A estrutura da reportagem em quadrinhos e a prática jornalística

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Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Curitiba, PR 4 a 7 de setembro de 2009

A estrutura da reportagem em quadrinhos e a prtica jornalstica 1 Juscelino NECO de Souza Jnior2 Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, SC RESUMO O surgimento do chamado jornalismo em quadrinhos, iniciado com as reportagens feitas pelo quadrinista Joe Sacco e popularizado nos jornais e revistas com a transposio de gneros jornalsticos diversos, como o editorial, a coluna e a resenha, modifica o cerne da relao entre os quadrinhos e o jornalismo. A falta de clareza terica acerca da linguagem dos quadrinhos permite que, em anlises superficiais e descontextualizadas, denomine-se a reportagem em quadrinhos de Sacco como um novo gnero do jornalismo. As histrias em quadrinhos simplesmente conseguem comportar alguns gneros do jornalismo impresso adaptando-os nova mdia e utilizando-se de sua linguagem e potencialidades. Embasados nos estudos acerca dos quadrinhos e na teoria da percepo visual, analisamos como se configura a reportagem em quadrinhos em seus aspectos visuais e estrutura narrativa.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Quadrinhos; Gneros jornalsticos; Reportagem em quadrinhos; Joe Sacco.

TEXTO DO TRABALHO

O surgimento da construo imagtica discursiva que se convencionou chamar de reportagem em quadrinhos3 acontece com a publicao da minissrie em quadrinhos Palestina, realizada pelo quadrinhista e reprter Joe Sacco. Veiculada em nove edies entre os anos de 1993 e 1995, essa minissrie centra-se nas experincias pessoais e nas entrevistas conduzidas por Sacco durante suas visitas a Jerusalm, Cisjordnia e Faixa de Gaza, efetuadas entre o final de 1991 e o incio de 1992. Nessa primeira obra o autor tenta traar um panorama da situao vivida pelos palestinos aps a ocupao israelense, dando nfase ao interesse humano e na experincia da oralidade dos entrevistados. Conceitualmente, esse trabalho pode ser considerado convencional, fundando sua razo de ser puramente em seu potencial informativo. Porm, o meio

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Trabalho apresentado no GP Gneros Jornalsticos, IX Encontro dos Grupos/Ncleos de Pesquisas em Comunicao, evento componente do XXXII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. 2 Mestrando em Jornalismo do Programa de Ps-Graduao em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] 3 Uso reportagem em quadrinhos por considerar que o termo jornalismo em quadrinhos, de uso corrente na imprensa e no meio acadmico, abarca todas as manifestaes onde h uma tentativa de aproximao entre o jornalismo e os quadrinhos e, portanto, englobaria outros gneros jornalsticos j transportados para os quadrinhos como a resenha e a coluna.

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escolhido, aparentemente inadequado para tal intento, acaba por modificar a cerne do objeto, reafirmando a importncia cabal que a forma e os meios adquirem na atual configurao miditica. Os quadrinhos modernos surgiram nas primeiras dcadas do sculo XX como uma forma de comunicao visual impressa que se concretiza enquanto meio de comunicao de massa pelo aparato da reprodutibilidade tcnica (BENJAMIM, 1998). Segundo a definio de Scott McCloud4, as histrias em quadrinhos (doravante HQs) so Imagens pictricas e outras justapostas em sequncia deliberada destinadas a transmitir informaes e/ou produzir uma resposta no espectador(2005, p.09). Utilizando o conceito de contar uma histria por meio de imagens e texto, os quadrinhos asseguram sua vocao massiva pela utilizao de linguagem e narrativa simples. A consolidao das HQs como um produto industrial dos meios de comunicao de massa desencadeou um processo de adequao s condies mercadolgicas que limitou fortemente o desenvolvimento do potencial expressivo do meio. A despeito do cinema de consumo de Hollywood, os quadrinhos veiculam principalmente histrias infantis, de aventuras, de fantasia, de fico cientfica e de culto ao heri. A indstria de quadrinhos norte-americana, europia e japonesa (as trs maiores e mais influentes) sempre esteve vinculada a essas tendncias e, mesmo que alguns produtos apresentem um alto nvel de qualidade, sendo inclusive alado ao status de arte, quase sempre esto desvinculados da realidade social e poltica. H, contudo, determinadas unidades autnomas de discurso que, ao mesmo tempo em que exploram ao mximo o potencial expressivo da mdia, vinculam-se a uma tradio narrativa mais realista. Apesar de corresponder imagem a que so comumente associados, os quadrinhos possuem um espectro bem mais amplo que os super-heris ou os animais falantes da Disney. A partir da dcada de 60 do sculo passado surgem novos estilos de quadrinhos alternativos que atendem s demandas de um pblico com anseios e formao diferente. Surge ento o quadrinho underground, tambm conhecido como Comix5, veiculado nos primeiros fanzines6 e revistas alternativas. Esses quadrinhos possuem uma temtica que foge totalmente do estabelecido, substituindo a narrativa baseada nos conceitos de ao e fantasia por uma abordagem mais realista do cotidiano.

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Esse quadrinhista e norte-americano utiliza-se do artifcio de construir seus livros tericos no formato de quadrinhos justamente para demonstrar o potencial expressivo do meio. Portanto, todas as referncias que fizermos a esse autor estaro necessariamente incompletas sem a presena do quadrinho propriamente dito. 5 Termo surgido da deformao de comics, que designa os quadrinhos de consumo norte-americanos. 6 Publicao alternativa feita por amadores em fotocpia ou off-set.

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Will Eisner, com a publicao de Contrato com Deus (A Contract with God), em 1978, deu nome e definiu o gnero que se tornaria um padro amplamente aceito: a grafic novel, um romance grfico que, diretamente influenciado pela tradio literria, tentava transportar seus gneros e estrutura narrativa para os quadrinhos. Influenciado pela fico realista de Eisner, Art Spiegelman tambm inicia a publicao de Maus Histria de um Sobrevivente (publicado entre 1980 e 1991 na revista Raw e posteriormente reunido em um livro ganhador do prmio Pulitzer) onde, utilizando uma alegoria com animais (os judeus so ratos, os alemes so gatos, os americano so ces e os poloneses so porcos), conta a histria de seu pai, o judeu Vladek Spiegelman, durante o Holocausto. Essas obras, aceitas pela crtica e pelo meio intelectual como uma forma de expresso madura, contriburam para a modificao da imagem preconceituosa que se tinha das HQs e, em termos de evoluo de linguagem, apontam para um grau de sofisticao narrativa que no pode ser percebido nos quadrinhos de consumo. A aceitao social da obra de Sacco fruto do trabalho de precursores como Eisner e Spiegelman. Eisner conseguiu dar respeitabilidade mdia quadrinhos por tratar temas realistas, como a vida nos cortios ou suas experincias pessoias na guerra do Vietn, e construir um estilo narrativo que almejava a sutileza literria e a sofisticao da narrativa seqencial entre os quadros. A influncia de Spiegelman ainda mais intensa j que Sacco utiliza-se do estilo frio e documental adotado em Maus. Como destaca McCloud, a obra experimental de Art Spiegelman, nos anos 70 e 80, deixou a todos boquiabertos com o estilo relatrio de sua obra biogrfica Maus(2005, p.181). Spielgerman tambm influenciou Sacco com sua forma de introduzir-se como personagem na narrativa. Em Maus vemos Art Spiegelman indo at a casa de seu pai e conduzindo a entrevista que, logo em seguida se materializa na quadrinizao das experincias vivenciadas por seu pai. Sacco tambm se introduz na reportagem que executa e usa do mesmo expediente ao quadrinhizar os relatos feitos pelos entrevistados. Sacco tambm herdeiro direto da tradio inaugurada por quadrinhistas como Robert Crumb e Harvey Peakar, cuja obra valoriza a autobiografia e o tratamento sbrio da realidade. Durante a dcada de 80, outros autores, como Chester Brown e Adrian Tomine, constroem obras que extrapolam em realismo e abandonam postulados tpicos do underground, como o humor e a crtica social. Se muitas dessas obras buscavam reproduzir a realidade de maneira objetiva e direta, sendo considerados pelos3

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pesquisadores Carlos Patati e Flvio Braga (2006) como documentaristas do cotidiano, o que as difere realmente das reportagens em quadrinhos no o referente real e sim a instaurao de uma prtica e de um modus operanti calcado na atividade jornalstica. Apesar de estar vinculada tradio realista dos quadrinhos, a obra de Sacco constitui sua originalidade por transportar um gnero tradicional do jornalismo para uma nova mdia. At ento o jornalismo relacionava-se com os quadrinhos e com a imagem artstica pelo vis do humor, atravs dos gneros pictogrficos tradicionais: a charge7 e a caricatura. sabido que essas duas manifestaes ocupam um lugar diferenciado dentro do jornalismo como manifestaes de carter opinativo e mais vinculados esfera do entretenimento que do ncleo duro da prtica jornalstica. A reportagem em quadrinhos introduz uma nova perspectiva por relacionar uma manifestao vinculada arte com uma prtica jornalstica calcada na ideologia da objetividade. Analisando Palestina, a obra em que iniciado o projeto de construir um estilo de reportagem adaptado para os quadrinhos, e rea de segurana Gorazde8, onde seu estilo reafirmado e a estrutura da reportagem se consolida, percebemos que Sacco desenvolve um dispositivo original para construir seus quadrinhos. A criao desse dispositivo em parte explicada pela biografia do autor. Com formao acadmica em jornalismo, Sacco trabalhava na indstria de quadrinhos9 h alguns anos quando iniciou seu projeto de construir reportagens em quadrinhos. Suas histrias curtas publicadas na revista Yahoo10 mudavam gradualmente o foco de interesse da autobiografia para temticas ligadas ao jornalismo. Dessa fase destacam-se as histrias: Quando Boas Bombas Acontecem para Pessoas Ms, sobre a histria dos bombardeios areos a reas civis; Mais Mulheres, Mais Crianas, Mais Rpido, que relata as lembranas de infncia da sua me, residente da ilha de Malta durante a Segunda Guerra Mundial; e Como Amei a Guerra, sobre a obsesso do autor com o engodo da cobertura jornalstica Guerra do Golfo. Assim, podemos inferir (e o autor o confirma em reiteradas entrevistas) que Sacco estava bastante familiarizado com os preconceitos acerca das HQs e j podia entrever as crticas que surgiriam a sua tentativa de construir um quadrinho que almejasse alcanar a objetividade jornalstica.7

Devido ao intenso processo de hibridizao entre as linguagens, a charge cada vez mais se utiliza dos expedientes dos quadrinhos em sua composio.8

Reportagem sobre a vida dos civis residentes em Gorazde durante a Guerra da Bsnia Oriental, ocorrida de 1992 a 1995. 9 Sacco tambm atuou na produo revistas sobre quadrinhos. 10 Revista produzida e editada pelo prprio autor entre 1988 e 1992.

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Existe nas reportagem de Sacco um mtodo de trabalho e uma estrutura que a configuram como um produto original. O dispositivo criado pelo autor para construir o quadrinho-reportagem fundamenta em estratgias discursivas agrupadas em dois pilares: os aspectos visuais e a estrutura narrativa. Esses dois elementos so essenciais para a instaurao de uma prtica jornalstica formalizada e seu entendimento adequando ajudar a compreender a especificidade dessa manifestao.

Os aspectos visuais A reportagem em quadrinhos possui um problema fundamental no que se refere credibilidade das imagens representadas, j que elas so produzidas sem a presena de aparelhos ou dispositivos eletrnicos. A fotografia, por conseguir reproduzir de maneira eficiente a realidade visvel, utilizada como news medium desde meados do sculo XIX. Como destaca Jorge Pedro Souza, Nascida em ambiente positivista, a fotografia j foi encarada quase unicamente como o registro visual da verdade, tendo essa condio sendo adotada pela imprensa(2006, p.09). Embora se tenha conhecimento de que a fotografia no consegue dar conta de toda a informao presente na realidade visual (sendo antes uma verso ou interpretao dessa realidade), bem como da facilidade com que essa imagem pode ser alterada por meio mecnicos ou digitais, a fotografia ainda revestida com uma urea de objetividade que lhe a confere credibilidade necessria para constituir-se como uma prtica jornalstica. Com os meios audiovisuais acontece um processo ainda mais intenso de sacralizao da capacidade da imagem de reproduzir o real. O registro do som e da imagem em movimento transmite a idia de que o que foi gravado reproduz perfeitamente o que se passou em frente a cmera, sem que se questione como deu as escolhas e a manipulao feita pela equipe tcnica. Os quadrinhos desenvolvem um tipo de relao completamente diferente com a realidade visual a que estamos acostumados. Seu carter pictogrfico reafirma o papel de criao do artista em contraponto ao efeito de anulamento que o fotgrafo ou cinegrafista tem em relao ao seu equipamento. A imagem no quadrinho de Sacco apresenta-se como desenhada e, portanto mais facilmente vinculada esfera da esttica e da arte que da prtica jornalstica. Contudo, o processo de construo da parte grfica de seus quadrinhos no inteiramente intuitivo, pelo contrrio, Sacco desenvolve um modelo de representao extremamente padronizado que se utiliza do

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modelo tradicional11 de representao e do estilo de quadrinho franco-belga e underground12. difcil perceber que a imagem artstica, por mais realista que se apresente, antes um modelo relacional que um registro fiel de uma experincia visual. Isso deve-se ao fato de que a imagem muitas vezes tomada como uma forma de linguagem universal. Segundo Martine Joly, Muitas razes explicam essa impresso de leitura natural da imagem, pelo menos na imagem figurativa. Em particular, a rapidez da percepo visual, assim como a aparente simultaneidade do reconhecimento de seu contedo e de sua interpretao (1996, p.42). Essa percepo da imagem artstica como natural gera a iluso de que a realidade visvel tambm seria reproduzida da nica maneira possvel, num processo intuitivo e mais ou menos objetivo. Nessa perspectiva, a figurao realista ou acadmica seria a forma mais eficiente e adequada de reproduzir o concreto. Contudo, toda e qualquer representao pictogrfica baseia-se em um arcabouo estrutural. O conceito de mimese proposto pelos gregos antigos j demonstra que nenhum tipo de imitao da realidade perfeito. Segundo Ernst H. Gombrich, nenhum artista consegue reproduzir o que v, todas as imagens baseiam-se em convenes da mesma maneira que a linguagem ou as letras do alfabeto. O artista, no menos que o escritor, precisa ter um vocabulrio antes de poder aventurar-se na cpia da realidade. (2007, p.75). Gombrich ainda destaca, a ttulo de exemplos, que os estilos representativos tradicionais da China e do Egito demonstram como a linguagem define a forma como a realidade apreendida e no o inverso. A famosa e altamente padronizada forma representacional da figura humana feita pelos egpcios atendia perfeitamente as necessidades representacionais desse povo e acontecia mais por motivos estticos do que pela incapacidade de produzir figuras humanas mais convincentes. O vocabulrio da figurao tradicional chinesa tambm demonstra como a reproduo da realidade visvel, uma paisagem, por exemplo, em grande parte definida pela capacidade do artista de adequar o que visto aos padres representacionais inerentes a sua cultura. De maneira anloga, os quadrinhos de Sacco tentam criar um modelo representacional que crie um vnculo com a realidade visual e consiga emular o estilo de reportagem

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Aqui nos referimos ao estilo acadmico de representao pictogrfica desenvolvido no ocidente desde o renascimento que, embora no influencie diretamente o grafismo de Sacco, est presente no uso da perspectiva e, portanto, na composio do quadrinho que tenta imitar a percepo que temos da realidade visual. 12 O movimento underground dos quadrinhos, tambm conhecido como Comix, foi criado nos EUA durante os anos 60 e possui forte relao com a contracultura jovem dessa dcada.

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audiovisual sem, contudo, pretender construir uma representao precisa e objetiva da realidade. Conforme podemos perceber pela ilustrao abaixo, os quadrinhos de Sacco so formados unicamente por um padro de linhas de contornos e hachuras que conseguem criar o vinculo inicial com a realidade visvel graas ao processo de funcionamento da percepo visual. Os princpios dos estudos acerca da percepo visual baseiam-se no funcionamento fisiolgico da viso e nos fundamentos da psicologia da gestalt. Alm de tentarem esclarecer como percebemos a realidade visual, esses estudos tm um interesse particular na recepo das imagens artsticas. O princpio fundamental a aferio do processo da viso. Segundo Rudolf Arnheim, A descrio do processo tico, conforme os fsicos, bem conhecida. A luz emitida ou refletida pelos objetos do ambiente. As lentes dos olhos projetam as imagens destes objetos nas retinas que transmitem a mensagem ao crebro(2000, p.35). A luz possibilita a percepo da borda visual, pela diferena de iluminao entre duas superfcies, e os bastonetes da retina possibilitam que se perceba as cores. O importante na compreenso desse processo a maneira como o crebro processa essas informaes difusas e constri a iluso da realidade visual.

Figura I Ilustrao de Joe Sacco para Palestina

Esse processo de reconstruo da realidade visual pelo crebro possibilita a percepo da imagem artstica, j que a estrutura necessariamente incompleta dessa imagem compensada de modo a criar um vnculo com a realidade visvel. Jacques

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Aumont (1993), ao citar o fato de que nas primeiras projees dos irmos Lumiere o pblico no sentia falta da cor no filme, destaca que a monocromia encarada como um modo natural de percepo, j que os tons de cinza permitem que o observador perceba o objeto claramente. A linha, como uma forma grfica que remete borda visual, tambm encarado como um modo natural de percepo. Por esse motivo, um simples padro de linhas de contorno permite que se identifique com facilidade o objeto retratado. No caso dos quadrinhos de Sacco, a linha ainda desempenha a funo de hachura13, transmitindo maior concretude imagem. Enquanto alguns quadrinhos se utilizam de um grafismo mais leve, na reportagem em quadrinhos tenta-se reproduzir a concretude da imagem fotogrfica. Segundo Moacy Cirne, alguns quadrinhistas

utilizam um padro grfico mais simples e funcional, como o caso do italiano Guido Crepax (figura II), inaugurando o que Cirne define como esttica da voluptuosidade que prpria dos quadrinhos. Sacco, por sua vez, desenvolve um grafismo pesado mais prximo da representao propiciada pela fotografia. Enquanto outros quadrinhos utilizam uma estilizao mais intensa e elegante que os vincula mais ao imaginrio e criao artstica independente, Sacco fundamenta seu grafismo em uma esttica do concreto que o aproxima do modelo representacional do audiovisual e do fotojornalismo.

Figura II Valentina, de Guido Crepax13

Segundo Arnhein, a linha se apresenta de trs modos basicamente diferentes: como linha objeto, linha hachurada e linha de contorno(2000, p.210)

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Analisando mais profundamente o grafismo da reportagem em quadrinhos, podemos perceber que para criar um vnculo com a realidade visual Sacco faz uma escolha interessante: combina o estilo de representao pictogrfica do underground norte-americano com a estrutura do quadrinho franco-belga. Sacco apropria-se da esttica do quadrinho underground que privilegia principalmente o preto sobre branco, devido principalmente impresso em off-set, e comporta um amplo espectro de estilos de representao pictogrfica diferentes. Se no quadrinho tradicional a representao pictogrfica tende a no diferir muito de um artista para o outro (j que todos seguem um estilo mais ou menos acadmico de representao), no Comix o estilo um fator essencial para a identidade do produto (vide anexo I). Seus artistas investem em deformaes intensas da figura humana e num estilo sujo que se ope esttica clean dos quadrinhos de consumo. Sacco desenvolve um estilo prprio de cartunizao das personagens que as permite insinuarem as emoes ao invs de exibi-las de maneira realista, j que a percepo visual dota-nos da capacidade de identificar facilmente um rosto, por mais que este se apresente num padro simplificado. Umas simples linhas e pontos so de imediato reconhecidos como um rosto, no apenas pelos civilizados ocidentais, que podem ser suspeitos de estarem de acordo com o propsito dessa linguagem de signos, mas tambm por bebs, selvagens e animais(ARNHEIM, 2000, p.36)

Figura III - Tintim e o Ltus Azul, de Herg

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Utilizando-se do estilo pictogrfico do Comix, Sacco utiliza-se da estrutura do quadrinho franco-belga como uma estratgia para construir um grafismo semelhante ao audiovisual, transmitir a impresso da realidade dos ambientes. A tradio do quadrinho franco-belga iniciada com a publicao de Tintim, criado por Herg em 1929. Nesse quadrinho pioneiro, o autor desenvolve uma estrutura grfica que alia personagens cartunizados de aparncia simples com ambientes realistas e detalhados, conforme podemos perceber na figura III. As razes dessa opo grfica so diversas, segundo McCloud,

Todo criador sabe que um indicador infalvel de envolvimento de pblico o grau de identificao com os personagens da histria. E, j que a identificao do espectador uma das especialidades dos cartum, este tem penetrado com facilidade na cultura popular do mundo. Por outro lado, como ningum espera que as pessoas se identifiquem com paredes ou paisagens, os cenrios tendem a ser mais realistas. Em alguns quadrinhos, essa separao bem mais pronunciada. O estilo Tintin de linhas simples combina personagens muito icnicos com os cenrios extremamente realistas ( 2005, p.42).

Figura IV Quadrinho de rea de segurana Gorazde, de Joe Sacco

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Sacco utiliza-se desse expediente grfico como uma estratgia discursiva para transmitir a veracidade necessria a uma prtica que se pretende jornalstica, criando um vnculo intenso com a realidade visual a que os leitores esto habituados (vide figura IV). Ao mesmo tempo, consegue transmitir as emoes das personagens quando das entrevistas e das reconstituies. Observando os primeiros quadrinhos produzidos pelo autor, percebemos que essa estrutura s emerge quando o mesmo inicia a empreitada da reportagem em quadrinhos, o que reitera a idia de construo de um dispositivo que propicie o desenvolvimento da reportagem.

A estrutura narrativa A reportagem em quadrinhos vem sendo reiteradas vezes comparada ao new journalism e ao Jornalismo Gonzo de Hunter Thopson, embora sua estrutura aproximese mais dos documentrios. Isso se deve principalmente falta de clareza terica acerca da linguagem dos quadrinhos que faz com que esses sejam associam diretamente literatura (ou melhor, subliteratura). Nada mais natural que comparar a reportagem em quadrinhos com o new journalim, j que qualquer prtica jornalstica que se afaste um pouco do modelo tradicional imediatamente comparada a esse movimento. Os pontos de convergncia entre a reportagem em quadrinhos se do mais no plano ideolgico que na forma que o produto assume. Segundo Jorge Pedro Souza,

O movimento do Novo Jornalismo surge como uma tentativa de retomada do jornalismo aprofundado e de investigao por parte dos jornalistas e escritores que desconfiavam das fontes informativas tradicionais e se sentiam descontentes com as rotinas do jornalismo, mormente com suas limitaes estilsticas e formais (2002, p.203)

O modelo de grande reportagem investigativa adotado por Sacco, bem como a tendncia a aprofundar-se na pesquisa jornalstica e duvidar do relacionamento entre o jornalista e as fontes institucionalizadas possui semelhanas com o New Journalism. Contudo, a

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estrutura formal dos quadrinhos os aproxima da narrativa flmica em detrimento dos modelos narrativos da literatura. A aproximao entre os quadrinhos e o cinema praticamente obrigam Sacco a apropriar-se do estilo de narrativa presente no documentrio quando da construo de seu dispositivo. Conforme ressalta Moacy Cirne

Cinema e quadrinhos se aproximam muito mais pela questo narrativa inerente a seus discursos que por uma semioticidade centrada na imagem. A narrativa, nos dois, pressupe uma continuidade que enfrentada diferentemente, segundo suas tcnicas e seus projetos semiticos(2000, p.136)

Assim, ao contrrio do que pode parecer primeira vista, a reportagem em quadrinhos assemelha-se mais estrutura flmica de um documentrio que da narrativa literria. Sempre h o contato com a aparncia fsica da realidade visual e percebemos os acontecimentos como uma construo que remete ao audiovisual.

Figura IV Quadrinho de rea de segurana Gorazde, de Joe Sacco

A prpria forma grfica do quadrinho explicita sua relao com o documentrio ao utilizar-se de um narrao em off nos recordatrios14, que variam do tom solene e14

Caixa de texto na parte superior ou inferior dos quadrinhos que normalmente funciona como uma narrao.12

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explicativo da voz de Deus a impresses pessoais do autor, e inserir a experincia da fala dos personagem como um depoimento em que a personagem olha diretamente para o leitor, como acontece no caso do expectador o documentrio (figura V). Quanto estrutura geral, Sacco utiliza-se de vrios expedientes para conferir credibilidade jornalstica a sua atividade. O primeiro desses expedientes e a insero do autor como uma das personagens. A reportagem em quadrinhos poderia ser mais factual, onde as personagens simplesmente fizessem seus depoimentos seguidos de uma reconstituio dramatizada dos mesmos. Contudo, Sacco opta por uma narrativa que conduzida pela experincia do autor quando da aferio das reportagens. Desse modo explicitado todo o processo de investigao jornalstica, retratando a atividade de aferio da informao. Alm de funcionar como uma metanarrativa que agrupa os variados depoimentos, essa insero do autor como uma personagem funciona com uma espcie de salvo-conduto, j que garante que o autor tentou reproduzir o paradigma de reportagem exemplar, checando com diversas pessoas as mesmas informaes e duvidando sempre dos relatos apresentados. Dentro do quadrinho de Sacco h duas narrativas paralelas, uma formada pelas microestruturas narrativas formados pelos depoimentos, e a outra pela metanarrativa da prpria construo da reportagem. Em ltima anlise, os quadrinhos de Sacco s conseguem alar-se ao status de prtica jornalstica por explicitar todos os procedimentos e, ao invs de contar com a confiana cega do leitor na veracidade dos fatos narrados, delega-lhe a funo de analisar seus procedimentos e perceber o grau de objetividade que o autor consegue alcanar.

Concluso O paradigma do estilo de reportagem em quadrinhos desenvolvido por Sacco j possui outros seguidores. Os franceses Emmanuel Guibert e Frdric Lemercier construram uma malfadada experincia de aproximao entre jornalismo e quadrinhos na srie de livro O Fotgrafo Uma histria do Afeganisto. A srie conta as experincias do fotgrafo francs Didier Lefvre quando acompanhou uma caravana da Mdicos Sem Fronteira (MSF) no Afeganisto durante a invaso sovitica em 1986 e, enquanto a narrativa de Sacco consegue constituir-se como uma prtica jornalstica formalizada, essa srie no passa de uma narrativa trivial em que a personagem principal por acaso um fotojornalista. Segundo Cirne, para aceitar um quadrinhojornalismo preciso aceitar suas limitaes formais, no no campo do quadrinho, mas13

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no campo do jornalismo, embora, nesse particular, dependendo do autor, a questo conteudstica em si no seja afetada(2005, p.61). A falta de um dispositivo eficiente para construir uma narrativa jornalstica faz com que esse quadrinho, embora seja vendido como uma experincia de jornalismo em quadrinhos, no consiga constituirse como uma reportagem, o que prova que a atividade jornalstica proposta por Sacco possui um arcabouo estrutural e necessita de um mtodo de trabalho para ser executada. Assim, conforme esperamos ter esclarecido, as estratgias discursivas utilizadas por Sacco para superar os preconceitos acerca dos quadrinhos e transportar a estrutura da reportagem para os quadrinhos criam um dispositivo que o permite construir uma atividade calcada na ideologia da objetividade e alar seu trabalho artstico ao status de prtica jornalstica. Contudo, a emulao dos gneros tradicionais do jornalismo feita pelos quadrinhos possui a limitao formal de no conseguir englobar os gneros mais factuais do jornalismo. Como destaca Cirne, a rigor, nunca tivemos um quadrinhodocumentrio, nunca tivemos um quadrinho baseado em episdios e/ou fatos que estejam acontecendo como dados concretos do real nosso de cada dia(2005, p.60). Assim, dada a impossibilidade de construir um quadrinho noticioso, a reportagem em quadrinhos funciona como um modelo exemplar de atividade jornalstica calcada na objetividade no por ater-se ao modelo do just facts do jornalismo norte-americano mas por constituir-se como uma prtica calcada no estilo de reportagem em profundidade.

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