senhor, verdadeira paráfrase do texto de são Ma­teus: “E o Senhor disse: “Simão, Simão! eis que Satanaz vos reclamou para vos joeirar como ao trigo; mas eu roguei por ti afim de que tua fé não desfaleça; e tu, quan­do estiveres convertido, fortalece teus irmãos” (22, 31). Não lembra o vocábulo fortalecer ( ozt]qíl,£iv) a “pe­

dra” de são Mateus? O papel próprio de Simão será fa­zer-se o guardião e o sustentáculo da fé nascente. En­contramos assim, mesmo em são Lucas, a vocação de “pedra”. O mesmo acontece em são João: no último ca­pítulo, escrito no jovem círculo dos discípulos do após­tolo, Jesús ressuscitado pergunta: “Simão, filho de Jo- nas, amas-me mais do que estes?” (21, 15). De Simão, o Salvador espera mais amor do que dos outros. E é este amor mais forte que lhe vale ser o substituto do Pastor

messiânico: “Pasce meus anhos, pasce minhas ovelhas”.

Torça-se como se quiser esta passagem, e ela continuará

reforçando a impressão de que a cristandade primitiva

conhecia o papel especial de Pedro na Igreja, papel que

lhe viera da vontade expressa do Senhor. A passagem de

são Mateus não está isolada no conjunto da literatura

evangélica. Sua idéia matriz é, pelo contrário, confir­

mada pelo conjunto da tradição primitiva, anterior a são

Mateus e mesmo a são Paulo. E’ por isto mesmo evidente

que não se trata simplesmente de uma preferência pessoal, de uma espécie de carisma conferido a são Pedro, tendo

em vista a interpretação da Escritura ou a prédica. Pedro

não é uma pedra do novo edifício da Igreja, nem mesmo

simplesmente a primeira pedra, é o rochedo, o bloco so­

bre que repousa o edifício todo. Liga-se intimamente com

toda a constituição íntima da Igreja, não somente com o poder de ensinar ou a manutenção da fé, mas com toda a

plenitude de vida que provém dessa fé, quer dizer, sua disciplina, seu culto, sua organização. Na Igreja, não é

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apenas o ensinamento e a interpretação da Escritura que sobre Pedro repousa, porém tudo.

Esta plenitude de poder é expressa ainda mais clara­mente pelo Senhor na metáfora bíblica das chaves do rei­no dos céus. Pedro é o intendente; encontramos outras passagens do Evangelho nas quais se trata de intendente (Mt 24, 45; Lc 12, 42). Só ele tem as chaves da casa e autoridade para velar sobre todo o conjunto da vida da Igreja. As expressões “ligar” e “desligar” vão no mesmo sentido. Na língua rabínica, na qual essas expressões são tomadas, elas indicam o poder, válido para o céu, isto é, em face de Deus, e de autorizar e proibir e, consequen­temente, o poder, em face de Deus, de julgar decidindo e tomando as medidas necessárias. E’ realmente a “pleni­tude do poder”, no sentido do Concílio do Vaticano, que é descrita nessas três imagens, poder de ensinar e de go­vernar, isto é, o conjunto dos poderes no mais pleno sen­

tido. Como acabámos de ver, a preeminência de Pedro não se limitava ao poder de anunciar a palavra de Deus.

Mas — chegamos agora à questão última — não se tratará, em tudo isso, de privilégios pessoais de são Pe­dro? Convirá, porventura, aplicar-se a passagem de são Mateus e a convicção da Igreja primitiva sobre a preemi­nência de Pedro aos seus sucessores, isto é, ao bispo de Roma?

A se considerarem apenas os textos, sem ter em conta a pessoa de Jesús e suas intenções, a questão podia ser resolvida pela negativa, mas para quem crê em Jesús e na divindade de sua missão — e, pois, na duração im­prescritível de seu pensamento e de sua obra — em Je­sús, o Senhor do futuro — nenhuma de suas obras é efê­mera, nem nenhuma de suas palavras é sem interesse du­radouro. Têm todas um timbre de eternidade; são pala­vras de vida, de poder criador, promessas que não pas­sam enquanto não são cumpridas. Estas reflexões são válidas para a passagem de são Mateus (16, 18, 19). O

que Jesús fez e disse nela para a sua geração e seus

discípulos, disse-o e fê-lo para todos os tempos até sua

volta. Quando Jesús disse: “Tu és pedra”, quis dizer, em

virtude da conciência que tinha de sua missão messiâni­

ca vitoriosa, que a sua pessoa e a sua obra não passa­

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riam. Ele próprio, sem dúvida, está sujeito ao poder da morte, “às portas do mundo inferior”, mas, diante do seu olhar divino-humano, as obscuridades das sombras da morte se dissipam; a brilhante figura de sua Igreja eter­na percebida na distância dos tempos enche-o de júbilo. A confissão, a proclamação de Simão dá-lhe a certeza de que este será para a sua Igreja a “rocha” imutável, cuja

inabalavel solidez lhe garante a inabalavel solidez de sua Igreja. Ela não perecerá, porque será fundada sobre a rocha. Haverá sempre um “Pedro” vivo, cuja fé fortale­cerá a de seus irmãos. Jamais — e isto ressalta das pró­prias palavras de Jesús — à sua Igreja faltará esse fun­damento indispensável que ele lhe deu em Cesaréia, por­que a sua constituição e sua duração dele dependem. A duração desta função de “rocha” se deduz imediatamen­te da virtude vitoriosa de sua conciência messiânica. Se Jesús está certo de que a sua Igreja, a mais essencial das criações de sua conciência messiânica, não será jamais abalada pelas “portas do inferno”, é porque a forma pri­meira pela qual garantiu ele expressa e energicamente es­sa duração e aquela inabalavel solidez, isto é, a função de “rocha ”que Pedro deve exercer, continuará até à volta do Senhor. Exatamente como a primeira, cada uma das gerações sucessivas terá o seu Pedro vivo, sua “rocha”, que lhe permitirá defrontar vitoriosamente os ataques das “portas do inferno”.

Isto é a nossa fé em Jesús que no-lo assegura. Mas, pela história, sabemos que Pedro, segundo as determina­ções da Providência, morreu martir em Roma, e que os bispos de Roma seinpre se consideraram, desde tão longe quanto os dados históricos nos permitam remontar, como seus sucessores na sé episcopal. Jamais, em toda a cris­tandade, nenhuma outra sé episcopal pretendeu atribuir- se a sucessão de são Pedro. Seja qual for o desenvolvi­mento histórico que se possa observar no fundamento teo­lógico e na determinação precisa do primado de Roma, há dois fatos que pertencem ao mais sólido fundo da tradição cristã: — o primeiro é que jamais houve Igreja católica independente de Pedro, de Roma; e assim, desde o começo, a conciência católica considerou necessidade fundamental a união com Pedro c com a Igreja romana.— O segundo é que, desde os primeiros séculos — des­

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de são Clemente de Roma e santo Inácio de Antioquia — tinha a Igreja de Roma conciência de sua preeminência, e que, como “presidente do amor” (santo Inácio), como a “Igreja principal” (santo Irineu), exerceu uma influên­cia decisiva, porque constituía a regra na formação do dogma, da moral e do culto. E’, pois, para nós, certeza histórica bem cara — certeza que, finalmente, nos é ga­rantida do ponto de vista religioso e sobrenatural, por­que repousa sobre a fé no sentido plenamente conciente da obra de Cristo e sobre a persuasão de que o Cristo vela sobre sua Igreja — é para nós certeza histórica que Pedro continua a viver nos bispos dc Roma. Em nossa comunidade de discípulos, não conhecemos outro Pedro, e homem nenhum conhece outro Pedro. Cremos, por isto, que, no bispo de Roma, temos o Pedro sobre o qual o Cristo, em Cesaréia, prometeu erigir sua Igreja.

A luz desta fé, a palavra de Jesús a Pedro: “Tu és Pedra, e sobre esta pedra erguerei minha Igreja”, repre­senta, a um só tempo, uma promessa e uma realização. Ensinou-nos a história, com efeito, e nós mesmos todos os dias o vemos, que Pedro é, foi e será a rocha que su­porta o edifício da Igreja do Cristo, e, com a Igreja do Cristo, a fé viva no Filho de Deus feito homem. Desco­brimos, por aí, o sentido profundo, religioso, do fato de ter sido o estabelecimento de Pedro como rocha sobre a qual a Igreja seria erguida, precedido e como que con­dicionado pela confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, Fi­lho do Deus vivo”. Fé em Cristo, Igreja, Pedro é tudo uma só coisa. Onde não há Pedro, onde se denunciou a fidelidade a Pedro, desmoronou a comunidade da fé, e, com a comunidade da fé, a própria fé em Jesús Cristo. Sem a rocha, nem Igreja, nem Cristo.

E onde está Pedro, evidentemente, as potências do in­ferno investem furiosamente contra a comunidade da fé. Aí saltam Márcio, depois Ário, depois o Renascimento pa­gão e o século 18, depois o Iaicismo. Mas nós continua­mos reunidos no salão do banquete eucarístico, em tomo do nosso Senhor e Mestre. Onde está Pedro, está o Cristo.

Assim, para nós, católicos, a fé no Filho de Deus, a fi­delidade à Igreja e a união com Pedro se confundem. Eis por que, não querendo separar-nos de Cristo, não nos separamos de Pedro.

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Eis também por que nutrimos tranquila, porém firme esperança — esperança que nos foi posta no coração pelo Senhor em Cesaréia — : voltará o dia, porque não pode deixar de voltar, em que todos os que procuram o Cris­to encontrarão de novo Pedro. H e i le r (7) descreve com emoção o sonho ardente do Pastor angélico. Para nós não é somente um sonho, mas uma firme expectação. No Cristo, foi aberta de uma vez por todas a fonte de vida divina, a vida cheia de graça e de verdade. Não po­de haver, para os povos como para os indivíduos, vida duradoura, frutuosa, sem que se venha alimentar nesta vida divina primeira. Em nosso Ocidente, não há comu­nidade de espíritos, não há unidade de almas que dessa fonte divina não tire seus impulsos, suas aspirações, suas esperanças. O Cristo é e permanece sendo o coração da humanidade, sua derradeira e única pátria. E’ só nele que ela achará repouso para sua alma. E ’ convicção nossa de que não há para o Ocidente outra alternativa que não a de desaparecer com a sua civilização — já se ouvem os profetas do seu fim — ou a de reerguer-se naquele que é nossa vida. E ninguém mais lhe dará a vida de Cristo senão esta Igreja erguida sobre Pedro pelo próprio Cris­to, porque só ela recebeu a promessa de que as portas do inferno não prevalecerão. Só ela possue a garantia da duração, a ela só pertence o futuro. A Igreja, pela firme unidade e a força da sua mensagem cristã, comunicou à humanidade da idade média sua unidade e sua força de alma, da mesma forma por que, na luta dura, inexorável, contra os instintos primitivos, pagãos, e contra as per­seguições sempre renascentes dos Césares, havia preser­vado a elevação, a pureza e a liberdade da religião cris­tã e da moral. Só ela, na agitação que separa, desloca e resseca os espíritos no Ocidente, pode criar um ideal co­mum, suscitar forças religiosas que permitam construir, assim como positivas energias morais e um verdadeiro surto vital. Só ela é capaz de renovar os laços partidos com esse grande, esse rico passado de que nossa brilhante cultura ocidental saiu. Quer olhemos para a frente, quer para trás, fora da Igreja de Pedro nenhuma unidade dinâmica interna percebemos, nenluima história continua-

7) F. He i l e r , Op. cit., p. 334 e sg.

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96 Cap. V. A Igreja e Pedro

da e coerente, mas apenas um entrelaçamento de eventos sem fim, convulsões de uni corpo que não mais tem al­ma. Para viver, temos necessidade da Igreja.

Nem todos, infelizmente, vêem as coisas assim. Será inteiramente por culpa sua? Não deveríamos nós, católi­cos, dizer tambem o nosso “niea culpa” com relação às espessas nuvens de prejuízos e equívocos que impedem se reconheça a verdadeira fisionomia de nossa Igreja? No fundo, essas nuvens que se elevam e envolvem a Esposa do Cristo acaso não virão de suas imperfeições, de suas fraquezas, de suas faltas? Quando Deus permitiu que to­da uma parte tão importante de sua Igreja, na qual se contavam forças espirituais de primeira ordem, de nós se separasse, o castigo não foi apenas para os que nos deixaram, foi tambem para nós. E esse castigo que Deus permitiu deve ser, como tudo que ele permite, uma salu­tar advertência, deve fazer com que nos reconcentremos em nós mesmos e nos penitenciemos. Este espírito de Je­sus que se objetiva, por assim dizer, na sua Igreja, cada um de nós deve esforçar-se por fazê-lo penetrar em si mesmo; espírito, antes de tudo, de amor e de frater­nidade, de retidão e verdade (8). Então Deus não deixa­rá — sem dúvida após longos desvios e através de pe­nosas crises interiores — de fazer com que de novo to­dos nos encontremos, e voltemos, na comunhão interior com os nossos irmãos, a ser um só rebanho sob um só Pastor. Cumprir-se-á, então, a prece ardente que Jesús elevou ao Pai antes de se entregar à morte: “Rogo por todos os que me confiaste, afim de que sejam um, como tu, meu Pai, és em mim, e eu em ti. Que eles sejam utn em nós, afim de que o mundo creia que tu me envias­te!” (Jo 17, 20).

8) E’ neste sentido que Santo Agostinho exorta os seus fiéis: habete igitur pacem, fratres. Si vultis ad illam trahere ceteros, primi illam habete, primi illam tenete (Sermo 357, 3).

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C a p í t u l o V I

A comunhão dos Santos

Quando um membro é glorificado, todos os outros membros participam da sua alegria (1 Cor 12, 26).

O Papa e os Bispos constituem o arcabouço do corpo do Cristo no espaço e no tempo. Produzidos por esse pos­sante amor que faz e conserva a unidade do corpo do Cristo, autenticamente estabelecidos por instituição ex­pressa do Senhor, eles preenchem a mais importante fun­ção, garantindo a existência do corpo, o bom funciona­mento da Igreja. Este serviço de caridade, que assegura o funcionamento normal do organismo, não absorve, con­tudo, a atividade toda do corpo. A Igreja, corpo do Cristo na terra, não é somente constituição hierárquica, Papado, Episcopado: “Se fossem todos um só membro, onde es­taria o corpo? Há, pois, vários membros, mas um só corpo” (1 Cr 12, 19). E’ por Aquele que é a cabeça, o Cristo, “que todo o corpo é coordenado, unindo-se pelo laço dos membros que se prestam mútuo socorro e que operam, cada um segundo a sua medida de atividade, crescendo na caridade e nela se aperfeiçoando” (Ef 4, 16). Há, para os membros, funções numerosas. Acompanhe­mos o pensamento do apóstolo, dizendo mesmo que cada um dos que, pela fé e a caridade, pertencem ao corpo do Cristo, tem a sua função particular a cumprir. “Assim como nós temos vários membros num só corpo, sendo que cada um deles tem uma função diferente, tambem nós, que

somos muitos, não constituímos senão um só corpo no

Cristo, cada um por si, somos todos membros uns dos outros e temos dons diferentes, segundo a graça que nos foi concedida” (Rm 12, 4). Cada uma dessas funções tem

a sua importância para o bem e o bom funcionamento do corpo. Nenhum dom existe que seja concedido exclu-

A essência — 7

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98 Cap. VI. A comunhão dos santos

sivamente para o bem do interessado, nenhuma graça que não pertença a todos. "Se o pé dissesse: visto que não sou a mão, não pertenço ao corpo, deixaria por isto, acaso, de pertencer ao corpo? E se a orelha dissesse: pois que não sou o olho, não pertenço ao corpo, porven­tura deixaria de pertencer ao corpo por isso? ...” (1 Cr 12, 15). E’ precisamente nesta estreita relação para coin todo o organismo, neste carater de solidariedade de cada uma das funções da vida cristã, que encontra Cída um seu verdadeiro papel no interior do corpo do Criso.

Todos os membros são igualmente necessários ao cor­po do Cristo, embora de pontos de vista diferentes. Uns, como o Papa e os Bispos, lhe constituem o arcabouço, e lhe dão a forma exterior, outros fazem-no viver interior­mente, provendo-o de vigor. Deste ponto de vista não se poderia falar de hierarquia de dons. “A cabeça não pede dizer aos pés: não preciso de vós. Os membros que miis fracos parecem, são os mais necessários (1 Cr 12, 21). Embora, para quem olhe de fora, a atividade de orgios como o Papado e o Episcopado impressione mais na his­tória da Igreja, quem sabe se, para a sua vida interior, para a edificação do Cristo total em sua plenitude, náo será muito mais importante a pobreza jubilosa de un Francisco de Assis, as vigílias de um Inácio de Loiola, a caridade para com os pobres e doentes de um Francisco de Paula?

E’ desta ação dos membros “mais fracos” em vista da edificação do corpo do Cristo que vamos falar na pre­sente conferência. Diremos em que sentido e em que me­dida, não apenas os Bispos e o Papa, mas tambem os outros fiéis contribuem para formar o corpo de Crisu, e de como os “dons” particulares dos simples fiéis apro­veitam ao conjunto do corpo.

E’ o dogma da comunhão dos santos. Por comttnhio dos santos entende a Igreja, antes de nada mais, a o>- munhão de espírito e de bens entre os santos da terra, isto é, entre os que, pela fé e a caridade, se incorpon- ram sob a mesma cabeça, o Cristo. Entende tambem por isso a união vital de todos os fiéis de Cristo com todas as almas que deixaram este mundo na caridade do Crisü, quer já sejam bem-aventuradas e contemplem seu Dets no estado de glória, quer ainda se purifiquem à espeia

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desta bem-aventurada visão. E’ o mundo de todos os que foram resgatados no Cristo e que, nos diversos estádios de seu desenvolvimento, Igreja militante, padecente e tri­unfante, pertencem à mesma família, ou, antes, ao mesmo corpo, sob a mesma cabeça, da qual toda graça decorre, Jesús Cristo.

A Igreja militante. — E’ no silêncio, e não com grandes gritos e grandes gestos, que na terra lutam os “Santos” de Cristo, “o povo santo” (1 Pd 2, 9). Lutam, não con­tra os homens, mas contra o pecado; lutam para alcan­çar aquela pérola única, aquele tesouro inestimável. Sua fisionomia, achamo-la esboçada, em alguns poucos tra­ços concisos, expressivos, no Sermão da Montanha. São os “pobres de espírito”, os pequenos no Estado, na Igre­ja, na sociedade, os injustiçados, aqueles para os quais se não olha, os que cumprem sem ruido seu obscuro dever quotidiano e se surpreendem a mais não poder de que o Deus de toda majestade se digne vir até eles. São os “mansos”, que jamais murmuram contra a vida, e a aceitam sempre sorridentemente, tal como Deus lha dá. São “os que choram”, dizendo a Deus, a gemer, em suas noites solitárias: Senhor, seja feita a vossa vontade, e não a minha! — e que chegam até a dizer a Deus, com o co­ração jubiloso, obrigado! por haver-lhes permitido que carreguem a cruz com Jesús. São “os que têm fome e sede de justiça”, longe de se contentarem com uma vida cô­moda de piedade e com uma virtude satisfeita, têm sem­pre, no fundo do coração, o tormento doloroso de sua indignidade e pela vida toda se esforçam por elevar-se pela graça misericordiosa do Salvador. São os “miseri­cordiosos”, para os quais as misérias dos outros são tam­bém suas, que não temem passar pelos caminhos mais pe­nosos e perigosos, através da vergonha e da lama, para a busca de seu irmão necessitado, e que se não deixam chocar por nenhuma negativa. São “os corações puros”, esses homens de alma de criança, incapazes de malícia, bons, claros, para quem a vida é um dia ensolarado e que dizem com simplicidade do fundo do coração: Abba, Pai! São os "pacíficos”, os que trazem a paz, os homens ani­mados do Espírito de Deus, almas recolhidas, sempre iguais, que irradiam a paz e a calma, como templos de Deus, diante dos quais o espírito de discórdia se cala,

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envergonhado de si mesmo. São, enfim, os que, “por cau­sa da justiça”, “por causa dele”, sofrem perseguição, al­mas de apóstolos, trabalhadores infatigaveis do campo do Senhor, e que, pela palavra e a pena, pelo ensino e pelo exemplo, “a tempo e a contratempo” (2 Tm 4, 2) dão testemunho da verdade. Não têm em vista seu in­teresse pessoal, nem o reconhecimento do mundo, nem as honras da Igreja. Só têm em vista as almas. Por isto, o mais das vezes não colhem senão humilhações, perse­guições e ódio. Porque excitam particularmente a luta dos espíritos com o sorriso e o sarcasmo dos sábios deste

mundo.A Igreja padecente. — O homem — é um dogma cla-

ríssimamente contido no acervo da revelação — não pode produzir frutos para a vida eterna senão na vida pre­sente: “Trabalhai enquanto é dia, porque cairá a noite durante a qual não se pode trabalhar” (Jo 9, 4; cf. 1 Cr 15, 24). Só nesta terra é que o bom pão, como o ruim, germina e brota. Para além, é o tempo da colheita. Para além, não há mais obras “meritórias”, nada mais que possa fazer o homem galgar um só grau no merecimento e na glória. Comparecendo diante de Deus no juizo par­ticular, ele se vê, pelo próprio testemunho de sua con- ciência, classificado definitivamente entre os abençoados ou entre os malditos pelo Pai celeste. De maneira defi­nitiva, conserva a alma, aí, os traços que a si mesma se deu durante sua vida terrena, pelo modo por que colabo­rou com Deus à luz da graça e das exigências de sua con- ciência. — A doutrina católica sobre a Igreja padecente nada tem de comum com aquela concepção platônica e origênica, de fonte oriental, segundo a qual, depois da morte, começa para todas as almas um novo período de desenvolvimento. — De outro lado, é de fé católica que uma alma, mesmo em estado de graça, não é imediata­mente admitida na beatitude, na visão de Deus. A graça santificante dá direito, é claro, à possessão de Deus, já é mesmo, em germe, a participação à vida de Deus. Se­gundo a doutrina católica, a justificação não se obtém por simples atribuição dos merecimentos do Cristo, por uma espécie de revestimento exterior de sua justiça, mas, sim, por uma espécie de surdimento misericordiosíssimo e gratuito da caridade criadora de Cristo, em nós, pela apa­

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rição sobrenatural, em nós, de uma vontade nova no sen­tido de tudo o que é bom e santo. Por isto mesmo, é-lhe essencial este surto para a perfeição e a santidade, e só na santidade a alma pode atingir o repouso. O santo, no sentido estrito, não é o que possue simplesmente a gra­ça santificante, mas, sim, o que, na sua vida, deixou que seguisse esta graça o seu livre curso, isto é, o que, sob o excitante influxo desta força sobrenatural, chegou a ma­tar em si mesmo todo mal — inclusive os mais secretos pensamentos, as mais flebeis inclinações — e a fazer com que dominasse plenamente o bem; numa palavra, é o homem puro, perfeito. Só o homem completamente pene­trado do amor de Deus e do próximo até aos mais re­cônditos desvãos do seu ser, o homem glorificado, verá Deus.

Existe este homem na terra? “Quem poderá manter- se diante de Deus, o Deus santo?" (1 Rs 6, 20). A his­tória, sem dúvida, dá testemunho de que a Deus aprouve manifestar algumas vezes seu poder através da fraqueza humana. Houve e ainda há santos que, desde esta vida, parecem ter chegado à plenitude da vida de Cristo, às vezes^ainda crianças, às vezes só alcançando esse esplen­

dor de vida moral pela morte. Mas a experiência igual­mente nos mostra que, em sua grande maioria, os piedo­

sos fiéis ainda no momento da morte não atingiram essa

altitude do ideal cristão, de se “tornarem perfeitos como

o Pai celeste é perfeito", que o Cristo de nós exige e nos

assinalou em germe no carater da infância. Grande parte

dos cristãos chega à morte mal tendo realizado o começo

desta vida de união, de dom total a Deus, o Bem Su­

premo, e, pois, longe ainda de seu pleno desenvolvimen­

to, de sua maturidade. Ao deixarem a terra, não era Deus

senhor ainda de todos os desvãos do seu ser; havia ain­da neles tantos desordenados impulsos, tantas oposições

à lei moral, cuja malícia, vale dizer, cuja resistência a

Deus pela ação e pela omissão, não se lhes apresentava

ein plena conciência. Faltas que eles mais sofriam do

que cometiam por sua livre vontade, faltas que eram mais

o ranço de sua natureza desequilibrada do que a ver­

dadeira substância do seu ser. Chama-lhes a teologia pe­

cados veniais. De fato, inumeráveis fiéis morrem com pe­

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102 Cap. VI. A comunhão dos santos

cados veniais na conciência. Não podem, pois, “pisar a

estrada santa" (cf. Is 35, 8).Pode-se mesmo crer que, para muitos, a própria morte

é que constitue a purificação derradeira. À medida que o mundo sensivel e seus perturbantes fantasmas desapa­

recem, que o penoso abandono, a solidão absoluta, se fa­zem sentir e os esmagam, à medida em que a angústia desse mundo das realidades ultra-terrestres e do julga­mento que se aproxima desperta neles o sentimento do pecado, mais eles se agarram, com mais viva confiança, a esse Deus misericordioso. Como a criança que, no so­bressalto do pesadelo, procura a doce mão da mãezinha, procuram eles também encontrar a mão segura de Deus, a vida de sua vida. Surde, assim, de seu coração um fér­vido amor ao Pai, amor que mostra pronto a dar com jú­bilo a vida, caridade perfeita! Tal fervor de caridade con­some todo pecado, toda má disposição e faz com que des­apareça qualquer pena devida pelo pecado. Entra a al­ma imediatamente na alegria do seu Senhor.

Mas nem todos os que morrem no Cristo dispõem de uma graça tal, ou porque sejam surpreendidos por uma morte subitànea, ou porque não dêem à sua preparação a profundidade e a força de vida interior que supõe essa morte aceita com perfeita caridade. Neste caso, se re­cusamos admitir que essas almas, que deixam a vida terrena sem ter feito uni ato de caridade perfeita, estão purificadas, de maneira por assim dizer mágica, sem co­laboração nenhuma de sua parte, por uma intervenção imediata da misericórdia de Deus — onde estaria a jus­tiça de Deus, que exige que o homem colabore com a sua graça? — Se, de outro lado, sustentamos que essas al­mas, unidas a Deus pelo fundo do seu ser, visto que es­tão em estado de graça, não podem permanecer eterna­mente privadas da visão de Deus — porque, então, onde estaria a misericórdia e a bondade de Deus? — é-nos absolutamente necessário admitir que há para essas al­mas um meio de se purificarem, mesmo depois da morte. Esta possibilidade é que pressupunha Judas Macabeu, quando, em bem dos heróis tombados no combate contra Górgias, mas que, contravindo às prescrições da lei mo­saica, haviam escondido sob as vestes objetos consagrados provenientes dos ídolos, mandou oferecer “sacrifícios ex­

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piatórios” em Jerusalém, afim de que, "libertos” de seus pecados, pudessem eles participar da “ressurreição” (2 Mac 12, 43). O próprio Jesús aludia a esta possibilida­de quando prevenia seus ouvintes contra o pecado “que não será perdoado nem neste mundo nem no outro” (Mt 12, 32), e quando falava dessa prisão da qual ninguém pode sair “até que tenha pago o último óbulo” (Mt 5, 26). E’( enfim, esta possibilidade que tem são Paulo diante dos olhos quando fala daquele doutor e pregador que, sobre o fundamento do Cristo, não empregou, contudo, se­não madeira, feno e palha como materiais de construção (1 Cr 3, 11 s). Esse, diz ele, verá sua obra consumida pelo fogo, mas ele mesmo será salvo, “como se fosse, porém, através das chamas”, isto é: não sem pena ou sofrimento. Por que motivo restringir este ensinamento de são Paulo só aos pregadores do Evangelho e não o es­tender a todos os cristãos, sejam quais forem, que, sem dúvida, fundam sua vida sobre o Cristo, mas tantos pe­cados cometem? Era visando essa salvação “como atra­vés das chamas” que os primeiros cristãos, como no-lo ensina Tertuliano e o confirmam numerosas inscrições cris­tãs primitivas, ofereciam orações, esmolas e, sobretudo, o sacrifício eucarístico pela paz, o alívio, o repouso eter­no dos defuntos (pax, refrigerium, requies).

Apoiada a esta tradição, a Igreja, nos Concílios de Lião (1274) (1), Florença (1438-1445) (2), e Tren- to (1563) (3), explicitamente formulou como dogma de fé que existe, depois da morte, um estado de purificação (purgatorium) e que as almas a ele submetidas podem ser auxiliadas pela intercessão dos fiéis (cf. Cone. de Tren- to, sess. XXV, de purgat.). Não se trata senão de uma purificação da alma, de algo de negativo, a supressão de pecados que são o resíduo da imperfeição de sua vi­da cristã na terra, e de maneira nenhuma de uma eleva­ção positiva, de um acréscimo de seu íntimo valor. Como, por ocasião da morte, cessa toda possibilidade de deci­são pessoal, de iniciativa transformadora, de obra meri­tória, esta desaparição dos pecados da vida terrestre não

1) Cf. D e n z i g e r - B a n n w a r t h , n° 464.2) Ibid. n”. 693.3) Ibid. n". 983.

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pode ter senão um carater passivo e penal. E ’ um sofri­mento que deve satisfazer (satispassio) e não uma ação positiva (satisfactio). Por isto fala a Igreja das pe­nas purificantes do purgatório (puenae purgatoriae seu

catharteriae). E’ que, com efeito, a alma, que não expiou suficientemente pela penitência voluntária e ju­bilosa do coração, aqui na terra, deve sofrer, então, as consequências amargas que a justiça de Deus faz com que do menor pecado decorram, e isto até que haja be­bido todo o amargor do pecado e inteiramente se des­prendido dele, até que aquilo que era fragmentário e in- coativo atinja a plenitude, à perfeição da caridade do Cristo. Obra longa e dolorosa, “como através do fogo” !

Há um fogo real? Enquanto estivermos aqui em baixo, sua íntima realidade nos será desconhecida. O que muito bem sabemos é que nada tortura mais essas “pobres” al­mas do que a conciência de estarem assim, por sua culpa, afastadas da união beatífica. Quanto mais sua vontade alcança desprender-se, pouco a pouco, do seu estreito egoísmo, quanto mais o coração se lhes abre livremente e sem obstáculo a toda a largueza e profundidade de Deus, tanto mais íntima e viva se lhes torna a dor de estar lon­ge de Deus. E’ a nostalgia do Pai que atormenta e fla­gela a pobre alma, como por meio de inflamados açoi­tes, e tão mais dolorosamente quanto mais avançada se encontra a purificação.

O que distingue este estado é que nele não há ape­nas, como no inferno, castigo e sofrimento, mas, sim, sobretudo, jubilosa esperança e certeza plena. O ritmo dos sentimentos na vida dessas almas vai da dor que lhes causa o seu pecado à alegria da esperança do céu. E’ o que as distingue essencialmente das que “não têm mais esperança”. “Ainda mais algum tempo, e seu coração re­jubilará”. Momento virá em que não haverá mais, para elas, purgatório, mas apenas o céu dos bem-aventurados. E’ simplesmente uma passagem para o Pai, passagem penosa, sem dúvida, mas, enfim, passagem, na qual não se para e é cheia de radiosa esperança. Cada momento aproxima do Pai. O purgatório é como um começo de primavera. Já alguns cálidos raios vêm rapidamente aca­riciar os torrões ainda endurecidos pela geada e acordar aqui e ali uma vida ainda hesitante. Do Cristo, sua ca-

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beça, escorrem de cada vez mais abundantemente, sobre os membros padecentes, graça, força, consolação. A luz de glória se estende sobre um círculo de cada vez mais aberto da Igreja padecente. Já numerosos eleitos desperta­ram para o grande dia da vida e cantam o cântico novo: “Salve, nosso Deus, que está no trono, e o Cordeiro” (Apoc 7, 10).

A Igreja triunfante. — Constantemente chega ao céu, ou diretamente ou depois de haverem passado pelo ca­minho da purificação da Igreja sofredora, a multidão dos eleitos que se dirige para o Cordeiro e para Aquele que está no trono, para contemplar — não mais como num espelho ou numa imagem — porém face a face, a Santíssima Trindade que traz no seio todo o possivel e todo o Ser, que não recebe o Ser de nenhum outro, ao passo que da plenitude de sua vida desbordante todos os seres haurem existência e força, movimento e beleza, verdade e amor. Ninguém lá está que não tenha sido cha­mado e atraido pela pura e misericordiosa bondade de Deus. São todos eleitos, desde a Mãe de Deus até o re- cem-nado que, no momento mesmo da morte, recebeu a graça do batismo. Libertos de toda estreiteza egoista, er­guidos acima de toda angústia terrena, vivem eles, na esfera do amor que a sua peregrinação aqui em baixo lhes fizera entrever, da vida plena de Deus. E esta é ver­dadeiramente uma vida, não imobilidade, mas incessante movimento da sensibilidade, do espírito, do coração. Do­ravante, sem dúvida, não mais podeni merecer, não mais podem dar frutos para o céu, porque o Reino dos céus aí está e a graça fez a sua obra, mas a vida da glória é incomparavelmente mais rica do que a da graça. As extensões e profundidades infinitas do Ser divino permi­tem à alma procurar e encontrar sempre novos meios de satisfazer as suas mais secretas aspirações. Novos obje­tivos sem cessar se apresentam, novos aspetos se desco­brem, novas fontes de alegria irrompem. Incorporada à santíssima humanidade de Jesús, a alma se prende por laço íntimo e misterioso à própria divindade. Sente, por assim dizer, bater o coração divino, sente a atividade da própria vida divina. Ela aí está, vive ali onde, surdindo, murmuram as fontes de toda vida, ali onde todo ser se aclara na Trindade de Deus, ali onde a plenitude da for-

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ça e da beleza, da paz e da felicidade se tornou uma rea­lidade presente, um presente eterno.

Essa vida dos santos, desbordante dc inesgotável fe­cundidade, é também de multiplicidade e plenitude incom- paraveis. O espírito de Jesús, sua cabeça e seu media­dor, se desdobra em toda a variedade de sua riqueza em cada alma, segundo suas capacidades naturais e a vo­cação que Deus lhe deu, na medida em que ela acolheu e utilizou as intimas solicitações da graça. Por esta forma, o Santo, o Servo de Deus, se vê reproduzido em milha­res de milhares de formas e variedades. Em suas litanias dos Santos, faz a Igreja desfilar em rápida revista todo esse mundo do Céu. Do trono da Santíssima Trindade à Virgem, Mãe de Deus; desta, passando pelos coros dos Anjos, à figura solitária do pregador da penitência, o Batista, o Precursor que preparou o caminho, depois a s. José o Pai nutrício, o homem do dever silencioso e da pureza incomparavel. Ao lado dele brilham as figuras dos patriarcas e dos profetas: homens primitivos, algumas vezes de estranha vida, mas homens de fé profunda, de santa esperança e de desejos ardentes. Depois, destacan­do-se no seu fulgor, as testemunhas do cumprimento das promessas, os apóstolos e os discípulos do Senhor: Pedro, Paulo, André, Tiago, todos os outros. Tantos nomes, quantos caracteres, temperamentos, papéis particulares. No entanto, um só e mesmo amor, uma só jubilosa men­sagem! E, ao derredor, que brilhante floração de milha­res de campos e de cores: santos mártires — santos bis­pos e confessores — santos doutores da Igreja — san­tos sacerdotes e levitas — santos religiosos e solitários— santas virgens e santas mulheres — numa palavra, todos os santos. E aquela iniensa multidão que “ninguém pode contar, de todos os povos e de todas as raças, de todos os paises e de todas as línguas. Aí estão eles,

vestidos de vestes brancas, com as palmas nas mãos,

diante do trono e diante do Cordeiro” (Apoc 7, 9).

Seja qual for a prodigiosa grandeza de todas essas

personalidades, cada uma em sua ordem, uma existe que

a todas supera: a única, a Rainha dos Anjos e dos Santos,

Maria, a Mãe de Deus. Como todas as outras criaturas

do céu e da terra, tambem ela foi tirada do nada. Uma

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distância infinita a separa do Infinito, do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Não há nela i^raça, virtude ou privi­légio que ela não deva ao Divino Alediador. Em seu Ser, tanto natural como sobrenatural, ela é toda graça,

“cheia de graça” (xe^aotz(ouií)>i/‘ Lc 1, 28). Não pode­

ria haver absurdo e monstruosidade maiores do que fa- lar-se de um fundo politeísta do Catolicismo (4) e pro- ferir-se a blasfêmia de que a Mãe de Deus seria a Di- vindade-Mãe. Não há mais que um só Deus, a Santíssima Trindade, e tudo o que é criado respira no frêmito do seu mistério. Esse Deus único, porém, é um Deus de vida e de amor. Tão grande e desbordante é seu amor que ele se não contenta com o ter feito o homem à sua imagem e semelhança criadoras, comunicando-lhe a in­teligência e a vontade, livre esta, do ponto de vista na­tural, e dele fazendo, de certa forma, um ser subsistente. Pelo dom inestimável da graça santificante, isto é, por uma participação incomparavel à sua naturdza divina e à sua virtude santificante, chama-o a uma espécie de cola­boração criadora na obra de Deus, a uma iniciativa de salvação no estabelecimento do reino de Deus. Este é o

4) Há anos atrás, C. O e s t e r r e i c h (Das Weltbild der Ge- genwart [Quadro do mundo atual], 2*. ed.,' 1925, p. 203) dei­xava escapar esta afirmação: ‘^O catolicismo não é menos poli­teísta do que sem dúvida o foi a religião greco-romana”. De outro lado, contudo, o mesmo autor é bastante liberto de pre­juízos para observar “que há no catolicismo um espírito reli­gioso extraordinariamente profundo”. "Se o compararmos ao protestantismo, só a ele cabe a glória da verdadeira cultura re­ligiosa”. Daí tirava ele a conclusão, que lhe parece rigorosa­mente lógica, de que, “para o conjunto dos homens, a forma po­liteísta da re lig ião... é incomparavelmente mais capaz de ex­citar o sentimento religioso do que o protestantismo seco e muito mais pobre do ponto de vista psicológico”. De fato, o Deus do catolicismo, exatamente como o do protestantismo, é o Deus-Trindade, e esta fé monoteista domina não somente toda a dogmática católica, mas ainda todo o culto católico, até ao mínimo gesto de oração. O que faz a superioridade do catoli­cismo são o relevo e a intima seriedade que dá ao dogma de um Deus incarnado e o fato de fazê-lo tomar o mundo no nada o no pecado para elevá-lo a relações que resultam de uma real comunicação da vida divina. O protestantismo, pelo menos se­gundo a concepção calvinista, não pode fazer desaparecer a oposição entre Deus e o homem. E’ o que dá à sua concepção de Deus esse carater rígido e pobre que Oesterreich observou.

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sentido profundo e a inverosímil riqueza da Redenção: ela faz com que a criatura racional transponha a distân­cia infinita em que a mantinha a sua absoluta impotên­cia; tira-a do abismo da perdição, no qual a haviam preci­pitado seus pecados, para elevá-la até à fonte de vida divina e torná-la assim capaz — conservando-lhe embo­ra o carater limitado, essencial à criatura — de colabo­rar na obra da Redenção. Os Anjos, segundo a revelação, participaram, à sua maneira, da obra da criação; mais tarde, transmitiram a lei a Moisés (GI 3, 19; Hb 2, 2) e assim colaboraram no estabelecimento da Antiga Alian­ça. Do mesmo modo, a nova criação e a nova aliança se cumprem, não sem elas, mas com o concurso dessas mesmas causas segundas, os Anjos e os homens. Assim, em certa medida, a humanidade resgatada entra inteira na corrente das forças sobrenaturais de vida. Não é so­mente objeto, mas tambem sujeito da ação redentora de Deus. Não é.Deus só, nem o “um” divino ( ev ) só, mas

o “Um e o Todo” (b> xat nãv), ou antes: o conjunto

dos membros introduzidos na corrente da vida divina pelo Cristo, sua cabeça, Deus agindo e dando frutos em seus santos, é que constitue o verdadeiro reino de onde toda benção desce.

Ainda aqui aparece uma diferença essencial entre o Catolicismo e o Protestantismo. E’ sempre a separação, a distinção, o cisma que caracteriza o protestantismo — não apenas do ponto de vista eclesiástico, porém mesmo do ponto de vista religioso. Ele separa o saber da fé, a justificação da santificação, a religião da moral, a natu­reza do sobrenatural, e transporta esta separação à pró­pria esfera da atividade de amor e da graça em Deus. Suprimindo toda atividade própria às criaturas em suas relações com Deus (5), e tornando estas incapazes de todo bem, Lutero desviava de seu verdadeiro sentido as palavras da Bíblia que ensina que Deus age sozinho. Se­gundo Lutero, a misericórdia de Deus se propaga só e unicamente sobre os privilegiados. Não existe, para ele, nenhum acordar de almas pelo seu amor, nenhuma ju-

5) F. X. K i e f 1, Katholische Weltanschauung und modernes Denken (A metafísica católica e o pensamento moderno), 1922, p. 19.

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bilosa excitação, nenhuma colaboração das potências das almas tocadas e despertadas pela carícia de seu amor, nenhuma mistura destas novas riquezas espirituais comu­nicadas à alma com a plenitude da vida de Deus, nenhum alento do Cristo sobre os seus membros. Só opera Deus, Espírito transcendente, infinito, não o Deus que se apro­pria da natureza humana e que, por meio dela, age e so­fre, resgata e santifica, como por meio de membros seus. Para o católico, a coisa é muito diferente. Ele não pode pensar em Deus sem pensar ao mesmo tempo no Deus feito homem e em todos os que, pela graça santificante, se lhe unem como membros num só corpo. O Deus do catolicismo é o Deus feito homem e, precisamente por causa disto, o Deus dos Anjos e dos Santos, não o Deus solitário, mas o Deus da vida plena e fecunda, o Deus que, por uma verdadeira loucura divina, assume em Si a criação inteira tomando o homem que a domina, e que, de maneira nova, inaudita, sobrenatural, nele “vive”, nele “se move” e nele “é” (cf. At 17, 28). E’ o ponto de vista no qual precisamos colocar-nos para apreciar o culto da santa Virgem e dos Santos na Igreja católica. Os Santos não são apenas modelos sublimes de sua vida, são mem­bros vivos e mesmo energias que contribuem para edifi­car o corpo do Cristo. Têm importância não somente do ponto de vista moral, mas tambein do ponto de vista re­ligioso. São, essencialmente e por toda a eternidade, co­mo os Apóstolos e os Profetas sobre os quais foram edi­ficados (Ef 2, 20), os cooperadores do Cristo (2 Cr 6, 1), seus servos (Mt 10, 24) e seus paraninfos (Mt 9, 15), seus amigos (Jo 15, 14) e sua glória (2 Cr 8, 23). Têm eles, todos, uma relação íntima, permanente, uma rela­ção de realidade viva com o Cristo total, de maneira que contribuem, cada um segundo a sua função neste orga­nismo sobrenatural, para o bem do corpo inteiro.

O que é verdadeiro com relação aos santos em geral, o é, coin mais forte razão, relativamente à Rainha dos san­tos, a Mãe de Deus, a Virgem Maria. O mistério da ma­ternidade divina de Maria não compreende apenas o sim­ples fato do Verbo se haver feito carne e sangue no seu seio e ai assumido a natureza humana. O católico não se contenta com repetir com alegria a palavra desta mulher, transportada de admiração, de que nos fala o Evange-

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lho: “Bein-aventuradas as entranhas que te conduziram, c os peitos que te amamentaram!” O que ele sobretudo entende, e quão mais profundamente, é a réplica de Je- sús: “Felizes os que ouvem a palavra de Deus e a põem cm prática!” (Lc 11, 28). A cooperação de Maria em nossa redenção e salvação não é somente corporal, deve ser também considerada do ponto de vista moral e reli­gioso: no sentido de que ela consagrou ao serviço deDeus, tanto quanto isso dela dependia, o melhor do seu ser, e mesmo tudo o que ela era, sendo que, por menor, por infinitamente pequena que sejam a ação e o sofri­mento humanos em comparação com a perfeição divina, esse infinitamente pequeno ela o entregou sem condição e sem reservas às solicitações interiores da graça, pre­parando-se por esta forma para ser o mais sublime ins­trumento da redenção divina. Sem dúvida, pouca coisa sabemos de sua infância, mas no momento em que a Igreja a faz aparecer ela é inundada de luz: “Ave, cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois entre as mu­lheres!” (Lc 1, 28). Jamais um Anjo tinha assim falado de uma criatura, de uma mulher. Há séculos vem a Igre­ja aprofundando, pela reflexão e pela prece, esta sauda­ção angélica; descobre sempre, nela, novas grandezas de Maria. E, por certo, ainda se não esgotaram os misté­rios que ela contém. À luz desta mesma narrativa evangé­lica, vemo-la bem longe, diante de nós, como aquela que, com um sentimento profundo de sua pequenez (Lc 1, 48, 52, 53), mas cheia de uma alegria extática em seu Salvador, irrompe em transportes (1, 47). No fervor com que lhe consagra a virgindade e no entusiasmo do Espí­rito, ela vê e proclama coisas quasi incriveis: “Eis que daqui por diante todas as gerações me proclamarão bem- aventurada” (1, 48). De uma maneira única, desde o começo do Evangelho, ela entrevê sua força vitoriosa, que mudará a face do mundo. Por isto, chama-lhe a Igre­ja a “Rainha dos profetas”. Sabemos, aliás, que, durante todo o resto de sua vida, ela irmanou sempre com a hu­mildade e a simplicidade a fé forte e radiosa. Belém e o Gólgota marcam o começo e o fim de uma vida de aus­tera renúncia, de heróica abnegação, de completo “ani­quilamento” (exinanitio) na esteira do próprio Jesús (Fil 2, 7). Ele enterrava de cada vez mais profundamen­

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te em sua alma o gládio de que Simeão fizera a profe­cia (Lc 2, 35) — desde a cena do Templo, em que ela teve, pela primeira vez, a impressão terrivel do sacrifício que seu amor materno teria de fazer (Lc 2, 49), passan­do por aquele encontro em Cafarnaum (Mc 3, 33; Mt 12, 48; Lc 8, 21), em qpue ela ouviu estas penosas palavras: “Quem é minha mãe?”, até à cruz (Jo 19, 26, 27) — aos pés da qual, tendo, nesses vários encontros, aprofun­dado, compreendido, sofrido de cada vez mais, deveria arrancar esse divino Filho do seu próprio coração e ofe­recê-lo ao Pai. “Rainha dos mártires”. — Sua fé, porém, era tão profunda quanto sua humildade. “Ela conservava todas as “palavras” ditas a respeito de seu filho, conser­vava-as no coração” (Lc 2, 19, 51). Tornava-se, por esta forma, a fonte preciosa e pura da história dos primeiros anos de Jesús, sua fiel evangelista, a “Rainha dos evan­gelistas”. Esta mesma fé materna foi mais tarde ocasião do milagre de Jesús em Caná, a primeira manifestação de sua grandeza entre os homens (Jo 2, 1). E Maria foi tam­bém a feliz testemunha da última revelação da sua força no dia de Pentecostes (At 1, 14). Nenhum apóstolo co­nhecera Jesús mais intimamente nem mais completamente, nem mais fielmente guardara tudo o que ela aprendera. “Rainha dos apóstolos”. Era este retrato de Maria — de que Lucas e João nos dão alguns traços — que o Se­nhor tinha em vista quando sublinhou a sua grandeza es­piritual: “Felizes os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11, 28). E’ este ponto de vista es­piritual que dá à cena da Anunciação todo o seu lumi­noso conteúdo e nos permite compreender a história da salvação. Tal grandeza da personalidade moral de Ma­ria, toda a firmeza de sua fé encontram expressão na sua resposta ao anjo: "Eis aqui a serva do Senhor, fa­ça-se em mim segundo a tua palavra”. Não era essa uma palavra trivial como cada um de nós pode vir a pronun­ciar nos encontros da vida, mas uma palavra conciente, saida das profundezas de uma alma pura acima de toda medida terrena, de uma alma verdadeiramente celeste e que a traduzia inteira. Essa palavra era um ato. Verda­deiramente consagrava seu corpo ao “serviço de Deus, tal como ele o queria” (cf. Rm 12, 1). E’ o que lhe faz a beatitude. “O “Bem-aventurados” que o Senhor pro­

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nuncia para dar sentido verdadeiro ao louvor erguido por aquela mulher do Evangelho, repercute como a réplica voluntária à “Benção” pronunciada por Isabel: “Bem-

aventurada és tu, que creste que seriam cumpridas as coi­sas que te foram ditas da parte do Senhor!” (Lc 1, 45). Neste “Bem-aventurada" irrompe a alegria do mundo res­gatado, é ele o primeiro grito de triunfo da jubilosa men­sagem. Vale para Maria mais do que para todas as ou­tras criaturas, porque, mais do que todas as outras, Ma­ria, pelo seu “fiat" cheio de fé, entrou, contribuiu para a redenção. Por isso tornou-se ela para nós “a Porta do

céu".Em parte nenhuma tão intensamente fulgura como em

Maria o fato maravilhoso de não haver Deus, na obra da redenção, trabalhado sozinho, de ter feito com que co­laborassem com ele energias criadas — nos limites da criatura. Foi, sem dúvida, por pura graça que pôde Ma­ria marchar nessa via, que, chamada desde toda a eter­nidade à maternidade divina, beneficiou, desde o começo de sua existência, da obra redentora do Cristo, entrando, assim, na vida, sem o pecado original, imaculada. Tam­bém pura graça era aquele devotamento ardente, sem re- -serva, ao Salvador, e a resolução de permanecer virgem, plantada pelo próprio Deus em seu coração, de maneira que ela “não conhecesse homejn” (Lc 1, 34) e que, vir­gem das virgens, se tornasse aquela porta fechada “pela qual ninguém deve passar, visto que o Senhor, o Deus de Israel, tinha por ela entrado” (cf. Ez 44, 2).

A graça de Deus, porém, não violenta: salvaguarda a liberdade; exige a livre colaboração. Eis por que, por minima que possa parecer a parte pessoal de Maria aolado do incomparável ato de amor que vem de Deus,houve, contudo, na trama da obra redentora devida aoamor de Deus, a inserção de algo de humano: o “fiat”de Maria. Eis por que o católico eleva Maria acima dos anjos e dos santos (hiperdulia), porque a Deus aprouve confiar-lhe papel efetivo na obra da redenção. Desde são Justino, não cessaram os Padres de relembrar esta im­portância de Maria na história da nossa redenção e de comparar a sua ação benéfica à obra nefasta da primeira mulher. Consentindo na proposição da serpente, intro­duziu Eva a decadência; Maria, por seu “fiat” à men­

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sagem do anjo, permitiu a redenção do mundo. Não tem, pois, somente relações pessoais com o Filho de Deus, nem somente contribuiu para a sua própria salvação, mas também para a de todos os que foram salvos pelo seu Filho. Dando à luz o Salvador, aos que eram salvos por ele é que ela o dava. Por esta face ela é a mãe dos cren­tes. O católico não tem apenas um Pai, mas tambem uma Mãe, no céu. Muito embora, como criatura, esteja ela a uma distância infinita do Pai, sua graça única aproxi­ma-a de Deus de maneira incomparavel e, como Mãe do Redentor, reflete ela a Bondade e a Riqueza de Deus com ardor e ternura que nenhuma outra criatura pode igualar. Tudo o que há de força de sentimento acumu­lado no vocábulo “mãe” se condensa ainda mais quan­do o católico fala de sua mãe do céu. Ela é como uma revelação de certas profundidades inefáveis do Ser divi­no, de tal maneira delicadas e ternas que não poderiam ser apreendidas senão numa Mãe. Ave, Maria!

O caminho dos Santos nos conduz da terra ao céu, passando pelo purgatório. Não é, .aliás, uma via solitá­ria, é uma marcha complicada na comunidade do corpo do Cristo, um crescimento e uma floração na plenitude do Cristo, uma perpétua permuta de dons “segundo a medida da graça que cabe a cada membro”. Já o disse­mos: dando e recebendo por esta forma, os santos do céu e da terra têm um papel ativo, cada um na sua me­dida, no conjunto do corpo do Cristo. Quando a Igreja fala da comunhão dos santos, tem em vista antes de nada mais essa ação recíproca, esta efusão das forças sobrena­turais de vida de Jesús sobre os seus santos, uns pelos outros, esse comércio, essa permuta sobrenatural de bens, essa solidariedade de ação e de vida. Tal comunhão não consiste aliás simplesmente em que cada membro do cor­po do Cristo desempenhe fielmente o seu papel em vista do bem geral e por esta forma contribua para o bem da comunidade. São Paulo faz esta observação: Quando um membro é glorificado, todos os membros se rejubi­lam com ele. Quando um membro sofre, todos com ele sofrem”. Além desse liame geral que resulta de cada um desempenhar normalmente o seu papel, há entre os san­tos um sentimento de solidariedade de suas próprias vi­das que faz com que cada um sofra e se rejubile com

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os outros e nos outros. Eles são perante Deus como mem­bros solidários do Cristo, e não como almas-mônadas iso­ladas. Por mais fechado em sua personalidade individual que um santo possa parecer, o que nele circula é a vida de membro do Cristo, isto é, uma vida que pertence a todos e em todos circula.

Embora o enunciado explicito deste dogma do comér­cio e da permuta sobrenaturais entre todos os santos só em meados do V século tenha sido introduzido no sím­bolo dos apóstolos, já na doutrina de são Paulo o encon­tramos. O que o dogma fez foi precisar, apenas, à luz da mais antiga prática da oração cristã, em que consiste essa comunhão e essa solidariedade de vida sobrenatu­ral. Expondo, a seguir, as diferentes maneiras por que essa solidariedade se exerce, descobriremos a grandeza toda, verdadeiramente universal, digamos: divina mesmo, da concepção católica: Deus e o homem ligados entre si por um círculo vital, de maneira que Deus é “tudo em todos” ; mas, de outro lado, diante da majestade de Deus, cheia de um santo respeito, sabe ela estacar e religiosa­mente observar os limites que nenhuma criatura, como tal, poderia transpor.

Três grandes correntes de vida dão à comunhão dos santos a sua atividade e fecundidade. Da Igreja triun­fante parte a torrente do amor que se derrama sobre os membros do Cristo da terra, e dai remonta, numa multi­dão de pequenos arroios, para os bem-aventurados do céu. Permuta semelhante de amor se produz entre os membros da Igreja padecente e da Igreja militante. A terceira cor­rente passa através dos membros da Igreja militante da terra e neles produz esses centros fecundos de vida so­brenatural que, continuamente, renovam a vida da comu­nidade da terra.

A fgreja triunfante e a Igreja militante. — Consistem suas relações no culto prestado aos Anjos e aos Santos, de um lado, e na sua intercessão e na aplicação dos seus méritos, do outro lado. Um dos pontos fundamentais da prédica cristã é que só a Deus é devida a adoração. O culto que prestamos aos anjos e aos santos se distingue essencialmente (specifice) da adoração de Deus. Tal o ensinamento que encontramos já no Martyrium de são Policarpo, o mais antigo dos documentos que testemu­

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nham o culto prestado aos mártires nos primeiros tem­pos (17, 3), e após, passando por santo Agostinho e são Jerônimo, os eloquentes advogados do culto aos santos, em santo Tomaz que, melhor do que ninguém, indicou com precisão o em que consiste o culto dos santos; enfim, de­pois dele, em todos os teólogos católicos. A diferença en­tre o culto prestado a Deus e aos santos é a mesma que existe entre o Criador e a criatura. Só a Deus pertence o devotamento completo de todo o homem, o culto de adora­ção, esse culto e essa prece nos quais pulsa como que um frêmito em presença do mistério divino (cultus latria.*). Só a ele gritamos: “Senhor, tende piedade de nós!” , por­que só ele é o Perfeito, o Infinito, o Senhor. A ma­jestade de Deus, porém, é tão possante, tão criadora, que não se reflete apenas na fisionomia do seu Primogênito, propaga-se ainda a todos os que nele se tornaram filhos de Deus. Brilha na pessoa dos eleitos. Amamo-los como a esses milhares de gotas de rócio nas quais a luz do sol vem coruscar. Honramo-los porque neles encontramos a Deus. “Seu nome vive de geração em geração. Referem os povos a sua sabedoria e a comunidade propaga o seu louvor (Ecli 44, 14). E porque neles encontramos Deus, confiamos em que possam e queiram ajudar-nos, porque onde está Deus, aí está o socorro nosso.

Eles nos ajudam, não pelos seus próprios meios, mas pelo poder de Deus e na medida outorgada a uma cria­tura. Não podem, visto isso, conceder-nos a glória eter­na. A beatitude, com efeito, a vida nova em Deus, não pode vir senão daquele que é por si mesmo a vida divina, o Deus Salvador. Santo Agostinho fala de um poder de ressurreição que só a Deus pertence (Serm. 98, 6). O ca­tólico sabe que, pelo próprio fundo de sua vida natural e sobrenatural, só a Deus está preso e dele só recebe a vida. Diante da intimidade dessas relações vitais com Deus, diante desta zona em que se opera a incrível e mis­teriosa junção com o infinito, em que o amor divino pe­netra o nosso ser e nele constantemente se renova, o Anjo e o Santo estacam. E’ Deus só que nos resgata e nos co­munica a vida. Cabe, porém, aos anjos e aos santos acom­panharem com a sua solicitude caridosa a grande obra de nossa redenção e, pela sua intercessão, transformar nosso pedido individual de socorro num pedido solidário

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do inteiro corpo mistico do Cristo. Sem dúvida, Deus não prccisa dos santos para conhecer nossas necessidades. E, de uma vez para sempre, seu Filho único, pelo seu sa­crifício na cruz, mereceu que sua misericórdia e sua graça estejam sempre à nossa disposição. Mas precisamente porque Jesús Cristo, o Deus feito homem, é o mediador <lc nossa redenção, são os santos seus colaboradores, por- íjuc se incorporaram como membros a esse Cristo-Reden- tor. Sem eles, ele não seria, e, sem ele, eles tambem não «criam. Nenhum auxílio nos vèm sem que os membros co­laborem, à sua maneira, com a cabeça redentora. À sua maneira, isto é, de forma diversa da cabeça. Assim se realiza o amor, a grande lei fundamental do reino de Deus. Deus salva os homens de forma que toda a potência de amor do corpo tenha nisto a parte principal. Como são, esta penetração e esta solidariedade, indispensáveis ao corpo do Cristo, a graça de Deus jamais opera em dis­junção, mas, pelo contrário, sempre pela unidade dos membros. Deus poderia evidentemente vir-nos em socor­ro diretamente e sem os santos. Não o quer. Quer a sua colaboração, porque é essencialmente o amor que se co­

munica.Houve, incontestavelmente, na Igreja católica, um certo

desenvolvimento do culto dos santos — o culto, por exem­plo, dirigido primitivamente aos apóstolos, aos profetas e aos mártires só se estendeu aos outros santos pelo meia- do do 3o século; a fé na sua intercessão só repontou no século quarto, ao mesmo tempo que o culto de Maria, fa­vorecido pela luta contra o Nestorianismo. Mas já não estava ele, porventura, contido em germe, desde o início, na própria essência da Igreja corpo de Cristo, na fé na solidariedade e na comunhão dos méritos dos membros do Cristo, e, por fim, na preponderante importância dada ao preceito da caridade cristã? Mergulham suas raízes no mais puro fundo cristão, e de forma nenhuma num fundo de paganismo (6). O que há de comum com o culto

6) F. H e i le r (Op. cit., p. 183) distingue, no catolicismo, n piedade popular e o ensinamento da teologia. Acredita poder mostrar, por uma análise aprofundada, que o culto popular dos santos mais não é do que um politeísmo disfarçado. Na reali­dade, tal pretensa diferença entre a teoria e a prática no cato­licismo não existe, pois o que impele o católico a recorrer aos

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dos heróis antigos é o sentimento de profundo respeito diante da ação dos santos na história, diante da mani­festação da divindade sob uma forma humana, algo, pois, que não é especificamente pagão, porém humano e uni­versalmente válido. — Na mesma medida em que o pa­ganismo, misturando as fronteiras do divino e do humano, se confunde com o politeísmo, sua influência sobre o des­envolvimento do culto aos santos se manifestou antes no sentido de obstá-lo do que no sentido de impul­sioná-lo para a frente, pois o que impediu que o culto dos santos florescesse mais cedo foi precisa­mente o medo de favorecer os instintos pagãos. Quando a idéia pagã de Deus e o culto do Senhor se viram sufi­cientemente arraigados na conciência religiosa das mas­sas para que se não mais temesse a confusão com o culto prestado a simples mortais, estava pronto o terreno para a forma especificamente cristã do culto dos heróis.

A intervenção dos santos em nosso favor se manifesta sobretudo pela sua "intercessão” por nós junto de Deus, isto é, pela particular atitude de caridade com que eles acompanham nossa existência aqui em baixo, existência que eles vêem imediatamente em Deus e que lhe recomen­dam. Com Onias, o pontífice massacrado, e Jeremias, o profeta, “amigos de seus irmãos da terra, rogam muito pelo povo e pela santa cidade” (2 Mac 15, 12), a gran­de comunidade dos santos ora pelos membros do Cristo que penam sobre a terra. Em tal prece da intercessão ma- nifesta-se seu ardente desejo de que o nome de Deus seja glorificado e que sua vontade se cumpra na terra. Esse amor a Deus é ativo, é como a aspiração dos eleitos. Acompanhando, por assim dizer, essa respiração, a Igre-

santos é, de um lado, a fé do crente em Deus que opera prodí­gios por meio dos seus santos, e, de outro lado, o santo temor em face do “tremendum mysterium”, em face do Deus do qual não ousa aproximar-se. O culto popular dos santos é, pois, fam- bem, monoteista de inspiração. Aliás, não se resume nele, como Heiler faz crer, a piedade popular inteira. De ordinário, o crente se volta para os santos sobretudo quando quer obter algum fa­vor temporal. Para as necessidades de sua alma, que aos olhos de sua conciência religiosa são os mais importantes, ele se di­rige imediatamente a Deus, à imitação dos santos e apoiado em sua intercessão. Fá-lo sobretudo recebendo os sacramentos e com o auxílio dessas devoções privadas que tendem a desenvolver

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ja sempre se recomenda a essa intercessão. Não pode pensar naquele que é sua cabeça sem ao mesmo tempo noinear os seus membros. Toda a sua liturgia é uma “ascensão para a montanha de Sião e para a cidade do Deus vivo que é a Jerusalém celeste, para os coros dos anjos, para a assembléia dos primogênitos, inscritos nos céus, para Deus que é o juiz de todos, para o espírito dos justos que atingiram a perfeição, para Jesús, o me­diador da nova aliança, e para o sangue da aspersão, que fala mais eloquentemente do que o de Abel” (Hb 12, 22).

E, antes de tudo mais, a Igreja se lança, em prece con­fiante, nos braços de Maria, considerada por todo o mun­do católico como a onipotência suplicante. Já a conciên-

cia católica nitidamente reconhece que nenhum batimen­to de amor do Coração do Salvador escapa à sua divina Mãe e que, como ela é a Mãe do Salvador, é também a Mãe de todas as suas graças (Maria mediadora).

Se Maria é a mãe de todos os crentes e, a esse título, por todos se interessa, a esfera de influência dos outros santos depende da importância que eles têm no conjunto do Corpo do Cristo. E’ sobre esta fé num raio particular e num dever especial de caridade dos anjos e dos san­tos que funda a Igreja seu ensinamento, abundantemente apoiado na Escritura, a respeito dos Anjos da Guarda (Tb 12, 12; Zc 1, 12; Hb I, 14), assim como a piedosa crença numa proteção especial dos santos padroeiros.

No socorro que dão aos fiéis da terra não se limitam os santos a interceder pelos mesmos, vão ao ponto de oferecer por eles. Torna-os o amor seus servos, leva-os

as relações diretas dos filhos de Deus com o Pai, tais como a devoção ao Santíssimo Sacramento ou ao Sagrado Coração.

Evidentemente, se são esses favores temporais numerosos e variados, pode acontecer que tenham lugar desmedido na vida deste ou daquele fiel. Evita a Igreja, contudo, e com razão, res­tringir a liberdade dos fiéis em tal sentido, afim de não pôr em risco a própria liberdade da vida religiosa nos limites das reali­dades sobrenaturais manifestadas pelo dogma, o que compro­meteria a eficácia da vida religiosa.

Nenhum católico é, aliás, obrigado ao culto dos santos por nenhum preceito formal. Obriga-o a fé unicamente a reconhe­cer que “é bom e util” recorrer à intercessão dos santos (Cone. de Trento, Sess. 25).

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a dividir, na medida do possivel, suas próprias riquezas sobrenaturais com todos os membros do corpo do Cristo que estão em necessidade. Tais riquezas consistem naque­les mérito, tintos, poder-se-ia dizer, do sangue do Cristo, que os santos acumularam durante a sua permanência na terra com o irem generosamente muito além de suas obrigações, espécie de depósito formado pela superabun­dância do seu amor, de sua penitência. Surdindo da su- perabundânica dos méritos do Cristo, eles formam, por si, o fundo desse “tesouro de graças da Igreja” (thesau- rus ecclesia;), desse bem de família, propriedade de todos os membros do corpo do Cristo e empregado especial­mente para auxiliar os membros fracos e doentes do Cristo. “Quando um membro sofre, todos os outros mem­bros sofrem com ele”. Quando um membro não expiou suficientemente os seus pecados, depois de lhe haver sido remida a pena eterna, restando ainda uma pena “tempo­ral” que a justiça de Deus, muito sabiamente, lhe deixa ainda a expiar — quando isto acontece, todos os mem­bros do corpo carregam juntamente o fardo dessa pena e a Igreja, em virtude de seu poder de ligar e desligar, pode suprir ao que falta a um pela riqueza dos outros. Concede “Indulgências”, isto é, completa a insuficiência das satisfa­ções do membro fraco pela plenitude das satisfações do Cristo e dos santos. As Indulgências ao mesmo tempo mostram a seriedade da dívida que devia ser paga “até ao último óbulo”, e sobretudo o poder benéfico da comu­nhão dos santos, da satisfação oferecida pelos membros fracos. O fundo da doutrina sobre a qual repousam as indulgências — seriedade da penitência satisfatória, cola­boração de todos os membros do Cristo na satisfação e pleno poder da Igreja para ligar e desligar na terra e no céu — se encontra nitidamente na Sagrada Escritura. Que a forma empregada para a distribuição das Indulgên­cias tenha variado no curso dos séculos; — desde o sofri­mento dos antigos mártires e confessores, que serviam à reconciliação dos lapsi, e as satisfações penitenciais da idade média, até à forma atual das orações indulger.cia- das; — e que daqui por diante devam sofrer outras mu­danças; que o fundamento dado pela teologia às Indul­gências só aos poucos tenha claramente aparecido — nin­guém pensa em contestar. Mas o que se não poderia con­

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testar, igualmente, é que o essencial desta prática faz parte da pura tradição evangélica. Nas Indulgências, e melhor do que em qualquer outra instituição da Igreja, os membros do corpo de Cristo se encontram num amor que expia em comum. Toda a seriedade e alegria, toda a humildade e abnegação, todo o amor e fidelidade que animam o corpo do Cristo, nela verdadeiramente se en­contram e manifestam. Por isto, tem o Concilio de Trento o direito de proclamar que “a prática das indulgências é muito salutar para o povo cristão” (Sess. 25, de In-

dulg.).Fundada sobre verdades que precisam ser explicadas

à massa dos fiéis, esta doutrina era e continua a ser evi­dentemente sujeita a deformação, assim como a sua prá­tica é exposta aos abusos, por menos insuficiente que se apresente a instrução religiosa ou menos se descuide a autoridade religiosa da sua vigilância. Sofremos todos, ainda hoje, as consequências desastrosas dos múltiplos abusos das indulgências no período anterior ao Concí­lio de Trento. Mas a melhor prova do indestrutível valor espiritual das indulgências é que tais abusos não fizeram com que elas desaparecessem, mas simplesmente servi­ram, como uma espécie de fogo purificante, para as tor­nar melhor compreendidas e dar-lhes uma vida nova, mais profunda. Hoje, mais do que nunca, as indulgências se tornaram uma excelente prática em bem das almas. — Todo católico instruido na sua fé sabe muito bem que as indulgências não abolem os pecados, mas apenas a pena temporal devida ao pecado, e que não atingem o fundo da vida sobrenatural, mas somente a periferia, o ex­terior, e que a concessão de indulgências não é um ato sacramental e sacerdotal, mas, sim, um ato de juris­dição eclesiástica. Uma obra indulgenciada não adquire sentido e valor senão quando, ao mesmo tempo, é uma verdadeira oração segundo o Espírito de Deus. Seria abusar da oração e lamentavelmente desconhecer-lhe o sentido e a essência querer recitá-la unicamente para ga­nhar a indulgência a ela ligada, sem fazer dela uma conversa íntima com Deus. Vida nova em Deus e, por isto, libertação do pecado e da pena eterna que lhe é devida: tal o fim primeiro da piedade cristã. Nenhuma indulgên­cia o pode dispensar. O ganho das indulgências supõe na­

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turalmente essa necessidade indispensável. E’ claro que, sem o perdão do pecado e de sua pena eterna, não se poderia pensar em remissão da pena temporal. A prática das indulgências contribue, pelo menos indiretamente, para a purificação da alma e o desenvolvimento da vida nova. Não é, diga-se o que se quiser, uma instituição des­tinada a fazer toda exterior a vida cristã: serve, pelo con­trário, a aprofundá-la e enriquecê-la: premente chama­mento à penitência, espécie de necessidade que nos im­pele a incorporar-nos, primeiro, como membro vivo ao Cristo, para podermos esperar o seu auxilio. Como, aliás, as Indulgências não remitem pura e simplesmente ao fiel a pena temporal, mas, sim, só o libertam dela na me­dida em que ele concorre com suas próprias obras satis­fatórias, ordenadas, com precisão, pela Igreja, aos mere­cimentos do Cristo e dos seus santos, são elas de molde a sacudir as conciências retas, a torná-las mais atentas e sensiveis à terrivel seriedade do pecado, assim como ao incomparavel tesouro espiritual que se encontra na comunhão dos membros do Cristo.

A Igreja padecente e a Igreja militante oferecem um novo conjunto de relações vitais. Tendo entrado na noite “na qual ninguém mais pode trabalhar”, a Igreja pade­cente é incapaz de, pelos seus próprios meios, apressar a hora de sua entrada na glória; tem necessidade do au­xílio dos outros — isto é, das preces e sacrifícios (sufrá­gios) dos membros do Cristo que estão na terra e po­dem ainda tingir no sangue do Cristo suas obras satisfa­tórias. Guarda a Igreja fielmente a palavra inspirada do livro dos Macabeus: “E’ pensamento santo e salutar orar pelos mortos, afim de que eles se libertem de seus peca­dos” (2 Mac 12, 43 s). O suplicante grito de sua litur­gia: “Senhor, dai-lhes o repouso eterno, e que a luz in­defectível se acenda para eles!”, já o ouvimos nos atos das santas Perpétua e Felicidade, de meados do 3o sé­culo, e numa multidão de inscrições sepulcrais dos pri­meiros séculos. Encontra ela justificação nas obras dos antigos padres e teólogos, após Tertuliano. — A teolo­gia da Igreja grega cismática está de acordo com a Igreja latina a respeito da crença na eficácia da oração pelos mortos. Esta fé é, aliás, tão natural, tão profundamente enraizada na esperança, no desejo, no amor dos homens,

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Cap. VI. A comunhão dos santos

que a história das religiões a descobre em quasi todos os povos civilizados, fora do cristianismo, justificando, uma vez mais, a palavra de Tertuliano segundo a qual a alma humana é naturalmente cristã. — Por isto mesmo, o ca­tólico faz particularmente questão de sofrer e expiar pe­las “pobres” almas do purgatório, sobretudo pelo sacri­fício eucarístico. O valor satisfatório infinito do sacri­fício da cruz é naquele, com efeito, sacramentalmente re­produzido, ao mesmo tempo que os fiéis nele são exer­citados e atraidos ao espírito de sacrifício. Na medida da sabedoria e da misericórdia de Deus, a Igreja pa­decente recebe, dele, auxílio especialmente eficaz. A pa­lavra de são Paulo sobre os membros do Cristo que “de­vem cuidar uns dos outros” (1 Cr 12, 25), em coisa ne­nhuma encontra, como nos sufrágios da Igreja pelos de­funtos, todo o seu sentido e aplicação. Quando a Igreja, na liturgia da missa, em presença do corpo sagrado do Cristo, e como que em presença de toda a Igreja triun­fante, lança para o céu este grito: “Lembrai-vos tam­bém, Senhor, de vossos servos e servas.. . que nos pre­cederam com o sinal da fé e repousam no sono da paz”, o céu e a terra verdadeiramente se saudam; Igreja glo­rificada, padecente e militante verdadeiramente se dão o ‘ beijo da paz” ; o Cristo “total” verdadeiramente celebra com todos os seus membros os celestes ágapes, a lem­brança desse laço de caridade que os une a todos no so­frimento como na alegria.

Às múltiplas relações vitais que unem a Igreja do céu à da terra, corresponde, só que de maneira menos com­pleta e menos fecunda, a comunhão de amor e de vida dos membros do Cristo entre si na terra. A ela é que tinham em vista de começo os Padres, quando, depois de Nicetas, bispo de Remesiana, no princípio do V século, falavam da comunhão dos santos, e é tambem dela que nos fala são Paulo. Mistério da vida interior da Igreja, do comér­cio íntimo dos seus membros, das relações de permuta de suas funções e de sua dignidade, processas de cresci­mento orgânico da comunhão do Cristo em um “Templo santo no Senhor”, em “uma habitação de Deus no Espí­rito” (Ef 2, 21).

O fundamento desse comércio, desse intercâmbio de ca­ridade entre os membros do Cristo, é a sua comunhão

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com o sacerdócio do Cristo, sua cabeça. Não há, na Igre­ja, senão um só sacerdócio, o do Homem-Deus, que nos resgatou pela sua vida, particularmente pelo seu sacrifí­cio no Calvário. Mas esse sacerdócio invisível tem neces­sidade de instrumentos, de orgãos visiveis à Igreja da ter­ra, para distribuir a graça benéfica do Cristo por meio de signos sensíveis: a palavra e os sacramentos. Por isto, desde o começo, há na Igreja um sacerdócio visível, que, aliás, só a pouco e pouco se revelou em toda a sua niti­dez à conciência cristã. Desde que a santa Eucaristia se celebrava, que os pecados eram perdoados, que a gra­ça do Cristo era distribuída por meios sensíveis, é por­que as causas instrumentais intervinham — presbíteros ou padres, Presidentes, Vigilantes (Episcopos, Bispos). O sacerdócio visivel é a prova sensível de que a vida e ação do Cristo continuam na terra.

Por mais variados e múltiplos que tenham sido e se­jam os nomes e funções, não há, no entanto, mais do que um sacerdócio, porque o sacerdócio do Cristo é único. O que há sempre é apenas o anúncio e a transmissão sensível da graça do único Pontífice. O sacerdócio visivel nem por isto deixa de ter a sua característica essencial— que o diferencia do laicato — na maneira especial por que são incorporados ao sacerdócio de Cristo os que se acham revestidos do sacerdócio, quero dizer, pelo poder que têm de distribuir a graça por meio dos sacramentos. Deste ponto de vista, a Igreja nitidamente distingue o sacerdócio dos leigos. Não são, aliás, radicalmente dis­tintos um do outro, dado que têm por fundamento co­mum o sacerdócio do Cristo. Um conhecimento exato da doutrina da Igreja sobre o carater sacramental esclare­cerá tal ponto.

Um dos mais profundos ensinamentos da Igreja cató­lica é o de que o cristão não se liga ao Cristo apenas pelo laço, puramente pessoal, religioso e moral, que a fé e a caridade estabelecem. Além desse laço, outro exis­te, impessoal, puramente objetivo, do cristão com o seu Salvador, o Cristo. Por ele, independentemente de sua vida pessoal na graça, é o cristão consagrado a Cristo de maneira permanente, definitiva, e de uma vez para sempre incorporado ao seu sacerdócio. Por meio dele se estabelece o fundamento imutável do culto, que permi-

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firá o intercâmbio pessoal de amor entn o Cristo e seus membros. As relações de cada alma coit Cristo, mesmo no que nelas há de mais íntimo, de miis delicado, mo- vem-se num conjunto de disposições invaiiaveis, numa for­ma fixa. Todo livre movimento das força da natureza se apoia sobre as leis rígidas, invariaveis, di essência e das propriedades dos seres; de maneira gral, o jogo das forças subjetivas supõe as leis fixas do nundo subjetivo; assim, no mundo sobrenatural toda ativdade de vida e graça pessoal supõe algo de fixo, relaçíts e disposições ulteriores permanentes. Aí depara-se-nos, uma vez mais, o gosto do catolicismo pelo dado objeivo, por formas firmes. Desse dogma fundamental resulta, em última aná­lise, que é, não o homem das realidade naturais e so­brenaturais, que é, não de baixo, mas dcalto que a nova ordem de coisas vem e que, no domínic religioso, trata- se de dados sobrenaturais que o homemlem, não a pro­por, mas simplesmente a receber. Assim :omo sõ Deus é a “forma” eterna de todo Ser, tambem o Cristo, a cabeça, é a forma eterna do seu corpo místico,: é desta forma eterna que, pelos sacramentos — e, poi, independente­mente do homem — recebe o corpo do Cisto a sua forma determinada, sua constituição interna, feia organização dos sacramentos é que o homem é posb em condições de participar da vida da graça que assin lhe é comuni­cada.

Três sacramentos indicam definitivanuite ao fiel seu lugar no corpo de Cristo, suas relações findamentais com o conjunto do corpo do Cristo e por jso mesmo com o sacerdócio do Cristo, que está na base :e tudo e a tudo ̂anima: o Batismo, a Confirmação e a fadem. Cada um destes sacramentos é não somente produttr de graça, mas além disso comunica à alma uma certa lisposição cultu­ral permanente que faz com que ele partJpe do sacerdó­cio do sumo pontífice, Cristo, numa mecda que depende da natureza do sacramento, mas de maieira permanente e indelevel (caracter indelebilis), mesm que — como entre os réprobos — essa relação impess)al e puramente objetiva com o Cristo não deva jamais sr acompanhada de relações subjetivas e pessoais de gnça e de glória. O mais elevado grau dessa participaçã) no sacerdócio

do Cristo está no sacramento da Ordem. Confere ele, de

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maneira incoercível, a aptidão e o poder de comunicar larguissimamente aos fiéis, pela palavra e pelos sacra­mentos, os benefícios da redenção. Pelo carater do sacra­mento da ordem, o cristão é consagrado “servo do Cristo”, no pleno sentido do vocábulo e, por ser a Igreja o Cristo vivo na terra, “Servo da Igreja”. No Papa e nos Bispos atinge a unidade exterior dos membros do Cristo a sua perfeição, ao passo que no padre o que se verifica é a unidade interior, sacramental, a unidade de seus poderes e de suas graças.

O “sacerdócio” conferido pelos sacramentos do batismo e da confirmação não é nem tão íntimo nem tão extenso, por isso que difere essencialmente do sacerdócio propria­mente dito. Não estabelece num estado especial de “ser­vo” do corpo de Cristo como o sacerdócio no sentido estrito. Limita-se a restritos poderes sacerdotais. Consti- tue, no entanto, um sacerdócio verdadeiro porque, como toda ordenação sacerdotal propriamente dita, faz partici­par do único e só sacerdócio do Cristo (7).

Todo batismo é, a um só tempo, ordenação ao sacer­dócio do Cristo, porque o batizado é separado do mundo profano, consagrado ao Cristo e ordenado em vista do cumprimento dos atos de religião que exige a vocação de filho de Deus. O carater impresso pela confirmaçãoeleva de um grau esse sacerdócio, fazendò do cristão umoperário ativo do templo de Deus e um apóstolo que “mostra o Espírito e a força”. A maneira por que o Cato­licismo compreende o sacerdócio leigo não é mais do que uma explicação da mensagem primitiva sobre o sacer­dócio universal. Ouçamos em todo o seu frescor e força primitivos o tão belo e grandioso ensinamento de são Pedro: “Vós, porém, vós sois uma raça escolhida, um sacerdócio real, uma santa nação, um povo que Deus con­quistou afim de que anunciasseis as perfeições daquele que vos chamou das trevas para a sua luz admiravel;vós, que outrora não ereis o seu povo, e que sois agora

7) S t o. T o m a z de A q u i n o , Summa Theol., p. 3 qu. 63, art. 3: sacramentales caracteres nihil aliud sunt quam quaedam participationes sacerdotii Christi ab ipso Christo derivatx. Po­de r-se-á consultar o profundo estudo do P. D u r s t O. S. B. d« Caracteribus sacramentalibus, 1925, p. 30 e sg.

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126 Cap. VI. A comunhão dos santos

o povo de Deus; vós, que não havieis alcançado miseri­córdia, e que alcançastes misericórdia agora” (2 Pd 2,

9).

Desse liame sacerdotal de todos, que os separa do pro­fano para os ligar, a todos, ao só Pontífice, Jesús, nasce a comum solidariedade de todos na Oração, na Fé, e

no Amor.

Exceção feita de algumas raras orações, tais como as da comunhão do padre, nenhuma prece litúrgica na Igreja existe que não seja uma oração de todos por to­dos. Segundo o Salvador, na prece por excelência, o Pa- ter, que une todos os que oram e faz com que invoquem conjuntamente o Pai comum, e de são Paulo (Rm 15, 30; 2 Cr 1, 11; Ef 1, 15) que recomendava que uns orassem pelos outros, a Igreja tambem ora, não em nome dos fiéis individualmente, nem mesmo simplesmente em nome da soma dos indivíduos, mas, sim, como comunidade sacer­dotal, como expressão visivel do sacerdócio do Cristo. Não sois vós, nem eu, que rezamos, é o Cristo místico que ora. Por isto mesmo, os frutos desta oração perten­cem a todos os que, pelo Cristo, são consagrados ao Pai, à “raça escolhida”, ao “sacerdócio real”. E constitue uma das preocupações da Igreja fazer com que, mesmo fora da liturgia, seus fiéis, concientes do seu carater sacerdo­tal, orem, ofereçam e sofram, não apenas pelas suas pró­prias necessidades, mas tambem pela grande e santa co­munidade dos que foram resgatados em Cristo. O acen­to sacerdotal, o “por todos” ( vnkg noUãv Mc 14, 24)

do Soberano Pontífice eterno é essencial à verdadeira pre­ce cristã, como se pode ver de maneira impressiva nas mais antigas orações cristãs que nos foram conservadas (cf. Mart. Policarp. V, 1; VIII, 1). O carater sacerdotal desse sacrifício em nome da comunidade nas aparece par­ticularmente impressionante na Missa, na qual o Sobera­no Pontífice, o Homem-Deus, reproduz sacramentalmen­

te seu sacrifício do Oólgota. Sem dúvida, é o padre es­

pecialmente ordenado, em vestes litúrgicas, empregando a língua litúrgica, consagrada pelo uso -de Pedro e de

tantos Padres, fixada agora como língua morta, indepen­dente das mudanças de tempo e conservando a impres­

são do mistério, é o padre, digo, que, por seu ministério

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instrumental, oferece, de maneira sensivel, o sacrifício in­visível de Cristo. Mas não o oferece o Padre por si só. Não o oferece, mesmo, simplesmente em nome do povo, contentando-se, como no serviço sacerdotal antigo, com uma unidade moral entre ele e o povo. A unidade entre o padre e o povo é místico-real, é a unidade do sacerdó­cio do Cristo da qual o padre e o povo participam a um só tempo, embora em graus diferentes. A liturgia do sa­crifício lembra expressamente esta condição quando, imediatamente depois da consagração, faz o padre dizer: “Nós, vossos servos, Senhor, e, conosco, todo o vosso san­to povo, fiéis à lembrança da bem-aventurada paixão des­se mesmo Jesús Cristo, vosso Filho, nosso Senhor, de sua ressurreição do túmulo e de sua gloriosa ascensão ao céu, oferecemos à vossa majestade suprema, graças aos dons que nos fizestes, a Hóstia pura, a Hóstia santa, a Hóstia sem mácula, o Pão sagrado da vida eterna e o Cálice da eterna salvação”.

A esta comunhão sacerdotal dos membros do Cristo intimamente se liga a sua comunidade de fé. A comuni­dade de fé católica não consiste apenas em que todos os membros da Igreja professem uma só e mesma fé, ensi­nada pelo ministério dos apóstolos, em que persigam con­juntamente o mesmo ideal de vida, com as mesmas re­gras obrigatórias, e que eles bebem nas mesmas fecun­das fontes de vida. Vai mais longe. Consiste numa solidariedade tal na fé que, por assim dizer, se permu­ta, frutificando de um para outro. Neste íntimo escambo e nesta mútua penetração, a unidade exterior é, ao mes­mo tempo, uma comunidade verdadeiramente interior, ín­tima, que haure sem cessar um vigor sempre novo nas profundezas dessa fé vivida em comum e se torna o Cre­do único do Cristo místico. Tal unidade solidária da fé cristã desenvolve sua ação em duas direções; a princí­pio, comunicando a outros membros do Cristo, estenden­do a círculos de cada vez mais largos, e de maneira de cada vez mais viva, essa interioridade e essa força da fé pessoal e vivida, essa força divina que se manifçsta sem­pre na conciência por novos impulsos, novos chamamen­tos; — em seguida, voltando sobre si mesma, sobre suas próprias profundidades, torna-se o fundo vital, o sagrado seio de que sairão, após terem sido fecundadas pelo ensi­

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namento infalível da Igreja, visões de cada vez mais pro­fundas do mundo maravilhoso da fé, e até conhecimen­tos novos das realidades sobrenaturais.

Do primeiro ponto de vista — o da força que se afir­ma c se comunica — a solidariedade da fé se traduz na vontade pelo apostolado. Aqueles a quem a missão do apostolado foi especialmente confiada, e que a desem­penharam da mais notável maneira, são os sucessores dos apóstolos, os bispos, que, unidos a Pedro, “foram coloca­dos pelo Espírito Santo sobre toda a terra” (At 20, 28). A eles, o círculo escolhido dos discípulos, foi confiada a pregação do Evangelho, no dia em que o Ressuscita­do os enviou até às extremidades do mundo, prometendo “estar com eles até ao fim do mundo” (Mt 28, 18). E’ no seu testemunho concorde e sobretudo no seu acordo com o ensinamento da Cátedra de Pedro, em Roma, que em todos os tempos a cristandade encontrou a garan­tia, o timbre da verdadeira fé apostólica, em presença de todas as opiniões individuais. Constituem a Igreja en­sinante (ecclesia docens), diante de cujo ensinamento o resto da Igreja não pode ser senão a Igreja que escuta (ecclesia discens). Nenhum fiel, nenhum padre, nenhum professor, nenhum teólogo, na Igreja, pode anunciar a palavra de Deus senão em virtude de uma missão a eles confiada pela Igreja ensinante (missio canônica). “Como poderão eles pregar, com efeito, se não recebem missão?” (Rm 10, 15). Mas, na mesma medida em que o pregar oficialmente a verdade cristã pertence exclusivamente à autoridade da Igreja ensinante, o fazê-la penetrar a vida e realizá-la é de alçada das conciências cristãs individuais e da graça que nelas desce. Assim, a vida da fé, que an­tes de tudo mais visa a prédica evangélica, porque só ela importa, só ela é necessária, a fecundidade sobrenatural da fé, a riqueza das experiências íntimas e das consola­ções, toda a segurança da fé, essa elevação de alma que dá a fé, tudo isto pertence, não aos sós privilegiados, mas à comunidade, a todos os que, pelo batismo, outra vez nasceram em Cristo. A comunidade dos membros do Cristo é o terreno no qual a fé se faz viva, no qual a semente espalhada põe raizes e produz frutos. Jamais o espírito de fé se encontra isolado ou tende a isolar-se; é, pelo .contrário, um espírito que impele à comunidade, por­

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que vem do Espírito de Deus, Espírito de unidade e de amor. Se a autoridade oficial é o orgão da verdade, a comunidade é o orgão pelo qual a verdade se faz vida. Por isso tem a comunidade a missão particular de dar testemunho, vivendo-a, da verdade oficialmente pregada e, dela dando testemunho, de vivê-la. E’ o em que con­siste a sua missão própria, o seu apostolado: “experimen­tar a fé, rogando” (experimur orantes), como diz, de ma­neira tão expressiva, são Bernardo (in cant., s. XXXII, 3).

Definitivamente incorporada à sua cabeça pelo batismo, obrigada a confessá-lo pela confirmação, uma grande responsabilidade lhe incumbe, a de dar testemunho do Cristo pela riqueza superabundante de sua vida. E desse dever ninguém pode dispensá-la. Vivendo em conformi­dade com sua fé, ela dá testemunho dele. Toda vida se­gundo a fé é essencialmente uma vida que conquista, que inflama, uma prédica viva, uma edificação do Templo de Deus, em si e nos outros. E’ essa “manifestação do Espírito e da força” diante da qual o incréu fica inter­dito, e que torna forte a própria fraqueza. Constitue a mais poderosa prova do cristianismo, mais eficaz do que todas “as palavras persuasivas da sabedoria humana” (1 Cr 2, 4).

Esta confissão da fé que consiste no espetáculo da vida cristã é a função principal de cada um dos mem­bros na comunidade cristã, função muito diversa de as- peto segundo os indivíduos, variando conforme suas aptidões e as graças recebidas, conforme a sua vocação especial, conforme seu meio e as circunstâncias em que se encontra. A mesma verdade cristã vivida se apresen­tará sob mil formas e aplicações. Cada uma dessas for­mas entremostra novos esplendores de sua beleza e sua virtude escondida, cria novos tipos do ideal cristão e suscita desejos novos de imitá-las. Os principais tipos co­nhecidos da vida segundo a fé: confessores, mártires, pro­fetas, eremitas, religiosos, virgens, viuvas, constantemente se adaptam assumindo modernas formas, e cada uma des­tas formas por sua vez contéin fecundos impulsos de des­envolvimentos ulteriores, enquagto o conteúdo cristão não se esgotou completamente. Evidentemente, a forma mais primitiva, mais simples, mais eficaz de dar testemunho da fé cristã pela vida será sempre a família cristã. Ne-

A ossèncla — 9

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nhuma instituição social tão completamente reflete o mis­tério da Igreja, sua união real com a cabcça, o Cristo (Ef 5, 32). Em nenhuma outra brilha com tal esplendor o sa­cerdócio laico, como quando o homem e a mulher se dão mutuamente o sacramento de sua comunidade con­jugal e, consagrados pela graça de tal sacramento, infun­dem nos seus filhos, e nos filhos dos seus filhos sua pró­pria fé viva e fecunda. A família cristã é a célula primitiva do apostolado dos leigos, dessa fé que excita e inflama, que brilha sempre com fulgor novo e, através das gera­ções, dá testemunho do Cristo.

Ao lado da Autoridade oficial da Igreja que dirige a fé cristã, a preserva de toda falsa direção e de toda com­posição impura, importa-nos de maneira essencial esta corrente de vida cristã. Uma não pode existir sem a ou­tra. A vida de fé se nutre da virdade da fé, e a verdade da fé se revela pela vida de fé. E de vez que é na co­munidade que a fé vive, autoridade e comunidade dos fiéis não devem separar-se uma da outra. Elas mutua­mente se amparam da maneira mais intima. Não só por­que a autoridade docente age sobre a comunidade, a ver­dade da fé sobre a vida de fé, mas também, em sentido inverso, porque a fé viva da comunidade, por sua vez, age sobre a autoridade ensinante, protege-a e dá à sua verdade um brilho sempre novo. Essa essencial solida­riedade da verdade com a vida, da autoridade com a co­munidade dos fiéis na Igreja explica o fato de ter sido a vida da comunidade, nos períodos em que a autori­dade, aqui ou ali, desfaleceu, a fonte de juventas, na qual a Igreja se renovou; assim como o fato da Graça da Ca­beça, em certos períodos da história, nos quais a ver­dade parecia infecunda e a autoridade se deixou arras­tar pela fraqueza humana, ter feito emergirem do seio da comunidade viva certas figuras que, pela força de sua fé, deram, não somente aos que os rodeavam, mas à Igre­ja toda uma fé nova. Aí é que se percebe a providencial missão salvadora destes ou daqueles santos. Um são Ber­nardo e um são Francisco de Assis, uma santa Catarina de Sena, um são Vicente de Paulo, um são Clemente Ma­ria Hofbauer, tantos outros, que outra coisa fizeram se­não jorrarem-lhe do seio "torrentes de água vivificante”? (Cf. Jo 7, 38). Acaso não comunicou à Igreja o ardente

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fervor de sua fé um novo surto, uma nova primavera, uma nova juventude?

Vai mais longe, porém, o benefício dessa solidarieda­de na comunidade da fé. Não se contenta com testemu­nhar em face do mundo, pela sua fecundidade, o espírito e a força da mensagem do Cristo e com o comunicar aos seus membros frágeis algo de sua intensidade de vida. Contribue em muito, além disso, tanto para a produção da própria fé, quanto para a elaboração de suas verdades particulares. Já mostrámos como pode ela contribuir para a produção da fé sobrenatural e que firmeza absoluta comunica à fé a impressão produzida por essa inserção na corrente vital da comunidade cristã. Devemos ainda assinalar as sutis e delicadas influências por meio das quais a comunidade da fé e a sua misteriosa ação de so­lidariedade contribuem para a elaboração duma verdade em particular, para a explicitação de um dogma.

Nenhum dogma proclamado pela Igreja (dogma expli­citam) existe que já não estivesse realmente (formaliter) contido nas fontes da revelação, isto é, na Tradição ou na Escritura. Nenhum existiu, porém, desde o começo como explicitamente, expressamente (explicite) revelado. Muitas vezes só fora revelado como que envolto, contido em outras verdades (implicite). Para retirá-lo desse en­voltório e fazê-lo aparecer como revelado, foi preciso, testemunha-o a história dos dogmas, longo trabalho. Nada menos de seis séculos se escoaram antes que a doutrina, no entanto centralissima, relativa ao Cristo, o Deus feito Homem, fosse plena e claramente formulada pela Igreja. Só em 1215 a transusbstanciação na Eucaristia, e só em 1870, a infalibilidade e a suprema autoridade do Sobe­rano Pontífice foram proclamadas verdades reveladas. Este desenvolvimento dogmático que se opera, com a as­sistência do Espírito Santo, sob a vigilância e a direção da Autoridade da Igreja, nem sempre segue o rumo da pura dialética. Não consiste em simples explicação das verdades reveladas com o auxílio dos recursos da filo­logia, para provar que tal dogma está certamente con­tido na Escritura ou na Tradição. — Este trabalho de explicação e demonstração dos teólogos é, aliás, indis­pensável. — E’ que, não nos tendo sido dado sob forma de sistema filosófico, mas muitas vezes envolto em fatos

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históricos, esse tesouro de fé escondido na revelação nem sempre é bastante claro e transparente para que seu con­teúdo c sua certeza nos apareçam à primeira vista. E se for preciso procurar esse dogma, não na Escritura, mas na Tradição, que se estende por vários séculos, e jaz esparso em documentos diversíssimos, o olhar explorador do teólogo fica exposto a nem sempre bem nitidamente discernir o ouro da revelação da ganga da sabedoria e da fé puramente humanas. De fato, bastantes vezes en­contraremos, nos Padres e nos Teólogos, alí e acolá, pontos de vista que comprometem o consentimento unâ­nime dos padres. Por isto mesmo, a exegese e a demons­tração dos teólogos nem sempre podem por si sós bastar à preparação das decisões definitivas da Autoridade ecle­siástica. Se constituíssem elas o fator decisivo na ex­plicitação dos dogmas, jamais, sem dúvida — para citar um apenas dos dogmas mais recentes — a Imaculada Conceição de Maria teria sido proclamada, dado que os maiores teólogos de Nossa Senhora, são Bernardo e santo Tomaz, positivamente duvidaram do seu carater reve­lado ou mesmo o negaram. Como se chegou, no entanto, a defini-lo? Como se definiu, igualmente, o da infalibili­dade do Papa? E’ incontestavelmente o magistério per­manente da Igreja, assistido pelo Espírito Santo, que, pelo seu ensinamento ordinário ou extraordinário, espalha, no campo da Igreja, a semente da verdade revelada, é esse mesmo magistério que, jardineiro atento, vigia a sua ger­minação, protege os rebentos ainda frágeis contra as plan­tas parasitas, e suprime os rebentos defeituosos. O fator ativo, decisivo, do progresso dogmático é, pois, o magis­tério da Igreja assistida do Espírito Santo. Mas — para continuar a nossa comparação — o jardineiro não está sozinho. Precisamente porque a semente da verdade reve­lada é algo de vivo, de orgânico, tem necessidade, para crescer e desenvolver-se, de um campo fértil, uma espécie de seio maternal que permita que o fruto semeado pelo magistério da Igreja brote e amadureça. Tal campo fér­til é a comunidade viva dos fiéis. Esta é como que o fator passivo do progresso dogmático. Não falam os teólogos de uma infalibilidade passiva dos fiéis? Enquanto a co­munidade dos fiéis escuta e vive a palavra revelada pro­posta pela Igreja, participa, fazendo-a trabalhar, crescer

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e frutificar, da infalibilidade da Igreja. Compreende-se por esta forma a influência exercida pela comunidade dos fiéis sobre o progresso dos dogmas mencionados, e de maneira toda particular sobre o da Imaculada Conceição. E’ a vida e o movimento da comunidade, inspirada pelo ensinamento infalível da Igreja, é o seu senso cristão pro­veniente dessa fé tão viva, esse instinto da fé que se não deixaram depreciar em suas verdades, mesmo quando os mais autorizados teólogos lhas tentaram roubar. Todas es­sas verdades germinavam, brotavam no seio da comuni­dade como um fruto vivo, sob a guarda vigilante do Papa e dos Bispos, até à sua plena maturidade. Mesmo que tais verdades — a da Imaculada Conceição, por exem­plo — tivessem sido, no começo, propagadas entre os fiéis, sob forma desfigurada, lendária, cuja inconsistên­cia fossem os historiadores forçados a mostrar, a comu­nidade viva lhes apreendia muito intimamente, muito vi­vamente, muito imediatamente a medula, a riqueza inte­rior; o espírito de Deus, que inspirava sua fé, era muito delicado, as experiências religiosas e morais, que essa ver­dade excitava em tantas almas, eram muito ricas, varia­das e profundas; a Igreja, por seu lado, velava muito cui­dadosamente sobre o tesouro que lhe fora confiado — para que os crentes pudessem abandonar, com as formas ou fórmulas condenáveis, repelidas pelos teólogos, tambem o fundo eterno que elas continham. Exatamente porque sua fé viva era solidária, essa experiência comum de uma verdade nova e, no entanto, antiquíssima, tornava-se o bem de todos; mergulhava mais profundamente e se for­talecia à medida que se ia estendendo, até que enfim se fizesse possuída pela comunidade inteira. Esta fé vívida não havia nascido por acaso, desenvolvera-se constante­mente por influência do magistério que a purificava e fa­zia progredir; tomava, por esta forma, sua direção e seu vigor das relações essenciais que mantinha com o con­junto da revelação sobrenatural e tornava-se uma vida de cada vez mais exclusiva e puramente divina; não era simplesmente uma crença particular deste ou daquele gru­po de crentes, mas uma vida do conjunto da Igreja infa­lível, de todo o organismo místico do Cristo. Não seria dificil mostrar-se, com relação à maior parte dos nossos dogmas — desde a igualdade de natureza do Filho até

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à infalibilidade do Papa, e mesmo até Maria mediadora, que parece prestes a ser definido, a função preenchida pela comunidade solidária da fé, função que consiste em permitir ao germe dogmático que brote e se desenvolva em terreno favoravel. E ’ o magistério da Igreja que ensi­na a verdade revelada em toda a sua plenitude, inclusi- vemente as verdades ainda em crisálida ou apenas con­tidas de maneira implícita. E’ este mesmo magistério que de maneira especialíssima vela sobre a maneira por que se desenvolvem essas verdades em germe, e, com o au­xílio da teologia, delas elimina todo elemento impuro. E é, por fim, o só magistério que solene e definitivamen­te decide do carater inspirado de uma verdade. Imaginar que a “Igreja ensinante” nada tem a fazer senão verifi­car e sancionar a crença geral da “Igreja ensinada”, sem intervir por sua própria conta e com autoridade, seria lamentavelmente desconhecer seu papel decisivo. De ou­tro lado, porém, é o seio maternal da comunidade soli­dária na fé que, fecundado pelo ensinamento da Igreja, conduz os dogmas à maturidade, e é a definição da Igre­ja que lhes dá a forma definitiva (8).

O progresso da fé prossegue, pois, a partir do magis­tério eclesiástico, não somente no sentido da profundi­dade através da série dos teólogos, mas tambem no sen­tido da extensão pela comunidade solidária dos fiéis. Ne­nhuma verdade reconhecida como revelada poderia re­sultar da elaboração de uns poucos sem ter sido, ao mes­mo tempo, vivida e amada pelo conjunto no movimento do Espírito Santo. Em tal sentido, todo novo dogma nasce igualmente do amor, da vida de amor da comunidade, do coração da Igreja que ora. Reveste-se, por esta forma, cada dogma do carater sagrado do respeito e da serie­dade da conciência e da fidelidade, da interioridade e do devotamento com que a comunidade dos membros do Cristo, “enraizada e fundada na caridade” (Ef 3, 17), fortalece em si mesma o testemunho do Cristo” (cf. 1 Cr 1 ,6 ). Regularmente, é “a maneira de orar” (lex oran- di), a lei não escrita da oração vivida, da fé vívida, que

8) Observe-se a analogia destas idéias com as de B I o n d e 1, a quem o autor, no entanto, não conhecia. Cf. Histoire et Dogme. Les lacunes philosophiques de 1’exegèse moderne, em “La Quin- zainc", de 16 de jan. I” e 16 de fev. de 1904.

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precede a sua fórmula prescrita como artigo de fé (lex credendi). De cada vez que em nome da crítica histórica atacou alguem este ou aquele dogma definido, foi por­que não teve em conta as forças vitais da comunidade viva nem a sua função na elaboração dos dogmas. Quando D oe 11 i n g e r escrevia, em 28 de março de 1871, a Mon­senhor Scherr, arcebispo de Munich: “Trata-se, na atual e confusa situação da Igreja, de pura questão de histó­ria, a qual, por conseguinte, deve ser tratada e decidida unicamente com os documentos de que dispomos, se­gundo as regras reconhecidas pela crítica para os fatos históricos” (Cartas e Explicações, 1890, p. 88), esquecia- se ele de que a Igreja não é um organismo morto, mos- trava-se ignorante das energias vitais da fé que animam a Igreja e que, como tudo o que é vivo, não são encontrá­veis nos textos mortos, mas, sim, apenas nos corações dos crentes, na comunidade dos fiéis com o Papa e os Bispos. E’ o que fazia o carater trágico da mentalidade de Dcellinger: não percebia ele senão a vida parada, rí­gida, da história, em lugar da fé viva do presente!

A comunhão de oração e de fé se perfaz na comu­nhão da caridade. A caridade mútua: o profundo senti­mento de se acharem ligados uns aos outros tanto para o bem quanto para o mal, não apenas pelos laços da na­tureza, mas ainda por um parentesco sobrenatural resul­tante da comunhão com o sangue e a carne do Cristo, a Cabeça; o sentimento da responsabilidade recíproca, que daí decorre, na alegria e no sofrimento; a cálida sim­patia, a caridade generosa, o devotamento simples, fiel, ao serviço do próximo, que são Paulo tão finamente descre­ve (1 Cr 13), esta solidariedade da vida cristã que oscila em torno da comunidade e que dela deflue para os in­divíduos e para si mesma; que, em todos os membros do Cristo, inclusive os menores, vê, tratando-se com res­peito, irmãos e irmãs do Senhor, até mesmo o próprio Cristo — todos esses efeitos da caridade são o fruto pre­cioso da comunhão dos Santos na terra. E é esta cari- ridade que dá à estrutura exterior, visível, do corpo do Cristo — o Papado e o episcopado — o ardente alento do Cristo e é só ela que promove e conserva a sua ri­queza interior. Ela é verdadeiramente o sangue do corpo do Cristo que, vindo do Coração do Homem-Deus, por

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todo o corpo sc espalha, transmitindo-lhe força, beleza e forma. Sem esta caridade, o corpo do Cristo na terra teria a rigidez de um cadaver, todas as instituições e fun­ções da Igreja, todos os sacramentos, todos os dogmas, toda fé, seriam sem sabor e vazios, “bronze sonoro e címbalo ressonante”, puras formas (forma; pietatis), co­mo se exprime santo Agostinho. E’ a pureza, a interiori­dade e a fecundidade desta caridade que determina a his­tória interior do corpo do Cristo, provoca as suas doen­ças e suas crises, seus progressos e desdobramentos. Para este corpo nenhuma crise mais terrivel existe do que a da caridade. Quando se não pode dizer da maioria dos seus membros: “Vede como eles se amam”, foi a crise mais perigosa que irrompeu, aquela que o Senhor de­signava por estas palavras: “A caridade de grande nú­mero esfriará” (Mt 24, 12). Nada mais contrário à consti­tuição mesma desse corpo do Cristo do que o repúdio, por parte dos seus membros, da caridade mútua. Porque o Cristo é essencialmente a caridade incarnada, e seu corpo místico é, essencialmente, a incarnação progressiva desse mesmo amor em todos os que dele fazem parte. Onde está o Cristianismo, está a caridade. Constitue esta — se­gundo a bela palavra de santo Agostinho: pondus meum amor meus (Conf. XIII, 9) — o peso que arrasta o Cris­tianismo. Não atinge ela essa pureza, essa interioridade e essa força visiveis senão no Cristo e em seu corpo. Por isso nada tão bem caracteriza o desenvolvimento do corpo do Cristo na terra como o crescimento dessa caridade. O desenvolvimento dos dogmas, do culto, de sua constituição, do direito, não aproveita ao corpo do Cristo senão com o proporcionar-lhe um aumento de caridade. E o corpo do Cristo não terá chegado ao seu pleno desenvolvimento senão quando a caridade, alma de todas as virtudes (for­ma virtutum), se houver tornado o principio dominante da vida, do sofrimento e da morte, não apenas em alguns poucos, mas em todos os membros do corpo do Cristo, pastores e ovelhas. Para que se os reconheça como dis­cípulos de Jesús, outra marca não existe senão a da ca­ridade que uns pelos outros alimentem.

Comunhão dos Santos! Jubilosa e bem-aventurada ca­ridade! E’ o tesouro oculto, a alegria íntima do católico. Quando ele pensa na comunhão dos santos, o coração

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se lhe dilata. Ele sai da estreiteza e do isolamento do es­paço e do tempo, do eu. Sente-se numa comunidade ín­fima, inexprimível, de espírito e de vida, que exalta infi­nitamente as suas necessidades e aspirações; comunhão com todas as grandes almas que a graça de Deus ergueu da vulgar humanidade até à sua altura, até à participa­ção do seu ser! Nenhum limite de espaço nem de tempo! Dos séculos passados, das civilizações e dos paises cuja lembrança só na lenda vive, almas há que lhe são pre­sentes, que lhe chamam irmão e o prendem na sua cari­dade. O católico nunca está sozinho. Cristo, sua cabeça, está sempre junto dele, e, com a cabeça, todos os mem­bros do seu corpo no céu e na terra. Correntes de vida invisível e misteriosa correm daí através da comunidade católica, forças fecundantes, uma caridade benéfica, for­ças de renovação, de uma juventude em perpétua flores­cência. Juntam-se elas às forças visíveis da vida da Igreja católica, de modo particular ao Papa e ao Bispo, com- pletando-os e perfazendo-os. Quem não as vê e não as aprecia não pode apreender nem representar-se verda­deiramente o catolicismo em sua essência e em sua ação. A bem dizer, só a fé simples da criança as percebe. Por isto, só ela descerra os caminhos da santidade. E ’ a ora­ção de Jesús: “Eu te dou graças, Pai, Senhor do céu e da terra, por haveres escondido isto aos sábios e aos prudentes e o haveres revelado aos pequenos. Sim, Pai,, essa é a tua vontade” (Lc 10, 21).

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C a p i t u l o V I I

Eu me dei todo a todos, afim de ganhá-los todos para Je­sus Cristo (1 Cor 9, 22).

A catolicidade

A Igreja é o reino de Deus derramado como um fer­mento que, lentamente, mas de maneira contínua, pene­tra e leveda a humanidade inteira; é o corpo do Cristo que compreende, numa unidade transpessoal, toda a hu­manidade resgatada. Assim, repousa essencialmente sobre a fé no Salvador, no Cristo. Como unidade transpessoal da humanidade ligada à divindade, tem sua expressão real e sua firmeza no rochedo (Pedro) sobre o qual foi erguida. Quanto à sua atividade interior e àquele comér­cio de caridade entre os seus membros, manifestam-se os mesmos na comunhão dos santos. Foi o que vimos até aqui.

Da essência da Igreja decorrem imediatamente suas características essenciais. Estudemos, antes de tudo, a principal dessas características, indicada pela própria apelação de Igreja “Católica”.

Santo Inácio de Antioquia é o primeiro escritor em que encontramos o vocábulo “católico” (Smirn. VIII: 2) e ele mesmo nos dá a razão fundamental pela qual a Igreja deve ser católica, isto é, ter a propriedade de propagar- se por toda a terra (xa& ôlov) e de abarcar a humani­

dade inteira: “Onde está Cristo, está tambem a Igreja católica”, diz ele, e sendo Cristo o Redentor e Salvador da humanidade inteira, seu corpo místico deve essencial­mente compreender toda a humanidade. Já está nele em germe toda a humanidade resgatada. A Igreja não estará plenamente realizada senão quando tiver, em seu desen­volvimento progressivo, englobado a inteira humanidade. A tendência à catolicidade lhe é, pois, natural.

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Tal força de conquista da Igreja repousa sobre a or­dem que deu o Senhor ressuscitado: “Ide, ensinai a todas as nações, batizai-as em nome do Padre, e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19). Esta ordem compreende, no seu mais largo sentido, os fundamentais impulsos da mensagem de Jesús relativa ao reino dos céus. O reino dos céus de Jesús revela, “desde o começo, a tendência a tornar-se uma religião universal” (Hiltzman).

E’, com efeito, uma potência espiritual puramente reli­giosa e moral que se põe acima das considerações nacio­nais ou terrestres séjam de que ordem forem. Os bens que oferece são o perdão dos pecados e a graça. Suas exigên­cias se acham reunidas nas direções imperativas de or­dem moral do Sermão da Montanha, que a todos se di­rige. Os súditos desse reino são os filhos de Deus, que invocam, todos, no Pater, seu Pai comum. E os arautos desse reino têm uma mensagem a transmitir não apenas ao povo judeu, mas ao mundo inteiro, e são o sal da ter­ra e a luz do mundo. O próprio Jesús, no sentimento de sua messianidade, se ergue bem acima de todas as preten­sões nacionais. Não é somente o Filho de Davi, mas o Filho do Homem. Pertence a todos os homens, e não so­mente aos judeus; por isto, mesmo que não houvesse da­do, após sua ressurreição, a ordem expressa e geral de pregar ao mundo, poder-se-ia, ainda assim, em razão des­sa fundamental tendência da mensagem supra-nacional, universal, do reino dos céus, falar, pelo menos, de um intenso universalismo de Jesús.

Mas se, após a mensagem, considerarmos a própria pes­soa de Jesús, bastar-nos-á lembrarmos a aversão mar­cada que ele vota e a resistência que opõe, condenando-o e repelindo-o, a tudo o que havia de espírito de casta, de estreiteza, de mesquinharia e de orgulho nos fariseus; a larga acolhida, sem reserva nenhuma, que dá a tudo o que encontra de nobre, puro e bom, pelo menos em germe, em todos os homens, mesmo nos publicanos e nas pecadoras; a maneira por que, nas parábolas do filho pró­digo, do publicano que ora a um canto do Templo, do banquete de núpcias para o qual são convidados os men­digos, os coxos, os cegos, dirige ele as preocupações do seu amor salvador às porções mais pobres, mais em aban­dono da humanidade. Torna-se, então, dificil de compre­

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M O Cap. VII. A catolicidade

ender, do simples ponto de vista psicológico, a afirmação de Harnack segundo a qual “a prédica aos pagãos não estava nos horizontes de Jesus”. E’ fato incontestável que a prédica aos pagãos estava não somenlu no horizonte do judaísmo contemporâneo, no qual havia degenerado, passando a contentar-se apenas com o fazer prosélitos (Mt 23, 15), mas tambem que tal prédica dava mesmo um colorido especial à promessa dos profetas. Suas esperan­ças, pois, não lhe podiam ser desconhecidas — abstra­ção feita, mesmo, de sua conciência messiânica — e sua maneira de ser, larga, livre, aberta, devia vibrar precisa­mente aos seus apelos. Efetivamente, quando ele encontra pagãos, não os evita nunca. Cura a filha da mulher siro- fenícia (Mt 15, 28). e o servo do centurião pagão (Mt 8, 5; Lc 7, 1). De nenhuma das vezes esconde sua cor­dial simpatia e a admiração que sente em face de tal ati­tude de alma. “O’ mulher, é grande tua fé! Na verdade eu vos digo, não encontrei tanta fé em Israel. Eu vo-lo digo, muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão parte no festim com Abraão, Isaac e Jacó no reino dos céus” (Mt 8, 10 e 11). Jesús confirma aqui as promessas dos profetas em seu pleno sentido. A parábola do bom samaritano acentua que a caridade efetiva para com o próximo se encontra mais facilmente entre os samaritanos heréticos do que entre os ortodoxos, sacerdotes e levitas.

Sabemos, além disto, que Jesús, por várias vezes (Mt 8, 28; 15, 21), entrou em terra pagã. Não evitava, pois, pelo contrário, procurava relações com os pagãos.

Se, não obstante essa atitude de fundamental simpatia para com os pagãos, restringiu Jesús a sua própria pré­dica e a de seus discípulos ao povo de Israel, foi sem dúvida por motivos práticos, relativos ao seu papel de Redentor. As forças da mensagem evangélica não se de­viam dispersar. Ele precisava contar com os elementos na­turais e religiosos que tinha a seu dispor. Com os elemen­tos naturais antes de tudo — porque o povo a que ele pertencia, graças a todo o seu passado e ao seu mono­teísmo enraizado nos costumes e na sua civilização, lhe oferecia a mais sólida base natural para estabelecer o reino de Deus; e, depois, com os elementos religiosos:— Jesús, com efeito, como antes dele os profetas, e depois dele são Paulo, via em Israel o povo eleito, que, por sua

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aliança com Iavé, parecia o primeiro chamado a aprofun­dar, chegando ao conhecimento da Trindade, a idéia mo- noteista de Deus que conservara através da história. E’ sem dúvida inegável na prédica de Jesús uma considera­ção de ordem nacional; esse nacionalismo, porém, nada tinha de exclusivo. Não excluia, antes, pelo contrário, im­plicava a conversão dos pagãos. Do ponto de vista dos profetas, Israel devia ser a base, o germe do novo rei­no que compreende todos os povos e todas as nações, e, pois, tambem os pagãos. Enquanto não mereceu o povo judeu ser excluido de tal vocação, tinha o mesmo um di­reito histórico e religioso a que nele plenamente se des­envolvesse o que trouxera em germe durante séculos de sua história.

Por isto, enquanto permaneceu na Terra, pertenceu Jesús a seu povo. Déste foi que ele extraiu os elementos da nova Israel ao chamar seus doze apóstolos. E foi desse ramo judaico, quando, pela sua ressurreição, se mostrou Jesús como Filho de Deus em todo o seu poder (Rm 1, 4) e, como tal, mandou seus discípulos à conquista do mundo, que brotou naturalmente a árvore majestosa, em cujos ramos os pássaros do céu viriam habitar. Desde o dia de Pentecostes, pelo milagre das línguas, manifestou- se o carater católico, vale dizer, extensivo a todas as lín­guas e todos os povos. As folhas (o envoltório judaico) necessárias de começo à proteção do tenro broto, mas que poderiam tornar-se obstáculo ao seu desenvolvimento ulte­rior, ou, quando menos, premí-lo excessivamente, essas folhas Pedro e Paulo as suprimiram nitidamente. Pedro recebeu pela primeira vez um pagão, o centurião Corné- lio, na comunidade cristã, e foi são Paulo que, tanto pelo vigor do seu pensamento como pela energia de sua ação, definitivamente abateu as barreiras das observâncias judaicas e abriu largamente caminho ao Cristianismo atra­vés do mundo. Graças a Pedro e a Paulo, o universalis­mo contido na mensagem do Cristo pôde chegar a pleno desenvolvimento. “Quando se afirma, como recentemente se fez (1), que são Paulo não acompanhou de bem perto

o pensamento fundamental do Mestre, porque “por meio dele o cristianismo se tornou, até à nova ordem, simples-

1) K a t t e n b u s c h , Op. cit., p. 351.

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mente a Igreja”, é porque se olvida que, ppra são Paulo, a Igreja, longe de ser uma seita particular, abarca toda a humanidade resgatada. A Igreja não deve elevar-se simplesmente do interior da humanidade, nele erguendo, por essa forma, novas barreiras, formando tim novo agru­pamento, espécie de sinagoga. Pelo contrário, ela é algo que, pela sua largueza e força de expansão, suprime na humanidade as barreiras todas. E’ tão grande e tão lar­ga quanto a própria humanidade.

Este espírito de universalismo, tão amplo quanto o mun­do, contido na mensagem de Jesús, só a Igreja católica soube apreendê-lo em toda a sua amplitude e profundeza. Ela não é uma comunidade ao lado de outras comunida­des, uma Igreja ao lado de outras Igrejas, nem mesmo uma Igreja entre os homens, mas, sim, a Igreja dos ho­mens, a Igreja da humanidade, puramente e simplesmen­te. Tal ambição transmite à ação que ela desenvolve essa perseverança tenaz e esse ar de majestade que lhe co­nhecemos. Nunca jamais foram os interesses da Igreja comprometidos pelas preocupações puramente nacionais, e nunca jamais se dobrou a Igreja, de maneira duradou­ra, a um Estado qualquer. Devido ao fato de pertencerem seus membros, ao mesmo tempo, a uma nação determi­nada, o interesse nacional deve aparecer e com efeito apa­rece nos negócios da Igreja. Em certas épocas, pôde mes­mo a Igreja dar a impressão de não ser mais do que a serva docil do Imperador da Alemanha ou do Rei da França. Efêmeros episódios e passageiros eclipses em sua missão mundial. Na realidade, ela garante sempre, nem que seja à custa de duras e teimosas lutas, em nome de sua missão que se dirige à humanidade inteira, a sua liberdade em face de príncipes e povos e, por isto mes­mo, a soberania do Reino de Deus, a independência da fé e da moral cristã. Potência supra-nacional que reune todos os povos tendo em vista o reino de Deus, pode ela, incomparavelmente melhor do que uma Igreja puramente nacional, tal como a Igreja anglicana, russa ou sueca, acordar as forças morais que dormitam no seio dos po­vos, e fazer com que sirva cada um destes com as suas aptidões particulares. São todos seus filhos, traz cada um seus presentes à casa de Deus. A finura, o frescor de espirito, o gosto das formas dos povos latinos aliam-se

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à sagacidade, à solidez, à sentimentalidade profunda dos germanos, ao espírito positivo, refletido e à prudência dos anglo-saxões. A piedade e a simplicidade dos chineses se unem à delicadeza de sentimentos e à finura de espírito dos indús, assim como ao gosto pelos negócios e ao espí­rito de iniciativa dos americanos. E’ a unidade na multipli­cidade, a multiplicidade na unidade (2). Milhares de pe­quenos córregos, que os missionários fazem nascer nas regiões estrangeiras, rolam as águas abundantes, varia­das, dos costumes diversos dos homens e das civilizações— o que há de mais precioso e única coisa que conta neste mundo — e se reunem, purificados no Espírito San­to pelo ensinamento infalível da Igreja, num só rio pos­sante, numa só grandiosa corrente que vem irrigar a hu­manidade para purificá-la e fecundá-la. Eis a catolici- dade: a grande corrente supra-nacional de fé em Deus e de amor ao Cristo, alimentada e conduzida pelas forças espirituais de cada nação e de cada indivíduo, purifi­cada e animada pelo Espírito de Deus, Espírito de Ver­dade e de Amor.

De que forma se realiza a catolicidade da Igreja? O que comunica ao catolicismo a sua força conquistadora, sua catolicidade “externa", é a sua catolicidade "interna”, vale dizer essa aptidão que faz com que ela convenha a todos os homens. Ela é feita de duas notas característi­cas; de um lado, a aceitação da revelação integral, de ou­tro lado, a plenitude da vida sobrenatural. Diferentemente de todas as outras comunidades não católicas, ela aceita pura e simplesmente, sem nenhuma reserva, toda a Sa­grada Escritura, o Antigo como o Novo Testamento; não apenas a dogmática de são Paulo e a mística de são João, mas tambem a concepção da Igreja e de sua autoridade ensinante de são Mateus, e a necessidade das obras e do mérito de são Tiago e de são Pedro. Não há na Escri­tura ensinamento que lhe pareça envelhecido ou inadapta-

2) S a n t o A g o s t i n h o põe em relevo particular esta uni­dade na plenitude... Corpus ipsius ubi jacet?... Extende cari- tatem per totum orbem, si vis Christum amare, quia membra Christi per orbem jacent (In epist. Joan., tr. 10, 8). O católico pode dizer com certo orgulho: ego in omnibus linguis sum: mea est Græca, mea est Syra, mea est Hebræa, mea est omnium gen­tium, quia in uritate sum omnium gentium (En. in. ps. 147, 19).

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do ao nosso tempo. Ela não tolera que uma verdade seja deixada na sombra ou desfigurada em proveito de outra qualquer mais moderna. Além disso, para ela, ao lado da Sagrada Escritura, há a Tradição. O Evangelho repousa essencialmente sobre uma mensagem oral, sobre a pre­dica do Cristo, dos seus discípulos e dos que aos pri­meiros discípulos imediatamente se prendem. Daí fluir nas comunidades cristãs uma corrente de tradição viva. Os escritos do Novo Testamento constituem um depósito, im­portante sem dúvida, mas de maneira nenhuma completo ou exhaustivo dessa tradição apostólica que incluia e pene­trava a vida religiosa da Igreja. A tradição oral, isto é, a palavra apostólica, viva, circulando nas comunidades, é anterior e mais primitiva do que a Sagrada Escritura. Compreende mesmo a Bíblia, sua inspiração, seu canon. E’, aliás, mais plena e mais rica, pois que nela encontra­mos a vida litúrgica, os usos, os costumes, as instituições, as coisas todas que os escritos do Novo Testamento ma! indicam. Possue ela, a mais, algo que a Bíblia, palavra escrita e morta, não tem e não pode ter, e de que lhe vem a sua superioridade incomparavel: o espírito vivo da re­velação, a vitalidade da doutrina revelada, o instinto da

fé (instinctus fidei), que é subjacente a toda palavra es­crita e não escrita, o sentido eclesiástico ((pçóvrjfia ix-

xXrjoiaozixóv )- Este espírito da revelação não vive em

documentos mortos, mas, sim, nos corações vivos dos crentes, excitado e nutrido pelo ensinamento apostólico

assistido do Espírito Santo. E’ a herança mais especial, mais preciosa da prédica de Jesús e de seus apóstolos.

Só ela dá à revelação a unidade interna, a coesão que esta apresenta e permite que verdadeiramente a compre­

endamos. Porque o fundo revelado, conservado pela Igre­

ja, compreende a Sagrada Escritura inteira e todo o pre­

cioso tesouro da Tradição não escrita, da prédica do Cris­

to e seus apóstolos, que continua — sem que se lhe su­

prima seja o que for, sem que se a restrinja a certas ver­dades apenas, como, por exemplo, à bondade paternal de

Deus, à certeza do perdão dos pecados; — porque assim

compreende e aceita toda a vida e a experiência cristã,

tal como em plenitude ela saiu do Cristo, foi propagada pelo ensinamento dos apóstolos e corre através da huma­

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nidade, é que pode a Igreja, em razão mesmo dessa ple­nitude, ser algo para todos, e a todos algo oferecer. Ela se fez tudo para todos. Aos jovens filhos no Cristo, “ela dá, como outrora são Paulo em Corinto, não um alimen­

to sólido que eles não poderiam suportar, porém leite”. Há tambem a multidão dos que não têm o espírito sufi­cientemente formado, a alma bastante delicada, para ou­vir e compreender a interioridade, a ternura e a força da mensagem cristã e a santa liberdade dos filhos de Deus, e que ainda não poderiam suportar a palavra de santo Agostinho: “Ama, e faze o que quiseres”. A essa mul­tidão ela ensina, em suas prédicas e catecismos, os man­damentos rigorosos do decálogo, as regras estritas da moral cristã; mostra a majestade do juiz supremo, que condenará ao fogo eterno todos os que não praticaram a misericórdia e a caridade. Se, pois, o amor de Deus não o pode fazer, que pelo menos a sua justiça os liberte das prisões terrenas e do egoismo que os manieta; que os eleve a um temor de Deus sobrenatural, embora ainda imperfeito. Quando uma alma, porém, é capaz de com­preender a vida interior e o amor, seja a mais simples e humilde, ela a atrai da maneira mais suave, pelo misté­rio do Tabernáculo, pela devoção ao Sagrado Coração de Jesús, pela Via Sacra, pelo santo Rosário, etc., a essas altitudes e profundidades da vida íntima de Deus em que ela compreenderá o pleno sentido da expressão “Abba, Pai”, no qual são Paulo e são João a introduzirão.

Acontecerá tambem que esteja uma alma de tal modo penetrada do amor de Deus e do zelo pelo seu reino, que toda inflamada se sinta pela palavra do Senhor: “Se que­res ser perfeito, vai, desfaze-te dos teus bens, dando-os aos pobres, depois segue-me” (Mt 19, 21). E’ assim que o deserto se povoa de eremitérios e nas grandes cidades se erguem os conventos e as casas religiosas. Nenhum pináculo existe na vida religiosa que se não possa atin­gir sob o influxo da Igreja. Impossível descrever as for­mas, variadas em sua plenitude, de que se reveste a vida moral e religiosa do católico. Aqui, a dominante é um maravilhoso individualismo e uma liberdade sem limites

da vida religiosa pessoal.Por mais diversas, no entanto, que sejam tais formas,

todas elas, no fundo, sairam do manancial da Tradição

A essência — 10

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viva, da complexa plenitude do tesouro de vida, contido na Escritura e na Tradição. Forque na Escritura e na Tra­dição, mesmo só na Escritura, ou só em são Paulo, ou só em são João, não são apenas verdades espirituais que encontramos; achamo-las tambem de ordem sensivel. Mas

o sensivel leva ao espiritual. Na Escritura c na Tradição, não se encontra apenas a certeza da remissão dos peca­dos, mas tambem prescrições estritas, leis; trata-se ai do mérito. Não se fala somente de experiência pessoal do Espirito, mas tambem de serviço e de funções visando a comunidade. Há sobretudo mística, porque quem diz religião diz mística. As formas fundamentais do catoli­cismo são encontráveis sem custo e sem grandes esforços de raciocínio na Sagrada Escritura, mesmo que nos li­mitemos a são Paulo. A revelação não se restringe a uma ou duas idéias vivificantes e excitantes, mas, sim, é toda uma vida original, rica, possante, “algo de santo, de in­exprimível, uma vida que cresce, algo de profundo que vai até ao mistério1’ (3).

E’ da plenitude da revelação do Antigo e do Novo Tes­tamento, da Escritura e da Tradição, que irrompe a ple­nitude do catolicismo, mas esta é uma plenitude na uni­dade, animada por um espirito, um princípio de unida­de. A vida do catolicismo cresce, mas “não cresce de­pressa”. A essência do catolicismo consiste “em manter- se num justo meio-termo” (Newman). De quando em vez, somos levados a temer alguma ruptura do equilíbrio in­terno, sobretudo nas épocas em que as heresias forçam a Igreja a deixar no último plano, e como que a dissimu­lá-las, certas verdades de que a heresia abusou, para pôr em maior evidência as verdades por aquela negadas. A po­sição anti-agnóstica, anti-ariana, anti-luterana, anti-libe­ral, anti-modernista, não exprime a posição fundamental e essencial da Igreja. Antes, significa uma concentração passageira de forças, exigida pelas circunstâncias do tempo e da luta que contra a heresia se impunha. O ca­tolicismo encontra mesmo nessas oportunidades ocasião de mostrar a sua força vital, sua unidade interna e sua verdade, porque sabe, nem que seja séculos após, recon-

3) J. H. N e w m a n , Christentum (O Cristianismo), extratos de. suas obras, por E. P r z y w a r a e O. K a r r e r , 2° vol., p. 70.

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duzir ao equilíbrio normal as forças que teve de con­centrar num só ponto. E tal princípio, forte bastante para sempre restabelecer o equilíbrio normal, devemos enxer- gá-Io no Espírito da revelação que dirige constantemente o magistério da Igreja, ou, antes, é o próprio Espírito Santo que anima a Igreja. Dele é que vem a misteriosa vitalidade que permite conduzir aos pontos debilitados do organismo eclesiástico um sangue vivificante e restaurar as deformações acidentais sofridas pelo corpo. Seria in­teressante mostrar pormenorizadamente o modo por que tem sabido o catolicismo, desde o seu aparecimento, viva­mente repelir as heresias com os seus raciocínios seduto­res, seus ataques especiosos, e resguardar o depósito de sua revelação de qualquer contágio; e de que modo, em seguida, depois que passou o perigo, sabe ele fazer en­trar e manter, muito concientemente, em sua doutrina — expondo-os, porém, sob sua face verdadeira, relativa­mente ao conjunto da revelação — os elementos de ver­dade que a heresia tinha posto em relevo de maneira unila­teral, tornando-se assim perigosos e até falsos. “Só a Igre­ja conseguiu expelir os elementos maus sem sacrificar os bons, e fazer entrarem na unidade de sua síntese as coisas que por toda parte, alhures, são inconciliáveis” (Newman). E’ o espírito da revelação, vivo na Igreja, o vigor e o ri­gor lógico do ensinamento católico — ao qual a Escola chama a Tradição ativa — que evita toda contaminação ao catolicismo e consegue sempre restabelecer-lhe a gran­de unidade e harmonia interior (4). E’ ainda esse mes­mo espírito vivo da Revelação, agindo pelo magistério da Igreja, que torna possivel a maleabilidade interna do con­junto, sua força de expansão, sua adaptação a todas as mentalidades. E’ ele o verdadeiro princípio de atividade e de progresso do catolicismo. Todas as demais confis­sões cristãs, na medida em que permaneceram como re-

4) Por várias vezes insiste Santo A g o s t i n h o sobre a utilida­de que as heresias apresentam para o desenvolvimento da doutrina católica. Já no de vera relig., 8, 15: plurimum prosunt, non verum docendo, quod nesciunt, sed ad verum quaercndum carnales et ad verum aperiendum spiritales catholicos excitando. Conj. 7, 19, 28: improbatio quippe haereticorum facit eminere quid ec- clesia tua sentiat et quid habeat sana doctrina. Oportuit enim et haereses esse, ut probati manifesti fierent inter infirmos.

10*

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ligiões positivas, se estabeleceram sobre um princípio rí­gido, morto; o Luteranismo e o Calvinismo, sobre a le­tra da Bíblia; as Igrejas cismáticas orientais, sobre a le­tra da Bíblia e sobre a Tradição passiva, isto é, sobre as tradições dos primeiros Padres e dos Concílios mais antigos. Dai, um duplo perigo: ou de tratar-se a Re- velação como um capital morto, como um tesouro guar­dado que nos devemos contentar em ver de fora, e trans­mitir, materialmente, à posteridade, negando-lhe, por es­ta forma, as energias vitais que outra coisa não buscam senão desenvolver-se e fazer com que se desenvolva o germe contido na Tradição. Foi a este perigo de imobili­zação, de fixismo, que sucumbiu a Igreja grega ortodoxa. O outro perigo consiste em abandonar, para melhor cor­responder às exigências do tempo, o conteúdo da Reve­lação, e em criar um cristianismo completamente novo, a que se poderia chamar a religião do idealismo germâni­co, por exemplo. E’ o que ameaça o Protestantismo. O catolicismo escapou a esses dois perigos. A vitalidade do Espírito da Revelação, que anima o magistério da Igreja, constantemente se manifestou, indo procurar, na Escri­tura e na Tradição, os dados revelados que elas contêm, e progressivamente extraindo a riqueza dessas energias ín­timas.

Só no catolicismo se pode verificar o crescimento do objeto da fé. Nada nele existe de rígido e imovel, mas tambem nada de inesperado e incoerente. E’ o verdadeiro desenvolvimento orgânico. Por esta forma, a Igreja está sempre em condições de oferecer aos homens de todas as épocas exatamente o que lhes convém. O desenvolvi­mento dogmático não se opera, com efeito, ao acaso, cor­responde às necessidades e às perguntas dos fiéis de cada tempo. Como aqueles nos quais se encontra o Espírito da Revelação são homens, crentes que vivem no seu tempo, estão em contacto perpétuo com as perguntas e necessi­dades da Igreja “ensinada” — da comunidade dos cren­tes. Podem confrontar incessantemente a herança que lhes foi confiada com essas perguntas e necessidades, e delas tirar as respostas que os fiéis esperam. Daí uma perene atividade na comunicação da verdade revelada aos ho­mens, um perpétuo intercâmbio entre o bem sobrenatural revelado e as almas famintas. A Revelação não envelhece,

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permanece sempre jovem. Não tem idade, é sempre atual, mesmo depois de sobre ela haverem passado séculos e mais séculos.

A catolicidade exterior, a força expansiva e conquista­dora da Igreja repousa, dizfamos, sobre a sua catolicidade interna. Acabámos de mostrar que um dos elementos dessa catolicidade interna consiste na afirmação da Revelação inteira e no Espírito da Revelação que a penetra e torna viva, dirigindo o magistério da Igreja.

O segundo elemento da catolicidade interna, encontra­mo-lo na afirmação, na compreensão do homem total, da natureza humana tal como é tanto em seu corpo como em sua alma, em sua sensibilidade como em sua inteligên­cia e sua vontade. A Igreja dirige-se ao homem todo. A doutrina do pecado original, tal como a precisou o Con­cílio de Trento contra Lutero, não atribue ao pecado ori­ginal nenhuma alteração das faculdades naturais do ho­mem, não o confunde com o que são Paulo chama a lei dos membros, a concupiscência. Sem dúvida, pelo pecado original, a inteligência ficou obscurecida, e a vontade para o bem debilitada, não, contudo, direta e imediata­mente, mas como consequência de ter sido o homem pri­vado da vida sobrenatural e da amizade de Deus nas quais havia sido criado. Desde então, com efeito, seu ser inteiro ficou como que descentrado, deixando de orien- tar-se para o fim sobrenatural a que Deus o destinara ao criá-lo, mas as faculdades do homem permanecem in­tactas. A debilidade que à sua natureza imprimiu o pe­cado original não produziu decadência física nem a cor­rupção de suas potências corporais e espirituais.

A Igreja pode ter, por conseguinte, a ambição de con­sagrar ao serviço de Deus a natureza humana, isto é, tudo o que nela há de propriamente humano: a sua sen­sibilidade, a sua razão, a sua vontade livre. Não tendo sido a natureza do homem alterada interiormente em suas próprias forças, mas somente pelo fato de haver sido des­viada do fim sobrenatural a que se lhe designara a vida, e, pois, simplesmente pela sua má orientação, no dia em que essa orientação foi corrigida, dia no qual, pelo ba­tismo, estabeleceu o ser humano relações sobrenaturais, originais, com Deus, pode o homem ser conservado e orien­tado para Deus na integralidade de sua natureza. Como

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corpo de Cristo, a Igreja dirige-se a tudo o que é de Deus, e, pois, ao próprio corpo do homem, tnesmo às suas aspirações e necessidades sensíveis, mesmo às suas pai­xões, da mesma maneira que à sua inteligência e à sua vontade. Libertado, pela graça santificante, esse corpo, essa sensibilidade, essas paixões, do tropismo para a ter­ra, para o eu que a desviava do seu fim, não somente as restitue ela ao reino de Deus, porém lhes comunica ainda uma nobreza e uma profundeza incomparaveis. E’ missão da Igreja demolir inteiramente o velho edifício terrestre do homem, mas para retomar os materiais assim desagre­gados e, dando-lhes o seu verdadeiro lugar, seu verda­deiro sentido, por consequência toda a sua beleza e es­plendor, construir com eles um edifício novo. Por esta forma, no catolicismo, a natureza, longe de ser destruida, é prodigiosamente prestigiada. Tal como saiu o homem das mãos do Criador, em toda a beleza do seu corpo, no ardor de sua sensibilidade, na fuga de suas paixões, na vivacidade de sua inteligência e na possante energia de sua vontade, assim ela o ama, assim ela o quer, esfor­çando-se por formá-lo de maneira que esse homem belo, ardente, inteligente e forte seja todo de Deus, que tudo o que ele recebeu de grande, de magnífico, em sua natureza original, posto em relação sobrenatural com o fundamen­to divino de sua vida, retorne ao seu equilíbrio interior e atinja a perfeição.

Uma dupla consequência daí resulta, do ponto de vista da catolicidade, da força conquistadora da Igreja: antes do mais, a sua simpatia inteligente pela Natureza no ho­mem, pelas suas faculdades corporais e sensíveis, tanto quanto pelas suas faculdades superiores. Ela penosa­mente lutou, durante séculos, contra os Gnósticos e os Maniqueus, contra os Albigenses e os Bogomilas e muitas outras seitas de denominações diversas, para proteger os direitos e a dignidade do corpo, notadamente os di­reitos e a dignidade do casamento. O corpo não é, para ela, um “vergonhoso invólucro”, mas, sim, obra boa e pre­ciosa de Deus. Este dom inestimável é tão necessário ao homem que, destruído pela morte, será ressuscitado por Deus para servir à alma imortal. A Igreja ama esse cor­po que vem de Deus; ensina aos seus artistas a represen­tarem na nobreza e no esplendor de suas formas a “in-

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exprimivel beleza do Homem-Deus e dos santos; orna as mais pobres igrejas de aldeia com representações de Nos­so Senhor, da Virgem e dos santos, para que os fiéis pos­sam elevar-se do visivel ao invisível, da beleza terrena à beleza celestial. A cultura da arte é natural ao catolicis­mo como o respeito ao corpo e à natureza.

Este respeito ao corpo condú-la a ocupar-se tambem da sensibilidade; o homem não é um puro espírito: tem necessidade do visivel, do sensível, para atingir o espi­ritual. E’ sobre esta lei fundamentai que repousa a insti­tuição dos sacramentos. Assim como o próprio Crislo se fez batizar e marcou a comunhão na sua carne e no seu sangue pelos signos sensiveis do pão e do vinho, assim como, em geral, ele religou as coisas espirituais a coisas sensiveis, enviando seus discípulos a ungirem de óleo üs doentes, não comendo pão senão depois de havê-lo aben­çoado, não deixando uma criança sem lhe haver imposto as mãos, assim tambem a Igreja religa a meios sensiveis os seus bens espirituais.

Além dos sacramentos instituídos pelo Cristo, possue ela os sacramentais que ela mesma instituiu. Tiram eles sua eficácia, não de um ato de vontade positiva do Cristo, mas do poder de intercessão da prece da Igreja e das dis­posições com que são empregados. São as orações dos fiéis e da Igreja inteira em vista de uma benção ou de uma graça, e que se vêem assim como que objetivadas sob uma forma sensivel. Quando o católico toma piedosamen­te água benta, quando pendura palmas bentas, flores ben­tas no seu quarto, não pretende senão estabelecer um contacto religioso com a prece de intercessão da Igreja in­teira, para que Deus se digne vir-lhe em auxílio cm suas necessidades. Mesmo na vida profana, tudo, desde o anel nupcial até ao sal bento que ele dá a um animal doente, religa-se a Deus de maneira sobrenatural pela benção da Igreja. Toda a vida do católico em suas manifestações exteriores é assim dirigida para o céu — pelo visivel ao invisível. Evidentemente, são possiveis abusos e pode-se fazer dos sacramentais uma espécie de ritos mágicos — onde há homens, haverá sempre abusos — mas, porven­tura, seria justo apreciar uma instituição pelos abusos de que ela é vítima? Precisamente porque a Igreja eleva o homem do sensivel ao espiritual, exerce a sua ação mes-

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Cap. VII. A catolicidade

ino sobre as almas que ainda estão por demais mergu­lhadas nas preocupações de ordem sensivel. Mcsino a es­ses seres que levam bem pobre vida espiritual leva ela um raio do céu. Não t* somente a Igreja dos povos, mas

a Igreja do povo.Não é apenas a sensibilidade que a Igreja admite e

satisfaz no homem, são, mais ainda, as suas faculdades superiores, e antes de tudo a sua Razão. Pretende ela de maneira muito especial satisfazer e conquistar as in- leligências. Toda a exposição e justificação de sua fé, desde os Apologistas, as escolas de Alexandria e de Antio- quia, passando pela escolástica, até aos nossos dias, é dominada pela confiança nas luzes da razão. A fé cató­lica supõe que a razão humana é capaz de, por si mes~ ma, descobrir os preâmbulos da fé, quer dizer, a espiri­tualidade da alma e a existência de Deus e, geralmente, para além da experiência sensivel, as realidades espi­rituais que ela implica, assim como as provas históricas e filosóficas da credibilidade da fé. Como a certeza sobre­natural da fé revelada se eleva por sobre esses prelimi­nares naturais, a filosofia se faz a serva da teologia (an- cilla theologiae). Não pretende ela com isto, de maneira nenhuma — o Concílio do Vaticano (sess. 3, cap. 4) re­pele expressamente esta pretensão — contestar às ciên­cias profanas seus princípios próprios e a independência dos seus métodos. Afirma apenas, e segundo a Revela­ção, que a razão, seguindo simplesmente suas próprias leis, e partindo dos seus próprios princípios, é capaz de che­gar ao ponto em que Deus aparece como o fundamento primeiro e a explicação final de tudo o que existe, e no qual a ciência conduz à fé, a filosofia à teologia. De cada vez que se quis negar ou pôr em dúvida a capacidade de ir a razão além da experiência sensivel, ou se preten­deu limitar ou sufocar a tendência do homem a conhecer a realidade inteira, a Igreja tomou a defesa dos direitos da razão (Averróis, Lutero, Kant). Quanto mais, em nos­sos dias, se mostram os espíritos fatigados das teorias idealistas do conhecimento e procurara sair do Sujeito para atingir o Objeto, tanto mais se mostram gratos a Pio X por haver, na Encíclica “Pascendi” contra o Mo­dernismo, tão injustamente criticada, defendido, contra o Positivismo, o Pragmatismo, o Fenomenismo, o poder que

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tem a razão de atingir o transcendente, de ir além da ex­periência sensivel. O ca-ater católico da Igreja mostra-se ainda não apenas em não deixar ela que a ciência e a fé se combatam numa esteril oposição, mas também em que as une harmoniosamente, abrindo a ciência à fé e a fé à ciência. Os maiores espíritos — Origenes, santo Agos­tinho, santo Tomaz, Newman — se deram a si mesmos a tarefa de operar essa síntese da ciência e da fé. Em nossos dias, a teologia zelosamente procura utilizar no serviço da fé as aquisições da ciência. O catolicismo es­tende a mão a cada uma das ciências e cuidadosamente recolhe, para com elas armar seu santuário, todas as pre­ciosas parcelas de verdade que encontra.

Contentemo-nos com mencionar, de maneira rápida, a segunda consequência da estima que professa o Catoli­cismo por tudo o que é da natureza no homem e de que lhe vem, em parte, a sua força conquistadora: a aceita­ção, a utilização de tudo o que é conforme à natureza e verdadeiro, e se conservou intacto nas civilizações anterio­res ou estranhas ao cristianismo. O paganismo, sem dúvi­da, não encontrou adversário mais resoluto do que o cato­licismo, mas isto só na medida em que essencialmente se desvia do único Deus verdadeiro e vivo, para entregar- se à adoração do eu e da natureza. Ora, no paganismo há outra coisa ainda. Mesmo nas civilizações pagãs, do fundo ainda intato da natureza nascem pendores nobres e puros, pensamentos e disposições elevadas, e isto não apenas no domínio da ciência e da arte, mas tambem no da religião e da moral. Os germes de verdade, segundo observação frequente dos Padres da Igreja, por toda parte se encontram, entre os romanos como entre os gre­gos, entre os hindus como entre os negros. Tra- ta-se apenas de separar esses germes das excrescên­cias pagãs que se lhes aderem e ameaçam sufocá-los. Po­dem ser, logo após, utilizados em proveito do Reino de Deus. Esta obra de separação e purificação, realiza-a a Igreja quando se dirige aos filósofos pagãos, a Platão, a Aristóteles e a Plotino, ao médio e ao novo Pórtico, para fazer com que sua sabedoria sirva ao Logos incar­nado. Não hesita mesmo em tomar ao paganismo práticas

culturais ou símbolos quando é possível dar-lhes alma cristã. Não é isto debilidade ou falta de princípios, mas

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Cap. VII. A catoliciiiade

simplesmente aplicação de sua catolicidade. E’ a conse­quência imediata da doutrina fundamental do catolicis­mo segundo a qual tudo o que é bom, tudo o que vem da natureza não corrompida, pertence a Deus, faz, de di­reito, parte do seu Reino. Eis por que o catolicismo não ergue barreiras em face de civilizações não cristãs, ein face das civilizações que o precederam. Só em face do pe­cado levanta urna barreira intransponível. Sua mão libe­ral muito colheu no terreno da antiguidade e dele muito nos conservou no momento em que a civilização antiga desmoronava sob o tropel dos bárbaros. Ainda hoje, se esses mesmos tesouros, se toda a cultura do espírito que nos legou a antiguidade, fossem postos em perigo e cor­ressem o risco de ser dispersados e esbanjados pelas mãos dos vândalos modernos, se a tendência friamente positiva ao prático, ao util, ao idolo do dia, nos ameaçasse de per­der contacto com o espírito da antiguidade e de comprome­ter com isso a cultura humana, a Igreja se levantaria e, como outrora na idade média, continuaria a distribuir a seus filhos “o ouro do Egito”.

Tal é o catolicismo: aceitação de todos os valores, se­jam quais forem, larga simpatia, no sentido mais extenso e mais nobre do vocábulo, por tudo o que no mundo existe, união da natureza e da graça, da arte e da Religião, da ciência e da fé, afim de que “Deus esteja todo em tudo”. Que outros saiam em procura de imaginária simplicidade primitiva: quanto a nós, diz Newman, repousamos na plenitude católica. O catolicismo não conhece divisa di­ferente da de são Paulo: “Eu me fiz tudo para todos, afim de ganhá-los todos para Jesús Cristo. Tudo isto eu o fiz para o Evangelho” (1 Cr 9, 22).

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Fora da Igreja não há salvaçãoSe alguem deixa de ouvir a Igreja, que seja para ti como um pagão e um publicano (Mt 18, 17).

Sendo o corpo do Cristo, o reino de Deus na terra, a Igreja católica é, por isso mesmo, a Igreja da huma­nidade. Seu fim essencial é a incorporação dos homens de todos os tempos e lugares na unidade do corpo do- Cristo. Eis o que explica a sua catolicidade externa e interna, sua propagação pelo mundo inteiro e sua com­preensão de tudo o que há no mundo. Eis o que expli­ca, tambeni, o seu exclusivismo, isto é, sua pretensão de ser pura e simplesmente a Igreja da humanidade, o que vale dizer: a instituição exclusiva de salvação para todos os homens.

Precisamente porque se considera como a Igreja da hu­manidade, como o reino de Deus do qual, segundo a vonta­de do Cristo, todos os homens fazem parte essencialmente, não pode evidentemente admitir que os homens tenham a prerrogativa de promover, da mesma forma, a sua sal­vação em outra qualquer comunidade, que ao lado da Igreja da humanidade, ou mesmo contra ela, se tenha cons­tituído. O próprio Heiler (1) não pôde deixar de reconhe­cer o rigor desta consequência. “Se o catolicismo é efe­tivamente a universalidade, se representa a plenitude dos valores religiosos, não pode deixar de ser exclusivo. Tal exclusivismo não nasce de nenhuma estreiteza de sua par­te, mas, sim, de uma riqueza inesgotável”. Renegaria a Igreja a sua marca distintiva mais profundamente espe- cificadora e magnífica, sua perfeita plenitude, e a pro­priedade essencial de que lhe vem essa plenitude, e que consiste em ser o Corpo do Cristo, se reconhecesse como irmã, gozando dos mesmos direitos que ela, uma igreja

C a p i t u l o V I I I

I ) lr. H e i l e r , Op. cil., p. 614.

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antagonista ou simplesmente diferente. Que reconheça im­portância histórica às outras Igrejas, que as considere como comunidades cristãs, até mesmo como Igrejas cris­tãs, ainda vá; jamais, porém, as reconhecerá como a Igre­ja do Cristo. Um só Deus, um só Cristo, um só batismo, uma só Igreja. Um segundo Corpo visivel do Cristo, uma segunda manifestação visivel do seu espírito, são tão in­concebíveis quanto um segundo Cristo. Quando, na pri­mavera de 1919, vieram a Roma cristãos americanos para convidarem o Papa Bento XV a participar de um congres­so internacional sobre “a fé e a concepção da Igreja”, é porque não tinham compreendido essa fundamental exi­gência da própria idéia da Igreja católica. A Igreja cató­lica não pode deixar de considerar com benevolência to­das as tentativas de união das comunidades não católi­cas (2). Ela vê nisso um primeiro movimento de pre­paração àquela unidade necessária do Cristianismo, espe­cialmente no Ocidente. Reconhecer, porém, às outras co­munidades cristãs os mesmos direitos que lhe cabem, se­ria admitir a sua própria decadência e cometer a pior das infidelidades para consigo mesma. A Igreja católica

156 Cap. VIII. Fora da Igreja não há salvação

2) Cf. a este respeito M. R e i c h m a n n , Christliche Wieder­vereinigung (A reconstituição da unidade cristã) nos Stimmen der Zeit, 106, 1924, pág. 190 sg. Ver um artigo anterior do mes­mo autor na referida revista (98, 1920, pág. 388 e sg.). Cf. igual­mente H. S i e r p, Unionsbestrebungen bei den Protestanten (Os esforços dos protestantes pela união) na mesma revista, 100, 1921, p. 184 e sg.).

Encontrar-se-á uma introdução, tão rica quanto viva a este mo­vimento na obra de P f e i l s c h i f t e r , Die Kirchl. Wiederver- ciriigungsbestrebungen der Nachkriegszeit (Os esforços pela res­tauração da unidade cristã depois da guerra), 1923. O trabalho do P. S i m o n sobre Die Wiedervereinigung im Glauben (A re­constituição da unidade na fé), 1925, é notável pela sua atitude comedida e de bom senso. Podem-se consultar igualmente seus artigos sobre Die Wiedervereinigung der Christen und die geistige Lage (A reconstituição da unidade cristã e a situação religiosa) em Jahrb. d. V. d. V. Kath. Ak., 1923 e sobre Die Kirchl. Eini­gungsbestrebungen in England und Deutschland (A tentativa de união das Igrejas na Inglaterra e na Alemanha) em Theol. und CL, 1924, fase. 3.

Sobre as “Conversações de Malines” entre o Cardial Me r ­c i e r e lord H a l i f a x , era 1921-1923, encontrar-se-ão docu­mentos numerosos e variados na Documentation cath., 1925, t. XIV, col. 515-571.

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será a Igreja, o corpo do Cristo, o reino de Deus, ou não será mais nada. Tal carater exclusivo da Igreja se funda sobre o carater exclusivo do próprio Cristo, sobre a pre­tensão de ser aquele que é o único que dá vida nova, de ser a Via, a Verdade e a Vida. E’ no Cristo que a ple­nitude da divindade se manifesta. Em sua pessoa divino- humana reside a última e mais completa união de Deus com a humanidade. Nele incarnaram-se a Sabedoria, a Bondade, a Misericórdia de Deus. De sua plenitude rece­bemos todas as graças. Por isso não há outra via senão o Cristo para se ir a Deus. "Não há sob o céu outro no­me que tenha sido dado aos homens para sua salvação” (At 4, 12). Ora, o Cristo, não o podemos apreender se­não por meio de sua Igreja. Sem dúvida, ele teria podido comunicar-se com a sua graça de salvação, sem nenhum intermediário, a todos os homens, numa experiência pura­mente pessoal. A questão não é saber-se o que lhe seria possivel, porém, sim, o que de fato ele quis. Na verdade, quis dar-se aos homens por intermédio dos homens e, as­sim, por meio da comunidade e não pela da vida sepa­rada, isolada. A graça de Jesús devia vir aos homens, cha­mados pela natureza a viverem em sociedade, não por fora ou mesmo contra essa necessidade social, mas, pelo contrário, pela sociedade. O que ele queria, era suscitar, não uma multidão infinita de almas-mônadas santas, mas, sim, um reino organizado de homens santos, um reino de Deus. Esse meio de comunidade tão bem correspondia à sua lei fundamental, a caridade, que impele à comuni­dade, à unidade fraterna — que não pode existir senão onde há comunidade! correspondia ela tambem à própria natureza de Deus. O que é de Deus pertence a todos os homens e deve manifestar-se como uma força que a todos se dirige, numa palavra, como algo de católico, isto é, sob a forma de uma unidade que engloba todos os homens. Onde está Deus, não pode haver contradi­ção, divergência de pensamento, divisão. A verdade di­vina não pode ser essencialmente mais do que uma ver­dade, uma vida, um amor. Não pode ter senão uma for­ma, a de uma comunidade orgânica unindo todos os ho­mens por dentro.

Desde os primeiros tempos da comunidade cristã, para afirmar esta necessidade absoluta de pertencer a uma só

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e mesma comunidade afim de ser salvo, apoiava-se o crente a uma declaração formal do Mestre: “Se algueni deixar de ouvir a Igreja, que seja para ti como pagão ou publicano”, vale dizer, não seja considerado mais co­mo cristão (Mt 18, 17). Foi esta convicção da Igreja pri­mitiva que são Cipriano traduziu nas fórmulas lapidares que a Tradição conservou: “Quem quer ter Deus por Pai, deve ter a Igreja por Mãe’’ (Ep 74, 7); “Ninguém se pode salvar fora da Igreja” (Ep 4, 4); “Fora da Igre­ja, não há salvação” (Ep 73, 21).

Fórmula famosa, que punha no relevo mais vivo possi- vel a pretensão que tinha a Igreja de ser a única a po­der dar a salvação: Fora da Igreja, não há salvação! O quarto Concílio de Latrão (1215) adotou-a literalmente. O Símbolo, dito de santo Atanásio, que a Igreja adotou como uma de suas profissões de fé oficiais, a desenvol­via longamente: “O que quer ser salvo deve, antes de tudo, admitir a fé católica. Se não a guardar intacta e com­pleta, será certamente danado”. O Concílio de Floren­ça (1434) ainda mais nitidamente se exprimia, declarando que todos os pagãos, judeus, hereges e cismáticos não terão a vida eterna e serão condenados ao eterno fogo.

E’ incontestável que, na medida em que a Igreja, pela sua catolicidade, é aberta a todos e compreende tudo, nessa, mesma medida, pela sua pretensão de ser o meio único de salvação, encolhe-se sobre si mesma sem reserva e é exclusiva. À sua aceitação sem reserva de to­dos os verdadeiros valores, de qualquer ordem, de qualquer origem que sejam, se opõe a mais absoluta afir­mação do seu próprio valor exclusivo. E esta afirmação do seu valor exclusivo é precisamente o contrapeso neces­sário à sua aceitação sem reserva de todos os valores. Sem esta rigidez, sem esta prodigiosa concentração em si mesma, sua tendência católica, isto é, seu impulso in­terno no sentido de englobar a humanidade inteira, de ad­mitir tudo o que tenha algum valor humano, produziria um debilitamento progressivo do seu conteúdo essencial, sobrenatural, que chegaria a diluir-se, a fundir-se com o que é apenas natural. O sincretismo ameaçá-la-ia. Com o mesmo ímpeto e vigor que ela põe em dar-se ao mun­do, relembra ela sua origem sobrenatural, sua dependên­cia para com o Cristo, sua força exclusiva de santifica-

158 Cap. Vlll. Fora da Igreja não há salvação

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ção. Por este meio conscrva o fundo sobrenatural da mensagem de que está encarregada, c permanece capaz de sobrenaturalizar, de reconduzir a Deus e ao Cristo to­dos os valores naturais que vai tomando ao mundo. Po­der-se-ia dizer que, se a sua catolicidade é a sua força centrífuga, esse intransigente exclusivismo é a sua força centrípeta. Tal equilíbrio de forças nos revela o segredo de sua fidelidade à sua própria lei, de seu caráter a um só tempo católico e exclusivo.

Inutil querer ajeitar as coisas: sobre a questão de saber se às outras comunidades cristãs uma missão de salva­ção foi confiada, se pode alguem salvar-se nas outras Igrejas cristãs, a Igreja católica é absolutamente intran­sigente. Precisamente porque todas essas comunidades se fundaram quebrando a unidade dos irmãos na fé e na caridade, são, do ponto de vista católico, instituições que não trazem o espírito do Cristo e, pois, puramente huma­nas e mesmo anti-cristãs. Com relação às mesmas, a Igre­ja só pode pronunciar o anátema. E este anáttma, não poderá retirá-lo até que o Senhor retorne.

Explica-se muito bem, todavia, do ponto de vista psico­lógico, a impressão, experimentada pelos fiéis das con­fissões não católicas, cm presença de tal intransigência dogmática, assim como sua tendência a ver nisso o pro­duto de um espírito estranho e até contrário ao de Cristo, de um espírito de dureza, sem coração. Quando se fala de “um exclusivismo e de uma intolerância terriveis” (3), é porque se olvida que tais são precisamente as caracte­rísticas de qualquer verdade. E quando se afirma, ao mesmo tempo, “que da fé em Jesús, Salvador único, so­mos diretamente conduzidos à fé na Igreja, arca única de salvação”, põem-se em pé de igualdade estas duas verdades: saber que o Cristo é o único nome no céu e na terra pelo qual nos possamos salvar e que, igualmen­te, só na Igreja fundada por ele poderemos encontrar a salvação. Um só Cristo, um só Corpo do Cristo. Quem se recusa a admitir uma só verdadeira Igreja, é muito fa­cilmente levado por uma lógica iniplacavel a negar o próprio Cristo. De fato: a história das seitas separadas

3) F. H e i 1 e r, Op. cit., p. 613.

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da Igreja não é também, porventura, a da alteração pro­gressiva da crença primeira em Cristo?

Tal é o princípio: não há senão um Cristo e não há senão uma Igreja de Cristo na qual nos possamos sal­var — e é impossível separá-los — nessa união de bron­ze, dura e inexorável. Mas, neste caso, não são todos os hereges e não católicos condenados ao inferno?

Para compreender este dogma: “Fora da Igreja não há salvação” em seu verdadeiro sentido, isto é, como a Igreja o entende, é preciso vê-lo em suas origens e reco- locá-lo no conjunto do dogma. Nenhuma verdade católi­ca forma uma peça em separado. Cada uma tem seu lu­gar e seu sentido no sistema total. Só à luz do conjunto podemos descobrir seu sentido verdadeiro.

Notemos, de começo, que o dogma da necessidade da .Igreja para a salvação não é dirigido contra as pessoas como tais, mas contra as Igrejas e comunidades não cató­licas na sua qualidade de comunidades. A verdade posi­tiva que ela quer afirmar é a seguinte: não há senão um corpo de Cristo e, pois, uma só Igreja que contenha e distribua a graça do Cristo. Formulada de maneira nega­tiva, pode ser enunciada assim: toda Igreja que se le­vante contra a Igreja primitivamente fundada pelo Cristo está, por isto mesmo, fora da comunhão de graças com o Crisío. Não pode servir de intermediária para a salva­ção. Na qualidade de Igreja separada, de contra-Igreja, ela é, do ponto de vista sobrenatural, esteril. Não é dos indivíduos que, de entrada, se afirma a esterilidade, mas das comunidades separadas da Igreja católica. O que ne­las as põe à parte da Igreja, o que, na sua fé e no seu culto, as distingue da Igreja católica, é incapaz de pro­duzir vida sobrenatural. Na medida em que elas são não- católicas, anti-católicas, isto é, naquilo que as caracte­riza, não participam do privilégio de ser “Mãe” dos cren­

tes.Acabamos, por esta forma, de enunciar a segunda res-

itrição a ser feita ao dogma da necessidade da Igreja para a salvação, na doutrina católica. As comunidades acató- licas não são, com efeito, simplesmente acatólicas, anti- católicas. Separando-se da Igreja primitiva do Cristo, le­varam elas consigo e conservaram uma parte importante do tesouro da fé católica e alguns sacramentos, em par­

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ticular o do batismo. Em seu conjunto, elas não são ape­nas a antítese e a negação, mas, em boa parte, afirmação da herança de verdade e de graça recebida do Cristo e dos apóstolos. Em seu edifício, a par de sua contribuição es­pecial não católica, empregaram muito material benéfico do catolicismo, e o conservaram. Dado isto, na medida em que, pela sua fé e seu culto, são elas verdadeiramente católicas, pode e deve acontecer que, mesmo fora da Igre­ja visível, se verifique uma verdadeira vida sobrenatural, um crescimento em elevação e intimidade na comunhão com o Cristo. Não está aí o cumprimento da promessa de Jesús: “Tenho outras ovelhas que ainda não estão neste rebanho” (Jo 10, 16)? Por toda parte em que a palavra de Jesús é fielmente anunciada e em que se batiza com fé em seu nome, a graça de Jesús pode descer e*dar fru­tos. Quando os discípulos quiseram impedir que alguem, que não estava com eles, expulsasse os demônios' em no­me de Jesús, disse-lhes este: “Não o impeçais. Com efeito, quem opera um prodígio em meu nome, não irá em se­guida dizer mal de mim. Quem não é contra nós é por nós” (Mc 9, 38). Foi no sentido desta palavra do Mestre que lutou a Igreja contra são Cipriano e a tradição da Igreja da África e, em controvérsias que duraram sécu­los, contra os Donatistas, pela validade do batismo confe­rido, em nome de Jesús, fora da Igreja católica. E foi precisamente essa Roma tão atacada pela sua “intransi­gência”, foi o próprio Papa Estevão que, sob o risco de um cisma na Igreja da África, impediu que se compro­metesse a validade do batismo dos hereges. Este princí­pio é o mesmo que inspira a Igreja com relação à vali­dade dos sacramentos, que, no entanto, o Cristo confiara ao circulo restrito dos seus apóstolos. Nas Igrejas não católicas nas quais o encargo apostólico se conservou por meio de um episcopado regularmente consagrado, como nas Igrejas orientais separadas de Roma, e, mais tarde, nas comunidades dos Jansenistas e dos velhos-católicos, reconhece ela a validade de todos os sacramentos que não exigem senão o exercício do poder de ordem, sem exigir a jurisdição eclesiástica. Em todas essas Igrejas, reconhece ela que os fiéis verdadeiramente recebem, na comunhão, o corpo e o sangue do Cristo, não porque sejam cismá­ticas essas Igrejas, isto é, não em virtude de seu carater

A OBBêncla — 11

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específico, mas porque, não obstante se haverem separa­do, guardam ainda algo da herança católica primitiva. E’ o que elas conservaram de católico que continua a dis­por do poder de santificar e de salvar.

E’ preciso, aliás, não entendermos com isso — e aqui chegamos à terceira observação relativa ao adágio: “Fora da Igreja não há salvação” — que os sacramentos distri­buídos fora da Igreja só tenham valor puramente obje­tivo, sem operar subjetivamente e sem produzir a graça no que os recebe. Tal era, ao que parece, o pensamento de santo Agostinho. Segundo ele, a graça, produzida ob­jetivamente pelos sacramentos conferidos fora da Igreja, não poderia agir interiormente nos hereges ou cismáticos por estarem todos de má fé e obstinada e concientemente se oporem ao espírito de unidade e, pois, ao Espírito San­to. Prevalecendo-se de santo Agostinho, sustentaram os Jansenistas o mesmo erro e afirmavam que “fora da Igreja não há graça” (extra ecclesiam nulla conceditur gratia). Foi ainda Roma que, pelo Papa Clemente XI, em 1713, expressamente condenou esta proposição.

Pretender que a Igreja católica tenha continuado a marchar no sentido da corrente da Igreja da África (4), de são Cipriano e de santo Agostinho, “que ela tenha mes­mo reforçado de cada vez mais o princípio de exclusi­vismo e por esta forma impedido de cada vez mais o ca­tolicismo no sentido da estreiteza, resulta em contrariar os dados mais claros da história. A Igreja expressamente corrigiu o rigorismo da antiga teologia dos Padres afri­canos, afirmando que, mesmo fora da Igreja católica, age a graça divina. Os sacramentos recebidos fora da Igreja podem santificar e salvar, mesmo subjetivamente. Assim, aos olhos do católico, nas comunidades que creem em Jesús e batizam em seu nome, é possível uma vida cristã autêntica e piedosa. Nós, católicos, saudamos com um respeito sincero e uma caridade reconhecida a essa vida cristã por toda parte em que a percebamos. Sentimo-nos cheios de estima, por exemplo, pelas diaconisas protes­tantes; admiramos a ação caritativa da missão interior e o devotamento de que as outras obras protestantes nos dão o espetáculo. Parece-nos ouvir “as melodias da ve­lha casa paterna” (Knoepfler) nos cantos de um Paul

4) F. H e i I e r, Op. cit., p. 614.

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Gehrard, na Paixão de Bach, ou nos Oratórios de Haen- del. Sim, o ponto de vista católico admite facilmente a possibilidade, nas confissões não-católicas, de uma certa vida cristã, mesmo de uma vida cristã plena, elevada, se­gundo o “pleno desenvolvimento do Cristo”, uma verda­deira santidade. Sem dúvida, não poderá esta aí desenvol­ver-se com a riqueza de formas que reveste aqui onde está seu corpo. Observemos, aliás, que jamais essa vida santa tomará, porventura, ares anti-católicos. Onde está a graça, seu fruto de grandeza e nobreza chegará normal­mente à maturidade. Grandes figuras brilharam e brilham ainda sobretudo na Igreja russa (5) (que maior qui­nhão conserva da herança católica primitiva), na pessoa de um Dmitri, de um Innozens, de um Tykhon e de um Teodósio. O catolicismo admite que, nas comunidades protestantes, possa haver santos e mártires (6).

Segundo o ensinamento católico, a graça de Cristo não limita a sua ação ao interior das comunidades cristãs, opera no mundo estranho ao Cristianismo, entre os judeus, como entre os japoneses ou os turcos (7). Em qualquer catecismo católico pode-se ver que, ao lado do meio or- dinári.0 dê salvação, o Batismo, existe outro meio extra­ordinário, o batismo do desejo, isto é, a força santificante da caridade perfeita, excitada e formulada pela virtude Tedentora do Cristo. Esta caridade perfeita faz amar e aceitar tão inteiramente a vontade de Deus, que o que seja por ela animado receberia o batismo sem hesita­ção se lhe conhecesse a existência e pudesse recebê-lo. Como à sua chuva benéfica e ao seu sol, envia Deus sua graça triunfante a todos os corações que se mantêm pron­tos a recebê-la, isto é, a todos os que fazem o que deles depende, e que lhes dita a conciência. Desde que veio Cristo e fundou seu reino, deixou de haver moralidade plenamente natural, se é que esta é possivel! Por toda parte em que a conciência está desperta, em que o homem

5) Cf. Mons. D ’ H e r b i g n y , Theologica de Ecclesia, 1921, t. II, p. 110.

6) L. P f I e g e r publicou na revista católica “Seele" (Alma, 1924, p. 7) um relato entusiástico e penetrante de uma nobre anglicana, Florence Barclay.

7) Cf. o tão impressivo estudo de J. M a r e c h a l sobre um místico muçulmano, Al Hallaj, executado a 26 de março de 1922 (Recherches de sciences réligieuses, t. XV, 1923, pág. 244 sg.).

II»

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abre os olhos para Deus e sua santa vontade, a graça de Deus está presente e trabalha na alma c nela depõe o germe da vida nova, da vida sobrenatural, ü próprio Hei- ler cita — sem reparar no formidável desmentido que dá coin isso à sua precedente asserção sobre a evolução da Igreja no sentido da estreiteza — a seguinte passagem do jesuita De Lugo, teólogo célebre, que resume todo o entusiasmo católico a respeito do assunto (8): “Deus dá a toda alma que atingiu o uso da razão luzes sufi­cientes para sua salvação. As diferentes escolas filosófi­cas e confissões religiosas possuem e transmitem um pouco da verdade... Regularmente, as coisas se pas­sam por esta forma: a alma que, de boa fé, procura Deus, sua verdade e seu amor, concentra, sob a influência da graça, toda a sua atenção sobre essas parcelas mais ou menos consideráveis de verdade que lhe são oferecidas nos Livros Santos, as instruções, os ofícios e reuniões da Igreja, da seita, ou da escola filosófica em que foi edu­cada. Disto alimenta-se espiritualmente, ou, antes: a gra­ça de Deus, sob o envoltório dessas verdades, nutre e sal­va a alma”. A opinião de De Lugo — a qual apenas ex­prime a da teologia católica — é que todos esses germes de verdade espalhados nas seitas, escolas filosóficas e religiões as mais diversas, são pontos de inserção por onde a graça poderá penetrar e fazer do homem natural um homem novo, sobrenaturalizado na fé e na caridade. Por mais absoluta e intransigente que seja a Igreja no afirmar a pretensão de ser o verdadeiro corpo único do Cristo, não deixa de ter pontos de vista de extrema libe­ralidade com relação à maneira por que pode a graça de Cristo agir. Seu campo de ação é sem limites e tão infinito quanto o coração do próprio Deus.

A pretensão que tem a Igreja de ser a única arca de salvação, examinada à clara e radiante luz de sua fé na ação ilimitada da graça, espalhada no mundo inteiro, se nos revela em seu verdadeiro e profundo sentido: é que, em virtude da vontade formal do Cristo, ela é, no plano da Redenção, a instituição ordinária e moral destinada a conduzir e a distribuir a verdade e a caridade de Jesús na terra. Só a Igreja católica é o canal pelo qual a graça

“ 8) D e L u g o , de fid. disp. XIX, 7, 10; XX, 107, 194; F.

H e i 1 e r, üp. cit., p. 612.

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da salvação, manifestada no Cristo, corre neste mundo, com toda a sua força original, em toda a sua primitiva pureza e plenitude. Com toda a sua força original — por­que, enquanto as comunidades não-católicas tiram da Igreja católica o que possuem de verdade cristã primitiva e de graça, a Igreja católica, por si, o recebe, sem ne­nhum intermediário e em todo o seu frescor, do próprio Jesús, pois que é a comunidade dos discípulos da pri­meira hora, estendida no espaço e no tempo. Em toda a sua pureza — porque esse bem, que ela recebe do Cris­to, não o alterou, como esta ou aquela seita, pela mis­tura de novidades. Graças à série ininterrupta dos seus Bispos, ela o guardou tão puro e intacto como no momen­to em que lhe foi confiado pelo Cristo. Em toda a sua plenitude — porque toma como seu bem todas as ver­dades reveladas contidas na Bíblia e na Tradição, e não somente esta ou aquela pedra que lhe pareça preciosa. E’, pois, a instituição própria e ordinária da verdade e da graça de Jesús. O que, aliás, de maneira nenhuma ex- clue a existência de vias diferentes de salvação, nem a ação direta da graça sobre esta ou aquela alma, sem o intermediário da Igreja. Mas todas essas almas tocadas imediatamente pela graça de Jesús pertencem tambem à Igreja, pois que esta, como corpo do Cristo, é a unidade realizada de todos os que foram resgatados pelo Cristo. Não pertencem ao seu corpo visivel, sem dúvida, mas à sua alma espiritual, sobrenatural, a seu núcleo sobrenatu­ral. Jamais, com efeito, a graça opera nesta ou naquela alma em estado isolado. Opera sempre pela unidade de seu corpo. Em tal sentido, mesmo desses jrmãos separados do organismo exterior da Igreja, é verdadeiro dizer-se que se salvam, não fora da Igreja e contra ela, mas por ela!

Pode-se conceber, contudo, que verdadeiros cristãos pertencentes à ajma da Igreja estejam separados do seu corpo visível? De que modo se pode pertencer ao corpo do Cristo sem pertencer ao corpo da Igreja?

Para dar uma resposta satisfatória a esta dificuldade, é preciso passar do ponto de vista teológico e abstrato para o ponto de vista psicológico e concreto. Do ponto de vista puramente teológico, à luz do dogma das rela­ções íntimas, essenciais, entre o Cristo e a Igreja, não se pode senão reproduzir a condenação pronunciada pelo

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Concilio de Florença, contra os hereges e cismáticos, os judeus e os pagãos. Desde que eles se mantêm, volunta­riamente, fora da única Igreja de Cristo, estão, teologi­camente falando, fora da esfera dc ação da graça de Cristo e, pois, fora da salvação. Deste ponto de vista pu­ramente teológico é que devemos entender os severos anátemas lançados pela Igreja contra os hereges e cis­máticos, assim como a Encíclica, tão vivamente atacada, dc Pio X, sobre são Carlos Borromeu. A Igreja não visa as pessoas enquanto tais, mas, sim, enquanto represen­tam a idéia de uma contra-Igreja. Quando as idéias se opõem, e o erro luta com a verdade, o espírito do homem contra a revelação, não pode haver compromissos, não há complacências possíveis. Se Cristo houvesse neste caso ajeitado as coisas, não teria sido crucificado. Quando Cristo estigmatizava os fariseus, tratando-os de sepul­cros caiados e de raça de víboras, quando qualificava Herodes de raposa, era a austera seriedade da verdade que o fazia falar, e de maneira nenhuma o ódio contra os indivíduos; era o vivo sentimento de sua responsabilidade para com a verdade eterna que lhe ditava expressões tão fortes contra o erro e seus representantes. Cessar esta

luta pela verdade, fôra perder todo o vigor espiritual, toda a força de carater e renegar a Deus. A intransigência dogmática é um dever moral, o dever que impõe a ver­dade e a lealdade absolutas.

Quando não se trata mais de luta de idéias contra idéias, mas, sim, de homens de carne e osso, quando se trata de apreciar estes ou aqueles não-católicos, o teó­logo cede o lugar ao psicólogo, o homem do dogma ao homem das almas. Observa então que o homem, em sua vida real, não é senão raramente a expressão viva e com­pleta de uma idéia, que o conjunto de suas idéias e de sua vida moral é por demais rico e coijiplexo para que se o possa traduzir numa fórmula. Em outros termos: o herege, o judeu, o pagão puros não existem. Há somente homens de carne e osso cuja atitude fundamental é influen­ciada ou dominada por idéias errôneas. Por isto, a Igreja distingue expressamente entre hereges “formais” e here­ges “materiais", segundo rejeitam a Igreja e seu dogma explicitamente e em plena conciência, ou apenas por falta de suficiente conhecimento, originado, quer de prejuízos,

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quer de uma educação hostil à Igreja. Santo Agosti­nho (9) não quer que se trate de herege àquele que sim­plesmente nasceu de pais hereges, contanto que simples e puramente procure a verdade, sem nenhuma orgulhosa saficiência, sem fechar a aJma, erguendo-se contra a luz. Em presença de tais homens, lembra-se a Igreja de que Cristo, Condenando embora tão severamente os fariseus em geral, não condenou as pessoas, e trocou com Ni- codemos palavras graves e amigas, e aceitou participar da mesa de Simão, o fariseu. A palavra de santo Agos­tinho: “Amai os homens, exterminai o erro”, continua a ser a palavra de ordem, quando se trata das almas.

Não houve, porém, na idade média, processo de he­reges, não se queimaram hereges?

Observemos, antes do mais, que tal não aconteceu ape­nas nos paises católicos. O próprio Calvino mandou quei­mar o médico Miguel Servet.-Contra os anabatistas empre­garam os luteranos, sobretudo na Turingia e em Saxe, a pena de morte. Segundo o teólogo protestante Walter Kcehler (10), o próprio Lutero, depois de 1530, conside­rava legítima a pena de morte contra a heresia. O fato de, nas comunidades não católicas, a perseguição aos he­reges ter sido reconhecida como legítima e efetivamente aplicada, bastaria a provar que ela não é, de maneira essencial, própria ao catolicismo. Esta doutrina não vem, pois, da sua pretensão de ser a Igreja única em que se possa alcançar a salvação.

Parece, antes, provir diretamente da concepção bizan- tira do Estado na idade média. Todo atentado contra a unidade da fé era considerado, então, como um crime

9) S t o. A g o s t in h o , Ep. 43, 1, 1.10) W. K œ h I e r, Reformation und Ketzerprozess (A Refor­

ma e o processo dos hereges), 1900, p. 36; cf. P. W o p p l e r , Die Stellung Kursachsens und des Landgrafen Philipp von Hes- sen zur Tauferbewegung (A posição da Saxe eleitoral e do Land­grave Ph. de H. relativamente aos anabatistas), 1910.

K. S e 11, Katholizismus und Protestantismus in Geschichte, Re­ligion, Politik und Kuttur (Catolicismo e protestantismo, na His­tória, na Religião, na Política e na Civilização), 1908, págs. 151, 197.

Sobre o conjunto da questão, sobretudo do ponto de vista his­tórico, ver J. G u i r a u d, A Inquisição, Paris, 1929. — Va c a n - d a r d, L’Inquisition, estudo histórico e crítico sobre o poder co­ercitivo da Igreja. Paris, 1907.

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público contra a unidade e a segurança do Estado, crime que devia, por isto mesmo, ser castigado dc acordo com os meios de justiça, assaz primitivos e bárbaros, da época.

A esta razão política se deve acrescentar uma consi­deração tirada da história das idéias. Para o homem da idade média, a fé religiosa penetrava e dominava a vida toda. Religião e Moral eram inseparaveis. Toda defecção da fé católica aparecia como péssima ação moral, espé­cie de crime contra as almas e contra Deus, mais grave do que um parricídio. De outro lado, ele era considerado exclusivamente do ponto de vista objetivo e lógico, e de maneira nenhuma sob o ponto de vista subjetivo e concreto. Muito pouco preocupavam os espíritos as condições psi­cológicas que permitem a uma alma chegar ao conhe­cimento da verdade. Moviam-se todos dentro da oposição dialética das idéias, que são sempre nitidamente delimi­tadas por um sim ou um não, sem compreender suficien­temente que o homem real, que a vida não se manifestam em nítidas antíteses de sim e não, de verdade e de erro, de fé e infidelidade, de virtude e de vício, mas, sim, nu­ma infinidade de matizes e graus intermediários; que, re­lativamente ao homem real, não é só a força lógica da verdade que entra em conta, mas, sobretudo, a sua na­tureza moral e as disposições de alma nas quais ele re­cebe a verdade. Não se achavam os olhares suficientemen­te exercitados para discernir essa rica complexidade de es­tados de alma. Em presença da negação de uma verdade que parecia evidente, eram todos levados a supor pura e simplesmente a má-fé e a empregar os correspondentes castigos, mesmo quando de fato a alma se achasse em estado de ignorância invencível com relação à verdade. Estava no espírito da meia-idade essa mentalidade sim­plista e puramente lógica. Faltava-lhe por inteiro o senso da complexidade e dos matizes da vida, da história in­terior e exterior. Tal atitude se não poderia modificar senão com o espírito do tempo. Não é, pois, ao catoli­cismo em si mesmo, porém à política e à mentalidade da idade média que se devem imputar a Inquisição e os cas­tigos temporais contra os hereges.

Com a idade média e a sua mentalidade insensivel­mente desaparecem as perseguições por crime de heresia. O novo código expressamente proíbe o emprego da vio­

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lência em matéria de fé. Desapareceu a grande fdéia de um só imperador e um só império. Os professores da psicologia e da história fizeram com que os teólogos não falassem tão facilmente de má vontade a propósito de he­reges. Começam a discernir melhor as mil e uma circuns­tâncias que podem explicar o erro invencivel. Em sua alo­cução de 9 de dezembro de 1854, dizia Pio IX: “E’ in­contestável que o que não conhece a verdadeira religião não é culpado aos olhos de Deus, enquanto a sua igno­rância permanece invencivel. Quem teria a pretensão de poder delimitar as fronteiras dessa ignorância em meio de tantas diferenças de povos, paises, mentalidades e ou­tras mais circunstâncias! Quando um dia, libertos dos la­ços do corpo, virmos Deus tal qual é, reconheceremos então qltão admiravelmente se conciliam e misericórdia e a justiça divinas”. A pretensão que tem a Igreja de ser a instituição exclusiva da salvação não impede, pois, de maneira nenhuma, a justa e benévola apreciação das condições subjetivas e das circunstâncias em meio das quais pode nascer uma heresia. Condenar uma heresia nem sempre é, da parte da Igreja, condenar os hereges. Há uma prova notável dessa largueza de espírito e de coração dos católicos nesta frase, dita sem rodeios ao editor luterano Frederico Perthes pelo célebre Redentorista Clemente Hofbauer, a respeito da origem da Reforma protestante: “A separação da Igreja se produziu porque os alemães sentiam — e sentem ainda — necessidade de uma vida religiosa!” (11). Hofbauer, fora de dúvida, era um católico convicto, que condenava a heresia como pés­sima ação moral e como violência praticada contra o cor­po do Cristo. Sabia tambem perfeitamente que as cau­sas que desencadearam a Reforma não eram todas de ordem religiosa. Nada disto o impedia de apreciar como convinha o profundo valor dos esforços religiosos que em boa parte contribuíram para o sucesso da Reforma. O fato de ter sido Hofbauer canonizado é uma prova de que a Igreja não desaprovava sua opinião, vendo nela simples-

11) H o f e r, Cl. M. Hofbauer, ein Lcbensbild (Vida de Cl. M. Hofb.), 1921, p. 384; cf. tambem a este respeito o juizo mo- dernissimo de S. Pedro Canísio sobre os protestantes de seu tempo (B r a u n s b e r g e r, T. c. epistulae et acta VIII, 1923, p. 131).

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mente a aplicação a um caso particular do que ela mes­ma afirmou sempre a respeito da possibilidade de um erro invencível, isto é, da boa fé entre hereges.

Precisamos ter era conta todas e9eas considerações se quisermos, em verdade, compreender o adágio: “Fora da Igreja não há salvação”. Sem dúvida, há lima só Igreja que constitue o corpo do Cristç e fora da qual a salvação não é possiveí. Em si mesma e objetivamente, ela é a via normal da salvação, a fonte única e exclusiva de luz por onde correm através do nosso mundo a luz e a graça de Cristo. Essa fonte, porém, conduz, em sentido bem ver­dadeiro e bem profundo, suas águas benéficas mesmo aos que não a conhecem, mesmo aos que a negam e comba­tem, contanto que estejam de boa fé e procurem, sem orgulhosa suficiência, simples e sinceramente a verdade. E’ bem do pão católico que eles se nutrem, embora não seja a Igreja que por eles distribua esse pão. E, nutrin­do-se desse pão, eles se inserem, sem que o saibam ou queiram explicitamente, no núcleo sobrenatural da Igre­ja. Pertencem à alma da Igreja, mesmo quando exterior­mente se acham dela separados.

A união essencial com essa Igreja, para o não católico de boa vontade, já se acha realizada. Ele não a vê, mas ela existe invisível, misteriosa. À medida, aliás, em que ele crescer na fé e no amor, mais perto estará de perce­ber essa união. São muitos os que já a viram. AAaior nú­mero ainda será o dos que um dia a verão, sobretudo onde o protestantismo guarda ainda a fé no Cristo, Ho- mem-Deus. E’ um ponto de partida para a reunião à Igreja católica. Precisamente porque a essencial união de tantos não-católicos com a Igreja de fato já se realizou de maneira invisível, estamos persuadidos de que essa unidade espiritual acabará por florescer em toda a sua beleza, tornando-se visivel. Quanto mais todos nós nos esforçarmos no sentido de desenvolver, em nós, sem re­servas, o espírito do Cristo, tão mais seguramente apres­saremos esse momento da graça em que os véus tomba­rão de nossos olhos e os prejuizos, os malentendidos, os rancores desaparecerão, e em que, como outrora, frater­nalmente nos daremos as mãos:

Um só Deus. — Um só Cristo. — Um só Pastor. — Um só Rebanho.

1 7 0 C a p . V l l l . F o r a d a Ig re ja nã o !iá s a lv a ç ã o

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C a p í t u l o IX

A ação santificante da Igreja pelos Sacramentos

“Cristo amou a Igreja e se en­tregou por ela, afim de purificá-la e santificá-la pelo banho salutar na palavra de vida” (Ef 5. 25, 26).

O fim último da Igreja é o estabelecimento do reino de Deus na terra, para a santificação dos homens. São Paulo descreveu-o assim: “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, afim de santificá-la, depois de a haver purificado na água batismal, com a palavra de vida, para que ela aparecesse diante dele, essa Igreja gloriosa, sem mancha, sem ruga, sein nada de semelhante a isto, po­rém santa e imaculada” (Ef 5, 25).

Este ideal não poderá jamais realizar-se completamen­te na Igreja da terra. Pode-se-lhe aplicar o que Nosso Se­nhor dizia a seus discípulos: “Sois puros, mas não to­dos” (Jo 13, 10). O Senhor o havia predito assaz cla­ramente ao anunciar que haveria joio em meio do trigo, peixes de má qualidade entre os bons, e que era necessá­rio que os escândalos se dessem. Enquanto a Igreja es­tiver à espera, aqui em baixo, da volta de Jesús, não se contentará com dizer a Deus: Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino! Ser-Ihe-á preciso im­plorar sempre: “Perdoai-nos as nossas dívidas, e não nos deixeis cair em tentação!”

Mas se a Igreja aqui de baixo não pode ser chamada uma Igreja de verdadeiros santos — por isto mesmo o Novo Testamento evita falar neste sentido de uma “ Igreja santa”, pura e simplesmente — toda a sua natureza de Corpo do Cristo a impele a tirar os homens, todos os ho­mens, por uma ação lenta, mas perseverante, do seu ego­centrismo natural, afim de fazer deles homens novos, fi­lhos de Deus, “concidadãos dos santos e membros da fa-

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milia dc Deus (Ef 2, 19), um “sacerdócio real, um povo santo” (1 Pd 2, 9). Esta missão essencial vale à Igreja o título glorioso, que encontramos já nos Padres apos­tólicos e no Símbolo dos Apóstolos: a “Santa Igreja”.

Nesta conferência e na seguinte, vamos responder à per­gunta: “Por que meios testemunha a Igreja católica que é a Igreja santa? Em que reside a virtude santificante de sua mensagem? Se, de fato, segundo a palavra do Após­tolo (1 Tm 1, 5), a caridade é o fim de toda prédica, a caridade que “vem de um coração puro, de uma con- ciência limpa e de uma fé sincera”, mostra ser, efetiva­mente, a Igreja, no seu ensinamento e no seu culto, a grande escola dessa caridade, numa palavra, a institui­ção da salvação no sentido preciso e completo do vo­cábulo?

Para podermos, em verdade, apreciar a virtude san­tificante da Igreja, precisamos antes de tudo mais saber o que ela ensina a respeito da essência e o destino do homem regenerado, do homem santo, vale dizer: a sua doutrina sobre a justificação e a santificação.

Repousa esta doutrina sobre a idéia de que o homem não é chamado a um fim simplesmente natural, à sim­ples perfeição do seu ser natural, ao pleno desenvolvi­mento de suas forças e faculdades naturais, mas, sim, a um fim sobrenatural, quer dizer, a uma elevação do seu próprio ser que ultrapassa todas as faculdades e apti­dões criadas, a ser o filho de Deus, a participar da vida divina. Esta a idéia fundamental da jubilosa mensagem cristã. “A todos quantos ele recebeu, deu o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12). “Meus filhos que­

ridos, agora pertencemos a Deus, e o que seremos um dia ainda não aparece. Sabemos, contudo, que lhe seremos semelhantes, quando ele aparecer” (I Jo 3, 2).

Tal semelhança consiste, segundo a epístola de são Pe­dro, num enriquecimento, numa plenitude, num enfarta- mento inteiramente gratuitos de nosso ser pelas forças de vida divina e santa: “Participaremos da natureza di­vina” (2 Pd 4). “Participamos de sua grandeza sobera­na” (Hb 12, 10). O fim último do homem não consiste simplesmente na plena realização da humanidade nele, mas, sim, numa espécie de supra-humanidade, numa ele­vação, num erguimento do seu ser que ultrapassa essen­

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cialmente as forças criadas e o transporta para uma nova esfera de ser e de vida, para a própria vida de Deus. Deus se apresenta, tão claramente quanto possivel, como o Ser absoluto, a personalidade que verdadeiramente se pos- sue, que se subtrai a toda dependência com relação ao mundo, comunicando-se-nos pessoalmente, como uma pes­soa a outra pessoa. Apresenta-se como a Bondade abso­luta ligando-se a nós como um amigo ao seu amigo, me­lhor ainda, como um pai ao filho, pois que, pela força do seu amor, somos introduzidos na sua família e temos o direito de dizer: Abba, Pai. A obra de formação da Igreja não poderá, pois, limitar-se a produzir homens, su­periores que sejam. Não poderá satisfazer-se com uma cultura humana. O ideal da formação, para a Igreja, é a sobrenaturalização, a divinização ( Oeionoírjoiç). O surto

no sentido de elevar-se acima de si mesmo, para o me­lhor, o superior; a marcha no sentido do que há de maior no céu e na terra; o movimento no sentido de penetrar as profundidades insondáveis do mistério de Deus, assim como o amor heróico, do incompreensível, do inapreensivel, do infinito — tudo isto é essencial à moral católica. Na vida de cada cristão se reproduz, em certo sentido, pela graça, o que naturalmente, e de uma vez por todas, no Cristo se cumpriu: a incarnação de Deus no homem.

Esta incarnação, esta elevação do homem à plenitude de vida de Deus, não pode ser obra só do homem, nem pode ser merecida por nenhum esforço humano; c obra só de Deus. Deus se dá a quem quer dar-se, por pura comiseração e livre amor. E’ dogma católico que não po­derá haver nenhum movimento espontâneo do homem pa­ra Deus, nenhum bom pensamento, ou decisão generosa, ou sentimento puro, que não sejam desencadeados e man­tidos pela graça de Deus. O mesmo dogma ensina que o estabelecimeneo propriamente dito da nova vida na al­ma, o estado de comunhão direta de vida e de amor com Deus — a que os teólogos chamam a graça santifican- te — é produzido na alma só por Deus sem nenhum méri­to da parte do homem. E’ o só amor eterno, espécie de surdimento misterioso, sobrenatural, das forças divinas, no homem, que nos faz filhos de Deus.

O filho de Deus, o santo, no sentido da Igreja, é es- cialmente uma criação da graça, um filho do eterno Amor.

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E como é da essência do Cristo, do cristianismo em sua qualidade de incarnação do divino, que a caridade e a graça de Deus sejam trazidas ao homem — ser sensí­vel — envoltas em signos visiveis, sensíveis, a primeira e mais excelente tarefa da Igreja consiste na distribui­ção da graça do Cristo por intermédio dos sacramentos, tendo por fim a formação do cristão. Os sete sacramen­tos são a forma determinada por Deus, sob a qual o ho­mem, de ordinário (ordinário modo), experimenta a ação da graça do Cristo, a elevação do seu ser à corrente do amor e da vida divina. — Fizemos notar, na conferência precedente, que isto não exclue outras vias independen­tes, que pode seguir a graça. — De outro lado, e é nisto, principalmente, que a doutrina católica da justificação difere da doutrina luterana ortodoxa, a coisa não se pas­sa como se o homem, tal uma pedra ou um bloco inerte, fosse puramente passivo à ação da graça. Não ensina a doutrina católica do pecado original que as forças reli­giosas e morais naturais do homem tenham sido destruí­das a ponto de, segundo o formulário luterano, “não lhe ter ficado a menor centelha de forças espirituais para o levar ao conhecimento da verdade e à prática do bem. As forças religiosas e morais do homem se debilitaram não em si mesmas, porém somente na sua atividade, no sentido de que, pelo pecado original, se desviaram do seu fim sobrenatural e se orientaram em direção errônea. A graça, vale dizer, a eterna caridade, tombando sobre o homem, pode restituir a essas forças sua orientação sobre­natural primitiva, e, por isto mesmo, desembaraçá-las, fa­zê-las livres. A graça não é apenas a misericórdia que per­doa. Não é uma espécie de brilhante manto de ouro a envolver o cadaver do homem. Segundo a doutrina cató­lica, a graça é uma força vital que excita as potências da alma, sua inteligência, sua vontade, seus sentimentos, e lhes dá uma noção superior, inflama-as de ardor novo, comunica-lhes nova aptidão para a verdade, um temor novo da majestade de Deus e de sua justiça, uma nova paixão pela santidade e pela bondade inesgotável. Tra­balhando o pecador, estimulando-o, como por um agui­lhão invisível, para impelí-lo a uma vida mais alta, a gra­ça nele produz essa disposição de fé, temor e confiança que prepara, do lado do homem, a justificação. Quanto

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à justificação que vem em consequência dos seus atos, é obra só de Deus. No sacramento do batismo ou da peni­tência, ao suplicante apelo do pecador penitente, Deus responde pelo desejo do amor que perdoa: Eu te batizo, eu te perdôo.

Mas — e ainda aqui aparece o carater particular, o di­namismo da doutrina católica da justificação — não se contenta Deus com perdoar. Ao mesmo tempo que per­doa, santifica. A santificação não se limita a cobrir os pecados e a aplicar de maneira puramente exterior a “jus­tiça” do Cristo; comunica uma verdadeira justiça inte­rior, um amor novo que penetra e transforma o homem todo inteiro. E' uma santificação. Justificação e santifica­ção não são coisas distintas, como se a santificação fos­se, acaso, um fruto singular da justificação. A palavra divina de perdão e justificação é uma palavra todo-pode- rosa que cria um homem novo. Não se limita a perdoar o pecador, santifica-o interiormente; e só mesmo o perdoa porque já antes o santificou. A primeira coisa que a misericórdia de Deus opera no pecador consiste em exci­tar no mesmo essa vida nova, esse amor novo — aquilo a que os teólogos chamam “a infusão da caridade” (infusio caritatis) — ern fazer surdir nele esse sentimento novo da filiação divina que o leva a dizer: Abba, Pai. Segundo o ensinamento católico, a graça da justificação não se limi­ta a estabelecer novas relações com Deus; inaugura, além disso, uma nova maneira de ser. Cria um coração novo, um amor novo.

Não é por acaso ou por processo mágico que esse novo coração, esse novo estado de justiça e caridade se pro­duz no homem. O homem já está inteiramente disposto a receber essa nova vida por atos preparatórios de fé, te­mor e caridade, que produziu sob a influência da graça. Sua alma reclama o Senhor. Suspira por ele como o cervo sedento pela fonte de água viva. Deus responde a este apelo. Debruça-se sobre a alma e nela derrama seu amor novo. A graça de justificação tem, pois, seus fundamen­tos psicológicos nos atos preparatórios feitos sob a in­fluência da graça pelo que é justificado. Tambem não vem do exterior, como um mágico estrangeiro. Deus está em nós como a força criadora primeira de todo ser. E’- nos mais próximo do que o somos de nós mesmos. E’ o

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fundo primário no qual ontologiCamente se enraiza nosso ser. E’ desse fundo de vida, tão interior a nós, que sobe em nós o novo impulso de vida. E’ como o amor eterno, in­finito, que sobre mim desborda. E’ o novo amor, a nova, grande, forte vontade, a nova plenitude de Deus, a santa caridade. Não é minha e, no entanto, inteiramente me per­tence. Porque vem desse fundo primário, de que eu pró­prio venho e me sustem. Esta expressão: infusio caritatis (infusão da caridade) significa: a nova caridade corre em mim de um fundo primeiro que não sou eu. Esse fun­do, porém, não está longe de mim, ele me é interior, visto que é nele que mergulha suas raizes o meu ser. Para que se faça idéia justa do ser de Deus, é preciso dizer que só Deus é o fundo de que irrompe toda força e toda gra­ça e que, sendo assim, o começo da vida nova nasce, não de mim, mas de Deus. E’ o que indica o vocábulo “infusão” (do latim, infundere = derramar em). — Quem se recusa a reconhecer-lhe o conteúdo teológico, fica pre­so àquilo que se pode chamar o psicologismo teológico. Não chega a uma existência de Deus distinta da sua pró­pria pessoa humana. Permanece fechado em seu eu e, por fim, é forçado a considerar esse eu como o funda­mento do mundo, no sentido do monismo.

O ato da justificação consiste, como ficou dito, na pro­dução criadora do homem novo, do homem regenerado. Esse homem novo, porém, se parece à criancinha que só pode tomar leite, com exclusão de qualquer alimento só­lido. A caridade, esse novo princípio de vida nele infun­dido pela graça santificante, destina-se a crescer até ao pleno desenvolvimento do Cristo.

Tal possibilidade de crescimento da graça que justi­fica nos fornece uma terceira característica diferenciação da doutrina católica. “Quem é justo se torne mais justo ainda; quem é santo, mais santo ainda se torne” (Apoc 22, 11). Esta caridade, infusa, plantada na alma, é co­mo um principio de ser sobrenatural que sem cessar atrai a si as forças e energias da alma, penetra e domina toda a vida religiosa e moral, todo o ímpeto espiritual do ho­mem e, assim, por si mesmo, cresce em força e profundi­dade. E’ neste sentido que os teólogos falam de um au­mento da graça santificante. Tudo o que o homem fizer doravante, em virtude desse novo princípio de vida da

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caridade, não mais será profano, natural, puramente hu­mano, mas, sim, verdadeiramente sobrenatural. Penetrado do sopro da caridade do Cristo, tudo o que ele faz é me­ritório para a vida eterna. Esta é ainda uma consequên­cia da concepção católica da justificação. Sendo esta Uma verdadeira santificação produzida por Deus, uma infu­são da caridade —• e vindo esta caridade, não de mkn, mas de Deus — tudo o que é produzido por ela traz a marca do Cristo, é, de qualquer maneira, divino, e, pois, meritório.

O católico, a exemplo de são Paulo, rejeita nitidamente a idéia de que o homem possa por suas próprias forças naturais fazer seja o que for de meritório relativamente à salvação. Não existe mérito natural, mas há um mérito pela graça. A potência criadora, vivificante, da justifica­ção manifesta-se penetrando da caridade sobrenatural, di­vina, nossas energias naturais religiosas e morais, tornan­do-as assim fecundas para a vida eterna. A vida eterna é, pois, segundo a expressão de são Paulo, ao mesmo tempo, uma recompensa e um salário. Dizendo, porém, salário e recompensa, digo tambem graça e virtude do Cristo. Porque só ela é que comunica, de maneira deci­siva, à minha ação, o merecimento em face de Deus. E’ a graça do Cristo, e não a minha própria força, que, por si mesma, opera e merece recompensa, naquilo que faço. Sendo assim, não há lugar para o orgulho que em si mesmo se compraz. Onde está a graça do Cristo, está a humildade do cristão. “Quando tiverdes feito todo o vos­so dever, dizei: somos servos inúteis”. O mérito adqui­rido pela graça não somente não exclue, mas implica a humildade.

Outra observação tornará ainda mais evidente este ponto. Da doutrina de que a justificação é uma “infusão da caridade”, resulta, em quarto lugar, que ela pode per­der-se, e que a palavra de são Paulo: "Fazei vossa sal­vação com temor e tremor” se aplica mesmo aos que fo­ram justificados.

O justo tem bem a certeza da fé, mas não a de sua sal­vação: não sabe, de maneira absoluta, se será sempre digno de amor ou de ódio. Pode, sem dúvida, depois de se haver examinado seriamente, ter a certeza moral sub­jetiva de que nesse momento o anima o espírito novo da

A essência — 12

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caridade c de que é, pois, filho de Deus. Mas, sem uma revelação particular, não pode, nem ter a certeza abso­luta do seu estado de graça atual, nem a garantia abso­luta de que, no futuro, não lhe acontecerá perder, pelo abuso de sua liberdade, por um pecado pessoal, a ami­zade de Deus. Por isto, a sua vida de piedade, por mais elevada e generosa que seja, está ao abrigo do orgulho e de uma confiança temerária. Do fundo de sua alma, a humildade sobe, com a conciência vivíssima de estar entre as mãos do bom Deus e de ter de repetir sempre, a tre­mer, a oração do publicano: "Senhor, tende piedade de mim, pecador”. A Igreja é por vezes acusada de lançar as conciências na angústia com esta incerteza da salvação, a ponto de se haver tornado endêmica a doença do escrú­pulo no catolicismo (1). Esta censura é exagerada. Que haja, sobretudo no momento da puberdade, estados pa­tológicos que se alimentara, de preferência, de idéias re­ligiosas, é incontestável. São muitas vezes devidos a uma instrução religiosa deficiente ou à inhabilidade dos edu­cadores. Mas não conhece tambem o protestantismo des­sas almas atormentadas? Não se queixava Goethe dos escrúpulos religiosos de sua juventude? Na maioria dos casos, tais almas não são atormentadas porque esta ou

- aquela verdade da fé as perturba; mas, sim, são per­turbadas por esta ou aquela verdade de fé em virtude de sua natureza inquieta. São casos de debilidade fisio­lógica ou mental que as idéias religiosas revelam, mas não produzem. Caracterizam-se, em geral, de um lado, por uma falta de coragem, de confiança na vida, e, de outro lado, por uma preocupação excessiva com a sua própria pessoa. Nos casos leves, o médico da alma pode dar-lhes remédio; nos casos graves, é preciso recorrer a um especialista de doenças nervosas. A direção das al­mas, entre os católicos, insiste tanto no sentido de pô- las em guarda contra uma confiança em Deus que atinja as raias da temeridade, quanto no sentido de atrair-lhes a atenção para a riqueza incomparavel da bondade de Deus: porque ele é bom (quia benignus est).

Resumamos. O que caracteriza a doutrina católica da justificação é, de uma parte, o vivo relevo que ela dá

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1) F. H e i l er , Op. cit., p. 261 sg.

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à gratuidade da vida nova, da caridade, e, de outra par­te, o apelo que faz, de maneira bem explícita, às forças religiosas e morais do homem para que colaborem com a graça. O carater gratuito da justificação aparece nos sacramentos da Igreja. A palavra que verdadeiramente produz a graça, não é o homem que a pronuncia, porém Deus, na aplicação do signo sensivel dos sacramentos. De outro lado, a graça é algo de dinâmico que congrega todas as forças religiosas e morais do homem para a obra da salvação. Desta forma, ao fator divino do sa­cramento se acrescenta o fator moral humano, a ação pes­soal, libertada e dominada pela graça. Na obra de salva­ção se unem Deus e o homem, a graça e a natureza, o sacramento e a ação moral. Na obra da justificação re­side o mistério fundamental do cristianismo, a saber, a incarnação do divino no humano. Os atos de quem vive em estado de graça não são puramente humanos, mas, sim, uma espécie de composto divino-humano.

Vê-se, por aí, por que motivo a Igreja, para santificar os homens, parece agir em duas direções diferentes: de um lado, na direção mística, pelos sacramentos; de outro lado, na direção moral e ascética, pelo esforço pessoal. Na realidade, essas direções não são, nem paralelas, nem, com mais forte razão, opostas; elas se congregam e se interpenetram. Não há, na Igreja, vida normal de san­tidade que não seja alimentada pelos sacramentos, e tam­bém não há recepção de sacramentos que se não venha inserir num esforço moral e ascético em direção da san­tidade. Será importante não o esquecermos quando ti­vermos de assimilar, a seguir, as forças e meios de san­tificação de que a Igreja dispõe. Em correspondência com a doutrina da justificação, encontrá-los-emos, de um lado, no domínio religioso dos sacramentos, de outro la­do, no domínio moral da ascética. Comecemos pelos sa­cramentos.

Já tivemos ocasião de mostrar como os sete sacramen­

tos da Igreja abarcam a vida humana em suas diversas necessidades, como se destinam a santificar as circuns­

tâncias mais importantes e mais delicadas da vida: a al­

ma, cheia de alegria sobrenatural na Confirmação e na Santa Eucaristia, a alma abatida pelo pecado, no Batis-

18*

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mo e na Penitência; a alma carregada de dor e sacudida pelo pavor da morte, na Extrema-Unção.

A própria vida social é santificada pelos sacramentos: a sociedade civil, pelo sacramento do Matrimônio, a so­ciedade religiosa, pelo sacramento da Ordem.

O que dá à liturgia dos sacramentos seu valor religioso e moral é, antes de tudo, a face real e objetiva dos sacra­mentos. Para os católicos, o sacramento não se reduz a um símbolo vazio ou a utn simples signo da graça obti­da pela fé de quem o recebe. Expressão sensível da von­tade de Jesús, signo instituído pelo Cristo, ele dá por si mesmo, pelo só fato de ser administrado validamente, a segurança da presença do divino, da graça produzida. E’ um dos pontos principais da doutrina católica. “Um sa­cramento deve sua existência, não à fé, mas ao cumpri­mento normal do rito". Pelos sacramentos o divino toma uma existência sensivel: torna-se um valor sobrenatural atualmente perceptível. O católico frue, assim, do divino imediatamente, não imediata e objetivamente quanto a criança frue do amor de sua mãe.

O Santo Sacrifício da Missa não é uma simples re­cordação simbólica do sacrifício da cruz do Cristo. O Sacrifício do Gólgota é uma grandeza real, intemporal, colocada num presente imediato, independentemente do espaço e do tempo. O mesmo Jesús que na cruz morreu alí está. A assembléia inteira se une à vontade que ele tem de sacrificar-se, e, por meio de Jesús presente, se oferece ao Pai celeste como uma hóstia viva. Assim, a santa Mis­sa é uma realidade comovente em que revive a realidade do Gólgota. Uma corrente de arrependimento e penitên­cia, de amor e piedade, de espírito de sacrifício e gene­rosa coragem, passa do altar para a comunidade. Não são palavras apenas. Milhares de católicos sorvem todos os dias nesta reprodução sacramental do sacrifício da cruz de Jesús a força e a alegria para os pequenos e grandes sa­crifícios da vida quotidiana. Foi alí, ao pé do altar, que brotaram os santos católicos, esses heróis do devotamento pelo Cristo e seus irmãos. Em sua teologia prática (2),

2) F. N i e b e r g a l l , Praktische Theotogie, 1919, p. 41. — Encontrar-se-á numa obra de H. Rost uma série de apreciações protestantes sobre os sacramentos e outros meios de santifica-

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Frederico Niebergall, professor de teologia protestante, chama a atenção para essa dignidade incomparavel do sacrifício da missa: “Não faríamos jamais idéia bastante alta da missa romana como possante meio de vida reli­giosa”. Heiler deplora vivamente que os reformadores, re­novando o serviço divino em suas assembléias, “não te­nham podido acender um foco de vida religiosa e de ora­ção tão íntimo e ardente como o dos católicos com a li­turgia de sua missa”. "Observei longamente, com atenção e sem prejuizos, a vida de oração nas duas Igrejas — a católica e a protestante — e sempre tive a impressão, ex­ceção feita de algumas seitas e reuniões muito restritas, de que na missa católica se reza mais e com maior fervor do que no serviço divino evangélico. Quando penso nis­to, não posso deixar de recordar uma expressão bastante singular de Vellhausen. O ofício divino evangélico, segun­do ele, seria, substancialmente, o ofício católico, mas ao qual se tivesse arrancado o coração (3). Esse coração, no pensamento de Vellhausen e de Heiler, é a realidade vivida do mistério católico, a certeza de que o divino alí está, realmente e de verdade, no mundo do espaço e do tem­po e penetrando-lhes a alma.

A força primeira dessa realidade vivida, sua força pu- rificante, santificante, consolante, reconfortante, manifes- ta-se, segundo a santa Missa, sobretudo na recepção da Santa Eucaristia e da Confissão.

O católico que verdadeiramente tem fé não confia ape­nas em que Deus virá até ele. Sabe que Jesús está alí, tão real e verdadeiramente como outrora na Ceia ou no

ção da Igreja católica (Die Katholische Kirche nach Zeugnissen von Nichtkatholiken), 2‘ . ed., 1921, p. 136 e seg. — E K r e b s (Die Protestanten und wir — Os protestantes e nós — 1922) expõe os pontos essenciais que unem ou que dividem católicos e protestantes. Cf. tambem a conferência deste autor sobre Die religiöse Unruhe der Gegenwart und die katholische Kirche. A inquietude religiosa atual e a Igreja católica.

Sobre a face interior da vida e do culto católico, cf. a narra­tiva da sua conversão, de G e r t r u d e v on Z e r s c h w i t z ; Warum katholisch? (Por que, católica? — 1922); sobre Kultur- ivende und Katholizismus (A curva de nossa civilização e o ca­tolicismo) cf. a obra de M. P r b i l l a (1925).

3) F. H e i l e r , Das Wesen des Katholizismus (A essên­cia do catolicismo), 1920, p. 105.

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lago de Gcnesaré. Esta conciência da presença real faz com que nasça nele a gama toda das impressões religio­sas, desde a exclamação do centurião: “Senhor, não sou digno!” até o “Jesu, dulcis memória!” A santa Comunhão é um comércio vivo com Jesús presente, e, por consequên­cia, o princípio vital, em jato contínuo, da imitação de Jesús.

E’, como bem observa muito justamente Heiler (4), o ponto culminante da piedade católica. E’ aí que a vida de oração do católico atinge a essa profundidade, a esse calor, a essa força, que só conhecem os que as experimen­taram. A presença de Jesús não se limita, aliás, ao mo­mento da comunhão, dura tanto quanto as espécies sa­cramentais, meio visível de manifestar essa presença. Daí a possibilidade, que tem a vida religiosa e moral do cató­lico, de se manter e renovar, mesmo fora do serviço litúr- gico, em todas as igrejas e capelas em que o Santíssimo Sacramento é conservado. O que dá à casa de Deus esse encanto íntimo de piedade, não é o suave clarão vacilante, imagem da luz eterna, da pequena lâmpada que arde dian­te do tabernáculo, nem a seriedade evocativa das imagens ou estátuas de santos ao longo das paredes, nem a semi- obscuridade misteriosa da nave, nem o impressionante si­lêncio que aí reina. Tudo isto, sem dúvida, pode proteger e favorecer a piedade. O que o excita e o inflama é a fé viva na presença de Jesús. Alí, diante do tabernáculo, a alma católica passa as suas horas santas, alí ela percebe e re­cebe a vida no que ela tem de mais profundo, de mais divino, alí não é mais o tempo que fala, é a eternidade. Para refutar a frase de Heiler relativa ao sincretismo, isto é, ao carater compósito do catolicismo, amálgama de to­das as espécies de elementos estranhos, nada mais deci­sivo do que o que ele próprio escreveu sobre a devoção eu­carística nas igrejas católicas. “Quando observamos, diz ele, nas igrejas católicas esses homens rezando num reco­lhimento de contemplação, somos obrigados a reconhecer que, nessa igreja, o Espírito de Deus está verdadeiramen­te vivo. . . e quando comparamos o que se passa, deste ponto de vista, nas igrejas evangélicas, devemos reconhe­cer com tristeza que nada de semelhante encontramos” (5).

4) F. H e i l e r , Op. cit., p. 110.5) F. H e i l e r , Das IVes. des Katholiz., p. 110.

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No sacramento de penitência, não menos do que na Missa e na Eucaristia, a concepção católica dos sa­cramentos, isto é, a idéia da realidade sobrenatural ofe­recida sob as aparências do sacramento, manifesta o seu poder de renovação moral. A convicção profunda de que o padre recebe a confissão, não em seu próprio nome, mas em lugar de Deus, de que tudo o que ele liga ou desliga na terra, em nome de Jesús, será ligado ou des­ligado no céu, dá à confissão uma profunda seriedade, uma sinceridade absoluta, e uma força incomparavel. Em toda boa confissão, o sentimento da responsabilidade mo­ral, o surto para a pureza e a santidade, o desejo ardente de Deus e da paz do coração, alcançam o mais santo dos triunfos. A confissão foi, para milhões e milhões de ho­mens, a fonte de uma coragem e de uma confiança reno­vadas, o ponto de partida de uma orientação nova na vida. O velho mestre Goethe elogia o sentido profundo da confissão católica, e lamenta não haver podido, em sua juventude, esclarecer, por meio de uma confissão, os es­tranhos escrúpulos religiosos que experimentara (6). H a r n a c k não se teme de qualificar de “imperdoável loucura” o fato de o protestantismo “haver, por causa de alguns frutos pecos, arrancado inteiramente a árvore da confissão” (7). Acrescentemos que a “árvore" por si mesma pouco importaria se acaso não estivesse viva. A vida lhe vem do dogma católico, que afirma que, no sa­cramento da penitência, a palavra de perdão de Jesús não é simplesmente um férvido desejo, mas, sim, uma conso- ladora realidade.

Acontece, porém, que os frutos produzidos pelos sa­cramentos, na Igreja católica, não são devidos unicamen­te ao realismo que ela lhes atribue. A Igreja dá ainda prova, na sua maneira de oferecer aos fiéis esses sacra­mentos eficazes, de um senso psicológico notável.

Antes do mais, exige positivamente, de quem quer per­tencer ao número dos seus fiéis, que assista, pelo menos todos os domingos e dias santos de guarda, ao santo sa­crifício da Missa, para nele haurir o espírito de caridade

6) Dichtung li. Wahrheit, II. Teil, 7. Buch.7) A. H a r n a c k , Reden und Aufsätze (Discursos e arti­

gos), t. II, p. 249.

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e de sacrifício de que terá necessidade no correr da se­mana; e que, além disso, todo fiel, cuja conciência moral esteja suficientemente desperta, renove sua vida moral, pelo menos uma vez por ano, por uma boa confissão, e receba, no tempo da Páscoa, o corpo do Senhor. Tais prescrições positivas asseguram a todos os fiéis um míni­mo de vida religiosa e moral, de vida sobrenatural.

Melhor ainda do que pelos seus mandamentos positi­vos, sabe a Igreja desenvolver o penetrante influxo da re­cepção dos sacramentos, fazendo-os entrar, com enorme senso prático, no ritmo do tempo, da vida pessoal e so­cial e dos hábitos de cada um. Goethe escreveu: “No do­mínio das coisas religiosas e morais... o homem não gosta nunca de improvisar”. A Igreja o sabe. Por isto não espera que o homem venha por si mesmo ao mistério e tem o cuidado de colocá-lo no seio mesmo da vida, de ma­neira a que ele possa percebê-lo e observá-lo. Tal o sen­tido do ano litúrgico. A história inteira da Redenção — desde a esperança dos patriarcas e profetas, durante o ad­vento, passando pelo presepe de Natal e indo até à cruz, depois até à aleluia da Páscoa e às linguas de fogo de Pentecostes — é inserta na corrente do ano. Conforme os meses, as semanas e os dias, a mensagem da Igreja, em sua liturgia, se diversifica. Mostra ela, sem cessar, ao fiel, novas profundidades do mistério divino, novas manifesta­ções do amor e da graça do Cristo. Por esse meio, é o fiel constantemente arrancado à trivialidade da vida quo­tidiana, e constantemente enriquecido de impressões, pen­samentos e forças novas. Uma contínua corrente de vida ligando-o à Igreja se torna assim possivel. Os dias de

festa da Igreja, sobretudo, são dias de festa populares, no sentido mais nobre do vocábulo, um jubiloso agrade­cimento e uma verdadeira fruição diante do Altíssimo.

Mas tambem o resto do tempo é organizado tendo-se em

vista a vida da Igreja e dos seus mistérios, desde o Ange- lus da manhã até ao Angelus da tarde. Cada dia do ano

traz o nome de um santo; cada dia da semana é consa­

grado a uma devoção especial; a quinta-feira, por exem­plo, ao Santíssimo Sacramento; a sexta-feira, à Paixão

do Salvador; o sábado, à santíssima Virgem; os próprios meses têm o seu particular acento religioso: maio é o

184 C a p . I X . A a ç ã o s a n tific a n te da Ig r e ja pelos S a c ra m e n to s

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mês de Maria; junho, o do Sagrado Coração; outubro, a do santo Rosário; novembro, o dos mortos.

Assim como o tempo em geral, a vida pessoal do fiel, em seu ritmo interior, é igualmente penetrada pela mís­tica cristã dos sacramentos. Cada fiel tem seus dias pes­soais de festa para aproximar-se da mesa do Senhor; os diversos acontecimentos importantes de sua vida, alegres ou tristes, conduzem-no ao altar, quer se trate da missa de casamento ou de uma missa de defunto. Por ocasião das diversas circunstâncias ou preocupações da vida de cada um, realizam-se tríduos ou novenas. Da mesma forma, pa­ra penetrar de vida religiosa a vida social, encontramos, com a aprovação da Igreja, inumeráveis confrarias e agre­miações, altares, bandeiras, festas de confrarias nas quais a necessidade religiosa aspira manifestar-se de maneira es- pecialissima, pública e social, porém intima e elevada. Não se poderá, pois, dizer que o catolicismo é a religião que sobre-eleva todos os diversos momentos da vida? (8). De sua infinita riqueza, sabe ela tirar, conforme as circuns­tâncias, jóias e tesouros sempre novos qu% sem cessar, atraem e enriquecem os fiéis e lhes excitam constantemen­te o interesse. N i e b e r g a 11 (9) chama à Igreja “a mestra de alegria dos seus filhos’’. Uma jovialidade ino­cente, uma serenidade simples e piedosa parece estender- se sobre toda a vida da Igreja. A fonte dessa piedosa ale­gria está no tabernáculo; é a fé na presença benéfica do eterno amor na casa de Deus. Foi de tal piedosa alegria que toda & arte cristã renasceu. "A arte gótica só está no seu ambiente próprio alí onde ressoa a voz do sino chamando para a missa”, escreveu o pastor protestante L e c h l e r (10). E acrescenta com razão: “Sem a mis­sa católica, nem Rafael, nem Fra Angélico, nem Van Eyck, nem Holbein o moço, nem Lorenzo Ghiberti, Veit, Stoss ou Pedro Vischer teriam podido produzir as maravilho-

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8) E. K r e b s , Die Protestanten und wir. (Os protestantes e nós), 1922, p. 64.

9) Citado por H. R os t , Die katholische Kirche nach Zeugnis­sen von Nichtkatholiken (A Igreja católica segundo o testemu­nho dos não-católicos), 2V ed., 1921, p. 164.

10) K. L e c h l e r , Die Konfessionen in ihrem Verhältnis zu Christus (As diversas confissões com relação ao Cristo), 1877, p. 161.

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sas obras primas do seu pincel ou cinzel. Não teriam do­tado a comunidade de Deus na terra de semelhantes te­souros de santa beleza que ficaram sendo a jóia de todos os tempos". Não sei se estas relações da arte cristã com a Eucaristia, da catedral com o tabernáculo, são suficien­temente conhecidas. As igrejas católicas com sua riqueza ornamental são produto do mistério encarístico. São jatos de fé viva à presença de Jesús na santa Eucaristia. Onde essa fé não mais existe, os edifícios do culto perdem seu mais profundo sentido e a idéia criadora que os anima. Não passam de um soberbo corpo sem alma.

Haveria ainda muito a dizer para mostrar quanto a preocupação da santificação das almas pelos sacramen­tos, na Igreja, enche, não apenas o espaço, mas o tempo, desde os altares consagrados até aos sinos que ela benze; como, nos dias de Rogações, ela abençoa a campanha; como, na festa do S.S. Sacramento, conduz ela a santa Hóstia ao longo das ruas e estradas. A natureza inteira— as flores dos campos, a cera das abelhas, os grãos de trigo, o sal, e incenso, o ouro e as pedras preciosas, co­mo o simples linho — nada há que ela não empregue no serviço do Altíssimo, que ela não faça falar de Deus, em mil línguas diferentes. A natureza inteira, por meio dela, se torna um “Sursum Corda", um “Corações para o alto”, um “Louvai ao Senhor”. “Por toda parte ela faz

com que vejamos e sintamos Deus. Enche o mundo dos

fiéis do seu encanto e seu fulgor” (Niebergall). E alí

onde não há igreja, estão pelo menos os seus filhos. Er­

guem eles, com mão inhabil e tímida, mas com o fervor

de uma piedade sincera, nos limites dos campos, e à beira

dos caminhos da montanha, suas santas imagens, suas

estátuas e suas cruzes. Levam o clarão e a benção de Deus

aos píncaros que dominam assim como às torrentes que

espumam. Povo católico, terra católica! vale dizer: terra em que as estátuas da Madona juncam as margens da es­

trada, em que os sinos badalam o ângelus, em que os ho­

mens ainda se saudam dizendo: Louvado seja N. S. Jesús

Cristo!

Tentámos mostrar, em rápido resumo, a maneira por

que a Igreja executa, pelos seus sacramentos e sua li­

turgia, a tarefa da formação do cristão, do santo.

ta o C a p . I X . A a ção s a n tific a n te da Ig r e ja pelos S a c ra m e n to s

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A d a m , A essência d o C a to lic is m o 187

Acabámos de verificar que ela sabe oferecer Deus ao homem de maneira tão completa quanto satisfatória, tão fortemente realista quão friamente psicológica, e sabe fa­zer com que ele o veja de mil maneiras, mesmo em meio da sufocante poeira da vida quotidiana. Esta, no entanto, não é senão uma das faces da obra da santificação cristã. Na próxinva conferência mostraremos de que maneira a Igreja, de acordo com a sua doutrina da justificação, se desempenha da outra parte de sua tarefa, isto é, de que maneira, não somente oferece Deus ao homem, porém con­duz o homem a Deus.

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C a p i t u l o X

A ação educativa da IgrejaSantificai-vos na Vefdade. Vossapalavra é verdade (Jo 17, 17).

Segundo a doutrina católica da justificação, a missão de salvação confiada à Igreja não consiste somente em dar Deus ao homem, mas igualmente em conduzir o ho­mem a Deus, isto é, em promover, pela sua prédica e dis­ciplina, a educação da vontade moral do homem, afim de fortalecê-lo de cada vez mais no Cristo e na graça. Por esta forma, ao lado de sua ação propriamente sobre­natural, pelos sacramentos que conferem a graça, desen­volve a Igreja entre as almas uma ação moral educativa, seu esforço metódico por que “a árvore, plantada à beira das águas, dê frutos quando for tempo, e sua folhagem não caia” (SI 1, 3).

O que dá à missão educativa da Igreja sua particular eficácia é, em primeiro lugar, a autoridade com que ela fala em nome de Deus. Sem dúvida, as outras comunida­des cristãs anunciam tambem o Cristo e seu reino — e, de nossa parte, bendizemos a Deus porque o fazem — mas só a Igreja católica prega, a exemplo do seu Mestre— com autoridade, sicut potestatem habens. Pela suces­são dos Bispos, ela se prende, no espaço e no tempo, ao Cristo e seus apóstolos. Só ela pode dizer em verdade: é aqui que está o Cristo e que estão os apóstolos. E a uni­dade, que se manteve intacta, de sua fé e seu amor nos vale por um penhor de que essa união ao Cristo no tempo e no espaço é uma união com o seu espírito, o sopro do Es­pírito Santo. Nenhuma autoridade humana pode jamais insinuar-se ali onde só o Cristo fala. Sendo a única co­

munidade dos discípulos de Jesús extensa no espaço e no tempo, é tambem a única a poder dirigir-se aos ho­

mens e a poder aplicar-lhes a palavra de Jesús aos seus

discípulos: "Quem vos escuta, escuta-me; quem vos des-

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A d a m , A essência d o C a to lic is m o 139

preza, despreza-me, e quem me despreza, despreza Aque­le que me enviou” (Lc 10, 16). E’ o que explica o res­peito sincero e a confiança absoluta com que acolhe o fiel a palavra da Igreja. Não se descobrirá, nele, nenhum ecletismo, nenhuma tendência opinativa, nenhuma atitude de reserva ou de fuga. O Cristo e a Igreja são para ele uma só coisa. Ele atribue à prcdica da Igreja uma força obrigatória, um valor absoluto. Tem essa prédica um va­lor normativo, é uma lei, não, contudo, uma lei que se impusesse de fora como algo de estranho, imposto pela força de um senhor, e ao que devamos resignar-nos. Uma moralidade heteronômica, que se submeta a uma lei es­trangeira, considerada como tal, é coisa que não existe no catolicismo. Os teólogos recusam-se unanimemente a admitir qualquer atitude moral imposta pelo temor ou pela coação. O católico vê no ensinamento ordinário e extra­ordinário da Igreja a expressão da vontade de Deus. Sabe que a Igreja não cria as prescrições dogmáticas e morais: promulga-as, apenas, com autoridade, garantin- do-nos por esta forma o seu valor. A lei é uma exigência de Deus, exigência que não representa, aliás, a expres­são de uma vontade arbitrária — nenhum teólogo de va­lor, nem mesmo Duns Escoto — jamais entendeu neste sentido a lei divina — mas, sim, a manifestação da sabe­doria, da santidade e da bondade de Deus.

E’ o homem ideal que se desenha em prescrições de­terminadas, e homem tal como a sabedoria e o amor eter­nos quiseram realizar, o homem novo tal como o plano de Deus o exige. Estas prescrições não impõem um fardo, mas, sim, conferem um enriquecimento, uina plenitude, uma perfeição ao ser humano. Por isto, o fiel as aceita de todo o coração, e as observa livremente, moralmente, co­mo algo que lhe convém. Tornam-se elas a sua lei pes­soal, um ato de sua vontade livre, um ditame de sua pró­pria conciência moral. Em sua vida moral, o fiel católico não é nem heterônomo, nem autônomo, porém, sim, “teô- nomo", dado que sua conciência obedece a regras obje­tivas que Deus lhe deu a conhecer pela revelação. Con­tudo, a sua conciência continua a ser a única norma ou regra subjetiva de sua vida moral. Por isto, quando uma exigência da lei de Deus não se desenha claramente à sua conciência, ou quando esteja ele em erro invencivel, não

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fica sujeito o fiel à lei objetiva. Ele deve fazer o que sua conciência lhe apresenta como sendo a vontade de Deus, mesmo que sua conciência esteja objetivamente em erro. A autoridade de sua conciência é que decide em última instância em todas as questões de fé e de costumes e, pois, na de sua atitude religiosa e moral. E’ ela mesma que decide na questão de saber se pode jamais o cató­lico ser autorizado a recusar obediência à Igreja.

Como, neste ponto, a autoridade decisiva que a Igreja reconhece à conciência, e as relações da norma subjetiva da conciência com a norma objetiva da lei se apresenta mais nitidamente do que em qualquer outro lugar, vamos tratá-lo um pouco mais a fundo.

Tendo conciência de ser a mensageira infalível da ver­dade revelada e a única instituição fundada pelo Cristo para comunicar aos homens a graça da salvação, a Igreja não pode evidentemente admitir que os crentes se encon­trem “na mesma situação” que os que jamais tiveram fé. Não admite que um católico possa ter jamais “um justo motivo” de provisoriamente suspender o seu assentimento e de assim pôr em dúvida as verdades de fé já admitidas sob a autoridade da Igreja, até que a si mesmo se tenha podido cientificamente demonstrar sua credibilidade e ver­dade” (1). A atitude intelectual e moral do católico em presença do conjunto da fé e dos problemas que ela suscita é, pois, segundo o Concílio do Vatica­no, inteiramente diversa da de um não-católico. Se­gundo o Concílio, os motivos de credibilidade sobre os quais a Igreja, e só ela pode apoiar-se, são muito numerosos e muito fulgurantes para que a fé de um ca­tólico se abale a razões objetivamente válidas. A conciên­cia que tem a Igreja de ser a detentora da verdade e a afirmação que ela faz em tal sentido são tão profunda­mente enraizadas no terreno sólido dos fatos históricos e da lógica, tão nitidamente fundadas sobre as mais pro­fundas exigências da conciência e de seu respeito da san­tidade e da divindade, que podem resistir vitoriosamen­te a todas as dificuldades possíveis do passado, do pre­sente e do futuro. Mesmo em razões puramente subjeti­vas, em idéias falsas, em raciocínios errôneos, não sucum-

IO O C a p . X . A a ção e d u c a tiv a da Igreja

1) Cone. Vat. sess. 3, cap. 3, can. 6.

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A d a m , A essência d o C a to lic is m o 19 1

birá um católico, enquanto se não fechar, em orgulhosa suficiência, à luz da graça, que a nenhuma alma de boa vontade é recusada (2). Esta luz será sempre bastante clara e possante para superar as fontes de erro que vêm de sua inteligência e para impedi-lo de cair em erro in­vencível. O crente católico é, por esta forma, comumente preservado desse radicalismo que abandona deliberada­mente os dados já recebidos do cristianismo e se compraz numa atitude de crítico puramente negativa no estudar a questão do Cristo e da Igreja. De outro lado, de ma­neira nenhuma é obrigado pela Igreja a fechar obstina­damente os olhos a problemas religiosos que se apresen­tem, como se tal lhe fosse a única atitude permitida. O Concílio do Vaticano nada quer de uma fé cega, exige, como o apóstolo (cf. Rm 12, 1), que nossa fé seja racio­nal (obsequium rationi consentaneum). O católico tem, pois, em conciência, o dever de procurar para sua fé a justificação que a sua formação intelectual e suas facili­dades lhe permitem ou exigem. Num período que abunda, como o nosso, em problemas de crítica filosófica e bíblica, pode-se dar que semelhante estudo leve a profundos con­flitos interiores, nos quais o crente deva, por assim dizer, lutar com Deus até que Deus tenha piedade dele e venha a graça, única capaz de salvá-lo, em seu socorro.

Quando uma alma deliberadamente se fecha a essa in­fluência da graça e concientemente se abandona aos pe­rigos de um pensamento isolado e independente, poderá dar-se que, diante do torvo espectro de um subjetivismo que a desnorteia, perca ela a visão clara do que há de essencial, de decisivo, nos testemunhos que a Igreja dá de si mesma. Desnortear-se-á de cada vez mais com re­lação à idéia que faz da autoridade da Igreja, e, final­mente, chegará talvez a um ponto em que, para ser ver­dadeiramente sincera para consigo mesma, se sentirá na necessidade de sair da Igreja. Mesmo, porém, neste caso externo de conflito entre a autoridade e a conciência, se faz patente a atenção extraordinária que põe a Igreja em respeitar os direitos da conciência, embora errônea. Sem dúvida, nos casos habituais de defecção da fé preponde­ram os motivos de ordem moral sobre as razões de ordem

2) Cf. Cone. Vat. sess. 3, cap. 3.

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intelectual. A funOamental atitude de independência e su­ficiência do fiel subtrai, aliás, progressivamente a sua pro­cura e os seus estudos à corrente vital da Igreja, especial­mente ao influxo da graça e da fé, permitindo, por esta forma, que as primeiras dificuldades e dúvidas, de co­meço leves, se transformem em erros intransponíveis. No entanto, reconhece a teologia católica, da mais nítida ma­neira, que o fiel que assim perdeu a fé é, não obstante, obrigado a ater-se por sua conciência a essa nova atitude errônea, se na verdade está convencido de que ela lhe é imposta por sua própria conciência. Mesmo neste caso, o homem que está em errp só deve obedecer à sua conciên­cia, embora seu julgamento seja objetivamente falso e não obstante, para chegar a isso, tenha ele muitas vezes dei­xado de atender aos apelos e exigências de sua conciên­cia moral. Certos teólogos contemporâneos vão mesmo mais longe ainda, achando perfeitamente conciliável com a decisão do Concílio do Vaticano, que citámos acima, a opinião de “que nos casos excepcionais, em que, seja por falta de instrução religiosa, seja por influência prepon­derante de pessoas hostis à fé, dificuldades quasi inven­cíveis se apresentam, de ordem tal que possam levar um

católico a perder a fé sem culpa de sua parte (3). O P. Pribilla S. J. evoca, a este respeito, com razão de so­

bejo, a palavra de são Paulo: “Não julgueis antes do

tempo, até que venha o Senhor” (1 Cr 4, 5).

19 2 C a p . X . A ação e d u c a tiv a d.i Ig re ja

1) B. P o s c h m a n n , Grundlagen und Geisteshaltung der ■katholischen Frömmigkeit (Princípios fundamentais e atitude da piedade católica), 1925, p. 94. — As profundas discussões do P. Pribilla com o prof. A. Messer sobre “A essência da autoridade no catolicismo e a liberdade atual de pensamento” (Katholisches und modernes Denken, 1924) constituem o que de melhor se es­creveu em nossos dias a respeito da questão. Pribilla faz notar (Stimmen der Zeit, 105, 1923, p. 265, nota 1) que o cardial Be- larmino, o tão célebre casuista, proclamou precisamente, de ma­neira explícita, a autonomia do crente. Cum dicimus conscien- tiam esse superiorem omnibus humanis judiciis, nihil aliud di- cerc volumus, quam eum, qui sibi bene conscius est, non debere metuere ne a Deo damnetur, tiamsi omnes homines, qui cor non vident, sccus forte de ejus rebus gestis judicent (De Romano Pontífice, I, 4, c. 20).

Cf., não obstante, H a r e n t, art. Fé no Die. Teol. Cat. de Va- . cant-Mangenot.

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A d a m , A essência do Catolicismo 193

Pretender que a Igreja, ao exigir uma submissão abso­luta à fé, usurpa a autoridade de Deus e escraviza as con- ciências é, pois, fazer-lhe reproche injusto — e o fato de ter sido este muitas vezes repetido em nada o faz mais respeitável. Mènsageira autorizada da verdade de Jesús, não cessará jamais a Igreja de testemunhar a verdade, fa­zendo uso de sua autoridade, assim 6omo jamais deixará de ligar as conciências, todas as conciências, a essa ver­dade, sem que pretenda com isso violentá-las. O que ela quer é a sua adesão, não puramente exterior, mas interior. Quando esta adesão interior lhe é recusada, ela abando­na a alma à misericórdia de Deus e a despede. Não é isto nem fanatismo, nem dureza de coração, é simplesmente preocupação de sinceridade e de retidão interior. A Igre­ja não pode tolerar, nem tem mesmo o direito de fazê-lo, que no número dos seus membros se encontrem “crentes” que só o sejam de nome. Exige que estes, deixando a Igre­ja, tirem as consequências de sua nova atitude de conciên- cia, se na verdade esta é sincera e persistente. Garante, por esse meio, tanto a leal atitude dessas conciências quanto a sua própria. Cortando de sua comunhão os cren­tes ou teólogos que seguem suas idéias próprias e se lhe recusam submeter, a Igreja não os violenta. São eles, pelo contrário, que violentam a Igreja pretendendo permane­cer no seio dela sem esposar-lhe a fé.

Concluamos: a solicitude da Igreja para com o julga­mento subjetivo da conciência perfeitamente se concilia com a autoridade que ela recebeu de Deus e energica­mente reivindica.

O respeito às conciências é mesmo pressuposto pelo exercício da autoridade. A Igreja não pode agir senão na conciência e pela conciência. E’ somente isto que lhe dá autoridade e lhe assegura a extensão de sua ação. A Igre­ja não suplica, não implora. Apela para as conciências e exige que se submetam à palavra de Deus, de que ela é a mensageira. Os homens têm necessidade desta forte ex­pressão da potência divina. Não podem longamente viver de uma razão e de uma moral que só sobre si mesmas repousam. E’ o “perfume de um vasto vácuo” (Renan). No exercício enérgico deste princípio de autoridade, por parte da Igreja, reside, precisamente, uma força que acor­da, sacode e eleva as conciências. Quando a Igreja fala

A essência — 19

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194 C a p . X . A ação e d u c a tiv a da Igreja

às conciências, não há mais lugar para o subjetivismo, o liberalismo, o ceticismo ou a dúvida. Por esta forma se explica a direção coerente, exclusiva, firme e segura de si mesma que imprime a Igreja à vida. Por esta forma se explica a força que manifesta a Igreja sobre os homens na sua tarefa de formá-los. Permite-lhe sua autoridade fazer com que seus raios penetrem em profundidades a que não chega nenhum raio da pura filosofia. Pelo im­perativo categórico de sua mensagem, a Igreja tem con­duzido ao bem muito maior número de almas do que, jun­tas, todas as escolas da moral que precederam ou se su­cederam ao advento do Cristianismo, escolas essas que, no dizer de Voltaire, “não conseguiam converter nem a sua própria rua".

O segundo princípio da força educativa e formadora da Igreja reside no lugar que em sua prédica ocupam o além, o sobrenatural, os novíssimos. “Não temos aqui em baixo uma morada permanente, estamos à procura da do futuro”. Nenhuma verdade de fé tão profundamente se fixa no espírito e no coração do crente quanto a contida na primeira resposta do seu catecismo: “Estou na terra para conhecer a Deus, amá-lo, servi-lo e, por este meio, ganhar a vida eterna”. Eis a realidade mais profunda, a realidade do Deus eterno. Dela derivam todas as outras, as da natureza e as da civilização, realidades intermé­dias e de valor secundário. Realidades e valores, sem dú­vida, mas não é sobre elas que sua vida repousa como sobre seu último fim. São como o barco em que ele faz a travessia. Ele bem sabe que lhe será preciso em breve abandoná-lo. “Este mundo não é mais do que uma ponte. Atravessa-o, mas não construas nele tua morada”. Tal sentença, inscrita sobre um portal da índia, ele a com­preende e aplica. Por isto permanece-lhe a alma em es­tado de tensão perpétua e em movimento para avante e para o alto. Diz-se-lhe todos os dias no prefácio da missa: “Sursum corda”, e de cada vez ele responde: “Habemus ad Dominum”.

Dai resulta para o católico, em face da vida, uma du­pla impressão característica: antes do mais, uma certa indiferença, serena indiferença em presença das preocu­pações terrenas. A palavra de Jesús sobre os lírios dos campos, que não trabalham nem tecem e, no entanto, são

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mais magnificamente vestidos do que Salomão em todo o seu esplendor, penetrou profundamente na mentalidade católica. Por isto mesmo já se disse que o catolicismo se retardou do ponto de vista da civilização. Nada mais jus­to, se por isto se entende que o verdadeiro católico não considera o progresso material e intelectual da civilização

como o bem- supremo e o fim que deva bastar-se a si mesmo.

Ele crê de maneira muito firme e muito real num céu no outro mundo para que possa crer num céu aqui em baixo. Houve mesmo — haverá sempre, sem dúvida — católicos que de tal forma viveram visando apenas as esperanças eternas, que desprezaram a terra e a natureza, e esqueceram o dever, que Deus no entanto prescreve de trabalhar na terra. Constitue isto uma exageração do ideal católico. Já dissemos que a Igreja lutou vigorosa­mente contra as seitas gnósticas da antiguidade e da idade média e em defesa da dignidade da natureza e do cor­po, do direito do homem aos bens e alegrias aqui em baixo. O ideal católico não implica aniquilamento, mas, sim, glorificação sobrenatural da natureza. Mantem-se e move-se entre estes dois poios: natureza e super-natureza, tempo e eternidade. Equilibram-se ambos na vida do cató­lico crente. Se este repele uni dos dois, torna-se herege. O verdadeiro fiel põe cada um em seu lugar. Tudo o que é da natureza, toda inclinação natural, mesmo o pendor sexual, é dom de Deus e possue valor real, valor, porém, de segunda ordem, passageiro, que exige, pois, que se apele para outros. Só quando é referida a Deus, toma a natureza valor de eternidade. Por isto ama o verdadeiro católico os valores terrenos, não como o escravo famélico

que sobre eles se lança, e deles se farta até morrer, mas

como o trovador a quem o dom recebido faz cantar, de passagem, um agradecimento jovial. Ainda por isto, não

pode o materialismo rebrotar nos paises em que é viva a

fé católica. Da mesma forma exclue o catolicismo o in­

teresse exclusivo pelas coisas da terra, o trabalho pelo trabalho, o ganho pelo ganho, o puro utilitarismo. Segun­

do Max Weber e Trceltsch, o capitalismo nasceu no ter­

reno do calvinismo e do puritanismo, na Inglaterra e na

18*

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C a p . X . A a ç ã o e d u c a tiv a da Ig re ja

Escóssia. O observador atento que compare, sem prejuí­zos, as manifestações da alma popular, por exemplo, na Baviera católica ou nas regiões católicas renanas e no Saxe e na Turíngia protestantes, não poderá deixar de registar uma diferença característica no conjunto de sua vida. Para o católico, a vida terrena tem muito pouco va­lor por si mesma para que ele possa tomá-la muito a sério. Em verdade, ele só leva a sério Deus e seu reino. Por isto, conserva ele muito da serena despreocupação da infância. Daí vem, em grande parte, seu senso e seu gosto pela arte livre, desinteressada, pela arte popular sobre­tudo. A esta serena despreocupação infantil se alia nele o respeito por Deus, por tudo o que é santo, assim como a simplicidade e a humildade de espírito. Nada está mais longe da mentalidade católica do que a arrogante preten­são à autonomia e à independência. A moral autônoma de Kant, mesmo deste ponto de vista, só de terreno protes­tante poderia nascer. O católico não é um “blasé”. E’ ainda capaz de surpreender-se. E’ ainda capaz de crer e orar. O catolicismo é essencialmente feito de jubilosa con­fiança em Deus, de espírito de simplicidade, de infância, de humildade. Inutil observar quanto corresponde tudo isso ao que reclama Jesús para que entremos no reino dos céus.

A segunda característica da moral católica, decorrente da prédica do além e na insistência com que lembra a Igreja o fim sobrenatural da vida, é a prática da ascese. A orientação do católico no sentido do sobrenatural, e a convicção, daí resultante, do valor relativo das coisas ter­renas, conduzem naturalmente à atitude do “tantum quan- tum” a que santo Inácio de Loiola, no seu livro de Exer­cícios, deu a mais límpida expressão clássica: Não devo usar dos bens da terra senão na medida em que eles me são necessários para alcançar meu fim último; e devo re­nunciar aos mesmos na medida em que me desviem de Deus e tendam a tornar-se meus fins em si mesmos. Quan­do me puserem em perigo de prender-me a eles como a meu fim próprio, devo aplicar-lhes a palavra do Salvador: "Se teu olho te escandaliza, arranca-o. O que não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim”. Por esta forma aparece, na vida do católico, a necessidade da re­núncia, da paciência, em outros termos, a necessidade da

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eruz, como um meio, porém não como um fim que ani­me e guie. E’ só a caridade, a caridade de Deus e do pró­ximo, que anima e guia a vida do católico. Toda a vida nova está nisto, com efeito: "Amarás a Deus de todo o teu coração, e o teu próximo como a ti mesmo”. A re­núncia e a ascese, isto é, a prática metódica da renún­cia, têm por fim libertar-me de tudo o que me impeça de praticar a caridade. Seu papel é não anular os pendo­res da sensibilidade e as paixões do homem, mas, sim, do- miná-los afim de que, como as forças indómitas da natu­reza, não refervam e espumem por sobre as margens e não venham a comprometer essa vida da caridade. E’ pre­ciso, pelo contrário, que tambem eles sejam orientados para o fim último da vida, para a edificação do homem novo, o homem da desinteressada caridade. A caridade, só a caridade é o fim da ascese. Se a ascese acaso se tor­nasse um fim, se praticássemos a renúncia, os jejuns, as mortificações, o celibato por si mesmos e não visando a formação do homem novo, do homem glorificado, do ho­mem da caridade; se se tornasse a ascese uma espécie de esporte, não seria mais a ascese católica, mas, sim, a ascese gnóstica ou pagã. A prática da ascese, o trabalho metódico no sentido de alcançarmos o dominio de nós mesmos, tornam a alma livre e forte para o exercício e a realização daquilo que são Paulo exige dela, a caridade “de um coração puro, de uma boa conciência e de uma fé sincera” (1 Tm 1, 5). Ao homem preso a um corpo, carregado das consequências do pecado original e das pai­xões hereditárias ancestrais, a ascese é de patente neces­sidade, se quiser ele não apenas ouvir, mas tambem pra­ticar a palavra de Deus. E’ este um ponto fundamental da mensagem de Jesus e, consequentemente, da missão educativa da Igreja. Todos os mandamentos da Igreja, mas especialmente o do jejum, tendem à educação da vontade dos fiéis. No catecismo c na cátedra, mais especialmente no tribunal da penitência, a solicitude pastoral da Igreja se esforça por desembaraçar, em marcha bem metódica, a alma dos crentes dos rebrotos e pendores selvagens, afim de cada vez mais nitidamente poder nela imprimir a ima­gem do Cristo.

A essas práticas ordinárias se acrescentam os meios ex­traordinários, a começar pelas missões paroquiais e os

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retiros espirituais. Como dizer o bem moral já produzido pelas inumeráveis missões pregadas nas cidades e aldeias, e para as diversas categorias de fiéis, pelos franciscanos e capuchinhos, os jesuitas, os redentoristas? Constituem elas lima fonte de saude, não apenas para a vida religiosa e moral, mas tambem para a vida nacional de nossos povos inquietos. Quanto aos retiros espirituais, isto é, a esses exercícios religiosos pelos quais, no silêncio e na solitude de uma casa religiosa, e sob a vigilância de um diretor espiritual, põe cada uni em ordem a sua vida espiritual, nela estabelecendo o reino de Deus — constituem uma espécie de escola superior de cultura para a alma, um ba­nho fortificante para fazer a alma sadia e viva e permitir que a si mesma se encontre em Deus. A respeito dos Exer­cícios espirituais de santo Inácio de Loiola, um professor da Faculdade de Medicina de Berlim, K. L. S c h 1 e i c h (4) escrevia: “Digo-o com segurança, pois é em mim convicção profunda: com estas ordenações e estes exer­cícios em mão, poder-se-ia ainda hoje transformar nossos asilos e impedir que pelo menos dois terços dos que ne­les são condenados tivessem de transpor jamais as portas das prisões”.

E’ deste ponto de vista fundamental da ascese., da for­mação metódica da vontade, que se devem considerar o celibato e as ordens religiosas. Quando o padre católico se compromete, perante a Igreja, a não contrair matri­mônio, quando um religioso ou uma religiosa se obriga, por voto público, a observar os “conselhos evangélicos”, isto é, a pobreza, a castidade e a obediência, nem um nem os outros pretendem praticar tal renúncia por si mes­ma, como se ela só por si tivesse valor moral. Sabem ver, de maneira absolutamente sincera, o que há de bom no casamento. Consideram-no como algo de grande e santo, como um sacramento indissolúvel, ligado ao amor fiel de Jesús pela sua Igreja. Mas, acaso, o padre, que profes­sa e proclama como uma verdade de fé a dignidade do sacramento do matrimônio, não se torna suspeito de des­prezar o casamento? Por que, então, renunciou a ele? E por que motivo, além disso, renunciam os religiosos ao

4) K. S c h l e i c h , Vom Schaltwerk der Gedanken, 1917, p. 143 sg.

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dinheiro, aos bens da terra, e sobretudo ao maior dos bens, que é o de ser senhor e rei de si próprio? Em santo Tomaz de Aquino (5) encontramos a razão decisiva de tudo isso. E’ para “ter a liberdade” de consagrar-se às coisas de Deus. Muito antes dele, já tinha dito são Paulo: “O qu# não é casado pode preocupar-se com o que é do Senhor, do que agracia ao Senhor. O que é casado se preocupa com as coisas do mundo, com o que agrada à sua mulher” (1 Cr 7, 32, 33). O padre católico e o re­ligioso vivem, por profissão, nas coisas de Deus. E’ seu oficio procurar a instauração e a extensão do reino de Deus não somente em si mesmo, mas tambem nos outros, no mundo. Tão elevado é tal ofício, tão santo, tão deli­cado, e, por outro lado, tão penoso, tão cheio de respon­sabilidade, e exige tantos sacrifícios, que reclama o me­lhor do homem e o rouba à vida de família. Não se pode a um só tempo ser apóstolo, no sentido pleno do vocá­bulo, e bom pai de família. O próprio Jesús não se pren­deu nas malhas do casamento e teve a expressão bem digna de ser guardada a respeito dos eunucos voluntá­rios, quer dizer, dos que renunciam voluntariamente ao matrimônio. Os apóstolos tudo deixaram para seguir Je­sús, embora fossem todos, com exceção de são João e são Paulo, casados, no momento em que Jesús os chamou. Desde o instante em que responderam ao chamamento e se tornaram apóstolos, não mais viveram como homens casados, mas unicamente como servos de Cristo, que, se­gundo a palavra de são Paulo, “se tinham tornado livres com relação a todos, afim de se fazerem escravos de to­dos” (1 Cr 9, 19). O celibato, pois, tira todo o seu sentido, toda a sua força e valor moral do apostolado, do dom absoluto ao Cristo e ao seu reino. O amor e o cuidado que o homem casado dedica ao círculo estreito da família, o padre e o religioso os consagram ao seu Senhor e Mes­tre, e às milhares de almas que o Senhor lhes confiou, doentes, pobres, pecadores. Quanto mais se dão e se sa­crificam pelos outros, tanto mais seu verdadeiro ser se aprofunda e enriquece. O que lhes falta como valor espi­ritual, no que respeita à família a que renunciaram, é abundantemente compensado pelo que lhes vem da vida

5) Summa Theol., 2a. 2ae., qu. 152, art. 5.

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ilc união com Deus e da sua ação dc caridade e devota- mcnto para com as almas. A Igreja rodeia a vida do pa­dre de tais garantias, enche-a, confiando-lhe o encargo da recitação quotidiana do breviário e da celebração da Missa, de tantas santas ocupações, que o padre que vive secundo o seu ideal — haverá sempre, infelizmente, al­guns mercenários — não pode deixar de ser um modelo para o seu rebanho. Em sua pessoa, a mensagem do rei­no de Deus, do sobrenatural e do além, da pérola preciosa pela qual devemos tudo sacrificar, toma aparência sensí­vel, atraente. O crente não quer apenas ouvir do seu pa­dre boas, preciosas palavras; não ama nele apenas uma vida distinta e superior; procura e encontra nele a santa teimosia do Evangelho do reino dos céus, a gravidade prática, sem restrição, da palavra do Mestre: “O reino do céu sofre violência”. Daí o respeito das populações católicas pelos seus padres. “Lutero, observa Nietz­sche (6), restituiu ao padre o matrimônio. Mas três quar­tas partes do respeito de que o povo é capaz repousam sobre a convicção de que um homem que faz exceção à humanidade neste ponto c igualmente excepcional sob todos os outros aspetos”. E Schopenhauer (7) chega a dizer: “O protestantismo, eliminando a ascese e o que lhe constitue o ponto culminante: o celibato eclesiástico e reli­gioso, renunciou, por isto mesmo, ao núcleo mais ínti­mo do cristianismo. Passou a ser, daí por diante, um cristianismo degradado”.

O que acaba de ser dito a respeito do sacerdócio ca­tólico em geral aplica-se às ordens religiosas. Significam elas a realização prática, severa e sem reservas, do que dissera Jesús da pérola preciosa, do tesouro escondido num campo, pelos quais tudo sacrificamos, e sobretudo desta palavra: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e distribue-o aos pobres. Depois vem e segue- me”. Toda a violência que exige o reino dos céus, a for­ça que sacode e soergue, a prodigiosa severidade da pré­dica de Jesús, tomam corpo visivel nas ordens religiosas.

6) F. N i e t z s c h e , Fröhliche Wissenschaft, 1887, p. 295.7) A. S c h o p e n h a u e r — O mundo como vontade e como

representação. E. K r e b s, em Der Knechtsdienst des katholischen Priesters (A função de servo do padre católico, 1921) mostra bem que idéia se deve fazer do sacerdócio católico.

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Não se trata, aliás, de uma nova moral, nem de um novo ideal de perfeição, diferentes daqueles dos cristãos ordinários. Outro ideal não tem o religioso senão o de formar em si mesmo a imagem do Cristo, a imagem do amor perfeito a Deus e ao próximo. E’ o mesmo ideal que a todos os homens se propõe. Mas, sendo único embora, podemo-nos esforçar por atingí-lo de uma infinidade de maneiras que dependerão do meio e da vocação, dos re­cursos e da força de cada um, das circunstâncias pro­videnciais e das luzes particulares. De todas essas manei­ras de seguir, de imitar Jesús, a mais profunda e corajosa, do ponto de vista objetivo, consiste na renúncia decidida a todos os bens que seduzem o homem sensivel e amea­çam entravar o movimento de sua alma para Deus. Em tal sentido, a vocação religiosa é, objetivamente, o me­lhor e mais seguro caminho para realizar o ideal cristão. O que não quer dizer, todavia, que, subjetivamente, seja tambem o melhor, o que todos devam seguir. Os indiví­duos são muito diferentes uns dos outros e as circunstân­cias exteriores por demais variadas para que a mesma via a todos convenha. Quis a Providência que, para a grande maioria dos homens, a vida e a ação numa vocação secular fosse, subjetivamente, o caminho melhor para atingir a perfeição. Nem por isto, contudo, deixa o estado religioso, se o considerarmos objetivamente e para além de todas as circunstâncias concretas, a mais enérgica e pura ex­pressão desse impulso para as alturas que anima o corpo do Cristo.

Não há, no entanto, senão um meio para chegar à própria perfeição. Os conselhos evangélicos, explica san­to Tomaz, são auxílios essenciais para conduzir à perfei­ção, são meios particularmente adequados à conquista e ao desenvolvimento da santa caridade desinteressada, que são Paulo exalta em sua primeira Epístola aos corintios, cap. XIII, e que é a própria essência da santidade do cris­tão. Se esta caridade não florescesse numa ordem reli­giosa, não haveria a mesma realizado o seu fim. Poder- se-Ihe-ia aplicar a expressão de são Paulo: "Mesmo que eu tivesse dado todos os meus bens aos pobres, se não tivesse a caridade, de nada me serviria” (l Cr 13, 3). As casas religiosas são, essencialmente, núcleos de cari­dade, destinadas a comunicar o fogo do Espírito Santo,

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são cscolas superiores de imitação do Cristo. Todas as suas práticas ascéticas, votos e regras tendem apenas a uma coisa, a única necessária: edificar o homem novo da caridade, o homem que é todo caridade de Deus e do pró­ximo.

Acabamos, por esta forma, de descrever o ideal que a Igreja persegue em sua obra educativa: o homem da ca­ridade perfeita, o homem que baniu toda procura pessoal, alargou seu coração estreito, mesquinho, conseguiu fazer dele o templo de Deus, no qual arde a chama do sacri­fício, o homem que todos os dias realiza a palavra de são Paulo: “Em todos os lugares quero oferecer de todo co­ração algum sacrifício e até sacrificar-me a mim mes­mo por vossas almas” (2 Cr 12, 15). Seria consolador descrever as formas tão variadas de santidade que a ação educativa da Igreja fez com que florissem no seu seio. Como são diversas, por toda parte, as vias dos que re­solveram seguir o Cristo, e quão variados se nos apre­sentam os tipos de santidade! Ao lado do santo eremita e do asceta do deserto, há tambem o santò que vive em sociedade, o santo das grandes cidades e dos quartei­rões operários. Ao lado do missionário dos paises in­fiéis, o defensor dos estropiados, dos tímidos, dos deten­tos. Ao lado da santa em hábitos de penitência, trazendo o cilício, o santo da boa sociedade, cheio de distinção. Ao lado do santo que severamente observa a clausura e o silêncio perpétuo, o santo fraterno, que gosta de gra­cejar, e chama à andorinha sua irmã e ao sol irmão. Ao lado do santo que cultivou a ciência de Deus, o santo que despreza toda ciência que não seja a do Cristo. Ao lado do místico recolhido em si mesmo, o apóstolo que vai à conquista do mundo. Ao lado do santo que faz penitên­cia com o desprezo de todo conforto, até da higiene, e nada ama tanto como as humilhações, o santo no esplen­dor da púrpura ou sob a tiara. Ao lado do santo que com­bate, mata mesmo, pela sua fé, o santo que por ela sofre e morre. Ao lado do que sempre guardou a inocência, o que conheceu o pecado. Ao lado do santo que conservou o seu espírito de infância, o santo que deve lutar com Deus até que Deus o abençoe. Que variedade infinita em todas essas formas de santidade! Em cada uma delas, en­contramos a marca da época, desconcertante por vezes.

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Por muitas delas não sentimos hoje atração nenhuma. Um só permanece sempre moderno, sempre atual, um só per­tence a todos os tempos, o Deus feito homem, o Cristo. Seja qual for, porém, o traço que este ou aquele santo apresenta da época em que viveu; por mais afastados que estejam todos da perfeita reprodução do Cristo, um mesmo espírito os anima a todos e no-los torna caros: o espírito de Jesús, o espírito de sua grande, de sua santa caridade: Viveram todos desta palavra: A caridade do Cristo me impele.

Em torno das grandes figuras de santos que se desta­cam com relevo extraordinário, nas quais Deus se com­praz em refletir a sua onipotência e a sua graça, brilham tambem as milhares de milhares de pequenas, de minús­culas luzes que vieram acender-se no divino Coração de Jesus — desde a criança de peito que morre nos braços de Deus, até ao ancião que, após haver suportado as tem­pestades da vida, exclama, cheio de arrependimento: “Se­nhor, Senhor, tende piedade de mim, que sou um peca­dor!”

O’ mundo! Uin oceano de caridade e luz foi derramado sobre ti. O ’ mundo tão pobre e tão frio, como és rico e belo, no entanto! O’ santa Igreja!

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C a p i t u l o XI

A luta entre o ideal e a realidade

E’ preciso que os escândalos se produzam (Lc 17, 1).

Até aqui tentámos dar os traços fundamentais, essen­ciais, do catolicismo. Descrevemos e estabelecemos, antes do mais, a doutrina da Igreja corpo do Cristo, reino de Deus na terra. A esta luz considerámos o seu dogma, a sua moral, seu culto, sua constituição, sua vida como cor­po social, mais precisamente, o que faz dela a Igreja do povo e a Igreja dos povos; em seguida, a sua pretensão de ser a única instituição capaz de promover a salvação; e, por fim, os meios particulares de que ela dispõe para trabalhar pela salvação eterna dos homens. Esforçámo- nos no sentido de pôr em relevo o essencial, o que perma­nece independentemente de todas as modificações introdu­zidas pelo tempo, isto é, a idéia católica em sua pureza total, independentemente de todas as contingências do tempo e do espaço. De que forma, porém, concretamente falando, esse catolicismo se traduz, se manifesta, pratica­mente, no espaço e no tempo? E’ a tal pergunta que ten­taremos responder nesta última conferência. Do catoli­cismo ideal, passamos ao catolicismo tal qual se nos apre­senta. De que maneira o catolicismo, tal como é, se com­porta com relação ao catolicismo tal como deve ser, tal como Deus o quer?

Que entre o catolicismo ideal e o catolicismo de fato não haja correspondência perfeita; que o catolicismo de fato se deixe ficar sensivelmente inferior ao catolicismo tal como devia ser; que jamais, até aqui, na história, se tenha o catolicismo plenamente realizado, mas permaneça em estado de vir-a-ser, de laborioso crescimento, são coi­sas que a história da Igreja e do mundo suficientemente demonstra e seria supérfluo desenvolvê-las longamente. A própria Igreja primitiva jamais se apresentou “sem man­chas e sem rugas”, no sentido do Apóstolo. Basta ler as

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cartas do próprio Apóstolo, e as de são Tiago e são João, e, com relação ao período seguinte, interrogar Hermas, Tertuliano e santo Irineu. Mostram-nos elas, na antigui­dade cristã, ao lado de larga e brilhante caridade, uma sombra espessa e vasta. Isto veio acontecendo pouco mais ou menos até nossos dias. Sempre sentiu o catolicismo a necessidade de mais completamente aproximar sua vida real de seu ideal. Há uma tendência à reforma, explica Mons. K e p p l e r (1), que é natural à Igreja. Basta lem­brar o grandioso esforço efetivado por numerosos funda­dores de ordens religiosas e de Papas. Aquela tendên­cia ainda hoje se manifesta. Ora, um desejo de reforma supõe sempre a conciência de uma falha, de um defeito, e a convicção de que o catolicismo ideal ainda não existe. Inutil, pois, insistir-se em dizer que ele ainda não se acha realizado e que, aliás, jamais se realizou na história. Que­reríamos, nesta conferência, dizer por que não pode o ca­tolicismo plenamente realizar-se neste mundo. Comecemos por indagar das razões fundamentais do surpreendente e trágico mistério desta contínua luta entre o ideal e a rea­lidade; veremos, em seguida, de que modo, para um ca­tólico, se pode resolver o enigma desse doloroso desacor­do.

A primeira e principal razão, devemos vê-la na própria essência da revelação em seu carater único de absoluto fazendo-se homem. "E o Verbo se fez carne”. Deus, na revelação, é amarrado ao homem, o Absoluto ao relativo, o Inexprimivel se reveste de formas e de sinais visiveis. “Conduzimos nossos tesouros em vasos de barro” (1 Cr 4, 7). Acham-se, pois, em presença, dois elementos que, a priori, jamais se poderão assimilar completamente. En­tre eles não podem existir relações de semelhança e ana­logia.

Entremos no pormenor. Não nos podemos representar a realidade do Absoluto, do incompreensível Infinito, o ser e a essência de Deus, senão por meio de conceitos toma­dos ao mundo de nossa experiência. Deus, ninguém ja­mais o viu. Não podemos, pois, conhecê-lo e descrevê- lo senão com a ajuda de idéias diferentes (per species ali-

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1 ) P . W. v o n K e p p l e r , Über wahre and falsche Reform (A verdadcira e a falsa Reforma), 1903, p. 24.

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unas). Quer dizer: por meio de conceitos que, em seu sen­tido original, só contêm o criado e precisam ser desemba­raçados de suas imperfeições e limitações e em seguida soerguidos até ao infinito no que possuem de positivo. Será esta a nossa maneira de conhecer o Ser mesmo de Deus. O que afirmamos de Deus, não poderemos nunca fazê-lo em sentido adequado, inequívoco, porém somente análogo. Não podemos falar dele senão “por analogia” (Sb 13, 5). Temos conciência de que todas as nossas re­presentações ficam infinitamente aquém de Deus. Todos os nomes que lhe damos não passam “de tímidos tarta- mudeios que gostariam de se aproximar de Deus para tocá-lo, mas só o podem saudar de muito longe” (2).

O próprio mundo da revelação sobrenatural, todas es­sas novas realidades que possuimos para além dos dados da natureza, por uma comunicação pessoal, imediata de Deus, principalmente pela Revelação que nos fez seu Fi­lho, não penetram imediatamente em nós em sua essên­cia e por esse carater real que seria seu próprio tes­temunho. Chegam-nos por meio de representações e de idéias humanas. Os dogmas nos quais essa realidade so­brenatural encontrou, por instrumento da autoridade da Igreja, a fórmula obrigatória que a exprime, traduzem o absoluto, mas não são o absoluto (3). As concepções filosóficas que servem a exprimí-los são tomadas à filo­sofia do tempo, sobretudo à filosofia grega. A esse título, são verdadeiras, adaptadas e inteligíveis em todos os tem­pos; como estão longe, porém, de esgotar a inteira reali­dade sobrenatural e quão imperfeitos se apresentam! Tam­bém a este conhecimento das verdades sobrenaturais se aplica a palavra do Apóstolo: “Vemos agora como num espelho, em enigma”.

Por esta forma, de todo o nosso conhecimento das ver­dades de fé e de toda a nossa vida de fé, que sobre elas se apoia, se destaca uma impressão de insuficiência, de sacrifício doloroso a suportar, uma espécie de melanco­lia, análoga à que Nietzsche experimentava em face da arte plástica da Grécia. Não caminhamos em pleno sol, mas numa semi-obscuridade. Nossa fé nos dá, sem dú-

2) P. L i p p e r t , Credo, t. I, 1916, p. 62.3) P. L i p p e r t , Das Wesen des kalholischen Menschen (A

essência do fiel católico), 1923, p. 20.

206 C a p . X I . A lu ta e ntre o ideal e a rea lida de

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vida, a certeza inabalavel de que o mundo sobrenatural não é apenas um sonho, de que é unia verdadeira reali­dade, a realidade de Deus e de sua vida eterna. O fim é claro e nos indica ao mesmo tempo o caminho. Apenas, a essa realidade superior só a vemos como envolta num véu, de longe, como as montanhas cobertas de nuvens. E’ isto, evidentemente, o que transmite à nossa fé sua ínti­ma nobreza e seu valor moral. Se Deus se nos apresen­tasse aqui em baixo, sem véus, a fé não separaria os es­píritos, isto é, os homens de alma elevada, pura, desin­teressada, das naturezas egoistas, que só têm em vista seu interesse próprio. O reino de Deus não passaria de uma questão de raciocínio e de estudos positivos, e deixa­ria de ser o problema das grandes almas que dão teste­munho do seu apego ao ideal e ao dever com o perma­necerem firmes e fiéis, mesmo nas trevas da noite e era meio das tempestades. De outro lado, no entanto, aquela semi-obscuridade e o que existe de enigmático nas reali­dades da fé podem por vezes paralisar nosso jubiloso im­pulso e lançar-nos em lutas e dificuldades que fazem com que nossa fé nem sempre seja simplesmente uma força e uma graça de Deus, um dom beatificante. Acaso não se transforma ela, muitas vezes, num duro dever, numa es­pécie de luta com Deus, que enche toda a nossa vida e ab­sorve o melhor de nossas energias?

Acabamos de verificá-lo: Deus, o Absoluto, não pode, devido à sua própria natureza, ser-nos comunicado, a nós, simples mortais, senão por meio de representações e de idéias humanas, necessariamente insuficientes. Acrescen­temos que os orgãos que nos transmitem essa fé são ho­mens e, pois, inteligências limitadas pelo espaço e pelo tempo, comprimidas pela estreiteza de sua época e de sua própria individualidade. Antes de tudo, pela estreiteza do seu tempo. Cada época tem a sua característica, o “seu es­pírito”, vale dizer, uma maneira particular, mais ou me­nos relativa, de ver, de sentir, de julgar, de tratar ho­mens e coisas. A luz eterna da revelação se reflete dife­rentemente através do prisma de cada período, segundo o seu ângulo de refração. A realidade sobrenatural não se mostra nunca em sua pureza original, vem a nós numa época determinada e, pois, sob a forma que essa época lhe dá. De um lado, sem dúvida, fazendo-se realidade do-

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tempo, est'á em melhores condições para comover os ho­mens do tempo e produzir frutos, mas, de outro lado, perde com isso algo da força e da majestade do seu ser sobrenatural. Sofre uma espécie de diminuição (xtvwoiç),

de desnudamento de si mesma, como o próprio Verbo di­vino quando se fez carne. Esta diminuição, este despojo do sobrenatural, esta refração através do tempo, o ca- rater negativo que toma, vão tão longe que, frequentemen­te, sob o invólucro do tempo, o Eterno acaba por não nos ser mais visivel. Escandalizamo-nos por isto, e sofre­mos. E’ assim que o católico sofre à vista da forma es­crava que o sobrenatural tomou em certas épocas. Sofre hoje mais do que nunca pela Inquisição e os autos-de-fé da idade média. Quanto mais compreende que, por de­trás dessas instituições, é preciso ver-se a extraordinária seriedade com que o homem medievo, inteiramente pene­trado da verdade objetiva, queria por essa forma salva­guardar a firme realidade e alta dignidade da revelação sobrenatural; quanto mais aprecia as relações intimas que, -na meia idade, mantinham a vida política unida à vida do catolicismo — tanto mais sofre com o verificar que, naquela época, o zelo pela verdade objetiva na religião e na sociedade fez muitas vezes com que se perdesse de -vista a vida íntima dos indivíduos, particularmente o di­reito e a dignidade da conciência, mesmo errônea; que o rigor de uma lógica abstrata impediu que o senso psico­lógico se exercesse e fez com que se olvidasse muita pre­ciosa gema da mensagem evangélica, em particular a que diz que o reino de Deus não é deste mundo, que ele não se propaga nem se conserva pela espada, que se deve per­doar setenta vezes sete ao irmão que pecou e que se não fdeve atrair o fogo sobre as cidades que não crêem.

Sofre tambem à lembrança dos processos por bruxa­ria e de suas numerosíssimas vitimas. Bem sabe que o terror que inspiram os feiticeiros nada tem de especial­mente próprio ao catolicismo nem mesmo à religião, e que não passa de uma superstição do tempo, dado que mesmo em território protestante centenas de feiticeiros fo­ram perseguidos e condenados. Os primeiros espíritos ad­vertidos que, ao lado do médico calvinista João Weyer, tiveram a coragem, nos séculos XVI e XVII, de combater a superstição generalizada, os Erasmo, os Loos, os Tan-

20H C a p . X I . A luta e n tre o ide al e a rea lid a d e

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ner, os Laymann e os Spee, não eram acaso católicos, e os três últimos, jesuítas? Ele sofre, no entanto, no mais fundo de sua alma pelo “Malleus maleficarum” (4), e por aquela bula “Summis desiderantes”, de Inocêncio VIII, a qual, embora nada tendo de um documento ex-catedra e, portanto, nada de um ensinamento infalível — o contexto claramente o demonstra — nem por isto deixou de “in­contestavelmente contribuir para desenvolver as idéias re­lativas à bruxaria” (5). Ele se horripila desse abaixa­mento, dessa “forma de escravo” que a Divindade tomou. Não sem emoção, a si próprio se diz que, mesmo os que recebem o encargo da mais alta, da mais sublime função da terra, podem ser homens do seu tempo e escravos dos seus prejuízos. O Espírito Santo, que dirige a Igreja, não garante contra o erro e a ilusão, nem todos os atos pon­tifícios, nem todas as palavras do Papa. O Papa é infalível apenas quando fala “ex-cathedra”, isto é, quando, tendo haurido nas fontes da fé da Igreja, na plenitude de sua autoridade de chefe da Igreja, promulga sobre uma ques­tão qualquer de moral ou de fé uma decisão destinada à Igreja inteira com a intenção de obrigá-la a submeter-se. Os homens por meio dos quais a revelação divina se ma­nifesta na terra são, pela força das circunstâncias, su­jeitos às estreitezas do seu tempo.

Acrescentemos a estas as que vêm de sua personali­dade. As particularidades do seu temperamento, de sua inteligência, de sua vida moral fatalmente influem sobre a maneira pela qual distribuem a verdade e a graça do Cristo. E as mesmas particularidades do temperamento, da inteligência, da vida moral nos que recebem a verdade e a graça influem também sobre a sua maneira de rece­bê-las. Tanto a Igreja ensinada como a Igreja ensinante pagam por esta forma o seu tributo às influências pes­soais. Pode, pois, e deve acontecer que Pastor e Reba­nho, Padres e Fiéis, nem sempre sejam dignos veículos e

4) O Martelo das bruxas, obra aparecida em 1486, em Colô­nia, e da autoria de Henrique Institoris e Tiago Sprenger, inqui­sidores na Alemanha. — Na Inglatera, os processos e execuções de feiticeiros duraram até 1712; na França, a última feiticeira foi queimada em 1718.

5) A. E h r h a r d , Der Katholizismus und das XX. Jahrhundert (O Catolicismo e o século 20), 1902, p. 168.

A essência — 14

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receptores do divino, e que o sobrenatural que está neles por vezes se nos apresente sob aparência deformada e corrompida. Por toda parte em que existam homens há necessariamente, antes de tudo mais, estreiteza de visão e julgamento. Os homens de talento são raros, e mais ra­ros ainda os homens de gênio. Os papas eminentes, os bispos de vistas largas, os teólogos geniais, os sacerdotes superiormente dotados a um só tempo do ponto de vista da inteligência e da piedade, não podem deixar de ser uma excepção. Deus não os suscita senão em épocas par­ticulares, quando os julga necessários à sua Igreja. Temos o direito e o dever de rogar a Deus para que os multipli­que, mas não podemos absolutamente contar com eles. Habitualmente são homens como todos os outros que ser­vem de veículo à verdade e à graça no mundo. A Igreja recebeu de Deus a garantia de não cair em erro do pon­to de vista da fé e da moral, porém não a de que todas as decisões e atos da sua autoridade trariam a marca do gênio e da perfeição. “Deus escolheu o que há de mais fraco e pequeno para confundir o que é forte”. Por essa forma, em tal fraqueza triunfa magnificamente a força do divino; por essa forma, para o crente que reflete e sabe ver, torna-se sensivel e dolorosa a provação que lhe vem da oposição entre esse lado humano, muito hu­mano, e a elevação, a profundeza e a força da revela­ção divina. Reproduz-se, na Igreja, através dos séculos, o que ocorreu entre o Senhor e os apóstolos: a impos­

sibilidade, da parte dos apóstolos, de receberem em seus refletores por demais estreitos todos os raios luminosos que emanavam de Jesús, e de completamente convertê-los em forças de vida.

Mais dolorosa e sensivel ainda aparece a oposição entre o divino e o humano, qüando a vida de graça e de verdade é perturbada no seu curso pelas paixões huma­nas, pelos pecados e os vícios; quando o Cristo que na história humana se apresenta é arrastado na lama. Este é o cúmulo do escândalo, o escândalo da própria san­tidade, que mãos indignas distribuem e lábios impuros recebem. Fiéis de hábitos corruptos, bispos ou papas in­dignos — eis aí as chagas abertas, supuradas, incurá­veis, do corpo místico do Cristo. E’ o que entristece o crente sincero, é a sua Sexta-feira Santa: perceber essas

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chagas e não poder curá-las! “Constantemente, escreve N e w m a n (6), está a Igreja em estado de languidez e fraqueza. Traz constantemente em seu corpo a morte de Jesús, afim de que a vida de Jesús se manifeste igual­mente no seu corpo". E’ uma propriedade que lhe é es­sencial, devido à sua vocação de redentora. E’ na Igreja que o mal é mais visivel porque nela é que ele é mais ardentemente combatido. “Ela não pode jamais permane­cer fora do círculo do mal" (Mcehler). Assim como o seu Mestre não veio para os que têm saude, mas, sim, para os que estão doentes, tambem ela terá sempre aqui em baixo doentes, partes enfermas nos membros e na cabeça.

Resumamos. A primeira série de trágicos conflitos pro­vém da própria essência do Cristianismo, religião sobre­natural e revelada. Onde o Absoluto entra no tempo, ou o divino toma forma humana, o humano, necessariamen­te imperfeito, não pode deixar de opor-se, em luta ínti­ma ao divino, necessariamente perfeito. Schopenhauer, e antes dele o velho Hegel, como depois dele Hartmann, viram justo a este respeito. Pelo fato de haver Deus en­trado no tempo, seu abaixamento pelo tempo, seu despoja- mento se tornam naturais. Eles só se enganam quando atribuem esta vinda de Deus ao mundo, não a um ato de amor livre da parte de um Deus pessoal, mas a uma necessidade interna da divindade, vendo, assim, na cria­ção, precisamente o pecado de Deus.

A segunda fonte fundamental de conflitos se encon­tra, não mais na própria essência da revelação sobrenatu­ral geralmente considerada, porém na essência, naquilo que é próprio do catolicismo.

Em primeiro lugar, devido ao princípio de autoridade, no catolicismo observamos o já assinalado conflito entre a autoridade e a liberdade. Por toda parte em que a inde­pendência humana se choca com dados, leis, regras duras, rígidas, que contrariam o “eu” e parecem peiar o livre movimento do espírito, manifestar-se-á tal conflito. Antes do mais, no domínio da teologia, a ciência da fé. A reve­lação sobrenatural não é uma sabedoria humana, mas, sim, a palavra de Deus. A nova verdade não emerge do

6) Citado em P r z y w a r a - K a r r e r , Fiille der Zeiten (Ple­nitude dos tempos), p. 83.

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substrato primitivo da humanidade, nem das profundida­des do inconciente; é, essencialmente, um dom do alto. Sua comunicação aos homens não pode ser feita senão por via da autoridade, pela série viva dos apóstolos e dos bispos que, pelo sacramento da ordem, se lhes conjugam na uni­dade do espírito, e, antes de tudo, pelo sucessor de Pedro. A autoridade na Igreja é um corolário necessário do ca- rater sobrenatural da revelação. Um dos dois poios da vida da Igreja é, pois, a autoridade que lhe vem do Cristo pe­los apóstolos. Não é da parte de escritores ou de historia­dores que o católico recebe a certeza definitiva da reali­dade da revelação, mas, sim, das primeiras testemunhas e dos primeiros dessa realidade, da autoridade messiâ­nica do Cristo, que se prolonga de maneira viva no Bis­po e no Papa. O católico fica, assim, ligado interiormen­te, em sua fé íntima, ao ensinamento dado com autori­dade pela Igreja, eco simples e fiel da palavra do Cristo. De outra parte, a Igreja condena a fé que recuse esclare­cer-se a si mesma, tanto quanto uma adesão puramente exterior à fé. O assentimento à doutrina da Igreja deve ser interior, racional, deve ser um livre assentimento de todo o ser moral, repousando sobre convicções pessoais, variaveis, evidentemente, segundo o grau de inteligência e de cultura, no que concerne aos motivos filosóficos e históricos de credibilidade. Como não pode o sábio ad­quirir essas convicções pessoais sem um método rigoroso, a Igreja não pode ser hostil a nenhum método verdadei­ramente crítico, e menos ainda ao método da crítica his­tórica. A Encíclica “Pascendi”, contra o modernismo e o juramento anti-modernista do Papa Pio X, longe de a proibirem, supõem-na. O que condenam, é a pretensão de fazer com que a fé sobrenatural dependa exclusivamen­te dos resultados desse método, e, pois, de críticos e his­toriadores, isto é, da ciência profana. Nosso assentimento à fé não repousa apenas no testemunho de documentos mortos, mas no testemunho vivo da corrente que carreia a tradição da revelação, desde o Cristo, através dos após­tolos e dos bispos, seus sucessores, até nós. O catolicis­mo não é uma religião de documentos, mas, sim, uma vida que se transmite de geração em geração por meio da sucessão apostólica, protegida e dirigida pelo Espí­rito Santo.

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E’ para o estudo desta vida da Igreja, que conduz e anima o depósito da tradição, que se deve orientar o mé­todo histórico, se não quiser ficar sendo uma crítica pu­ramente negativa e destrutiva. Tal o sentido da frase, tantas vezes mal compreendida, da Encíclica, na qual se afirma que a Escritura e os Padres “não devem ser inter­pretados unicamente segundo os princípios da ciência” (non solis scientiae principiis). Sobre os textos mortos dos documentos cristãos primitivos corre a vida cristã atual, ou, antes, esses próprios textos não são senão a vida mu­mificada, congelada; resíduo deixado por essa vida sobre­natural que nos envolve e penetra ainda nos dias presen­tes, na Igreja, resíduos, portanto, cujo conteúdo revelado não pode ser compreendido e explicado completamente se­não a partir dessa vida. A Igreja não contesta os direitos do método histórico e da crítica, nem, por consequência, o direito e o dever da pesquisa científica. Põe somente em guarda contra o abuso da mesma, contra a negação do que há de vivo no cristianismo, no seio do que, portan­to, deve tal método procurar sua norma e sua regra fi­nal (7). Desta vida, da claridade q:ie lança sobre a re­velação, projetam-se sempre alguns raios de luz sobre os problemas que surgem de crítica textual e de interpreta­ção, de teologia bíblica e patrística. Se há motivos para temer que o núcleo vital de sua revelação fique ameaçado, ela intervém por instrumento de suas Congregações, não em nome da ciência, mas em nome da fé.

E’ então que a autoridade da Igreja, de um lado, e • direito que tem cada um de se dar contas das razões de sua fé, de outro lado, se arriscam a entrar em conflito.

A autoridade ensinante da Igreja poderá, como no caso de Galileu, interditar, em nome da fé, uma opinião cientí­fica que só aparentemente embora contradiga as verdades da fé e que, mais tarde, venha a tornar-se uma verdade cientifica incontestada. O católico sabe muito bem que essas decisões de Congregações, mesmo aprovadas pelo Papa da maneira habitual (in forma communi), não são

7) Cf. R. M. S c h u 11 e r, Was beschworen wir im Antimoder- nisteneid? (Que é que afirmamos pelo juramento anti-modernis- ta?), 1911, p. 29; — J. M a u s s b a c h , Der E id wider dett Mo- dernismus und die theologische Wissenschafl (O juramento anti- modernista e a ciência teológica), 1911, págs. 30 e ss.

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infalíveis; e que, por isto mesmo, o assentimento interior que elas exigem não pode ser absoluto, mas, sim, condi­cional (8), prudencial.

Trata-se, com efeito, de decisões que — emanando, dc alguma sorte, do poder doutrinal do Papa, merecem evidentemente ser tomadas em alta consideração — não vêm, contudo, diretamente, senão de uma autoridade ter­restre e falivel. Pela mesma razão, sabe o católico que lhe não é de maneira nenhuma interdito supor que um erro qualquer se tenha insinuado em alguma dessas deci­sões, e preparar, por meio de mais aprofundadas pesqui­sas, uma solução definitiva da questão. Ele sabe que em presença de uma solução desta ordem, proposta por uma ciência firme, não manterá a Igreja seu veto. Ela não o havia pronunciado no intuito de sufocar a verdade, mas, sim, para que esta fosse mais aprofundada, e, pois, em definitivo, para preservar a teologia de hipóteses apres­sadas ou insuficientemente fundamentadas. A teologia é ciência de vida; suas afirmações têm repercussão direta so­bre a vida. A autoridade ensinante da Igreja, estabele­cida por Deus, guardiã da vida sobrenatural dos fiéis, não pode ver com indiferença a comunidade dos féis pertur­bada por opiniões novas, insuficientemente fundamenta­das do ponto de vista científico e que, antes de serem verdadeiramente estabelecidas, correm o risco de abalar a fé. Nada ignora o católico de tudo isso. Em teoria, pois, existe uma possibilidade de conciliação, de um modus vi- vendi entre a autoridade doutrinal e a liberdade de pes­quisa em teologia.

Mas, de fato, nem sempre se trata, em teologia, de ques­tões nas quais se pode submeter à autoridade ensinante uma solução exata, uma prova sem réplica, absolutamen­te definitiva. O mais das vezes, são problemas que ain­da não comportam solução rigorosamente exata e incon­testável. A solução só é possivel por uma espécie de in­tuição que resulta de uma visão de conjunto de todos os

8) A respeito do assunto encontrar-se-ão desenvolvimentos pre­cisos na obra do P. C h o u p i n, Valor das decisões doutrinais e disciplinares da Santa Sé, Paris, 2*. ed., 1929.

Quanto ao caso de Galileu, em particular, encontrar-se-ão in­formações seguras em V a c a n d a r d , Estudos de Critica c de História religiosa, págs. 295-393, Paris, 1906.

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dados. E’ então que os conflitos ameaçam produzir-se. O sábio sofrerá da contradição entre os seus dois ideais: sua fidelidade à Igreja de um lado, sua lealdade para com a verdade, de outro lado. Sofrimento nobre e santo, mas verdadeiro sofrimento. Vê-se ele preso à “cruz dos seus ideais”. E desta cruz ninguém o pode libertar.

Do catolicismo como tal surge um novo conflito entre a comunidade e os indivíduos. A Igreja é, antes de tudo mais, comunidade, a unidade da humanidade resgatada em Deus feito homem. Mas, precisamente por causa disto, é uma comunidade de pessoas, de indivíduos. Só se com­pondo de pessoas vivas, evidentemente, é que a Igreja se faz o corpo visivel do Cristo. Comunidade e indivíduos são igualmente indispensáveis à essência da Igreja. Da comunidade de fé e amor os indivíduos recebem sua vida nova. E, inversamente, as pessoas assim vivificadas dão à comunidade o que têm de melhor, a força viva, ar­dente, de sua fé e seu amor. Comunicam ao todo potên­cia e fecundidade. Apenas, quem diz comunidade diz vida comum, constituição, símbolo, lei. Por consequência, os indivíduos devem submeter-se voluntariamente ao dogma, à moral, ao culto e ao direito da Igreja. E eis de que for­ma vai nascer o conflito:

As personalidades são por demais ricas e complexas— cada indivíduo é único, é uma palavra de Deus que não mais se repete (9) — para que possam, em toda parte e em qualquer tempo, assumir sua função no orga­nismo da comunidade sem atritos penosos. Isto não se alcança nunca sem íntimas dificuldades, sem algum sacri­fício, sem que tenha o espírito de caridade de devotar-se e a si mesmo renunciar-se. Quanto mais rica, aliás, é

9) Em penetrante estudo de história da filosofia, E. Pr zy- w a r a (Goltgeheimnis der Welt — O mistério divino do mun­do, 1923), mostra claramente como a crença na personalidade, que domina toda a revelação, começa a aparecer entre os pen­sadores cristãos e atingiu a sua plena clareza filosófica com Es- coto e Suarez, ao passo que "a filosofia moderna da personali­dade vai acabar finalmente no suicídio da personalidade” (p. 164). As relações entre o indivíduo e a comunidade na Igreja consti­tuem, segundo ele, a mais fundamental das oposições, a qual só pode achar solução em Deus, em Cristo. Em sua obra sobre Deus (1926), desenvolve ele tal idéia, chegando a fazer dessa oposição fundamental a base de toda uma filosofia da religião.

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urna personalidade, mais terá de sofrer da parte da co­munidade, sobretudo da mediania pouquíssimo elevada que necessariamente terá de suportar na massa. Sem dúvida, rcstitiic a comunidade soberanamente em valor sobrena­tural a essa personalidade o que ela em seu favor sacrifi­cou. A comunidade é formadora: obriga ao amor e ao es­pirito de sacrifício, à simplicidade e à humildade; engran­dece a personalidade; aumenta-a de todo o bem que por nossos irmãos fizemos. Há, por fim, este lucro ainda mais precioso: a comunidade, corpo do Cristo, é a fonte pri­meira de toda a verdade e de toda a graça de Jesús. Se­jam quais forem, porém, as vantagens conferidas pela co­munidade, não fazem menos real o sacrifício provocado pela obrigação de curvar-nos e por-nos dentro da ordem. E’ o sofrimento com os membros do Cristo, porque “quan­do um membro sofre, todos os outros membros sofrem com ele”.

Há, por fim, uma terceira e última espécie de conflito, oriunda ainda da própria essência do catolicismo: o con­flito entre a piedade viva e a autoridade administrativa, entre o entusiasmo inspirado pelo Espírito Santo e a pru­dência, a rigidez do direito da Igreja. Esta espécie de opo­sição, encontramo-la de maneira impressionante na vida de um são Francisco de Assis. Os dois são, no entanto, indispensáveis à vida da Igreja: o Espírito que soprou no dia de Pentecostes há de sempre excitar à vida nova; para sempre continuará a trabalhar as almas em sua pro­fundidade e a suscitar nelas vigorosos impulsos e movi­mentos incontiveis. Para que esses movimentos, no en­tanto, não falhem, para que dêm frutos duradoiros, de­vem ser regulados, definidos, ordenados e organizados pela autoridade. Assim, de um lado, a vida de piedade pessoal precisa ser enquadrada, fixada pela Igreja em for­mas firmes para se não expor a agitações inúteis. De ou­tro lado, tem a forma fixada necessidade do movimento interior da vida e da experiência, para se não expor a ex­cessivo enrijecimento. Quanto mais antiga e venerável, tanto mais indispensável se lhe torna essa atividade vital. E’ numa ação comum bem adaptada que reside o se­gredo do movimento de vida religiosa na Igreja. Se esta ação comum não for assegurada, ou se o for insuficien­temente, "o Espirito geme”. Este sofrimento do Espírito

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é dos mais profundos e perturbadores, mas também dos mais santos e puros que possa um católico experimentar. Leiam-se, a este respeito, as cartas de santa Catarina de Sena ou a vida de são Clemente Maria Hofbauer.

E’ aí que pode a alma católica exclamar com Pedro Lippert: “Ah, Igreja católica, Anjo do Senhor, Rafael, que nos foi dado para guiar-nos em nossa peregrinação, pos­sas ter sempre a força de marchar com passò bastante vigoroso para que faças estalar, tu mesma, as formas rí­gidas e velhas. Igreja católica, Anjo do Senhor, possas ter sempre a força de agitar as asas com vigor bastante para sacudir a poeira que os séculos acumularam!” (10)

Tais são, ligeiramente expostos, os conflitos que nascem da própria essência de uma revelação sobrenatural e do próprio catolicismo. Como a si mesmo poderá um cató­lico explicá-los?

À luz da escatologia, do Além, à luz do pensamento de que, segundo as promessas mesmas do Senhor, a plena realização da Igreja não se acha terminada, de que a Igreja plenamente triunfante só ao fim dos tempos se manifestará, e de que, por isso, está nos desígnios de Deus que a Igreja do Cristo permaneça aqui em baixo in­completa, imperfeita, até à vinda triunfal do Filho do Homem. Este carater inacabado, incompleto da Igreja, para reconhecê-lo não precisamos da realidade brutal dos fatos. O próprio Cristo não permitiu que o ignorásse­mos. Desde o princípio, descreveu-nos o reino do céu como uma rede de pescar, na qual se encontram peixes de boa q má qualidade, como um campo no qual o joio cresce entre o trigo. Quando previne seus discípulos con­tra a procura "dos primeiros lugares” em seu reino, “não nos sugere acaso, de alguma sorte, as futuras invejas e divisões entre chefes da Igreja?” (Newm an ) . Quando nos descreve o “Intendente” que “maltrata os seus sub­ordinados, enquanto ele mesmo come, bebe e se embria­ga", não se dá que, involuntariamente, nosso olhar se vol­ta para esses “intendentes do reino dos céus, aos quais, como sucessores de Pedro, confiou as chaves do reino, e

10) P. L i p p e r t , Das Wesen des katholischen Menschen, p. 54.

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que tão lamentavelmente abusaram do encargo” ? (11). Pode-se dizer, com o cardial Newman: Cristo nos pre­vine precisamente contra a ilusão de que a Igreja da ter­ra deva apresentar-se sem mancha e sem ruga. Depois dele, o mesmo fizeram seus discípulos. São Paulo, par­ticularmente, se compraz em repetir que a Igreja aqui em baixo, toda animada pelo Cristo, traz os estigmas, não do Cristo glorificado, mas do Cristo sofredor, de sua mor-

te (véxQ(oaiç) (2 Cr 4, 11), de suas feridas (Gl 6, 7);

que os sofrimentos do Cristo “abundantemente se espa­lharam” sobre seus membros (2 Cr I, 5); que, sendo as­sim, deve-se falar de uma comunhão com os seus sofri­mentos (Felip 3, 10). O sofrimento, sob todas as formas, é, pois, um traço essencial da Igreja aqui de baixo. “Ainda é noite”, exclama santo Agostinho, para caracterizar o estado atual da Igreja, “ela estará nas trevas enquanto prosseguir em sua peregrinação na terra, e lhe é forçoso gemer ao peso de numerosas penas” (Ep LV, 5-10).

Mas, de outro lado — e esta segunda consideração fa­culta resolver o conflito — se o Cristo claramente predisse os pecados e as misérias, as fraquezas e a imperfeição da Igreja aqui de baixo, nem por isso deixou de limpida- mente prometer que as portas do Inferno não prevalece­rão contra ela e que o seu Espírito permanecerá conosco até ao fim dos séculos. A Igreja è o fermento que, lenta­mente, sem dúvida, mas de maneira contínua, deve pene­trar e levedar a massa inteira da humanidade, não obs­tante as suas resistências. Por isto, o católico deve mos­trar-se sereno, mesmo quando lhe pareça que a Igreja tom­bou em estado de amortecimento, e até de agonia. A his­tória mostrou sempre que os tristes momentos são segui­dos de ressurreições jubilosas e de tal forma gloriosas que esses períodos de estagnação e amortecimento sem­pre se afiguraram etapas preparatórias da renovação ma­

ravilhosa qije se lhes seguiu: espécie de sono de inverno durante os quais as forças se concentraram para a res­

surreição da primavera.O que se disse, em geral, da vida da Igreja, aplica-se,

em particular, ao seu ensino doutrinário. O Espírito de ver­dade, o Consolador, está sempre com a Igreja. Trabalha

I I ) N e w m a n , em P r z y w a r a - K a r r e r , Fülle der Zeiten, p. 8.

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nar e prosperar. Em outros termos: a vida da Igreja, o desenvolvimento de sua fé e sua caridade, a elaboração do seu dogma, de sua moral, de seu culto e de seu di­reito, tudo isto se acha em estreita dependência da fé e da caridade pessoal dos membros do corpo do Cristo. Pela elevação ou o rebaixamento de sua Igreja da terra. Deus recompensa o mérito ou pune o demérito dos fiéis. Pode-se dizer, em mui verdadeiro sentido, com são Pau­lo (Ef 2, 21, 22), que a Igreja, fundada pelo Cristo, é, não obstante, edificada tambem pela obra comum dos fiéis. Trabalhamos sempre na edificação do templo de Deus (Serm. 163, 3); e, precisamente, aqui em baixo, traba­lhamos em sua casa, isto é, na Igreja, diz profundamen­te santo Agostinho (Enar. 2, 6, in ps. 29). Quis Deus uma Igreja cujo pleno desenvolvimento e perfeição fos­sem o fruto da vida sobrenatural, pessoal, dos fiéis, de sua oração e de sua caridade, de sua fidelidade, de sua penitência, de seu devotamento.

Por isto não a estabeleceu como uma instituição aca­bada, perfeita desde o começo, mas, sim, que sempre dei­xa margem e convida a um esforço de construção. Em sua história interior, a Santidade e a Justiça de Deus estão perpetuamente em via de triunfar.

No fundo, porém, não será porque Deus é bom que dei­xa subsistir tanta fraqueza e miséria em sua Igreja ter­rena? Não estaremos no direito de enunciar o princípio paradoxal de que é em atenção a nós, à nossa sal­vação, que o corpo místico do Cristo se carregou de tal debilidade? A não ser assim, como poderia dar-se que nós, que “somos inclinados ao mal des­de nossa juventude”, e estamos sempre zonzos, sem­pre em luta, que jamais nos apresentamos sem man­cha, e jamais em pleno florescimento de virtude — teremos coragem de nos dirigir a uma Igreja na qual a santidade fosse não somente uma casta e ardente aspiração, mas já uma perfeição realizada? Não se­ria, acaso, essa beleza perfeita, para nós, exatamente um motivo inibitório? Em lugar de nos atrair e dar jú ­bilo, não serviria, antes, sua majestade a nos acusar e condenar? Como poderia ser essa Igreja rica, majestosa, a nossa mãe, a mãe dos pobres e miseráveis? Não, nós temos necessidade de uma mãe redentora que, por mais

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Í N D I C E

Cristo na Ig re ja ..................................

A Igreja, corpo do Cristo ..................

Ao Cristo pela Ig re ja .........................

A fundação da Igreja à luz da men­

sagem de Jesús ...................................

A Igreja e Pedro ................................

A comunhão dos Santos...................

A catolicidade.....................................

Fora da Igreja não há salvação . . .

A ação santificante da Igreja pelos

Sacramentos........................................

A ação educativa da Ig re ja ...............

A luta entre o ideal e a realidade . .