A Ética das Virtudes em Romano Guardini e José Pieper - Diversidade e Analogia -I.pdf

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    A tica das Virtudes em Romano Guardini e Josef Pieper:

    Diversidade e Analogia (I)

    Resumo

    O objetivo deste artigo consiste em considerar a tica das Virtudes em alguns escritos de Romano Guardini e Josef Pieper, tendo em conta as semelhanas e diferenas em suas respectivas propostas. Como noto, estes autores foram responsveis por uma grande produo literria. Portanto, tendo em conta este fato e a limitao de um artigo, a pesquisa limitar-se- anlise da proposta de tica das Virtudes destes autores, tendo como base as obras diretamente relacionadas ao tema.

    Summary

    The objective of this article, which is divided in three parts, consists in considering the Ethic of Virtue in some of the writings of Romano Guardini and Josef Pieper, comparing and contrasting their respective proposals. As is noted, these authors were responsible for a vast literary production. Therefore, tak-ing this in account and the limitation of an article, this study will limit itself to the analysis of the proposal of the Ethic of Virtues of these authors, having as a base the works directly related to the theme.

    * * *

    Introduo

    O tema das virtudes objeto comum nos estudos de Romano Guardini e Josef Pieper. O ponto de partida de ambos o desejo de restituir ao homem a sua dignidade, e esta consiste no fato de que o homem criado imagem e semelhana de Deus. Eles analisam a situao do homem concreto, que vive no momento presente, com todos os seus desafios e

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    contradies. Guardini e Pieper tm a grande preocupao de buscar um sentido para a existncia do homem em meio s vicissitudes histricas, e esta no era uma tarefa fcil, especialmente considerando o perodo histrico em que ambos viveram, onde a degradao e abuso do homem atingiram nveis assustadores.

    No entanto, a partir deste ponto de partida comum, cada um deles seguiu um caminho prprio. E so as tradies de pensamento que evidenciam esta diversidade: Guardini seguir uma linha mais agostiniana, enquanto Pieper retomar o conceito clssico de virtude de acordo com o ensi-namento de S. Toms. As diferentes direes tomadas por eles no so contraditrias, antes, se integram.

    Atravs das semelhanas e diferenas nas suas respectivas propostas, produz-se uma complementaridade no pensamento destes autores. Ambos contriburam para resgatar o conceito clssico de virtude que, de uma parte, fora um tanto desprezada e deixada de lado, considerada como algo ultrapassado e destitudo de valor para a situao atual do homem e, de outra, abusada ou desviada atravs da difuso de uma idia errnea de virtude, que se afastou do conceito cristo clssico da mesma, resul-tando em diversas deformaes que contriburam para gerar uma imagem negativa da vida virtuosa.

    O grande contributo de Guardini e Pieper foi recordar e atualizar a clssica doutrina das virtudes, segundo a qual o homem torna-se verdadei-ramente humano atravs de uma vida virtuosa, na qual as virtudes no so entendidas como algo extrnseco ou imposto, mas como pertencente prpria estrutura da pessoa humana. O homem foi criado imagem de Deus e chamado a realizar esta imagem de um modo cada vez mais perfeito, at atingir a plenitude de vida qual destinado. E ele torna-se imagem de Deus na medida em que vive as virtudes. Como se nota, a doutrina clssica das virtudes uma profunda antropologia crist.

    este o objetivo principal do presente artigo: estudar a doutrina das virtudes nas obras principais destes autores, ao menos naquelas que se relacionam mais diretamente ao tema, comparando-a e buscando eviden-ciar os pontos comuns e complementares. A complementaridade exis-tente entre Guardini e Pieper contribui para um maior aprofundamento e compreenso da doutrina clssica da tica das virtudes, deixando claro que esta ainda atual, pois o homem sempre chamado a realizar em si esta imagem de Deus, o que possvel atravs de uma verdadeira vida virtuosa.

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    O mtodo utilizado na pesquisa ser aquele de parmetros, tendo em conta os objetivos mencionados, ou seja, uma anlise de algumas de suas obras, comparando-as com o fim de demonstrar as semelhanas e diferenas existentes, e assim entender a sua complementaridade.

    Na primeira parte, dedicada tica das virtudes em R. Guardini, procuramos seguir brevemente o percurso do seu pensamento, conside-rando os aspectos mais importantes para a compreenso do mesmo. No foi possvel apresentar todos os aspectos do seu pensamento e da sua obra, seja devido sua extenso, bem como pelo intuito deste artigo. Antes de tratar diretamente o tema das virtudes em Guardini, tentamos ir at os alicerces da estrutura do seu pensamento, de modo especial atravs da apresentao da doutrina da oposio polar e da Weltanschauung catlica, sem as quais difcil compreender corretamente o seu modo de pensar. A seguir entramos mais diretamente no mbito do seu pensamento tico, percorrendo brevemente o desenvolvimento deste e em seguida desta-cando a influncia de Boaventura e Agostinho na sua concepo tica. Por fim apresentamos alguns pontos dos fundamentos cristolgicos da tica de Guardini, pois para ele Cristo a base de toda a existncia crist e, conseqentemente, tambm da tica.

    Nos pontos posteriores procuramos apresentar os aspectos principais da doutrina das virtudes na concepo tica de Guardini, tendo em conta as duas obras que tratam o tema em modo mais especfico: a sua obra pstuma tica e o seu livro Virtudes. Seguindo o impulso dado por Scheler, Guardini procurou cooperar para a reabilitao da virtude, principalmente atravs destas duas obras, mas tambm atravs de inmeras contribuies presentes em outros escritos. O objetivo principal de Guardini restituir virtude, vida virtuosa o seu sentido original de beleza fundada no bem, de alegria, de realizao do homem, afastando-se de toda negatividade provocada por interpretaes errneas, especialmente por parte de uma moral fundamentada no dever.

    Na segunda parte passamos considerao da tica das virtudes no pensamento de J. Pieper. Procuramos seguir uma estrutura semelhante quela utilizada na primeira parte, primeiramente uma exposio dos fatos biogrficos mais importantes e uma descrio da origem das suas obras principais, especialmente os tratados sobre as virtudes. A seguir passa-mos a considerar os traos principais do seu pensamento, dando especial ateno s influncias recebidas por Pieper no seu caminho intelectual. Outro aspecto que no poderia ser deixado de lado a relao entre a teologia e a filosofia no pensamento de Pieper. E enfim, apresentamos a

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    influncia de Toms de Aquino no pensamento de Pieper, aspecto indis-pensvel para a compreenso do seu pensamento, de modo especial no que diz respeito doutrina das virtudes.

    Depois de considerar estes pontos fundamentais do pensamento de Pieper, passamos sua doutrina das virtudes. Para tal considerao poderiam ser escritos livros inteiros, por isso nos limitamos aos pontos mais importantes, como a estruturao da sua doutrina das virtudes, o conceito especfico de virtude adotado no seu pensamento, a ordem e a relao entre as diversas virtudes e por fim um aspecto de suma impor-tncia que condensa, por assim dizer, todo o pensamento tico de Pieper: o conceito de virtude e a imagem do homem.

    Na terceira parte, a mais breve, procuramos proceder maneira de uma reavaliao do que foi considerado anteriormente, confrontando as duas perspectivas propostas, ressaltando os pontos de convergncia e as diferenas, e o empenho dos dois autores em recuperar a doutrina clssica das virtudes, doutrina esta que fruto de sculos do desenvolvimento do pensamento cristo ocidental.

    I. A tica das Virtudes no Pensamento de Romano Guardini

    1. Vida e pensamento de Romano Guardini

    a) Breve biografia

    Romano Guardini1 nasceu aos 17 de fevereiro de 1885, em Verona, como primognito dos quatro filhos de Romano Tullo Guardini e Paola

    1 Esta breve exposio biogrfica limita-se aos aspectos mais importantes da vida de R. Guardini. Para uma consulta mais ampla indicamos as seguintes obras: Escritos autobiogrficos de Romano Guardini: Berichte ber mein Leben; Wahrheit des Denkens und Wahrheit des Tuns; Stationen und Rckblicke. Estes trs escritos foram publicados em um nico volume por Franz Heinrich: R. Guardini, Stationen und Rckblicke. Beri-chte ber mein Leben, Grnewald - Schningh, Mainz-Padernborn 1995. Sobre a vida e a obra de R. Guardini: H.- B. Gerl, Romano Guardini 1885-1968. Leben und Werk, Matthias-Grnewald-Verlag, Mainz 1985; H. enGelmann F. Ferrier, Romano Guardini, ditions Fleurus, Paris 1966 (verso italiana: Introduzione a Romano Guardini, Brescia 1968); A. lpez Quints, Romano Guardini, maestro de vida, Madrid 1998; J. reber, Romano Guardini begegnen, Augsburg 2001 (verso italiana: J. reber, Incontro con Romano Guardini, Lugano 2004).

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    Maria Bernardinelli. Em 1886, por causa de negcios, a famlia trans-fere-se para Mainz. No ginsio desta cidade, ele recebe uma educao exclusivamente alem.2 No seio da famlia, porm, prevalece a lngua e a cultura italiana, como ele prprio anota: enquanto em casa falava-se e pensava-se em italiano, eu crescia intelectualmente dentro da lngua e da cultura alem.3 O pai, apesar de estimar muito a Alemanha, sentia-se ali sempre como um hspede. Quanto me, o repdio a tudo o que fosse germnico era ainda mais forte, na verdade, ela mantinha apenas as relaes realmente indispensveis e, de resto, permanecia em casa, dedicando-se totalmente aos filhos.4

    Esta educao simultnea em duas mentalidades diferentes, marcou profundamente a personalidade de Guardini; a unio entre a mentalidade germnica e a latina favoreceu nele a formao de um estilo e modo de pensar com caractersticas nicas. A lngua falada por Guardini, louvada pelos crticos, marcada por estes dois elementos aparentemente opostos: a fixidez latina e a fluidez germnica, a ordem clara e bela de uma forma na qual o pensamento move-se em contnuo vir-a-ser.5

    Aps o exame de maturidade, chegando o momento de decidir-se por uma profisso, Guardini enfrenta grandes dificuldades. Inicialmente tenta as cincias naturais, depois a qumica, a economia poltica e at chega a pensar na medicina. Depois destas tentativas frustradas, e de uma profunda crise religiosa, encontra o caminho para o qual Deus o chama: o sacerdcio. Assim Guardini inicia os estudos teolgicos em Friburgo (Alemanha), continuando-os em Tbigen e depois em Mainz onde ordenado em 1910. Em agosto do ano seguinte decide-se pela nacionalidade alem, como condio para exercer a atividade magisterial. Ele foi o nico da famlia a fazer esta opo.6

    Nos dois anos seguintes Guardini exerce a atividade de capelo na diocese de Mainz. Em 1915 obtm o doutorado em teologia na Univer-sidade de Friburgo (Alemanha). No entanto, a escolha do tema no foi

    2 Cf. H. enGelmann F. Ferrier, Introduzione a Romano Guardini, Brescia 1968, 10.

    3 R. Guardini, Stationen und Rckblicke. Berichte ber mein Leben, Mainz-Paderborn 1995, 295. Obs.: as tradues dos textos citados neste trabalho, salvo indicao contrria, so nossas.

    4 Cf. id., ibid., 57-59.5 H. enGelmann F. Ferrier, Introduzione a Romano Guardini, 18.6 Cf. id., ibid., 10.

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    fcil, como relata o prprio Guardini nas suas anotaes autobiogrficas.7 Depois de muitas tentativas, ele conseguiu direcionar o argumento com a ajuda do Prof. Krebs, docente de dogmtica em Friburgo (Alemanha). A proposta do Prof. Krebs, de desenvolver um tema sobre a redeno em S. Boaventura, mostrou-se muito oportuna, pois Guardini queria aplicar sua tese uma doutrina que elaborara alguns anos antes, ou seja, a doutrina da oposio8, e para este ensaio Boaventura era particularmente apro-priado, pelo fato que a sua teologia rene elementos distintos: Ele um agostiniano que com certo esforo se insere na corrente aristotlica de seu tempo, e de resto mais homo religiosus e mstico do que teortico.9 Assim, em maio de 1915, Guardini obtm o doutorado em teologia com o argumento: A doutrina de S. Boaventura sobre a redeno. Um contributo histria e ao sistema da doutrina da redeno10.

    No perodo sucessivo obteno do doutorado, Guardini exerce novamente a atividade de capelo em Mainz, por cinco anos. A partir deste tempo ele se dedicar de modo especial pastoral da juventude, primeiro como diretor da associao de estudantes Juventus11 e mais tarde atravs do movimento juvenil Quickborn12 no castelo de Rothenfels. At 1939, com exceo de algumas breves estadias no lago de Como, Guardini dedicar todas as frias de vero aos seus caros jovens em Rothenfels. Mesmo sendo um intelectual, ele antes de tudo um sacerdote e a sua obra permanece sempre determinada pela preocupao pastoral e pedaggica.13

    Em 1920 Guardini transfere-se para Bonn a fim de preparar a tese de habilitao para a livre-docncia. Gerhard Esser, docente de dogmtica em Bonn, disps-se a aceit-lo como habilitando. Como tema para a

    7 Cf. R. Guardini, Stationen und Rckblicke, 22.8 Cf. infra, 16.9 id., ibid., 26-27.10 Ttulo original: Die Lehre des hl. Bonaventura von der Erlsung. Ein Beitrag zur

    Geschichte und zum System der Erlsungslehre. (A tese foi publicada em Dsseldorf, em 1921), cf. id., ibid., 27.

    11 Juventus era uma associao de estudantes das escolas de ensino mdio em Mainz. Cf. id., ibid., 28.

    12 Quickborn era um movimento juvenil ativo nos anos 20, que, sob a guia espiritual de Guardini, se reunia no Castelo de Rothenfels e se exprimia atravs da revista Die Schildgenossen. Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini 1885-1968. Leben und Werk, Mainz 1985, 153-247.

    13 Cf. H. enGelmann F. Ferrier, Introduzione a Romano Guardini, 11.

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    tese de habilitao, Guardini voltou-se novamente para S. Boaventura, propondo-se a estudar as trs colunas da sua teologia: a doutrina da luz intelectual, dos impulsos vitais e da ordem hierrquica do ser: O signifi-cado das doutrinas do lumen mentis, da gradatio entium e da influentia sensus et motus para a construo do sistema de Boaventura14. No exame de habilitao, Guardini procura mostrar que a teologia torna-se cincia atravs da correta reflexo da sua relao especfica com a revelao e a f, e no mediante um mtodo histrico, psicolgico ou lingstico, por mais importantes que sejam. Este pensamento marcar toda a atividade cientfica de Guardini. Esta sua posio provocou desaprovao em alguns colegas, que no o consideraram suficientemente cientfico, tendo em conta os padres da poca. Em todo caso, Guardini obteve a habilitao e no incio de 1922 era livre-docente de dogmtica.15

    Em 1923 ele inicia a sua atividade acadmica como livre-docente de dogmtica na Universidade Catlica de Bonn. Neste tempo de atividade como docente de dogmtica, Guardini percebeu que no era um telogo especializado no sentido clssico e que na verdade no queria s-lo. Ele comea a compreender sempre mais claramente o seu carisma prprio, ou seja, a capacidade de colocar em relao a revelao e a f com o mundo e o seu tempo, de modo que o destino humano receba interpreta-o e perspectiva.16 Neste perodo Guardini tambm realiza um ciclo de conferncias sobre o sentido da Igreja no Congresso da associao dos acadmicos catlicos de Bonn.17

    Em 1923 Guardini chamado ctedra de nova instituio de Filoso-fia da religio e Weltanschauung catlica18 na Universidade de Berlim. O fato de Guardini assumir uma ctedra de Cosmoviso catlica na Universidade de Berlim, a cidadela do protestantismo alemo, como ele

    14 Ttulo original da tese de habilitao: Die Bedeutung der Lehren vom lumen men-tis, von der gradatio entium und von der influentia sensus et motus fr den Aufbau des Systems Bonaventuras; a tese foi publicada com o ttulo: Systembildende Momente in der Theologie Bonaventuras, Leiden 1964. Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 134, nota de rodap n. 41.

    15 Cf. J. reber, Incontro con Romano Guardini, Lugano 2004, 58-59.16 Cf. id., ibid., 61-63.17 Esta srie de conferncias foi publicada em 1922 pela editora Grnewald com o

    ttulo: Vom Sinn der Kirche. Cf. id., ibid., 62.18 Weltanschauung pode ser traduzido por cosmoviso, viso (contemplao) do mundo.

    Este tema tratado posteriormente, cf. infra, 21.

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    prprio descreve, trouxe-lhe no poucos dissabores e tenses. Por parte de muitos ele era visto como um propagandista da Igreja catlica.19

    A partir de 1927 Guardini ser dirigente do Castelo de Rothenfels e do movimento juvenil Quickborn a nvel nacional. O Castelo de Rothenfels se tornar o centro de um movimento cultural tendo Guardini como guia.20

    Como fruto da atividade acadmica na Universidade de Berlim, apare-cem as monografias sobre Dostoievski (1932), Pascal (1935), Agostinho (1935) e Scrates (1943). Em 1937 aparece a primeira edio da sua obra cristolgica principal: O Senhor. Reflexes sobre a pessoa e sobre a vida de Jesus Cristo21.

    Durante o regime nazista, de 1933 a 1945, era previsvel que a ctedra de Guardini fosse imediatamente supressa, mas isto ocorreu somente em 1939. Graas sua prudncia e discrio dos seus ouvintes Guardini conseguiu passar despercebido por todos estes anos, mesmo sendo alvo de constantes controles. Neste perodo, os temas tratados por Guardini so sempre atos de negao do nazismo, de modo especial o grande ciclo de lies sobre antropologia crist. A partir destes contributos universitrios ser publicada a obra Mundo e pessoa22. Em 1939 a sua ctedra em Berlim foi finalmente abolida e Guardini foi obrigado a aposentar-se. Tambm a sua atividade em Rothenfels foi interditada e o castelo confiscado.23

    Em conseqncia da supresso da ctedra na Universidade de Berlim, em 1943 Guardini transfere-se de Berlim para Mooshausen, na regio do Allgu, para junto de seu amigo, o proco Josef Weiger. Durante esta estadia em Mooshausen ele inicia as suas anotaes autobiogrficas. Com o fim da guerra, em 1945 Guardini chamado a assumir a ctedra de filosofia da religio e cosmoviso crist na Universidade de Tbingen. Em 1948 assume uma ctedra homnima na Universidade de Munique onde permanecer at a sua morte. Durante este ltimo perodo da sua vida Guardini ser contemplado com muitos prmios e nomeaes de honra.

    19 Cf. R. Guardini, Stationen und Rckblicke, 48-49.20 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 212-247.21 Titulo original: Der Herr. Betrachtungen ber die Person und das Leben Jesu Christi;

    cf. R. Guardini, Stationen und Rckblicke, 365. 22 Ttulo original: Welt und Person: Versuche zur christlichen Lehre vom Menschen

    (1939).23 Cf. R. Guardini, Stationen und Rckblicke, 365.

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    Em 1961 ser nomeado membro da comisso litrgica de preparao para o Conclio Vaticano II.24

    No perodo de 1950 a 1962 ele ter as memorveis aulas de tica na Universidade de Munique. Dos manuscritos de preparao para essas aulas ser publicada em 1993 a sua obra pstuma tica: Aulas na Uni-versidade de Munique, 1950-1962.25 So tambm deste perodo as outras contribuies de Guardini no mbito da tica e da auto-formao: em 1953 ele publicou a obra As idades da vida26; tambm em 1953 publi-cado o livro: A aceitao de si mesmo27; finalmente em 1963 publicada: Virtudes. Meditaes sobre formas da vida moral28.

    Guardini faleceu no dia 1 de outubro de 1968 e foi velado na igreja de S. Lus (Ludwigskirche), na qual servira tantas vezes como sacerdote e pre-gador. No dia 4 de outubro realizaram-se as exquias na igreja de S. Lus e o sepultamento no pequeno cemitrio sacerdotal de S. Loureno.29

    b) O mtodo de Guardini

    Para conhecer a singularidade do pensamento de Guardini importante destacar a peculiaridade do seu mtodo cientfico.30 De acordo com A. L. Quints:

    O grande empenho de Guardini pensar em suspenso, de forma sintica, sem ver oposies onde h apenas contrastes. (...) Parcelar a vida humana em pequenos grupos que se enfrentam constitui para ele um regresso, algo sem sentido, um retorno insensato a lutas tribais. A seu modo de ver, o homem verdadeiramente avanado aquele no qual vigora um esprito catlico, universalista e compreensivo, e que sabe estender a ateno para captar as distintas vertentes da realidade sem ficar bloqueado em uma ou outra delas.31

    24 Cf. id., ibid., 365-366.25 Ttulo original: Ethik. Vorlesungen an der Universitt Mnchen, 1950-1962,

    Mainz 1993.26 Ttulo original: Die Lebensalter. Ihre ethische und pdagogische Bedeutung

    (1953).27 Ttulo original: Die Annahme seiner selbst (1996).28 Ttulo original: Tugenden. Meditationen ber Gestalten sittlichen Lebens (1963).29 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 366-368.30 Cf. id., ibid., 250.31 Cf. A. lpez Quints, La verdadera imagen de Romano Guardini. tica y desarrollo

    personal, Pamplona 2001, 20.

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    Nesta citao de Quints encontramos uma sntese do pensamento de Guardini, ressaltando justamente os dois pontos mais importantes: a teoria da oposio polar e a Weltanschauung catlica.

    1) Oposio polar32

    Juntamente com o amigo Karl Neundrfer, Guardini elaborou a base de uma teoria, que em 1925 deu origem ao livro Der Gegensatz33. So-mente em base da sua doutrina da oposio o seu pensamento pode ser compreendido corretamente. Esta uma das suas primeiras tentativas de interpretao da vida, e marcar at o fim o seu pensamento e a sua obra e pode ser considerada como estrutura do pensamento de Guardini.34 O desenvolvimento desta teoria est ligada s experincias pessoais de Guardini, como ele mesmo escreve:

    Vem-me continuamente o pensamento que, assim como so as tenses que mantm coesa a unidade no tomo, do mesmo modo o momento da opo-sio no da contradio! , que mantm coesa a personalidade, o tomo humano. De fato, tambm o fenmeno da oposio e suas manifestaes surgiram de problemas totalmente pessoais.35

    Ele evita utilizar o conceito de sistema para a idia da oposio: Ela no significa um sistema concluso em si, mas uma abertura do olhar e uma orientao interior dentro do ser vivo.36 Em uma carta Guardini explica: A doutrina da oposio a teoria para a discusso, a qual no acontece atravs de uma luta com o adversrio, mas atravs da sntese de uma tenso fecunda, ou seja, atravs da construo da unidade concreta.37

    Ao contemplar a realidade edificada sob a lei viva da oposio, Guardini deve este tipo de interrogao e estudo ao pensamento filosfico anterior a ele, comeando com os primeiros pensadores gregos. Plato, de modo especial, surge como fonte de inspirao, mas tambm o idealismo alemo

    32 A expresso utilizada por Guardini : der Gegensatz, muitas vezes traduzido por oposio ou oposio polar.

    33 Ttulo completo da obra: Der Gegensatz. Versuche zu einer Philosophie des Lebendig-Konkreten (O contraste. Ensaio para uma filosofia do concreto vivente).

    34 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 250.35 R. Guardini, Carta a Richard Wisser de 7.2.1968, em: H.- B. Gerl, Romano Guar-

    dini, 250.36 R. Guardini, Der Gegensatz. Versuche zu einer Philosophie des Lebendig-Konkreten,

    Mainz-Paderborn 1998, 212.37 Carta a Jakob Laubach de 21.11.1967, em: H.- B. Gerl, Romano Guardini, 252.

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    e particularmente, Hegel, mesmo que Guardini procure afastar-se da dia-ltica hegeliana. No fundo tambm esto presentes Kierkegaard e Goethe. Estes e outros autores esto presentes como precursores para Guardini. De acordo com H.-B. Gerl, mesmo que Guardini, modestamente, tenha concebido este tratado como um ensaio ou tentativa, forma-se, de al-gum modo, uma espcie de concluso tirada de dois milnios e meio de filosofia europia.38

    Deste modo, considerando a histria do pensamento, Guardini cons-ciente de que a realidade consiste de estruturas essenciais, as quais foram objeto de estudo de todos os grandes filsofos. Tendo adquirido, atravs de Max Scheler, uma familiaridade com a fenomenologia, que se prope no tanto a fornecer uma explicao das coisas quanto a evidenciar as es-truturas essenciais das mesmas, Guardini serve-se desta para compreender a trama fundamental da realidade vivente.39 Segundo Guardini esta trama fundamental constituda pela oposio ou contraste, toda a realidade vivente e em particular a vida humana dominada pela realidade dos opostos e esta uma determinao essencial do homem vivente:

    A polaridade pertence aos traos fundamentais da vida do homem. Qualquer que seja o fenmeno de que se trate: anatmico fisiolgico ou emotivo, intelectual ou volitivo ou social, sempre a polaridade forma fenomnica, forma estrutural e operativa da vida.40

    Guardini compreende a oposio como polaridade, que atravessa o complexo de quanto vivo, ou seja, forma o concreto (teologicamente falando: o criatural). Deste modo, a oposio no uma caracterstica no vivente, mas sim o vivente mesmo. Com a idia da oposio parece encontrado o princpio de estruturao e ao de todo real, o fen-meno original da vida. Por conseguinte, para Guardini tudo depende de entender o que foi encontrado com a mxima clareza possvel: ou seja, no deixando a oposio degenerar em contradio, o que provocaria uma dilacerao das foras. Oposio significa as duas coisas simultaneamente: segregao relativa e unio relativa de foras em uma nica e mesma coisa. Deste modo a oposio entendida como contrrio (ou seja, opos-tamente complementar) e nunca contraditrio (ou seja, absolutamente

    38 Cf. H.- B. Gerl, Leben in ausgehaltener Spannung. Romano Guardinis Lehre vom Gegensatz, posfcio a: R. Guardini, Der Gegensatz. Versuche zu einer Philosophie des Lebendig-Konkreten, Mainz 1985, 217-218.

    39 Cf. B. mondin, Dizionario dei Teologi, Bologna 1992, 288.40 R. Guardini, Der Gegensatz, 231-233.

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    excludente).41 Em sua obra Cartas teolgicas a um amigo, Guardini ex-plica este aspecto da teoria da oposio polar:

    A oposio a relao na qual os diversos elementos do concreto esto entre si. Estes se repelem e se pressupem ao mesmo tempo. a oposio comple-mentar, a polaridade. Pelo contrrio, a contradio a deciso entre coisas que se excluem mutuamente, bem e mal, sim e no, ser e no ser.42

    Como exemplo de contradio, que no pode ser conciliada, Guardini apresenta o paradoxo entre bem e mal: neste caso nenhuma dialtica do simultneo pode ajudar. Ele no admite em nenhum modo uma espcie de inverter recproco entre bem e mal, e adverte do incio ao fim con-tra o perigo por parte da gnose, e tambm por parte de uma psicologia gnstica.43 Em um trecho tardio do dirio (20.1.1964) ele anota:

    A doutrina da oposio ainda ter futuro. As idias fundamentais gnsticas, que so polaridades de contradio, atuam por toda parte: Goethe, Gide, C. G. Jung, Th. Mann, H. Hesse (...). Todos vem o mal, o negativo (...) como elemento dialtico da totalidade da vida, da natureza.44

    Por esse motivo Guardini abandona uma srie de pensadores filos-ficos antecedentes, desde os gregos at Hegel e Kierkegaard. Ele insiste especialmente em afirmar a distncia da sua teoria e o pensamento de Goethe. Ele parece admitir um possvel parentesco somente com a teoria aristotlica do meio entre dois extremos.45

    Guardini considera a teoria da oposio como aquele fenmeno origi-nrio, no qual um plo no deriva do outro e nem se deixa transformar no outro. Os dois plos permanecem rigorosamente separados e, ao mesmo tempo, s so possveis em relao ao outro. Cada um pressuposto para o outro, porm nunca se tocam: a transio realiza-se sempre em um salto que separa, nunca em um deslizar ou fluir; trata-se de atitudes firmes, no um de cintilar recproco.46 Ou seja, um plo no se mistura com

    41 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 256.42 R. Guardini, Theologische Briefe an einen Freund. Einsichten an der Grenze des

    Lebens, Paderborn 1977, 51.43 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 256.44 R. Guardini, Stationen und Rckblicke, 286; cf. tb. R. Guardini, Theologische Briefe

    an einen Freund, 51-52.45 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 257. 46 Cf. R. Guardini, Der Gegensatz, 91.

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    o outro, s existe na relao com o outro, mas ao mesmo tempo um no se perde no outro.

    O sistema dos opostos apresentado na sua obra Der Gegensatz consiste em oito pares de elementos polarizados, que esto divididos em dois grupos: oposies categoriais e oposies transcendentais. As oposi-es categoriais se dividem em intra-empricas e trans-empricas. Assim temos a seguinte srie: a) oposies categoriais intra-empricas: dinmica esttica / forma informe / integrao diferenciao; b) oposies categoriais trans-empricas: produo disposio / originalidade re-gra / imanncia (inabitao47) estar acima (transcendncia); c) oposi-es transcendentais: afinidade particularizao (qualitativa) / unidade pluralidade (estrutural).48 As oposies categoriais representam os ltimos graus de universalidade da polaridade, nos quais a determinao de contedo a qualidade da oposio ainda permanece, os supremos grupos qualificativos da oposio polar.49 As oposies transcendentais se referem oponibilidade em quanto tal: so prerrogativas da prpria relao polar, a qual exige seja a afinidade seja a distino, seja a unidade seja a pluralidade.50

    Com a doutrina da oposio Guardini procura evitar que um dos plos venha a apresentar-se como um valor menos estimado e por isso ele mos-tra tambm os outros aspectos destes plos opostos; assim, por exemplo, originalidade ele liga tambm outros fenmenos marginais como inconstncia e instabilidade, e regra (que oposta originali-dade) ele liga o ritmo, a lei, a disciplina, a durao e a rigi-dez. Desta forma, ele cria uma amplitude de insero e evita um esquema do tipo claro-escuro, no qual um dos lados termina por apresentar-se como um valor menos estimado ou de qualquer modo suspeito.51

    Os plos so orientados somente atravs da radicao no plo oposto. Justamente assim possvel provar que a oposio pode ser compreendida como tenso que ajusta a si mesma e no como mera oposio dispersante.

    47 O verbete parece no existir em lngua portuguesa, mas compreende-se o seu significado a partir de inhabitatio, -onis, que significa habitar dentro de ou simplesmente habitar em. [n. da redao]

    48 Cf. B. mondin, Dizionario dei Teologi, 288-289; cf. tambm H.- B. Gerl, Romano Guardini, 258.

    49 R. Guardini, Der Gegensatz, 150.50 B. mondin, Dizionario dei Teologi, 289.51 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 258.

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    Guardini tenta afastar-se da palavra dialtica tanto quanto possvel e delimitar o fenmeno da sua generalidade teortica vida humana.52

    Aquilo que Guardini valoriza expressamente a rigorosa distino dos dois plos da oposio, que no podem e nem devem chegar a uma sntese, sem que a tenso da realidade venha a perder-se com isso. O objetivo de Hegel outro, e por isso que Guardini com o seu esquema procura manter-se livre da influncia dominante de Hegel.53 Ele firme em acentuar que a sua teoria da oposio polar no tem nada a ver com a dialtica hegeliana dos contrrios.54 Segundo Guardini, Hegel brinca com a trgica seriedade desta duplicidade, pois para ele todas as signi-ficaes e as essncias das coisas se tornam, no fundo, monisticamente a mesma coisa.55

    De acordo com Alfonso Quints, Der Gegensatz sem dvida a obra de cunho mais acadmico de Romano Guardini.56 Der Gegensatz marca o ritmo de todo o trabalho intelectual de Guardini, comprometido no empenho nada fcil de orientar a vida espiritual do homem contem-porneo por vias de equilbrio e integralidade que foram abandonados no limiar da Idade Moderna por causa do anseio de certeza e eficcia que so caractersticos do conhecimento cientfico. Atravs desta obra reve-lam-se vrias caractersticas da personalidade de Guardini: sua ateno aos fenmenos vitais, sua flexibilidade de mente e sua fidelidade ao real no delineamento dos problemas metodolgicos.57

    2) A cosmoviso catlicaEm 1923 Guardini chamado ctedra de nova instituio de Filo-

    sofia da religio e Weltanschauung catlica na Universidade de Berlim. Para Guardini o incio no foi fcil, pois encontrou a expresso katolis-che Weltanschauung (cosmoviso catlica) marcada por um significado negativo, de fato, a sua nova ctedra era vista como um instrumento propagandstico da Igreja Catlica e inserida num contexto meramente apologtico. Mais tarde, ainda durante o perodo em que ele assumia a

    52 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 258.53 Cf. id., Leben in ausgehaltener Spannung, 225-226.54 B. mondin, Dizionario dei Teologi, 288.55 Cf. R. Guardini, Der Gegensatz, 159.56 A. lpez Quints, La verdadera imagen de Romano Guardini, 73.57 Cf. id., ibid., 174.

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    ctedra, desenvolveu-se outra forma de Weltanschauung fantica que via em Guardini um adversrio.58 Em uma carta ele caracteriza esta situao:

    Inicialmente ele (= o conceito de Weltanschauung) era a expresso do rela-tivismo moderno e do subjetivismo em coisas religiosas, que no cria mais em uma verdade, mas somente em uma viso condicionada por condies pessoais, histricas e populares (cf. Dilthey, Troeltsch, Jaspers). Posterior-mente veio o significado que lhe deu o totalitarismo poltico etc. De fronte a isso estava a minha tentativa de designar a este conceito o seu lugar entre a f da revelao, de um lado, e a contemplao emprica, de outro.59

    Em sua atividade acadmica na ctedra de cosmoviso catlica, Guar-dini entrou em um campo intermedirio entre a filosofia e a teologia, ou melhor, ele provocou um encontro entre ambos os mbitos, um encontro entre a f de um lado e a evidncia cultural filosfica de outro. Deste modo, ele tratava questes que se direcionavam da teologia aos problemas culturais e da conscincia comum aos problemas teolgicos. A meta de Guardini, porm, no era encontrar uma terceira disciplina entre teologia e filosofia, nem tinha em mente criar uma teoria.60 Ele explica assim o teor da sua tarefa nesta ctedra:

    Permita-me formular mais uma vez aquilo de que se trata nesta tarefa acadmica: No se trata de histria ou psicologia ou tipologia de poss-veis cosmovises mas tambm no se trata simplesmente de teologia ou filosofia, mas do encontro da f crist com o mundo. Trata-se das questes, que passam da conscincia do mundo para a f; e de outro lado, trata-se do esclarecimento desta conscincia do mundo por parte da f.61

    Na aula inaugural da ctedra de cosmoviso catlica, temos mais um esclarecimento de Guardini quanto meta da sua tarefa acadmica neste mbito:

    A Weltanschauung, porm, no busca o todo atravs da sntese dos parti-culares [...]. O todo, aquilo que tem a medida do mundo para o qual ela se dirige, no significa que cada particular seja compreendido e ordenado em sntese; no consiste em uma integralidade de contedos objetivos, mas em uma ordem, orientao, significado das coisas, que so compreendidas

    58 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 267.59 Carta a Heinrich Fries de 1.7.1952, em: H.- B. Gerl, Romano Guardini, 267.60 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 269.61 R. Guardini, Zur Streichung des k.w.-Vermerks, 4, em: H.- B. Gerl, Romano

    Guardini, 270.

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    desde o primeiro momento e em cada particular. A cosmoviso v cada coisa desde o incio inteiramente. Ela v a coisa como totalidade em si mesma e como inserida em uma totalidade. Esta totalidade, este mundo no , dito novamente, um resultado final, que nasa to logo cada parte seja compreendida, mas ela existe desde o incio.62

    O que Guardini procura expressar neste trecho o centro da sua con-siderao da realidade. No uma compreenso estruturada, que passo a passo chega ao resultado atravs da observao de cada particularidade. No se trata de uma meta conclusiva, mas no fim alcana-se novamente o pensamento do incio, porm, no simplesmente como o mesmo, mas tudo contorna-se de um modo mais rico do que anteriormente, e permanece aberto para continuar, como um espiral.63

    Segundo A. Lopez Quints, a Weltanschauung catlica de Guardini indica um modo de conhecimento dirigido a captar a realidade de forma global, em concreto, de modo axiolgico e com carter de compromisso. um olhar dirigido realidade em seu conjunto e em seus estratos mais profundos; olhar que sabe perceber em cada realidade sua vibrao com o resto do universo.64 A cosmoviso contempla com amor cada realidade como algo nico e insubstituvel. Como conseqncia desta atitude, ela respeita cada realidade, a contempla de perto, mas com uma determinada distncia, e entra em relao de presena e encontro, deste modo, a cosmo-viso v as realidades de modo relacional, ela reconhece como as coisas viventes sempre surgem devido colaborao de foras diversas.65

    Continuando o que foi dito no ltimo pargrafo, podemos notar a relao com a doutrina da oposio polar. Retomando a idia da oposi-o polar vemos que a realidade na filosofia de Guardini um complexo tecido de opostos. Portanto, a Weltanschauung de Guardini pretende ser um completo reconhecimento dos opostos, de todos os opostos, de modo

    62 R. Guardini, La visione cattolica del mondo, Brescia 1994, 17.63 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 271. interessante mencionar que Guardini

    v em S. Joo Evangelista um modo de pensar semelhante, ele afirma que S. Joo, diferena dos Sinticos, faz sair cada frase diretamente do ntimo, a sua linguagem um discurso em grandes arcos de movimento, no causal, mas tudo fundado em si mesmo, nenhuma frase depende das outras e, no entanto, se encaixam umas s outras. Guardini v poucos pensadores que possuem este mtodo em modo completo, segundo ele Agostinho e Pascal possuem este mtodo. E para Guardini este seria o mtodo genuno para a sua tarefa acadmica; cf. id., ibid., 271.

    64 A. lpez Quints, La verdadera imagen de Romano Guardini, 21-22.65 Cf. id., ibid., 22.

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    que nenhum destes seja explicitamente ou implicitamente excludo ou no considerado e ao mesmo tempo cada oposto seja visto na sua rela-o com o outro. Esta viso integral do mundo, segundo Guardini, de fato bloqueada razo humana, que irremediavelmente contagiada de unilateralidade, e para curar-se desta doena existe um nico remdio: a revelao.66

    Assim, esta viso integral do mundo s pode ser possibilitada pela revelao que foi realizada no Filho feito homem: Cristo. Ele est diante do mundo em uma liberdade fundada na eternidade. No encontro com Ele se revela a verdadeira essncia do mundo, diante dEle o bem e o mal se manifestam. Cristo juiz do mundo, mas ao mesmo tempo o ama com um amor absolutamente forte, criador, que compreende o objeto no seu centro essencial.67 Deste modo Guardini afirma:

    Em Cristo compreendemos como Ele v o mundo na sua inteireza; e v justamente. Como Ele dirige a palavra pessoa com segurana, com respeito e ao mesmo tempo com independncia. Como Ele faz frente s exigncias do momento o qual, porm, ao mesmo tempo a plenitude dos tempos com a conscincia de uma misso que direcionada exatamente quele momento. Cristo tem o olhar verdadeiramente pleno da Weltans-chauung. O olhar da Weltanschauung o olhar de Cristo.68

    As realidades tratadas por Guardini so numerosas, mas o olhar com o qual ele considera este vasto horizonte um s, ou seja, o olhar da f, que f crist e, mais exatamente, catlica. Portanto, apesar da aparente frag-mentao no seu pensamento, existe uma unidade de fundo que une todos os interesses e todas as obras de Guardini, e esta a Welt an schau ung catlica.69

    3) Guardini e a escolsticaO assim chamado mtodo de Guardini no forma uma espcie de

    escolstica do concreto, ou seja, no um sistema esquemtico de tipo escolstico. O que no significa que Guardini poupe empenho no seu pensamento, pelo contrrio, ele procura sempre fazer uma considerao completa, reconhecendo as diversas propostas. E foi exatamente a partir

    66 Cf. B. mondin, Dizionario dei Teologi, 289.67 Cf. R. Guardini, La visione cattolica del mondo, 31-32.68 id., ibid., 32.69 Cf. B. mondin, Dizionario dei Teologi, 287.

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    da ponderao dos pontos de vista de diferentes lados legtimos que a maestria de Guardini comprovou sua competncia em uma srie de ques-tes complicadas. Uma comparao com a escolstica, no sentido que o pensamento de Guardini seria apenas uma continuao no correta, pois no condiz com a meta de Guardini. Ele tenta um novo fundamento de um pensamento integral, que ele entende como pensamento catlico. Na sua obra encontra-se um fundamento do pensamento precedente, ele soube, diante das novas propostas, no perder o alicerce do pensamento antigo-medieval. Assim, por exemplo, diante da filosofia da vida, que nos seus incios tinha acentuado exatamente o produzir, Guardini indica nova-mente o primado do ser, e bvio que isto esteja fundado no pensamento antigo-medieval. Apesar deste fundamento, em Guardini est presente o empenho pelo todo, que, no entanto, tambm passa pela crtica kantiana e formado na fenomenologia contempornea. Por isso, ele defende-se contra a tentao de reconhecer o seu pensamento somente como uma restaurao, ou de classific-lo em uma genealogia passada.70 Guardini escreve em uma carta:

    A comprovao de qual proximidade existe entre o meu pensamento e a tra-dio aristotlico-tomista sempre me interessou muito. Eu sempre escrevi, por assim dizer, em modo ingnuo; en parrhesia, como diz o apstolo Paulo, simplesmente a partir da coisa. Assim, uma semelhante confirmao, segundo a qual as idias se encontram na tradio do pensamento catlico, bela e tranqilizante. Eu s tenho a impresso de que com isso o peculiar da noo de oposio no aparea suficientemente.71

    Neste contexto, importante mencionar a posio de Guardini em relao corrente neo-escolstica, que no seu tempo era dominante no campo da investigao teolgica. Ele procurou afastar-se desta corrente, e tal fato j se pode entrever na escolha do tema do seu doutorado, ou seja, a teologia de Boaventura. Com esta escolha Guardini entra clara-mente em outro mundo de pensamento. Com Boaventura vem mencionado indiretamente Agostinho, que acompanhou o seu pensamento durante toda a vida. tipicamente agostiniano o modo como Guardini acentua a

    70 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 263-264.71 Carta a Pe. Guido Sommavilla SJ de 30.5.1962, em: H.- B. Gerl, Romano

    Guardini, 264.

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    diferena entre religio e f e a nfase sobre a independncia da revelao em relao ao querer humano.72

    Apesar disso, Guardini no tomou uma posio contrria a Toms de Aquino. Na doutrina da oposio polar, Guardini coloca Toms de Aquino e Boaventura juntos, uma vez que em ambos a intuio e o intelecto formal se complementam.73 Tambm no correto afirmar que Guardini tenha buscado uma alternativa entre Toms de Aquino e Boaventura, alm disso, ele reconhece a influncia de Agostinho sobre Toms de Aquino. 74

    Outro aspecto importante a ressaltar neste contexto a proximidade e a distncia que h entre o pensamento de Guardini e aquele de Max Scheler. Scheler exerceu um influxo sobre Guardini, e isto no pode ser negado. Distinguindo as diversas esferas do ser, Max Scheler alcanou um inestimvel pluralismo na fenomenologia. Contudo, a sua obra termi-nou por cair em um dualismo cada vez mais evidente. Este seu dualismo vem a ter conseqncias at mesmo na filosofia da religio: com efeito, segundo Scheller, a essncia da religio poderia ser contemplada (atravs da viso fenomenolgica), mas a sua verdade no poderia ser fundamen-tada. Outros dualismos entram no jogo teortico: valor e ser, eros e logos, religio e filosofia. Para Guardini, no entanto, o ser vem antes do valor, e assim ele fundamenta a sua doutrina da oposio polar na ontologia, afastando-se dos perigos apresentados pelo pensamento de Scheler.75

    O pensamento de Guardini ancorado na ontologia, e isto se deve sua formao na doutrina medieval sobre o ser, ao estudo de Boaventura, de Anselmo e tambm de Toms de Aquino. Guardini fenomenlogo, e ele teria permanecido somente isto, se tivesse trabalhado apenas como discpulo de Scheler e de outros. O que perfaz o mtodo de Guardini, e o torna to interessante e fecundo, justamente esta unio de um mpeto ps-moderno ao pensamento clssico-antigo e medieval.76

    72 Cf. H.-B. Gerl, Romano Guardini. Konturen des Lebens und Spuren des Denkens, Mainz 2005, 72.

    73 Cf. id., ibid., 72. Para outras referncias ao pensamento de Toms de Aquino e de outros autores medievais cf. R. Guardini, Der Gegensatz, 21-22.

    74 Cf. H.-B. Gerl, Romano Guardini. Konturen des Lebens und Spuren des Denkens, 73.75 Cf. H.- B. Gerl, Romano Guardini, 264-266.76 Cf. id., ibid., 264-266.

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    2. Delineamento da tica de GuardiniA preocupao por questes de cunho tico est presente em toda a vida

    e a obra de Romano Guardini. Comeando pelos escritos para a associao juvenil Juventus e para o movimento Quickborn at as ltimas aulas na Universidade de Munique. De modo especial nos escritos dirigidos aos jovens ele tratar as questes ticas do ponto de vista pedaggico, tendo como meta o desenvolvimento da pessoa.77

    Como fruto de seu empenho na formao tica surgiram os principais escritos neste mbito: Cartas sobre a formao de si mesmo; As idades da vida, seu significado tico e pedaggico; A aceitao de si mesmo; Virtudes. Meditaes sobre formas da vida moral; O bem, a conscincia e o recolhimento; Vontade e verdade - Exerccios espirituais; Sobre o sentido da melancolia; E como resultado dos manuscritos de preparao para as aulas de tica em Munique, temos a sua obra pstuma: tica: Aulas na Universidade de Munique, 1950-1962.78

    A importncia conferida por Guardini ao estudo da tica pode ser dedu-zida desta sua afirmao: Sempre me senti estreitamente unido aos meus ouvintes universitrios. Mas neste curso sobre tica, eu o experimentei com especial viveza, pois para mim significa uma espcie de sntese de todo o meu trabalho.79

    a) Desenvolvimento do pensamento tico

    Guardini empenhou-se muito na investigao tica, especialmente nos ltimos anos, tendo em vista a preparao para as aulas na Universidade de Munique. interessante observar, atravs de suas anotaes autobio-grficas, o desenvolvimento desta investigao, como na anotao que segue, datada de 11 de outubro de 1953:

    Para toda a tica, que agora j se estende ao stimo semestre, no abri um livro sequer. No poderia faz-lo. Confundiria o processo e colocaria problemas de ndole totalmente diversa. Agora intento, como ltima parte

    77 A. lpez Quints, La verdadera imagen de Romano Guardini, 104.78 Ttulos originais das obras mencionadas: Briefe ber Selbstbildung; Die Lebensalter,

    Ihre ethische und pdagogische Bedeutung; Die Annahme seiner selbst; Tugenden: Me-ditationen ber Gestalten sittlichen Lebens; Das Gute, das Gewissen und die Sammlung; Wille und Wahrheit: geistliche bungen; Vom Sinn der Schwermut; Ethik: Vorlesungen an der Universitt Mnchen, 1950-1962.

    79 r. Guardini, Die Lebensalter, Ihre ethische und pdagogische Bedeutung, Wrzburg 1957, 79.

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    do conjunto, delinear a tica da existncia crist. A articulao torna-me sempre mais clara. Novamente como estrutura viva, partindo do evento da revelao, da Histria sagrada. A moralidade crist entendida como ser chamados por Deus a colaborar com Sua atividade.80

    Especialmente a ltima frase apresenta muito bem a concepo que Guardini possui da moral crist. Admirvel o fato de no consultar outros livros para a preparao das aulas, isto mostra o seu empenho em procurar um autntico delineamento para tica crist de acordo com a revelao e evitar correntes ticas que no correspondam a esta viso. Noutra anotao autobiogrfica, que tambm descreve a preparao para as aulas, temos uma indicao da sua concepo sobre a tica:

    Se esta ltima parte das minhas aulas de tica sai bem, temos um esboo de uma autntica moral crist, no deduzida de conceitos e mandamentos, mas sim inspirada no acontecimento concreto da salvao.81

    Dos dois trechos acima citados, pode-se afirmar que a proposta tica de Guardini, aquela de uma tica da primeira pessoa82, ou seja, uma concepo moral que no vista simplesmente como um conjunto de obrigaes, mas entendida como o chamado de Deus a colaborar na Sua atividade. Deste modo, segundo a concepo de Guardini, a tica no se esgota no estudo dos preceitos do comportamento justo, honesto e correto

    80 R. Guardini, Stationen und Rckblicke, 195.81 id., ibid., 81.82 tica da primeira pessoa, correspondente tica das virtudes, a proposta

    aristotlico-tomista que se ocupa principalmente do bem supremo ou da felicidade do homem, a proposta que procura determinar qual tipo de vida e qual comportamento sejam os mais apropriados para alcanar a felicidade. Nesta proposta a reflexo moral assume a perspectiva interna do sujeito moral autor da sua conduta, ou seja, a perspectiva da pri-meira pessoa, do sujeito que vive uma vida de virtudes. As outras propostas de reflexo moral so chamadas de tica da terceira pessoa, pois partem de uma perspectiva que constringe a considerar e avaliar a ao humana como ao de uma terceira pessoa, o que resulta em uma tica da obrigao (cf. E. Colom A. rodrGuez luo, Scelti in Cristo per essere santi Elementi di Teologia Morale Fondamentale, Roma 2003, 29-30). Nos ltimos anos foram publicadas diversas obras que estudam a tica segundo esta proposta, entre estas: G. abb, Felicit, vita buona e virt; G. abb, Quale impostazione per la filosofia morale? (Ricerche di filosofia morale 1); M. rhonheimer, La prospettiva della morale Fondamenti delletica filosofica; A. rodrGuez luo, Etica general; A. maCintyre, After the virtue, saggio di teoria morale.

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    e nem na teoria dos deveres, mas tem como preocupao interpretar a existncia humana.83

    Para compreender a tica de Guardini, deve-se considerar que ele, como outros autores contemporneos a ele, consagra-se anlise das realidades concretas, como j tivemos a oportunidade de constatar ao considerar a sua doutrina da oposio e a Weltanschauung catlica. Porm, ao analisar as realidades concretas, Guardini no perde de vista o conjunto no qual elas se encontram inseridas:84

    Se algum perguntasse: eu gostaria de progredir na vida moral; por onde devo comear? , poderamos responder: onde quiseres. Podes comear por um defeito que percebeste na tua vida profissional. Podes faz-lo no que toca s exigncias da comunidade, da famlia, da amizade, onde constataste uma falha. Ou percebeste onde te aflige uma paixo e tratas de acabar com ela. No fundo depende somente de que tenhas a inteno honrada e decididamente comeces a agir em algum lugar: ento um influir no outro. Pois a vida do homem uma totalidade; se ele se aplica em um lugar com deciso, isto desperta a sua conscincia e revigora sua fora moral tambm nos outros do mesmo modo como um defeito em um aspecto da vida influi em todos os outros.85

    Como j mencionamos na introduo ao mtodo de Guardini, ele esfora-se por captar os aspectos do real que parecem contradizer-se, mas que na verdade apenas se contrastam e se complementam. Deste modo, ele considera a vida espiritual cheia de tenses internas, que se expressam atravs de diferentes esquemas como: liberdade-norma, contedo-forma, imanncia-transcendncia, palavra-silncio, indepen-dncia-solidariedade.86

    Para Guardini, o estudo da tica deve partir da experincia tica, e esta uma experincia real, ou seja, surge somente de uma verdadeira vida tica: Deve-se t-la tomado a srio. necessrio ter vivido uma

    83 Cf. G. santambroGio, Letica delle virt in Guardini e Pieper, em: M. niColetti S. zuCal (edd.), Tra coscienza e storia. Il problema delletica in Romano Guardini. Atti del convegno tenuto a Trento il 15-16 dicembre 1998, Brescia 1999, 175.

    84 Cf. A. lpez Quints, La verdadera imagen de Romano Guardini, 106.85 r. Guardini, Tugenden. Meditationen ber Gestalten sittlichen Lebens, Wrzburg

    1967, 34.86 Cf. lpez Quints, La verdadera imagen de Romano Guardini, 107.

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    quantidade suficiente de esforos, lutas, conflitos e superaes para com isso poder julgar com uma certa autoridade.87

    Continuando o pensamento do que foi expresso anteriormente, importante ressaltar que o interesse pela tica nunca impulsionou Guar-dini a elaborar um tratado sistemtico. A sua proposta de tipo fenome-nolgico, tendo como meta esclarecer os fenmenos da vida tica e o seu significado. As palavras de Guardini na introduo s aulas de tica na Universidade de Munique o confirmam:

    O curso de aulas s quais damos incio hoje intitulado Vida moral; fenmenos fundamentais da tica. Este ttulo acena ao fato que no nos ocuparemos tanto de conceitos e definies, mas nos preocuparemos de individuar as formas nas quais se cumpre a vida moral, para depois poder reconhec-las na realidade da vida quotidiana.88

    Um trecho de outra obra tambm exprime qual seja o propsito de Guardini ao tratar de temas ticos:

    Sero tratadas algumas questes da vida interior, portanto de carter tico-religioso. No entanto, com isso no se pretende apresentar um sistema de tica, mas somente esclarecer um fecundo ponto de partida; um entre outros.89

    A inteno de Guardini nas aulas de tica na Universidade de Munique era em primeiro lugar uma fenomenologia da tica, ou seja, uma descri-o da experincia moral que tem como meta a essncia. E isto nasce da convico de Guardini, segundo a qual o homem no tem uma natureza no sentido de um sistema de determinaes j dadas de uma vez por todas, como um cdigo gentico, mas as suas determinaes biopsquicas, bem como as suas disposies e faculdades espirituais, individuais e sociais entram em um processo de contnua mutao na interao com o mundo e no encontro com os outros, de modo que Guardini afirma que o homem no possui uma natureza exatamente no sentido dos animais e das plan-tas.90 Guardini afirma que o homem existe em vista do encontro com as coisas, com os outros homens,91 e este encontro acontece no modo da

    87 r. Guardini, Ethik. Vorlesungen an der Universitt Mnchen (1950-1962), Mainz-Paderborn 1997, 290.

    88 id., ibid., 11.89 r. Guardini, Das Gute, das Gewissen und die Sammlung, Mainz 1931, 9.90 Cf. r. Guardini, Ethik, 7-8.91 id., ibid., 8.

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    liberdade, ou seja da possibilidade de escolha e da aceitao de respon-sabilidade para as prprias escolhas. E, portanto, uma concepo tica correta s possvel tendo em conta estas peculiaridades que derivam da essncia particular do homem, ou seja, que o homem pessoa, liberdade e no um ser de natureza, entendendo por natureza um esquema fixo de comportamentos.92

    Como vimos, Guardini ensina que a tica no pode ser baseada em um determinismo da natureza, contudo, ele no aceita a representao da absoluta historicidade do ser humano ou da sua dependncia de determi-nadas estruturas materiais histrico-sociais, como pensa o marxismo, nem a representao do homem como absoluta possibilidade, como pretende o existencialismo. Aplicando a sua concepo do ser e da vida, como complexa dialtica de oposies polares, ele pretende considerar o ser humano na sua globalidade e, portanto, em uma tenso conciliada entre natureza e liberdade, entre determinaes e potencialidades, entre finitude e abertura ao novo.93 Neste sentido, Guardini escreve sobre a relao entre as determinaes no homem e a sua liberdade:

    O ser humano traz em si autnticas determinaes essenciais e inserido em ordens que por sua vez derivam de determinaes essenciais, que, porm, esto na esfera da liberdade, a tais ordens a liberdade pode dizer sim ou no, pode influenciar em maneira justa ou errada a sua vida, pode edific-la ou destru-la.94

    Deste modo, constatamos que a riqueza e a positividade do mtodo fenomenolgico adotado por Guardini residem em particular no fato que tal mtodo move a partir da realidade assim como e procura individuar nela a intrnseca necessidade da tica.95

    Especialmente tratando-se dos temas desenvolvidos nas aulas de tica na Universidade de Munique, importante ainda sublinhar a posio de Guardini quanto relao entre tica e revelao. A obra pstuma tica, assim como as aulas que lhe deram origem, est divida em duas partes principais: a primeira dedicada tica natural e a segunda que trata da

    92 Cf. G. Cantillo, LEthik di Romano Guardini nellorizonte delletica del Novecento, em: M. niColetti S. zuCal (edd.), Tra coscienza e storia, 85-86.

    93 Cf. r. Guardini, Ethik, 9.94 id., ibid., 10.95 Cf. Z. Kopriva, La fondazione personalistica delletica in Romano Guardini, Roma

    2006, 66-67.

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    tica e revelao, ou seja, da tica crist em sentido estrito. Apesar desta diviso metodolgica, para Guardini no existe uma tica puramente na-tural, pois segundo ele, a nossa existncia no outra coisa que o contexto de pessoas e coisas, de vicissitudes e de ordens, no qual se insere o fato da revelao e, portanto, a tica no pode ignorar este fato.96

    b) Influncia de Boaventura e Agostinho

    importante sublinhar a influncia de Boaventura e Agostinho no pensamento de Guardini, especialmente em mbito tico. A teologia de Boaventura foi tema da sua tese de doutorado e da tese de habilitao para a livre-docncia, como vimos acima nas referncias biogrficas. Mais tarde, Guardini dedicar duas obras importantes ao pensamento de Agostinho: A converso de S. Agostinho (1935) e Incio (1944).97 Esta influncia certamente harmnica, pois Boaventura um pensador de linha agostiniana.98

    Guardini essencialmente um pensador de cunho agostiniano.99 No entanto, Boaventura permanece sempre presente, como mestre secreto, indiscutvel e permanente.100 A presena destes dois pensadores, contudo, no sempre evidente, podemos constat-lo na sua obra pstuma tica, ali esto presentes poucas citaes de Agostinho e nenhuma de Boaventura, porm a influncia destes dois mestres faz-se sempre notar.101

    Como j foi dito acima, apesar de decidir-se pela linha de Agostinho e Boaventura, Guardini no se ope a Toms de Aquino, na verdade o

    96 r. Guardini, Ethik, 11-12.97 Ttulos originais: Die Bekehrung des Aurelius Augustinus. Der innere Vorgang in

    seinen Bekenntnissen (1935); Anfang. Eine Auslegung der ersten fnf Kapitel von Augu-stinus Bekenntnissen (1953).

    98 O pensamento de Boaventura alimenta-se de diversas fontes (filosofia grega, rabe e hebraica), um pensamento cristo e agostiniano, mas tambm platnico com algum influxo aristotlico, no entanto, Boaventura possui uma peculiaridade que o distingue de Agostinho, de Anselmo, de Bernardo e de Toms de Aquino: este o misticismo francis-cano; cf. B. mondin, Dizionario dei Teologi, Bologna 1992, 125-126.

    99 Cf. H. Kuhn, Romano Guardini. Der Mensch und das Werk, Mnchen 1961, 86.100 Cf. S. zuCal, Prefcio a R. Guardini, La visione cattolica del mondo, Brescia

    1994, 8.101 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, em: F. L. marCo-

    lunGo S. zuCal (edd.), Letica di Romano Guardini. Una sfida per il post-moderno, Brescia 2005, 27.

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    aprecia para corrigir os perigos que ocorrem seguindo com excesso o pla-tonismo de Agostinho e Boaventura.102 Ele chega a afirmar que Agostinho e Toms de Aquino formam as duas colunas principais da teologia.103

    Guardini acusa a tica moderna de ter perdido o conceito de verdade das coisas, atribuindo a verdade somente ao pensamento, enquanto que a tradio antiga e medieval afirmava que as coisas so verdadeiras em si mesmas.104 O pensamento de Boaventura insere-se nesta tradio, seguindo o pensamento de S. Agostinho. De acordo com Guardini o pensamento medieval considera que as coisas trazem em si normas de verdade, pois a natureza compreendida como obra de Deus, o pensa-mento moderno, pelo contrrio, perdeu este conceito considerando o homem sozinho diante da natureza, ele no est diante dela como a obra de Deus que deve ser respeitada, e seu agir no acontece sob os olhos de Deus, o homem visto como autnomo.105

    A influncia do pensamento platnico de Agostinho e Boaventura consentiu a Guardini de conceber uma tese antropolgica que essen-cial para o seu pensamento: o homem no definvel a partir da sua prpria natureza, mas somente a partir de Deus e em relao a Ele106. Assim se compreende como o fundamento do eu est na sua exclusiva relao com Deus e que Guardini repita a tpica dualidade agostiniana.107 Porm, esta atitude comporta o perigo de cair num desprezo da natureza e do mundo, e para evit-lo Guardini ensina que Agostinho deve ser o guardio do interior do santurio, tendo como guia Toms de Aquino.108 Guardini reconhece que do pensamento de Agostinho poderia derivar de modo indevido um tipo de sobrenaturalismo que pe em perigo a verdade da natureza e a prpria pureza do sobrenatural;109 e poderia deri-var ainda, como efeito nefasto, a falsa idia de encontrar-se na condio justa quando o mundo menosprezado, a vida torna-se irreal, quando

    102 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 27.103 R. Guardini, Die Bekehrung des Aurelius Augustinus. Der innere Vorgang in seinen

    Bekenntnissen, Mnchen 1959, 19.104 Cf. r. Guardini, Ethik, 306.105 Cf. id., ibid., 1034-1035.106 Cf. id., ibid., 648.107 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 29-30.108 Cf. R. Guardini, Die Bekehrung des Aurelius Augustinus, 123-124.109 Cf. id., ibid., 126.

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    paralisada a fora de deciso.110 Guardini reconhece que a reabilitao do finito possvel somente seguindo a guia de Toms de Aquino, e assim ele valoriza a doutrina tomista da alma forma corporis para fazer do neoplatonismo de Agostinho e Boaventura um platonismo concreto, que em vez de ignorar a dignidade do finito, defenda-a explicitamente.111

    Outro aspecto importante do influxo de Agostinho e Boaventura no pensamento de Guardini aquele da correspondncia entre amor, luz e conhecimento: lumen cordis e lumen mentis,112 para tanto basta pensar no tema da tese de doutorado e da habilitao livre-docncia. Guardini se esfora por mostrar que em Boaventura o lumen mentis esplendor de verdade e ao mesmo tempo fervor de amor e que portanto torna capaz de agir retamente.113

    Outro ponto essencial da influncia de Agostinho e Boaventura aquele da estrutura hierrquica do real, a gradatio entium, segundo a qual as coisas no tm somente exatido, mas tambm dignidade ontolgica diferente. De fato o pensamento medieval inimigo de todo igualitarismo na sua viso ontolgica. Mas esta concepo hierrquica no somente metafsica, pois refere-se tambm relao entre os valores, e portanto contm um significado tico essencial. Na Idade Mdia pensa-se primei-ramente nos grandes intelectualistas aristotlicos, como Alberto Magno e Toms de Aquino, mas ao lado desta corrente est aquela platnico-agostiniana, menos aguda no que diz respeito teoria, mas dominada por uma profunda plenitude do corao, cujo centro de gravidade est no amor, e Guardini recorre a esta corrente para encontrar a orientao tica fundada sobre a centralidade do corao e sobre o primado do amor.114

    Para chegar a esta orientao tica fundada sobre a centralidade do corao Guardini fundamenta-se principalmente no pensamento de Agos-tinho. O corao como centro do homem, a partir de Agostinho, adquiriu uma importncia fundamental na histria da espiritualidade ocidental.115

    110 Cf. id., ibid., 156.111 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 30.112 Cf. R. Guardini, Johanneische Botschaft. Meditationen ber Worte aus den Abschieds-

    reden und dem ersten Johannesbrief, Freiburg im Breisgau 1966, 103.113 Cf. . sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 32.114 Cf. id., ibid., 33.115 Cf. A. maxsein, Philosophia cordis bei Augustinus, em: Augustinus Magister, I,

    tudes Augustiniennes, Paris 1954, 357-371.

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    Guardini se estende sobre este tema quase em toda parte, tambm na tica. Fiel ao pensamento agostiniano, Guardini sublinha que a figura do corao no colocada em oposio ao intelecto e em termos sentimentais, mas como dimenso do esprito, entendido como instncia terceira e superior, alm do corpo e da alma.116 Esta identificao do corao com o esprito entendido em perspectiva tica, luz de uma filosofia dos valores pela qual o corao torna-se rgo que faz a experincia do valor, que recebe imediatamente a vibrao suscitada pelo valor e corresponde a ela com uma vibrao anloga.117

    Em consonncia com o pensamento de Agostinho e Boaventura, Guar-dini compreende que o corao no indica uma inteleco abstrata, mas o entrelaamento de corpo-alma voltado a suscitar o impulso tico, sendo o rgo que colhe o bem e adverte a exigncia que esse pe.118 Portanto, o corao indica o sentir, o ser tocado interiormente e o vivenciar119 que alcana a dimenso da verdadeira moralidade, na qual possvel falar do dever: a simples norma limita-se a valer e no pode dizer tu deves, o que possvel somente a uma instncia absoluta, ou seja, a Deus, que o diz de fato no corao do homem entendido como vivente concreto.120

    A tradio que se exprime na philosophia e theologia cordis representa um dos pontos mais altos da espiritualidade ocidental. Segundo Guardini, Boaventura o criador do sistema da philosofia e theologia cordis na tradio ocidental, tradio essa que foi preparada por Plato, passou por Paulo, Agostinho, Bernardo de Claraval, S. Francisco de Assis e enfim foi sistematizada por Boaventura. Segundo Guardini, este sistema foi retomado por Pascal e muitos outros filsofos.121 A maior parte destes pen-sadores citados por Guardini so objeto de interesse nos seus estudos.

    Um aspecto muito importante nesta tradio da philosophia e theo-logia cordis o conceito de vontade boa, pois este decisivo para compreender a distncia que h entre o pensamento moderno e aquele medieval. Para Guardini, o pice da tica moderna foi alcanado com a

    116 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 34.117 r. Guardini, Ethik, 104.118 Cf. id., ibid., 182.119 Cf. id., ibid., 155-156.120 Cf. id., ibid., 503.121 Cf. R. Guardini, Christliches Bewutsein. Versuche ber Pascal, Mnchen 1956,

    185-186.

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    idia kantiana segundo a qual somente a vontade pode ser boa, porm esta idia conduz a uma tica pura, separada de todos os efeitos da vida concreta; esta concepo renuncia a categoria de perfeio e limita-se a sublinhar a intencionalidade, tornando-se assim uma tica do dever puro, que sem contedo, exalta a mera vontade abstrata, sem existncia concreta.122 Deste modo, a tica formal do dever, tpica do pensamento moderno, torna-se estril e privada de contedo realmente humano; em Agostinho e Boaventura, pelo contrrio, pode-se encontrar um grande modelo de tica da vontade concreta.123

    De acordo com Boaventura, a vontade boa em relao e por causa do seu fim, cuja bondade reside na sua intrnseca perfeio ontolgica, e assim, quanto mais elevada a dignidade na ordem do ser, tanto mais eminente ela ser na ordem do fim. Como o fim mais elevado Deus, a vontade humana encontra assim a sua satisfao completa somente no amor para com Deus, e esta propriamente a bona voluntas. Deste modo, para estar na situao do bem, no basta quer-lo, nem apenas ter uma inteno reta, deve-se tambm fazer o bem atravs das virtudes. Mas, como o homem no capaz de compreender o verum com as suas foras naturais, do mesmo modo no pode fazer o bem sem a ajuda divina; conseqentemente, iluminao divina das cincias deve corresponder tambm uma iluminao divina das virtudes. Aqui podemos referir a tica de Guardini, quando afirma que a norma, em si mesma, pode somente valer, enquanto somente Deus pode realmente dizer tu deves; porm devemos entender tudo isso no no sentido heternomo do voluntarismo divino, mas no sentido prprio do pensamento de Boaventura, segundo o qual a interveno do dom divino conduz perfeio das virtudes naturais.124 Esta uma influncia de Boaventura sobre Guardini nota-damente importante para o tema da tica das virtudes no pensamento guardiniano.

    importante ainda mencionar a influncia do pensamento agostiniano a respeito do problema do mal. Na tica de Guardini, como naquela de Agostinho o problema do mal ocupa um lugar de destaque. Neste ponto Guardini fiel ao pensamento agostiniano, seguindo a tese neo-platnico-agostiniana sobre a no substancialidade do mal. Ele procura

    122 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 36; cf. tb. R. Guardini, Die Bekehrung des Aurelius Augustinus, 70-71.

    123 Cf. I. sCiuto, Letica di Guardini tra Bonaventura e Agostino, 36.124 Cf. id., ibid., 36; cf. tb. boaventura, In II Sent., d. 38, a. 1, q. 1.

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    principalmente refutar a tentao do dualismo, mas tambm de sublinhar a inaceitabilidade da soluo que procura ver o mal como necessrio para entender o bem, porque o bem no tem necessidade do mal.125 justo reconhecer que o bem se torna mais luminoso quando oposto ao mal, mas bem e mal no podem ser pensados em oposio polar, pois neste caso ambos seriam necessrios e resultaria em um dualismo, que uma idia ainda muito viva no pensamento moderno, porm absolutamente errnea; entre bem e mal no pode existir polaridade, porque eles so contraditrios que no podem dar lugar a uma sntese mais alta, por isso o mal no pode ser considerado como plo oposto construtivo do bem. De acordo com Guardini, o mal no em modo algum um elemento necessrio para o mundo, ele , na verdade, aquilo que no deve ser, absoluta e simplesmente, para o mal no existe uma sntese, mas somente escolha, deciso.126

    Agostinho e Boaventura so fundamentais para a perspectiva tica de Guardini. Ao seguir Agostinho e Boaventura, Guardini motivado, sobretudo pela exigncia de corrigir o desvio tico em direo ao qual o pensamento moderno caminha. De modo particular, Guardini retomou deles a idia fundamental segundo a qual a tica perde-se, se ela esquece a sua relao essencial com a verdade das coisas, na qual consiste o bem. Segundo Guardini, Agostinho e Boaventura, bem como os outros medie-vais, podem ensinar-nos qual atitude devemos assumir para compreender em modo realstico a existncia: cultivar a tica entendida como um mover-se na criaturalidade.127

    c) Fundamentos cristolgicos da tica de Guardini

    No possvel estudar o pensamento tico de Guardini sem mencionar os seus fundamentos cristolgicos, pois para ele a existncia crist em sua totalidade fundamenta-se em Cristo. No final da segunda parte da tica, aquela destinada ao tema da tica e Revelao, encontra-se um projeto para o que seria a ltima parte da tica. Neste esboo, encontramos uma seo intitulada A pessoa de Cristo, a qual tinha como meta tratar da tica crist tendo como chave o prprio mistrio de Cristo.128 Apesar de

    125 Cf. r. Guardini, Ethik, 65.126 Cf. r. Guardini, Ethik, 75-77.127 Cf. id., ibid., 39-40.128 Cf. r. Guardini, Ethik, 1240.

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    tratar-se apenas de um esboo, possvel concluir que para Guardini o seguimento de Cristo no apenas uma palavra-chave, mas a palavra fundamental da tica crist, ou mais precisamente o seguimento de Cristo a norma fundamental da tica crist.129 Como afirma A. Schilson: ao traar a estrutura fundamental e o carter teolgico da tica de Guardini no de fato possvel evitar este conceito central (= o seguimento de Cristo).130

    No entanto, para fundamentar estas idias, deve-se recorrer a outros escritos de Guardini, justamente em razo da limitao do esboo desta ltima parte da tica. De grande importncia para compreender esta centralidade do seguimento de Cristo como fundamento da tica, temos as afirmaes de Guardini na sua obra Das Wesen des Christentums (A essncia do Cristianismo); aquilo que nesta obra afirmado sobre a insubstituvel centralidade da pessoa de Jesus Cristo no Cristianismo, tem conseqncias para uma reorientao em relao s normas ticas determinantes no Cristianismo.131 A seguir reproduzimos um trecho do captulo conclusivo desta obra:

    No h uma definio abstrata da essncia do Cristianismo. No existem uma doutrina, uma estrutura de fundo de valores morais, uma atitude reli-giosa e uma ordem de vida, que possam ser separadas da pessoa de Cristo, e das quais depois se poderia afirmar que sejam crists. O que cristo Ele mesmo; aquilo que chega ao homem atravs dEle, e a relao que o homem tem com Deus atravs dEle. Um contedo doutrinal cristo se provm da sua boca. A existncia crist se o seu movimento determinado por Ele. Em tudo aquilo que queira ser cristo, Ele deve estar co-presente. A pessoa de Jesus Cristo na sua unicidade histrica e no seu eterno esplendor essa mesma a categoria que define o ser, o agir e a teoria daquilo que cristo. Isto um paradoxo. [...] No lugar habitualmente ocupado por um conceito geral comparece uma pessoa histrica. A mesma coisa vale tambm para o comportamento tico. Tambm aqui h normas ltimas da justeza e da obrigatoriedade. Estas normas, exatamente porque normas, so sempre de natureza geral. Justamente por esta sua natureza, elas so aptas a acolher em si a situao particular e obtm concreta aplicao atravs da

    129 Cf. a. sChilson, Una etica cristologica?, em: F. L. marColunGo S. zuCal (edd.), Letica di Romano Guardini. Una sfida per il post-moderno, Brescia 2005, 188-189.

    130 Cf. id., ibid., 189.131 Cf. id., ibid., 189.

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    ao. No agir cristo, ao contrrio, no lugar da norma geral est a pessoa histrica de Cristo.132

    claro o sentido destes esclarecimentos: a reflexo sobre aquilo que autenticamente cristo, que Guardini chama essncia do Cristianismo, requer uma nova orientao radical e uma concentrao basilar sobre o centro que anima e forma tudo, Jesus Cristo.133 Atravs desta citao da Essncia do Cristianismo, j desponta outro aspecto importante quanto centralidade de Cristo no pensamento de Guardini, e especificamente em relao tica, ou seja, o conceito de Mediador na descrio do significado de Jesus Cristo para a histria da salvao:

    Do ponto de vista cristo no existe qualquer relao imediata do homem com Deus. [...] Nas suas consideraes no acontece qualquer conhecimen-to e afirmao em modo imediato; nenhuma aproximao, nenhum agir por virtude prpria; nenhuma participao, nenhuma aquisio, nenhuma posse por iniciativa do homem. A relao com Ele ligada ao Mediador. Tudo aquilo que de cristo chega a ns a partir de Deus e igualmente, tudo aquilo que em sentido cristo vai de ns a Deus deve passar atravs deste ltimo. E na verdade esta mediao no significa somente o primeiro acesso. Esta no significa que aquilo que chega a ns a partir de Deus e vai de ns a Deus, deva antes de tudo ser descoberto, conquistado, doado pelo Mediador, sofrido por Ele, ousado, experimentado, para depois ter uma via imediatamente livre. A mediao constitui, na verdade, a forma essencial da relao crist com Deus e nunca pode ser retirada, sem que seja destruda a sua prpria essncia.134

    Deste modo, no incio de cada pensamento tico, Cristo est presente como passagem, porta e acesso, e como origem do amor e da graa de Deus para o mundo. A forma como a tica crist deve desenvolver-se impensvel sem a figura mediadora de Cristo. Aquele que quer agir eticamente em sentido cristo deve imitar o modelo de vida representado em Jesus Cristo e na sua histria, que reflete seja a obedincia absoluta do filho em relao ao pai, seja o amor e o cuidado do pai para com o filho. E aqui temos outro aspecto importante para a tica de Guardini, ou seja, a obedincia, esta corresponde ao modelo da imagem de Cristo, e

    132 r. Guardini, Das Wesen des Christentums, Wrzburg 1953, 81-82.133 Cf. a. sChilson, Unetica cristologica?, 190.134 Cf. r. Guardini, ibid., 36-37.

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    no somente inclui a liberdade, como tambm a fundamenta na verdade e na autenticidade.135

    Como vimos anteriormente, Cristo o centro da existncia crist e a relao do cristo para com Deus no existe sem a mediao de Cristo, Ele que forma cada aspecto da vida do cristo enquanto fundamento e centro da f. Portanto o conceito de seguimento de Cristo fundamental para a tica crist, assim como Guardini a concebe. No entanto, deve-se ter em conta o que Guardini entende com esta idia de seguimento de Cristo:

    Seguimento de Cristo quer dizer bem mais do que o simples pensar no exemplo de Cristo, como nos foi dado naquele tempo. viver com e a partir de Cristo hoje vivente na contemporaneidade. [...] O seguimento de Cristo pressupe ele mesmo um ser em Cristo (2Cor. 5, 17; Ef. 2, 13), que possvel somente de fronte quele que foi elevado, transfigurado. O seguimento no concebido com categorias sociolgicas e psicolgicas, mas com a categoria ntico-religiosa cunhada por Paulo e Joo: Cristo em mim, eu em Cristo (Jo. 6, 56).136

    Portanto, de acordo com Guardini, seguimento de Cristo no indica uma mera imitao de Cristo, uma aproximao psicolgica ou uma diretiva puramente normativa. No fundo, o seguimento no significa uma condio puramente tica, estendida somente ao dever e obedincia, mas inclui e atualiza em modo mais completo e fundamental aquele ser em Cristo que conquistado antes de tudo na f e depois confirmado continuamente nas aes.137

    Outro aspecto do seguimento de Cristo segundo a concepo de Guar-dini a variedade de formas concretas que o seguimento de Cristo pode assumir nos diversos modos de existncia humana, porm, mantendo a firme convico de que estas diversas formas devem em cada caso estar ligadas a Cristo que une a todos:

    A forma que faz do cristo um cristo, que deve entrar em todas as suas expresses, ligar em unidade todos os diversos eventos da sua vida, que deve ser reconhecida em tudo, o Cristo nele. Em cada um de modo diferente segundo as peculiaridades da sua natureza: no homem em maneira diferente que na mulher, na criana em modo diferente que no adulto, diversamente nesta atitude em comparao quela. Diferente nos tempos e nos eventos

    135 Cf. a. sChilson, Unetica cristologica?, 191.136 R. Guardini, Liturgie und liturgische Bildung, Wrzburg 1966, 143.137 Cf. a. sChilson, ibid., 195.

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    diversos; na alegria e na dor, no trabalho ou no encontro com os outros. Mas sempre Ele. Atravs da inteira multiplicidade e para cada mudana passa um nexo do devir, um crescimento. Em cada cristo cristo vive, por assim dizer, novamente a sua vida: primeiramente criana e cresce at alcanar a idade madura do cristo adulto. E nesta via Ele cresce para que a f cresa, o amor se reforce, o cristo tome sempre mais conscincia do seu ser cristo e viva a sua existncia com profundidade e responsabilidade sempre maior.138

    As diversas formas de seguimento de Cristo so compreendidas como formas concretas da mediao de Cristo que continuam a operar na hist-ria.139 Segundo Guardini, Cristo que viveu e concluiu a sua vida em um tempo histrico, volta a viver em cada homem.140 Guardini apresenta de modo claro a proposta da tica crist tendo como centro o seguimento de Cristo:

    Cristo no ensina nem uma maior sensatez, nem um cumprimento mais alto do dever, mas nos diz: procura compreender aquilo que te toca a partir da vontade do Pai. [...] Se fao assim, o que acontece ento? Continuarei a agir com sensatez e utilidade, mas sob os olhos de Deus. [...] Continuarei a esforar-me por agir segundo as normas ticas; farei ateno quilo que justo ou injusto e aspirarei a ser sempre mais confivel no juzo da minha conscincia. Mas tudo isso na presena vivente de Cristo. A sua figura me ensinar a ver coisas que de outro modo no teria visto. Mudar os meus critrios de juzo.141

    3. A doutrina das virtudesA ttulo de introduo, recordemos que com a tica de cunho kantiano

    e outras correntes de tica na poca moderna,142 as virtudes perderam o papel que ocuparam at ento na tica ocidental. De fato, a exposio da vida moral atravs do estudo das virtudes entra na histria da tica atravs de Aristteles, ele se ope ao ideal socrtico, segundo o qual o agir tico

    138 R. Guardini, Der Herr. Betrachtungen ber die Person und das Leben Jesu Christi, Wrzburg 1964, 542.

    139 Cf. a. sChilson, Unetica cristologica?, 197.140 Cf. R. Guardini, Das Christusbild der paulinischen und johanneischen Schriften,

    Wrzburg 1961, 77.141 R. Guardini, Der Herr, 348-349.142 Para um reconhecimento destas diversas correntes de filosofia moral, recomendamos

    o livro de GiuseAbb: Quale impostazione per la filosofia morale? Ricerche di filosofia morale (cf. nota de rodap n. 83).

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    depende das idias claras sobre o bem e o mal, chegando concluso de que no bastam as idias, mas que preciso que estas se materializem no bom agir.143 Para Aristteles era evidente que no suficiente para o homem apenas realizar algumas boas obras, pois somente isto no seria suficiente. Para que o homem pratique o bem, necessrio que ele adquira as virtudes, pois a conduta humana se consolida atravs dos hbitos. O agir de modo eticamente correto deve ser contnuo at criar hbitos de boa conduta. E, portanto, Aristteles considerava a virtude como o maior dos bens humanos. Assim se iniciou a moral das virtudes, que exercer uma enorme influncia na filosofia tica de todos os tempos.144

    A moral tomista expe-se de acordo com o esquema das virtudes, seguindo o modelo aristotlico. A Moral Especial de Toms de Aquino dedicada integralmente ao estudo das virtudes, constituindo a parte mais extensa da Summa Theologiae. De acordo com Pinckaers:

    o estudo das virtudes que nos proporciona a Secunda Secundae um dos grandes modelos do gnero e, indubitavelmente, o mais acabado que possui a teologia crist. Em conseqncia, esta anlise monumental se imps tradio teolgica.145

    A partir de Toms de Aquino a exposio da Teologia Moral seguindo o esquema das virtudes tornou-se uma corrente muito importante. Outra corrente, de modo especial aquela dos moralistas jesutas, optou pela expli-cao dos contedos morais seguindo o Declogo. Atualmente existe uma forte tendncia ao regresso Teologia Moral de acordo com o esquema das virtudes.146

    O tema das virtudes tratado diretamente em duas obras de Guardini: na sua obra Virtudes - Meditaes sobre formas da vida moral e na sua obra pstuma tica, onde h um ponto dedicado descrio do fenmeno da virtude e, naturalmente, alm deste ponto especfico, existem outras passagens que se referem ao tema. No entanto, o tema das virtudes no se limita a estas duas obras. De acordo com S. Zucal, a filosofia da virtude central no pensamento de Guardini; a interpretao do ato virtuoso como ato extraordinariamente vital, de vida transbordante e no diminuda, de

    143 Cf. A. Fernndez, Diccionario de Teologa Moral, Burgos 2005, 1435.144 Cf. id., ibid., 1435.145 Cf. S. pinCKaers, Las fuentes de la moral cristiana, Pamplona 2000, 279.146 Cf. A. Fernndez, Diccionario de Teologa Moral, 1437; para uma bibliografia

    sobre o tema cf. supra, nota de rodap n. 80.

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    vida livre e no coagida, no est presente somente na sua obra Virtudes, mas manifesta-se em outras partes dos seus estudos, chegando a um tipo de concluso na sua obra pstuma tica.147 Nos prximos pontos nos dedicaremos de modo especial a alguns temas tratados nestas duas obras, sem deixar de considerar, quando necessrio, passagens de outros escritos de Guardini.

    a) A virtude na tica de Guardini

    Guardini, de acordo com a tradio tambm distingue entre virtudes teologais e virtudes cardeais. De acordo com Guardini, a virtude teo-logal, seja ela a f, a esperana ou a caridade, tem sempre uma atribuio e uma origem divina, esta no pode ser uma propriedade humana, neste sentido Guardini ao comentar os escritos de S. Joo escreve: O amor, do qual a mensagem crist fala no comea no corao do homem, mas em Deus.148 Somente atravs de um processo descendente e participativo ela pode ser transmitida como dom ao homem. Estas virtudes teologais, justamente porque so divinas so hierarquicamente as virtudes supre-mas. Segundo Guardini, essas virtudes teologais

    so infusas, irradiadas em ns, e assim dada ao homem a participao nelas. Com isso elas tambm se tornam virtudes humanas no sentido mais profundo. Somente crendo, amando e esperando, o homem torna-se realmente homem. Em sentido divino ele torna-se tal, somente se obtm participao vida santa de Deus.149

    A caracterstica prpria das virtudes cardeais ou humanas diferente das virtudes teologais, o seu estatuto ontolgico um estatuto antropolgico, no mais divino, o que no significa automatismo soberbo ou auto-suficincia humana, mas sim um movimento ascendente da parte do homem, que orienta teologicamente a existncia humana, que quer reencontrar o pacto de comunho com Deus.150 A apresentao que Guar-dini faz nas duas obras que mais nos interessam neste trabalho, Virtudes e tica, compreende as virtudes humanas; porm, esta apresentao de

    147 Cf. S. zuCal, Romano Guardini e la riabilitazione della virt, em: M. niColetti S. zuCal (edd.), Tra coscienza e storia, 127. Sobre o tema das virtudes na sua obra tica, cf. R. Guardini, Ethik, 316-329, 393, 473, 514, 630.

    148 R. Guardini, Johanneische Botschaf, 95.149 r. Guardini, Wille und Wahrheit. Geistliche bungen, Mainz-Paderborn 1991,

    145.150 Cf. S. zuCal, Romano Guardini e la riabilitazione della virt, 128.

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    Guardini um tanto original, pois no trata as clssicas virtudes cardeais, mas sim outras virtudes humanas, e em uma perspectiva fenomenolgica, como veremos adiante.

    Na sua obra pstuma tica, o tema da virtude tratado na terceira seo que considera a realizao tica que por sua vez est inserida na primeira parte que trata da moralidade natural. Guardini considera dentro deste captulo (A realizao e os seus graus) primeiramente os processos ticos entendidos como fenmenos da realizao, a seguir trata o conhecimento tico, a inteno, a passagem realizao externa, a ao boa e por fim considera a virtude.151

    Nestas pginas da tica dedicadas virtude, Guardini apresenta o que significa a virtude, mostrando o processo no qual ela se origina, ou seja, dentro da ao na qual se realiza o bem. Em geral a determinao da virtude implica sua aquisio sucessiva atravs de atos livres, que possibilitam o crescimento da inclinao da respectiva virtude. Um dficit neste crescimento equivale ao declnio da virtude, enquanto que a natura-lidade da virtude no significa nem equilbrio automtico nem inclinao iniciante, mas uma inclinao conquistada atravs do exerccio, a assim chamada segunda natureza.152 Em todo caso evidente o contraste da virtude em relao ao ato singular, como mostra a seguinte citao:

    Falamos da ao na qual se realiza o bem. Tal ao um processo nico que se origina de uma determinada situao ou por sua vez a determi-na. Pode ser que ela permanea isolada, que ela no se repita, mesmo l onde deveria repetir-se. Por exemplo, uma vez eu disse a verdade em uma situao difcil e isto me custou algo. [...] Mas pode tambm acontecer que em uma ocasio sucessiva eu diga novamente a verdade, e depois outra vez e assim por diante e que, portanto, se me abra o significado de dizer a verdade, que eu dirija a minha ateno a isso, examinado-me continuamente, vigiando sobre as potencialidades negativas que esto em mim e esforando-me por super-las e assim por diante. Ento forma-se um contexto, uma atitude orientada a dizer continuamente a verdade, na realidade sempre. Da expresso isolada (que aconteceu uma vez), passa-se atitude da veracidade. Eis o que significa a palavra virtude.153

    151 Cf. r. Guardini, Ethik, V-VII.152 Cf. U. Ferrer, Zur Tugendlehre Romano Guardinis, em: R. KauFmann H. ebelt

    (edd.), Scientia et Religio. Religionsphilosophische Orientierungen, Dresden 2005, 277.

    153 R. Guardini, Ethik, 319

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    De um modo bastante concreto, examinando o caso da veracidade, Guardini procura explicar este fenmeno chamado virtude da veraci-dade. A repetio dos atos bons (dizer a verdade), a conscincia que compreende o sentido de dizer a verdade, o exerccio de continuar a dizer a verdade, assim Guardini procura descrever o processo da virtude, desde o seu surgimento, comeando a dizer a verdade, at a transformao em uma atitude de veracidade. Todavia, Guardini continua perscrutando este fenmeno, para saber o que significa precisamente a virtude.154

    Guardini explica, que neste processo do surgimento da virtude, o que acontece em primeiro lugar a facilidade sempre maior em que ocorre a realizao da ao boa em questo. Ele compara este processo com as leis da vida pelas quais um rgo se habitua sua funo quando utilizado freqentemente. Assim a realizao deste ato pouco a pouco comea a necessitar menos da reflexo particular, do controle e da guia e comea a cumprir-se espontaneamente; e isto significa que o ato virtuoso adquire o carter de naturalidade. Mas essa naturalidade deve ser entendida de modo correto:

    Esta naturalidade no se coloca, como aquela dos atos instintivos ou dos reflexos, ao incio, mas no fim, e no meio realizam-se reflexes, verifica-es, exerccios, superaes. A natureza adquirida mediante o exerccio constitui um elemento essencial caracterstico daquilo que ns entendemos por virtude autntica: o comportamento moral concernente torna-se bvio, pode-se confiar nele, ele age com segurana na respectiva situao. Deriva dele uma capacidade particular.155

    No entanto, existe tambm o perigo de que esta habilidade adquirida degenere em uma forma de rotina, em algo mecnico, onde no se adverte mais o significado daquilo que se faz. Outro perigo o que Guardini chama de virtuosismo, no qual a pessoa que pratica a virtude sente-se muita cheia de si mesma, compara-se com os outros, exibe-se; a atitude tpica de uma espcie de farisasmo, onde o fim no o bem em si, mas a prpria exaltao. Trata-se na verdade daquela corrupo do conceito de virtude, que ocasionou uma forte crtica em relao moral fundada nas virtudes, acarretando este