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A ESTRELA DO NORTE ILUMINANDO ATÉ O SUL UMA ETNOGRAFIA DA UNIÃO DO VEGETAL EM UM CONTEXTO URBANO Sérgio Góes Telles Brissac Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Otávio Velho Rio de Janeiro 1999

A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

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A Estrela do Norte Iluminando até o Sul. Um estudo sobre a União do Vegetal, de Sérgio Brissac.

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Page 1: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

A ESTRELA DO NORTE ILUMINANDO ATÉ O SUL

UMA ETNOGRAFIA DA UNIÃO DO VEGETAL

EM UM CONTEXTO URBANO

Sérgio Góes Telles Brissac

Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Dissertação de Mestrado

Orientador: Prof. Dr. Otávio Velho

Rio de Janeiro

1999

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A ESTRELA DO NORTE ILUMINANDO ATÉ O SUL UMA ETNOGRAFIA DA UNIÃO DO VEGETAL EM UM CONTEXTO URBANO

Sérgio Góes Telles Brissac

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por: ___________________________________________________ - Orientador

Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho ___________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte ___________________________________________________

Profa Dra Regina Novaes

Rio de Janeiro

1999

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Brissac, Sérgio Góes Telles

A Estrela do Norte iluminando até o Sul: uma etnografia da

União do Vegetal em um contexto urbano / Sérgio Góes Telles

Brissac. Rio de Janeiro: UFRJ / MN / PPGAS, 1999.

IX, 148 p. il. 30 cm.

Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu

Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social.

1. Antropologia. 2. Ayahuasca. 3. Religião - Brasil -

União do Vegetal. I. Título.

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A José Gabriel da Costa, Mestre e Autor da União do Vegetal

A Lyzette, minha mãe, e Ney, meu pai,

por toda a força, a coragem e o amor que vêm me transmitindo

MINHA GRATIDÃO

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- Ao meu orientador Prof. Otávio Velho, por sua amizade, compreensão e estímulo, e por ter, com a sua inspiradora sensibilidade à religião, me iniciado nos caminhos da Antropologia

- Aos professores Pierre Sanchis, Regina Novaes e Leila Amaral Luz, que me animaram e apoiaram por ocasião da entrada no mestrado

- Ao Prof. Carlos Alberto Afonso, por sua generosidade e pelo precioso auxílio no momento da conclusão deste texto

- Aos meus professores no curso de mestrado em Antropologia, Luiz Fernando Dias Duarte, Gilberto Velho, Moacir Palmeira, José Sérgio Leite Lopes, Carlos Fausto, Luis de Castro Faria e Michael Heckenberger - À CAPES, que me concedeu a bolsa de estudos para o mestrado

- A Thaïs Martins Echeverria, amiga que me apresentou à União do Vegetal em Campinas e com carinho vem me acompanhando

- Aos colegas no estudo das religiões ayahuasqueiras Luis Eduardo Luna, Afrânio Patrocínio de Andrade, Bia Labate, Wladimyr Sena do Araújo, Sandra Goulart, Edward MacRae e Clodomir Monteiro, Gustavo Pacheco e Benny Shanon - A Cristina Patriota de Moura, pela sua amizade e valioso apoio

- Aos meus colegas de mestrado Maria Macedo Barroso, João Felipe Gonçalves, Laura Masson, , Valéria Torres da Costa e Silva, Edmundo Marcelo Pereira, Hyppolite Brice Sogbossi, Hernan Gómez, Jorge Fernando Pantaleón, José Gabriel Corrêa, Pedro Alvim Leite Lopes, Ayrton José Germano e André Luiz Correia Lourenço - Aos funcionários da Secretaria e da Biblioteca do PPGAS: Tânia Lúcia Ferreira da Silva, Aurora Fernandes, Vera Gutierrez, Adilson Moreira Fontenelle, Rosa Maria Gonçalves Pereira, Isabel Cristina de Souza Mello, Washington Rodrigues da Silva, Rita de Souza Santos Saraiva, Maria Izabel Wernesbach Moreira, Lourdes Cristina Araújo Coimbra e Carla Regina Paz de Freitas, pela atenção e disponibilidade em auxiliar - Ao P. Aloir Pacini, companheiro na Antropologia e na Companhia de Jesus, pela força e pelo estímulo na caminhada - À Companhia de Jesus, que vem me apoiando na realização deste trabalho, na pessoa do P. Francisco Ivern, Provincial que me confirmou no direcionamento para a Antropologia, e do P. José Antonio Netto de Oliveira, atual Superior da Província do Brasil Centro-Leste - Aos Padres Donizetti Tadeu Venâncio, Luiz Fernando Klein, José Luis Fuentes, Acir Miranda, Valdeli Costa, Spencer Custódio Filho e ao Ir. Antônio Marques, meus companheiros de comunidade

- Aos Padres Luiz AntônioMonnerat, Walter Salles e toda a comunidade do Noviciado de Campinas, que com carinho me acolheu nos três meses do trabalho de campo

- Aos Padres Henrique de Lima Vaz, Ulpiano Vázquez, João Batista Libânio e demais professores do CES-SJ pela formação filósofico-teológica que recebi

- À União do Vegetal, na pessoa do Mestre José Luiz de Oliveira, Mestre da Origem e Assistente do Mestre Geral Representante, pelo apoio e amizade

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- Ao Mestre Raimundo Monteiro de Souza, que primeiramente acolheu minha proposta de estudar os discípulos da UDV, quando Mestre Geral Representante, ao Mestre Florêncio Siqueira de Carvalho, atual Mestre Geral Representante e ao Mestre Clóvis Cavalieri Carvalho, Mestre Central da 5ª Região - Ao Mestre Edison Saraiva Neves, Presidente da Diretoria Geral da UDV, e ao Mestre Raimundo Nonato Marques, ex-Mestre Geral Representante, pela confiança que em mim depositaram, autorizando esta pesquisa

- A toda a irmandade do Núcleo Alto das Cordilheiras, pela generosa acolhida, pela amizade e pelo seu auxílio, fundamental para a realização deste trabalho; especialmente sou muito grato aos Mestres Spencer, Sérgio, Fernando, Mauro e Luiz Fernando; às Conselheiras Lúcia, Íris, Ilka e Zezinha; ao Conselheiro Vagner e à minha amiga Nélia - À Conselheira Lúcia Gentil pela dedicação e carinho com que acompanhou meu trabalho - A Ernesto Boccara, Spencer Pupo Nogueira, Maria Carolina Santos e Fernando Ramos, por possibilitarem a todos que lerem este trabalho uma visão da beleza de sua arte

- À Conselheira Ivone Menão e ao Conselheiro Renato Palet, do Departamento de Memória e Documentação do CEBUDV, pelo importante auxílio; ao Mestre Márcio da Rós e equipe do escritório da Diretoria Geral, pelos dados do censo; a José Clóvis Santos e Mestre Yuugi Makiuchi, pelas fotos

- A Fernando Polignano, Marco Aurélio e Maria Amélia Ramos, Marcelo Muniz e Maria Célia Furtado, Jorge e Fátima Condé, Antonio Honorio, Victor Sabbagh, Paulo Bourroul, Luis Antonio e Lacy, Bruno e Michelle Wider, Carlos Queiroz, José Luis Petruccelli, José Augusto Pádua, Myrna do Rego Monteiro, Luiz Eduardo Parreiras e Oraida de Souza, Marcelo e Márcia Cunha, Guilherme Oberlaender, José Renato Pessoa, Henrique Boechat de Lacerda, Celina Sodré e tantos amigos da União do Vegetal... - A Luiz Daré, Tereza Moreira e Nei, através de quem cheguei a conhecer a União do Vegetal, pela amizade fiel

- A Maria Ferreira, Nilton Leôncio, Jandira, João, Antonieta, Arlinda, Paulo e todos os meus irmãos e irmãs da Comunidade Nossa Senhora Aparecida, na Rocinha, com quem venho celebrando a fé nestes três anos no Rio de Janeiro

- À Ir. Maria de Lourdes do Sagrado Coração de Jesus, Neuza Cazula, Denair e Therezita, pelas orações

- A Vera Lúcia Garcia Medeiros, Lindalva Vitor Ferreira Alves, Marli Ana Camilo, Carlos Alberto Perón e todos os funcionários da Residência João XXIII

- A Helcio, Lise, Denise, Ana Lúcia, Amaral, Leopoldo, Ana Paula e todos os amigos

- A Juliana, minha irmã querida, Mariza, Viô, Leonor, Carmen, Christiana e toda a minha família, pelo carinho para comigo - A Jailton Gomes de Jesus, por ser o amigo que é

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RESUMO

Esta dissertação apresenta a etnografia de um núcleo da União do Vegetal (UDV),

religião brasileira fundada em 1961, na Amazônia, por José Gabriel da Costa e atualmente

disseminada pelo território brasileiro. A UDV tem como elemento central de seu ritual a

ingestão de um chá denominado Hoasca ou Vegetal, preparado com duas plantas: o cipó

mariri (Banisteriopsis caapi) e o arbusto chacrona (Psychotria viridis). Esse chá, de

propriedades psicoativas, é utilizado amplamente na Amazônia ocidental, sendo também

denominado ayahuasca, yajé e Daime.

A pesquisa de campo foi realizada em um contexto urbano, estudando-se, em 1998,

o Núcleo Alto das Cordilheiras, em Campinas, São Paulo. Através dessa etnografia, busca-

se captar a estrutura matricial da UDV, os seus aspectos constitutivos. Estes são

identificados segundo um esquema triádico: o modelo organizacional, a narrativa histórica

e a experiência simbólica. O primeiro capítulo apresenta a estrutura institucional do Centro

Espírita Beneficente União do Vegetal; o segundo traça o itinerário histórico da sua

formação, a partir das narrativas dos participantes; e o terceiro aborda a vivência dos

discípulos urbanos da UDV, apontando para a originalidade da experiência religiosa com o

chá Hoasca, que plasma a matriz da União do Vegetal.

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ABSTRACT

This dissertation presents the ethnography of a nucleus of the União do Vegetal

(UDV), a Brazilian religion founded in 1961 in the Amazon region by José Gabriel da

Costa and now spread throughout the Brazilian territory. The UDV has as the central

element of its ritual the ingestion of a tea denominated Hoasca or Vegetal, made from two

plants: the liana mariri (Banisteriopsis caapi) and the shrub chacrona (Psychotria viridis).

This tea, with psychoactive properties, is widely utilized in the western Amazon region, and

it is also called ayahuasca, yajé and Daime.

The field work involved was carried out within an urban context in Campinas, State

of São Paulo, Brazil, in 1998, the Núcleo Alto das Cordilheiras being the object of this

study. By this ethnography, it is sought to grasp the matrix structure of the UDV, its

constitutive aspects. These are identified according to a triadic scheme: the organizational

model, the historic narrative and the symbolic experience. The first chapter deals with the

institutional structure of the Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (Beneficent

Spiritualist Center União do Vegetal); the second traces the historic itinerary of its

formation, originating from the narratives of its participants; and the third exposes the

experience of the urban disciples of the UDV, thereby pointing to the originality of the

religious experience with the Hoasca tea which moulds the matrix of the UDV.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... p. 1 1. GEOMETRIA DA ESTRELA 1.1. ESTRUTURA INSTITUCIONAL DA UNIÃO DO VEGETAL ........................p. 8 1.2. O NÚCLEO ALTO DAS CORDILHEIRAS EM CAMPINAS .........................p. 23 1.3. OS DISCÍPULOS DO ALTO DAS CORDILHEIRAS ......................................p. 37 2. A ESTRELA DO NORTE 2.1. A VIDA DE MESTRE GABRIEL ...................................................................p. 50 2.2. OS PRIMEIROS ANOS DA UNIÃO DO VEGETAL EM PORTO VELHO ...p. 64 2.3. A PRESENÇA DA UDV EM SÃO PAULO A PARTIR DOS ANOS 70 ........p. 80 3. A ESTRELA ILUMINANDO 3.1. ALGUMAS HISTÓRIAS DE VIDA ..................................................................p. 87 3.2. ALCANÇAR O ALTO DAS CORDILHEIRAS ..............................................p. 100 3.3. O ENGLOBAMENTO NA FORÇA DA BURRACHEIRA ...............................p.131 CONCLUSÃO: O ITINERÁRIO DA DISSERTAÇÃO ..............................................p.139 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ p.141 ANEXOS.................................................................................................................. p. 149

INTRODUÇÃO

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�Isso não é falável.

As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca.

Cabem é no brilho da noite.

Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!� João Guimarães Rosa, Grande Sertão - Veredas

As absolutas estrelas são consideradas inefáveis pelo jagunço Riobaldo Tatarana.

No entanto, ele teima em delas falar. Distendendo ao máximo as virtualidades do verbo, ele

performatiza a sua busca de ultrapassagem da inefabilidade. E assim como ele, também os

poetas cantam, os místicos balbuciam, os profetas gritam, movidos por essa aragem do

sagrado. E não somente esses, mas também aqueles que desposaram o lógos apodeiktikós -

a razão demonstrativa - teimam em falar daquilo que cabe no brilho da noite. Dentre esses

últimos eu me incluo, e nesta dissertação buscarei falar da Estrela do Norte, a partir do

modo como as retinas do Sul captam a luz que ela irradia.

As raízes desta dissertação remontam a 1992. Naquele ano, no dia 4 de julho, tive

meu primeiro contato com o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV),

participando de uma sessão em Campinas, Estado de São Paulo. Trinta e um anos antes, em

1961, a União do Vegetal (UDV) havia sido fundada na floresta amazônica, num seringal

boliviano próximo à fronteira com o Brasil, por José Gabriel da Costa, chamado por seus

discípulos de Mestre Gabriel. Articulando elementos do catolicismo popular, do

xamanismo amazônico, do espiritismo kardecista e dos cultos afro-brasileiros, a União do

Vegetal tem como centro de seu ritual a ingestão de um chá denominado Hoasca ou

Vegetal, preparado com duas espécies vegetais: o cipó mariri (Banisteriopsis caapi) e o

arbusto chacrona (Psychotria viridis). Esse chá, de propriedades psicoativas, é utilizado

amplamente na Amazônia ocidental, por populações indígenas ou não, em áreas do Brasil,

Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela, recebendo diversos nomes, entre os quais,

ayahuasca, yajé, Daime. Além da União do Vegetal, há no Brasil várias instituições

religiosas que fazem uso ritual da mesma bebida. Essas outras correntes podem ser

classificadas esquematicamente em duas vertentes: a do Santo Daime e a da Barquinha. Na

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UDV, o uso do chá é �para efeito de concentração mental�1, segundo o seu Regimento

Interno.

A primeira sessão da qual participei em Campinas foi com o grupo que

posteriormente se tornou o Núcleo Alto das Cordilheiras. Fui convidado por uma amiga,

que no momento fazia mestrado em Antropologia Social na Unicamp. O grupo recebeu-me

gentilmente, e me senti bem acolhido, apresentando-me como religioso católico, membro

da Companhia de Jesus. A sessão foi dirigida por uma mulher, a conselheira esposa do

então Mestre Responsável por aquela unidade da União do Vegetal. O grupo havia

recentemente se desmembrado do primeiro núcleo de Campinas, o Lupunamanta. E tinham

sido precisamente as pessoas mais antigas na União do Vegetal que decidiram, diante do

grande número de pessoas do Lupunamanta, se reunir para iniciar uma nova distribuição de

Vegetal. Portanto, deparei-me com um grupo maduro, perfazendo em torno de 30 pessoas,

formado em sua maior parte por gente que já bebia o chá Hoasca há alguns anos. A sessão

foi brilhante e nela decidi prosseguir minha observação em núcleos do Centro Espírita

Beneficente União do Vegetal, ao invés de no pequeno grupo que havia visitado

anteriormente.

Alguns meses antes, no dia 7 de março de 1992, conheci pela primeira vez um

grupo usuário do chá Hoasca. Nesse tempo, morava na Cidade de São Paulo e trabalhava

como professor em um colégio. Fizera graduação em Filosofia e pensava em um mestrado

futuro em Antropologia Social, possivelmente acerca das religiões afro-brasileiras. Assim,

tinha querido conhecer aquele grupo, de aproximadamente sete pessoas, que bebia o chá

sem uma estrutura institucional, na medida em que haviam se distanciado de uma

dissidência da União do Vegetal2. Tendo participado de algumas sessões com essas

pessoas, interessei-me em conhecer o grupo original, o CEBUDV, o que logo veio a

acontecer naquela noite de 4 de julho do mesmo ano. Sentia-me vivenciando uma

experiência de diálogo inter-religioso, partilhando com membros de uma crença diversa da

minha uma busca espiritual de auto-conhecimento e abertura para o transcendente,

vivenciada por eles com a mediação de um veículo considerado propiciador de uma

expansão da consciência.

1 Artigo 1o , Parágrafo Único, do Capítulo I do Regimento Interno do CEBUDV. (CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 92). 2 Vide no anexo 1 o quadro das dissidências da UDV, com informações que obtive sobre as mesmas.

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Em 1992, fui duas vezes na Distribuição da UDV de Campinas e depois freqüentei o

Núcleo Samaúma de São Paulo, o primeiro que foi fundado na Região Sudeste, em 1972.

Comecei a participar de cada sessão quinzenal da UDV. Também conheci o Santo Daime,

no Rio de Janeiro, e uma dissidência da UDV em São Paulo. Em 1993, mudei-me para Belo

Horizonte e dei seqüência ao contato com a União do Vegetal, no Núcleo Rei Salomão. Em

1996, transferi-me para o Rio de Janeiro, para iniciar o Mestrado em Antropologia Social,

e fui ordenado padre da Igreja Católica. Mantive o contato com a UDV, freqüentando as

sessões do Núcleo Pupuramanta, em Vargem Pequena, Jacarepaguá. Enquanto antropólogo,

dava continuidade à observação e à reflexão acerca da UDV e enquanto ministro da Igreja

Católica, buscava vivenciar uma atitude de respeito diante da alteridade e de empenho no

diálogo inter-religioso.

Em 16 de agosto de 1998, voltei a Campinas, fazendo-me presente em uma sessão

no Núcleo Alto das Cordilheiras, formado por aquelas pessoas que eu encontrara em 1992.

Voltava como mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional, para

iniciar meu trabalho de campo. Ou melhor, este havia começado seis anos antes, e depois

desse período de tempo eu voltava àquele grupo, com o objetivo de realizar a fase intensiva

da experiência etnográfica.

Este breve recorrido de minha trajetória é apenas para propiciar ao leitor alguma

noção das implicações deste percurso na construção da dissertação. Observo que a minha

condição específica, enquanto ministro ordenado de outra religião, evidentemente teve o

seu impacto neste trabalho. A primeira reação das pessoas - inclusive dos discípulos da

UDV - costumava ser de perplexidade: �Você é padre? Estudando a União do Vegetal?�

Desse espanto inicial, ia-se às vezes para uma atitude de desconfiança: �Quem será esse aí?

Um espião da Igreja?� Igualmente em alguns de meus companheiros jesuítas pude constatar

uma certa estranheza diante desse tema �insólito�.

Felizmente, com a grande maioria das pessoas da União do Vegetal com quem

mantive contato essas fases foram superadas com o estabelecimento de uma relação de

mútuo conhecimento e confiança. E com muitas pessoas essa relação intensificou-se, na

constituição de sólidos e verdadeiros laços de amizade. Foram-me necessárias paciência e

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determinação para ir ultrapassando essas etapas. E ao longo do tempo vivi a gratificante

experiência de ser acolhido, recebendo apoio, confiança e afeição de um significativo

número de pessoas, em diversos núcleos da UDV. Assim, se no início minha pertença a

uma ordem religiosa da Igreja Católica parecia quase inviabilizar uma pesquisa

antropológica na UDV, posteriormente, especialmente no trabalho de campo no Núcleo

Alto das Cordilheiras, essa condição foi algo que até mesmo me auxiliou no relacionamento

com os discípulos da União. Desse modo, meu lugar social de antropólogo-padre-amigo

propiciou-me uma mescla de proximidade e distanciamento fecunda para a minha pesquisa

e reflexão, as quais reconheço, desde já, situadas.

Nesta dissertação limitar-me-ei ao estudo do Centro Espírita Beneficente União do

Vegetal, renunciando a qualquer intento comparativo com as demais religiões usuárias da

mesma bebida psicoativa. Isto não somente por carecer de uma experiência etnográfica com

as comunidades do Santo Daime ou da Barquinha, mas também por considerar que a União

do Vegetal constitui um campo com uma autonomia e relevância específicas.

O programa desta dissertação é apresentar a estrutura matricial da UDV, através da

etnografia de um de seus núcleos, situado em um contexto urbano. O Núcleo Alto das

Cordilheiras, em Campinas, cidade com aproximadamente 900 mil habitantes3, foi

escolhido como o lugar para o trabalho de campo desta pesquisa. Não que ele pudesse ser

considerado como adequado para uma �amostragem representativa� da UDV no Brasil,

nem mesmo da UDV na Região Sudeste. Mas, tendo em vista o perfil de seus participantes,

é possível considerá-lo como emblemático de um núcleo da União do Vegetal em um

contexto urbano sob o impacto da modernidade. Ora, constata-se a tendência de que essa

estrutura matricial vem se reproduzindo cada vez mais nas grandes cidades brasileiras.

Assim, a escolha desse local apresenta-se como procedente não só em termos de

compreensão do momento presente da UDV no Brasil, mas também num enfoque

prospectivo. Além do trabalho de campo nesse núcleo, desde 1992 tive a oportunidade de

conhecer quinze outras unidades do CEBUDV, situadas principalmente em áreas urbanas

da Região Sudeste4. A observação desses núcleos me foi valiosa para que eu pudesse

3 Segundo o IBGE, Campinas contava em 1996 com 908.906 habitantes. Dados da contagem populacional de 1996. Disponível na INTERNET via http://www.ibge.org/informacoes/estat1.htm. Arquivo consultado em 1999. 4 Vide, no anexo 4, a lista das unidades do CEBUDV já visitadas por mim.

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discernir melhor que aspectos do Núcleo Alto das Cordilheiras deviam ser considerados

como peculiaridades suas e quais poderiam ser vistos como indicativos de uma tendência

mais ampla da UDV em contexto urbano. Também foi de suma importância para esta

dissertação o acesso a fontes históricas orais diretas e indiretas, através de entrevistas de

mestres que conviveram com o Mestre Gabriel e da pesquisa nos arquivos do Departamento

de Memória e Documentação do CEBUDV, em sua Sede Geral, em Brasília.

O que entendo aqui por estrutura matricial? Trata-se dos aspectos constitutivos da

União do Vegetal, que podem ser identificados segundo um esquema triádico: o modelo

organizacional, a narrativa histórica e a experiência simbólica. O objetivo não é fazer um

mapeamento completo da organização matricial da UDV, mas colocar a ênfase sobre estes

aspectos: institucional, histórico e simbólico, reconhecendo, todavia, que a matriz é mais

vasta do que esses três aspectos.

É importante considerar que o aspecto doutrinário é um elemento constitutivo

essencial em toda a matriz de uma tradição religiosa. No início de minha aproximação da

União do Vegetal, minha intenção era estudar sua cosmologia e metafísica, a partir de sua

narrativa doutrinária e de suas formulações no ritual. Mas uma dimensão emblemática da

UDV é que a partilha da doutrina é parte da própria economia simbólica desta religião, em

particular a proibição da divulgação desses princípios fora da comunidade ritual. Portanto,

o aspecto doutrinário não é referido neste trabalho por razões de uma ética etnográfica,

segundo o modo de minha experiência de contato com a UDV. Limito-me aqui a

compendiar as principais informações acerca da doutrina, publicadas pelo próprio

CEBUDV:

�A União do Vegetal professa os fundamentos do Cristianismo, resgatando-os em sua

pureza e integridade originais, livres das distorções que lhes imprimiu, ao longo dos

séculos, a mão humana. [...] A conseqüência mais grave desse fenômeno [fim da

transmissão oral da doutrina] - um subproduto da institucionalização do Cristianismo -

foi o desvio doutrinário, que resultou na exclusão de pelo menos uma Verdade de Fé da

doutrina de Jesus Cristo, fundamental para a perfeita compreensão do conceito de

Justiça Divina: a reencarnação. [...] A doutrina da União do Vegetal é cristã porque

sustenta que Jesus Cristo, Filho de Deus, é a expressão da Divindade e Sua Palavra

aponta o caminho da Salvação para a humanidade. A União do Vegetal crê na Virgem

Maria, Nossa Senhora Imaculada, mãe de Jesus. [...] A União do Vegetal considera o

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chá Hoasca uma dádiva de Deus, um instrumento para acelerar a caminhada evolutiva

do homem, devolvendo espiritualidade a uma civilização inebriada pela lógica

cientificista. Mesmo assim, não vê o chá como um fim em si mesmo, mas como um

veículo para uma caminhada que exige sacrifícios e renúncias e cuja base é a doutrina

de fundamentação cristã, aprofundada pelos ensinamentos transmitidos por Mestre

Gabriel. [...] Trata-se de religião que já existira na Terra, muitos séculos antes de

Cristo. Sua origem data do século X A.C., no reinado de Salomão, rei de Israel. Por

razões diretamente ligadas ao baixo grau de evolução espiritual da humanidade na

época, a União do Vegetal desapareceria por longo período. Ressurge entre os séculos

V e VI, no Peru, na civilização Inca (cujo advento e apogeu a historiografia oficial

registra apenas entre os séculos XIII e XIV).� (CENTRO ESPÍRITA

BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1989, p. 22.23.26.34.35).

No aspecto estrutural, abordarei não apenas os elementos característicos da

instituição denominada Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, mas também

indicarei certos traços estruturais da experiência com a Hoasca. A questão da história, nesta

dissertação, necessita de uma explicação. Não se trata de uma historiografia da UDV, mas

de uma reconstrução histórica a partir das próprias narrativas dos participantes. Esta

narrativa �histórica� é, portanto, parte do processo da representação nativa. Mas, ao mesmo

tempo não se trata da narrativa fundante da União do Vegetal, a História da Hoasca, e das

demais Histórias do corpus doutrinário, na medida em que estas pertencem ao plano do

domínio reservado do discurso, aquilo que indiquei como um limite desta abordagem.

Assim, o termo narrativa histórica indica aqui a história formativa da UDV, seu processo de

formação e disseminação entre os anos 60 e 90, tal como é descrito por seus protagonistas.

Finalmente, o problema da experiência simbólica a partir do uso ritual do chá Hoasca, será

descrito a partir de histórias de vida de alguns membros e de categorias fundamentais do

discurso nativo, que apontarão para o que designei neste trabalho como �o englobamento na

força da burracheira�.

�A Estrela do Norte iluminando até o Sul� é um título inspirado na Chamada Estrela

do Norte, de Mestre Gabriel. A Estrela do Norte evoca a própria União do Vegetal, que

seus discípulos reconhecem como uma realidade que está �no alto� e vem iluminando os

seres humanos que se encontram �aqui embaixo�. Assim, essa estrela, cujos raios,

originários do céu, alcançam e clareiam a terra, pareceu-me bela metáfora para falar de uma

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matriz que é princípio de constituição e reprodução, um eidos - sempre corporificado - que

se concretiza em contextos locais específicos. Além disso, o binômio norte-sul pode trazer à

mente do leitor a origem amazônica da UDV e a sua disseminação nas terras urbanas do

�sul� brasileiro, nas quais o Núcleo Alto das Cordilheiras se situa. Mesmo que seja para,

em seguida, superar essa antinomia e compreender que, desde o início, a dimensão urbana

está presente no �norte�, e o �norte� na vivência urbana dos discípulos do �sul�, numa

interação dialética.

Ao longo dos sete anos de meu contato com a UDV, este foi o trabalho que resultou

de um comprometimento entre pesquisa e ética etnográfica. Desta forma, foram os aspectos

da organização institucional, a importância da narrativa histórica como processo de auto-

representação fundacional e o acesso à experiência simbólica dos participantes que

determinaram o percurso etnográfico desta dissertação, na busca de um delineamento da

matriz da �Estrela do Norte�.

4. A GEOMETRIA DA ESTRELA

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4.1. A ESTRUTURA INSTITUCIONAL DA UNIÃO DO VEGETAL

�Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.�

Fernando Pessoa, Mensagem Certa vez, encontrei no mural de um núcleo da UDV na Cidade de São Paulo, o São

João Batista, este verso de Fernando Pessoa que escolhi como epígrafe. O mural

apresentava as atividades dos membros do núcleo na construção de seu templo definitivo. O

verso de Mensagem servia de mote e estímulo para o comprometimento das pessoas com

aquela obra, que eles apontavam como querida por Deus e sonhada pelo homem. E mais do

que a obra de tijolos e cimento daquele templo, percebo que há entre a maioria dos

discípulos da UDV o sentimento de participarem de uma obra mais ampla: a implantação e

solidificação no Brasil e, na seqüência, pelo mundo afora, de uma instituição denominada

Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Portanto, ainda que o objeto central desta

dissertação seja a vivência dos participantes urbanos da União do Vegetal, considero

necessário iniciar situando o leitor com alguns dados acerca da instituição à qual tais

participantes aderem, contribuindo para sua continuidade e expansão no Brasil urbano.

Assim, neste capítulo, com um corte sincrônico, brevemente abordarei como que a

�geometria� da estrela, as linhas básicas da estrutura dentro da qual se insere a agência dos

indivíduos que observei.

Os núcleos e sua organização

A UDV organiza-se, no nível local, em núcleos. O núcleo é o lugar onde se reúnem

quinzenalmente os participantes, designados de sócios, para beberem o chá Hoasca dentro

de um ritual, denominado sessão. Quando uma unidade local é iniciada, primeiramente é

chamada de distribuição autorizada, depois de pré-núcleo e só posteriormente, quando

adquire uma estrutura material mais sólida e um quadro de participantes na hierarquia mais

amplo, é que atinge o nível de núcleo. O início de uma distribuição autorizada costuma

contar com por volta de 30 participantes. Já em um pré-núcleo o número de sócios é da

ordem de grandeza de 50. E um núcleo, por sua vez, pode ter desde uns 70 até por volta de

200 participantes. Porém, é comum que, ao alcançar o patamar de 150 sócios, o núcleo já

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comece um processo de segmentação, pelo qual algumas pessoas se dispõem a sair do

núcleo e principiar uma distribuição autorizada em outro local da mesma cidade5.

No aspecto �espiritual�, o núcleo é dirigido, por um Mestre Representante. Esta

função é assim nomeada porque aquele que a ocupa representa o Mestre Gabriel, fundador

da UDV. O Representante integra o Quadro de Mestres (QM), o conjunto daqueles que têm

a função de comunicar a doutrina da União do Vegetal, designados com o nome de maior

poder simbólico na UDV: Mestre. Dentre os Mestres é feito um rodízio a cada dois meses,

para que um deles ocupe o lugar de Mestre Assistente, responsável por assistir o Mestre

Representante e os discípulos e conservar a disciplina durante o ritual. Até o presente, só há

uma mulher no Quadro de Mestres, Raimunda Ferreira da Costa, a Mestre Pequenina,

esposa de José Gabriel da Costa, que foi convocada por ele ao QM. Ainda que não haja

uma lei escrita da UDV vedando esse lugar às mulheres, muitos (e muitas) consideram que

somente os homens podem chegar a ser mestres. Depois do Quadro de Mestres, há na

hierarquia o Corpo do Conselho (CDC), formado pelos Conselheiros e Conselheiras,

auxiliares dos Mestres, junto com os quais formam a Administração do núcleo. Em

seguida, há o Corpo Instrutivo (CI), formado por aqueles discípulos que já freqüentam a

UDV há um certo tempo e têm um compromisso de participação maior nas atividades,

tendo sido convocados pelo Mestre-Representante para assistir as sessões instrutivas,

vedadas aos demais sócios, durante as quais são transmitidos os ensinamentos restritos da

União do Vegetal. Por fim, há o Quadro de Sócios (QS), formado por todos os discípulos

que se associam ao CEBUDV.

Essas �classes de discípulos� podem ser compreendidas de dois modos: num sentido

estrito, referindo-se apenas ao segmento que designam, ou num sentido abrangente,

incluindo também os segmentos superiores na hierarquia. Assim, num sentido estrito, os

discípulos do Quadro de Sócios são aqueles sócios que não são do CI, nem do CDC, nem

do QM. Já segundo um sentido abrangente, até mesmo os mestres fazem parte do QS6. Este

5 Recentemente, houve uma mudança das diretrizes da Diretoria Geral acerca desse processo. O procedimento mais comum agora tem sido de manter o novo grupo reunido por um tempo no núcleo original. Somente quando esse grupo se torna mais numeroso e já tem adquirido um terreno para sede definitiva, é que ele sai , formando um pré-núcleo, sem passar pela fase de distribuição-autorizada. 6 De acordo com o Estatuto da UDV, �o quadro de filiados do Centro, entre fundadores e efetivos, compreende três classes de sócios: Mestres, Conselheiros e Discípulos�. Artigo 39 do Estatuto. (CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 86). Para mais informações a respeito da estrutura hierárquica da UDV, consultar: GENTIL, Lucia Regina Brocanello e GENTIL, Henrique Salles. O

Page 19: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

19

duplo sentido pode ser expresso num diagrama de círculos concêntricos, no qual as cores

distintas indicam o sentido estrito e o desenho dos círculos, os maiores englobando os

menores, indicam o sentido abrangente:

No �plano material�, o núcleo está sob a direção de um presidente, também mestre,

que encabeça uma diretoria (presidente, vice-presidente, 1o e 2o secretários, 1o e 2o

tesoureiros, orador oficial), eleita por todos os sócios para um mandato de dois anos. À

diretoria cabe, entre outras funções, coordenar as atividades necessárias para a estruturação

material do núcleo, tais como: obras de construção do templo, casa de preparo do Vegetal,

cantina, banheiros, berçário; plantio de mariri e chacrona; eventos para a arrecadação de

fundos para as obras; organização do pagamento da mensalidade dos sócios7. Há ainda a

uso de psicoativos em um contexto religioso: a União do Vegetal. In: LABATE, Beatriz, ARAÚJO, Wladimyr Sena, no prelo. 7 O valor médio da mensalidade, por todo o Brasil, é de 10 % do salário mínimo. Mas não há necessariamente o mesmo valor para todos os núcleos, podendo haver algumas variações, de acordo com as necessidades e condições do grupo. No Núcleo Alto das Cordilheiras o valor atual da mensalidade é de R$ 15,00. Há também o Fundo de Participação, que se remete mensalmente para a Sede Geral, atualmente no valor de R$ 5,00 por pessoa. Além disso, há a Taxa de Preparo, na ocasião em que se faz preparo (a cada 4 meses aproximadamente). O valor é bem variável, para cobrir os gastos de transporte do mariri e da chacrona e preparo do chá. Quanto a essas três taxas, importa observar que nos casos em que o sócio não pode pagar o valor completo, é possível a ele falar com os responsáveis e só pagar o que estiver ao seu alcance.

QUADRO DE

SÓCIOS

CORPO INSTRUTIVO

CORPO DO CONSELHO

QUADRO DE

MESTRES

Page 20: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

20

função da Ogan8, mulher responsável por coordenar a arrumação do templo e sua limpeza,

assim como o que se refere à alimentação. Essa função é ocupada pelas Conselheiras, em

rodízio com duração de dois meses. O nome desta função é uma reminescência do tempo

em que Mestre Gabriel participava de cultos afro-brasileiros, nos quais, entre os ogãs,

auxiliares de confiança do chefe do terreiro, há aqueles que têm a responsabilidade de zelar

pela ordem, limpeza e conservação do terreiro.

A Sede Geral e os Departamentos no nível nacional

Até 1982, a Sede Geral do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal localizava-

se na cidade de Porto Velho, Rondônia. Naquele ano, houve a transferência da Sede Geral

para Brasília, Distrito Federal. Na Sede Geral fica o Mestre Geral Representante,

autoridade máxima do CEBUDV. Ele é eleito para um mandato de três anos pelo Conselho

de Administração, formado pelos mestres representantes de todos os núcleos, os mestres da

origem (aqueles que receberam do Mestre Gabriel a estrela de mestre) e mais alguns

mestres da Sede Geral, reunidos em sessão. No seu �aspecto material�, o CEBUDV é

administrado por uma Diretoria Geral, eleita para um mandato de três anos pelo mesmo

Conselho de Administração. A Diretoria Geral tem seus trabalhos dirigidos por seu

Presidente, ao qual �compete representar a sociedade�9.

Há, no nível nacional, departamentos que cuidam de áreas específicas: o

Departamento Jurídico, o Departamento de Memória e Documentação (DMD), o

Departamento Médico-Científico (DEMEC) e outros. O DMD foi chamado, a princípio, de

Centro de Memória e Documentação e �é responsável pela memória institucional da UDV,

coleta e registra o que diz respeito às suas origens e à história do Mestre Gabriel�

(GENTIL, GENTIL, no prelo). Por sua vez, o DEMEC foi fundado com o nome de Centro

de Estudos Médicos (CEM) e �dedica-se a assessorar a Administração Geral nos assuntos

referentes à saúde dos associados em todos os seus aspectos e desenvolve pesquisas

biopsicofarmacológicas em parceria com instituições científicas nacionais e internacionais.�

(Id.). Em novembro de 1995, o então CEM realizou a Conferência Internacional de Estudos

8 Palavra grafada com an no Boletim da Consciência em Organização, 7ª Parte. (CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 67). 9 Estatuto do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Artigo 11. (Id., p. 81).

Page 21: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

21

da Hoasca, no Hotel Glória, na Cidade do Rio de Janeiro. Atividade emblemática do

esforço do CEBUDV em se estruturar institucionalmente e em conquistar credibilidade

diante do Estado, da opinião pública e da comunidade científica, a Conferência teve a

participação de um número significativo de pesquisadores de instituições acadêmicas

nacionais e do exterior. Vinculada à UDV, existe a Associação Novo Encanto de

Desenvolvimento Ecológico (ANEDE), ONG com objetivo de uma atuação ambientalista,

que recebeu a doação de uma ONG norte-americana de um seringal de 8.025 hectares no

Estado do Acre, o Seringal Novo Encanto. Além dos projetos de desenvolvimento

sustentável no seringal, a ANEDE tem monitores e sócios em cada unidade da UDV, os

quais tem realizado iniciativas de conscientização ecológica no nível local.

O processo de legalização do uso ritual da Hoasca

Em 1985, a Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde (DIMED) incluiu o

Banisteriopsis caapi em sua lista de substâncias proibidas. A direção do CEBUDV dirigiu-

se à Polícia Federal, para informá-la da interrupção do uso ritual da Hoasca em acatamento

à determinação do DIMED. Também apresentou ao Conselho Federal de Entorpecentes

(CONFEN) uma solicitação de exame da questão. O Dr. Domingos Bernardo Gialuisi da

Silva Sá, jurista conselheiro do CONFEN, foi designado presidente de um Grupo de

Trabalho (GT) de conselheiros do referido órgão para estudo e elaboração de um parecer10.

Os integrantes do GT realizaram visitas às comunidades usuárias do chá, em Rio Branco,

Acre: o Alto Santo, comunidade originária do Daime, a Colônia Cinco Mil da vertente

CEFLURIS do Daime, e o Núcleo do CEBUDV. Também foram visitados a comunidade

Céu do Mar, no Rio de Janeiro, e o Seringal Céu do Mapiá, no Amazonas, ambos do

CEFLURIS. Finalmente, o GT esteve no Núcleo Pupuramanta, do CEBUDV, no Rio de

Janeiro. Na conclusão dos trabalhos, em 1986, o CONFEN deliberou que o Banisteriopsis

caapi fosse excluído da llista de produtos proscritos da DIMED, na medida em que, como

afirma o Dr. Domingos Bernardo de Sá,

�não pôde o Grupo de Trabalho apurar um único registro, objetivamente comprovado,

que levasse à demonstração inequívoca de prejuízos sociais causados, especificamente,

pelo uso até então feito da ayahuasca�. (SÁ, Domingos Bernardo Gialuisi da Silva

Ayahuasca, a consciência da expansão 1996, p. 15).

10 O Dr. Domingos Bernardo Gialuisi da Silva Sá narrou as atividades do GT no artigo inédito Ayahuasca, a consciência da expansão, que me foi gentilmente cedido pelo autor.

Page 22: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

22

No entanto, esse parecer tinha ainda um caráter provisório, até que fossem completados os

estudos dos �múltiplos aspectos envolvidos no uso ritual de substâncias derivadas de

espécies vegetais, por comunidades religiosas ou indígenas, tais como os sociológicos,

antropológicos, químicos, médicos e da saúde, em geral.�11 Assim, o mesmo jurista

continuou presidindo o GT que em 1992 emitiu o parecer final sobre a questão da

legalização do uso ritual da ayahuasca, parecer que foi aprovado por unanimidade pelo

CONFEN, determinando que

�a ayahuasca, cujos principais nomes brasileiros são �Santo Daime� e �Vegetal�, e as

espécies vegetais que a integram, o �Banisteriopsis Caapi�, vulgarmente chamado de

cipó, jagube ou mariri e a �Psychotria Viridis�, conhecida como folha, rainha ou

chacrona, devem permanecer excluídos das listas do DIMED ou do órgão que tenha a

responsabilidade de cumprir o que determina o art. 36 da Lei 6.368, de 21/10/1976,

atendida, assim, a análise multidisciplinar constante no Relatório Final de setembro de

1987 e do presente parecer.�12

Ao fundamentar esta decisão, o Dr. Sá aponta que:

�Há mais de seis anos o uso da ayahuasca é legítimo no Brasil, desde a interdição de

1985, suspensa em 1986, e não se tem notícia de um único caso, cientificamente

comprovado, de problemas mentais efetivamente causados pelo referido uso.

Tampouco há referência a abuso ou qualquer outro comportamento perturbador da

ordem social.�

E chega a relativizar e questionar o aplicação do termo �alucinógeno� à ayahuasca:

�há, porém, conceitos intocados, mas não intocáveis que, de fato, constituem-se, muito

mais, em preconceitos, visto que, tantas vezes, são fruto de idéias simplesmente

herdadas e aceitas, sem jamais terem sido submetidas a qualquer análise crítica. Um

deles é o que se refere a alucinógeno e alucinação. Ao se definir, por exemplo, que

alucinação é percepção sem objeto, penetra-se em campo conceitual de extrema

dificuldade.�

Assim, depois de citar Mircea Eliade, que indica a falibilidade dos conceitos para expressar

as experiências extáticas, transcendentes ou metafísicas, ele conclui que é

�difícil o exame desapaixonado da questão, considerada a carga emocional que envolve

o termo alucinação, cujo verdadeiro significado é, praticamente, impossível de traduzir

conceptualmente.�

11 Resolução n. 6 do CONFEN, de 4 de fevereiro de 1986, publicada no D.O.U. de 5 de fevereiro de 1986. 12 Parecer final do GT do CONFEN, presidido por Domingos Bernardo de Sá, de 2 de junho de 1992.

Page 23: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

23

O efeito do chá Hoasca na fisiologia humana O chá Hoasca, preparado com o cipó Banisteriopsis caapi e o arbusto Psychotria

viridis, tem como princípios ativos os alcalóides derivados beta-carbolínicos da harmina,

tetrahidroarmina e harmalina, provenientes do Banisteriopsis, e a N,N-dimetiltriptamina

(DMT), da Psychotria. A atuação dessas substâncias no sistema nervoso central do ser

humano é descrita, de modo bem acessível a leigos, por Dennis McKenna, que inicia

esclarecendo que usa o termo �alucinógeno� com �o objetivo de obedecer à nomenclatura

científica padronizada�, que o utiliza para referir-se a uma �substância que quando chega ao

sistema nervoso humano produz alterações perceptivas e/ou do estado de consciência�. Ele

inicia apontando a atuação da DMT:

�É o componente principal quanto aos efeitos alucinógenos do chá. É inativo quando

usado oralmente, pois é rapidamente degradado por uma enzima presente em quase

todos os tecidos, principalmente no fígado - a monoaminoxidase (MAO). Essa

degradação é que causa a sua inativação. A ação da DMT é explicada pela semelhança

estrutural que mantém com a serotonina, importante neurotransmissor do sistema

nervoso central.� (MCKENNA, 1991, p. 15)

Na seqüência, é descrita a ação das beta-carbolinas provenientes do Banisteriopsis:

�O outro grupo de alcalóides é o das Beta-Carbolinas, das quais encontramos, no chá, a

Harmina, a Harmalina e a Tetrahidroharmina, como componentes principais. Sua ação

no sistema nervoso se verifica somente em dosagens muitas vezes mais altas do que as

encontradas normalmente na Hoasca. Sua ação principal, porém, é a de anular as

monoaminoxidases (MAO) do organismo. São encontradas principalmente no Mariri.�

(Id.)

Assim, a interação das beta-carbolinas e da DMT é o que produz a atuação da Hoasca no

organismo humano:

�Pode-se ver que a união desses dois vegetais num mesmo chá representa uma solução

bem inteligente, pois possibilita sua ação no sistema nervoso mesmo quando usada por

via oral. As Beta-Carbolinas ocupam-se das enzimas, abrindo espaço à ação da DMT.

Aos poucos, os tecidos vão fabricando mais monoaminoxidases (MAO) e, ao termo de

algumas horas, já não se sentem os efeitos do chá, pela degradação que aos poucos é

feita da DMT�. (Id.)

Na Conferência Internacional de Estudos da Hoasca, realizada em 1995 no Rio de

Janeiro, foram apresentados os resultados de uma pesquisa internacional articulada pelo

Page 24: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

24

então Centro de Estudos Médicos da UDV, com a participação de nove universidades e

instituições de pesquisa do Brasil, Estados Unidos e Finlândia. A pesquisa, Farmacologia

Humana da Hoasca, foi realizada pela Escola Paulista de Medicina, Unicamp, UERJ,

Universidade Federal do Amazonas e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, do

Brasil, pelas Universidades da Califórnia, do Novo México e de Miami, dos Estados

Unidos e pela Universidade de Kuopio, da Finlândia. O projeto era constituído de cinco

partes: botânica e fitoquímica, clínica, psiquiatria, avaliação de usuário por longo período e

estudos em animais. Em Manaus foi feita a fase de campo da pesquisa, com 15 membros do

Núcleo Caupuri, que bebiam o chá há pelo menos 10 anos, e outros 15 não usuários da

Hoasca, como grupo de controle. Com esses 30 voluntários foram realizados extensos

exames clínicos, laboratoriais e aplicação de questionários, segundo os padrões científicos

internacionais. Houve também monitoramento clínico dos 15 usuários durante o período de

efeito da Hoasca.

O resultado da pesquisa apontou que a Hoasca �não causa qualquer padrão de

dependência, abuso, overdose ou abstinência� (FABIANO, 1996, p. 4). Além disso, �não

foi observado o surgimento de distúrbios mentais posteriores ao uso do chá�. (Id.) A

coordenação da pesquisa foi de Charles Grob, da Divisão de Psiquiatria da Criança e do

Adolescente da Universidade da Califórnia, que, em artigo acerca dos efeitos psicológicos

da Hoasca indica que

�Psychiatric diagnostic assessments revealed that although an appreciable percentage

of our long term hoasca using subjects had had alcohol, depressive or anxiety disorders

prior to their initiation into the hoasca church, all disorders had remitted without

recurrence after entry into the UDV. Such change was particularly noticeable in the

area of excessive alcohol consumption [...]. All eleven of these subjects with prior

involvement with alcohol achieved complete abstinence shortly after affiliating with

the hoasca church.� (GROB, 1996, p. 90).

Concluindo, Charles Grob afirma que:

�The ceremonial use of hoasca, as studied within the framework of this research

project, is clearly a phenomenon quite distinct from the conventional notion of �drug

abuse�. Indeed, its apparent impact upon the subjects evaluated in the course of our

inquiries appears to have been positive and therapeutic, both in self report as well as in

objective testing.� (Id., p. 93)

Page 25: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

25

Uma nova perspectiva As plantas Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis são um recurso genético

disponível às populações da região amazônica, na qual essas plantas são nativas, e à

população brasileira de modo geral, na medida em que a expansão das religiões usuárias da

ayahuasca disseminou o plantio dessas espécies vegetais pelo território brasileiro.

Tradicionalmente, muitos povos da Amazônia, indígenas ou não, conhecem os

procedimentos e técnicas para a utilização dessas plantas como um meio para a obtenção de

um estado alterado de consciência. Assim, uma perspectiva jurídica consistente, sob o

ponto de vista antropológico, é considerar o uso de Banisteriopsis caapi e Psychotria

viridis como uma manifestação cultural associada a recurso genético da biodiversidade da

Amazônia. Tal perspectiva fundamenta-se também nos princípios defendidos pela

Convenção sobre Diversidade Biológica13, assinada por ocasião da Eco 92, a Conferência

das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio

de Janeiro, em junho de 1992. O texto do tratado, já assinado por 175 países, afirma em

seu artigo 1º que:

�Os objetivos desta Convenção, a serem cumpridos de acordo com as disposições

pertinentes, são a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de

seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da

utilização dos recursos genéticos [...].�

Um episódio recente de �pirataria genética�, quando um cidadão norte-americano14

patenteou uma variedade de Banisteriopsis, suscitando um protesto maciço de comunidades

indígenas de diversos países, aponta para a necessidade de se salvaguardar os direitos

relativos aos conhecimentos tradicionais, associados a recursos genéticos, de comunidades

locais e populações indígenas.

13 Cf. Decreto Legislativo n. 2, de 3 de fevereiro de 1994, que ratificou a Convenção no Brasil. Disponível na INTERNET, via http://www.mma.gov.br/port/CGMI/aviso/frame.html, no site do Ministério do Meio Ambiente. Arquivo consultado em 1999. 14 No dia 17 de janeiro de 1986, Loren Miller recebeu uma U.S. patent de planta n. 5751, com base na alegação de que descobrira uma nova variedade diferente de Banisteriopsis no Equador, o que foi amplamente questionado. Esta patente, válida somente no território norte-americano, não resultou em nenhum efeito prático relativo ao uso da ayahuasca, mas foi considerado um precedente perigoso. (José Augusto Pádua, comunicação pessoal).

Page 26: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

26

As dimensões do CEBUDV O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal realizou em 1998 um censo geral

dos seus participantes, sob a coordenação de Suely Martins Bomfim Melo, do Núcleo

Senhora Santana, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Já em 1991 e 1994, Glória Mura,

do mesmo núcleo, havia coordenado recenseamentos da instituição (MURA, 1995, p. 7).

Este é mais um elemento que indica o empenho do CEBUDV em sua organização

institucional. O mapa ao lado apresenta a distribuição de unidades administrativas do

CEBUDV no território brasileiro. A administração da UDV dividiu o Brasil em regiões,

cujo responsável é chamado de Mestre Central. As regiões são as seguintes, com o

respectivo número de sócios15:

Sede Geral Brasília, DF 177 sócios

1ª Região Rondônia (Porto Velho e Guajará Mirim) 528 sócios

2ª Região Amazonas, Pará, Roraima e Amapá 1105 sócios

3ª Região São Paulo e Caldas, MG 722 sócios

4ª Região Bahia 545 sócios

5ª Região Rio de Janeiro e Espírito Santo 428 sócios

6ª Região Rondônia (demais municípios) 565 sócios

7ª Região Acre 535 sócios

8ª Região Goiás e DF (sem a Sede Geral) 416 sócios

9ª Região Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul 353 sócios

10ª Região Paraíba, Pernambuco, Alagoas 388 sócios

11ª Região Ceará 365 sócios

12ª Região Minas Gerais 567 sócios

13ª Região Mato Grosso e Mato Grosso do Sul 386 sócios

TOTAL 7080 sócios

15 O número total de sócios de cada região inclui os filhos de sócios, adolescentes com idade entre 12 e 18 anos, que freqüentam a UDV.

Page 27: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

27

Apresento a seguir o número dos participantes de cada região administrativa,

segundo cada uma das classes de filiados: membros do Quadro de Sócios (QS), do Corpo

Instrutivo (CI), do Corpo do Conselho (CDC) e do Quadro de Mestres (QM). Também

indico o número de filhos dos sócios na faixa de 12 a 18 anos (somente aqueles que

freqüentam a UDV), de adventícios (os que beberam o Vegetal pela primeira vez no

CEBUDV) no ano (98), o número de pessoas que se associaram no ano e o número

daqueles que foram afastados no ano. Finalmente, o número total de filiados: 5903; e o

número total somado ao número de adolescentes que bebem o chá: 7.080. Eis o quadro

geral do censo:

Regiões

QS CI CDC QM 12 a 18

Advent.

Assoc.

Afast.

Assoc.

Assoc. + Adol.

Sede G.

64 31 20 25 37 54 6 12 140 177

1a. 101 202 89 42 94 343 35 21 434 528 2a. 488 305 91 37 184 418 120 158 921 1105 3a. 286 221 84 41 90 284 90 53 632 722 4a. 230 149 75 17 74 292 88 34 471 545 5a. 158 156 44 16 54 240 56 58 374 428 6a. 139 169 83 40 134 410 62 61 431 565 7a. 194 151 68 22 100 476 56 67 435 535 8a. 138 117 43 17 101 216 54 31 315 416 9a. 135 114 35 17 52 187 51 26 301 353 10a. 157 118 43 21 49 221 86 48 339 388 11a. 168 94 44 15 44 120 57 40 321 365 12a. 183 193 65 22 104 201 48 36 463 567 13a. 155 115 41 15 60 269 64 29 326 386 Total 2596 2135 825 347 1177 3731 873 674 5903 7080

Considerando-se a distribuição dos associados segundo as cinco regiões brasileiras,

tem-se o seguinte quadro:

NORTE 1ª 2ª 6ª e 7ª Regiões 2.733 sócios

SUDESTE 3ª 5ª e 12ª Regiões 1.717 sócios

NORDESTE 4ª 10ª e 11ª Regiões 1.298 sócios

CENTRO-OESTE 8ª e 13ª Regiões + Sede Geral 979 sócios

SUL 9ª Região 353 sócios

TOTAL 7080 sócios

Page 28: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

28

Esta distribuição regional pode ser representada pelo seguinte gráfico, que indica as

proporções de cada região brasileira no total de associados do CEBUDV:

Pode-se também elaborar um outro gráfico, no qual seja apresentada a distribuição

geográfica da UDV, segundo a dimensão das cidades onde se localizam os núcleos. Assim,

poder-se-á perceber melhor qual a significativa proporção do CEBUDV presente em meios

claramente urbanos e sob um maior influxo da modernidade. Mostro, então, os dados do

Censo de 1998 da UDV e comparo-os com as informações da Contagem da População de

1996, do IBGE16. De maneira bem esquemática, classifico as cidades brasileiras a partir do

número de seus habitantes. Para a confecção destas tabelas, convencionei três faixas de

população para a caracterização da dimensão das cidades. Considerei �metrópoles� as

cidades brasileiras de mais de 900 mil habitantes. Assim, são 12 cidades: São Paulo, Rio de

Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília, Curitiba, Recife, Porto Alegre,

Manaus, Belém e Campinas. Em todas elas há unidades do CEBUDV, em algumas várias,

totalizando 30 núcleos. Nesses, em 1998 estavam associados 3.349 discípulos, ou seja, 47

% do total da UDV no Brasil. Denominei �cidades médias� aquelas com mais de 100 mil e

até 900 mil habitantes. Nessas, estavam presentes 2.343 discípulos, que representavam 23

% do total. E, finalmente, contei como �cidades pequenas� aquelas com população de até

16 Vide, no Anexo 3, as tabelas completas com o número de associados por município brasileiro, comparado com a população do respectivo município.

Distribuição dos associados nas regiões brasileiras

39%

24%

18%

14%5%

Norte 2733

Sudeste 1717

Nordeste 1298

Centro-Oeste 979

Sul 353

Page 29: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

29

100 mil habitantes. Nessas cidades, havia 1.388 sócios da UDV, isto é, 20 % do total

nacional. Ainda que esta metodologia suscite dificuldades17, penso que ela pode ser útil

como simples recurso expressivo, que aponta diretamente para a constatação, por exemplo,

de que 80% dos discípulos da UDV no Brasil são habitantes de cidades de mais de 100 mil

habitantes. Eis os quadros com os dados:

REGIÃO NORTE:

DIMENSÃO N. de NÚCLEOS ASSOCIADOS PORCENT. Metrópoles 6 799 29%

Cidades médias 8 955 35% Cidades pequenas 16 985 36%

REGIÃO SUDESTE:

DIMENSÃO N. de NÚCLEOS

ASSOCIADOS

PORCENT.

Metrópoles 8 932 54% Cidades médias 6 471 28%

Cidadespequenas 4 314 18%

REGIÃO NORDESTE:

DIMENSÃO N. de NÚCLEOS ASSOCIADOS PORCENT. Metrópoles 8 829 64%

Cidades médias 5 469 36% Cidadespequenas 0 0 0%

REGIÃO CENTRO-OESTE:

DIMENSÃO

N. de NÚCLEOS

ASSOCIADOS PORCENT.

Metrópoles 6 593 60% Cidades Médias 2 352 36% cidadespequenas 1 34 4%

REGIÃO SUL:

DIMENSÃO N. de NÚCLEOS

ASSOCIADOS

PORCENT.

Metrópoles 2 202 57% Cidades médias 2 96 27%

Cidades pequenas 1 55 16% DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DA UDV NO BRASIL: 17 Na medida em que, por exemplo, não se pode dizer que pelo simples fato de ter uma população menor um município é menos urbanizado que outro.

Page 30: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

30

DIMENSÃO UNIDADES UDV

ASSOCIADOS

PORCENT.

Metrópoles

30 3.349 47%

Cidades médias

23 2.343 33%

Cidades pequenas

22 1.388 20%

TOTAL

75 7.080 100%

PROPORÇÃO DO NÚMERO DE ASSOCIADOS SEGUNDO A DIMENSÃO DA CIDADE:

47%

33%

20%

MetrópolesCidades médiasCidades pequenas

Page 31: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

31

1.2. O NÚCLEO ALTO DAS CORDILHEIRAS EM CAMPINAS

O Núcleo Alto das Cordilheiras foi o que escolhi para o trabalho de campo desta

dissertação. Para situar o leitor no ambiente que encontrei, cito a seguir as anotações que fiz

em meu diário de campo, no dia em que estive pela primeira vez no núcleo:

Ao meio-dia de hoje [16 de agosto de 1998] cheguei ao Núcleo Alto das

Cordilheiras, acompanhado pela Conselheira Inês 18, esposa do Mestre Daniel, e pela

Bete, que já foi do Núcleo São João Batista de São Paulo e do Núcleo Serenita, de

Salvador. No caminho, esclareci a elas que vim a Campinas apenas para estar na

Sessão de Escala de hoje. Falei que escolhi realizar meu trabalho de campo no núcleo

Alto das Cordilheiras e lhes disse as motivações.

Quando chegamos, a Inês me mostrou o Núcleo, as obras da grande estrutura

de pedra que será Casa de Preparo em cima e um salão embaixo, a antiga Casa de

Preparo, o chacronal e os laguinhos, um brejo que foi drenado, no qual se fez um belo

recanto, cheio de flores, com dois lagos em planos sucessivos, por onde a água passa,

produzindo sons suaves e doces. E há aí banquinhos para se sentar, onde, conforme

disseram, se pode ficar a meditar, ouvindo os murmúrios das águas. O Conselheiro

Nelson estava fazendo um pequeno terraço de pedra, onde será colocado um canteiro

de flores. Inês me mostrou também a mina d�água, onde se pensa fazer uma piscina

para lazer das crianças. Ao lado, há uma área onde Mestre Daniel pensa fazer um

carramanchão de mariris - que Inês já imaginou todo coberto de flores rosadas, um

belo cenário para encontros da irmandade. Depois sentamos nos banquinhos junto ao

lago e ficamos conversando.

Em seguida, subimos para junto do Salão e sentamos num jardim à sua frente,

onde fiquei conversando com o Lourenço, senhor com aproximadamente 55 anos, que

me disse que já trabalhou muito no terreno do Núcleo Lupunamanta e hoje trabalha

apenas �dando apoio moral�. Logo veio o Felipe, parente do Mestre Daniel (primo?),

se sentou no banco e começou a tocar violão, composições suas e de autores clássicos.

Seu professor foi nada menos que Paulinho Nogueira, seu parente também. Depois

entrei no Salão e encontrei o Mestre Francisco, PhD. em Engenharia, professor da

Unicamp. Eu já o conhecia de 1992.

18 Pseudônimo. Adotei o critério de mudar os nomes dos participantes do Núcleo Alto das Cordilheiras, escolhendo aleatoriamente nomes que não figuram na lista dos membros do núcleo, tendo em vista salvaguardar mais a sua privacidade, já que nas entrevistas muitas vezes foram abordados asssuntos de foro mais interno. Os pseudônimos aparecerão grafados em itálico.

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32

Chegou a hora do almoço, e foi servida, sobre a mesa do Salão do Vegetal,

uma refeição deliciosa. Várias saladas, arroz integral, peixe e também carne. Sentei-me

entre o Mestre Francisco e o Carlos, equatoriano, PhD. em Arquitetura e também

músico - mais tarde o vi tocando um instrumento andino típico, um �quatro�. No

almoço, falou-me de um simpósio recente no Rio, acerca do uso revolucionário do

bambu em construções. Após comer, resolvi descansar um tempo na Casa de Preparo.

Lá estavam uns três �irmãos� fazendo blocos de cimento.

Considero que estas notas são bem evocadoras de vários aspectos de meu trabalho

de campo. Algo que logo salta aos olhos é a acolhida que recebi dos participantes do

núcleo. Em pouco tempo me senti à vontade com o grupo, com liberdade para me fazer

presente nas diversas atividades da �irmandade� e para perguntar nas entrevistas acerca de

tudo o que me parecesse relevante. Outro aspecto que esse trecho do diário já indica é o

estilo cultivado dos participantes do núcleo, indivíduos das camadas médias da cidade de

Campinas (ou da Cidade de São Paulo), a grande maioria com formação universitária e

muitos pós-graduados. Essa característica será exposta de maneira mais detalhada e

quantitativa no tópico seguinte, Os discípulos do Alto das Cordilheiras. Relacionado a isto,

está o que se poderia qualificar de um certo refinamento na sensibilidade dos membros,

perceptível naquele dia, no cuidado com os jardins do sítio, nos gostos musicais, na refeição

bem preparada, nos assuntos das conversas, e na própria delicadeza com que me receberam.

Estes aspectos que aponto permitem que se tenha uma idéia de uma característica do

trabalho de campo: foi uma experiência agradável. É relevante esse elemento subjetivo: a

interação prazeirosa com os participantes do Alto das Cordilheiras gerou em mim uma

empatia com o grupo estudado, da qual estou consciente e que não desejo ocultar ao leitor.

E não somente houve o prazer da convivência em ocasiões mais ou menos superficiais,

como o evocado no trecho acima, mas também momentos de entranhada comunhão de

sentimentos, por exemplo, quando nas entrevistas eram compartilhadas comigo vivências

de forte densidade e significado para a vida dos meus interlocutores. Se esta proximidade

afetiva abriu-me muitas portas e permitiu-me acesso a informações que outros não teriam,

por outro lado, certamente influenciou o meu enfoque. O tempo posterior ao trabalho de

campo, a reflexão antropológica sobre o amplo material coletado propiciaram-me um

distanciamento. Mas reconheço-me livre da ilusão de uma neutralidade do etnógrafo, e sei

que esta dissertação é um olhar interpretativo, entre tantos possíveis, sobre esse objeto.

Page 33: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

33

Atividades realizadas durante o trabalho de campo

Permaneci quase três meses em Campinas, morando numa residência dos jesuítas,

enquanto realizava o trabalho de campo. Estive presente em várias sessões, em um preparo

de Vegetal, dias de trabalho no sítio, promoções para a obtenção de recursos para a

construção do núcleo, encontros informais de membros do núcleo, ensaios do grupo

musical... Busquei aproveitar todos os momentos de encontro dos participantes para me

fazer presente. E tive uma agenda densa de entrevistas durante toda a semana. A cada dia

tinha ao menos uma entrevista, às vezes duas, ou até três. As entrevistas duravam em média

duas ou três horas. Algumas vezes prolongaram-se por até seis horas. Realizei um total de

50 entrevistas. Colhi dados quantitativos de 59 membros.

As entrevistas, na maioria das vezes, foram realizadas nas residências dos

participantes do núcleo. Isto possibilitou-me um conhecimento maior da vida quotidiana

dessas pessoas. Por vezes, convidavam-me para jantar e depois ficávamos gravando a

entrevista até bem tarde da noite. Duas vezes, entrevistei simultaneamente um casal, mas

todas as demais foram entrevistas individuais, para que houvesse maior liberdade dos

entrevistandos. Também realizei algumas entrevistas no próprio núcleo, durante o preparo

de Vegetal em que estive presente. Assim, tive oportunidade de falar com pessoas que

estavam de burracheira, sob o efeito do chá Hoasca. Outra atividade bastante relevante

para a pesquisa foi a observação do ritual. Ouvir as falas dos participantes durante as

sessões teve grande importância para a compreensão da experiência vivenciada por eles.

Nas entrevistas, adotei a postura de tratar o entrevistando não como informante, mas

como interlocutor. Muitas vezes eles também me faziam perguntas, principalmente a

respeito de minha visão, enquanto padre da Igreja Católica, a respeito da União do Vegetal.

As entrevistas foram um momento em que não me furtei a falar de minha experiência. E,

por vezes, as declarações dos entrevistandos adquiriam um tom quase confessional, seja

compartilhando problemas pessoais, seja falando com extrema franqueza sua visão crítica

acerca do CEBUDV.

Page 34: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

34

A organização do espaço no Núcleo

O Núcleo Alto das Cordilheiras situa-se em Joaquim Egídio, área rural do município

de Campinas, a aproximadamente 45 minutos de carro do centro da cidade. Os núcleos

costumam estar localizados em áreas distantes das cidades, onde não haja muito barulho ao

redor e se possa ter um terreno amplo. O Núcleo tem uma edificação central, que é

chamada de Templo, cujo espaço principal é o Salão do Vegetal. Na mesma edificação

principal há também uma cozinha, uma despensa, o banheiro feminino e o masculino. Ao

lado do Templo há um espaço para estacionamento de automóveis. Como o terreno tem um

declive, num platô abaixo do Templo está a Casa de Preparo, uma espécie de barracão de

madeira com uma fornalha, onde o chá hoasca é preparado ritualmente. Quase ao lado,

encontra-se o Chacronal, uma área cercada e coberta de tela na qual estão plantados os pés

de chacrona. Mais abaixo, próximo ao pequeno lago e ao córrego que passa no fundo do

terreno, está o plantio principal de mariri, ainda que haja pés do cipó em vários pontos do

sítio. Na parte mais alta do terreno, junto à entrada, situa-se a casa do caseiro, tendo ao lado

a casa das crianças ou berçário.

A sessão é realizada no Salão do Vegetal, uma sala, com capacidade para

aproximadamente 80 pessoas. Em lugar de destaque do salão há uma mesa retangular, com

um lugar à cabeceira, outro em frente a ela e oito lugares nas laterais. Na cabeceira, de

frente para a assembléia, fica o Mestre Dirigente da sessão. À sua direita, fica o Mestre

Assistente, responsável pela ordem e a disciplina da sessão. Ao seu lado, fica o discípulo

escalado para fazer a leitura dos estatutos do Centro. À esquerda do Mestre Dirigente, fica

um discípulo que na sessão fará uma explanação após a leitura dos estatutos. Os demais

lugares à mesa são ocupados por sócios dos vários graus hierárquicos. O lugar em frente à

cabeceira é o do Mestre Auxiliar, alguém - não necessariamente mestre - a quem se pede

licença para sair do Salão durante a sessão. Na maioria dos núcleos que conheço o pedido

de licença é feito ao Mestre Dirigente, mas a opção do Núcleo Alto das Cordilheiras de

designar outra pessoa para esta função visa evitar as interrupções freqüentes para

simplesmente se pedir licença para ir ao banheiro. Desse modo, o pedido de licença é feito

em voz baixa para quem se encontra sentado nesse lugar.

Page 35: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

35

Em frente à mesa e nos seus dois lados, distribuem-se os assentos dos demais

participantes, bancos de madeira anatômicos e cadeiras de metal e fio plástico verde, que

possibilitam uma postura corporal mais relaxada durante as quatro horas e quinze minutos

de ritual. Atrás da mesa, fica apenas uma fila de cadeiras, reservadas para os mestres. Os

conselheiros e conselheiras ficam nas primeiras filas laterais. Em frente à mesa está a maior

parte das cadeiras, dispostas em várias fileiras. Quanto a estas, não há critério especial para

a sua ocupação, exceto que as cadeiras da primeira fila destinam-se prioritariamente para

visitantes ou pessoas que bebem o Vegetal pela primeira vez. É muito enfatizada a

necessidade de as pessoas andarem no salão, durante a sessão, no sentido anti-horário. Esse

é o sentido da força, a maneira como a força do vegetal circula no salão e nas pessoas. É o

mesmo sentido em que o cipó mariri sobe nas árvores da floresta. Assim, é preciso seguir

esse sentido ao caminhar durante a sessão, para se estar em harmonia com essa força,

possibilitando assim que ela flua do melhor modo entre todos. Para maior clareza quanto à

distribuição do espaço, veja-se a seguir o desenho da planta baixa do salão.

O espaço ritual é bem sóbrio, com poucos símbolos. As paredes são pintadas na cor

creme. Sobre a mesa, acima do lugar de quem dirige a sessão, há um arco de madeira

pintado de verde, com as seguintes inscrições em amarelo: ESTRELA DIVINA

UNIVERSAL UDV. E no arco estão desenhadas, também em amarelo, algumas estrelas de

cinco pontas e duas estrelas com cauda de cometa. Na parede atrás da mesa, há um quadro

com a foto do Mestre Gabriel, de pé sob um arco semelhante, tendo junto a si um copo de

Vegetal. Na parede em frente ao lugar do Mestre Dirigente há um relógio. Na mesa, à

direita do lugar do Mestre Dirigente, há um recipiente de cerâmica no qual se põe o

Vegetal. Ficam na mesa também jarras de água e copos para os participantes. O copo de

água do Mestre Dirigente é mantido cheio durante toda a sessão.

Page 36: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

36

PLANTA DO SALÃO DO VEGETAL DO

NÚCLEO ALTO DAS CORDILHEIRAS

LEGENDA:

Foto do Mestre Gabriel

Arco e Cadeira do Mestre Dirigente

Filtro com o Vegetal

Mesa

Aparelho de Som

Fila de Cadeiras dos Mestres

Cadeira do Mestre Representante

Fila de Cadeiras dos(as) Conselheiros(as)

Fila de Cadeiras dos Discípulos

Portas de Entrada

Cadeira do Mestre Auxiliar

Sentido da Circulação dos Participantes

Relógio

Page 37: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

37

A estrutura de uma sessão de escala

Para as sessões realizadas no Salão do Vegetal, os membros da UDV vestem

uniforme. Os discípulos do sexo masculino usam calça branca com uma camisa verde com

as letras UDV bordadas em branco no bolso. As mulheres vestem calça amarela e uma

camisa igual à dos homens. Os(as) discípulos(as) do Corpo Instrutivo têm o mesmo

uniforme com a diferença de que o bolso de sua camisa verde tem as letras UDV em

amarelo. Os conselheiros e conselheiros têm em sua camisa, junto às letras UDV as letras

CDC (Corpo do Conselho). Os mestres vestem uma camisa que além das letras UDV e

CDC tem bordada uma estrela amarela. O Mestre Assistente porta sobre seu uniforme uma

faixa branca transversal com as seguintes letras em verde: UDV É OBDC. O Mestre

Representante do Núcleo veste uma camisa azul, com as letras UDV e CDC e a estrela.

Assim, olhando-se para o conjunto dos participantes, as cores do uniforme da União do

Vegetal são as mesmas da bandeira brasileira: verde, amarelo, azul e branco.

As sessões de escala, aquelas destinadas a todos os sócios, acontecem

quinzenalmente, no primeiro e no terceiro sábado do mês. Ainda que a etnografia de uma

sessão fosse grandemente interessante, com a descrição dos assuntos tratados pelo Mestre

Dirigente, as chamadas realizadas e a participação dos sócios, devido à limitação relativa ao

caráter reservado dos ensinos da UDV, limitar-me-ei a apresentar aqui a estrutura, o

esquema de uma sessão de escala.

A sessão se inicia pontualmente às 20 horas, com o pedido de atenção a todos, para

a distribuição do Vegetal. A assistência se coloca de pé, em silêncio. A distribuição se dá

hierarquicamente: o Mestre Dirigente da sessão serve a si e aos outros mestres, depois

aos(às) conselheiros(as), em seguida ao Corpo Instrutivo, aos membros do Quadro de

Sócios e por fim aos visitantes não uniformizados. As pessoas aproximam-se da mesa

formando uma fila que vem pela direita e sai pela esquerda (do ponto de vista de quem está

em frente à mesa), ou seja, no sentido da força.

Após a distribuição do chá, os mestres, conselheiros e discípulos do Corpo

Instrutivo o bebem. Depois, o chá é bebido pelo segundo grupo, os sócios que não são do

Corpo Instrutivo e aqueles que não são sócios. Na medida em que o Núcleo Alto das

Page 38: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

38

Cordilheiras tem em torno de setenta participantes, esta primeira etapa do ritual, a

distribuição do chá, se estende por aproximadamente vinte minutos.

Tendo todos bebido o Vegetal, os participantes se sentam. O orador do núcleo

anuncia os visitantes de outro núcleo ou alguma pessoa que esteja bebendo o Vegetal pela

primeira vez, e deseja a todos �uma sessão plena de Luz, Paz e Amor�. O discípulo sentado

ao lado do Mestre Assistente lê então trechos dos documentos escritos da UDV, um

conjunto de normas e regulamentos, a maioria dos quais escritos ainda no tempo do Mestre

Gabriel. Tal leitura se prolonga por aproximadamente vinte minutos. É o tempo para que o

Vegetal comece a fazer efeito. É lido o Regimento Interno do Centro Espírita Beneficente

União do Vegetal, os Boletins da Consciência, o artigo Convicção do Mestre e os Mistérios

do Vegetal, texto em forma de acróstico falando do mariri e da chacrona. Após a leitura dos

documentos, o(a) discípulo(a) do Corpo Instrutivo ou Conselheiro(a) ou Mestre sentado(a)

à esquerda do Mestre Dirigente faz a explanação, um comentário sobre algum dos pontos

abordados nos documentos lidos. Nesse momento, a maioria dos participantes já está

começando a sentir a burracheira, palavra que para a UDV significa �força estranha� e é

usada para designar o efeito sentido pelas pessoas que bebem a Hoasca.

O Mestre Dirigente faz então as chamadas de abertura. Em meio a um silêncio

absoluto dos presentes, ele entoa hinos que têm importância fundamental no ritual. As

chamadas, como o nome indica, chamam a burracheira, a força estranha do Vegetal, para

que ela atue nos presentes. Assim, é através das chamadas que se orienta a sessão, ou seja,

que se canaliza o efeito do chá para os objetivos espirituais visados pela União do Vegetal.

Os dois pedidos mais presentes nas chamadas são luz e força. A luz, que está relacionada à

chacrona, é o princípio feminino presente no chá, a dimensão do conhecimento espiritual. A

força, atribuída ao mariri, é o princípio masculino.

Após as três primeiras chamadas, o Mestre Dirigente levanta-se e, caminhando no

sentido da força, pergunta individualmente para as pessoas sentadas à mesa e para os

Mestres e Conselheiros(as) ao redor dela se eles têm a burracheira. Tendo perguntado aos

que estão assentados próximos à mesa, o Dirigente em seguida se dirige à assembléia,

fazendo a mesma pergunta de uma só vez para todos aqueles aos quais ele ainda não

Page 39: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

39

perguntou. E a assembléia responde afirmativamente, em coro. Esse rito é denominado

ligação da sessão.

Feita a ligação da sessão, o Dirigente volta a se sentar e faz a Chamada do Mestre

Caiano. Caiano é o primeiro hoasqueiro, a primeira pessoa que bebeu o Vegetal. Pede-se a

presença de Caiano para que a própria burracheira possa atuar, trazendo luz para os

caianinhos, ou seja, os seus discípulos, os membros da UDV. Esta chamada é central para a

abertura da sessão e nunca pode ser omitida. Logo depois, é o Mestre Representante, ou

algum mestre designado por ele, quem faz a quinta chamada de abertura. Na sequência, é

comum escutar-se música instrumental. Ouve-se uma música cuidadosamente escolhida

para �chamar burracheira�. Passam-se uns cinco minutos ao som da música, tempo no qual

as pessoas costumam sentir a burracheira crescer. Depois, o Mestre Dirigente costuma

fazer alguma outra chamada e em seguida dirige-se aos participantes, introduzindo algum

tema que será tratado na sessão. E ele diz que �o oratório está aberto�, ou seja, aqueles

que desejarem podem falar, perguntar, ou fazer chamadas, sendo necessário que antes se

peça licença ao Mestre Dirigente.

A sessão segue com ampla participação dos presentes. São feitas ao Mestre

Dirigente perguntas bem diversificadas, desde questões a respeito da doutrina da UDV,

passando por outras acerca do significado de determinada palavra numa chamada, até

perguntas a respeito do modo de agir dos discípulos no cotidiano, além de questões mais

filosóficas do tipo �o que é a verdade?�. Às perguntas vão se intercalando chamadas e

músicas. As canções brasileiras que se ouvem na sessão tocam temas relativos ao agir

humano, como o valor da amizade, da retidão, do amor, da harmonia, temas relativos à

natureza, ou temas mais propriamente religiosos: Deus, Jesus Cristo, Nossa Senhora.

Quando a sessão já se encaminha para a sua conclusão, se tornam mais freqüentes as

falas de participantes da sessão, que se levantam e vão para a frente dirigir palavras à

irmandade reunida. São várias vezes testemunhos sobre a importância da UDV na vida das

pessoas, expressões de gratidão, recordaçðes de aniversários de nascimento ou de inicío na

União. A seguir vêm alguns avisos práticos. Nesta parte da sessão já não se fazem mais

chamadas. São lidos os boletins de ocorrência dos núcleos de todo o Brasil, informando

quem foi convocado para ser conselheiro(a) ou mestre, assim como anunciando as pessoas

Page 40: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

40

que foram afastadas do Quadro de Mestres, do Corpo do Conselho, do Corpo Instrutivo ou

da �comunhão do Vegetal�.

Às 23 horas e 30 minutos, é feita pelo Mestre Dirigente a Despedida do Mestre

Caiano, uma chamada para despedir a burracheira. Então, o Dirigente se levanta e faz o

fechamento da ligação, andando no sentido inverso ao sentido da força e perguntando às

mesmas pessoas a quem se dirigiu no início da sessão se foi boa a burracheira. Após

receber deles a resposta afirmativa, o Mestre Dirigente faz as mesmas perguntas para todos

os outros membros da assembléia de uma só vez. O(a) discípulo(a) que fez a explanação dá

o aviso do dízimo, convidando os participantes a doarem �uma quantia não estipulada

para a compra de material de limpeza para a higiene do salão�. Nesse momento é feito

um intervalo de aproximadamente 25 minutos, durante o qual as pessoas podem se levantar

e conversar. É um tempo para que a burracheira, o efeito do chá, vá passando e as pessoas

possam ir gradualmente �aterrissando�, retornando ao estado de consciência �normal�.

Quando faltam por volta de cinco minutos para a meia-noite, todos voltam ao salão

e fazem silêncio. É feito o Ponto da Meia-Noite, chamada que salienta a importância do

tempo, voltando a atenção dos participantes para os ponteiros do relógio e marcando o

início de um novo dia com a renovação trazida por uma sessão de Vegetal. São dados mais

alguns avisos e em seguida, faz-se a chamada de fechamento. À 0 hora e 15 minutos

necessariamente conclui-se a sessão. E o Mestre Dirigente anuncia que "por hoje a sessão

está fechada".

Após a conclusão, as pessoas se levantam e têm um tempo intenso de inter-

relacionamento, partilhando as suas respectivas experiências durante a sessão. Na mesa do

salão é servido um lanche com refrigerantes, trazido pelo grupo que no dia estiver escalado

para essa função. A conversa costuma se estender por mais de duas horas, até que as

pessoas vão retornando para as suas casas.

Atividades da irmandade

Além das sessões de escala, realizadas nas noites dos primeiros e terceiros sábados

do mês, há uma série de atividades propostas para a �irmandade�. Primeiramente, há o

Page 41: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

41

trabalho nos sábados de escala. Nos dias em que se tem sessão de escala à noite, desde a

manhã os discípulos costumam ir para o terreno, ou ir para o sítio, para realizar os

trabalhos necessários para a sua manutenção: cuidar do plantio de mariri e chacrona, dos

jardins e das dependências do núcleo. Como as pessoas vão de manhã, é preciso que

algumas se dediquem a preparar as refeições: o café, o almoço, a sopa antes da sessão e o

lanche da madrugada. Em outros núcleos que visitei, há uma claríssima divisão do trabalho

segundo o gênero: as atividades na cozinha são tarefa das mulheres. No Núcleo Alto das

Cordilheiras, ainda que para o almoço eu tenha visto mais o trabalho feminino, há uma

tendência de mais partilha desse trabalho com os homens. Assim, o lanche posterior à

sessão é trazido e preparado por grupos previamente escalados, que incluem homens e

mulheres.

Mas o trabalho nos dias de escala não se limita ao exposto acima, porque o núcleo

está em construção. No dia da comemoração dos sete anos do Alto das Cordilheiras estive

presente e foi distribuído a todos um cartão com os dizeres: �...estamos construindo um

templo...� Assim, todos os discípulos são motivados pela direção e por aqueles que se

colocam mais à frente das atividades a estarem em mobilização para a construção. Isso

significa disponibilidade para uma série de atividades: desde mutirões para fazer

diretamente alguma etapa da obra até a idealização e execução de eventos para a

arrecadação de fundos para a construção. Em algumas sessões ouvi o Mestre Representante

e o Presidente falarem da pouca participação dos discípulos nos trabalhos concretos. O

Núcleo Alto das Cordilheiras seria um dos núcleos da UDV �que mais precisaria mellhorar

nesse aspecto�. Não é de se surpreender que hajam algumas dificuldades nesse sentido, na

medida em que o perfil dos participantes, como será exposto a seguir, é de indivíduos que

em sua maioria se dedicam a um trabalho intelectual. Mas tem-se buscado soluções

criativas para essa questão. Assim, por exemplo, no período de trabalho de campo,

presenciei as atividades de um dia de sábado em que todos foram convocados para um

trabalho artístico com argila. Foram transmitidos ao grupo noções básicas de confecção de

peças de cerâmica por um �irmão� que trabalha profissionalmente na área e, em seguida,

um dos mestres, arquiteto e artista plástico, motivou as pessoas a deixarem seu impulso

criativo agir. Assim, todos se dedicaram a esta agradável atividade, fazendo esculturas e

vasos que depois foram vendidos em um bazar.

Page 42: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

42

No momento, a direção do núcleo tem como meta a conclusão das obras da nova

Casa de Preparo, que será integrada ao atual Salão do Vegetal. A presença de arquitetos e

de um administrador de construções entre os sócios do núcleo facilita a consecução do

empreendimento. Há um Departamento de Eventos, e constantemente tem-se realizado

almoços, bazares, festas, abertos para a participação de não-sócios, tendo em vista a

arrecadação de recursos. Dessa maneira, o núcleo toma quase as feições de uma central

promotora de eventos: são dezenas de pessoas, de nível acadêmico superior, organizadas e

empenhando-se na criação e realização de atividades geradoras de renda. Muitas delas são

de cunho cultural ou artístico. Nos últimos meses, tem havido, por exemplo: uma palestra

de um conhecido escritor de Campinas, filósofo e teólogo, um workshop de Programação

Neuro-Linguística, um seminário de design e oficinas de arte, além de um jantar japonês e

uma festa junina. Para a discussão, planejamento e avaliação desses eventos, assim como

para decidir tudo o que toca à organização material do núcleo, os discípulos realizam uma

atividade presente em todas as unidades da UDV: a Reunião de Diretoria. Todos os sócios

são convidados para participar dessa reunião, coordenada pelo Presidente do Núcleo, que

no caso do Alto das Cordilheiras costuma ser realizada a cada dois meses. A Diretoria tem

um boletim informativo mensal, o Comunidade, que começou a ser publicado quando

iniciei o trabalho de campo. Jornal impresso, de quatro páginas, além de trazer as

comunicações da Diretoria, está aberto à colaboração dos sócios, que participam com

artigos, crônicas, poesias.

O CEBUDV, como a seu própria denominação indica, tem uma dimensão de

beneficência. Assim, nos núcleos existe o Departamento de Beneficência. Eles auxiliam

famílias de Souzas e Joaquim Egídio em doação de alimentos para as pessoas da região. Há

outras atividades, como uma campanha no último inverno, para a arrecadação de peças de

roupa e cobertores, que foram doados a pessoas carentes do Distrito de Joaquim Egídio. No

entanto, alguns dos sócios entrevistados reconhecem que o núcleo ainda precisa expandir

muito as suas iniciativas de solidariedade com os mais necessitados.

Mas a agenda dos sócios não se limita ao descrito até aqui. Há também as atividades

propriamente religiosas, que não se restringem às sessões de escala. A mais significativa

delas é o Preparo de Vegetal. Periodicamente, aproximadamente a cada três meses, é

necessário preparar ritualmente o chá Hoasca. É uma atividade exigente, que demanda por

Page 43: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

43

volta de três dias de trabalho contínuo e um preciso conhecimento prático, para colheita do

mariri (o que na maioria das vezes se dá em outro local), colheita da chacrona, �bateção�

(maceração) do cipó, lavagem das folhas de chacrona, disposição dos dois vegetais em

camadas dentro de grandes tachos acrescidos de água, acompanhamento da fervura do

líquido durante horas e horas, coleta e armazenagem do chá preparado, que será bebido nas

sessões dos meses seguintes. O Preparo é o grande acontecimento da UDV, momento em

que se reforçam os laços de solidariedade entre os participantes através da partilha do

trabalho comum e da convivência informal e continuada. É também um momento que

muitos discípulos apontam como de aprofundamento da experiência religiosa de estado

alterado de consciência propiciada pela Hoasca, que é bebida várias vezes ao longo do

Preparo. E alguns apontam para uma dimensão alquímica do ritual: prepara-se um chá e

simultaneamente o discípulo prepara-se interiormente. Esse aspecto pode ser observado no

editorial do Informativo ComUnidade de setembro de 1999:

�Nos dias 28 e 29 do mês de agosto, realizamos um preparo de vegetal aqui no Núcleo

Alto das Cordilheiras, aproveitando a oportunidade de preparar o mariri caupuri, de

Belém.

A chacrona colhida é do nosso viveiro. Que a união do mariri e da chacrona, da Força e

da Luz, do norte e do sul - presentes no preparo - se façam presentes também em todos

nós.�

Um rito religioso de grande relevância para os discípulos é a Sessão Instrutiva, que

se realiza a cada dois meses, em um domingo, ao meio-dia, com aqueles discípulos que

foram convocados pelo Mestre Representante para formar o Corpo Instrutivo do Núcleo. É

o momento da UDV mais propriamente iniciático e esotérico, no sentido de constituir uma

esfera de segredo reservada aos seus participantes.

Todo esse conjunto de atividades exige dos participantes do Alto das Cordilheiras

uma considerável parcela de seu tempo. Essa pessoas, na medida em que conheceram a

UDV e se deixaram cativar por sua proposta, foram solicitadas pela própria dinâmica da

interação dos membros do núcleo a realizar mudanças em suas vidas que lhes permitissem

responder a essa demanda de participação. Mas, quem são esses sujeitos urbanos das

camadas médias da cidade de Campinas, que vem experimentando essa �conversão� do

individualismo da sociedade contemporânea para uma ética religiosa específica que

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44

privilegia os valores comunitários? Buscarei delinear a seguir os traços básicos do perfil

desses participantes.

Page 45: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

45

1.3. OS DISCÍPULOS DO ALTO DAS CORDILHEIRAS

No período de agosto até inícios de novembro de 1998, realizei o trabalho de

campo no Núcleo Alto das Cordilheiras, em Campinas. Além das entrevistas qualitativas,

elaborei um breve questionário de duas páginas, o qual me possibilitou a obtenção do perfil

que exporei a seguir. O questionário foi respondido por 59 pessoas, dentre os 69 sócios que

o núcleo contava então. O motivo que me impossibilitou de recolher os dados de todos foi

principalmente o distanciamento de alguns, que no entanto ainda estão associados. Não

tenho pretensão de construir um quadro estatístico rigoroso. Minha intenção é apenas

utilizar estes dados limitados para delinear um �perfil� daqueles a respeito de quem esta

dissertação trata. Estes breves traços que se seguem possibilitarão que o leitor venha a ter

alguma idéia da inserção sócio-econômico-cultural dos participantes do núcleo.

No Núcleo Alto das Cordilheiras predominam pessoas na faixa dos 40 anos de

idade, os quais constituem 40% dos participantes. Na faixa dos 50 e dos 30 anos há

também em torno de 20% dos sócios. O número de jovens é mais reduzido: apenas 15% na

faixa dos 20 anos. Assim, o núcleo se caracteriza por uma maioria significativa de membros

adultos maduros, dos quais, como veremos adiante, a maior parte já bebe o chá há muitos

anos. Tal predomínio numérico dos mais maduros, tanto em idade quanto em tempo de

participação, tem as suas repercussões na dinâmica interna do grupo. Dentre os

pesquisados, há 30 mulheres e 29 homens, ou seja , praticamente um equilíbrio numérico.

Faixas Etárias

15%

20%

40%

18%

2%5% 19 a 29 anos (8)

30 a 39 anos (11)40 a 49 anos (22)50 a 59 anos (10)60 a 69 anos (3)70 a 79 anos (1)

Sexo

51%49%

Mulheres 30Homens 29

Page 46: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

46

As procedências dos participantes, tendo em vista os seus locais de nascimento,

são diversas: são apenas 18% dos membros que nasceram na cidade de Campinas, 23% de

São Paulo e 25% do interior do Estado, 29% vêm de outros Estados e há ainda 5% de

estrangeiros. Entre os provenientes de Campinas, há uma porção significativa pertencente a

famílias tradicionais da cidade. Nas casas de alguns pude ver algumas fotos de bisavós dos

áureos tempos do café. Mas, como vimos, o contingente maior numericamente, é dos

nascidos em outros estados, os quais, somados aos que vieram do exterior (Europa,

América Latina, Oriente Médio), trazem um colorido de maior diversidade cultural ao

núcleo.

A grande maioria dos participantes, 82%, mora atualmente na própria cidade de

Campinas. Mas há um grupo de moradores de São Paulo, capital. Tal grupo, que perfaz

16% da irmandade, é composto em sua maior parte por pessoas que já participam da UDV

há mais de uma década. Esses normalmente não têm condições de estar presentes nos

mutirões, que acontecem quinzenalmente, nas manhãs e tardes dos sábados em que há

sessão de escala. Assim, a participação deles fica mais limitada à própria sessão, o que,

ainda que �desfalque� o trabalho do núcleo, é aceito pela direção. Mas há uma tendência a

querer que os novos participantes sejam de fato moradores de Campinas, para que possa

haver maior participação nas atividades. É importante ressaltar que há três núcleos da UDV

nos arredores da Cidade de São Paulo. Isso indica que, se essas pessoas optam por

�enfrentar a estrada� e ir até Campinas, é porque devem reconhecer um diferencial que

compensa o maior tempo dispendido e o desgaste de uma viagem mais longa.

Local de Nascimento

18%

23%

25%

29%

5%Cam pinas (8)

São Paulo (13)

Interior de SP(14)Outros estados(16)Exterior (3)

Page 47: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

47

Quanto ao estado civil dos participantes, predominam os casados, perfazendo

53%, dos quais, por sua vez, 90% têm o cônjuge participando do próprio núcleo. Ou seja,

são apenas 3 as pessoas casadas cujo marido ou esposa não participa da UDV. Este é um

dado importante, e bastante específico da UDV. Demonstra a �ênfase familiar� do estilo de

vida dos discípulos da União do Vegetal. Por exigir uma participação que demanda uma

parcela de tempo bem maior que muitas religiões, a UDV se torna difícil para pessoas cujo

cônjuge não participa. Ter um sábado a cada quinzena ocupado, muitas vezes desde a

manhã até tarde da madrugada, sem contar os demais compromissos que surgem por

ocasião de eventos para angariar recursos, certamente não é algo fácil para os casados que

não são acompanhados por seu cônjuge. Além desse elemento prático, a insistência com

que na doutrina da UDV se elogia a constituição da família cria um ambiente favorável à

participação dos casais, havendo inclusive �sessões de casal� umas três vezes por ano, nos

meses em que há cinco sábados. De modo geral, na UDV os solteiros são de certo modo

estimulados ao casamento, mas no Núcleo Alto das Cordilheiras essa tendência é bem mais

discreta do que em outros núcleos. De qualquer modo, há entre os casados do núcleo uns

poucos que vieram a se conhecer no âmbito da UDV. No núcleo é significativa a presença

dos separados/as, desquitados/as ou divorciados/as, perfazendo no total 22%. Ao que

parece este percentual está acima da média da UDV. Pude observar que as pessoas desse

núcleo lidam com mais naturalidade com essa presença de �descasados/as� que outros

núcleos da UDV, ainda que algumas pessoas, principalmente mulheres, falem de algumas

manifestações de preconceito.

Locais atuais de moradia

82%

16%2%

Campinas (46)São Paulo (9)Interior de SP (1)

Page 48: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

48

Quanto à escolaridade, trata-se de um dos aspectos mais específicos do Núcleo

Alto das Cordilheiras, em comparação com os demais núcleos da UDV. Há 78% dos

participantes com nível superior. São pouquíssimos os de nível primário (2 pessoas), e os

de secundário totalizam 10 pessoas, ou seja, 18%. Quanto aos de nível superior, há 5

pessoas (9% do total geral) que tem curso superior incompleto, 25 com a graduação

completa (44%), 4 com mestrado (7%) e 10 com doutorado (18%), alguns deles com a pós-

graduação ainda em curso. Esse contingente tão grande de pós-graduados certamente é o

mais elevado proporcionalmente em toda a UDV. Assim, o Núcleo Alto das Cordilheiras

tem um certo tom mais �cultivado� claramente perceptível, seja nas perguntas e respostas

durante as sessões, seja nos temas abordados, seja nas atividades e eventos realizados.

Estado Civil

23%

53%

2%

11%2%9%

Solteiro/a (13)Casado/a (30)Viúvo/a (1)Divorciado/a (6)Desquitado/a (1)Separado/a (5)

Escolaridade

2105

25

4

10

0%

20%

40%

60%

80%

100%Doutorado (10)

Mestrado (4)

Superior completo(25)Superiorincompleto (5)Secundário (10)

Primário (2)

Page 49: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

49

No que toca às áreas profissionais às quais os membros do núcleo se dedicam,

pode-se observar a incidência maior de determinadas profissões. A partir das respostas à

questão �qual a sua profissão?�, a qual permitia que cada um desse mais de uma resposta,

se fosse o caso, agrupei as profissões citadas de um modo um tanto quanto arbitrário,

apenas para que se tenha uma idéia das áreas mais presentes. A primeira em número de

citações (15) é a que chamei �Artes e Arquitetura�. O Mestre Representante do núcleo é

arquiteto, e, provavelmente devido ao seu círculo de contatos, há 6 arquitetos no núcleo, ou

seja mais de 10% do total pesquisado. A eles foram somados alguns músicos e artistas

plásticos. Há alguns meses músicos profissionais e amadores do núcleo têm se reunido

semanalmente com vistas à realização de um projeto de formação de um grupo musical

profissional. Essa presença significativa de artistas pode ser relacionada a um tom

�sensível� e outsider19 que reveste esse núcleo de uma certa peculiaridade dentre os demais

da UDV. Em seguida, a segunda maior área é a da �Educação� (14). São 8 os professores

universitários, 2 deles mestres e 3 conselheiros. Há também um significativo número (11)

de profissionais da área de �Saúde�: são 6 médicos, 4 psicólogos e 1 dentista. No conjunto,

percebe-se um claro predomínio das áreas humanas e biológicas sobre as exatas.

19 Emprego aqui esta expressão no sentido apontado por Becker: �I have been using the term �outsiders� to refer to those who are judged by others to be deviant and thus to stand outside the circle of �normal� members of the group.� (BECKER, 1966, p. 15).

1

15 14

11 108

4

0

5

10

15

Áreas ProfissionaisArtes e Arquitetura- 15Educação - 14

Saúde - 11

Ciência e Técnica -10Relações Humanas- 8Estudantes - 4

Page 50: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

50

A grande maioria dos membros do núcleo encontrava-se empregada no tempo

da pesquisa. São 74% com emprego, os quais, somados aos aposentados (6%), donas de

casa (6%) e estudantes (2), perfazem 90% do total de membros. Há somente 5 pessoas

(10%) que se afirmaram desempregados.

Quanto à participação político-partidária, 60% não é nem filiado nem

simpatizante de algum partido político. Há somente 1 pessoa que tem filiação partidária, no

caso ao PT. E há 38% que, mesmo sem serem formalmente filiados, se declararam

simpatizantes de algum partido: a maioria do PT, 15 pessoas, o que perfaz 72% dos que têm

simpatia por partidos. E o PV tem 3 simpatizantes (14%), assim como o PSDB.

No que toca ao nível sócio-econômico, a grande maioria (86%) se reconhece

como integrante da classe média. Dentre esses, 56% do total afirmam pertencer à classe

�média média�, e 14% à �média inferior�. Já quanto à �classe trabalhadora�, outros 14%

assim se identificaram. No entanto, houve uma certa ambigüidade quanto a esse último

termo, de modo que nem sempre essa classificação coincidiu com o grupo daqueles que têm

a mais baixa renda familiar mensal. Ainda que haja uma parcela significativa que tem renda

No mome nto e mpre gado?

74%

10%6%

4%6%

S im - 38

Não - 5

A posentado/a - 3

S om entees tudante - 2S om ente donade casa - 3

Participação Partidária

2%

60% 38%

Filiado (1)

Não, nem simpat.(34)Simpatizante (21)

Simpatizantes de Partidos

72%

14%

14%

Simpatizante PT(15)Simpatizante PV(3)SimpatizantePSDB (3)

Page 51: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

51

familiar mensal acima dos 30 salários mínimos (30%), ninguém se considera da classe alta,

mas 16% se vêem como integrantes da classe média alta. Se somarmos aos que ganham

mais de 30 salários mínimos os que recebem de 20 a 30 salários (18%), chegaremos aos

48%, ou seja, poder-se-ia dizer que quase a metade dos sócios do núcleo tem um padrão de

vida confortável. Enquanto isso, os que têm renda entre 10 a 20 salários são 30%, os quais,

somados aos que recebem de 5 a 10 salários (13%), perfazem 43% nesse nível mediano. E

apenas 5 pessoas (9%) estão na faixa inferior, com renda de 0 a 5 salários mínimos.

Faixa de renda familiar mensal

9%

13%

30%18%

30%

0 a 5 saláriosmínimos -5

5 a 10 saláriosmínimos - 7

10 a 20 saláriosmínimos - 17

20 a 30 saláriosmínimos - 10

mais de 30salários mínimos- 17

Page 52: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

52

Quanto a bens imóveis ou bens de consumo duráveis, é interessante observar

que 39 pessoas dentre as 56 pesquisadas (69% do total) têm casa própria e 46 pessoas

possuem automóvel (82% do total). E 42 (75%) têm computador, dos quais 37 (66%) têm

conexão com a Internet.

Classe social

14%

14%

56%

16% 0%

trabalhadora - 8média inferior - 8média média - 31média alta - 9alta - 0

56

39

4946

4237

9

0

10

20

30

40

50

60

1

Bens possuídostotal pesquisado -56casa própria - 39

telefone - 49

automóvel - 46

computador - 42

conexão Internet -37casa depraia/campo - 9

Page 53: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

53

Quanto ao tempo de participação na UDV, a média entre os discípulos do

Núcleo Alto das Cordilheiras é bem alta: 12,6 anos. Dividindo-se o tempo em 5 faixas, até

os 24 anos de participação, observa-se que a faixa entre 15 e 19 anos de participação é a

mais numerosa: 20 pessoas, ou 36%. Há ainda aqueles que já têm 20 anos ou mais (até 24)

de participação na UDV, os quais são em número de 8, ou 14%. Assim, se somarmos esses

dois grupos, chegamos à surpreendente afirmação de que 50% dos participantes do núcleo

tem mais de 15 anos de UDV. Este dado aponta para a maturidade do grupo em seu

percurso religioso de uso ritual do chá hoasca.

Tempo de Participação na UDV

9%

25%

16%

36%

14% 0 a 4 anos - 5

5 a 9 anos - 14

10 a 14 anos - 9

15 a 19 anos -20

20 a 24 anos -8

514

9

20

8

Pirâmide doTempo de Participação na UDV

20 a 24 anos -815 a 19 anos -2010 a 14 anos - 9

5 a 9 anos - 14

0 a 4 anos - 5

Lugar na Hierarquia

30%

43%

18%

9%

Quadro de Sócios - 17

Corpo Instrutivo - 24

Corpo do Conselho - 10

Quadro de Mestres - 5

Page 54: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

54

No que toca ao lugar na hierarquia da UDV, a maioria, 24 pessoas (43%) se

encontra no Corpo Instrutivo (CI). O Quadro de Sócios é menor: apenas 17 pessoas (30%).

O Corpo do Conselho (CDC), que com os Mestres integra a Direção do Núcleo, é formado

por 10 pessoas (18%), enquanto que o Quadro de Mestres (QM) tem a metade, 5 pessoas

(9%). O gráfico em forma de pirâmide abaixo é bem esclarecedor, na medida em que cada

grau abrange também os que se encontram acima dele. Assim, por exemplo, quando há

sessões instrutivas, participam os do CI, do CDC e do QM. O topo da pirâmide, o Quadro

de Mestres, está até agora vedado à participação das mulheres.

Observando quais as religiões anteriores dos participantes do núcleo, vê-se que

há um predomínio significativo dos católicos: 37 pessoas, 66% do total. A seguir vêm os

que não tinham religião antes da UDV: 10 pessoas ou 18%, imediatamente seguidos pelos

espíritas kardecistas, 9 pessoas ou 16%. Há também um número razoável de pessoas 6

(10%) que freqüentaram sociedades esotéricas, como a Ordem Rosacruz. Na seqüência

aparecem 16 religiões, cada uma com de 3 a 1 menção. Essa variedade exuberante é bem

conforme a um certo traço �buscador� de muitos que procuram a UDV e lá permanecem. O

número relativamente alto de pessoas sem religião acena para algo que as entrevistas várias

vezes apontaram: como a experiência de estado alterado de consciência com o chá hoasca

propiciou para vários agnósticos ou ateus uma descoberta da dimensão religiosa da

existência que os levou a uma �conversão�.

17

24

105

Pirâmide do Lugar na Hierarquia

Quadro deMestres - 5Corpo doConselho - 10Corpo Instrutivo -24Quadro de Sócios- 17

Page 55: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

55

O catolicismo também é o mais numeroso no gráfico das religiões das mães dos

membros do núcleo, 38 pessoas o mencionaram. A seguir se encontra a UDV, o Espiritismo

Kardecista e Igrejas Evangélicas, cada um dos três com 4 menções. Quanto às religiões dos

pais, o catolicismo também é o primeiro, mas com um decréscimo em relação às mães,

apenas 29 mencionaram esta como a religião de seus pais. Aqui é significativo o número de

pais sem religião: 8. Esse grupo sem religião é bem mais reduzido entre as mães: apenas 2.

37109

633322

11111111111

0 20 40

Religiões Anteriores

"Ecumênica"

Haja Yoga

Meditação Transcendental

Quimbanda

Taoísmo

Sufismo

Xamanismo

Islamismo

Mórmons

Igreja Ortodoxa

Igrejas Evangélicas Pentecostais

Judaísmo

Igrejas Evangélicas

Budismo

Candomblé

Umbanda

Ordens Esotéricas

Espiritismo Kardecista

Sem religião

Catolicismo

Page 56: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

56

38444

22

111

0 10 20 30 40

Religiões das Mães"Ecumênica"

Igreja Ortodoxa

Mórmons

Sei-cho-noie

Sem religião

Igrejas Evangélicas

Espiritismo Kardecista

UDV

Catolicismo

29

854

4

32

11

0 10 20 30

Religiões dos PaisEsoterismo

Igreja Ortodoxa

Judaísmo

Mórmons

Igrejas Evangélicas

Espiritismo Kardecista

UDV

Sem religião

Cato licismo

Page 57: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

57

Estes breves traços aqui expostos podem possibilitar ao leitor alguma idéia da

inserção sócio-econômico-cultural dos participantes do núcleo. No entanto, estou

consciente das limitações deste quadro, como por exemplo a ausência de dados a respeito

dos participantes da UDV como um todo, para efeitos comparativos. Além disso, é

importante perceber que não se trata de �dados brutos�. Há certamente, dados objetivos,

como a idade das pessoas. Mas, a todo momento manifesta-se o filtro da percepção

individual, seja a dos informantes, seja a minha própria. Por exemplo, ao responder acerca

de sua inserção em determinada classe social, cada qual se enquadrou segundo os seus

próprios critérios a respeito do que vem a ser �classe média média� ou �classe média alta�.

Ou, quando perguntei acerca da religião dos pais, a maioria das pessoas respondeu

apontando para apenas uma, ainda que seus pais possam ter múltiplas pertenças religiosas

simultâneas, sem falar na diversidade de pertenças diacronicamente. Portanto, este capítulo

expressa, de certo modo, a representação que os próprios participantes fazem de si, a partir

do recorte traçado por mim. Assim, este �perfil� tem algo de �impressionista� - trata-se

simplesmente de um olhar para alguns aspectos selecionados por mim e informados pelos

próprios discípulos do Núcleo Alto das Cordilheiras.

Page 58: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

58

2. A ESTRELA DO NORTE

2.1. A VIDA DE MESTRE GABRIEL

�Ali eu diante de portas abertas, por livre ir, às larguras da claridade...�

João Guimarães Rosa, Grande Sertão - Veredas

Neste capítulo delinearei, a partir das narrativas de participantes, o itinerário

histórico fundacional da União do Vegetal, tanto em Rondônia, quanto, depois, em São

Paulo. Em 22 de julho de 1961, José Gabriel da Costa fundou a União do Vegetal, na

Amazônia, em região próxima à fronteira entre o Brasil e a Bolívia. No ano de 1965, José

Gabriel da Costa mudou-se para Porto Velho, onde consolidou a União recém-fundada.

Ainda em vida de Mestre Gabriel, foi fundado o núcleo de Manaus e em 1972, um ano após

seu falecimento, já se inaugurou o núcleo de São Paulo. Inicio apresentando a trajetória de

José Gabriel da Costa e relacionando-a com aspectos da especificidade cultural brasileira.

Acompanhando o percurso de sua vida, é possível tecer uma ampla rede de relações com

diversas configurações culturais presentes na sociedade brasileira.

O menino de Coração de Maria

Segundo declarações de familiares20, no dia 10 de fevereiro de 1922, ao meio-dia,

na Fazenda Arroz, no município de Coração de Maria, próximo a Feira de Santana, na

Bahia, nasce José Gabriel da Costa. Filho de Manuel Gabriel da Costa e Prima Feliciana da

Costa. José nasce em uma numerosa família de treze irmãos: João, Dionísio, Otacílio,

Pedro, Romão, Maria, �Miúda�, José Gabriel, �Sinhá�, Alfredo, Antônio, Maximiano,

Hipólito. No livro União do Vegetal: Hoasca; Fundamentos e Objetivos, o único texto

editado para o grande público até o momento pela instituição, apenas três páginas tratam da

vida do fundador da UDV. Assim, tivemos de buscar informações junto a parentes e outras

pessoas que com ele conviveram, além de pesquisar no jornal Alto Falante, do

Departamento de Memória e Documentação do CEBUDV.

20 Depoimento de Antônio da Costa, irmão de José Gabriel da Costa, em 4 de novembro de 1995.

Page 59: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

59

De acordo com seus parentes, desde pequeno, José já se destacava como alguém

especial. Contam que ainda criança, ele auxiliou uma mulher com dificuldades de parto. O

bebê se encontrava mal posicionado e a parteira temia que morressem mãe e filho. José

entra no quarto, manda todos saírem, tranca a porta e logo em seguida a destranca. Quando

o menino abre a porta, simultaneamente nasce a criança.

Na década de 20, o menino José cresce em um meio rural fortemente marcado pelo

catolicismo popular. Uma recordação que narram de sua infância é que o �garoto ia aos

domingos à igreja de sua cidade e levava com ele um barbante. Durante a missa, amarrava

as pessoas umas às outras, pelos passantes das roupas, sem que elas percebessem�

(CENTRO DE ESTUDOS MÉDICOS DA UDV, 1993, p. 1)21. Também conta o seu irmão

Alfredo:

�Minha mãe era muito devota e zeladora da igreja onde a gente congregava e ía à

missa. E ela tinha o capricho de levar os filhos pra fazer a primeira, segunda e terceira

comunhões. E justamente, não sei se na segunda ou na terceira comunhão, ele

representou alguma coisa ao padre, que eu não sei o que possa ter sido, que o padre

ficou abismado. Ele se confessou e na confissão contou ao padre um assunto religioso.

Não foi uma história qualquer, certamente, que o padre ficou espantado. Depois, o

padre passou a dizer à minha mãe: �Dona Prima, aquele menino seu é qualquer coisa.

A senhora cuide daquele menino, que ele é bem diferente. Ele me representou lá um

ato que eu fiquei bobo. Não sei. Onde é que aquele menino esteve?� E minha mãe:

�Não, ele não sai de casa, trabalhando junto com os outros, indo à escola, escolinha

fraca...� E o padre: �É. Aquele menino tem qualquer coisa.� Chamava-se Padre

Orlando, um italiano.�22

Adiante, continua Alfredo a falar da participação de seu irmão nas devoções do

catolicismo popular baiano:

�Ele não era homem de só andar com o nome de Deus na boca. Mas ele gostava de

rezar. Nossa tia era uma rezadeira, Tia Rosa. Rezadeira de terço naquelas casas. Então

o pessoal vinha chamá-lo pra rezar. E ele, por ter voz bonita pra cantar - e lá tinha

aqueles benditos - minha tia levava ele. E ele tinha aquele catecismo que os padres

21 O texto continua: �José Gabriel da Costa - Mestre Gabriel - era esse menino. Fundou a União do Vegetal para continuar unindo as pessoas.� 22 Entrevista de Alfredo Gabriel da Costa a Edson Lodi, em 17 de abril de 1987, na Estância Centro-Oeste. In: Memórias, Volume I. Centro de Memória e Documentação do CEBUDV. p. 59.

Page 60: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

60

davam pra gente se preparar. Pois aquele catecismo ele lia de cor. E sabia aquela

ladainha, Salve Rainha. Ele rezava cantando. O pessoal vinha sempre chamar pras

novenas de Santo Antônio e as do mês de Maria, que eram dois meses de festa. Ele

acompanhava tudo. Então, era uma pessoa devota. Lá em casa tinha uma grande festa,

que meu pai comemorava mesmo. Era aquela chegança. Era o 6 de janeiro. Chamava-

se marujada. E José era um dos marujos. Eles representavam aqueles tempos de Reis

Magos.�23

Nas chamadas, hinos entoados durante o ritual da União do Vegetal, há referências

constantes a Jesus e a santos católicos: a Virgem da Conceição, São João Batista, a Senhora

Santana, São Cosme e São Damião. E até hoje o dia 6 de janeiro, Dia de Reis, é celebrado

na UDV.

Aos 13 anos de idade, em 1935, emprega-se num estabelecimento comercial. Aos

18 anos, presta serviço militar voluntariamente na Polícia Militar da Bahia, chegando em

poucos meses à patente de cabo de esquadra. Segundo seu irmão Antônio, atualmente

também mestre na UDV, José Gabriel �conheceu todas as religiões, conheceu os terreiros

de Salvador, andou por todas as religiões procurando a realidade�24. Segundo outro mestre,

José iniciou na �ciência espírita com apenas 14 anos de idade�25. Provavelmente, esta

informação refere-se à participação de José em terreiros de candomblé, e não em centros

kardecistas, com os quais entretanto ele também entrou em contato, só que posteriormente,

em Salvador. Em 1942, José Gabriel passou a morar em Salvador26.

Segundo o pesquisador Afrânio Patrocínio de Andrade, que em 1995 fez uma

dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, na Universidade Metodista de São Paulo,

acerca da União do Vegetal, José Gabriel freqüentou sessões espíritas kardecistas na Bahia

(ANDRADE, 1995, p. 170). Foi, aliás, em Salvador que teve início o espiritismo kardecista

no Brasil, no ano de 1865. Luís Olímpio Teles de Menezes fundou nesse ano o centro

espírita Grupo Familiar do Espiritismo (GIUMBELI, 1995, p. 29)27. De acordo com

Patrocínio de Andrade, certos temas recorrentes na União do Vegetal poderiam ter sido

colhidos do espiritismo kardecista. Antes de mais nada, a visão reencarnacionista, um dos

23 Id., p. 65. 24 Depoimento de Antônio da Costa, id. 25 Depoimento de Hilton Pereira de Pinho, s.d., p. 2. 26 Entrevista de Alfredo Gabriel da Costa. Id. p. 49. 27 Cf. tb. KLOPENBURG, 1960, p. 25.

Page 61: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

61

eixos fundamentais da visão de mundo da UDV. Assim como o lema �Luz, Paz e Amor�,

denominado o �símbolo da União�, poderia provir dos temas espíritas da �luz interior�, da

�paz de espírito� e do �amor ao próximo� (ou caridade). A própria ênfase na �União� é

freqüente entre os espíritas no Brasil. (ANDRADE, Id.)

O capoeirista

Segundo um mestre que conviveu com ele, José �foi considerado pelos prosadores

populares um dos melhores poetas da região; como cantador repentista teve sucesso

inclusive em Alagoas e Sergipe�28. Também se destacou na capoeira, chegando a ser

considerado um dos melhores capoeiristas do Nordeste. O livro de Ruth Landes, A cidade

das mulheres, nos auxilia a traçar um panorama dos ares soteropolitanos da década de 30,

que José tantas vezes respirou. A autora é levada por Edison Carneiro para assistir uma

capoeira. Ela descreve detalhadamente a seqüência do jogo, e em certo momento, observa:

�silenciados os ecos do desafio, terminada a rodada, os dois homens andavam e corriam

sem descanso em sentido contrário aos ponteiros do relógio, um atrás do outro, o campeão

à frente com os braços levantados� (LANDES, 1967, p. 117. Grifo meu). É interessante

notar que no ritual da UDV a circulação das pessoas no salão se faz também no sentido

anti-horário, pois este é o �sentido da força�. Na capoeira, José cultiva uma série de

habilidades postas em prática posteriormente, em suas experiências de incorporação nos

toques de caboclo como Sultão das Matas. Do mesmo modo, tais habilidades também

foram exercitadas como Mestre da UDV.

Evocadora desse ambiente capoeirista é a cantiga de domínio público gravada por

Nara Leão, às vezes tocada em sessões da UDV:

�Minino, quem foi teu mestre? Meu mestre foi Salomão. A ele devo dinheiro, saber e obrigação. O segredo de São Cosme quem sabe é São Damião, olê Água de beber, camarada água de beber, olê Água de beber, camarada faca de cortar, olê Faca de cortar, camarada,

28 Depoimento de Hilton Pereira de Pinho. Id.

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Ferro de engomar, olê Ferro de engomar, camarada Perna de brigar, olê Perna de brigar, camarada. Minino, quem foi teu mestre?�29

Estaria relacionada à capoeiragem uma das explicações possíveis, apresentada por

familiares, para a viagem do jovem José da Bahia para o Norte. De acordo com relato de

seu filho Carmiro Gabriel da Costa, em 1943, José envolve-se num conflito. Um amigo seu,

de nome Mário, tem o pé pisado por um policial. José Gabriel �compra a briga do Mário�.

Este foge e os policiais seguram José. Num golpe de destreza, ele consegue se desvencilhar

dos policiais. Segue para um navio, para onde tinha ido se refugiar o amigo Mário. Os dois

se alistam no Exército da Borracha e rumam para o Norte no navio Pará, da frota do Lloyd

Brasileiro.

Tudo indica que Mário era companheiro de capoeira de José Gabriel. No mundo da

capoeiragem na época, a ética dos grupos sublinhava a importância da solidariedade e

fidelidade entre os camaradas. E eram freqüentes os conflitos entre os grupos, com a polícia

ou com indivíduos de outros segmentos da sociedade. Em dissertação acerca da capoeira no

Rio de Janeiro de 1890 a 1937, Antonio Pires afirma que �as relações de conflito e

solidariedade na capoeiragem estiveram permanentemente relacionadas com os conflitos

mais gerais da sociedade� (PIRES, 1996, p. 143). Parece que já se esboça nesse tempo a

preocupação de José Gabriel com a �justiça�. Sua participação na capoeiragem em Salvador

não conflita com seu engajamento profissional, primeiramente como comerciário e depois

como enfermeiro. Como observa Antonio Pires quanto à capoeira no Rio, �a maioria dos

capoeiras comprovaram manter vínculos com o �mundo do trabalho�, descaracterizando o

estereótipo de vadios construído em relação a eles.�30

29 Cf. outra cantiga semelhante, recolhida por Edison Carneiro: �Minino, quem foi teu mestre? quem te ensinô a jogá? - Sô discip�o que aprendo Meu mestre foi Mangangá Na roda que ele esteve, outro mestre lá não há.� (CARNEIRO, 1974, p. 138). 30 Id., p. 201.

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O seringueiro do Exército da Borracha

Chegando a Manaus, José Gabriel e Mário embarcam no navio Rio Mar, com

destino a Porto Velho, onde chegam �em 13 de setembro de 1943, às 20 horas; neste

mesmo dia estava sendo festejada a criação do Território do Guaporé�31. Os dois vão juntos

para o trabalho na seringa e fazem um �pacto de amigo�, de só se separarem pela morte.

Como narra Carmiro:

�Quando ele veio da Bahia, ele veio com um amigo dele chamado Mário. E eles

fizeram um pacto de amigo de se separar só com a morte. E vieram lá pra aquela

região, a região do Alto Guaporé. E lá naquela época os patrões de seringal levavam os

seringueiros lá pra cortar a borracha e na hora de tirar o soldo, que é o valor que a

pessoa tem a receber do patrão, eles mandavam os capangas pra tirar o soldo. [...] Mas

não era bem isso, não, ele ia lá, matava o seringueiro e contratava outro. O cara

trabalhava e pagava com a vida. [...]

Aí ele [Gabriel] disse: �- Mano nós vamos se embora�.

�- Se embora?�

�- Nós vamos se embora porque amanhã os capanga do gerente vai vir aqui e vai matar

nós dois. E contou a história pra ele�.

�- Gabriel, tu vai, que eu não posso andar�.

Ele disse: �- Eu lhe carrego!�

�- Mas rapaz, tu vai te atrasar.�

�- O pacto que nós temos é nos separar com a morte. Tu ainda está vivo. Quando tu

morrer eu te enterro.� �32 José Gabriel cumpre até o fim esse pacto, chegando a carregar Mário nas costas por vários

quilômetros. Quando o doente morre, seu amigo sozinho o enterra na floresta.

Tendo chegado no Território do Guaporé33, atual Estado de Rondônia, José Gabriel

se inseriu num ambiente com uma configuração ecológica e sócio-cultural bem distinta da

Cidade de Salvador. O extrativismo da borracha, depois de seu período de boom, entre 1890

e 1912, havia em seguida atravessado uma fase de declínio, devido à concorrência no

mercado internacional da borracha extraída na Ásia. Com a Segunda Guerra Mundial,

apresentou-se a necessidade de borracha para os exércitos Aliados. Com a assinatura de 31 Hilton Pereira de Pinho, s.d. p. 2. 32 Depoimento de Carmiro Gabriel da Costa, filho de José Gabriel da Costa, em 4 de novembro de 1995. 33 A respeito do Território, vide a dissertação de mestrado em história de Emanuel Pontes Pinto, Criação do Território Federal do Guaporé: fator de integração da fronteira ocidental do Brasil. (PINTO, 1992).

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acordos com os Estados Unidos, o Governo Vargas iniciou uma ampla campanha de

recrutamento de trabalhadores, principalmente nordestinos, para a extração gomífera no

Norte. Em 30 de novembro de 1942, foi criado o Serviço Especial de Mobilização de

Trabalhadores para a Amazônia, SEMTA, que, no período de menos de um ano durante o

qual funcionou, teria encaminhado 13 mil pessoas, segundo um depoimento de seu chefe34.

Essa agência foi substituída pela Comissão Administrativa de Encaminhamento

Trabalhadores para a Amazônia, CAETA, que funcionou até 1945 e teria enviado à

Amazônia, de acordo com um relatório, 24.300 nordestinos. Assim, ainda que haja outras

estimativas numéricas, segundo esses dados oficiais, teriam sido levadas para o Norte pelo

SEMTA e pela CAETA um total de aproximadamente 40 mil pessoas (MORALES, 1999,

p. 88-92).

No ano de 1943, José Gabriel integra essa massa de trabalhadores nordestinos que

se lançam como �brabos� nos seringais amazônicos. �Brabo é gente que nunca cortou

seringa, nunca andou na floresta. Sofremos muito, como brabo� - declara Pequenina, esposa

de José Gabriel35. O sofrimento daqueles homens, submetidos a condições de vida e

trabalho extremamente penosas, em um ambiente desconhecido, sem o auxílio

governamental prometido pela propaganda oficial, ficou bem marcado na memória dos

sobreviventes da �batalha da borracha�. A antropóloga Lúcia Arrais Morales, em sua tese

doutoral a respeito dos soldados da borracha, recolheu o seguinte depoimento, de um Sr.

Chico, ex-integrante do Exército da Borracha, que bem se assemelha ao da esposa de José

Gabriel:

�Saímo de Manaus de noite. [...] Nós cheguemo lá, aí o cabo disse: �aqui veio 35

homens para você, pra seu pai�. [...] Aí a casa dele era bem pequenininha. Num tinha

onde a gente dormir. Dormimo no teto mermo. Carapanã! Carapanã, e agora, a

comida? Tudo brabo, tudo! A gente já tinha deixado a Companhia [SEMTA]. Aí

fiquemo sofrendo. Fiquemo jogado que nem cachorro na beira do rio. [Qual?] era o

Solimões acima de Tefé. Aí eu disse: �ombora pessoal! vamo meu povo!, bora cuidar!,

bora se virar�. Aí embarquemo numa canoa veia [velha], jogada por ali, furada.

Arremendamo com pano, com vara. Outros pegaram pau, pedaço de tauba e fumo

procurar colocação pra cortar seringa.� (MORALES, 1999, p. 236).

34 Depoimento de Paulo de Assis Ribeiro, Chefe do SEMTA, à CPI acerca dos soldados da borracha em 13 de agosto de 1946. (MORALES, 1999, p. 89, nota 6). 35 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: Alto Falante, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV. Brasília: ago-out 1995, p. 6.

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Morales observa que aqueles que conseguiram sobreviver a condições tão adversas

foram homens de significativa inteligência e iniciativa, que conseguiram adaptar seus

esquemas de percepção e recursos cognitivos à nova realidade em que se encontravam:

�Era a questão da sobrevivência mesma que estava em jogo e, por isso, precisavam agir

de forma conseqüente. Não ficaram à mercê dos acontecimentos, esperando uma ajuda

externa. [...] É frente a isso que o Sr. Chico diz: �ombora pessoal! bora se virar!�.

Adotam, então, uma linha de ação onde predominam a iniciativa e a coragem. Onde

prevalecem a concentração dos recursos da percepção, da memória e da atenção para

dirigir esforços na descoberta de meios capazes de resolver a questão.� (Id., p. 243)

José Gabriel foi um desses homens de aguda inteligência e destreza, que não somente

conseguiu sobreviver como chegou a ser considerado pelos seus companheiros como o

�Tuchaua�, o seringueiro que coletava maior quantidade de seringa na região36. Tais êxitos

eram acompanhados de dureza e sofrimento, como quando José Gabriel pisou em uma

arraia, e teve de passar �um ano e dez meses sem poder andar, de muleta�.37

O ogã do terreiro de Chica Macaxeira

Depois de trabalhar um tempo no seringal, José Gabriel muda-se para Porto Velho,

onde fica trabalhando como servidor público, enfermeiro no Hospital São José. Conhece,

em 1946, Raimunda Ferreira, chamada Pequenina, com quem se casa no ano seguinte. Do

casamento nasceram os seguintes filhos: Getúlio, Jair, Jandira, Salomão, Benvindo,

Carmiro, Abomir e José Gabriel Filho. Em Porto Velho, �Seu� Gabriel atendia pessoas em

sua casa, pois jogava búzios. Mais tarde, se torna Ogã e Pai do Terreiro de São Benedito, de

Mãe Chica Macaxeira38. Esse terreiro foi citado por Nunes Pereira (PEREIRA, 1979, p.

121-143. 223-225), que o visitou, possivelmente em meados da década de 60 ou no início

dos anos 70. O pesquisador maranhense reconhece o terreiro de Porto Velho como sendo da

tradição mina-jeje, oriundo da Casa das Minas. �Os toques, inegavelmente, tinham a

rítmica que me era familiar não só da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão, como do

Bogum de Mãe Valentina, em Salvador, Estado da Bahia.� (Id., p. 223).

36 Entrevista de Mestre Florêncio. In: Alto Falante. Brasília: fev-set 1996, p. 8. 37 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Id., p. 6. 38 Entrevista do Conselheiro Paixão. Alto Falante. Brasília: abr-jun 1995, p. 8-9.

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É surpreendente descobrir que Nunes Pereira encontrou no Terreiro de Chica

Macaxeira uma �inovação no ritual mina-jeje, o uso da ayahuasca. E isso, sem dúvida, para

estimular, paralelamente, com os cânticos rituais e com a voz sagrada dos tambores, ogãs e

gôs, o estado de transe, a possessão que ligam os Voduns do panteão daomeano ou do

ioruba às gonjais e noviches que o cultuam� (Id. p. 142). Ora, no tempo em que José

Gabriel lá trabalhava como Ogã, não havia utilização da ayahuasca no culto, tanto que ele

somente viria a conhecer a bebida anos depois, no seringal. Assim, é legítimo supor que,

possivelmente, a Mãe-de-Terreiro Chica Macaxeira conheceu a ayahuasca através de seu

antigo Ogã e Pai-de-Terreiro José Gabriel. Quando Nunes Pereira visitou o terreiro, o

conjunto dos cânticos era lá denominado Doutrina da Ayahuasca. �Nomes de santos

católicos, nalguns desses cânticos, se misturaram com os dos Voduns mina-jejes, tais como

Xangô, Badé, Avêrêquête, e os ditos Barão de Goré, Sultão das Matas, Marangalá,

Jatêpequare, Tindarerê, etc.� (Id. p. 143, grifo meu). É significativo que nos anos 60 ou 70

haja a presença do Sultão das Matas na lista das entidades do terreiro, já que, como se verá

adiante, José Gabriel recebia esse caboclo quando trabalhava num terreiro que armou no

seringal, nos anos 50.

O Sultão das Matas e os xamãs da fronteira boliviana

Até 1950, José Gabriel morava com Pequenina em Porto Velho. O casal já tivera

dois filhos: Getúlio e Jair. Além de trabalhar como enfermeiro, ele tinha também uma

�taberna de bebidas�. E gostava de política. Os dois partidos que disputavam o governo do

Território do Guaporé eram liderados pelo Major Aluizio Ferreira, ex-diretor da Estrada de

Ferro Madeira-Mamoré que tinha sido o primeiro governador do Território, e o Tenente

Coronel Joaquim Vicente Rondon (PINTO, 1992, p. 216). José Gabriel era pró-Rondon. No

entanto, seu candidato perdeu, e ele foi perseguido em seu emprego público no hospital.

Tendo de se afastar de seu trabalho, José resolve voltar para o seringal.

Mais tarde, quando estão no Seringal Porto Luís, Pequenina fica sabendo de um

chá: �o pessoal vê isso, vê aquilo, o cara falou até com o filho depois de morto�39. Ela fala a

José Gabriel e ele vai pedir o chá ayahuasca a quem o distribuía no lugar, o Mestre Bahia.

Mas o homem disse que �não dava o Vegetal praquele baiano que sabe aonde as andorinhas

39 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Id. p. 7.

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dormem�40. Aí ele volta mais uma vez para Porto Velho e monta o comércio de novo.

Assim, na década de 50, a família de José Gabriel e Pequenina esteve indo e voltando para

o seringal e Porto Velho.

Tendo se mudado para o seringal Orion, José Gabriel abriu o terreiro no qual

�recebia� o caboclo Sultão das Matas. Como recorda Mestre Pequenina, �vinha gente de

tudo quanto era seringal�41 consultar o Sultão das Matas. E ele curava as pessoas, assim

como indicava o lugar certo onde se encontrava caça. Adaptando-se a um novo contexto

sócio-ecológico-cultural, José Gabriel dirige um rito sincrético afro-indígena, no qual o

valor simbólico da floresta, que perpassa toda a vida dos seringueiros, fica evidente. Tal

rito, designado pelo filho de José Gabriel simplesmente como �macumba�42, parece

assemelhar-se à pajelança cabocla amazônica43, uma forma de xamanismo não-indígena na

qual tem importância fundamental a noção de incorporação do curador por entidades

espirituais que agem através dele para a cura dos doentes. No entanto, certamente

permaneciam marcantes nos toques do Seringal Orion os elementos religiosos afros

vivenciados anteriormente por José Gabriel, seja na Bahia, seja em sua participação no

Terreiro de São Benedito de Porto Velho.

Posteriormente, a família volta para Porto Velho. Depois de um tempo, ele decide

vender tudo e ir novamente para o seringal. As crianças estavam em idade escolar. Sua

mulher, então, discorda:

�Eu disse: �Não, o que é isso? Eu não nasci no seringal, em mato. Não quero criar

meus filhos sem saber ler e escrever.� Ele disse: �É porque eu vou atrás de um tesouro.�

Mas eu era uma pessoa de cabeça cheia de muitas coisas e achei que era riqueza

material que ele ia achar, e nós ia enricar, ter uma vida de rosa. Então, quando ele disse

que ia, eu disse: �Então, vamos.� Então eu digo que esse tesouro que ele encontrou

junto comigo e os dois filhos, pra mim, é um tesouro tão maravilhoso que dinheiro

nenhum não paga essa felicidade. (...) Então, esse tesouro, que é a União do Vegetal,

tem me amparado.�44

40 Id., p. 7. 41 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Id., p. 7. 42 Id., p. 9. 43 Cf. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas: Catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém: CEJUP. 44 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Alto Falante. Brasília: ago-out 1995, p. 7.

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Nestas palavras de Mestre Pequenina e provavelmente também na afirmação de José

Gabriel, poder-se-ia detectar a presença dos motivos edênicos que povoaram o imaginário

das populações que se defrontaram com a floresta amazônica. Nos sonhos e anseios dos

nordestinos pobres que se lançam na aventura da borracha ecoam ainda as buscas das

�estranhas coisas deste Brasil�: do Eldorado, da Lagoa do Vupabuçu, ou da serra anunciada

por Filipe Guillén, �que �resplandece muito� e que, por esse seu resplendor era chamada

�sol da terra� � (HOLANDA, 1994, p. 36-37). Posteriormente, o sonho do tesouro a ser

encontrado na selva é ressignificado, passando a expressar a União do Vegetal, que nasce

da floresta, de um líquido também dourado, denominado por vezes de �chá misterioso�45.

Tempos depois, no seringal Guarapari, numa colocação chamada Capinzal, na

região da fronteira boliviana, José Gabriel recebe pela primeira vez o chá, de um

seringueiro chamado Chico Lourenço, no dia 1° de abril de 1959. Chico Lourenço

representa uma tradição indígena-mestiça de uso xamânico da ayahuasca que se espalha

por uma ampla região da Amazônia ocidental. Tal tradição é designada posteriormente pela

UDV como a dos �Mestres de Curiosidade�. Aí se inicia nova etapa na trajetória de José

Gabriel.46

O Mestre e Autor da União do Vegetal

José Gabriel bebe três vezes o chá com Chico Lourenço e, logo depois, viaja por um

mês para levar um filho doente a Vila Plácido, no Acre. Quando retorna traz um balde com

o cipó mariri e folhas de chacrona que colheu no caminho. Diz à mulher: �Sou Mestre,

Pequenina, e vou preparar o mariri�47. Segundo seu filho Jair, �nesse período o Mestre

Gabriel não deixou a macumba não. Ele fazia uma Sessão de Vegetal e uma de umbanda.�48

45 Artigo: Convicção do Mestre. In: Jornal O Alto Madeira. Porto Velho, 7 de outubro de 1967. 46 Haveria muito a observar acerca da tradição �vegetalista� amazônica, o que transbordaria o âmbito desta breve exposição da trajetória de José Gabriel da Costa. Remeto aos textos de Luis Eduardo Luna e Edward MacRae citados na bibliografia. 47 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Id. p. 8. 48 Id. p. 9.

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Somente em 1961 ele reuniu as pessoas e disse: �Eu quero falar pra vocês que tudo

que o Sultão das Matas fez eu sei: Sultão das Matas sou eu.�49 Este é um dos momentos

mais importantes de ruptura de José Gabriel com a tradição religiosa à qual estava ligado

anteriormente. Ao postular para si mesmo o poder antes atribuído à entidade Sultão das

Matas, o agora Mestre Gabriel nega a incorporação dos cultos de caboclo e configura o

transe que será típico da União do Vegetal: a burracheira. A burracheira, que segundo

Mestre Gabriel significa �força estranha�, é a presença da força e da luz do Vegetal na

consciência daquele que bebeu o chá. Assim, trata-se de um transe diverso, no qual não há

perda da consciência, mas sim iluminação e percepção de uma força desconhecida.

Em seguida, Mestre Gabriel e sua família se mudam para o seringal Sunta. No dia

22 de julho de 1961, ele reúne as pessoas para um preparo de Vegetal. Nesse dia, o Mestre

Gabriel declara criada a União do Vegetal. Ou melhor, afirma que a UDV foi recriada, já

que ela teria existido no passado, quando ele mesmo teria vivido em outra encarnação. No

dia 6 de janeiro do ano seguinte, Mestre Gabriel se reúne com doze Mestres de Curiosidade

no Acre, em Vila Plácido. Numa sessão, eles reconhecem Gabriel como o Mestre Superior.

Finalmente, no dia 1° de novembro de 1964, no seringal Sunta, é realizada uma sessão na

qual o Mestre Gabriel afirma que fez a Confirmação da União do Vegetal no Astral

Superior. Logo depois, em 1965, ele se muda para Porto Velho, para lá consolidar a

nascente instituição. Apenas seis anos depois, se deu o falecimento de José Gabriel da

Costa, no dia 24 de setembro de 1971.

Descrevendo-se em largos traços a vida de José Gabriel da Costa, fica patente a sua

participação numa larga seqüência de configurações culturais muito próprias da sociedade

brasileira: o catolicismo popular rural do interior da Bahia, a capoeiragem e os cultos afro-

brasileiros de Salvador, a vida sofrida de seringueiro na Amazônia, a experiência de

incorporação dos cultos de caboclo, o transe xamânico do hoasqueiro, e, finalmente, a

atuação carismática do fundador de um novo movimento religioso.

A maleabilidade, a destreza, a vivacidade e a ginga da capoeira capacitaram José

Gabriel a elaborar uma criativa síntese de diversos elementos culturais e religiosos, num

culto profundamente adaptado à realidade sócio-cultural amazônica. E não apenas adaptado

49 Id. p. 9.

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70

a esta, mas com virtualidades para se expandir por todo o Brasil, exatamente por ser

constituído por uma invenção vigorosa que se apropriou de configurações provenientes de

diversas regiões brasileiras.

Comparemos essa trajetória do fundador da UDV com o que Gilberto Freyre aponta

acerca da maleabilidade da formação religiosa brasileira:

�Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e de sentimentos.

Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando para o

individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes. Confraternização que

dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a

formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo;

calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, de relações

quase de família entre os santos e os homens, que das capelas patriarcais das casas-

grandes, das igrejas sempre em festas - batizados, casamentos, �festas de bandeira� de

santos, crismas, novenas - presidiu o desenvolvimento social brasileiro.� (FREYRE,

1992, p. 355).

José Gabriel da Costa, nascido nessa sociedade propensa a hibridismos, plena de

plasticidade e inclusividade, elabora uma nova religião que também é �doce�, na medida

em que privilegia o sentir e propicia ao indivíduo espaço para que ele próprio construa suas

reinvenções criativas.

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2.2. OS PRIMEIROS ANOS DA UNIÃO DO VEGETAL EM PORTO VELHO

�Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez?�

João Guimarães Rosa, Grande Sertão - Veredas

A descrição dos inícios da União do Vegetal em Porto Velho, depois que José

Gabriel da Costa decide mudar-se definitivamente para a capital do Território, não é

meramente a continuação lógica de um relato histórico acerca das origens da UDV.

Considero que a observação do processo de solidificação e institucionalização da nova

religião em Porto Velho possibilitar-nos-á uma compreensão mais ampla do movimento em

direção aos meios urbanos que mais tarde se verificou na �ida da UDV até o Sul�. Perceber

como a �ida à cidade� já aconteceu nos inícios, ou melhor dizendo, ver como a UDV veio a

ser criada em meio a um movimento de ir e vir da família de José Gabriel do seringal a

Porto Velho, nos servirá para desnaturalizar a �ida até o Sul dessa religião da floresta

amazônica�. Assim, o diálogo cultural da �floresta� (focalizada no tópico anterior) com a

�cidade� (objeto deste tópico) é constitutivo da criação do próprio Centro Espírita

Beneficente União do Vegetal.

Nos sete anos de contato com a União do Vegetal, já tive a oportunidade de

conhecer nove �mestres da origem�, além de dois filhos de Mestre Gabriel e um irmão dele,

sendo estes três últimos também mestres da UDV. Especialmente relevantes foram as

entrevistas com o M. José Luiz de Oliveira, atual Mestre Assistente do Mestre Geral

Representante (a 2a pessoa na hierarquia), e com o M. Raimundo Carneiro Braga, ex-

Mestre Geral Representante. Além das entrevistas feitas por mim, foi-me valiosa a consulta

aos arquivos do Departamento de Memória e Documentação, onde há o registro de várias

entrevistas com os mestres antigos, algumas das quais publicadas no Jornal Alto Falante50.

A partir das narrativas dessas pessoas, buscarei desenhar em largos traços o início da UDV

em Porto Velho, sem pretensões de elaborar um relato histórico compreeensivo, visando

mais apresentar um perfil dos participantes, as dificuldades e os conflitos daquela etapa

inicial da presença da UDV em meios urbanos.

50 Publicação do CEBUDV, que durante alguns anos circulou impressa, com tiragem de até 4.000 exemplares, e atualmente é publicada eletronicamente, na Internet. Vide na bibliografia os números consultados.

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Segundo vários relatos, é no ano de 1965 que José Gabriel da Costa transfere-se

com a sua família para Porto Velho, capital do então Território Federal de Rondônia. Antes

dessa mudança definitiva, desde 1951 a 1959, segundo sua esposa Pequenina, o casal esteve

em constantes idas e vindas de Porto Velho para os seringais e vice-versa. Mas agora, em

1965, Gabriel não vai à capital simplesmente motivado pelas dificuldades dos seringais,

tentando vida melhor na cidade. Ele, conforme declarações suas gravadas em fita cassette,

tem a auto-consciência de ser o portador de uma missão: plantar a União do Vegetal na

Terra, para que um dia a UDV chegue a �fazer a paz no mundo�.

Quando chegou em Porto Velho, José Gabriel da Costa ficou morando com sua

família na Rua Abunã, no 1.215. Sua casa era muito pequena, sem espaço para se realizarem

sessões. No mesmo ano de 1965, bebeu o Vegetal com o Mestre Gabriel o Sr. Raimundo

Carneiro Braga, segundo ele mesmo afirmou em entrevista. Ele contou que o grupo que

participava das sessões era pequeno:

�Eram bem poucas [pessoas], não lembro bem. Só sei é que quando começamos havia

16 sócios; posso comprovar porque tenho lá em casa o primeiro livro. Eu lidava

naquela época com a tesouraria, por isso tenho esse primeiro livro guardado.�

Hilton Pereira de Pinho, já falecido, um antigo amigo, de José Gabriel da Costa, o

conheceu �em 1946, no km 101 da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré�51. José Gabriel fazia

frete de lenha no local e Hilton trabalhava como ferroviário. Posteriormente, ele veio a ser

um dos primeiros a receber a �estrela de mestre� e foi o primeiro presidente da Associação

Beneficente União do Vegetal. Vinte anos após o primeiro contato com o amigo, ele veio a

beber o Vegetal pela primeira vez nos inícios do ano de 1966, na sede do Círculo Esotérico

da Comunhão do Pensamento (CECP). Ele narra:

�No dia 06 de janeiro de 1966 tivemos a primeira sessão oficial da União do Vegetal,

precisamente 1 ano após o mestre Gabriel ser reconhecido no astral superior como

mestre geral da União do Vegetal, sendo esta realizada na sede da sociedade tátua,

onde nos encontrávamos todos unidos.�52

Essa instituição esotérica foi fundada em 27 de junho de 1909, na Cidade de São Paulo, por

Antônio Olívio Rodrigues (RODRIGUES, 1991), espalhando-se pelo Brasil, de modo que

na década de 60 já havia um Tattwa, ou seja, um �Centro de Irradiação Mental�, em Porto

51 Depoimento de Hilton Pereira de Pinho, s.d. p. 2. 52 Idem. p. 4.

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73

Velho. Dentre os �mestres da origem�, o M. Raimundo Carneiro Braga chegou a ser sócio

desse Tattwa. Durante o tempo de meu trabalho de campo, em Campinas, participei de

duas sessões do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (CECP). Há interessantes

similaridades na estrutura do ritual das sessões do CECP e da UDV. O antropólogo

Wladimyr Sena do Araújo, em sua dissertação de mestrado acerca da Barquinha (ARAÚJO,

1999, p. 116-122), indica a influência que ela recebeu do CECP. Essa influência

certamente bem maior do que a recebida pela UDV, já que na Barquinha há elementos

propriamente doutrinários que advêm do CECP. Não encontrei tais elementos em meu

trabalho etnográfico na UDV. O máximo que posso supor é que tenha havido um certo

influxo do CECP na forma da sessão.

O M. Braga apontou o CECP como um lugar importante em seu percurso de

buscador das coisas espirituais:

�Busca espiritual mesmo, que eu senti a energia espiritual, eu senti dentro do

esoterismo, do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento. Assim, antes de eu

chegar no Vegetal, eu tive dentro de macumba, pra saber, em busca de conhecer

alguma coisa estranha que o povo fala, que o povo diz. E eu, procurei assim, saber se

de fato aquilo é verdade mesmo, pra ter assim alguma convicção. Por dentro da

macumba eu não tive direito de receber nada daquilo que as pessoas diz que recebe,

que se atua, que aquilo outro... Isso aí foi um espaço vazio pra mim. [...] aí eu busquei

isso aí mais em outros batuques, mesmo em Porto Velho, no batuque de Santa

Bárbara.�

Quando lhe perguntei se apenas ele, entre os �mestres da origem� havia sido sócio do

CECP, ele respondeu: �Que eu sei, eu. Tem o M. Monteiro, da Maçonaria, M. Bartolomeu

depois, o M. Messias, que hoje tá afastado da União, também foi pra lá pra Maçonaria. O

M. Zé Luiz na Rosacruz..� Além destes, convém lembrar de Raimundo Pereira da Paixão,

que iniciou na UDV em 18 de novembro de 1966, um dos �mestres da origem� que depois

veio a ter significativa importância nos inícios da União do Vegetal em São Paulo. Ele era

participante ativo do Terreiro de São Benedito em Porto Velho: �Naquela época eu

freqüentava macumba e ele [José Gabriel] se dava tanto com a dona do terreiro [Chica

Macaxeira] e ela convidou ele para o batuque.�

Quanto à Ordem Rosacruz, M. José Luiz de Oliveira comenta ao narrar seu primeiro

encontro com José Gabriel da Costa: �Eu vinha seguindo a Rosacruz há alguns anos,

Page 74: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

74

inclusive já portava o título de Mestre Rosacruz, por isso quando ele falou de evolução

espiritual , a Rosacruz tem todo um trabalho nesse sentido, me chamou a atenção � é atrás

disso que eu ando.�53 A sua vivência no Rosacrucianismo não foi apenas no período

anterior à sua participação na UDV. Em entrevista a mim, M. José Luiz declarou:

�Fiquei 27 anos na Ordem Rosacruz, dos quais uns 15 anos paralelos entre a Ordem

Rosacruz e a União do Vegetal, sabendo que um dia eu ia ter que fazer uma opção. [...]

O Mestre Gabriel nunca exigiu que eu tomasse nenhuma posição, fizesse uma opção,

ou se eu quisesse seguir na União do Vegetal deixasse a Ordem Rosacruz. Não. Ele

nunca exigiu isso de mim. E isso pra mim foi muito bom. Eu entendi que ele achava

que seguir a Deus é uma opção. Porque Deus deu a nós o livre-arbítrio e a gente não é

toda hora que pode ter a opção. Chega o momento da opção. Quando você chega na

encruzilhada da sua vida, que você tem na bifurcação das veredas da vida, que você

tem que tomar uma opção, você vai pra esquerda ou vai pra direita ou vai em frente.

Pra onde tiver o seguimento, e qual dos seguimentos, às vezes não é só uma nem duas,

tem mais, três, quatro, cinco e você vai ter que ter uma opção. Enquanto não chegou o

momento da opção não adianta você querer tomar a opção que ainda não é o momento

da opção. Não pode precipitar as coisas. Quando chega o momento, você sente. Se é

opção é da própria pessoa. Não pode ser uma opção direcionada por quem quer que

seja. [...] Então, meu amigo, chegou o momento de minha vida em que eu tive de fazer

a opção, mas pela minha livre e espontânea vontade.�54

É significativa a atitude de Mestre Gabriel, não impondo a José Luiz, nem mesmo após este

ser convocado por ele ao Quadro de Mestres, o seu afastamento da Ordem Rosacruz. Desse

modo, o criador da UDV reafirma sua opção de estimular os discípulos para que eles

mesmos �examinem�, decidam segundo a sua consciência e exerçam o seu livre-arbítrio.

Em última análise, essa atitude pode ser relacionada à característica da experiência com o

chá Hoasca na União do Vegetal, de propiciar um englobamento de múltiplas vivências

espirituais e religiosas do indivíduo, como veremos adiante. Além disso, tal modo de agir

certamente respondia aos anseios daqueles que chegavam na UDV com uma longa história

de busca, como o mesmo M. José Luiz conta, fazendo uma leitura ex post de suas

experiências anteriores, à luz de seu percurso esotérico posterior:

�E assim eu me dediquei ao catolicismo até uma determinada idade, quando chegou o

momento em que eu senti que não tava mais encontrando resposta pra algumas coisas

53 Entrevista de M. José Luiz de Oliveira. Por Edson Lodi, em dezembro de 1990. In: Memórias, Volume II, p. 3. 54 Entrevista de M. José Luiz de Oliveira. Rio de Janeiro, 25 de abril de 1999.

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75

no catolicismo, porque devido a eu ser uma pessoa que naquela época só tinha o

primário incompleto, não tinha tanto estudo assim, então os padres naturalmente

seguraram algumas coisas que eles não iam revelar pra quem não tava preparado, de

acordo com as normas da Igreja Católica, pra se aprofundar mais. Mas, como eu não

via resposta, e eu sou um buscador das coisas divinas, tive de procurar outros meios. E

aí eu entrei pelo Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, freqüentei o Círculo

Esotérico da Comunhão do Pensamento, entrei pelo Kardecismo, entrei pelo

Rosacrucianismo, no Rosacruz da AMORC, sediado em Curitiba, tive na Igreja

Presbiteriana, com o Pastor Bastos, tive também na Primeira Igreja Batista e tive

também na Assembléia de Deus.�55

É relevante observar a recorrência de diversas experiências religiosas e esotéricas

nesses primeiros discípulos da UDV. Especialmente, naqueles que foram escolhidos por

José Gabriel da Costa para integrar o primeiro Quadro de Mestres da UDV, os quais

poderiam ser descritos segundo o perfil de um �buscador das coisas divinas�. Os primeiros

discípulos eram, na maioria, moradores da cidade, o que lhes facultava a possibilidade de

participarem dessa variada gama de atividades religiosas. O que Carlos Alberto Afonso

afirma acerca dos inícios do Santo Daime pode, guardadas as singularidades de cada

fenômeno, ser aplicado à UDV:

�Na verdade, o Daime não surgiu numa periferia remota de índios e caboclos, mas

numa sociedade de fronteira internacionalizada pela economia da borracha e

urbanizada pela cultura comercial e várias hierarquias de deslocações internas

(seringueiros, militares, comerciantes, burocratas, políticos), o que inspirou a

disseminação, em Rio Branco e noutras localidades, de casas modestas de candomblé,

umbanda e espiritismo kardecista, segundo o modelo do comércio religioso das cidades

do litoral. E, de fato, todas essas religiões apresentam influências importantes no

Daime. O Acre era, em particular, o espaço de fronteira e de tráfegos inter-culturais

entre a sociedade diaspórica que se formava, no lado brasileiro, e o multiculturalismo

tradicional da Amazônia, nomeadamente o xamanismo dos ayahuasqueros� (AFONSO,

art. inédito 2, p. 10-11).

No mesmo lote da Rua Abunã, no 1.215, em que residia José Gabriel da Costa, havia

uma segunda casa, que tinha outro morador. Depois de alguns meses, este se mudou, e

55 Id.

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76

então Mestre Gabriel passou a distribuir o Vegetal nessa casa, no ano de 1966. Narra o M.

Hilton:

�De início não tínhamos sede organizada para realizar nossas sessões, tínhamos que

solicitar a vizinhos lugar em seus quintais a fim de realizar as nossas sessões semanais,

visto que a residência do Mestre era pequena e uma sala que dispunha, residia o mestre

galego. Tivemos dessa forma, que pedir ao Sr. Macdonald em sua fazenda na Estrada

dos Tanques 1 sala para a realização de nossas sessões. Neste local ficamos 6 a 8

meses, ocasião em que o Mestre Galego seguiu para a Bolívia (Mamo), desse dia em

diante passamos a ocupar a sala, a qual era forrada com palhas. Em atividade todos os

irmãos fizemos o piso com cimento, sendo encarregado da obra o Sr. José Luiz de

Oliveira. Adquirimos tábuas e fizemos novas paredes de cujo serviço encarregou-se o

Sr. Antonio Cavalcante de Deus (Gia). Antonio de Deus ainda se encarregou da

confecção de duas grandes mesas e bancos a serem colocados ao redor dessas, servindo

ao grande número de irmãos que chegavam em busca de tratamento pelo vegetal.�56

A afluência de pessoas à procura do chá Hoasca para resolver seus problemas de

saúde, mencionada por M. Hilton, é abordada por Afrânio Patrocínio de Andrade em sua

dissertação de mestrado:

�De repente o novo irrompeu ali, no meio da cidade. Duma hora para a outra, no meio

de todo um êxodo que interliga a floresta com a cidade, sai um seringueiro falando de

Deus, explicando os mistérios profundos da existência e, mais que isto, doutrinando

centenas de pessoas, com uma casebre lotada (sic) de seguidores. [...] Em termos de

Saúde, é oportuno lembrar que a região como um todo era um próprio caos, situação

que até os dias de hoje ainda não é das melhores. [...] Foi exatamente nesta época em

que esse programa [o Serviço Especial de Saúde Pública] estava entrando em

decadência que a União do Vegetal chegou na cidade. Ela encontra, ali, nada menos

que uma população que ansiosamente corria atrás de recursos médicos.� (ANDRADE,

1995, p. 184, 190-191).

O autor segue apresentando o relato de um �mestre da origem� que conheceu a

União do Vegetal acompanhando uma pessoa doente que buscava a cura através do chá do

Mestre Gabriel. Esse aspecto, de ser uma via alternativa para os que buscam saúde num

contexto de extrema carência de recursos, certamente teve a sua importância naqueles

inícios. No entanto, é necessário matizar as palavras do autor, que chega a falar de um 56 Depoimento de Hilton Pereira de Pinho, Id. p. 6.

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seringueiro �doutrinando centenas de pessoas� em um casebre lotado. Tudo indica que não

houve um movimento tão espetacular quantitativamente, tendo sido bem modesto o número

de seguidores da UDV, até o falecimento de José Gabriel da Costa. Uma estimativa

plausível seria supor que eram, em 1965, ano da chegada de Mestre Gabriel a Porto Velho,

em torno de 16; em 196757, por ocasião da prisão de José Gabriel da Costa, por volta de 50;

e em 1971, ano do falecimento do fundador da UDV, uns 70 em Porto Velho, 30 em

Manaus e mais alguns em Jaru e Jaci-Paraná, totalizando menos de 150 participantes. Mas,

voltando à questão da saúde, é interessante indicar que, posteriormente, o CEBUDV

procurou distanciar-se de qualquer prática passível de ser taxada como curandeirismo:

�Há grupos religiosos que apregoam as virtudes curativas do chá. A União do Vegetal,

nesse particular, tem postura sóbria. Sabe que a Deus nada é impossível, mas não

pratica ou difunde ações curandeiristas. Usamos o chá, como já foi dito, como veículo

de concentração mental, para buscar o acesso a um estado de consciência em que a

compreensão dos fenômenos espirituais e metafísicos é mais nítida. O que se busca,

através dos ensinos e da doutrinação reta, é a cura espiritual - isto é, a evolução.�

(CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL , 1989, p. 34)

Outro aspecto citado por M. Hilton, a precariedade e pobreza do local em que os

discípulos bebiam o Vegetal, também é lembrado por M. Paixão. Diz ele:

�Era muito difícil, era periferia, tinha olarias perto da sede. A sede era pobre mesmo,

coberta de palha, tapada, de tábua de refugo e de terra batida. Depois que fizeram o

piso. [...] Na época, lá não tinha nenhum seringueiro, a pessoa que ainda veio em Porto

Velho e ele chamou para beber o vegetal duas vezes foi o Chico Lourenço. [...] Então,

o poder aquisitivo era uma situação delicada. Naquele tempo quem tinha mais poder

aquisitivo era o Mestre Ramos, que era um forte comerciante, e dessas pessoas era só

ele mesmo. Mestre Braga trabalhava na praça [era taxista], lutava com sacrifício e

outras pessoas também lutavam com sacrifício. Quantas vezes o Mestre Ramos

custeou as despesas para buscar o vegetal. Naquele tempo era pouco, nem era em

grande quantidade. O irmão Modesto ia buscar o vegetal de trem num lugar chamado

Pau Grande, na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, era onde o Modesto ia buscar o

vegetal. A gente preparava em lata de querosene, comprava aquelas latas de

querosene, às vezes trazia, ou doava. Eu abria, batia com o martelo a beira da lata,

57 No artigo Convicção do Mestre, publicado no jornal Alto Madeira, de 1967, fala-se de �198 discípulos que vêm lhe acompanhando [o Mestre]�. Porém, segundo M. José Luiz, esse número foi tirado do Livro de Adventícios, apontando então para o conjunto dos que já haviam bebido o Vegetal e não para aqueles que então permaneciam participando.

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abria direitinho, enchia de jornal e tacava fogo para largar o gosto do querosene.

Quantas vezes nós bebemos o vegetal com gosto de querosene ou de gasolina. Quantas

vezes aconteceu isso. Nós tinha uma fornalha, na olaria botava tijolos, botava umas

trempes, e ali botava duas latas em cima. Quando bebia o vegetal, cada um pegava um

sebo de pau ou dois tijolos e se sentava. Tinha alguns que levavam rede e se sentavam

para ficar perto do Mestre, mas não dava para ficar todo mundo ali, pegavam um

pedaço de pau e sentavam ali perto.�58

No mesmo sentido, afirma M. Braga: �Quando cheguei, no início, as coisas eram como em

todo início; tinha pouca coisa, eu digo que tinha tudo porque tinha o Mestre Gabriel, mas

em bens materiais e em organização era bem pouco. Estávamos iniciando.�59

A pobreza foi bem marcante nesses começos. Assim como a carência de instrução

escolar formal da maioria, a começar do próprio José Gabriel da Costa, que freqüentou

poucos dias a escola quando criança e era apenas semi-alfabetizado. Por volta de 1970, D.

Francisca e D. Josefa davam aula de alfabetização no templo da UDV. Mas havia os

�intelectuais� do grupo. Além de M. Hilton Pereira Pinho, que havia sido presidente de

sindicato, de M. Raimundo Monteiro de Souza, professor primário, de M. José Luiz de

Oliveira, que, segundo ele mesmo, �já tinha sido secretário, tesoureiro, membro de diversas

entidades e diretorias, inclusive da Federação de Desportos de Guaporé�, havia também o

M. Rubens. Segundo o M. José Luiz, �o M. Rubens chegou na União assim meio

intelectual. A profissão dele era dentista, mas estudava medicina na Faculdade de Goiânia.

Mestre Gabriel queria muito bem a ele [...]. Falava muito mais intelectualmente do que

dentro dos mistérios das coisas da UDV.� Em 1971, pouco antes do falecimento de Mestre

Gabriel, o então Conselheiro Rubens fez uma explanação na sessão inaugural do Núcleo de

Manaus. Cito aqui um pequeno trecho, que bem exemplifica esse falar �intelectual�:

�Muitas vezes se vê no mundo moderno, tanto progresso, cheio de albores de uma

civilização extraordinária, o homem se deslocando pra Lua, o homem em busca de

Marte, e essa tecnologia, e esse aperfeiçoamento, será que isso está a serviço realmente

de algo útil? Nós nos perguntamos muitas vezes. Será que existe uma coesão fraterna

entre os homens? Será que todo este amparo da tecnologia e da ciência moderna está

servindo para uma coesão, para um amparo, para uma sistemática, para uma irmandade

em si universal? Lá no Vietnã se mata, lá no Cambodja se mata, lá no Laos se mata.

58 Entrevista de M. Raimundo Pereira da Paixão. Em Campinas, por Lúcia Gentil, em 3 de junho de 1993. 59 Entrevista de M. Raimundo Carneiro Braga. Por Edson Lodi, Ruy Fabiano e João Bosco, em junho de 1991. In: Memórias, Volume II, p. 79.

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Por que é que se mata? Por que é que se é mesquinho? Por que é que se persegue? Por

que é que se vilipendia o ser humano? [...] Sem o amor, meus caros irmãos, muito

dificilmente a sociedade será uma sistematização, uma coesão [...] Por falta de amor é

que se mata, conforme eu disse agora.�60

Este discurso, ainda que seja a fala daquele membro com maior formação acadêmica, indica

que o grupo dos primeiros anos da UDV não era formado por seringueiros recém-chegados

da floresta, mas sim por indivíduos urbanos, e que ao menos alguns deles tinham

informação dos meios de comunicação acerca da política internacional e das

transformações do �mundo moderno�. A presença de pessoas letradas já suscitava uma

indagação acerca do futuro, quando a UDV viesse a crescer. Então, o próprio Mestre

Gabriel, segundo M. Braga, dava uma orientação aos discípulos:

�A recomendação é a seguinte: quando a União do Vegetal chegar nas pessoas letradas,

formadas, elas podem querer fazer modificação em função do modo de ser delas, e que

nós tivéssemos muito cuidado quando o vegetal chegasse nos grandes centros. Ele

dizia: �Nós não podemos ir ao povo.� Não é propriamente o vegetal, mas nós. E ainda,

�O povo é que tem de vir a nós. Temos que falar assim, pela linguagem do caboclo,

uma linguagem que desse para todos entender, o mais e o menos letrado.� Essa foi uma

das recomendações que ele nos deu, que nós não fôssemos ao povo, o povo viesse a

nós. Se nós fôssemos ao povo, ficávamos com o povo, mas se o povo viesse a nós,

ficava conosco.�61

Esse grupo de pessoas, que se constituíam em �sociedade� ou �irmandade�,

defrontou-se com os conflitos da sociedade brasileira de seu tempo e com as tensões

próprias de um novo movimento religioso com as especificidades que possuía a UDV.

Primeiramente, o conflito político do Brasil na década de 60 e no início dos anos 70. Mestre

Gabriel chegara a Porto Velho em plena época da ditadura militar. Um momento

emblemático de conflito foi a prisão de José Gabriel da Costa em 6 de outubro de 1967.

Esse momento é relembrado em cada sessão de escala, na hora da leitura dos documentos

da UDV, logo no início da sessão, quando se lê o artigo Convicção do Mestre, publicado no

jornal Alto Madeira, de Porto Velho, logo após o incidente. Paradoxalmente, lembrar em

todas as sessões de escala da prisão do Mestre Gabriel cumpre um papel de sinalizar que o

60 Rubens Rodrigues, Explanação na sessão inaugural do núcleo de Manaus, 1971. In: Memórias, Volume I, p. 97. 61 Entrevista M. Raimundo Carneiro Braga. Loc. cit., p. 103.

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uso do chá hoasca pela UDV é plenamente legal, além de propor ao discípulo da UDV que

viva em sua própria vida atitudes semelhantes à do Mestre Gabriel, que disse:

�Prestem atenção os que quiserem me acompanhar na missão: podemos ser censurados

por todos, mas não podemos censurar a ninguém; podemos ter inimigos, mas não

podemos ser inimigos de ninguém; podemos ser ofendidos por todos, mas não

podemos ofender a ninguém; podemos até ser julgados por todos, mas não podemos

julgar a ninguém; podemos ser revoltados por todos, mas não podemos revoltar e nem

ser revoltados por ninguém.�62

M. Hilton narra do seguinte modo a prisão:

�No dia 06 de outubro de 1967, quando estávamos em sessão de escala na União do

Vegetal, às 23 horas, entra a polícia comandada pelo chefe de polícia de guarda policial

territorial Antonio Nogueira da Silva que convidou o mestre Gabriel a acompanhá-lo à

Delegacia de Polícia da Capital para prestar depoimento esclarecimentos sobre aquele

ajuntamento de pessoas, mestre Gabriel encerrou os trabalhos da sessão e seguiu no

carro policial, eu entrei no carro e fui mandado a desocupá-lo. Nesta sessão estavam

presentes 38 discípulos dos 198 que vinham lhe acompanhando. Os discípulos do

mestre Gabriel unidos seguiram em direção a central de polícia e lá permaneceram até

a manhã. Procuramos as autoridades, inclusive o Sr. Simão Tavenad, que mesmo em

sua residência não foi encontrado. Dia seguinte, domingo eu bem cedinho dirigi-me a

central de polícia onde encontrei o mestre Gabriel em uma sala especial. Em seguida

fui convidado a conversar com o Sr. Rodolfo Menezes Ruiz, muito meu amigo pois o

conhecia desde criança quando eu era professor no grupo Barão do Solimões ocasião

em que este me diz: seu Hilton, o senhor metido nessas organizações clandestinas?

Em resposta lhe expliquei a finalidade da União seu amor a Deus e a natureza. Então

nos foi exigido um estatuto.�63

O relato é bem ilustrativo de como as autoridades policiais observavam como

suspeito �aquele ajuntamento de pessoas� e logo tendiam a ver qualquer nova associação

que se formasse como mais uma dentre as �organizações clandestinas�. A partir dessa

situação, surge a necessidade de se registrar �um estatuto�. E, ao que parece, já antes desse

episódio alguns dos discípulos percebiam essa necessidade, como afirma M. Hilton em

trecho anterior do mesmo depoimento: �Meu desejo constante era que se registrasse a 62 Artigo Convicção do Mestre. In: Jornal Alto Madeira, Porto Velho: 6 de outubro de 1967. Conforme consulta nos arquivos do Departamento de Memória e Documentação do CEBUDV. 63 Depoimento de Hilton Pereira de Pinho, Id. p. 6-7. Grifos meus.

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União do Vegetal legalmente em cartório local. Pois na época (pós-64) qualquer

organização que não tivesse seus estatutos era interditada pela polícia.�64 Ele, que havia

sido presidente de sindicato, parecia estar consciente das dificuldades que a UDV poderia

estar sujeita nesse tempo de repressão. E o que se pode observar é que a direção da União

do Vegetal teve grande habilidade na obtenção das condições de possibilidade para a sua

continuidade. A atitude constante da UDV parece ter sido a de �procurar as autoridades�,

buscando esclarecê-las acerca das suas atividades, na convicção de que não havia nada

errado em suas práticas. Como nota M. Braga, acerca da atitude de Mestre Gabriel:

�Quando o chá começou a ficar mais conhecido, algumas autoridades pensavam que

era um tóxico, que não era uma coisa boa. Mestre Gabriel sempre reagiu com firmeza,

com a convicção de quem sabia que estava fazendo um trabalho correto como nós

sabemos que é. Ele dizia sempre que era muito difícil as autoridades fecharem as

portas da União do Vegetal porque ele não estava fazendo nada de errado. Sempre

com firmeza e a convicção de vencer, chegar no lugar das autoridades reconhecerem

que ele não estava fazendo nada de errado.�65

Assim, logo após a libertação do Mestre Gabriel, que se deu no dia seguinte de sua prisão, a

UDV publicou uma nota de esclarecimento no jornal Alto Madeira - a �Convicção do

Mestre� - e M. Hilton e M. José Luiz elaboraram os primeiros estatutos civis da

Associação. Em seguida, eles os apresentaram �em cartório local e em poucos dias o

Meritíssimo Juiz de Direito Dr. Joel de Moura assinava solenemente reconhecendo a União

do Vegetal como entidade Jurídica em todo território Federal de Rondônia.�66 Esse

empenho em realizar tudo segundo a legalidade tem sido até aqui claramente observável no

agir da direção do CEBUDV.

Um outro episódio, narrado por M. Paixão, também mostra a constante vigilância

exercida sobre o grupo naquela cidade de Porto Velho, em que havia uma considerável

presença do Exército:

�Um dia, quando Mestre Bartolomeu [que era militar] foi chamado pelo Comandante

do exército, naquele tempo ele estava na ativa, porque haviam denunciado que ele

freqüentava uma seita que servia um chá que era uma droga, ele explicou: �A

sociedade que eu freqüento, a União do Vegetal, serve um chá mas não é o que estão

64 Id., p. 6. 65 Entrevista M. Raimundo Carneiro Braga. Loc.cit., p. 89. 66 Depoimento de Hilton Pereira de Pinho, Id. p. 7.

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dizendo� e disse ao Comandante, �se o senhor quiser conhecer, eu levo o senhor lá�. O

Comandante quis conhecer.�67

Depois desses fatos, houve novamente, em 1969, uma ação da polícia contra a

UDV. Esta teve de permanecer, durante um período, sem receber novatos. M. Raimundo

Monteiro de Souza na condição de presidente do CEBUDV, impetrou um mandado de

segurança em 1970, através do advogado Jerônimo Santana, que obteve sentença favorável

à UDV. Posteriormente, esse advogado elegeu-se deputado federal e mais tarde foi o

primeiro governador eleito do Estado de Rondônia, no período de 1986 a 1991.

Acompanharam o processo no fórum o discípulo Francisco Adamir de Lima e o

Conselheiro Bartolomeu, que em seguida foram convocados por Mestre Gabriel para o

Corpo do Conselho e para o Quadro de Mestres, respectivamente. O hoje M. Adamir conta

que até novembro de 1970 �existia a União do Vegetal e a Associação Beneficente União

do Vegetal [entidade civil]. Quando quiseram fechar a União do Vegetal, fomos orientados

para mudar o nome. Foi então feita a junção e surgiu o Centro Espírita Beneficente União

do Vegetal.�68

Mas os conflitos não se deram unicamente com o aparelho do Estado. Também

houve uma situação conflituosa com a instituição religiosa predominante em Porto Velho

na época, a Igreja Católica. Primeiramente, observemos a narrativa e as deduções de

Afrânio Patrocínio de Andrade, a partir da entrevista que fez com o bispo de Porto Velho,

atualmente já falecido, D. João Batista Costa, que exerceu o governo da Prelazia de Porto

Velho de 1946 a 1982:

�As �autoridades eclesiásticas� também chegaram a ser consultadas, mas afinal de

contas, o que elas teriam contra um adepto da �sempre virgem Maria Santíssima� e do

�nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo�?

Nesta época, era bispo da cidade o hoje jubilado Dom João, que tivemos oportunidade

de entrevistar, em março de 1992. Ele nos informou que, quando o mestre Gabriel

chegou na cidade com o chá, ele já era pároco ali há 35 anos, dos quais, uma década

como bispo. Segundo ele, alguns dos católicos, �gente de fé�, procuraram por ele, para

saber sua opinião sobre o referido chá. Teria ele interrogado àqueles fiéis sobre o que

eles viam durante o estado de êxtase. Responderam a ele que viam coisas ruins e coisas

67 Entrevista M. Raimundo Pereira da Paixão. Em São Paulo, por Edson Lodi, em junho de 1989. In: Memórias, Volume II, p. 121. 68 Mestre Adamir, um pioneiro do Vegetal. Jornal Alto Falante, Brasília,Sede Geral, nov-dez 1990. p. 4-6.

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boas e �muito bonitas�. Diante disto, teria ele instruído os fiéis a seguirem o conselho

do apóstolo Paulo, �examinar todas as coisas e reter o que é bom�. Em seguida,

designou um de seus assessores episcopais, o já falecido Padre Carlos, para dialogar

com o mestre Gabriel a respeito do assunto. Infelizmente o resultado de tal diálogo não

nos foi acessível, pois, segundo alguns dos adeptos da União do Vegetal, houve um

desentendimento entre o mestre Gabriel e o Bispo, o que não é confirmado por este

último. A �prova� de tal desentendimento é um artigo publicado num dos jornais da

cidade e mantido por essa, intitulado �Velando enquanto dorme�. Uma leitura do texto

não indica propriamente uma controvérsia. Procurado para nos dar mais informações

sobre o seu contexto, o autor do texto não se lembrou absolutamente nada a respeito.

Por outro lado, o referido padre, designado para tal diálogo, faleceu no decurso do

processo. Segundo o bispo, é possível que existam anotações dele na Igreja em que era

pároco, em Porto Velho, o que ainda não confirmamos. Diante disto, nossa

ponderação ainda continua sendo a de que, embora desconhecesse o assunto, a Igreja

Católica não chegou a se posicionar objetivamente sobre ele.� (ANDRADE, 1985, p.

185).

No entanto, outras narrativas indicam que a situação foi mais conflituosa: as

entrevistas dos Mestres Braga e José Luiz de Oliveira, respectivamente ao Jornal Alto

Falante e a mim. As declarações do bispo a Patrocínio de Andrade vão na direção de uma

diluição do conflito. A aplicação pelo bispo do conselho paulino de �examinar todas as

coisas e reter o que é bom�, quando da pergunta de �gente de fé� sobre sua opinião acerca

do chá, parece expressão de uma mentalidade extremamente aberta. Porém, as lembranças

dos mestres da origem apontam para uma situação diversa. Conta o M. Braga:

�É que uma pessoa foi à casa do bispo e transmitiu informações que não eram

verdadeiras sobre a União do Vegetal. Essa pessoa não conhecia a União, por isso deu

aquelas informações. Aí, o bispo num sermão da igreja falou da União do Vegetal da

mesma maneira; maltratou a União, disse um bocado de coisas. Quando eu soube, pedi

ao Mestre Gabriel para conversar com o bispo e o Mestre Gabriel me autorizou. E eu

fui. Expliquei pro bispo o que era o vegetal e o que era que aquele senhor, que era o

Mestre Gabriel estava fazendo pelas pessoas. Depois contei toda a história sobre o

pensamento da União do Vegetal. Depois que contei toda a história sobre o

pensamento da União do Vegetal, o bispo disse o seguinte: �Se a União do Vegetal e o

chá estão produzindo esse efeito, e se esse senhor está fazendo esse trabalho, o senhor

pode continuar bebendo.� Aí, pedi para ele autorizar um padre que era muito meu

amigo a beber o vegetal. Ele me pediu que eu não fizesse isso; pra mim mesmo, ele

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disse que eu continuasse, mas pro padre não. [...] Acho que foi a primeira vez que uma

autoridade, pesando mais as palavras, se manifestou favoravelmente.�69

Assim, segundo a narrativa de M. Braga, corroborada pelas declarações de M. José

Luiz, o próprio D. João Batista Costa teria feito pesadas críticas à União do Vegetal em um

sermão (ou mais de um) na igreja. Isto, a partir de informações de uma pessoa que �não

conhecia a União�.

A resposta da União do Vegetal foi através da publicação em jornal de um artigo,

denominado Velando enquanto dorme, onde se lê:

�Disse um Reverendo, em seu sermão de domingo dia 11-7-71: Na União do Vegetal

se vê de tudo. E é verdade, pois a primeira coisa que vi, quando comecei a freqüentar a

União do Vegetal, foi o caminho em que �eu� vivia, no erro. E hoje, pela minha firmeza

em Jesus Cristo e sua bondosa mãe Maria Santíssima, vejo o caminho limpo e firme

[...].�70

Esse �caminho limpo e firme� é o argumento de defesa da União do Vegetal apresentado no

artigo: �Afirmo que a União do Vegetal pratica e ensina exatamente o amor a Deus sobre

tudo, extensivo aos seus semelhantes�. Mais adiante, o texto chega a especificar traços

característicos da prática dos discípulos da União: estar �isentos� de freqüentar

�bares, casas de jogos, mesmo sinuca ou bilhar, baixo meretrício e outros lugares que

porventura existam e que sejam perniciosos à formação moral do homem diante do

próprio homem e muito mais diante daquele que se chama Espírito Santo, que compõe

a Trindade Divina.�71

Essa afirmação de uma �regeneração� dos novos participantes, alguns conhecidos

como �farristas� em Porto Velho, era freqüentemente trazida como resposta àqueles que

questionavam acerca dos efeitos do chá Hoasca para a pessoa. Além da publicação do

artigo, tanto M. Braga quanto M. José Luiz foram falar com o bispo, de quem eram amigos.

D. João não se deu por convencido acerca do valor religioso positivo do chá, mas ao menos

parou de criticar a UDV em seus sermões. De qualquer modo, as narrativas dos mestres da

69 Entrevista de M. Raimundo Carneiro Braga. Loc. cit., p. 93. 70 Velando enquanto dorme. In: Jornal Alto Madeira. Porto Velho: julho de 1971. Conforme consulta nos arquivos do Departamento de Memória e Documentação do CEBUDV. 71 Id.

Page 85: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

85

UDV indicam que houve uma significativa mudança no posicionamento depois que os

discípulos da UDV o procuraram para conversar.

Ultrapassando situações conflituosas com a polícia, com o exército, com o

Poder Judiciário, com a Igreja Católica, os primeiros discípulos da União do Vegetal

souberam encaminhar bem as resoluções desses conflitos. E, como narra M. Braga, ainda

conseguiram obter recursos junto ao Poder Público para solidificar a obra começada:

�No início, a gente usava uma casinha que não era propriamente a casa do Mestre

Gabriel, era uma casinha pegada à dele. O ambiente físico não era tão agradável, mas

fomos nos organizando, crescendo e aumentando a casa. Com o tempo, foi enchendo

de pessoas. Certa vez ele disse que era bom que a gente encontrasse um lugar onde

pudesse construir nossa sede. Naquele tempo, a gente falava em sede, depois passamos

a falar em templo, porque sede ficou sendo a casa do Mestre, porque ele nos cedia.

Um dia a gente se dispôs a ir à Prefeitura; fomos eu e o Mestre Ramos, e a Prefeitura

doou um terreno de 100 metros por 100 metros. Aí começamos a construção do

templo, com Mestre Gabriel ainda em matéria, mais ou menos em 69, e chegamos a

concluir a obra.�72

Desse modo, com grande habilidade, mesmo em meio a um contexto político extremamente

desfavorável ao surgimento de uma instituição que faz uso ritual de uma substância

psicoativa, gradualmente conseguiram, do mesmo modo como construíram um templo,

plantar os alicerces do CEBUDV na cidade.

72 Id., p. 89.

Page 86: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

86

2.3. A PRESENÇA DA UDV EM SÃO PAULO A PARTIR DOS ANOS 70

�... estamos construindo um templo...�

Cartão comemorativo dos sete anos do Núcleo Alto das Cordilheiras, 1999

Em 1971, ainda em vida de Mestre Gabriel, a União do Vegetal iniciou a sua

expansão para além de Porto Velho, com a criação do núcleo de Manaus, posteriormente

denominado Núcleo Caupuri73. No ano seguinte, já após o falecimento de José Gabriel da

Costa, a União do Vegetal chegou a São Paulo. A partir da entrevista da conselheira Inês74

e de um artigo publicado75 em 1972 no jornal Alto Falante, órgão oficial do CEBUDV,

dirigido aos sócios do Centro, buscarei delinear esses primeiros passos da União do Vegetal

no Estado de São Paulo, a partir dos quais se fundou o Núcleo Samaúma. Em seguida,

descreverei os começos da UDV em Campinas, a formação do Núcleo Lupunamanta, e a

posterior constituição do Núcleo Alto das Cordilheiras. Deste modo, apresentarei um

aspecto da expansão da União do Vegetal no Estado de São Paulo, a partir do ramo do qual

surgiu o núcleo em que fiz o trabalho de campo desta dissertação.

O artigo do Alto Falante transcreve os depoimentos de duas conselheiras que

participaram dos inícios do Núcleo Samaúma, o primeiro a se formar no Sudeste. Elas são

Ivone de Castro Menão76, que iniciou na UDV em 1972, e Else Angélica Piacentini

Medeiros, que começou a participar no ano seguinte. Segundo Ivone, em maio de 1972, ela

e seu companheiro Nielson Menão beberam pela primeira vez o Vegetal em Manaus,

convidados por um mestre da UDV que participava com eles de �um grupo que trabalhava

na área de música, cinema e teatro�. O mestre lhes chamou para conhecerem �um chá que

nos fazia ver coisas bonitas [...] e que era também uma viagem para dentro de nós

mesmos.� Para Ivone, a primeira experiência trouxe �uma alegria muito grande, a alegria de

ter reencontrado minha casa, que parecia que há anos eu procurava�. É significativo que os

dois aspectos apontados pelo convite se refiram à fruição estética (�um chá que nos fazia

73 Caupuri é o nome de uma das duas variedades principais de cipó mariri. Há o mariri tucunacá, mais presente na região próxima a Porto Velho e o mariri caupuri, que é nativo da região circunvizinha de Manaus. 74 Entrevista de Inês, Campinas, 6 de novembro de 1998. 75 Samaúma, os 20 anos do segundo Núcleo da UDV. Jornal Alto Falante. Brasília: dez 1992 -jan 1993, p. 6-9. 76 Neste capítulo, mantive os verdadeiros nomes de participantes do Núcleo Samaúma, ou dos mestres da origem, já que tais nomes foram publicados no jornal Alto Falante. Os pseudônimos continuarão sendo grafados em itálico.

Page 87: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

87

ver coisas bonitas�) e ao auto-conhecimento (�uma viagem para dentro de nós mesmos�). A

partir dessas duas motivações pode-se refletir a respeito dos participantes que estavam

chegando à UDV.

Ao que tudo indica, entre os primeiros participantes paulistas77 predominava uma

sensibilidade e uma visão de mundo contra-cultural, naqueles inícios dos anos 70 em que o

flower power ainda repercutia fortemente no Brasil. São pessoas das camadas médias

urbanas, muitas das quais haviam participado dos movimentos da �contra-cultura�, usuários

de drogas, que haviam optado por estar �na contra-mão� da sociedade, empenhados num

estilo de vida �alternativo�. São esses que levaram às sessões da União músicas como as de

Zé Geraldo ou de Raul Seixas (ARARIPE, jun 1981, p. 38-39). A busca de uma �expansão

da consciência� através de substâncias como o LSD teve um papel relevante para muitos

desses indivíduos, à procura de novas vivências estéticas e novas abordagens da própria

psique que lhes propiciassem uma ampliação de seu auto-conhecimento.

Em julho de 1972, Ivone e Nielson se mudaram para São Paulo, levando um litro de

Vegetal que o Mestre Representante do Núcleo de Manaus lhes havia entregue. Na semana

seguinte, eles já fizeram a primeira sessão em São Paulo. Ainda no mesmo ano, Marinho

Piacentini, um paulista que também trabalhava com teatro, irmão de Else Angélica, bebeu

pela primeira vez o chá em Manaus. E quando voltou para São Paulo, integrou-se ao

primeiro grupo. Logo eles passaram a beber o Vegetal num sítio em Cotia, de propriedade

do pai de Marinho, o Sr. Mário Piacentini, que iniciou na UDV no mesmo ano de 1972 e

hoje é mestre. Nas primeiras sessões, dirigidas por Nielson, ele ainda não sabia as

chamadas, então bebiam o chá segundo o horário de Manaus, procuravam se concentrar e

permaneciam em silêncio durante boa parte da sessão. Segundo Else, as pessoas se

sentavam �ao redor de uma mesa e uns poucos ocupavam algumas cadeiras laterais�.

Em setembro de 1972 foi realizada a primeira reunião administrativa, com a

presença de um dos �mestres da origem� da UDV, Hilton Pereira Pinho, que escolheu para

o núcleo o nome de Samaúma. Com as visitas de Mestre Hilton, o grupo deu os primeiros

passos na recepção da tradição da UDV: a maneira de dirigir as sessões, o primeiro preparo

77 Aqui não me refiro especificamente àqueles citados nominalmente acima, mas sim ao conjunto mais amplo dos participantes paulistas dos primeiros tempos.

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88

de Vegetal, a primeira sessão de adventícios78. No início de 1974, Nielson e Marinho

receberam a estrela de mestre79. Além de Hilton, muitos dos mestres da origem visitaram o

Samaúma. Mais de doze foram nomeados por Ivone, Else e Inês. Segundo esta, �o

Samaúma começou com o tempero de todos�. Os principais mestres que estruturaram a

União do Vegetal após o falecimento de Mestre Gabriel, inclusive sua esposa, Mestre

Pequenina, iam a São Paulo, a convite dos discípulos do Samaúma, que lhes pagavam as

passagens aéreas, para comunicar aos novatos paulistas suas recordações acerca da vida do

fundador, seus ensinos, suas chamadas. Esses foram os primeiros encontros dos indivíduos

da classe média paulista, a maioria dos quais ligados às artes, especialmente o teatro, com

os caboclos de Porto Velho e Manaus, herdeiros da obra recém-criada por José Gabriel da

Costa. Pelo relato de Inês, é possível perceber a habilidade de alguns dos mestres da origem

em conduzir aquele grupo de jovens artistas urbanos para a constituição de uma entidade

religiosa que valoriza especialmente a ordem e a obediência.

Mas os conflitos não tardaram a surgir. Assim, em novembro de 1976, o Núcleo

Samaúma foi suspenso pela Sede Geral. Segundo Else Angélica, �essa suspensão foi

motivada por vários fatores, de ordem disciplinar�. Ela continua, afirmando que �durante

esse período muita conversa foi levada de São Paulo a Porto Velho e trazida de Porto Velho

para São Paulo, de maneira deturpada, aumentada�. O que me foi possível saber é que

�algumas pessoas tiveram comportamentos inadequados�, especialmente misturar a

participação na UDV com a adesão ao movimento de Rajneesh. Hoje parece algo bem

previsível a incidência de sanções disciplinares por parte da direção da UDV em Porto

Velho sobre aqueles novos participantes paulistas que pela sua origem de classe e inserção

profissional eram tão diferentes do tipo de participante que predominava na UDV em seus

inícios no Norte do país.

Mas antes dessa suspensão, beberam o Vegetal em abril de 1976, pela primeira vez,

Inês e Daniel, atualmente no Quadro de Mestres do Núcleo Alto das Cordilheiras. Eles

participaram de uma sessão de adventícios no Samaúma. Daniel, então com 37 anos, de

78 Sessão de adventícios é uma sessão especial feita com o objetivo de receber pessoas que vão beber pela primeira vez o Vegetal. 79 O uniforme do mestre na UDV é composto de camisa com uma estrela bordada na altura do peito, assim, �receber a estrela� é ser designado para o lugar de mestre, e �perder a estrela� é ser destituído dessa função.

Page 89: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

89

família tradicional de Campinas, descendente de �barões do café�, tinha sido no passado

bastante influenciado pela contra-cultura:

�Então entrei no Mackenzie, saí de casa, aí com uns 20 anos comecei a fumar

maconha... Aí, tal, fui trabalhar em teatro, tinha ido em dois festivais nacionais de

teatro, conheci a turma do teatro, vivia no bar, toda noite ia no bar, repetia ano; daí

virei comunista e daí o Partido Comunista perdeu, pra quem era do Partido foi um

choque, no Mackenzie tinha Comando de Caça aos Comunistas. [...] Até que me

formei. Aí também começou, trabalhava, continuava meio hippie à noite, não dava

certo, ia dormir 3 h da manhã, levantava 6 h, trabalhava na Shell, casei e daí foi.

Mudei, fiquei meio teosofista, fui, passei uns tempos em São Tomé das Letras, também

aprontei por lá [...]. Nessa época eu cheguei a ser internado duas vezes no sanatório por

droga. Mas droga era maconha e ácido lisérgico, as outras eu não tomava. E cerveja

toda noite. [...] Quem me integrou a cabeça foi o Pietro Ubaldi, através do monismo.� 80

Daniel e Inês beberam o chá e logo continuaram a freqüentar as sessões do

Samaúma. No ano seguinte, 1977, Joaquim de Andrade Neto recebe da UDV licença para

beber o Vegetal com algumas pessoas de sua família em Campinas. Juntam-se a eles Daniel

e Inês. Mas eles logo têm de voltar ao Samaúma em São Paulo, porque no mesmo ano

Joaquim é suspenso e afastado da comunhão do Vegetal81. Assim, Inês e Daniel

permanecem participando do Samaúma até 1980.

Continuando a descrição da trajetória do Núcleo Samaúma, como já afirmei acima,

em novembro de 1976 a distribuição de Vegetal no núcleo foi suspensa. No ano seguinte,

um outro discípulo paulista, Hélio Rodrigues Ferreira, foi a Porto Velho e voltou com uma

quantidade de chá e a autorização para distribuí-lo àqueles que desejassem continuar na

UDV. No entanto, em 1978, �também o Hélio foi punido�, como disse a Conselheira Inês.

Aí a responsabilidade pela distribuição foi passada ao então Conselheiro Mário Piacentini,

80 Entrevista de Daniel, em Campinas, 2 de outubro de 1998. 81 Pouco depois, Joaquim de Andrade Neto começa a distribuir o Vegetal por conta própria e em 1981 funda uma dissidência da UDV, o Centro Espiritual Beneficente União do Vegetal, com sede em Campinas. Esta entidade, que conta com apenas um núcleo, em Campinas, e uma fazenda com plantação de mariri e chacrona no Mato-Grosso, tem ocupado significativo espaço na mídia e se apresenta como a União do Vegetal. No entanto, no momento de seu desligamento do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV), Andrade Neto não era mestre ou conselheiro, nem ao menos havia recebido os ensinamentos do Corpo Instrutivo. Assim, a doutrina exposta nos livros de sua entidade distingue-se sobremaneira dos ensinamentos de José Gabriel da Costa tal como o CEBUDV os transmite. O CEBUDV tem reagido com a instauração de um processo contra a entidade dirigida por Joaquim de Andrade Neto, por uso indevido da expressão �União do Vegetal�, registrada no INPI. Vide no anexo 1 a lista das dissidências do CEBUDV de que pude ter notícia.

Page 90: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

90

o proprietário do sítio de Cotia no qual eram realizadas as sessões. Na época já com uma

certa idade, Mário tinha sido pastor protestante. Assim, depois de ter sido iniciado por

pessoas ligadas ao teatro, �meio hippies�, o Núcleo Samaúma passa a ser dirigido por um

ex-pastor, o que talvez seja emblemático de um certo esforço por parte da direção da UDV

de se organizar no Sudeste segundo um perfil que se distiguisse daquele oferecido pela

contra-cultura.

Foi de Mário Piacentini a iniciativa de convidar um dos mestres da origem, o

Mestre Paixão, a se mudar para São Paulo, o que aconteceu em julho de 1978. O tempo

durante o qual Paixão ficou como Mestre Representante do Samaúma se estendeu por

alguns anos, e foi a fase de consolidação do núcleo, com a doação de um terreno de um

hectare em São Roque, em 1979, por parte de Mestre Mário e Else Angélica; a construção

do templo definitivo em 1981 e sua conclusão no ano seguinte.

O grupo de Campinas foi se organizando e em 11 de outubro de 1980 aconteceu a

primeira sessão no núcleo de Campinas, desde então denominado de Núcleo

Lupunamanta82. Daniel recebeu em 1981 a estrela de mestre, mas veio um outro mestre da

UDV morar na cidade, um militar, e foi este o designado como Mestre Representante.

Porém, depois de um ano e meio, esse militar se mudou de Campinas e Daniel assumiu o

cargo de Mestre Representante, no qual permaneceu por cinco anos. Em seguida, M. Ney

recebeu a Representação do Núcleo Lupunamanta. Ele estava no lugar de Mestre

Representante quando começaram a planejar a abertura de uma nova Distribuição.

Letícia, do CI do Núcleo Alto das Cordilheiras, doutoranda em Educação na

Unicamp, na faixa dos 40 anos de idade, passou-me um relato com alguns dados históricos

do núcleo, escrito por ela, que acompanhou o processo de formação do Alto das

Cordilheiras desde os seus inícios:

�Lembro-me que em outubro de 1991, em uma Sessão Instrutiva no Núcleo

Lupunamanta, foi comunicada à Irmandade a necessidade de abrir uma Distribuição,

dado o aumento do número de sócios do núcleo. Era Representante do Lupunamanta,

naquele período, o M. Ney. O mestre designado para ser responsável pela Distribuição

foi o M. Paulo, e para auxiliá-lo nessa empreitada, o M. Otávio aceitou a incumbência

82 Lupunamanta é o nome dado pela UDV à Estrela Matutina, e há uma Chamada de Lupanamanta.

Page 91: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

91

de acompanhá-lo. Assim, a 27 de março de 1992, a Distribuição foi iniciada com 33

sócios, originários do Núcleo Lupunamanta. As atividades foram iniciadas,

provisoriamente, na sede antiga do Núcleo Lupunamanta, onde hoje é a Unidade

Beneficente Estrela da Manhã.�83

Quando iniciou o processo de segmentação para a formação de uma nova unidade, o

Núcleo Lupunamanta já dispunha de confortáveis instalações: um extenso terreno e um

amplo templo. A maioria dos 33 sócios que se apresentaram para iniciar a Distribuição já

bebiam o Vegetal há muitos anos e tinham trabalhado ativamente na construção do

Lupunamanta. Desses 33 que começaram a Distribuição, apenas 3 não estão hoje

associados ao Núcleo Alto das Cordilheiras. Naquele ano de 1992, eles permaneceram um

tempo realizando as sessões no antigo Salão do Vegetal do Núcleo Lupunamanta, que se

localiza em frente ao templo novo. Foi nesse local que eu participei pela primeira vez de

uma sessão do CEBUDV, em julho de 1992, bem nos inícios da Distribuição84. Em maio do

mesmo ano havia sido adquirido um terreno na zona rural do Distrito de Joaquim Egídio,

Campinas. Imediatamente é começado o plantio de mariri e se constrói o salão, que é

inaugurado no dia 5 de junho de 1993.

Letícia continua sua narrativa:

�A 4 de dezembro de 1993, a Distribuição é elevada a Pré-Núcleo, tendo sido

escolhido o nome de �Alto das Cordilheiras�. A seguir foi construída a Casa de Preparo

provisória, a Casa de Ferramentas e Almoxarifado, e a Casa do Caseiro. O plantio foi

melhorado e construído um canteiro para Chacrona, com capacidade para 220 pés.

Nesse momento para Representante do Pré-Núcleo foi designado o M. Paulo, pelo

Mestre Central da 9ª Região. A 1º de outubro de 1994, assume a Representação do Pré-

Núcleo o M. Otávio. Havia então 55 sócios, sendo 4 mestres. A 13 de setembro de

1996, o Pré-Núcleo Alto das Cordilheiras é elevado a Núcleo Alto das Cordilheiras. A

seguir, é designado, para Representante do Núcleo, o M. Spencer de Morais Pupo

Nogueira, que assume a Representação em 6 de janeiro de 1997. Eram, naquele

momento, 57 sócios.�

Com a conclusão dessa narrativa, aproximamo-nos do tempo do trabalho de campo

e do tempo presente. Desde as histórias a respeito de Mestre Gabriel e a criação da União

83 Depoimento escrito de Letícia: Alguns Dados Históricos do Núcleo Alto das Cordilheiras. 84 A Distribuição não tinha um nome próprio. Segundo o modo de proceder do CEBUDV, somente quando chega a Pré-Núcleo a unidade recebe um nome, que permanece quando é elevada a Núcleo.

Page 92: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

92

do Vegetal no seringal, até aqui, passando pelas recordações dos �mestres da origem�

acerca dos árduos inícios em Porto Velho, acompanhamos o movimento da Estrela do

Norte, iluminando até o sul. Busquemos agora observar como a claridade dessa Estrela é

experienciada pelos �discípulos do sul�.

Page 93: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

93

3. A ESTRELA ILUMINANDO

3.1. ALGUMAS HISTÓRIAS DE VIDA

�Um homem na campina olhava o céu. As estrelas

pareciam aumentadas, de tamanho brilho.

Estrela, ó estrela, estrelas,

Ele suplicou como se injuriasse. [...]

Ó homem, ó filho meu,

convoca-me a voz do amor,

até que eu responda

ó Deus, ó Pai.�

Adélia Prado, Genesíaco, In: O Pelicano

No trabalho de campo, fiz cinqüenta entrevistas, coletando as histórias de vida dos

participantes do Núcleo Alto das Cordilheiras. Aqui escolhi trechos de algumas narrativas,

para que pudéssemos entrar em contato com o discurso desses sujeitos, e assim, observar,

entre outros aspectos, como eles constróem a trajetória de suas vidas sob o ângulo do

encontro com a União do Vegetal, como eles expressam as motivações iniciais e atuais para

a sua participação e como esta tem repercutido ou não em seu quotidiano. Deste modo

poder-se-á chegar a uma primeira aproximação da experiência simbólica dos discípulos da

UDV.

Inicio com a trajetória de Rubem, um dos membros do núcleo que tem menos tempo

de participação na UDV, somente dois anos e meio, na ocasião da entrevista. Assim, em

comparação à media de tempo na UDV das pessoas do núcleo, Rubem está ainda

�entrando� por aquela que ele chamou de �porta que se abre para os mistérios�.

Rubem: entrando por uma porta que se abre para os mistérios

Rubem tem 43 anos de idade. Sua família é de origem judaica. Ele fez sua

graduação em ciências sociais e em história. Fez o mestrado e o doutorado na área de

educação. Seu pai era imigrante judeu, proveniente da Europa Oriental, �apesar de

agnóstico, tinha conhecimento muito profundo de religião judaica, das questões éticas, do

Page 94: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

94

Talmud, da Mishná�85. Assim, Rubem foi educado para uma atitude de procura do

conhecimento no estudo, de �culto ao saber�. No que toca à religião, ele narra:

�tive uma formação escolar judaica, mas eu nunca me sentia muito à vontade com a

religiosidade, pois em casa, como não havia um culto religioso, em termos de credo,

era uma situação um pouco paradoxal. Ao mesmo tempo que havia um valor

dado pelo conhecimento da religião, não havia essa fé. [...] Achava interessante a

religião, fazia um esforço, mas não conseguia entrar naquele mistério.�

Essa inacessibilidade da vivência religiosa foi, segundo ele, compensada por um

itinerário intelectual, primeiramente com a graduação em ciências sociais e em história,

caminho pelo qual ele buscava uma resposta às perguntas filosóficas a respeito de �quem

somos, onde estamos, pra que viemos, pra onde vamos�. Ele também posicionou-se em

oposição à ditadura, numa militância política de matriz marxista, gravitando ao redor de

alguns grupos de esquerda, mas não chegando a integrar nenhum deles, já que, como ele

diz, �tinha uma atitude de não me enquadrar�. Esse �não-enquadramento� já se apresentava

desde os tempos de colégio:

�Vem de minha formação juvenil essa coisa mais alternativa, continuava na faculdade

sendo porra-louca e bom aluno. Segundo o padrão de loucura da época, com viradas

de madrugadas, comportamento que à época a gente julgava que era de resistência

política, naquele padrão de loucura que à época era tolerável por conta das condições

sociais e políticas do país, e que a gente aproveitava mesmo: era muita droga, era sexo,

era esbórnia, era conspiração, era movimento estudantil... mas uma coisa que eu

preservava era ser bom aluno, coisa que nem todos faziam. Porque, no fundo, talvez eu

sempre fui muito pequeno burguês, a minha ética sempre foi muito pequeno burguesa.

Eu me identificava mais com o estudo mesmo.�

Em meio a essas vivências no âmbito da contra-cultura, Rubem teve algumas

experiências com drogas que tocavam a franja do sagrado:

�Tive outras experiências não diria místicas, mas quase religiosas, mas muito

ligadas ao uso de drogas, mesmo. Vi umas coisas meio animistas, meio

xamânicas mesmo. No Bosque dos Jequitibás, tem uma figueira muito bonita,

enorme, frondosa, que ela parecia às vezes para mim que ela tinha uma vida,

uma coisa meio de existência espiritual mesmo. Eu tinha uma sensibilidade 85 Entrevista de Rubem, em Campinas, 28 de setembro de 1998. As citações seguintes, neste item, são da mesma entrevista.

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95

talvez induzida a isso, cogumelos também... Coisas que dão uma certa

sensibilidade pra se entrar em contato com outras dimensões que a gente talvez

não saiba como utilizar pra si, ainda.�

Posteriormente, no que toca à vertente do pensamento, Rubem dirigiu-se do

marxismo para o weberianismo:

�Durante uma época li muito Weber e hoje ainda, metodologicamente, em termos de

organização do pensamento, eu sou muito próximo a Weber. Então me aproximei da

idéia das várias éticas relacionadas com a cultura, passei a ser mais culturalista. Aí fui

fazer pós-graduação em educação, como um meio de mudar o mundo, de transformar o

mundo de acordo com aquela ambição que eu tinha de trazer um certo rigor,

aperfeiçoamento da humanidade, de acordo com aquela visão que vinha talvez de

infância mesmo, visão literária, cultural, que se inspirava muito em certos modelos de

rigor ético. [...] O que me aproximou da área de educação foi bem um certo ideal de

mudar o mundo através do sistema educacional como uma porta pras alterações do

mundo.�

É interessante observar como esses tópicos, aparentemente díspares, são costurados

numa narrativa a um pesquisador que estuda a União do Vegetal. E esses fios, da busca de

uma experiência religiosa sentida como inacessível, de uma vivência alternativa, de

percepções anímico-xamânicas e de um rigor ético comprometido com um ideal de

transformação do mundo, são certamente retrançados na nova fase da vida de Rubem, como

discípulo da União do Vegetal. Perguntado a respeito do que é a burracheira, ele responde

sinteticamente que �é uma porta que se abre pros mistérios�. O tema da porta, tantas vezes

presente na simbologia da UDV, nas suas chamadas, assim como presente no discurso de

Rubem, quando ele acima se referiu à educação como �uma porta pras alterações do

mundo�, reaparece aqui, na medida em que a experiência com a Hoasca é compreendida

como porta para alterações no seu mundo interior, possibilitando �um contato com o

sagrado que até então eu não tinha tido�.

A UDV surge na vida de Rubem em um momento em que ele havia vivido situações

que o abalaram: seu primeiro filho não sobreviveu, três anos depois seu pai faleceu de

derrame fulminante, no final de uma conferência que proferiu no Clube Hebraica. Depois

nasceu o seu segundo filho e ele se perguntava sobre como falar de Deus ao menino.

Page 96: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

96

Segundo Rubem, desde o nascimento desse filho �desperto para a aceitação da existência de

algo além do mundo lógico cartesiano�. Após a defesa de sua tese de doutorado, Rubem

decide acompanhar a esposa, que pouco tempo antes começara a freqüentar a UDV. Assim,

tem a sua primeira burracheira em 1996, da qual ele conta:

�A primeira burracheira a gente nunca esquece... Foi algo inesperado, nunca tinha tido

essa sensação de harmonização, de um caminho de harmonia, perceber que é possível

acertar as contas consigo, com as coisas do passado. Tanto que eu perguntei na sessão

o que é o passado, se o passado continua existindo... Vinha de um raciocínio a respeito

do lugar do passado e do futuro. A luz de uma estrela, depois que ela é emitida, se

torna atemporal, porque ela vai se expandir por todo o espaço que existe, mesmo

depois que a estrela que a emitiu tenha se extinguido. Então, o que a gente observa,

quando olha o céu, seria um passado de algo que não existe mais, mas que vai existir

eternamente ao mesmo tempo - um aparente paradoxo. [...] E também eu consegui a

partir dessa primeira sessão, foi um momento assim bem forte de chegar a uma

conciliação com o meu pai, passar a tolerar, a suportar melhor a ausência dele, que até

então era algo que eu ainda não havia trabalhado... assim como do nosso filho, ainda

não havia me conformado, estava pendente por anos, fazia quase cinco anos que meu

pai havia morrido, e eu ainda estava remoendo. Foi muito bom porque pela primeira

vez eu consegui entrar em contato com ele e fazer uns acertos que tava precisando. Nas

quatro primeiras sessões eu consegui ficar numa plena tranqüilidade, plena luz com ele.

Mas, era bem ele mesmo, da forma como ele era em vida, presença material. Foi uma

coisa bem boa, logo as primeiras sessões nesse sentido.�

Rubem passa a freqüentar a UDV, sua esposa associa-se primeiro e, seis meses após

aquela primeira sessão, ele se associa. Pouco mais de um ano depois ele é convocado para o

Corpo Instrutivo. Na semana da entrevista ele havia tido a sua primeira Sessão Instrutiva.

Soraia: a busca e o encontro

Se Rubem ainda está nos inícios de sua vivência na UDV, Soraia, de 45 anos de

idade, já tem 17 anos de participação. Ela nasceu no interior de Minas Gerais, em uma

família católica. Desde a infância, tinha a sua atenção despertada pela experiência da morte,

como ela conta:

�Desde menina me chamou muito a atenção, muito a atenção mesmo, a morte.

Por que as pessoas morrem, tem doença? Eu me lembro que aos cinco anos de idade já

Page 97: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

97

pensava em ser médica pra descobrir o que que era a morte. Eu tive experiências fortes com

dois anos de idade, de morte de bichinho, que eu me lembrei com muito detalhe já, e com

criancinha que morreu que era vizinha. Então tudo aquilo me marcou muito. Então essa

questão da morte era algo desde a infância muito forte. Mas aí nessa época eu dissociei da

questão da religiosidade e aí parece que nunca mais pensei em Deus na minha adolescência.

Era uma coisa que foi abolida. Eu fui distanciada da Igreja, parei de participar dos rituais e

comecei a entrar numa linha mais filosófica, de querer conhecer o que que era o homem, o

que era a morte, aí lia sobre filósofos, lia sobre pessoas que investigavam estados de

consciência.�86

Houve então a aproximação de um enfoque mais científico, nessa busca de

compreensão da mente humana, que desembocou na sua decisão de estudar medicina e

especializar-se em neurologia:

�Aí comecei um outro tipo de busca de querer saber o que que era a mente, o

que que era o cérebro, como é que eram os comportamentos. É que eu sinto que no fundo

isso era uma linha da religiosidade, era uma busca, só que ficou racionalizada, ficou

totalmente racionalizada. Aí nessa busca racional de compreensão do que que é a vida, do

que que é a morte, eu estudei medicina e dentro da medicina também a necessidade de

querer entender mais, entender mais, e não achando resposta e na minha especialidade eu

fui buscar a neurologia pra ver se eu conseguia saber finalmente o que que é o cérebro, a

mente, o ser. E foi uma decepção enorme, porque eu percebia que as pessoas não sabiam

nem definir o que que era a consciência. Tinham estados de consciência e os graus de

inconsciência. Então, ou as pessoas estavam vigil ou estavam em coma torporoso, grau 1,

grau 2, grau 3 de profundidade. Mas não tinha nada que mostrasse que as pessoas estavam

mais acordadas ou menos acordadas, acordadas. Isso foi uma coisa que me chamou muito a

atenção desde o princípio. Tinha pessoas que pra mim era óbvio que elas não estavam

acordadas, embora trabalhassem, andassem. Aí então eu comecei a me interessar a estudar

uma área mais psicológica, pra ver se eu tinha mais respostas nessa linha, de querer saber o

que era o comportamento.�

86 Entrevista de Soraia, em São Paulo, 22 de outubro de 1998. As citações seguintes, neste item, são da mesma entrevista.

Page 98: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

98

É significativo que Soraia releia essa sua �busca racional de compreensão do que

que é a vida� ou �busca de entender a máquina homem� como uma busca religiosa. A

experiência posterior com o chá Hoasca propiciou-lhe uma reinterpretação de toda a sua

trajetória, como busca que chegou a um encontro. Ela narra esse encontro, que se deu na

primeira vez que ela bebeu o Vegetal, em 1982, quando uma amiga sua, médica da

Unicamp, lhe fala de �um chá que vinha da Amazônia� que lhe tinha proporcionado uma

experiência que ela compreendeu como visão de uma vivência acontecida em outra

encarnação. Soraia se interessou e foi conhecer o chá:

�Aí eu resolvi ir e a primeira vez que eu bebi o chá foi como se tivesse

resgatado o contato com a espiritualidade, como se eu tivesse sentido outra vez que eu sou

espírito. E foi uma coisa, uma experiência muito forte, muito interessante. Porque eu me

senti completamente conectada com o céu, com a terra, com os seres do planeta. Eu senti o

meu corpo como sendo a terra, sabe? Uma conexão do meu corpo com a terra, com o meu

ser... A primeira experiência eu posso definir como uma experiência de integração com o

todo, de unificação; a minha percepção é que eu era o todo, o todo era contido em mim, que

o meu universo interno era algo sem limite, uma sensação de ter Deus em mim e eu ser

Deus, mas não era uma sensação de um eu restrito, era aquele eu... que eu acho que depois

pelas descrições que eu vi, uma sensação de êxtase místico.�

E se desde a infância ela tinha um interesse pela natureza humana, nessa

primeira vivência lhe acontece algo inesperado: uma percepção da natureza a partir do reino

vegetal, que lhe é também ocasião do que ela chama de �resgate da religiosidade�:

�E que foi interessante também nessa primeira sessão, é que ao mesmo tempo

eu tive essa experiência de êxtase místico e depois na seqüência eu tive uma experiência

muito forte com a floresta amazônica, eu tive uma experiência de estar no meio da floresta

e de repente senti que eu era uma árvore. A percepção minha de que eu era árvore! Foi algo

que chamou muito minha atenção também. Até um animal eu acho que era uma coisa que

cabia dentro do meu conhecimento, mas algo do reino vegetal! Era uma percepção nítida,

era como se fosse perfeitamente cabível dentro da minha sensibilidade saber o que era uma

árvore, o que que sentia, como era, como era o fluir, como era a raiz, a folha, o vento, a

semente... um negócio assim muito difícil de descrever. Mas uma vivência de percepção

mesmo, uma percepção muito forte. [...] E imediatamente parece que eu resgatei a

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99

religiosidade nesse primeiro copo de vegetal, foi como se de repente eu tivesse resgatado a

lembrança da religiosidade.�

Após essa experiência tão intensa, ela começou a ir em todas as sessões possíveis:

�Eu fui pro norte do país atrás da origem, eu fui pra outros núcleos, aonde

tivesse a oportunidade de beber o chá. E nessa época tinha aqui em São Paulo um mestre,

que era o Mestre Paixão, que era um mestre lá da floresta mesmo, então tinha uma

freqüência maior de rituais também. Então eu bebia em Campinas, era filiada em

Campinas, mas ia nas sessões aqui em São Paulo, nos preparos, porque eu queria saber o

que que era aquilo que eu tinha encontrado.�

Ao longo de quatro anos ela teve burracheiras fortíssimas, com muitas

mirações, nas quais freqüentemente se via em outros lugares, participando de rituais com o

uso do Vegetal:

�Era como se eu tivesse recuperando um conhecimento de um poder [...]. Na

medida que lia descobria coisas que eu já sabia. Reencarnação, não tinha dúvida alguma.

Muita coisa... [...]Nos meus primeiros quatro anos de vegetal isso foi muito forte. Aí passei

a ler tudo o que via pela frente a respeito de alquimia, ocultismo.�

Esse primeiro tempo, de predomínio das percepções visuais interpretadas

como recordações de outras vidas, foi sucedido por um segundo momento, que se estendeu

por seis anos, de exame profundo de si mesma:

�Aí começou uma outra fase de viagem profunda dentro de mim mesma. Era

como se eu vestisse uma lente de aumento para ver detalhes. Era beber o Vegetal e me ver!

Durou uns seis anos. Eu fazia psicanálise e o psicanalista, bem ortodoxo, queria saber o que

eu bebia. Acelerou muito meu processo de auto-conhecimento. Essa época foi muito fértil.�

Soraia também passou a ter uma compreensão nova a respeito da doença e

da cura. Chegou a estar em sessões nas quais teve visão da cura de algumas pessoas

acontecendo naquele momento. Outra vivência foi com o seu pai:

�Meu pai estava num pré-coma hepático, com muita dor. Aí comecei a fazer a

chamada da Serenita. O efeito das chamadas era algo tão evidente que minha mãe pedia que

eu fizesse.�

Page 100: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

100

Soraia destaca a intensidade dessas experiências nos rituais da UDV e a relação

delas com as demais religiões:

�É uma vivência muito sensorial. Eu tenho a experiência, não me contam. Não

é a informação, é uma vivência. É precioso. É incrível a conexão com todas as religiões,

com o que tem de verdade em todas elas. sou super interessada na percepção que nas

religiões se tem de Deus. A experiência dos rituais xamânicos, dos budistas , dos católicos

que tem uma força enorme, mas ficaram mecanizados. A experiência da burracheira me dá

uma sensibilidade para os rituais. Sinto como é importante o ritual, pra criar uma

predisposição para se ter um contato.�

Na leitura que ela faz de sua trajetória, Soraia identifica uma terceira fase, atual, que

ela caracteriza como centramento �no aqui e no agora�:

�Depois disso foi uma experiência de presença, de me centrar, no aqui e no

agora, algo que é mais possível atingir numa meditação sem o uso do chá. Diminuiu o

conteúdo visual e ficou o sentimento de presença. Enquanto estou crescendo a burracheira é

fértil, quando estou estagnada a burracheira é vazia. [...]

Segundo Soraia, todas essas vivências não ficaram limitadas em um setor de

suas ações, mas transformaram sua vida, inclusive no âmbito profissional:

�Eu tinha uma frase: se eu acreditasse no que vocês dizem, minha vida ia ser

centrada nisso. E é como se desse uma guinada na minha vida. Mudou o direcionametno

profissional, não suportava mais uma visão delimitada, meu trabalho mudou

completamente, se tornou mais holístico. [...] A espiritualidade passou a ser o centro da

minha vida. Todo o meu trabalho gira em torno disso. O que flui de uma geração pra outra:

quanto mais me adentro mais reforça que a espiritualidade é o centro. Tem pacientes que

me dizem: �Ah, eu estou buscando a luz!� A vida existe pra se conhecer o que é o espírito.

Conhecer o que existe. Quanto mais eu bebo o vegetal, mais eu tenho interesse em conhecer

tudo o que está relacionado com a espiritualidade.�

Na etapa atual de sua vida, Soraia revê o entusiasmo inicial, com as

dificuldades enfrentadas, e fala da serenidade do presente:

�Eu encontrei dificuldades no sentido da aceitação das pessoas. Pra minha

família era um espanto: ao mesmo tempo em que eles sabiam do meu conhecimento pra não

Page 101: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

101

tar ali de bobeira, era difícil. Foi criado o Centro de Estudos Médicos e eu era a vice-

diretora. A pesquisa concomitante me levava a não pensar que eu estava equivocada.

Pesquisei no mundo inteiro quem já tinha estudado, tudo que podia estar relacionado com a

Hoasca eu pesquisei. No começo, houve uma postura fanática. De querer experimentar mais

e mais. A dificuldade maior foi continuar dentro dos esquemas que eu tinha: o tipo de

pessoas com quem eu convivia se alterou rapidamente. Na medida em que eu pude

conhecer a UDV, eu priorizei isso acima de qualquer outra coisa. E acho que foi

importante. Não acho que esse mergulho era fundamental. Hoje, estou em outro momento,

eu não preciso ir aonde tem, eu levo aonde eu vou. Hoje entrar em contato com vários

segmentos da sociedade, eu levo muito.�

Spencer: arquitetura à luz da Hoasca e rosas para a Virgem Maria

Spencer de Morais Pupo Nogueira87, atual Mestre Representante do Núcleo

Alto das Cordilheiras, tem 61 anos de idade e nasceu em Campinas, numa família católica.

Tendo tido na juventude uma trajetória que pode ser caracterizada como de participação na

contra-cultura e tendo cursado a faculdade de arquitetura, Spencer conheceu a UDV em

1975. Alguns anos depois, chegou ao Quadro de Mestres. No início dos anos 90, Spencer

discordou publicamente do então Mestre Geral Representante e foi afastado da comunhão

do Vegetal. Nessa época, ele parou de freqüentar a União do Vegetal �um ano, dois anos,

mais ou menos�88. Ele continua narrando suas atividades na seqüência:

�Aí teve um amigo meu, falou pra eu ir lá pra Porto Velho, fazer umas

conferências por causa da tese que eu desenvolvia de arquitetura, eu fazia umas

conferências lá nos órgãos públicos e eles me pagavam as passagens pra eu ir lá.�

Quanto à sua participação na União do Vegetal, Spencer conta:

�Daí continuei aqui meio vacilado, não ia, chateava as pessoas na sessão, nêgo

�bonzinho�, eu dizia: �não é nada disso!� Aproveitava meus conhecimentos e não deixava

passar nada que fosse piegas, nada que fosse de �bonzinho�. E assim foi, as pessoas tiveram

paciência comigo. Ou paciência ou não sabiam o que fazer também.�

87 Aqui não recorro à utilização de pseudônimo para designar Spencer, com a autorização do mesmo, para poder citar sua tese doutoral e indicar a autoria de seus desenhos, apresentados nesta dissertação. 88 Entrevista de Spencer de Morais Pupo Nogueira, em Campinas, 3 de outubro de 1998. As citações seguintes, neste item, são da mesma entrevista, salvo quando indicado o contrário.

Page 102: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

102

No tempo em que estava começando a se reaproximar da UDV, Spencer viveu

uma experiência forte que desencadeou nele um �processo de conversão�:

�Daí eu fui pra Europa, num congresso de estados diferenciados de consciência,

por causa de uns desenhos que eu fazia. Um congresso em Lérida, na Espanha. [...] Teve

um dia que eu tomei pouco vinho - eu sou forte pra bebida, eu era forte pra bebida - no

tempo lá em que eu voltei pra União do Vegetal continuava bebendo umas cervejas. Fui

tomar um vinho e me deu uma coisa estranha, lá em Lérida. [...] E a peia comendo feia.

Como se eu tivesse de burracheira. Só tinha bebido vinho. Até que eu fiz uma chamada

�bonzinho�... nem me lembro mais. Eu vou fazer tudo direitinho... aí melhorou. Mas nisso

aí eu vi o seguinte: teve uma hora que me mostraram, como se apontassem um dedo. O seu

trabalho é aqui - e mostrou este lugar. Aqui, neste núcleo. Aí que é o lugar do poder da tua

ação. Aí eu vim falei com o Paulo e tal, tô querendo voltar, num sei quê. Isso foi em 93.

Daí eu vim pra cá e comecei a limpar porta, trabalhar manualmente. Aí depois de um tempo

já vim pro Corpo Instrutivo, depois de um tempo pro Corpo do Conselho, depois vim pro

Quadro de Mestre, depois fui escolhido pra ser Mestre Representante e aqui estou.�

A partir de suas viagens à Amazônia, Spencer delineou o seu projeto de pesquisa

para o doutorado em arquitetura e urbanismo na Universidade de São Paulo:

�Trata-se do protótipo de um Modelo de Núcleo Urbano para Áreas de

Extrativismo na Amazônia [...]. Esperamos que este protótipo de Núcleo Urbano

Extrativista seja implantado no seringal �Novo Encanto�, área de 8.025 ha no Estado do

Acre, doado à União do Vegetal pela organização Norte Americana �Medicina da Terra�

que tem na Ecologia seu escopo principal�. (PUPO NOGUEIRA, 1994, p. viii - ix)

Na sua tese doutoral, Spencer expôs a sua experiência com a Hoasca como caminho

de acesso ao �processo de conhecimento pelo sentir�, que lhe possibilitou idealizar seu

�Núcleo Urbano Florestal�. Em sua obra, o arquiteto dedica um tópico a �O tempo de

borracheira�,

�com o intuito de transmitir a transformação no siginificado da substância dos

objetos materiais, escolhemos duas experiências relativas à Madeira, por se tratar do

material com que será realizada, praticamente, a totalidade do núcleo urbano projetado, e

também, por ser antigo conhecido dos arquitetos.� (Id., p. 54)

Page 103: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

103

Spencer narra primeiramente suas experiências no Lago do Arara, Alto Rio

Negro, por ocasião de um Preparo do chá com os freqüentadores do Núcleo Caupuri de

Manaus:

�O dia amanhecera como o anterior, brisa leve, reflexo perfeito das águas

negro-espelho. Havíamos bebido o Vegetal de manhã (durante o preparo bebe-se diversas

vezes) e tido conversas agradáveis e proveitosas com os manauaras. À tardinha, luminosa

mas sem o Sol direto, estávamos apreciando o reflexo perfeito da floresta da margem

oposta nas águas, quando Pierluigi, um arquiteto italiano, chegou em minúscula canoa

indígena [...]. Por ele ter conseguido, nos atrevemos a tentar também depois de instruído,

meio inseguro, deslizamos no Lago do Arara. [...] Sentimo-nos tão bem, que deitamos no

fundo do barco, a claridade do céu não feria os olhos, e tivemos a maior sensação de

conforto e segurança que sentimos em nosso mais de meio século de vida.

�Pouco depois, ainda na embarcação, refletimos se aquela sensação sentida

enquanto estávamos envoltos pelo bojo da canoa - canoa que segundo a tradição indígena é

feita com a madeira de determinada árvore, árvore que antes de ser derrubada foi

consultada se o poderia ser para que com ela se fizesse um barco, barco que abrigaria uma

família, família agradecida a ela por ter cedido seu corpo como barco para a labuta diária -

poderia ter sido vivida em outro barco anônimo de alumínio �leve e forte�? �

�Continuamos a refletir, inquirindo se aquele costume contido no ritual da

árvore não poderia ser vestígio de uma civilização esquecida, sensível a outra categoria de

conforto emanado diretamente da substância?� (Id., 55-56)

Em seguida, Spencer descreve uma segunda experiência, esta no templo do

Núcleo Lupunamanta, em Campinas, que ele havia projetado e construído:

�Em uma sessão de Vegetal, durante o alto tempo de borracheira,

confortavelmente instalado em uma poltrona, rodeado de pessoas conhecidas, estávamos

olhando vagamente o espaço formado pelas vigas e caibros da alta cobertura, parecia mais

uma ossatura, vista por dentro, de um enorme animal (percepção que nos auxiliou a

conceber a Grande Cobertura do núcleo urbano que dissemos lembrar a caixa toráxica da

mítica Anaconda, em perspectiva interior).�

�Repentinamente, como uma vertigem, destacou-se em nossa percepção o

tensor de uma das grandes tesouras que sustentam esta cobertura. Ele havia se desrevestido,

ou melhor (?), nós o havíamos desrevestido de sua conotação anônima de madeira, e se

transmutado, na lembrança da grande árvore que fora, singular e presente. Árvore, como

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104

que, exigindo um espaço na consciência humana, em que fosse reconhecida sua virtude de

estar aí, firme e quieta cumprindo sua missão de sustentar o abrigo do homem. A visão se

enriquecera com o pulsar em nós, de um agradecimento desconhecido, por toda aquela vida

materializada em madeira. Um estalo na lareira chamou nossa atenção para uma lenha em

chamas, que parecia dizer: �também estou aqui, há muitos milênios!� Lembramos de nossa

pós-graduação em �Madeiras e suas características� em que o Prof. João dissera: �a madeira

é puro raio de sol, com um pouco da poeira da terra�. Nesse instante, por estranha

sincronicidade muito comum nas sessões do Vegetal, um dos presentes começou a �fazer

uma chamada� (música evocativa de forças da natureza, cantada durante uma sessão por um

discípulo que �sentiu� que o deveria fazer), era a �Chamada da Samaúma� [...], a maior

árvore da Floresta Amazônica.� (Id., p. 56-57).

Assim, Spencer apresenta a primeira tese acadêmica no Brasil com uma reflexão

acerca da União do Vegetal. Além de arquiteto e professor, Spencer é artista plástico. Os

longos anos de seu �processo de conhecimento pelo sentir�, mediado pelo chá Hoasca na

UDV, refletem-se em seus desenhos e pinturas, dos quais exponho aqui algumas

reproduções. Alguma idéia acerca da conexão entre sua experiência estética e sua vivência

espiritual-religiosa pode ser proporcionada pela sua narrativa de um exercício imaginativo

orante, que ele tem feito diariamente, sem o uso do Vegetal:

�De uns meses pra cá meu relacionamento com Deus vem melhorando muito

graças à Virgem Maria. Por ser homem, a minha parte afetiva de relacionamento com o

Superior, sendo com mulher facilitou, mas agora tá bom com Deus também. Faço umas

alquimias... num livro, eu li que a Virgem Maria disse que tem uma casa branca dentro de

cada um de nós. Então aquela imagem da Igreja Católica, muito no altar - ah eu pequeno! -

diminuiu aquilo por uma palavra que ela fala: �Vem, entra, vem aqui nessa casa, acaba de

fazer o projeto do jeito que você achar melhor, eu tô aqui dentro, te quero bem, pode me

chamar de mãe se você quiser�. E daí foi uma palavra que pra mim foi mágica: �Porque

aqui dentro a camaradagem de mãe e filho é natural�. Vai ter oito meses, mais ou menos,

que faço uma alquimia imaginativa nessa casa, nesse jardim que eu tô inventando: uma rosa

por dia, todos os dias, enquanto toca três ave-marias, na primeira invento a rosa, na segunda

busco a Virgem Maria na casa dela e na terceira mostro a rosa pra ela acabar de fazer a

rosa, tudo isso na imaginação. �

�E daí resolvi fazer a Chamada do Amor Vivíssimo que poucos mestres têm

coragem de fazer. Aí fiz um preparo aqui, que todo mundo reconhece que foi um Vegetal

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ponto grau. Senti no momento do preparo com a Virgem Maria dum lado e com a Senhora

Santana do outro. De pé uma do lado e outra do outro, eu de pé também. [...] Um preparo

interessante, mudou o núcleo aí. E a parte mais forte da chamada é aquela: �alcançai a dor

profunda de meus pecados�. Essa que é a parte. Porque você com essa frase tem que se

abrir, não tem coisa escondida. Nessas alquimias mentais aí... Jesus fala: �a pessoa pra

entrar no Reino do Céu tem que ser como um menino�. Então nas minhas alquimias o que é

que eu fiz? Eu fiquei como um menino.�

Desse modo, sua narrativa aponta para uma significativa transformação ao

longo de sua trajetória na UDV, emblematizada por essa mudança, de crítico que �chateava

as pessoas na sessão� e �não deixava passar nada que fosse piegas� para um afetuoso

devoto da Virgem Maria, que, com seus conhecimentos de arquitetura, lhe constrói uma

casa em sua imaginação e, com seus dons artísticos, cria para ela uma nova rosa a cada dia.

Page 106: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

106

3.2. ALCANÇAR O ALTO DAS CORDILHEIRAS

�De dentro do resumo, e do mundo em maior,

aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu:

fôlego de fôlego de fôlego - da mais-força, de maior-coragem.�

João Guimarães Rosa, Grande Sertão - Veredas

No intuito de descrever a vivência simbólica dos participantes da União do Vegetal

do Núcleo Alto das Cordilheiras, me concentrarei em algumas das categorias presentes no

discurso desses membros da UDV: burracheira, Mestre e discípulo, conhecimento, sentir,

consciência, memória, ordem, peia, mirações, evolução espiritual. Essas categorias nativas

serão abordadas sob um enfoque interpretativo, na busca de captar a lógica da experiência

simbólica da União do Vegetal.

O título deste tópico, além de evocar o nome do núcleo no qual realizei meu

trabalho de campo, faz uma referência ao uso pelos participantes da UDV da expressão

�Alto das Cordilheiras� para designar o lugar mais elevado no �Astral�, o lugar da

divindade, para onde os discípulos esforçam-se em chegar. Como na narrativa fundante da

União do Vegetal, a História da Hoasca, há uma referência ao Império Inca, faz sentido que

o �Alto das Cordilheiras� tenha sido o símbolo escolhido para falar do mais alto lugar

espiritual. E assim como para a escalada de uma alta montanha, faz-se necessário um

grande empenho, firmeza, fôlego, para alcançar as alturas do �Astral� divino. Os termos

apresentados a seguir podem ser considerados como balizas que orientam o percurso do

discípulo em direção ao topo desse monte.

Burracheira

O estado alterado de consciência desencadeado pela ingestão da Hoasca é chamado

de burracheira. Na Colômbia, as populações amazônicas designam de borrachero ou

borrachera os arbustos do gênero Brugmansia, que costumam mesclar com a

ayahuasca89. Isto atesta que há na área amazônica de língua espanhola um uso do termo

borrachera não apenas no acepção comum da palavra em castelhano, de embriaguez 89 Cf. LUNA, 1996, p. 25. SCHULTES, RAFFAUF, 1990, p. 419-422. SCHULTES, HOFMANN, 1992, p. 27.

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107

motivada por bebida alcoólica, mas também num sentido específico de estado alterado

causado por planta psicoativa. No entanto, o significado da palavra burracheira para os

discípulos da UDV, segundo palavras do Mestre Gabriel, é �força estranha�. O efeito do

chá Hoasca é algo de difícil caracterização, dada a pluralidade de possíveis vivências

suscitadas por seu uso. De modo geral, pode-se falar de uma alteração intensa das

sensações, sentimentos e percepções durante o período de efeito da Hoasca, que costuma

durar aproximadamente quatro horas, que é o tempo de duração de uma sessão da UDV.

São freqüentes as experiências de percepções visuais denominadas mirações.

Roberto, jovem na faixa dos 20 anos, estudante universitário, respondeu do seguinte

modo à pergunta que fiz acerca do que é a burracheira:

�A burracheira pra mim é um estado de consciência que a gente fica, de espírito. Pra

mim eu vejo que quando eu tô nesse estado de burracheira é como se o meu espírito

tivesse sido alimentado. De repente, a gente analisa a realidade aqui, essa mesa, vê as

coisas palpáveis.... e a burracheira apresenta os novos tipos de sentido. De repente a

plantinha que tá ali... você olha pra planta diferente do que tava olhando, �ah aquela

planta tá assim, assim�; você consegue ver uma análise da realidade de um jeito muito

mais profundo. E também pinta uns novos estilos de pensamento, pensa umas coisas

que é só possível pensar tando de burracheira, só assim não sei, mas é um jeito que

pelo menos pra mim eu não consigo conceber assim... tipo um pensamento que às

vezes eu tenho de burracheira analisando a verdade da vida: tempo, espaço, Deus.

Você sabe, essas coisas assim, de repente você chega a pensar umas coisas lá que

você não tem nem palavras, que você tá lá pensando. Então é uma coisa nesse nível.�90

E, além dos pensamentos, ele também fala do sentimento mais experimentado no tempo de

burracheira:

�Ah, esse sentimento de gratidão, mesmo! Gratidão por ser um cara, tô vivo, isso é

uma realidade. Tem outras coisas da vida pós-morte que eu acredito, mas tem aqueles

caras que são céticos, então não dá pra provar. Mas uma coisa que dá pra provar é

assim: eu tô vivo, aqui, pensando, com a minha consciência, o mundo inteiro, um

monte de cabecinha pensando... mas eu sei que eu tô aqui, de repente eu sou o Roberto,

tenho a minha vida, meus amigos, as coisas que acontecem, tal, toco violão, toco

guitarra, posso fazer umas coisas assim... Então quando tô lá assim, uma coisa que fica

sempre presente muito pra mim é a gratidão, a gratidão acho que é mais marcante.�91

90 Entrevista de Roberto, em Campinas, 26 de outubro de 1998. 91 Id.

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108

O livro que faz a apresentação institucional do CEBUDV afirma que �o efeito do

chá pode ser comparado ao êxtase religioso [...] - um estado de lucidez contemplativa, que

coloca a pessoa em contato direto com o plano espiritual� (CENTRO ESPÍRITA

BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1989, p. 30). Assim, a burracheira é concebida

na União do Vegetal como uma força, algo que tem origem na própria �Força Superior�,

expressão freqüentemente utilizada para fazer referência à divindade. Essa força é

desconhecida, estranha, para o ser humano. Por isso, o participante da UDV busca se

preparar para, durante as sessões, entrar em contato com a burracheira. O Mestre é aquele

que o conduz nessa experiência.

Mestre e discípulo

Certamente, a palavra que se pronuncia mais vezes numa sessão da União do

Vegetal é mestre. Antes de mais nada, é a palavra mais usada para se denominar �a

Divindade�, ou �a Força Superior�. Os seres humanos estão neste mundo para aprender, ou

seja, evoluir espiritualmente. Assim, Deus é sobretudo o Mestre que ensina. Ensina a

quem? Surge aqui o correlato à categoria de mestre: o discípulo. Este surge en creux, não é

uma palavra tão freqüentemente utilizada como mestre, mas está de certo modo implícita na

fala de quem chama o mestre, colocando-se no lugar de aprender. Aprender o quê? Surge

aqui o terceiro elemento dessa relação: o conhecimento. O Mestre transmite o conhecimento

das coisas espirituais. Desde já, pode-se perceber o papel fundamental que cabe ao

conhecimento na UDV. E assim como a vida, também o ritual é um aprendizado, a UDV é

uma escola na qual se aprendem os ensinos do Mestre. E o Mestre tem seus mensageiros

que trazem os seus ensinos. José Gabriel da Costa é um deles, como Salomão, Jesus... O

fundador da UDV é, portanto, chamado igualmente de Mestre. Segundo um conselheiro,

José Gabriel da Costa �é um mestre que conhece o caminho que um espírito precisa

percorrer para encontrar o significado de sua própria existência; e conhece porque

percorreu o seu próprio caminho; e é mestre porque se dispôs a auxiliar�.92

92 Entrevista de Nelson, em Campinas, 30 de setembro de 1998. Grifos meus. Produtor cultural, na faixa dos 40 anos.

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A todas as pessoas que entrevistei fiz a pergunta: �Quem é, para você, José Gabriel

da Costa?�. Houve uma grande variedade de respostas. Denise, que está no Quadro de

Sócios, respondeu: �Mestre Gabriel pra mim é um mistério. Eu ainda não sei o que sinto,

ele é um velhinho interessante, [...] é difícil achar que ele é mestre, um mestre pouco

convencional. É mais fácil pensar num lama tibetano.�93 Aparece talvez aí a dificuldade de

alguém de formação universitária aceitar como mestre um seringueiro semi-analfabeto.

Realmente, um lama tibetano seria certamente mais palatável num primeiro contato. Mas à

medida que as pessoas permanecem mais tempo na UDV o mistério dessa pessoa as

envolve cada vez mais. Renato, que já participa da UDV há 18 anos, diz a respeito de José

Gabriel da Costa: �É um mistério, ele é fascinante, ele é a luz. É como ter de descrever o

que é a humildade. Precisa sentir.�94 Respostas como essa, que fazem recurso a palavras

muito utilizadas na UDV, como luz e mistério, são recorrentes. Assim como a indicação do

caminho do sentir como possibilidade de acesso à percepção de quem ele é. Um outro

aspecto, apontado por Alice, que conhece a UDV há 10 anos, é a proximidade de José

Gabriel da Costa:

�Um grande amigo, alguém que mesmo que eu não conheci pessoalmente é alguém

muito próximo. E mais, é um amigo que se faz presente nos momentos importantes de

minha vida. Eu até penso em desistir mas ele sempre de uma maneira inteligente me

traz de volta. Até porque tem uma característica: eu não conheço outro mestre que se

coloque de forma tão humana. �Andei no mau caminho�, coloca-se num plano como o

nosso. Mostra que a transformação é possível de verdade.�95

Esse sentimento de proximidade é também apontado por Clarice, uma senhora simples,

com pouco estudo acadêmico, que já passou por muitas situações de sofrimento e percebe

essas dificuldades na vida de José Gabriel da Costa:

�É uma pessoa assim que não teve estudo [...] Mas, por que ele foi tão sofrido? Viveu

num lugar pobre, seringueiro, teve um filho excepcional. [...] Por que não veio numa

vida melhor, sem tantos problemas financeiros? [...] O Mestre Gabriel é um

recordado.�96

Esse olhar de empatia, que vê no �Mestre� um espelho de si mesmo e, simultaneamente,

alguém que tem um �grau� espiritual alto, também se verifica na entrevista de Mestre

93 Entrevista de Denise, em Campinas, 19 de outubro de 1998. Médica, na faixa dos 30 anos. 94 Entrevista de Renato, em São Paulo, 21 de outubro de 1998. 95 Entrevista de Alice, em Campinas, 17 de setembro de 1998. Advogada, na faixa dos 30 anos. 96 Entrevista de Clarice, em Campinas, 15 de setembro de 1998. Dona de casa, na faixa dos 70 anos.

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110

Décio, psicoterapeuta: �ele é um terapeuta interno. Pra mim hoje o Mestre Gabriel é uma

luz, que permite o desvelamento do meu eu verdadeiro; quando o meu eu verdadeiro estiver

plenamente lapidado, a missão dele comigo estará concluída.�97

A polissemia da vida de José Gabriel da Costa está, primeiramente, relacionada ao

caráter polissêmico de toda existência humana. Mas, pela densidade e diversidade das

experiências por ele vivenciadas e pelo âmbito sagrado no qual se dá o conhecimento e

identificação com o �Mestre�, por vezes se observa um processo que poderia ser lido, numa

perspectiva hermenêutica, a partir deste texto de Ricoeur:

�Ao se compreender a si mesmo nos e pelos signos do sagrado, o homem opera a mais

radical despossessão de si mesmo que é possível concebermos. [...] Uma arqueologia e

uma teleologia desvelam ainda uma arché e um télos de que o sujeito pode dispor-se

ao compreendê-los. O mesmo não ocorre com o sagrado [...] Desse alpha e desse

ômega o sujeito não poderá dispor-se. O sagrado interpela o homem e, nessa

interpelação, anuncia-se como aquilo que dispõe sua existência, porque a põe

absolutamente, como esforço e desejo de ser.� (RICOEUR, 1978, p. 23).

Assim, tanto o arché - o princípio, a origem, o enraizamento no passado - que se desvela

em experiência do limite na vida de Clarice e de José Gabriel da Costa, quanto o télos - o

fim, a meta, o dinamismo voltado para o futuro - que se vislumbra na superação dos limites

na existência do Mestre e nos desejos de Décio de um eu plenamente lapidado são

vivenciados como interpelação radical que dispõe a vida numa dinâmica de busca.

Também os líderes da União do Vegetal são designados pelo nome de mestre.

Assim, há três planos de aplicação da palavra mestre numa sessão da UDV: o divino, o

relativo ao Mestre Gabriel e o referente aos que têm �a estrela de mestre� no CEBUDV.

Essas significações múltiplas da palavra �mestre� numa sessão da UDV podem suscitar

ambigüidades, mas provavelmente serão mal-entendidos produtivos, na medida em que se

delineia uma correlação alto-baixo que sanciona a autoridade hierárquica e faz com que o

divino seja sentido como mais próximo. A todo momento chama-se o Mestre, e o mestre

dirigente da sessão, prontamente, responde. Nos estatutos, por exemplo, se afirma que �a

sessão será dirigida pelo Mestre e por quem for designado a representá-lo�, ou seja, todas as

sessões têm por dirigente o Mestre Gabriel; a pessoa que ocupar o lugar de �mestre

97 Entrevista de Décio, em Campinas, 15 de outubro de 1998. Psiquiatra e psicoterapeuta, na faixa dos 50 anos.

Page 111: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

111

dirigente da sessão� será um representante dele. Na maioria dos núcleos onde já estive, nas

ocasiões em que uma mulher dirige uma sessão, quando é feita uma pergunta a ela se usa a

fórmula: �Mestre, o senhor dá licença de fazer uma pergunta?� Mas no Núcleo Alto das

Cordilheiras presenciei uma sessão em que uma conselheira que ocupava o lugar de mestre

dirigente respondeu a alguém que usou essa fórmula: �O senhor pode me chamar de

senhora mesmo...� De qualquer modo, busca-se enfatizar que o dirigente está no lugar do

Mestre Gabriel. Esse aspecto do lugar é ressaltado, no sentido de que �Mestre da União do

Vegetal� realmente é o Mestre Gabriel, os demais �mestres� são também discípulos, que

têm uma tarefa: transmitir a doutrina da União e, junto com os conselheiros e conselheiras,

dirigir o núcleo da UDV.

O discípulo, como afirmei acima, é alguém que se coloca no lugar de aprender. E a

sessão é o espaço mais adequado para isso. Assim, na UDV o tempo do ritual é fortemente

marcado como um tempo de exercício da palavra. O jogo de perguntar e responder

preenche a maior parte da sessão. E a pergunta é feita ao mestre dirigente que responde

enquanto mestre, isto é, como alguém que ensina. Ao chamar esse jogo de �exercício da

palavra�, refiro-me aqui a um sentido forte do termo exercício. Assim como uma atividade

física intensa e ordenada é um exercício, do mesmo modo o uso da palavra nas sessões da

UDV exige muitas vezes de quem o faz um esforço, atenção e precisão que fazem de tal

atividade um exercício exigente. Diante da força da burracheira, pode ser necessário um

esforço grande, até mesmo para simplesmente levantar-se e articular uma pergunta. No

turbilhão de sensações da burracheira, pode ser preciso muita concentração e atenção para

focar um assunto e elaborar uma questão sobre ele. E neste jogo se demanda uma fina

precisão, na medida em que não se pode usar qualquer palavra de qualquer modo. Há toda

uma série de prescrições que visam excluir das sessões palavras inadequadas, já que a

burracheira é percebida como algo que é moldado plasticamente pela palavra, o que suscita

cuidados para que as pessoas não sejam conduzidas por palavras inadvertidamente

pronunciadas a situações difíceis. Deste modo, há toda uma preocupação com a forma, com

a escolha dos vocábulos, que faz desse exercício da palavra algo exigente. E ainda mais,

muitos mestres costumam corrigir os discípulos quando estes empregam uma palavra ou

expressão inadequada. Quando, por exemplo, o que pergunta diz: �Eu queria saber...�, ele

pode ouvir do mestre: �O senhor queria, agora não quer mais?� Assim, faz-se necessária

uma certa docilidade do discípulo, para se deixar corrigir pelo mestre... A disponibilidade

Page 112: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

112

para aprender e a participação nas sessões, principalmente perguntando, assim como o

empenho em participar dos trabalhos e atividades do núcleo possibilita ao discípulo vir a

ser convocado para o Corpo Instrutivo, o grupo de discípulos que já subiu um degrau na

hierarquia, podendo participar das sessões instrutivas, realizadas a cada dois meses, nas

quais são transmitidos ensinamentos mais reservados da UDV.

Conhecimento

A relevância do conhecimento, na visão de mundo da UDV, pode ser observada

considerando-se os pedidos feitos no ritual e pelos frutos que se ensina esperar da

burracheira: receber da chacrona, o arbusto Psychotria viridis, luz para conhecer e do

mariri, o cipó Baisteriopsis caapi, força para aplicar o conhecimento na vida. Essa ênfase

na busca do conhecimento assemelha-se àquela ensinada pelo gnosticismo dos primeiros

séculos da era cristã. Ainda que na União do Vegetal esse elemento seja equilibrado com a

acentuação dada igualmente à necessidade daquilo que Mestre Gabriel chamou �a prática

fiel do bem�.

Perguntado se a UDV é uma gnose, um mestre respondeu:

�No sentido da palavra, sim. É difícil dizer o que eram os gnósticos, porque é

um nome usado pra tantas coisas diferentes, uma coisa muito difícil... Mas, no aspecto

do conhecimento, do valor espiritual do conhecimento, da realização pelo

conhecimento, eu acho que tem muita coisa a ver. Porque tem muitas coisas

normalmente associadas ao que se chamava de gnóstico que não têm a ver, como por

exemplo, uma divisão entre eleitos e não eleitos, esse aspecto não existe. Mas existem

alguns aspectos de ensinamento que são coisas assim literais, escrita assim a mesma

frase. Então alguma coisa tem a ver. [...] O Mestre Gabriel nunca se colocou como

detentor exclusivo do conhecimento. O conhecimento está no alto, quem chegar lá

alcança.� 98

Essa relação com a gnose pode ser inferida a partir da afirmação de Luísa,

Conselheira, na faixa dos 50 anos, psicóloga: �a linha do Vegetal, essa linha mais direta,

pros herdeiros de São Tomé; a fé deles precisa das colunas do sentimento e do

98 Entrevista do Mestre Paulo, em Campinas, 16 de outubro de 1998.

Page 113: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

113

conhecimento.�99 Nesse aspecto, é possível pensar uma analogia com a crença dos antigos

romanos, que não acolhiam afirmações teológicas e metafísicas sem antes submetê-las à

crítica. Linder e Scheid afirmam que �de ce point de vue, les Romains étaient des Saint-

Thomas, mais de Saint-Thomas modèles de la bonne foi, et non de l�incroyance� (LINDER,

SCHEID, 1993, p. 55). E na nota relativa: �La meilleur preuve étant celle des yeux�(Id.,

nota 46, p. 60). Ora, o exercício da crença na UDV talvez possa ser definido como aquele

dos �herdeiros de São Tomé�, como disse Luísa, na medida em que a fé não é exigida a

priori, mas se configura como o resultado de uma vivência - na qual, aliás, a visão tem um

papel de substancial importância - das faculdades do sentir e do conhecer. Como aponta

Otávio Velho:

�Agora, é como se São Tomé fosse o apóstolo do novo tempo. Um tempo que exigiria

uma religiosidade da experiência direta, onde o conhecimento subsume a afetividade e

é posto no lugar da transmissão exclusivamente por via da tradição, a qual não tem

valor senão na medida em que é reinventada convincentemente.� (VELHO, 1998, p.

38).

Assim, o próprio Mestre Gabriel disse: �não acreditem no que eu digo; examinem!

... pra ver que eu estou certo.� Esta frase é muitas vezes recordada nas sessões e fora delas,

e traz para a União do Vegetal uma flexibilidade quanto aos graus de aceitação da doutrina,

na medida em que esse exame permanece aberto. Luís, professor, na faixa dos 50 anos,

afirmou:

�As religiões exigem uma conformidade e um consenso, mas a UDV não. Embora ela

aparentemente exija, ela abriga muitas pessoas como eu. A gente aprende o que a gente

pode falar e o que não pode. É interessante você olhar o Rajneesh. Ele dizia: �a única

coisa que eu exijo de vocês é que façam as meditações�. A UDV diz: �bebe o Vegetal e

paga a mensalidade�. Não tem nenhum credo.� 100

No entanto, essa afirmação deve ser matizada, levando-se em conta que quem a faz é do

Quadro de Sócios, apesar de já beber o Vegetal há mais de 4 anos. Como ele mesmo

reconhece: �Eu não sou da instrutiva. Você tem que mostrar que é da UDV, que faz as

perguntas certas... Eu até gostaria, mas tem de passar por tudo isso. De certa forma eu não

sou da UDV.�101 Luís percebe que a convocação para o Corpo Instrutivo manifesta um grau

de adesão que ele ainda não tem, o que faz com que de certo modo ele se sinta fora. Por 99 Entrevista da Conselheira Luísa, em Campinas, 20 de outubro de 1998. 100 Entrevista de Luís, em Campinas, 6 de novembro de 1998. 101 Id.

Page 114: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

114

outro lado, para o Quadro de Sócios é grande a flexibilidade. Já do Corpo Instrutivo é

esperado um compromisso maior, até mesmo nesse aspecto doutrinário, pois um dos

boletins afirma: �Só poderá seguir na Sessão Instrutiva aquele que aceitar as doutrinações

da mesma�102. Mas não há um detalhamento do que significa essa aceitação, assim,

permanece uma margem significativa para uma diversidade de compreensões. Certamente,

a ascensão nos graus da hierarquia está relacionada ao grau de adesão à doutrina de Mestre

Gabriel, mas não de uma maneira unívoca, já que por exemplo, pode-se perceber de um

núcleo para outro uma diversidade de exigência de conformidade.

Sentir

A UDV é uma religião de tradição oral, na qual a porção da doutrina considerada

pelo próprio grupo como fundamental - as histórias e as chamadas - não está escrita e nem

poderia vir a ser assim registrada, já que está prescrito que os ensinamentos sejam

transmitidos �de boca a ouvido�. Isto suscita uma certa perplexidade em seus novos

adeptos: qual o critério para se saber se o conhecimento é verdadeiro? O mesmo Mestre

Paulo, abordando a questão da identidade de José Gabriel da Costa, fala que �existe esse

risco de cada um de nós hoje chamar uma série de coisas, de sensações a respeito de si

mesmo, de chamar dessa palavra, de �Mestre�. [...] As pessoas costumam criar essa figura:

�eu falei com o Mestre� , �o Mestre me disse�, né?� Mas, em seguida, Paulo fala de

determinadas ocasiões em que pôde perceber uma �força inteligente� atuando na União do

Vegetal:

�Em muitos casos é muito perceptível essa intencionalidade, essa forma como as coisas

vão acontecendo, e que se acontecesse diferente o resultado seria outro. [...] Quando eu

digo uma força inteligente é algo que eu sinto que tem um propósito, uma razão, não é

uma força como a força de uma tempestade, uma força que a gente sente que é uma

força mas não dá pra perceber a direção. Mas no caso da União do Vegetal existe esse

aspecto inteligente e na minha vivência pessoal, e nessa conversa você pôde ver

exemplos, como na minha primeira miração, que eu vejo como se fosse uma estratégia,

uma estratégia de como chegar até a mim. [...] Então, pra mim, esse José Gabriel da

Costa, além de ser o homem que foi, com o exemplo, que acho que é um exemplo 102 Boletim da Consciência Conservando a Tranqüilidade dos Filiados do Centro, 4a parte. CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 58.

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115

muito importante, próximo, brasileiro, próximo no tempo, na forma de vida, no espaço,

localização geográfica, linguagem, além de ser esse homem, eu identifico o Mestre

Gabriel como essa força inteligente na União do Vegetal.�

Em seguida, eu lhe pergunto qual é o critério para perceber o que é verdadeiramente ação

dessa �força inteligente� e não �personalizar sensações individuais� e chamá-las de �Mestre

Gabriel�. E ele responde:

�A gente vai voltar no sentir, né? Eu uma vez perguntei pra uma pessoa, que inclusive

eu conheci antes da União do Vegetal, uma senhora que desencarnou antes de eu

chegar na União do Vegetal, uma pessoa muito espiritualizada, muito legal. Mas ela lia

uns livros que eu achava que não tinha nada a ver, Lobsang Rampa, um negócio assim

que eu achava meio marketeiro. Aí eu perguntei pra ela: �Puxa, eu não entendo... por

que você lê esses negócios, aí?� Ela falou o seguinte: �Eu leio, eu leio tudo, agora, eu

só guardo aquilo que me toca o coração.� E é mais ou menos isso, viu? Você sabe;

quando é, você sabe.�

Esse status legitimador do conhecimento que tem o sentir na UDV também apareceu

claramente em uma sessão no Rio de Janeiro, no Núcleo Pupuramanta. Falava-se acerca da

verdade. Quando um discípulo perguntou como se pode ter a certeza de que algo que se vê

na burracheira é verdadeiro e não uma ilusão, o mestre dirigente da sessão respondeu:

�quando algo que o senhor vê é, realmente, verdade, o senhor sente; o sentimento mostra

pro senhor que é verdade�. Afrânio Patrocínio de Andrade, que participou do Núcleo São

João Batista, de São Paulo, também aponta para a dimensão do sentir, afirmando em seu

último capítulo: �Essa Religião, uma vez abandonando muitas das falácias da razão e se

apegando a uma experiência em que se congeminam sentimentos e emoções, traz para o ser

humano da cidade um elemento que lhe é caro: a consciência de si próprio.� (ANDRADE,

1995, p. 246. Grifos meus).

Há, certamente, a autoridade de Mestre Gabriel, o fundador, que é aceita como a de

alguém que é o �Mestre dos Mestres�103. No entanto, na interpretação de suas palavras ou

naqueles pontos sobre os quais ele não se pronunciou, o sentimento é um critério

fundamental, especialmente o sentimento durante a burracheira. É verdade que, na mesma

sessão acima citada, um outro mestre lembrou que há o Conselho da Recordação dos

Ensinos do Mestre Gabriel, que reúne aproximadamente doze pessoas dos inícios da União,

103 Mistérios do Vegetal, texto lido no início de toda sessão de escala.

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116

aqueles que receberam a �estrela de mestre� das mãos do Mestre Gabriel. Assim, segundo o

Mestre Manoel Nogueira, Mestre Geral Representante em 1996 e 1997, já falecido, �todos

nós, unidos, somos o Mestre Gabriel. Agora, para se chegar a essa união, não é fácil. Até

hoje, não se chegou. [...] Há ainda muita coisa pra acertar, pra esclarecer.�104 Pelo contexto,

pode-se perceber que aí a palavra �nós� refere-se aos mestres do Conselho da Recordação.

De qualquer modo, ainda que em controvérsias específicas esse órgão tenha autoridade

suprema para definir em consenso a doutrina legítima, no quotidiano da vida dos discípulos

da UDV, um critério básico é aquele referido acima, dado pelo Mestre Gabriel:

�examinem!� Tal exame, para um discípulo da UDV, certamente não deve ser guiado pelas

�falácias da razão�, como dizia Afrânio Andrade, mas sim pelo sentimento iluminado pela

�luz da Hoasca�, isto é, o sentimento aguçado e aprofundado pela experiência da

burracheira.

Em 1981, foi publicada uma reportagem de capa, na revista Planeta, com o título: A

Oasca e a religião do sentir105 (ARARIPE, jun 81, p. 34-41. Grifos meus). O autor,

Flamínio de Alencar Araripe, até hoje é discípulo da UDV, do Núcleo Tucunacá, em

Fortaleza, Ceará. No artigo, ele afirma que �é uma experiência inesquecível sentir a energia

deste chá em ação no organismo humano� (p. 36). Descrevendo o efeito do chá, escreve

que �no interior da pessoa ele age como desobstrutor da sensibilidade real do organismo�

(Id.); �é como se a sensação da matéria física entrasse em outro referencial onde o espírito

comanda a sensibilidade� (p. 37). Falando do �poder de transformação� do Vegetal, afirma

que �verdadeiras mudanças se operam entre as pessoas que continuam comungando este

chá�: �a sensibilidade aumenta e com ela o discernimento� (p. 40). Essa reportagem teve

ampla repercussão entre os discípulos da UDV, de modo que até hoje freqüentemente são

feitas referências à União do Vegetal como �a religião do sentir�. Indagando a Flamínio a

respeito da origem dessa expressão, ele me respondeu por e-mail:

�Na sessão do dia 22 de julho, em São Paulo, conversei no Núcleo Samaúma com o

autor desta expressão, o mestre Mario Piacentini, sobre o assunto da sua indagação.

Falei pra ele que sempre quando comentam pra mim esta definição da UDV que deu

título à reportagem da Planeta, digo que ele é o autor. O velhinho com 83 anos,

continua a transmitir a mesma alegria e lucidez de quando o conheci. Se você ainda 104 Mestre Manoel Nogueira fala das origens da UDV. Entrevista a Cristina da Luz. Jornal Alto Falante, Brasília: nov� dez 94�jan 95, p. 9. 105 A grafia da palavra �Oasca�, sem �H� no início, foi um lapso do autor do artigo, pois bem antes de sua publicação, já se havia fixado, entre os membros da UDV, a grafia �Hoasca� com �H� inicial.

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117

não o conhece, é uma experiência gratificante. [...] O segundo crédito nesta história

deve ser dado ao então editor da Planeta, que soube pinçar do texto a expressão que

define o todo, o Ednilton Lampião, que já desencarnou.�

É relevante que essa expressão tenha sido cunhada pelo M. Mario Piacentini, um mestre de

São Paulo, que inclusive foi pastor protestante antes de conhecer a UDV.

Assim, fiz em minhas entrevistas a pergunta: �Alguns chamam a União do Vegetal

de a religião do sentir. Você considera esta uma expressão apropriada?� Aproximadamente

dois terços dos 50 entrevistados responderam afirmativamente a questão. Os demais

matizaram a sua resposta, dizendo que sim, em termos. E somente três pessoas

consideraram que não, vendo essa afirmação apenas como �uma frase achada, um

slogan�106.

Segundo Augusto, arquiteto, na faixa dos 30 anos de idade, pertencente ao Corpo

Instrutivo, �os conhecimentos que a gente tem na burracheira vêm de uma forma direta. É

como se o conhecimento fosse uma esfera, o sentimento e a intuição formam o volume

dessa esfera. É o poder que a burracheira te dá do conhecimento direto pelo coração.�107

Também a Conselheira Luísa usou uma imagem geométrica, que citamos acima: as duas

colunas, do conhecimento e do sentimento, sobre as quais repousa a trave do crer. Essas

duas colunas, encimadas pela trave da fé, formam um arco, figura um tanto recorrente no

imaginário da União do Vegetal. Mais adiante, voltarei a pensar no simbolismo dessa

figura. Por ora, basta ter presente a idéia do arco como vínculo de união entre duas

realidades, no caso, o conhecer e o sentir.

Quanto àqueles que discordaram da afirmação da UDV como religião do sentir,

Cleide, profissional da área de música, na faixa dos 40 anos, afirma que no Santo Daime o

ritual é mais voltado para o sentir que na UDV: �o bailado não dá muito espaço pra gente

pensar. Na União do Vegetal tem um espaço pro mental bem grande. Durante a sessão, o

exercício é mental.�108 Antônio, também na faixa dos 40 anos, participante da UDV há 21

anos, do Corpo Instrutivo, diante da pergunta meneou a cabeça e disse: �Valorizo cada vez

106 Entrevista do Conselheiro Waldir, em São Paulo, 22 de outubro de 1998. Designer, na faixa dos 70 anos. Para ele, a UDV é �a religião da consciência�. Vide declaração semelhante da Conselheira Lídia, p. 108. 107 Entrevista de Augusto, em Campinas, 19 de outubro de 1998. 108 Entrevista de Cleide, em Campinas, 9 de novembro de 1998.

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118

mais o meu lado racional. Na burracheira tem esse sentir, mas tem o pensar também. Há a

coisa de estudar, isso é mais do que o sentir.�109

Já Cláudia, terapeuta, na faixa dos 50 anos, afirmou:

�na minha vivência é a religião do sentir. Quase tudo é o sentir. Inclusive eu não tenho

raciocínio linear, eu sinto uma coisa e sinto outra e liga outra e puff, salta outra... como

se fosse uma grande mandala que se vai configurando e de repente, ploff! Tudo

encaixou! E é uma coisa que se integra num sentido maior, pra eu entender algumas

coisas, e aí vem aquela sensação de paz, de bem-estar. Tem o raciocínio linear e tem o

rizomático, como rizomas, o meu funciona assim: vem uma coisa e tuc-tuc-tuc, de

repente tuff, faz uma configuração... e eu integrei uma idéia. De repente começa a

juntar uma fala do Daniel [Mestre Representante] com uma sensação que eu tive e

pluff integrei em uma outra coisa. Eu funciono assim e na minha vida funciona assim,

cada vez mais. Ou seja, já não me preocupo muito pela linearidade, sabe?�110

Por estas palavras, pode-se ver que para Cláudia, esse sentir não se refere apenas ao plano

das emoções, mas abrange também um exercício do pensamento de um modo distinto do

raciocínio lógico, um pensar rizomático, no qual se dão insights em série, que conduzem a

uma integração e a uma �sensação de paz�. Tudo isto parece se assemelhar à sintética

resposta da Conselheira Lídia, na faixa dos 40 anos, professora: �a União do Vegetal é a

religião da descoberta da consciência a partir do sentir�111. Aqui voltamos a um aspecto já

apontado por Afrânio de Andrade na citação que fiz acima, a consciência, que é mais uma

categoria nativa extremamente relevante na UDV.

Consciência

No início das sessões, a palavra �consciência� é ouvida reiteradas vezes, na leitura

das leis da UDV. Depois da leitura do Regimento Interno, são lidos vários documentos

denominados �Boletim da Consciência�, já que �quando se fizer necessário, será publicado

e divulgado pela Administração Geral o Boletim da Consciência, com instruções a serem

observadas no âmbito do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal�112. Assim, é lido o

109 Entrevista de Antônio, em Campinas, 7 de setembro de 1998. 110 Entrevista de Cláudia, em Campinas, 16 de outubro de 1998. 111 Entrevista de Lídia, em Campinas, 28 de outubro de 1998. 112 Artigo 20, Capítulo V do Regimento Interno do CEBUDV. CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 95).

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119

Boletim da Consciência (BC), o BC em Administração, o BC Conservando a Tranqüilidade

dos Filiados do Centro, o BC em Cumprimento da Lei, o BC em Defesa da Fidelidade e

Harmonia dos Filiados do Centro, o BC em Firmeza, o BC em Organização, o BC

Recomendando o Fiel Cumprimento da Lei, o BC em Reforma, o BC Recomendando a

Preservação da Moral e da Família. Deste modo, pode-se inferir que a palavra

�consciência� é compreendida e utilizada em sua conotação moral, como faculdade de

estabelecer julgamentos morais dos atos realizados. Portanto, esta categoria liga a esfera do

conhecimento à esfera da práxis, solicitando do discípulo que a sua vivência espiritual se

reflita em um agir segundo os princípios éticos da UDV. No discurso dos participantes do

Núcleo Alto das Cordilheiras, pude perceber na grande maioria um esforço em afirmar a

repercussão de sua pertença à UDV em sua vida diária, tecendo-se muitas vezes um �relato

de conversão� que compara aspectos constrastantes do agir da pessoa, antes e depois de

entrar para a União do Vegetal. Se no relato de alguns tais mudanças são mais explícitas,

como a superação de vícios, para outros são pequenas mudanças de atitude detectadas na

vida quotidiana, como por exemplo, na narrativa da Conselheira Luísa:

�As pessoas falam no meu trabalho que eu sou meio diferente das outras

pessoas. Eu já perguntei, �por quê?� Parece que eu presto mais atenção nas coisas que

tão acontecendo e levo em consideração aspectos que as pessoas não tão enxergando.

Procurei saber melhor o que era isso, várias pessoas já tinham me falado isso, mas não

coonsegui ainda descobrir não. Mas acho que tem um jeito diferente de enxergar as

pessoas. Por exemplo, eu sou psicóloga e numa época convivi com uma pessoa,

assistente social, que trabalhava junto comigo. No próprio trabalho, ela falava muita

coisa pra mim de casos que a gente tinha em conjunto. E ela era a rainha do detalhe.

Então ela era uma pessoa famosa, como uma das pessoas mais chatas que as pessoas

conhecem! Certo? Aí, vi que a minha relação com ela um tempo começou a ficar

difícil, eu tava meio irritada. Daí, numa sessão me veio essa assistente social, me veio

uma dimensão dela e parecia que ela era muito próxima, parecia até que era minha

parente. Daí eu passei a conviver com ela de uma maneira diferente. Eu fiquei

estudando como é que funcionava a cabeça dela, como é que ela era... Então ela deixou

de me irritar. Quando ela falava e ia longe, contava dez vezes o mesmo caso. Então na

décima vez que ela contava o mesmo caso eu perguntava: �Por que que você tá

contando outra vez?� Eu ficava de observadora da situação. E foi uma coisa que me

auxiliou bastante na convivência. Eu consegui ter um apreço por ela, gostar dela, é uma

coisa que me fez bem, fez bem pra ela. As pessoas geralmente não davam a mínima

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120

atenção pra ela, fugiam dela. Uma coisa que eu aprendi e foi assim com o Vegetal.

Coisas que eu aprendo no Vegetal, que mexeram com a minha emoção, em termos de

ter mais

paciência, mais tolerância com o outro... Ficar de observadora e aprender do

comportamento da pessoa: �Gente é assim!� Então fiquei assim, meio científica. Foi

jóia! Convivi quatro anos com ela... Uma construção em termos de relação, que o

Vegetal me deu de presente.�113

Esse relato de Luísa parece-me paradigmático da interrelação apontada no discurso

desses hoasqueiros urbanos entre a experiência com o chá Hoasca e a vida quotidiana. Não

me seria possível observar prolongadamente o dia-a-dia dos participantes do Núcleo Alto

das Cordilheiras, para constatar o tanto que eles colocam em prática ou não os princípios

éticos da União do Vegetal; e nem caberia a mim formular um juízo a esse respeito. No

entanto, é significativo que o discurso da maioria seja recheado de abundantes links entre a

vivência religiosa e ritual e a vida diária.

Memória

Relacionado com o conhecimento está o tema da memória. Dentro da cosmovisão

reencarnacionista da União do Vegetal, a memória tem papel significativo, na medida em

que o processo de conhecimento é um processo de recordação. Assim, José Gabriel da

Costa é um recordado, alguém que chegou a se recordar de suas encarnações passadas e é

Mestre que ensina a recordar. Assim, na UDV se fala de �grau de memória�. O Boletim da

Consciência em Reforma afirma que �os discípulos que seguirem a Sessão Instrutiva só

poderão ser escolhidos pelo Mestre Representante, de acordo com os graus de memória�114.

O �grau de memória� é relativo à capacidade de compreensão dos ensinos espirituais. Mas

não apenas isto, também é algo que se infere a partir da prática da pessoa. É como que ter a

cada momento na memória a necessidade da �prática fiel do bem� - expressão criada por

Mestre Gabriel e constantemente utilizada na UDV.

113 Entrevista da Conselheira Luísa, em Campinas, 20 de outubro de 1998. Psicóloga, na faixa dos 50 anos. 114 Boletim da Consciência em Reforma. (CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 71).

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121

Perguntado a respeito da repercussão de sua vivência religiosa em sua vida prática,

Mestre Paulo disse:

�O aspecto da visão da vida, que você tenha um princípio reencarnacionista � acreditar

na reencarnação é uma coisa que não é fácil. Não é nem um pouco óbvio, não é. Não é

do ponto de vista da experiência individual. Eu tenho a experiência de agora, minha

referência é esta. Então não acho assim instantâneo nem fácil acreditar na

reencarnação. Mas é uma coisa que eu tenho hoje motivos suficientes pra ter isso como

uma referência na minha vida. Isso muda a forma de ver as coisas. Eu não considero

assim, não acho que chega no ponto de cair num fatalismo cármico: �o mundo é assim

mesmo�, �eu tô aqui passando por coisas que são o resultado�.... O fato de que na União

do Vegetal é muito interessante que a responsabilidade maior é nesta encarnação.

Segundo a palavra do Mestre Gabriel, muito pouco passa de uma encarnação para

outra. Isso é uma coisa que é muito diferente de uma visão de carma, de que tudo agora

é uma conseqüência diretamente de todo o passado. Não é exatamente assim que é

colocado na União do Vegetal. O enfoque da União do Vegetal. Existe, é claro, o que

vem antes, a sua história, a memória, o passado. Mas o seu processo de recordação tem

que começar por esta encarnação, pra você chegar nas outras. É um aspecto

reencarnacionista mas que não coloca a responsabilidade no passado. A

responsabilidade continua aqui. O foco é esta encarnação. O responsável por 99% do

que te acontece é o que você tá fazendo, não é o que você já fez em vidas anteriores. É

um reencarnacionismo temperado com esse enfoque na responsabilidade presente.

Tanto que, embora a gente saiba que tem a possibilidade de recordação na União do

Vegetal e tal, não é necessariamente como as pessoas que ficam buscando na

burracheira se lembrar o que eram em vidas anteriores. Não é bem por aí que a coisa

funciona. Importa muito mais o que a gente é hoje, como a gente é agora e como a

gente pode ser pra frente. Não é tão importante assim saber se o que eu sou agora é

fruto desta encarnação ou de outra, mas o que eu tô fazendo agora, a conseqüência eu

tô vivendo essa conseqüência, eu tô colhendo essa conseqüência. Vamos dizer, o foco é

esta encarnação. Isso dá uma visão que eu acho mais equilibrada, do mundo, das

coisas, do que seja a justiça. A questão do enfoque é no presente. Não é explicar as

coisas pelas outras encarnações. Isso chega a ser quase uma pretensão. Porque você

tem que ter um nível de desenvolvimento espiritual considerável pra conseguir ter essa

percepção. Uma das coisas que a gente aprende é não ser supersticioso. Teve uma

época, há muitos anos aí, que tinha um pessoal em São Paulo que tava com uma moda

Page 122: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

122

de recordar. Aí acho que foi o Mestre Braga que falou: �eu acho que vou pro Sul, vou

pra São Paulo, beber o Vegetal lá, porque o pessoal tá recordando, eu vou pra lá� �115.

Essa ironia atribuída ao ex-Mestre Geral Representante mostra a reação de uma pessoa com

muitos anos de experiência na UDV, alguém �do Norte�, diante de novatos �do Sul� que

logo se acharam em condições de �recordar suas encarnações passadas�. No entanto, ainda

que se enfatize a dificuldade de acessar essa memória, tal recordação permanece para os

discípulos da UDV como um ideal a ser atingido. Mas, desde já, nas sessões os discípulos

são chamados a �exercitar a memória� principalmente através de uma vivência ética

quotidiana.

Ordem

O Boletim da Consciência Recomendando o Fiel Cumprimento da Lei diz: �Só

através da ordem e da doutrinação reta, que receberemos eternamente dentro da União do

Vegetal, é que chegaremos à cientificação�116. A ordem é um valor extremamente prezado

pela UDV. A começar pelo ritual, simples mas com alguns detalhes bem frisados, que

transmitem uma noção de precisão. Em meio ao �tempo de burracheira� aquele que dirige a

sessão deve estar atento à seqüência das chamadas, dos assuntos, das perguntas e músicas,

de modo que tudo transcorra �em sintonia�. O espaço ritual é austero: paredes nuas, com

apenas a foto de Mestre Gabriel. E sobre a mesa, um arco de madeira pintado de verde com

os dizeres: �Estrela Divina Universal UDV�. Em constraste com o Santo Daime, onde nos

dias de trabalho de hinário há o bailado, a postura corporal de quem participa da sessão é

simplesmente sentada. Para sair do salão é necessário pedir licença ao Mestre Dirigente da

sessão. Do mesmo modo para fazer uma chamada ou para falar e perguntar. E ao falar, tem-

se de prestar atenção às palavras utilizadas, para que não se pronuncie alguma inadequada.

Há certas fórmulas fixas que costumam ser usadas pelas pessoas em suas falas. Ao terminar

sua fala, é comum dizer: �que a sessão prossiga nesse clima de luz, paz e amor�, ou então,

�que a sessão prossiga em harmonia�. Dada a força que é atribuída à palavra, o seu uso

ordenado é pré-condição para a ordem e a harmonia durante a sessão.

115 Entrevista do Mestre Paulo, em Campinas, 16 de outubro de 1998. 116 Boletim da Consciência Recomendando o Fiel Cumprimento da Lei. (CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 69).

Page 123: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

123

A ordem também é enfatizada no ritual pelo acento dado à hierarquia dos

participantes. No início o chá é servido pelo Mestre Dirigente para si mesmo e para o

Representante, para os demais mestres, para os(as) conselheiros(as), para os(as)

discípulos(as) do Corpo Instrutivo e, finalmente, para os demais. O uso do uniforme, com

os diferentes distintivos, próprios a cada grau, marca a importância da hierarquia. As

chamadas, com a sua sucessão precisa de versos que se repetem com ligeiras modificações,

como que numa escala ascendente, e que devem ser memorizadas fielmente por aquele que

quiser fazê-las, expressam a presença de uma ordem objetiva, exterior e maior, que

ultrapassa a subjetividade dos participantes, ainda que interaja com ela. É como se a cada

momento fosse transmitida a mensagem da existência de um cosmos ordenado, que precede

e sustenta a experiência individual, emanado da própria Força Superior. Assim, na

austeridade do espaço, na atenção às palavras, no exercício de perguntar e responder, nas

chamadas, enfim, em cada aspecto do ritual, transparece uma ordem apolínea que é

proposta como modelo exemplar a ser vivido pelo discípulo em sua vida diária.

A relação entre a ordem no ritual e a vida prática foi abordada detidamente na

entrevista de Felipe, membro do Corpo Instrutivo, há 15 anos na UDV, administrador de

construções e músico:

�O próprio ritual é expressão dessa ordem. Esse ritual vai incorporando na vida

pessoal. Se pelos menos duas vezes por mês ele estabelece que naquele momento ele

vai se comportar de acordo com as normas daquele lugar, reconhece que aquela ordem

é importante [...], então isso aí estabelece como um sinal na vida pessoal dele, então a

pessoa naturalmente vai se organizando nas outras coisas. Então, o que que é um

ambiente de trabalho? É um ambiente de concentração. A mesma concentração que a

gente tem e procura ter em tempo de burracheira, procura ter no trabalho. Procurar ter

uma disciplina, procurar se organizar, procurar ter uma relação com a coisa funcional

como se tivesse dentro de uma sessão também, procurar ter cuidado com as palavras,

ter cuidado com o seu passo... Eu não vejo como uma regra essa atitude das pessoas.

Pra mim foi assim. Pra mim facilita. Pra mim não é muito diferente eu sentar, ficar

aqui, trabalhando no computador e ficar dentro da sessão, não é muito diferente. Nesse

plano da organização.�

�A religião mesmo tem um sentido de organização. O ritual religioso é uma forma de

organizar através de uma dramatização, através dos símbolos, o comportamento da

pessoa. Então propicia a pessoa estar se organizando na vida funcional, a pessoa estar

Page 124: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

124

presente nas suas atribuições de responsabilidade, nas coisas que tem que fazer, no seu

lugar como pai, seu lugar dentro de uma casa, seu lugar de trabalho, perante as pessoas,

perante sua palavra, não é?�

�Agora, eu vejo que tem uma coisa na União do Vegetal, quando falo União do

Vegetal é a instituição, são as pessoas, a maneira como as pessoas fazem o que tem na

mão. Com relação a essa questão da espiritualidade, pra mim às vezes me soa assim no

plano mais do ideal do que do real. Uma espiritualidade mas que a pessoa idealiza.

Uma pessoa acha, por exemplo, que fazendo uma chamada pode ficar isento de

qualquer coisa negativa que possa acontecer com ele. E na realidade, se ele não tiver

cuidado, o principal é o cuidado, é a atenção. Não adianta fazer chamada se ele não

tem cuidado. Então religião tem isso, às vezes a pessoa acredita que exercendo

determinado ritual, ou indo pra sessão, ou ficar bem comportado na sessão, por ir

trabalhar quando é solicitado, obedecendo o que as pessoas pedem, porque a hierarquia

tem lá suas determinações, que a pessoa vai evoluir na vida, vai conquistar as coisas

positivas, as coisas que precisa, dinheiro, afetividade, confiança. Então é um perigo

também que existe, né? Então eu acho que tem muita gente encalhada na União do

Vegetal. Não só na União, na religiosidade em si, ela tem esse perigo, porque não

estabelece um vínculo muito forte com a vida prática. [...] A ordem material é a base de

todo o processo.�117

Peia

Mas nem tudo é harmonia nesse universo. As pessoas, individualmente, e por vezes

o grupo reunido numa sessão são vez por outra envolvidos por uma onda de dificuldades

denominada �peia�. A experiência da peia pode ser extremamente intensa: um profundo

mal-estar físico após a ingestão do chá, caracterizado por náuseas, vômitos, vertigens.

Certas vezes, esse mal-estar não é somente físico: a pessoa pode sentir-se interiormente

oprimida pelo remorso, pelo medo ou pela culpa, ou então se encontrar assombrada diante

de visões temerosas, perturbadoras. O conjunto de sensações sugere, às vezes, a quem as

vivencia, que se está chegando ao limiar da morte. A propósito, o Mestre Gabriel teria dito:

�Vocês sabem pra que é que a gente bebe esse chá? É pra aprender a morrer!� Por outro

lado, ele tranqüilizava os seus discípulos, garantindo que �ninguém morre de burracheira�.

Luiz Eduardo Soares observa, numa �breve descrição de paisagens mentais�, a partir de sua

experiência ao beber a Hoasca: �A viagem é suficientemente intensa, imprevisível e 117 Entrevista com Felipe, na faixa dos 40 anos, em Campinas, 27 de outubro de 1998

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125

incontrolável (pelo menos para os neófitos), para representar uma aposta de alto risco. Cada

um daqueles homens e mulheres sabia disso. O pasto daquele rebanho é a morte, Nem mais,

nem menos.� (SOARES, 1994, p. 226).

Toda essa �provação� física, psíquica e espirital costuma ser interpretada pelos

discípulos como �pagamento� por alguma conduta moral errônea. Assim, a peia é

compreendida dentro de uma visão que afirma que o ser humano recebe na vida o que

merece, segundo os atos que praticou. O �merecimento� é um dos pilares da doutrina da

UDV. Essa compreensão da peia aparece bem clara na narrativa de Gustavo, do Corpo

Instrutivo, na faixa dos 40 anos:

�Depois de uns 5, 6 meses [de que havia começado a beber o chá] eu comecei a tomar

umas peias daquelas que eu não conseguia beber o Vegetal. Bebia e vomitava e parei.

Encanei que tinha tido taquicardia numa sessão, que tava passando mal, vomitei 18

vezes... [risos]. Mas era porque já tava começando a fazer efeito coisas assim: tava

tendo consciência, mas no dia a dia eu, né? Eu não conseguia manter, voltava ao dia a

dia. Aí fiquei mais ou menos uns 6 meses sem beber. Até que um dia eu resolvi

conversar com o Mestre Ney, aí eu coloquei algumas coisas que eu tava sentindo,

sentindo na burracheira, umas revoltas e tal com a injustiça e aí ele me deu uns

conselhos, falou pra eu voltar, começar a beber aos poucos e eu fui voltando.�118

Desse modo, a teodicéia da União do Vegetal aproxima-se muito do tipo ideal de

solução para o problema da teodicéia presente na crença na transmigração das almas,

apontado por Weber em sua Sociologia da Religião (WEBER, 1974, p. 412-417), e assim

resumido por Colin Campbell:

�the Indian doctrine of karma, [...] �the most complete formal solution of the problem

of theodicy�, since the world is regarded as a completely connected and self-contained

cosmos of ethical retribution in which each individual forges his own destiny, with

guilt and merit in this world unfainlingly compensated for in the succeeding

incarnation� (CAMPBELL, 1997, p. 106).

Como ele observa na seqüência, os três tipos ideais de solução expostos por Weber - o

escatológico messiânico, o dualista do zoroastrismo e o cármico hinduísta - não dão conta

de abranger certas tradições de pensamento. E assim, Campbell apresenta mais um tipo de

teodicéia, que é a teologia filosófica do otimismo do século XVIII. Suponho que a teodicéia

118 Entrevista de Gustavo, em Campinas, 7 de setembro de 1998.

Page 126: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

126

da UDV tem também elementos desse outro tipo ideal, na medida em que seu

reencarnacionismo distancia-se do hinduísta, o qual não é necessariamente ascendente na

seqüência de encarnações, e se aproxima mais da visão kardecista, a qual traz em seu bojo a

expectativa, própria do século XIX (enraizada no século anterior), de contínua superação de

limites pela irresistível evolução da humanidade. Assim, o reencarnacionismo da UDV tem

um caráter evolucionista e otimista. E a �peia� é encarada como um momento necessário

desse processo de purificação, que conduz à salvação. Essa visão, de um aspecto

pedagógico na peia, pode ser observada nas declarações de Gustavo - ele compreendeu que

já começava a ter consciência de seus erros nas sessões mas não estava praticando as

transformações necessárias em seu cotidiano. E assim a peia teve o papel de um �lembrete�

educativo.

Mesmo sendo extremamente desagradável, a �peia� é uma vivência de emoções

muito fortes, que nos faz lembrar a observação de Campbell, de que �one could say that the

Puritans, or those who inherited their mentality, had become addicted to the stimulation of

powerful emotions [...]� (Id., 134). A �peia� é uma tempestade de emoções, uma

experiência que se vive na mente e nas entranhas, sendo todo o ser sacudido pelo �temporal

de burracheira�. Ainda que extremamente penosa, ela pode ter até mesmo um certo

�encanto� para aqueles que buscam os sentimentos intensos, ou até mesmo o prazer da

vertigem do perigo. A burracheira pode ser inscrita no quarto tipo de jogo definido por

Roger Caillois: a vertigem ou ilinx (CAILLOIS, 1967, p. 169-172). O autor identifica esse

tipo de jogo como �une tentative de détruire pour un instant la stabilité de la perception et

d�infliger à la conscience lucide une sorte de panique voluptueuse.� (Id., p. 169). E Caillois

cita o exemplo dos derviches giradores sufis, que buscam o êxtase rodando sobre si

mesmos. Ora, essa busca do êxtase, da vertigem, da queda ou da projeção no espaço, nos

faz lembrar a vertigem provocada pelo uso da Hoasca. A burracheira, a força estranha do

vegetal, pode se apresentar também como jogo de vertigem. Quanto a este, Caillois detecta

como suas indubitáveis características lúdicas: �liberté d�accepter ou de refuser l�épreuve,

limites strictes et immuables, séparation d�avec le reste de la réalité� (Id., p.172). O efeito

da Hoasca é sempre surpreendente: antes do início da sessão não se pode dizer se será

assustador ou maravilhoso. Essa imprevisibilidade da burracheira dota o ritual da UDV de

um caráter acentuadamente lúdico. Em oposição a outros rituais, perfeitamente previsíveis e

repetíveis, cada sessão da União do Vegetal é única e cada burracheira é imprevisível.

Page 127: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

127

Por sua vez, Fernando de la Rocque Couto, em sua dissertação de Mestrado em

Antropologia acerca do Santo Daime, ao estudar fenômeno semelhante à �peia� da UDV,

considera que �esse processo é catártico e psicoterápico�, a exemplo da visão de Lévi-

Strauss acerca da cura xamânica (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 209), a qual teria na ab-reação

o seu momento decisivo:

�Para pedir o perdão, o doente deve trazer à consciência lembranças emocionais e/ou

traumatizantes que se encontravam reprimidas. Para que isso se observe, ele tem que

sair do conflito e resolver as suas contradições internas. Em termos psicanalíticos, ele

tem que ab-reagir, vivendo e revivendo intensamente a situação inicial que está na

origem da sua perturbação, para poder superá-la definitivamente.� (COUTO, 1989, p.

179).

Já Luiz Eduardo Soares, vê a �peia� como ocasião de libertação da hybris,

superação da desmedida do eu que se colocara como centro do universo. A impetuosidade

do temporal desaloja esse eu dos píncaros do orgulho e o lança nas planícies da humildade,

virtude muitas vezes louvada na União do Vegetal:

�O chá sagrado do Daime, o vegetal santo da UDV, assim como outros recursos

religiosos, psicológicos, culturais, ritualizados mundo afora, instruem-nos, rápida e

eficientemente, que a hybris é o pecado original. Como nos ensinara a tradição

Judaico-cristã.� [...] �É o que deduzo de minha própria sensação: afinal, se eu podia,

sem recorrer à linguagem religiosa e sem experimentar o êxtase místico, vislumbrar a

finitude traída pela fetichização do ego; o que não pensariam, da hybris, os místicos,

encantados pela emoção do ultrapassamento? A dedução confirma-se por

depoimentos.� (SOARES, 1994, p. 229).

A �peia�, essa vivência complexa, que pode ser lida como fruto da lei do

merecimento, catarse terapêutica, ensinamento e caminho para a humildade, é, com certeza,

uma experiência emocional intensa que é vivida (ou padecida) numa perspectiva otimista.

Proponho que nos fixemos nestes dois aspectos � intensidade de sentimentos e otimismo � e

passemos a compará-los com outra vivência nuclear da União do Vegetal: as mirações.

Mirações

Se um membro da UDV sabe que está sujeito a ter de enfrentar uma �peia�, por

outro lado, sabe também que é possível que �a sessão prossiga plena de luz, paz e amor�,

como é dito freqüentemente pelos discípulos na conclusão de suas falas durante as sessões.

Page 128: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

128

As mirações119 de uma sessão tranqüila podem ser grandemente prazeirosas. Esse

sentimento de beatitude, em harmonia com todo o universo, é freqüentemente reiterado nas

declarações dos participantes acerca de suas vivências na burracheira. O Prof. Benny

Shanon, da Hebrew University de Jerusalém, vem fazendo uma pesquisa, a partir de sua

área de estudos, que é a psicologia cognitiva, acerca do conteúdo das visões, das mirações

durante o efeito da Hoasca. No I Congresso sobre o Uso Ritual da Ayahuasca, na Unicamp,

ao apresentar algumas das observações a respeito de sua pesquisa ainda em curso, apontou

para a relevância do prazer como motivação entre os participantes dos grupos religiosos

usuários da Hoasca. Lembrou que Reichel-Dolmatoff afirmou que nunca se bebe o chá por

prazer � mas que, segundo as suas entrevistas, se há pessoas que bebem a Hoasca em busca

de uma sabedoria escondida, há outras que respondem à pergunta sobre suas motivações

dizendo: �É tão belo!�

Roberto, o jovem de quem citamos uma declaração acima, contou-me uma miração

marcante que teve:

�O Mestre apareceu pra mim, na casa dele, sentado de cócoras. Essa foi marcante. De

repente ele falou: �olha, aqui é minha casa�. De repente eu vi uma casa de madeira,

amarrada com corda e sapé, assim, que ficava no alto de um morro; atrás da casa dele

tinha a floresta e na frente tinha uma vista que dava pra você enxergar todas as coisas:

desde o mar, as pirâmides e... tudo o que tinha na terra assim, sabe? De repente, você

ollhava um golfinho lá no mar, lá longe, assim, só que você conseguia enxergar o olho

do golfinho. Então, de repente era uma questão assim que você enxergava tudo assim...

E ele me falou pra mim assim: �Ah, aqui da minha casa dá pra ver todas as belezas da

terra!� E era uma casa bem legal assim, sabe? E eu falei: �Pô, que legal!� E ele deu uns

toques pra mim. [...] Então isso aí é uma das coisas bem marcadas na minha mente, a

casa do Mestre Gabriel que dava pra ver todas as belezas da terra, ele sentado de

cócoras. E depois meu pai me fala que ele realmente ficava sempre tradicionalmente

sentado de cócoras e eu não sabia disso.�120

É bem significativo que, na miração de Roberto, da casa de Mestre Gabriel se pudesse ver

�todas as belezas da terra�. Essa dimensão estética, da beleza que se apresenta

inesperadamente, como um dom, muitas vezes me foi narrada pelas pessoas que entrevistei.

119 As mirações, experiências visuais internas sob o efeito da Hoasca, podem ser de conteúdo �negativo� em momentos de �peia�. No entanto, quando me refiro a mirações aqui, tenho em vista as agradáveis, elegendo-as como um �tipo ideal� em contraste com a �peia�. 120 Entrevista de Roberto, em Campinas, 26 de outubro de 1998.

Page 129: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

129

A relevância da dimensão estética na experiência simbólica dos discípulos da UDV, na qual

a visualidade tem uma significativa importância, levou-me a buscar apresentar nesta

dissertação algumas obras de artistas plásticos do Núcleo Alto das Cordilheiras.

A beleza pode estar relacionada a outras percepções, não somente as visuais. Além

das chamadas, faz parte do ritual da UDV a audição de músicas durante as sessões. Esse

costume vem do tempo do Mestre Gabriel, que autorizou os primeiros discípulos de

Manaus a colocarem discos a tocar nas sessões. A razão da introdução da música, segundo

o Mestre Geraldo Carvalho, um discípulo dos primeiros tempos da UDV em Manaus, que

presenciou a primeira vez em que se escutou música numa sessão121, é a beleza da mirações

que ela propicia. Atualmente, faz parte do ritual da UDV a audição de música instrumental

no início das sessões, no estilo New Age, andina ou clássica. Na seqüência da sessão, são

ouvidas canções da Música Popular Brasileira, com letra, cuidadosamente escolhidas, de

acordo com o assunto abordado pelo mestre dirigente. São freqüentes as que tocam temas

ligados à natureza, à amizade e outras virtudes enfatizadas pela doutrina. É interessante

perceber, sobretudo, a importância do sentimento estético nessa valorização ritual de

músicas que não foram compostas para uma utilização sacra.

Esse papel importante da música no ritual � além das chamadas, que conduzem toda

a experiência da burracheira � mostra-nos que a miração não é simplesmente uma

seqüência de visões: é uma vivência sinestésica, que toca a sensibilidade dos participantes

da sessão em dimensões estéticas e afetivo-sentimentais. Tal experiência totalizante, que

além da visão e da audição pode mobilizar também os sentidos do tato, do olfato e do

paladar, impressiona fortemente quem a vivencia, motivando uma prazeirosa intensidade

de sentimentos. Assim como o sonho para os românticos, as mirações têm para o discípulo

da União um caráter revelatório, já que um �insight into the real nature of the world can

only be gained through powerful emotional and imaginative experience of an essentially

aesthetic character. [...] Romantics placed such importance on dreams � whether of the day

or night variety � seeing them as essentially revelatory experiences.� (CAMPBELL, 1992,

p. 186). Também no que toca às mirações podemos encontrar bem presente o traço do

otimismo. A burracheira � quando �plena de luz� � cria uma atmosfera de encantamento, de

121 DA RÓS, Márcio. A origem da música nas sessões da UDV. Jornal Alto Falante. Brasília: ago�set�out 95, p. 11.

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130

harmonia, de �sintonia entre os irmãos�, que propicia um enfoque otimista de todas as

coisas.

Evolução Espiritual

De acordo com o artigo 1o do Regimento Interno, lido em todas as sessões de escala,

o CEBUDV �tem por objetivos:

a) trabalhar pela evolução do ser humano no sentido de seu desenvolvimento espiritual; b) reunir-se socialmente em seu Templo espírita e extraordinariamente a critério do Mestre.�122

Essas palavras iniciais como que fundamentam a existência da UDV sobre uma visão de

evolução espiritual. E constantemente, em palavras dos sócios durante as sessões há alguma

referência à evolução, no sentido de que �nós estamos aqui - na Terra e nesta religião - para

evoluir espiritualmente�.

Denise, do Corpo Instrutivo, analista de sistemas, na faixa dos 20 anos, perguntada

se há alguma repercussão da sua vivência religiosa na UDV em sua vida prática, responde:

�Com certeza tem. No geral, eu sinto que ela traz mais direção, traz mais equilíbrio,

principalmente, só o fato de você ter um objetivo, que é a evolução espiritual, isso já

modifica totalmente a sua vida. Porque uma coisa é você viver com objetivo e outra

coisa é viver sem orientação, né? Então quando você vive com objetivo, você consegue

trilhar mais a sua vida, consegue organizar mais a sua vida, isso faz com que as coisas

aconteçam de uma maneira mais ordenada. Principalmente o fato de ter um objetivo na

vida, já muda a sua vida totalmente.�123

Esse enfoque teleológico está presente no discurso de muitos discípulos da UDV.

Compartilha da mesma província semântica a ênfase da doutrina em temas como a retidão,

a firmeza no pensamento, a simplicidade. É como se predominasse uma imagem da vida

como linha reta, no fim da qual há uma meta bem definida, a qual importa conhecer e ter

diante dos olhos, para alcançá-la mais rapidamente. Nesse aspecto, há toda uma tendência à

busca da eficácia, que encaixa bem com a modernidade. E certamente, é um elemento

valorizado por muitos dos participantes urbanos da União do Vegetal. 122 Regimento Interno do CEBUDV, artigo 1o. CENTRO ESPÍRITA BENEFICENTE UNIÃO DO VEGETAL, 1994, p. 92. 123 Entrevista de Denise, em Campinas, 7 de setembro de 1998.

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131

O Arco: portal para o Alto

Neste momento, tratarei de um elemento que não aparece muito enquanto �termo

nativo�, palavra pronunciada pelos discípulos, mas sim enquanto imagem, esta sim um

tanto recorrente na União do Vegetal: o Arco, o qual citei ao falar da ordem no ritual. Ele

está presente, de modo bem visível, no espaço ritual, no Salão do Vegetal, onde marca o

lugar sagrado por excelência, na cabeceira da mesa, onde fica o filtro de vidro que contém a

Hoasca, e onde se posta o Mestre Dirigente da sessão, que durante a sessão �está no lugar�

do Mestre Gabriel. Por ser verde, pintado com os dizeres: �Estrela Divina Universal UDV�

e com duas estrelas maiores e várias pequenas estrelas amarelas, o arco realmente chama

muito a atenção. E na parede atrás dele, há mais um elemento de suma importância no

espaço ritual: a foto de Mestre Gabriel124... sob um arco. Também a Conselheira Luísa usou

a imagem da mesma figura, como já citei acima: as duas colunas, do conhecimento e do

sentimento, sobre as quais repousa a trave do crer, formando um arco125. Observando-se as

pinturas de Ernesto Boccara e Spencer Pupo Nogueira, é freqüente deparar-se com algum

arco. O cartão comemorativo dos sete anos do Núcleo Alto das Cordilheiras apresenta a

foto de um arco126, da Casa de Preparo em construção, tendo ao fundo um céu colorido pela

aurora.

O arco é um símbolo de ligação entre o céu e a terra, como o arco-íris na narrativa

do Gênesis127. O próprio mariri, o cipó, pode ser visto como uma corda a ligar terra e céu.

Observa-se que na sessão da União do Vegetal há uma acentuada valorização da �ligação�:

existe o momento de �ligação da burracheira�, quando o Mestre Dirigente vai perguntando

a cada participante se este tem burracheira e luz, há também uma presença acentuada do

substantivo �ligação� e do verbo �ligar� no discurso dos participantes durante as sessões:

p. ex., fala-se da importância de se �estar ligado na Força Superior�.

Aqui me aproximo da visão de Ramírez de Jara e Pinzón Castaño que vêem o

xamanismo e especificamente o que utiliza os preparados de Banisteriopsis, como um

sistema aberto que medeia categorias indígenas e categorias coloniais, sistema que 124 Vide a reprodução da foto, na p. 49 V. 125 Entrevista da Conselheira Luísa, em Campinas, 20 de outubro de 1998. 126 Vide a reprodução do cartão, na p. 32 V. 127 Gênesis, capítulo 9, versículos 8-17.

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132

incorpora as noções católicas, assim como conhecimentos farmacêuticos ocidentais às

concepções religiosas indígenas e às suas técnicas terapêuticas. O próprio xamã é visto

como um �mediador entre o mundo sobrenatural e o mundo real� (RAMÍREZ DE JARA,

PINZÓN CASTAÑO, 1992. p. 287-303). E realmente, vivência com a Hoasca tem um

aspecto pronunciado de mediação. Esta pode ser melhor compreendida se observarmos o

arco não apenas como �elo de ligação�, mas também como �portal�.

O arco pode ser interpretado como imagem de um portal, através do qual o discípulo

é convidado a passar. Van Gennep já observara a

�identidade da passagem através das diversas situações sociais com a passagem

material [...]. É por isso que com tanta freqüência passar de uma idade, de uma classe,

etc. a outra exprime-se ritualmente pela passagem por baixo de um pórtico ou pela

�abertura de portas� �. (GENNEP, 1978, p. 159).

O próprio Mestre Gabriel é chamado de �porta, que aberta nos transporta�. Temos aqui a

noção de limiar, ao qual o discípulo se aproxima e, por vezes, chega a ultrapassar. Nos

relatos de mirações, são freqüentes as referências a portais, arcos, soleiras.

Isso me leva a inferir que a burracheira é uma experiência acentuadamente liminar.

Atinge-se um estado alterado de consciência no qual a pessoa muitas vezes se sente

presente em �outro lugar�, ou na soleira de outro lugar. Isso possibilita um contato com o

�aqui� e o �além�, o quotidiano e o estranho, o normal e o alterado. O próprio ritual

enfatiza claramente as fronteiras do �tempo de burracheira�, a entrada e a saída em um

tempo sagrado, qualitativamente distinto do dia a dia. Refletindo acerca da liminaridade

nos ritos de passagem, Victor Turner observa que esta

�implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto

deve experimentar o que significa estar em baixo. [...] para os indivíduos ou para os

grupos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange a experiência

sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e

diferenciação, igualdade e desigualdade. A passagem de uma situação mais baixa para

outra mais alta é feita através de um limbo de ausências de �status�. Em tal processo, os

opostos por assim dizer constituem-se uns aos outros e são mutuamente

indispensáveis�. (TURNER, 1974, p. 119-120).

Page 133: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

133

A burracheira é muitas vezes sentida como esse �limbo de ausências� que possibilita

a quem a vivencia um contato com o alto e com o baixo, com uma vivência de irmandade e

com uma estrutura hierarquizada, com a miração e com a peia. Luiz Eduardo Soares, ao

narrar uma peia com o chá, aponta nessa direção, de uma articulação paradoxal do alto e do

baixo:

�O coração parecia encher-se de alegria e os olhos de um brilho impróprio, numa exaltação

à fraternidade descoberta sob andrajos, entre espasmos e prefigurações da morte. [...] E há beleza

nesse quadro, meu amigo.� (SOARES, 1994, p. 230).

Para os discípulos, são mutuamente indispensáveis a miração e a peia. A humildade

propiciada pela última é fundamental para que o ultrapassamento oferecido pela primeira

não leve à hybris mas sim à �prática fiel�. E a burracheira é o �arco de ligação� desses

opostos.

Portanto, as experiências de estado alterado de consciência com o chá Hoasca são

ocasiões de se lidar com fronteiras, e o chá desempenha aí um papel de mediador. Seja a

mediação entre diferentes planos da realidade, seja a mediação entre universos culturais

distintos. Precisamente este aspecto me faz levantar a proposta de ver a experiência

religiosa da União do Vegetal como uma possibilidade de os participantes urbanos

articularem dimensões de suas vidas e dimensões da visão de mundo da UDV que

anteriormente eram experienciadas como cindidas, ou incomunicáveis. Os dilemas do

indivíduo urbano moderno, assim como as oposições com as quais o ser humano se

defronta: corpo-espírito, ditames do céu - ditames da terra, indivíduo-comunidade, auto-

conhecimento - conhecimento de Deus, são de certo modo �ligados�, postos em relação na

aguda e densa experiência da burracheira. Assim, o discípulo da União do Vegetal

encontra, em seu caminho de busca da evolução espiritual, a necessidade de transpor os

arcos que se apresentam na vida e na burracheira. Ao ter coragem de cruzar o terreno

desconhecido da liminaridade, ele dá passos na articulação do que anteriormente estava

cindido em sua vida, direcionando-se para a União. Ultrapassando os portais, ele tem

esperança de alcançar o Alto das Cordilheiras.

Page 134: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

134

3.3. O ENGLOBAMENTO NA FORÇA DA BURRACHEIRA

�Agora, eu, eu sei como tudo é: as coisas que acontecem,

é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar [...]

e com efeito tudo é grátis quando sucede�

João Guimarães Rosa, Grande Sertão - Veredas

A reflexão sobre os eixos do discurso dos discípulos da União do Vegetal acerca de

sua vivência simbólica levou-me a considerar a burracheira uma vivência acentuadamente

liminar, onde pode se dar uma experiência de mediação, através da qual o sujeito articula

elementos de sua vida e da visão de mundo da UDV que anteriormente eram

experienciados como cindidos. Abordando as concepções e representações dos sujeitos

concretos do Núcleo Alto das Cordilheiras em Campinas, foi possível perceber como certos

aspectos da vida desses participantes entram em interação com tais idéias religiosas e são

com elas articulados. Agora, inquiro a respeito da natureza dessa articulação. Poderia ela

ser considerada um sincretismo? Ou este conceito não dá conta dessa realidade?

A presença na doutrina da União do Vegetal de traços que nitidamente estão

presentes em outras tradições religiosas sugere a idéia de sincretismo. Como já indiquei,

estão presentes na UDV elementos do catolicismo popular, do espiritismo kardecista, do

xamanismo amazônico e das religiões afro-brasileiras. Sabemos que o conceito de

sincretismo é problemático, e pode ser compreendido de diversas maneiras, algumas delas

trazendo em seu bojo uma certa carga valorativa, expressando uma depreciação do

sincrético em relação ao �puro�, ou, inversamente, exaltando o �sincretismo brasileiro�

como sinal de convivência pacífica multicultural.

No que toca à experiência dos discípulos da UDV, faz-se necessário um

discernimento, dentre a diversidade de vivências. Algumas certamente podem ser bem

compreendidas sob o prisma da noção de sincretismo. Pode-se perceber no discurso de

alguns participantes experiências de sobreposição de elementos heteróclitos que muito se

aproximam das trajetórias contemporâneas daqueles que se reconhecem no Movimento

Nova Era, no qual, segundo Leila Amaral Luz, se entrecruzam

Page 135: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

135

�os herdeiros da contracultura com suas propostas de comunidades alternativas; o

discurso do auto-desenvolvimento na base das propostas terapêuticas atraídas por

experiências místicas e filosofias holistas; os curiosos do oculto, informados pelos

movimentos esotéricos do século XIX; o discurso ecológico de sacralização da

natureza e do encontro cósmico do sujeito com sua essência e a reinterpretação yuppie

dessa espiritualidade centrada na perfeição interior�. (LUZ, 1996, p. 57).

No entanto, em uma série de outras narrativas de discípulos da UDV pude identificar

experiências acerca das quais a categoria de sincretismo é insuficiente para sua adequada

compreensão. Exporei a seguir um relato que por sua densidade, me parece paradigmático.

É o relato de Renato, na faixa dos 40 anos, do Quadro de Sócios, mas que já pertenceu ao

Quadro de Mestres, acerca de uma burracheira que vivenciou em um momento crítico de

sua vida.

�Saber reverenciar a presença de Deus, ter a gratidão por estar vivo, faz com

que eu me sinta feliz. Eu já passei por coisas muito difíceis em minha vida e senti essa

presença do Divino em momentos cruciais. Pra algumas pessoas não dá nem pra

explicar. Eu tive uma vez uma situação, quando a mãe de meus filhos tava grávida do

primeiro filho, que nós perdemos, ela teve uma situação de eclampsia no início do 6o

mês. E foi um rebu, por que eu era do Corpo do Conselho e ela do Corpo Instrutivo, e a

gente era um casal meio modelo, todo mundo achava uma gracinha, tudo bonitinho,

tudo nos lugares, organizadinho, obedientezinho, aquela coisa assim bem padrão. E

tava tudo muito bem, todo mundo muito feliz com o nosso casamento, a nossa

gestação. E aí, de repente, logo depois de 22 de julho ela começou a passar muito mal,

uma coisa muito difícil e ela não desencarnou por causa do vegetal, com certeza.�

�Foi uma situação muito difícil, foi marcado que ela tinha que fazer uma

cesárea, tinha que fazer um aborto porque o único jeito de salvar a mãe é tirar a criança

e a placenta. E eu bebi o vegetal, tava na sala de espera da maternidade 9 de Julho aqui

em São Paulo, devia ter umas 40 pessoas da União do Vegetal lá comigo, e eu bebi o

vegetal, e fiquei sentado, com uma burracheira muito forte e ela lá dentro fazendo o

aborto, e a chance da criança nascer viva era mínima, era um bebê no início do sexto

mês, não tinha a menor condição. Mas o Mestre Alberto [que é médico] deu pra ela

uma tampa de vegetal [uma quantidade mínima, correspondente ao que caberia em

uma tampa de garrafa], antes da cesárea, dentro da UTI, ela bebeu, tinha uma irmã

nossa que era enfermeira-chefe na maternidade, e eles ficaram com ela durante a

Page 136: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

136

cesárea, ele de um lado e ela do outro, e o médico, maravilhoso, era um espírita, uma

pessoa muito bonita, ele fez a cesárea. A criança nasceu viva, por incrível que possa

parecer viveu 13 horas, e a Vera além de não ter morrido não ficou com seqüela

nenhuma, ela não teve convulsão, não teve lesão renal, neurológica ou hepática.�

�E durante a cesárea eu tava assim numa situação muito forte e teve um

momento que... Na casa de minha avó ela tinha um quadro na sala com o Sagrado

Coração de Jesus, um quadro grande. E na burracheira se apresentou aquela imagem

daquele quadro e eu vi nitidamente o quadro, o rosto dele, as duas mãos saindo dele,

uma dá uma recebe, e ele tem no centro do peito uma luz, que clareia assim por fora, e

na frente dessa luz tem um coração, esse coração com uma coroa de espinhos passada

em volta e umas gotinhas de sangue pingando, em cima do coração tem uma coroa com

uma chama, uma coroazinha assim com uma chama, e em cima da chama tem uma

cruz. E aquela imagem veio na minha frente na miração, claríssima, como se eu tivesse

em frente ao quadro e eu tive a compreensão de que o Criador é o mesmo Salvador. O

Criador cria a dor, pra quê? Pra gente se abrir pra ele e aí ele traz o amor e a luz e salva

a dor. Foi uma coisa assim... sabe? É uma dádiva assim, um conhecimento que ele

trouxe pra mim, que é uma coisa assim inestimável, entendeu? Uma coisa maravilhosa,

por que eu via aquela imagem e entendia, tipo assim: �esse sofrimento que você tá

passando tá te abrindo caminho e eu tô entrando em você�; então é um bálsamo aquela

luz na burracheira, eu tava em carne viva, mas eu tava em paz, tava tudo bem, eu não

tava revoltado, tava tudo certo. E quando a situação se apresentou, o que que eu ia

fazer? Dar um soco no ar, no nariz de Deus, dizer que eu não queria aquilo? Eu não

tinha alternativa. Eu baixei minha cabeça e falei �sim, Senhor, seja feita a sua

vontade�, que que eu podia falar? Então, por essa aceitação ele me deu conhecimento

na carne, na pele, no sangue, na víscera, entendeu? Você não tem idéia o que é perder

um filho, você não tem idéia. Eu tenho dois filhos maravilhosos [...], mas aquela filha

que eu perdi é insubstituível, é um pedaço de mim que não tem, entendeu? Eu vi, era

minha filha, cara! Sabe, eu vi a perfeição de Deus ali, a maravilha que é a vida, eu

dentro da UTI, vendo o bebê ser cuidado, como se fosse o bebê mais importante do

universo, com todas as chances, e não tinha nenhuma e a minha mulher na UTI de

adulto, que é o pólo oposto é a escória. Quer dizer, eu tive a oportunidade de transitar

num palco de dor, de miséria da condição humana, em duas vertentes, ao mesmo

tempo, absolutamente em paz com o que estava acontecendo, confortando as pessoas,

perfeitamente equilibrado. Eu fiquei dez dias, eu me sentia como se eu fosse um robô

teleguiado pela Força Superior: eu não dei um pio, eu segurei barra de família, de

Page 137: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

137

amigo, de mestre, me segurei, segurei a situação dela, eu vivi uma coisa assim... Isso

pra mim é religião, você entendeu? Religião não é ir lá beber o vegetal, ir lá na missa,

de vez em quando, no culto. Acho que viver a presença de Deus é na vida, o tempo

todo. Eu tive essa graça já diversas vezes, em momentos de dor como esse e em

momentos de alegria também.�

Esta narrativa forte, que mostra a intensidade de determinadas vivências com o chá

Hoasca e o entrelaçamento dessas vivências com aspectos mais amplos da vida de seu ator,

é aqui exposta para a compreensão do que chamarei de englobamento na força da

burracheira. Observo que a antropologia contemporânea tem utilizado o conceito de

englobamento em contextos vários e distintos128, mas aqui utilizarei este termo visando uma

aplicação bem específica, por isso, o determinei: na força da burracheira.

O símbolo do Sagrado Coração de Jesus não pertence ao conjunto simbólico da

doutrina da UDV. É um símbolo do catolicismo, com uma delimitação histórica bem clara e

uma presença na iconografia católica brasileira que se deve sobretudo à atuação do

Apostolado da Oração, movimento introduzido e difundido no país desde o século passado

pelos jesuítas. Pois bem, a avó de Renato, senhora mineira, fervorosamente católica, tinha

em sua casa um quadro do Sagrado Coração de Jesus, o qual era observado por Renato

desde a sua infância. Antes de conhecer a UDV, ele já havia se distanciado do catolicismo e

participado do espiritismo kardecista e do candomblé. Certamente, o Sagrado Coração era

apenas uma longínqua lembrança de seus tempos de criança e da fé de sua avó, sem um

significado especial em seu horizonte religioso de homem adulto. No entanto, certo dia,

Renato vive uma intensa experiência existencial, enquanto homem, esposo e pai. E tal

vivência humana, por si só extremamente significativa, é revestida de um sentido, uma

densidade e um colorido especiais por acontecer durante um tempo de burracheira. Tendo

bebido o vegetal no momento em que aguarda na sala de espera do hospital o resultado da

cirurgia a que é submetida sua esposa, Renato se defronta com a imagem do Sagrado

Coração que emerge de sua memória em uma nítida e reveladora miração. Como vimos, a

categoria da memória é sobremaneira valorizada na UDV, percebendo-se o vegetal como

veículo para a recordação. Assim, nesse momento o símbolo do Sagrado Coração é

englobado no conjunto de sua cosmovisão religiosa hoasqueira.

128 Cf., p. ex., o conceito de encompassment em Marilyn Strathern (STRATHERN, 1988, P. 259-260), e o conceito de englobamento do contrário em Louis Dumont. (DUMONT, 1997, p. 369-375).

Page 138: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

138

O englobamento vivenciado por Renato é bem distinto de uma bricolage de um

hipotético sujeito que, em seu individualismo moderno, escolhe a seu bel prazer entre as

mercadorias expostas nas prateleiras dos supermercados religiosos, construindo a sua

própria do-it-yourself-religion. Não. Para Renato, esse novo elemento que é incorporado ao

seu universo de convicções, iluminando-o e expandindo o seu raio de significados,

apresenta-se como �uma dádiva�, �uma coisa inestimável�, �uma coisa maravilhosa�, �um

bálsamo�, �luz�, �presença de Deus�, enfim, �graça�. Portanto, o elemento de

especificidade nesse englobamento, que identifico como próprio da experiência dos

discípulos da UDV, é que ele se dá na força da burracheira. Esta se mostra como um tufão

que, na força de seu movimento centrípeto, aproxima-se de uma província simbólica

distinta e a engloba em seu redemoinho. Tal imagem que utilizo busca expressar a força do

dinamismo autógeno dessa incorporação e, neste caso, até mesmo a velocidade com que ela

se dá, em meio à intensidade do estado alterado de consciência suscitado pela ingestão do

chá hoasca. E a ênfase que o relato atribui à luz, presente na imagem do Sagrado Coração e

na burracheira, indica que esse englobamento tem como princípio unificador a própria

cosmovisão da UDV, na qual a luz desempenha um papel fundamental.

Entretanto, a própria singularidade do evento sucedido na vida de Renato poderia

ser aduzida como argumento para a afirmação de sua inutilidade para uma compreensão

maior da experiência dos discípulos da UDV. Não seria a experiência de Renato de uma

intensidade existencial sobremaneira acentuada, o que a distinguiria das vivências da

maioria dos discípulos da UDV, que se aproximariam mais da bricolage tão presente no

panorama pós-moderno da religiosidade contemporânea? Certamente, o que Renato

vivenciou tem uma densidade especial e, como afirmei acima, podem-se observar entre os

participantes da União do Vegetal experiências bem mais superficiais, do ponto de vista

existencial. Porém, o que postulo aqui é que a miração do Sagrado Coração de Jesus é

emblemática de algo que se dá de modo bem mais amplo do que apenas na vida de Renato.

Isto porque a intensidade é uma das características recorrentes da burracheira.

Determinadas experiências extremamente fortes e de relevante significado para toda a

trajetória do sujeito que as vivenciou foram freqüentemente observadas e fartamente

documentadas em meu trabalho de campo, ao longo das cinqüenta entrevistas que realizei.

Assim, considero que este englobamento na força da burracheira pode ser um conceito

Page 139: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

139

produtivo para a compreensão da démarche de apropriações de conteúdos religiosos

empreendida pelos discípulos da UDV.

Um outro passo que se pode dar é perceber esse englobamento na força da

burracheira na própria trajetória do fundador da União do Vegetal, José Gabriel da Costa.

Conforme podemos observar na sua história de vida, delineada acima a partir dos relatos de

familiares, mestres da origem e discípulos da UDV, Mestre Gabriel participou de diversas

configurações culturais brasileiras bem específicas: a começar por sua infância no interior

da Bahia, num contexto permeado pelo catolicismo popular. Em seguida, participa em

Salvador do ambiente próprio da capoeiragem, além de freqüentar terreiros de candomblé e

sessões espíritas kardecistas. Indo para o Norte do Brasil, integra as levas humanas do

�Exército da Borracha�. Em Porto Velho, participa como ogã de um terreiro de tradição

mina e no seringal atua em cultos de pajelança cabocla amazônica. Quando, finalmente, em

1959, bebe pela primeira vez o chá hoasca, José Gabriel parece ter tido logo uma

experiência muito intensa. Assim, segundo seu filho Jair, naquela primeira sessão ele se

dirige ao vegetalista que lhe deu o vegetal e lhe diz: �Chico Lourenço, a pessoa não é

conhecedora de tudo. Você me falou que foi no fim dos encantos. As coisas são

infinitas�129. Antes da segunda sessão, ele teria dito que �a gente vai beber o chá do Chico

Lourenço e ninguém vai sentir nada�, e assim teria acontecido. Na terceira vez, seu filho

Jair, então com 9 anos de idade, segundo o relato dele mesmo, teve uma burracheira muito

forte, começou a gritar e foi chamado por seu pai, que lhe disse: �Sente�. E Jair disse ao

pai: �O papai é um mestre, e é um rei, né, feito por Deus�. Ainda segundo o hoje Mestre

Jair, depois dessa sessão é José Gabriel que leva para sua casa mariri e chacrona e tem esse

diálogo com sua esposa: �Pequenina, eu sou Mestre�. E ela responde: �Mas Gabriel, pelo

amor de Deus, o Chico Lourenço é mestre há não sei quanto tempo, nós quase ficamos todo

mundo doido e tu diz que é mestre?� E ele: �Sou Mestre, Pequenina, e vou preparar o

mariri.� A intensidade da experiência de José Gabriel, que logo se reconhece como portador

de uma missão como �Mestre� no Vegetal, e a rapidez com que essa vivência assimila a sua

trajetória religiosa anterior, submetendo-a a uma nova interpretação - quando ele passa a

atribuir a si mesmo o que antes era ação do �caboclo Sultão das Matas� - são dois aspectos

que corroboram a interpretação desse processo como englobamento na força da

burracheira.

129 Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Jornal Alto Falante, Brasília, ago-out 1995, p. 8.

Page 140: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

140

No universo simbólico da UDV podem-se detectar muitos traços das configurações

culturais com as quais José Gabriel havia entrado em contato. Assim, por exemplo, segundo

o relato de uma conselheira que fez uma pesquisa no sertão baiano, há benditos populares a

Santana extremamente semelhantes à Chamada de Senhora Santana, da UDV. As

freqüentes invocações de Jesus e da Virgem da Conceição, em inúmeras chamadas, também

expressam essa marca profunda do catolicismo popular no universo simbólico de Mestre

Gabriel. Do mesmo modo, concepções indígenas, que permearam o xamanismo caboclo

amazônico, podem ser identificadas na cosmovisão da União do Vegetal, como a crença de

que certas plantas possuem um espírito130. Também elementos relacionados às

religiosidades afro-brasileiras podem ser encontrados em chamadas e histórias da UDV.

Deste modo, pode-se perceber o englobamento na força da burracheira como algo

constitutivo da UDV, na medida em que caracteriza a experiência fundante de José Gabriel

da Costa. Tal experiência pode ser replicada, de modo sempre novo e original, pelos

discípulos, que a partir de suas trajetórias singulares individuais e da especificidade de seu

contato com a burracheira, vivem um movimento semelhante, constituindo diferentes

configurações, as quais no entanto encontram um eixo interpretativo articulador na vivência

de Mestre Gabriel.

Por fim, cumpre mostrar que, na verdade, ainda que tenha a sua singularidade, o

englobamento na força da burracheira tem uma similaridade com o movimento que se

pode observar na experiência mística. O que uma perspectiva mais objetivante poderia

ver como compreensões religiosas distintas e até mesmo conflitantes pode subitamente

passar a ser contemplado como uma nova unidade, que não dilui as diferenças, mas as

integra em algo novo. Algo talvez semelhante ao que Otávio Velho indicou presente na

iluminação zen e na relação dialógica buberiana, ou na superação da oposição entre Apolo e

Dionísio �em favor de um novo Dionísio, que engloba Apolo� (VELHO, 1995, p. 59). Esse

movimento pode ser compreendido, no eixo da tradição hermenêutica, como as idas e

vindas da pré-compreensão e da compreensão, constituindo o círculo da interpretação. Essa

�decifragem da vida no espelho do texto�, que Ricoeur entende como �leitura do sentido

oculto no texto do sentido aparente� (RICOEUR, 1978, p. 23) pode realmente ser

130 Cf. as palavras do xamã peruano Pablo Amaringo, que utilizava a ayahuasca: �Every tree, every plant, has a spirit. People may say that a plant has no mind. I tell them that a plant is alive and conscious. A plant may not talk, but there is a spirit in it that is conscious, that sees everything, which is the soul of the plant, its essence, what makes it alive.� (LUNA, AMARINGO, 1991, p. 33).

Page 141: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

141

emblematizada pela releitura que Renato faz do quadro do Sagrado Coração de Jesus, na

força da burracheira.

Page 142: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

142

CONCLUSÃO: O ITINERÁRIO DA DISSERTAÇÃO

O objetivo desta dissertação, de apresentar a estrutura matricial da União do

Vegetal, através da etnografia do Núcleo Alto das Cordilheiras, concretiza-se segundo um

esquema triádico: o modelo organizacional da UDV, a narrativa histórica de sua

constituição e a experiência simbólica de seus participantes.

O capítulo Geometria da Estrela utiliza uma perspectiva sincrônica para mapear a

organização institucional do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Inicio

abordando o nível local, delineando as linhas básicas de um núcleo da UDV, a sua

organização e hierarquia dos seus sócios. Em seguida, passo a um nível mais amplo,

descrevendo a estrutura administrativa da Sede Geral e de seus departamentos. Na medida

em que o reconhecimento jurídico da legitimidade do uso ritual da Hoasca é considerado de

suma importância pelo CEBUDV, descrevi brevemente o processo de legalização do uso do

chá no Brasil, indicando também os seus efeitos na fisiologia humana e a possibilidade de

encará-lo como recurso genético da biodiversidade amazônica. Na seqüência, apresentei os

dados do recenseamento do CEBUDV, que possibilitam que se avalie a dimensão dessa

instituição religiosa e a sua distribuição no território brasileiro. O passo seguinte foi

apresentar o Núcleo Alto das Cordilheiras, em Campinas, expondo o trabalho de campo que

realizei, a organização do espaço do núcleo, a estrutura de uma sessão de escala e a

dinâmica da interação dos discípulos. O perfil destes é descrito segundo uma metodologia

quantitativa, buscando oferecer ao leitor alguma informação acerca da inserção sócio-

econômico-cultural dos membros do núcleo.

O capítulo A Estrela do Norte, por sua vez, tem uma perspectiva diacrônica.

Segundo um enfoque êmico, a partir das narrativas dos participantes, apresento uma

narrativa histórica da União do Vegetal. Primeiramente, traçando a trajetória de seu

fundador, José Gabriel da Costa, e apontando para a sua participação numa ampla

seqüência de configurações culturais da sociedade brasileira. Em seguida, com as

recordações dos �mestres da origem�, busquei reconstruir os inícios da UDV na cidade de

Porto Velho. Por último, apresento esquematicamente, com o auxílio de narrativas de

discípulos paulistas, a chegada da UDV em São Paulo, a formação do Núcleo Samaúma e a

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143

constituição do ramo de Campinas, dele proveniente: o Núcleo Lupunamanta e,

posteriormente, o Núcleo Alto das Cordilheiras.

No capítulo A Estrela iluminando, adoto, por assim dizer, uma perspectiva de

profundidade. O acesso à experiência simbólica dos discípulos urbanos da União do

Vegetal é propiciado pela exposição de algumas histórias de vida de membros do Alto das

Cordilheiras. As citações extensas do discurso deles visam possibilitar ao leitor uma

percepção de como se apresenta para eles a experiência com o chá Hoasca e quais as suas

repercussões nas vidas desses indivíduos. Na seqüência, centro o foco em algumas

categorias fundamentais do discurso dos discípulos, com o objetivo de captar a lógica da

experiência simbólica vivida por eles, que se apresenta como possibilidade de mediação

entre dimensões anteriormente cindidas. Este tópico, Alcançar o Alto das Cordilheiras

constitui propriamente o coração do argumento desta dissertação, enquanto que o seguinte o

aprofunda, propondo um novo instrumento interpretativo para a compreensão da

originalidade da experiência com o Vegetal: o conceito de englobamento na força da

burracheira.

Estes três aspectos matriciais - a ordem institucional da UDV (Geometria da

Estrela), a representação de sua origem e disseminação histórica no mapa do Brasil (A

Estrela do Norte) e a experiência de englobamento propiciada pela Hoasca (A Estrela

iluminando) - constituem a condição de possibilidade sobre a qual são inscritos processos

simbólicos, mitopoéticos e hiperreais mais complexos. O propósito deste trabalho não é,

porém, este campo complexo. O propósito é uma �abertura do campo�, a compreensão das

formações seminais que denomino a matriz da União do Vegetal.

Page 144: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

144

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Page 152: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

152

JORNAIS 1. Alto Falante, Jornal do Departamento de Memória e Documentação da UDV.

Brasília a) Jun 89 - p. 3-6 - Mestre Monteiro, 23 anos dedicados à causa da União b) Nov / Dez 90 - p. 4-6 - Mestre Adamir, um pioneiro do Vegetal c) Jul 91 - p. 2-3 - UDV festeja seus 30 anos d) Idem - p. 4-7 - A caminhada de um poeta na UDV - José Luiz de Oliveira e) Idem - p. 8-11 - Entrevista M. Braga f) Idem - p. 15 - Aspectos farmacológicos do Chá. g) Mar / Jul 92 - CONFEN libera chá por unanimidade. b) Dez 92 / Jan 93 - No relato dos pioneiros, o perfil do Mestre. c) Jan / Jul 93 - p. 10-13 - Entrevista com M. Nonato. d) Ago 93 / Fev 94 - p. 8-10 - Entrevista com M. Cícero. e) Mar / Abr 94 - p. 6-9 - Entrevista com M. Sidon. f) Mai / Jun / Jul 94 - p. 8-11 - Entrevista com M. Pernambuco. g) Ago / Set / Out 94 - p. 6-9 - Entrevista com M. Roberto Souto. h) Nov / Dez 94 / Jan 95 - p. 6-9 - Entrevista com M. Manoel Nogueira. i) Abr / Jun 95 - p. 8-11 - Entrevista com Cons. Paixão. j) Ago / Set / Out 95 - p. 6-9 - Entrevista com M. Pequenina e M. Jair. l) Nov / Dez 95 / Jan 96 - p. 4-5 - Entrevista com M. Monteiro. m) Fev / Set 96 - p. 8-11 - Entrevista com M. Florêncio. 2. O Alto Madeira. Porto Velho. (Consultado nos arquivos do Departamento de

Memória e Documentação do CEBUDV, Brasília.). a) 6 de outubro de 1967. Artigo: Convicção do Mestre. b) Julho de 1971. Artigo: Velando enquanto dorme.

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153

ANEXO 1

DISSIDÊNCIAS DA UNIÃO DO VEGETAL 1. Centro Espírita Beneficente Ordem Maçônica Rosaluz

Dirigente: Augusto �Queixada� Sede: Porto Velho, RO Fundado na década de 70

2. Centro Espiritual Beneficente União do Vegetal

Dirigente: Joaquim José de Andrade Neto Sede: Campinas, SP. Presente: Mato Grosso (fazenda com plantio de mariri) Fundado em 22 de julho de 1981

3. Centro Espírita Beneficente Ordem do Templo Universal de Salomão

Dirigente: Altenísio José de Albuquerque Sede: Porto Velho, RO Presente em: Porto Velho, Manaus, Rio Branco, Tarauacá, São Luís, Fortaleza, Aracaju, Recife, João Pessoa, Belo Horizonte, Brasília, São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. Aproximadamente 500 participantes. Fundado em 25 de julho de 1991

4. Associação Espírita Luz do Vegetal

Dirigente: Elzinha Piacentini Sede: Araçariguama SP, 40 km de São Paulo, SP Fundada 24 de dezembro de 1992

5. Dirigente: Raimundo Ferreira (dissidência do Augusto) Presente em: Uberlândia, MG e Jundiaí, SP

6. Dirigente: Asplinger Presente em: Manaus, AM

7. Associação Beneficente Luz de Salomão

Dirigente: Wilson Gonzaga Presente em: São Paulo, SP

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154

ANEXO 2

QUESTIONÁRIO 1. Dados Pessoais Nome: Idade: anos Data de nascimento: / /

Local de nascimento: Cidade: Estado: Local atual de moradia: Cidade: Estado:

Estado Civil: ( ) solteiro/a ( ) casado/a ( ) viúvo/a ( ) divorciado/a ( ) desquitado/a ( ) separado/a Escolaridade: ( ) primário ( ) secundário ( ) superior incompleto - Área: ( ) superior completo - Área: ( ) mestrado - Área: ( ) doutorado - Área: Profissão: 1. 2. Filiado a algum partido político? ( ) Sim Qual? ( ) Simpatizante Qual? ( ) Não 2. Dados Sócio-Econômicos: Qual é a faixa de sua renda familiar mensal? ( ) 0 a 5 salários mínimos ( ) 5 a 10 salários mínimos ( ) 10 a 20 salários mínimos ( ) 20 a 30 salários mínimos ( ) mais de 30 salários mínimos

Page 155: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

155

Em qual classe social você se considera incluído(a)? ( ) trabalhadora ( ) média inferior ( ) média média ( ) média alta ( ) alta Você possui: ( ) casa própria ( ) telefone ( ) automóvel ( ) computador ( ) conexão com a Internet ( ) casa de praia ou campo No momento você tem emprego? ( ) Sim ( ) Não 3. Dados Religiosos: Religiões anteriores: 1. 2. 3. 4. 5. Religiões dos Pais: Mãe: Pai: Tempo de participação na UDV: anos Grau na UDV: ( ) Não-sócio ( ) Sócio ( ) Corpo Instrutivo ( ) Corpo do Conselho ( ) Quadro de Mestres Lugares que já ocupou na UDV: 1. 2. 3. 4. 5.

Page 156: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

156

ENTREVISTA OBSERVAÇÕES ÉTICAS: a) Consentimento livre e esclarecido. b) Liberdade de responder ou não determinadas questões. c) Utilizarei as entrevistas em minha reflexão acerca dos discípulos da União do Vegetal na

realidade urbana brasileira, podendo citar trechos do material recolhido, sempre mudando os nomes das pessoas, para salvaguardar a sua privacidade.

ABORDAGEM DIACRÔNICA: 1. Conte a trajetória de sua vida, especialmente apontando para a sua busca espiritual. 2. De que religiões você chegou a participar? [Inserção na contra-cultura, nos movimentos

de oposição à ditadura militar...] Você chegou a conhecer ou frequentar outras religiões que fazem uso do chá? Quais? Por quanto tempo?

3. Você antes fazia uso de drogas ou álcool? Com frequência? Isso tem a ver com o uso do

chá hoasca? 4. Conte como você chegou a conhecer o chá hoasca e a União do Vegetal. 5. Você já conhecia pessoas da UDV de algum outro lugar? 6. Houve alguma transformação em sua vida naquele momento? 7. Que motivações levaram você a permanecer na União do Vegetal? 8. Quais as maiores dificuldades que você encontrou para seguir na União do Vegetal? ABORDAGEM SINCRÔNICA: 9. No presente, há alguma repercussão da sua vivência religiosa na União do Vegetal em

sua vida prática? 10. Como se articula a sua vida familiar e a participação na União do Vegetal? 11. Sua vivência na UDV chega a influenciar sua vida profissional? E esta, por sua vez,

influencia a primeira? 12. E como se relaciona sua participação na UDV e o seu lazer? Você sente que há uma

dimensão lúdica em sua experiência com o chá? 13. A sua vivência na UDV de algum modo repercute na sua relação com a sociedade no

seu sentido mais amplo: a política, o meio-ambiente...? 14. Como você descreve ou classifica o chá hoasca?

Page 157: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

157

15. Como é para você participar de uma religião que usa um chá de propriedades psicoativas? Como você se sente diante das pessoas que não usam o chá?

16. Como é a sua relação com os demais sócios da UDV, nos dias de sessão e nos outros

dias? 17. Como você vê a participação das mulheres na UDV? 18. Como você observa o exercício do poder e a estrutura institucional do Centro Espírita

Beneficente União do Vegetal? 19. Você participa dos trabalhos do núcleo? De que modo? 20. Que dificuldades você enfrenta hoje para ser um discípulo da União do Vegetal? 21. Como é para você ser um discípulo urbano dessa religião nascida entre caboclos, na

floresta amazônica? ABORDAGEM PROFUNDA: 22. O que você sente que é a burracheira? 23. Quais os sentimentos mais frequentemente experimentados por você no tempo de

burracheira? 24. Conte algumas vivências significativas que você teve sob o efeito do Vegetal.

[Experiências positivas e negativas]. 25. Alguns chamam a União do Vegetal de a religião do sentir. Você considera esta uma

expressão apropriada? 26. O que há de específico no sentir dos participantes da UDV - durante as sessões e fora

delas? 27. Como se relacionam em sua vivência religiosa estes três verbos: SENTIR - CRER -

CONHECER? 28. Quem é, para você, José Gabriel da Costa? 29. Quem é, para você, Jesus? 30. Quem é, para você, Salomão?

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158

ANEXO 3 PRESENÇA DO CEBUDV NO BRASIL

REGIÃO NORTE

CIDADE POPULAÇÃO DIMENSÃO UNIDADES UDV

ASSOCIADOS

Manaus-AM 1.157.357 metrópole 5 680 Envira-AM ***** pequena 1 39 Belém-PA 1.144.312 metrópole 1 113 Macapá-AP 220.962 média 1 54 Boa Vista-RR 165.518 média 1 258 Porto Velho-RO 294.227 média 4 474 Guajará-Mirim-RO 36.542 pequena 1 54 Jaru-RO 48.141 pequena 1 37 Ji-Paraná-RO 95.356 pequena 1 106 Ariquemes-RO 68.503 pequena 1 109 Machadinho D'Oeste-RO

28.949 pequena 1 70

Presidente Médici-RO 28.490 pequena 1 62 Ouro Preto D'Oeste-RO

52.261 pequena 1 46

Cacoal-RO 72.922 pequena 1 44 Alta Floresta D'Oeste-RO

33.471 pequena 1 37

Campo Novo-RO 15.434 pequena 1 54 Rio Branco-AC 228.857 média 2 169 Plácido de Castro-AC 12.101 pequena 1 44 Cruzeiro do Sul-AC 56.705 pequena 1 161 Feijó-AC 22.142 pequena 1 60 Tarauacá-AC 23.715 pequena 1 53 Vila Extrema-AC ***** pequena 1 9 TOTAL 2.733

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159

REGIÃO NORDESTE

CIDADE POPULAÇÃO DIMENSÃO UNIDADES UDV

ASSOCIADOS

Recife-PE 1.346.045 metrópole 2 142 Caruaru-PE 231.989 média 1 126 Maceió-AL 723.142 média 1 82 Campina Grande-PB 344.730 média 1 38 Salvador-BA 2.211.539 metrópole 4 416 Ilhéus-BA 242.445 média 1 129 Fortaleza-CE 1.965.513 metrópole 2 271 Sobral-CE 138.565 média 1 94 TOTAL 1.298

REGIÃO SUDESTE

CIDADE POPULAÇÃO

DIMENSÃO UNIDADES UDV

ASSOCIADOS

São Paulo-SP 9.839.066 metrópole 3 358 Campinas-SP 908.906 metrópole 2 188 Mogi das Cruzes 312.685 média 1 103 Rio de Janeiro-RJ 5.551.538 metrópole 2 221 Petrópolis-RJ 269.669 média 1 73 Niterói-RJ 450.364 média 1 42 Guarapari-ES 73.730 pequena 1 92 Caldas-MG 13.047 pequena 1 73 Belo Horizonte-MG 2.091.371 metrópole 1 165 Lagoa da Prata-MG 34.431 pequena 1 87 Governador Valadares-MG

231.242 média 1 154

Ubá-MG 77.159 pequena 1 62 Divinópolis-MG 171.565 média 1 53 Uberlândia-MG 438.986 média 1 46 TOTAL 1.717

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REGIÃO CENTRO-OESTE

CIDADE POPULAÇÃO DIMENSÃO

UNIDADES UDV

ASSOCIADOS

Brasília-DF (c/ Sede G.)

1.921.946 metrópole 4 408

Goiânia-DF 1.003.477 metrópole 2 185 Campo Grande-MT 600.069 média 1 140

Cuiabá-MT 433.355 média 1 212 Barra do Garças-MT 47.133 pequena 1 34

TOTAL 979

REGIÃO SUL

CIDADE POPULAÇÃO

DIMENSÃO UNIDADES UDV

ASSOCIADOS

Porto Alegre-RS 1.288.879 Metrópole 1 73 Florianópolis-SC 271.281 média 1 81 Joaçaba-SC 28.346 Pequena 1 55 Criciúma-SC 159.101 média 1 15 Curitiba-PR 1.476.253 Metrópole 1 129 TOTAL 353

Page 161: A Estrela do Norte Iluminando até o Sul

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ANEXO 4

UNIDADES DA UDV VISITADAS: ESTADO DE SÃO PAULO: 1. Campinas - Núcleo Alto das Cordilheiras 2. Campinas - Núcleo Lupunamanta 3. São Paulo - Núcleo Samaúma 4. São Paulo - Núcleo São João Batista 5. Mogi das Cruzes - Núcleo Rei Davi ESTADO DE MINAS GERAIS: 6. Belo Horizonte - Núcleo Rei Salomão 7. Lagoa da Prata - Núcleo Lagoa da Prata 8. Governador Valadares - Núcleo Luz Divina 9. Ubá - Núcleo Recanto das Flores ESTADO DO RIO DE JANEIRO: 10. Rio de Janeiro - Núcleo Pupuramanta 11. Rio de Janeiro - Núcleo Janaína 12. Niterói - Distribuição Autorizada de Niterói 13. Petrópolis - Núcleo Camalango DISTRITO FEDERAL: 14. Brasília - Sede Geral 15. Brasília - Núcleo Gaspar ESTADO DO PARANÁ: 16. Curitiba - Núcleo São Cosmo e São Damião

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ANEXO 5

Fotocópia de carta de autorização do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal

a Sérgio Góes Telles Brissac, para a realização da pesquisa.

Assinam: Edison Saraiva Neves � Presidente da Diretoria Geral

Raimundo Nonato Marques � Mestre Geral Representante

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ANEXO 6

FONTES ORAIS a) DIRETAS131

1. Depoimento do Cons. Carmiro Gabriel da Costa, filho de José Gabriel da Costa. Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1995.

2. Depoimento de M. Antônio da Costa, irmão de José Gabriel da Costa. Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1995.

3. Entrevista de M. Raimundo Carneiro Braga. Rio de Janeiro, agosto de 1998.

4. Entrevista de Ivan Marques. Campinas, setembro de 1998.

5. Entrevista de M. José Luiz de Oliveira. Rio de Janeiro, 25 de abril de 1999.

6. Entrevista de M. José Luiz de Oliveira. Brasília, 26 de julho de 1999. b) PESQUISADAS EM ARQUIVO

7. Entrevista de Alfredo Gabriel da Costa, irmão de José Gabriel da Costa, a Edson Lodi. Na Estância Centro-Oeste, 17 de abril de 1987. In: Memórias, Volume I. Centro de Memória e Documentação do CEBUDV.

8. Depoimento de Hilton Pereira de Pinho, s.d.

9. Entrevista de M. José Luiz de Oliveira a Edson Lodi. Dezembro de 1990. In: Memórias, Volume II.

10. Entrevista de M. Raimundo Pereira da Paixão a Edson Lodi. São Paulo, junho de 1989. In: Memórias, Volume II.

11. Entrevista de Raimundo Pereira da Paixão a Lúcia Gentil. Campinas, 3 de junho de 1993.

12. Entrevista de M. Raimundo Carneiro Braga a Edson Lodi, Ruy Fabiano e João Bosco. Brasília, junho de 1991. In: Memórias, Volume II.

13. Rubens Rodrigues. Explanação na sessão inaugural do núcleo de Manaus, 1971. In: Memórias, Volume I.

131 Além das 50 entrevistas de discípulos do Núcleo Alto das Cordilheiras, realizadas em Campinas e São Paulo, no período de agosto a novembro de 1998.