A Etica de Epicuro Um Estudo Da Carta a Meneceu

Embed Size (px)

Citation preview

  • Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    A TICA DE EPICURO: UM ESTUDO DA CARTA A MENECEU

    Turia Oliveira GomesOrientador Igncio Csar de Bulhes

    Mas hoje, toma-se por um sonhador aquele que vive conforme aquilo que ensina.(KANT apud P. HADOT, O que a filosofia antiga?, p. 12)

    Quero dizer, portanto, que o discurso filosfico [da antigidade] deve ser compreendidona perspectiva do modo de vida do qual , ao mesmo tempo, meio e expresso e, porconseqncia, que a filosofia antes de tudo uma maneira de viver, mas que est es-treitamente ligada ao discurso filosfico. (P. HADOT, Ibid, p. 18-9)

    ... procuras recordar os raciocnios capazes de ensejar a conquista de uma vida feliz.(DIGENES LARTIOS, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, 83-84)

    Resumo: Em Epicuro, encontramosuma tica voltada para a busca do pra-zer. Este entendido como ausncia dedor e de inquietao, a apona e a atara-xa. Essa tica pretende ensinar a evitarou a suportar a dor, o medo e o sofri-mento que esto sempre espreita. Epi-curo, na Carta a Meneceu, aborda aquesto da moral, a maneira de como ohomem deve encarar a vida, quandoprocura a felicidade. Essa busca tem umtrao que distingue Epicuro de outrosfilsofos. Para o primeiro, qualquer pes-soa, em qualquer idade, pode buscar afelicidade, dedicando-se filosofia. Des-taca-se ,ento, pelo seu materialismo eempirismo que se articulam tica. Suacontribuio apresentar uma tica quenos ensina a cuidar de nossa vida sem-pre como bem que tem seu acabamentona construo de uma comunidade fun-dada na amizade.

    Palavras-chave: tica, felicidade, pra-zer, amizade.

    Resumen: En Epicuro, encontramosuna tica volcada para la bsqueda delplacer. Este es entendido como ausenciade dolor y de inquietacin, la apona y laataraxa. Esa tica pretende ensear aevitar o a soportar el dolor, el miedo y elsufrimiento que estn siempre a laespreta. Epicuro, en la Carta a Meneceu,aborda la cuestin de la moral, la manerade como el hombre debe enfrentar lavida, cuando busca la felicidad. Esabsqueda tiene un razgo que diferenciaEpicuro de otros filsofos. Para elprimero, cualquier persona, en cualquieredad, puede coger la felicidad,dedicndose a la filosofa. Se destaca,entonces, por materialismo y empirismoque se articulan a la tica. Sucontribucin es presentar una tica quenos ensea a cuidar de nuestra vidasiempre como bien que tiene su trminoen la construccin de una comunidadfundada en la amistad.

    Palabras-llave: tica. Felicidad. Pla-cer. Amistad.

    Introduo

    tica um campo da filosofiavoltado para os problemas pr-

    ticos do homem. De modo geral, aspessoas, ao longo da histria hu-

    mana, tm estado preocupadas comquestes concernentes morte, so-lido, angstia, ao medo. A insegu-rana um componente da vida: a

    A

  • 148 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    fragilidade da sade fsica e mental,o inesperado dos acontecimentosnaturais e sociais. A tica, ento,procura refletir sobre esses proble-mas de modo a estabelecer um bemao mesmo tempo constante e poss-vel e, sobretudo, consistentementejustificado.

    Em Epicuro, encontramos uma ticavoltada para ensinar a evitar ou asuportar a dor, o medo e o sofri-mento que esto sempre espreita.Epicuro, na Carta a Meneceu, abor-da a questo da moral, da maneiracomo o homem deve encarar a vidae da busca da felicidade.

    O bem ltimo da vida humana, aquilopelo qual a vida vale ser vivida, afelicidade (eudaimona). Por sua vez,a felicidade, ausncia de sofrimen-tos fsicos e de perturbaes daalma (EPICURO, 1997, p. 43), oprazer duradouro da serenidade doesprito. Para alcan-la, necess-ria a reflexo filosfica que buscaestabelecer um conhecimento sobrea prpria natureza humana, seus de-sejos e prazeres; sobre o saber pr-tico do autodomnio; sobre a nature-za dos deuses; sobre o que e oque significa a morte para o homem;sobre a autarquia; sobre a liberdadee a responsabilidade; e, sobretudo,um exame cuidadoso (...) que remo-va as opinies falsas em virtude dasquais uma imensa perturbao tomaconta dos espritos(Id, Ibid, p. 45).Formulamos o seguinte problema:quais as caractersticas fundamen-tais da tica epicurista tal como ex-posta na Carta a Meneceu?

    A hiptese que o objetivo tico daataraxa se apoia sobre a conscin-cia adquirida pelo indivduo medianteuma rigorosa reflexo terica sobreesses temas.

    O estudo da tica epicurista rele-vante porque representa, em primei-ro lugar, uma doutrina at certoponto inovadora, que marca sua po-sio em relao a outros grandesmodelos ticos, e que, ao faz-lo,enriquece a nossa compreenso dafilosofia moral antiga, e, indireta-mente, enriquece o debate ticocontemporneo, na medida em queeste herdeiro daquele acontecidona Grcia.

    Em segundo lugar, preciso lembrarque os estudos sobre o epicurismoforam retomados de uns vinte anospara c (GUAL, 1996, p. 8). Desco-briu-se que, por diversas razes, elehavia sido posto no esquecimento.Esta tendncia foi revertida. Certa-mente, o estudo do epicurismo e su-as concepes ticas deveroconstar de modo crescente no ape-nas nos cursos de ps-graduaoem Filosofia, mas tambm na gradu-ao. Este, seguramente, constituimais um item que caracteriza a rele-vncia dos estudos em torno de Epi-curo.

    O texto bsico de pesquisa a Cartaa Meneceu, carta esta que se en-contra na obra de Digenes Larcio(livro X, 122 a 135). Trata-se do prin-ci-

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    149

    pal texto de Epicuro que versa jus-tamente sobre a conduta humanatendo em vistas alcanar a to al-mejada sade do esprito (LORENCINI, 1997, p. 14).

    As fontes primrias ainda esperam,em grande parte, pela traduo paraa lngua portuguesa. Apesar disso,como discriminado mais adiante, asobras essenciais de DIGENESLARCIO (1997) e LUCRCIO(1988) j so acessveis em nossalngua. Como fontes secundrias,temos as obras de comentadorescomo MORAES (1998),FARRINGTON (1968), DARAKI(1996) e o espanhol GUAL (1996).

    Quanto ao mtodo, a partir da snte-se de Epicuro elaborada na Carta aMeneceu, pretender-se- descer aosaspectos mais particulares e de mai-or riqueza de detalhes, para se teruma viso mais aprofundada do sen-tido da tica epicurista. Proceder-se- fazendo levantamento de frag-mentos epicuristas e de alguns co-mentadores, tratando do contextohistrico, da vida e obra de Epicuro,da formao do Jardim, das partesda filosofia relacionadas ao seu pen-samento e da Carta a Meneceu.

    Duas so as tradues da Carta aMeneceu, referidas neste trabalho, ade Mario da Gama Kury (DIGENESLARTIOS, 1997) e a de A. Lorenci-ni e E. Del Carratore (EPICURO,1997).

    Vida e Obra de EpicuroContexto Histrico

    A perda da liberdade poltica, com odomnio macednio e depois roma-no, alterou o quadro da vida gregana Antigidade, quando a Grcia vi-nha desenvolvendo sua experinciacultural e filosfica. O pas passou aser imenso organismo poltico, comum grande aglomerado de povos,passando a haver uma mistura entregregos e orientais, o que antes noacontecia.

    O grego, sem dvida, possua umsenso de liberdade muito diferentedo depois implantado. Pertencia auma cidade-Estado autnoma e tra-dicional, sabendo bem usufruir dosdireitos de democracia, sem submis-so a qualquer senhor.

    Contudo, a cultura grega se difundia,tornando-se comum a todos os Imp-rios Mediterrneos e dando incio aoperodo chamado helenstico. EmAtenas, que permanecia um centrode investigao filosfica, vo sur-gindo outros focos de atividades. Ascincias particulares passam a terdesenvolvimento autnomo, princi-palmente em Alexandria, desprega-das assim da antiga sabedoria filo-sfica. O sculo III a.C., por exemplo,foi tido como esplndido para asmatemticas e para a astronomia,mas foi tambm neste mesmo pero-do que se desenvolveram as cinci-as com base na observao. Surgeum novo tipo de intelectual, conheci-do como especialista e erudito, quecontribuiu para a valorizao da ci-

  • 150 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    ncia, no seu aspecto terico, libertada religio tradicional e dos dogmasda filosofia.

    As novas condies impostas aomundo grego tornavam impossvel aparticipao do indivduo no governoda plis, tal como o cidado gregoconhecera na fase democrtica. Oconhecimento deixa de ser prepara-o para a atividade poltica, pas-sando a se ocupar do aprimoramentointerior do homem. Distanciada daspreocupaes polticas, a filosofiaaspirava ao estabelecimento denormas universais para a condutahumana, tendendo a dirigir as cons-cincias. O problema tico torna-se,ento, o centro da especulao dascorrentes filosficas.

    A tica grega, nesta poca, procura-va o bem do indivduo. A plenitudede sua realizao requeria que fos-sem alcanadas, ao mesmo tempo, asabedoria e a serenidade interiores,principalmente nas circunstnciasadversas.

    Vida e Obra

    Epicuro nasceu por volta de 341 a.C.em Samos, ilha grega onde comeouseus primeiros estudos de filosofia.Morou tambm em Atenas, Clofon eLmpsaco, vindo a falecer em Ate-nas, em 270 a. C., quando tinha se-tenta e dois anos de idade.

    Seu interesse pela filosofia teriadespertado aps haver repudiado osmestres-escolas porque no soube-ram explicar-lhe a significao de

    caos em Hesodos (DIGENESLARTIOS, X, 2). Outra refernciasugere sua sensibilidade ao tema dador fsica e psquica e, ao mesmotempo, da inutilidade - e do erro - doshomens pedirem os favores dosdeuses: Epicuros andava junta-mente com sua me pelas casas depessoas pobres recitando frmulasexpiatrias (Id, Ibid, 4).

    Exerceu primeiramente, como seupai, o ofcio de mestre de letras e degramtica; s mais tarde abriu escolade filosofia (JOYAU, 1973, p.11).Em Atenas conheceu grandes pen-sadores e nela tambm comprouuma casa com jardim onde existiu OJardim de Epicuro. O Jardim era ha-bitado por mestres e discpulos deEpicuro que a cultivavam hortaliaspara o prprio sustento bem comoacampavam em barracas no Jardim.

    Apresentou testemunhos suficientesde seus sentimentos insuperavel-mente bons para com todos, sendoseus seguidores fascinados por suadoutrina. Sua piedade para com osdeuses e seu apego ptria no po-dem ser expressos com palavras(DIGENES LARTIOS, X, 10). Epor sua moderao, no participouda vida poltica. Apesar das pertur-baes que afligiram a Grcia, (...)no se meteu em assuntos pblicos,no desempenhou nenhum papelnas revolues (JOYAU, 1973, p.12). Contentava-se com muito poucopara viver. s vezes, bebia vinho,mas geralmente comia po acompa-nhado de gua; e o queijo recebidocomo presente de amigos era guar-

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    151

    dado para banquete especial. Este o homem, escreve DigenesLartios, segundo o qual o prazer ofim supremo da vida (X, 11).

    Era apreciador do filsofo Anaxgo-ras e do mestre de Scrates chama-do Arquelaos. O sucessor de suaescola foi Hrmarcos, filho de Ag-mortos, aps sua morte em conse-qncia dos clculos renais.

    Epicuro foi tambm escritor, totali-zando cerca de trezentos volumessem citaes de outros autores. Es-creveu Da Natureza, em trinta e setelivros. Mas nos restou apenas comolegado, suas trs Cartas. A primeiradirigida a Herdoto tratando da fsi-ca; a segunda dirigida a Ptocles,tratando da meteorologia e da astro-nomia e a terceira dirigida a Mene-ceu, tratando das concepes sobrea vida humana. A ltima carta , nomomento, a de interesse, tratando atica como fatos relacionados com aescolha e a rejeio. Os epicuristaschamam esta tica de cincia doque deve ser escolhido e rejeitado, etambm dos modos de vida e do fimsupremo (DIGENES LARTIOS,X, 30).

    O Kpos

    O prprio lugar escolhido por Epicuropara sua escola a expresso danovidade revolucionria do seu pen-samento: um prdio com um jardimnos arredores de Atenas. O Jardimestava longe do tumulto da vida p-blica e prximo do silncio do campo.Jardim (que, em grego, diz-se

    Kpos) e os filsofos do Jardimpassaram a indicar a Escola; a ex-presso os do Jardim tornou-se si-nnimo de seguidores de Epicuro, osepicuristas.

    A palavra que vinha do Jardim podeser resumida em algumas afirma-es: a realidade perfeitamentepenetrvel e cognoscvel pela inteli-gncia do homem; nas dimensesdo real existe lugar para a felicidadedo homem; desde que ele aprendacomo busc-la, a felicidade ausn-cia de dor e perturbao, e paraatingi-la o homem s precisa de simesmo.

    A doutrina de Epicuro ensinada noJardim pregava que a vida prticadeve ser no somente a nossa prin-cipal mas tambm nossa nica preo-cupao. A filosofia no uma cin-cia, uma regra do procedimento.Epicuro dizia que a filosofia era umaatividade destinada a estabelecer,por meio de raciocnios e de discus-ses, uma vida feliz, sendo o filoso-far no apenas uma questo de pa-lavras, mas sobretudo de atos. Ensi-nava que os homens fazem mal emperder tempo com buscas determi-nadas apenas pela curiosidade sobreassuntos que lhes importam poucoou mesmo nada, quando deveriamconcentrar todos os seus cuidadossobre as coisas que dizem respeito sua felicidade.

    As Partes da Filosofia

    Impossvel tratar da tica sem referi-la s concepes que Epicuro elabo-

  • 152 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    rou acerca da natureza e do conhe-cimento.

    O filsofo adota a tripartio da filo-sofia em lgica, fsica e tica. A pri-meira deve elaborar os cnones se-gundo os quais reconhecemos averdade; a segunda estuda a cons-tituio do real; a terceira, o fim dohomem (a felicidade) e os meiospara alcan-la. Os epicuristas cha-mam a fsica de cincia do nasci-mento e da morte, e tambm da na-tureza; a tica (...) de cincia do quedeve ser escolhido e rejeitado, etambm dos modos de vida e do fimsupremo (DIGENES LARTIOS,1997, p. 30).

    A Cannica

    Quanto ao conhecimento, lcito di-zer que Epicuro distingue as opiniesverdadeiras das falsas, e que chamauma opinio de verdadeira quandoesta pode ser evidenciada pela sen-sao que a confirma. Portanto, aopinio falsa se o sentido a contra-diz.

    Segundo Epicuro, a cannica e afsica so necessrias; mas, aindauma vez, no as devemos estudarseno pelos servios que prestam moral, e no devemos de modo al-gum inquietar-nos com problemasque no tm relaes com a vidaprtica. O que faz o valor da canni-ca que ela fundamenta em ns acerteza; ora, a certeza um doscontrafortes da felicidade, visto ques ela d a segurana e a ataraxa(EPICURO, 1973, p. 19). A cannica,

    na realidade, no mais do que umaparte da fsica, pois a ltima liberta ohomem dos preconceitos e dos terro-res que o impedem de ser feliz; amoral ensina-lhe de forma positiva osmeios de chegar felicidade. evi-dente, entretanto, que o conheci-mento fsico no verdadeiro porquetranqiliza a alma, mas, ao contrrio,tranqiliza a alma porque verdadei-ro (MORAES, 1998, p. 28).

    A Fisiologia

    Segundo Epicuro, a fsica serve paradar fundamento tica. Ela funcionacomo uma ontologia, uma viso geralda realidade em sua totalidade e emseus princpios ltimos. formadapor tomos indivisveis e imutveis,dotados da fora necessria parapermanecerem intactos e para resis-tirem enquanto os compostos no sedissolvem.

    Acreditava e pregava no Jardim quea liberdade no pode ser buscada eencontrada na esfera do fsico e domaterial, mas somente na esfera su-perior, do espiritual. E, embora emcada instante existam mundos quenascem e mundos que morrem, Epi-curo bem pode afirmar que o todono muda. Com efeito, no s oselementos constitutivos do universopermanecem perenemente comoso, mas tambm todas as suaspossveis combinaes permanecemsempre atuantes, exatamente porcausa da infinitude do universo, qued sempre lugar concretizao detodas as possibilidades.

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    153

    Epicuro ento introduz a teoria dadeclinao dos tomos (clinmen),segundo a qual os tomos podemdesviar-se a qualquer momento dotempo e em qualquer ponto de espa-o num intervalo mnimo de linha retae, assim, encontrar outros tomos.

    A alma, como todas as outras coisas, um agregado de tomos. Agregadoformado em parte por tomos g-neos, aeriformes e ventosos, queconstituem a parte irracional e lgicada alma. E, em parte, por tomosque so diversos dos outros e queno tm um nome especfico, cons-tituindo a parte racional. Portanto,como todos os outros agregados, aalma no eterna, mas mortal. Essa uma conseqncia que decorrenecessariamente das premissasmaterialistas do sistema.

    A tica

    Epicuro trata de temas da tica nastrs cartas que nos restaram, bemcomo nas Mximas Capitais.

    Temas centrais da tica epicuristacomo a ataraxa, a ausncia demedo frente morte, a caracteriza-o do prazer, e a correta compre-enso dos desejos, tm suas basesde justificao no empirismo de Epi-curo, por dois motivos: o princpio detoda escolha ou rejeio o prazer ea dor; por outro lado, o conhecimentomesmo do que sejam a morte e o vir-a-ser das coisas, relativo s experi-ncias acumuladas que permitemgeneralizar e inferir a verdade nicaou mltipla sobre elas.

    E, no que diz respeito fsica, a con-cepo da alma como corpo materiale atmico, fundamental na explica-o da mortalidade do ser humano.Da, todo o enfoque tico voltar-separa sua vida nica, irrepetvel e li-mitada.

    Carta a Meneceu

    A Carta a Meneceu tem como pontobsico abordar a tica, mostrando acondio primeira de uma condutafeliz (GUAL, 1996, p. 134), comvistas a buscar alcanar a sade doesprito.

    Exortao Prtica Filosfica

    Epicuro inicia a Carta a Meneceuque escreveu para o amigo Mene-ceu, dizendo que no h idade parase dedicar filosofia. O velho podeestud-la em sua velhice, assimcomo o jovem em sua juventude.Alega o filsofo que ningum novodemais para procur-la, porque nose novo para ser feliz e para sealcanar a sade do esprito. Se ojovem j se preocupar com a filoso-fia, bom ser a ele mesmo, porqueassim enfrentar a velhice sem medodas coisas que esto por vir.

    Assim sendo, bom entender a im-portncia da filosofia. Quem a en-tende chama-se sbio e o ser ca-paz de saber a importncia do viver.

    A Divindade: Imortal e Bem-Aventurada

  • 154 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    Epicuro afirma que acredita na exis-tncia dos deuses, em deuses queso perfeitos e imortais, no sendomodificados por falsos juzos que osmortais tm acerca deles.

    Os deuses no interferem no anda-mento das coisas do cosmo e dohomem. Conceber assim a divindaderepresentaria, para Epicuro, no sfonte de inquietao para os ho-mens, mas tambm uma impiedade:

    os juzos do povo a respeito dos deu-

    ses (...) se baseiam (...) em opinies

    falsas. Da a crena de que eles cau-

    sam os maiores malefcios aos maus

    e os maiores benefcios aos bons. Ir-

    manados pelas suas prprias virtudes,

    eles s aceitam a convivncia com os

    seus semelhantes e consideram es-

    tranho tudo que seja diferente deles.

    (EPICURO, 1997, p. 25-26).

    A Morte Nada para Ns

    Epicuro aborda o valor da vida, aindaque seja curta, mas de grande im-portncia se for bem vivida. Justificaque de nada adiantaria viver muito,se no se vivesse bem. Este ensi-namento epicurista um grande le-gado para a sociedade de hoje e nosfaz pensar, por exemplo, o que in-tencionaram os terroristas no ataquea Nova Iorque. Teria sido a mesmaquesto pensada por Epicuro: aindaque viva pouco, viva bem? De nadaadiantaria viver mais, num mundoque no fosse desejado.

    O filsofo tambm menciona, naCarta a Meneceu, sobre o homem

    que nasce e que um tempo depoisquer morrer. A este Epicuro chamade muito tolo. Questiona o porqu dese viver to depressa.

    J quanto morte, Epicuro a tratacomo privao das sensaes. Mos-tra que no devemos tem-la, masque devemos procurar viver bem ede forma feliz at que ela chegue,uma vez que no importante sereterno. Acostuma-te idia de que amorte para ns no nada, visto quetodo bem e todo mal residem nassensaes, e a morte justamente aprivao das sensaes.(EPICURO, 1997, p. 27). A morte um fato pelo que a razo mostra, seos tomos se dissolvem, somosmortais. Pensar a imortalidade seriaum sonho. Interessa ter uma vidacom mais qualidade, sem precisar,para isso, de mais quantidade. ParaEpicuro, o homem poderia ter umavida semelhante aos deuses, mesmosendo mortal. Epicuro tambm fala aMeneceu que no h nada de terrvelem se deixar de viver. Chama de toloaquele que diz ter medo da morte.Conclui esta questo de maneirabrilhante quando diz que a morte noexiste para aqueles que esto vivos.

    Epicuro trabalha tambm na morte aquesto de que alguns a desejampara dar fim aos males da vida; en-quanto outros fogem dela como seela fosse o maior de todos os males.

    E a morte? A morte um mal s paraquem nutre falsas opinies sobre ela.Como o homem um compostoalma num composto corpo, a

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    155

    morte no seno a dissoluo des-ses compostos, na qual os tomosse espraiam por toda parte, a cons-cincia e a sensibilidade cessam to-talmente e, assim, s restam do ho-mem runas que se dispersam, isto ,nada. Assim, a morte no pavorosaem si mesma porque, com sua vinda,no sentimos mais nada; nem peloseu depois, exatamente porque noresta nada de ns, dissolvendo-setotalmente nossa alma, assim comonosso corpo; enfim, a morte tolhenada da vida que tenhamos vivido,porque a eternidade no necess-ria para a absoluta perfeio do pra-zer.

    Sendo assim, mais uma vez, ne-cessrio vencer o medo da morte. Amorte, sendo o mais aterrador dosmales, no nada para ns; en-quanto vivemos a morte no existe, equando vem a morte ns no existi-mos. Por esta razo, nada temos alucrar vivendo eternamente, mas te-mos tudo a lucrar vivendo bem, umavez que o que conta a qualidadeda vida, no a sua durao.

    O Futuro

    A sorte, o acaso, ou a fortuna tornou-se, desde as crises agudas da plisclssica, uma deusa, a Tiche. Talvez,contra a deificao do que est porvir de modo obscuro, Epicuro buscasuas medidas na perspectiva racio-nal. Em passagem breve na Carta,Epicuro aborda sobre o futuro, e es-

    clarece que no devemos viver a es-per-lo. Diz:

    Nunca devemos nos esquecer de que

    o futuro no nem totalmente nosso,

    nem totalmente no-nosso, para no

    sermos obrigados a esper-lo como

    se estivesse por vir com toda a certe-

    za, nem nos desesperarmos como se

    no estivesse por vir jamais

    (EPICURO, 1997, p. 33).

    Os Desejos

    Os desejos so naturais (physika)ou inteis (kena). Os desejos natu-rais so aqueles prprios naturezahumana, isto , a phsis o desejode comer, beber, abrigar-se; o de-sejo fundamental de nos afastarmosda dor e do medo (DIGENESLARTIOS, X, 128), isto , do des-prazer. Os desejos inteis, vos ouprivados (o termo traduzido por va-zio (EPICURO, 1997, p. 35), paraoutro lado, resultam de opinies fal-sas ou desconhecimento acerca dosdesejos. Poder-se-ia perguntar seno tm realidade, no sentido de nocorresponder a nada da phsis, em-bora resultem em atos e concretiza-es culturais e polticas certamentereais.

    Naturais e inteis

    Quanto aos desejos, alguns sochamados por Epicuro de inteis.Mas h desejos necessrios e, por-tanto, naturais. So estes ltimosresponsveis pela nossa felicidade,pelo bem-estar de nosso corpo, pe-las nossas palavras, pela nossa vida.

  • 156 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    O prazer: incio e fim da vida feliz

    Epicuro deixa manifesto a idia deque o homem deve filosofar e buscaratravs desta prtica a felicidade, tala obra: Carta a Meneceu. Porm, afelicidade no deve ser buscada poruma nica vez, mas durante todo odecorrer da vida, conforme indica:(...) o fim ltimo o prazer, (...) que ausncia de sofrimentos fsicos ede perturbaes da alma.(EPICURO, 1997, p. 43).

    Fala que s sentimos necessidadedo prazer, quando no o estamospossuindo e carecemos dele, por-que, de outra maneira, no haverianecessidade. Falamos, no entanto,do prazer porque o determinamosimportante numa vida feliz. Podemosassim dizer que o prazer um bempara o homem, porque nos permiteescolher e recusar, uma vez que s possvel falar de dor quando sesabe o que vem a ser o prazer. Masquando Epicuro trata do prazer, noest se referindo a qualquer prazer.O prazer que gera efeito desagrad-vel, no compensado; todavia pre-cisamos lembrar que nem toda dordeve ser evitada. A dor pode vir atrazer benefcio.

    O desejo natural (comer, beber e,mais, estar bem fisica e psiquica-mente) surge como desejo de supe-rar o desprazer (de fome, de encon-trar-se desconfortvel fsica e psiqui-camente). O prazer , portanto, osatisfazer aquelas necessidades.Remete a uma carncia, faz-se ob-

    jeto de busca quando sofremos suaausncia; ao contrrio, quando nosofremos, essa necessidade no sefaz sentir (EPICURO, 1997, p. 37).

    neste sentido que o prazer prin-cpio. um princpio que move o servivo quando este no est comodeve estar.

    Avaliao dos prazeres

    Tambm, na obra, Epicuro trata dosdesejos e coloca em evidncia oprazer; todavia, esclarece que, ape-sar deste ser um bem, pode chegar aprovocar dor. Sendo assim, d umconselho: os prazeres precisam serbem aproveitados e analisados deforma qualitativa e nunca quantitati-va.

    Epicuro no v o caro como maisprazeroso, porque, segundo ele, oprazer no conseguido pelo exces-so, nem pelo requinte, mas pela su-presso de uma necessidade quepode ser sanada de forma simples ecom pouco custo. Entendemos assimprazer como ausncia dos sofri-mentos do corpo e da alma.

    Se a essncia do homem material,tambm necessariamente ser ma-terial o seu bem especfico, aquelebem que, concretizado e realizado,torna o homem feliz. E que bem sejaeste a natureza, considerada nasua imediaticidade, que nos diz semmeias palavras, como j vimos; queo bem o prazer.

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    157

    Para julgar o prazer, preciso distin-guir-lhe duas espcies, o prazer emmovimento e o prazer em repouso,cuja plena realizao se encontra naataraxa. O nico prazer completo o prazer em repouso, pois o prazervem da satisfao de um desejo, e odesejo vem de um sofrimento. Nasceo desejo do fato de sofrer eu de al-guma coisa. Desejo comer, quandosinto fome, e a fome um sofrimen-to. O prazer em movimento o pra-zer do sofrimento que se est elimi-nando: o que experimento ao comer;o prazer em repouso o do sofri-mento eliminado, quando estou saci-ado.

    O verdadeiro prazer, o prazer em re-pouso, um prazer calmo; o ideal davida est numa serenidade perma-nente, feita duma saciedade cons-tante, no perturbada nem pelo so-frimento, nem pelo desejo. Mas avida do corpo no proporciona essafelicidade; os prazeres do corpo somisturados de febre e inquietao;Epicuro desconfia dele, como a mai-or parte dos filsofos. Por isso, overdadeiro prazer se goza antes noprazer do esprito, mais profundo,mais completo que o prazer do cor-po, porque o corpo se limita sensa-o presente, enquanto que o esp-rito se reporta ao passado e espera oporvir.

    O objeto do prazer do esprito, comosua natureza, reduz-se ao prazer f-sico, pois consiste, antes de tudo, nalembrana do prazer que se teve ena expectativa do que se prepara. Asabedoria de Epicuro vem a dar, as-

    sim, num clculo prudente do prazerfsico, com o fim de goz-lo o maispuro possvel, isto , o menos mistu-rado de sofrimento. Esse Prazer dei-xa uma lembrana em esperana,geram-se os prazeres uns aos ou-tros, para tornar feliz a vida.

    Por outro lado, pela razo que seescolhem os prazeres, conforme oque estes podem proporcionar. Cer-tos prazeres trazem sofrimento,como quando se come demais; cer-tas dores causam prazer, comoquando se segue um tratamento pe-noso. Por isso, nem todo prazer objeto de uma escolha; h muitosque deixamos de lado, quando o malque sua conseqncia supera oprprio prazer. Do mesmo modo,muitos sofrimentos nos parecempreferveis ao prazer, quando essessofrimentos, suportados por muitotempo, so compensados, e comvantagem, pelo prazer que deles re-sulta.

    Para ter prazer de esprito, precisoter um pouco de fome. Conservar oepicurista sua capacidade de gozo,no comendo nunca at a plena sa-ciedade, como fazem os animais eos homens bestiais, mas conservan-do-se sempre suficientemente nutri-do, para no sofrer fome alguma.

    Para Epicuro, portanto, o verdadeiroprazer vem a ser a ausncia de dorno corpo (apona) e a falta de pertur-bao da alma (ataraxa). Dizemosque o prazer um bem quando ele ausncia de dor no corpo e ausnciade perturbao na alma. Nem liba-

  • 158 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    es e festas ininterruptas, nem co-mer peixes e tudo o mais que umamesa rica pode oferecer so fonte devida feliz, mas sim o raciocinar, queescuta as causas de todo ato de es-colha e de recusa e que expulsa asfalsas opinies por via das quaisgrande perturbao se apossa daalma.

    Para garantir o atingimento da apo-na e da ataraxa, Epicuro distinguiu:prazeres naturais e necessrios; pra-zeres naturais mas no necessrios;prazeres no naturais e no neces-srios. Estabeleceu depois que atin-gimos o objetivo desejado satisfa-zendo sempre o primeiro tipo de pra-zer, limitando-nos em relao ao se-gundo tipo e fugindo do terceiro.

    Entre os prazeres do primeiro grupo,isto , aqueles naturais e necessri-os, ele coloca unicamente os praze-res que esto estreitamente ligados conservao da vida do indivduo:estes seriam os nicos verdadeira-mente vlidos, porque subtraem ador do corpo, como, por exemplo,comer quando se tem fome, beberquando se tem sede, repousarquando se est cansado e assim pordiante. Ao mesmo tempo, exclui dogrupo o desejo e o prazer do amor,porque so fonte de perturbao.Entre os prazeres do segundo grupo,ao contrrio, coloca todos os desejose prazeres que constituem as varia-es suprfluas dos prazeres natu-rais: comer bem, beber bebidas refi-nadas, vestir-se com apuro e assimpor diante. Por fim, entre os prazeresdo terceiro grupo, no naturais e no

    necessrios, Epicuro coloca os pra-zeres vos, isto , nascidos das vsopinies dos homens, que so todosos prazeres ligados ao desejo de ri-queza, poder, honras e semelhantes.

    Os desejos e prazeres do primeirogrupo so os nicos que so sempree habitualmente satisfeitos, porquetm por natureza um preciso limite,que consiste na eliminao da dor:obtida a eliminao da dor, o prazerno cresce ulteriormente. Os desejose prazeres do segundo grupo j notm mais aquele limite, porque nosubtraem a dor do corpo, mas variamsomente no grau do prazer e podemprovocar notvel dano. Os prazeresdo terceiro grupo no tolhem a dorcorprea e, por acrscimo, produzemsempre perturbao na alma. Porisso, so compreensveis as afirma-es: A riqueza segundo a naturezaest inteira no po, na gua e numabrigo qualquer para o corpo; a ri-queza suprflua traz para a almatambm uma ilimitada aspirao dosdesejos. Referimos pois nossos de-sejos, reduzamo-nos a ns mesmos,e neste bastar-se-a-si-mesmo (autar-qua) que esto a maior riqueza efelicidade.

    Epicuro refere-se hedon. Podesignificar o prazer do corpo ou doesprito, uma vez que hedon traztoda a gama de significado desde oprazer fsico at a extasiada contem-plao da divindade. E no grego deEpicuro, hedon muitas vezes oequivalente de makarites (bem-aventurana), o estado de ser dos

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    159

    deuses, e dos homens que conse-guem partilhar esse modo de vida.

    A autarquia

    Epicuro exorta um prazer com o qualele viveu no Jardim e recomenda-odizendo que:

    o prazer, como bem principal e inato,

    no algo que deva ser buscado a

    todo custo e indiscriminadamente, j

    que s vezes pode resultar em dor. (...)

    recomenda-se uma conduta comedida

    em relao aos prazeres, valendo, (...)

    aquele princpio da qualidade em de-

    trimento da quantidade. (LORENCINI,

    1997, p. 16-7).

    O prazer como ausncia de dor

    Sendo assim, a regra da vida moralno o prazer como tal, mas a razoque julga e discrimina, ou seja, a sa-bedoria que, entre os prazeres, esco

    lhe aqueles que no comportam emsi dor e perturbao, descartandoaqueles que do gozo momentneo,mas trazem consigo dores e pertur-baes.

    A prudncia: virtude maior

    Retomando o conceito de felicidade,Epicuro trata ento da prudncia.Vemos esta como um bem, comopreciosa e elevada. O homem s feliz, se tem uma vida com prudn-cia, com beleza e com justia; dondepodemos dizer que estes quatroelementos esto interligados.

    Caracterizao do Sbio

    Epicuro fala a Meneceu de pontosessenciais para a prtica correta deensinamentos capazes de lev-lo completa felicidade:

    O homem sbio (...) jamais deve

    acreditar cegamente no destino e na

    sorte como se estes fossem fatalida-

    des inexorveis e sem esperana, pa-

    recendo despontar aqui aquela sua

    crena na vontade e na liberdade do

    homem. (LORENCINI, 1997, p. 17)

    Diz na Carta que o homem mais feliz o sbio, pois este tem um juzoacerca dos deuses, que se comportade modo indiferente em relao morte, que compreende o tlos (fim)da natureza e que sabe discernir obem maior de coisas simples e fceisde obter.

  • 160 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    A vida poltica

    No que se refere vida poltica, parao fundador do Jardim, ela substan-cialmente no-natural, porque com-porta continuamente dores e pertur-baes, compromete a apona e aataraxa e, portanto, compromete afelicidade. Com efeito, os prazeresda vida poltica, a que muitos se pro-pem, so puras iluses: da vida po-ltica os homens esperam poder,fama e riqueza, que so, como sa-bemos, desejos e prazeres nem na-turais nem necessrios, sendo por-tanto vazias e enganosas miragens.A vida pblica no enriquece o ho-mem, mas o dispersa e dissipa. Porisso que Epicuro se apartava e vi-via separado da multido, retirando-se para os arredores de Atenas,sentindo-se constrangido de estarentre a multido. Assim, Epicuro bempode afirmar que de todas as coisasque a sabedoria busca, em vista deuma vida feliz, o maior bem a soci-alidade fundada na relao da ami-zade.

    A Carta a Meneceu sugere a socie-dade de amigos, isto , de seme-lhantes quanto aos deuses e quantoaos companheiros de Meneceu nameditao do que Epicuro escreve:

    Irmanados pela sua prpria virtude,

    (os deuses) s aceitam a convivncia

    com os seus semelhantes (...). Medita,

    pois, todas estas coisas (...) contigo

    mesmo e com teus semelhantes, e

    nunca mais te sentirs perturbado (...)

    mas vivers como um deus entre os

    homens (1997, p. 25-7, 51).

    O destino e a sorte

    Para que a vida seja agradvel, ne-cessitamos de sade de corpo etranqilidade de esprito. Porm,todo prazer bom, mas nem todoprazer deve ser escolhido. Toda dor m, mas nem toda dor deve serevitada. Assim, devemos nos acos-tumar a um padro simples de vida,a fim de obtermos plena sade eestaremos alerta e pronto para todasas tarefas necessrias da vida. Lem-bremos que o principal objetivo a seralcanado pelo conhecimento apaz de esprito. A essncia do ensi-namento de Epicuro estava em seaprender a viver juntos, e o mtodode divulgao era feito principal-mente pelo contato pessoal e de vivavoz.

    Entendia Epicuro que a humanidadesofria de um mal universal, uma es-curido mental, um fardo de medosupersticioso; e grande parte da res-ponsabilidade cabia aos ensina-mentos das escolas. Contestou oceticismo, a desconfiana nos senti-dos e na razo; a falsa doutrina doprazer, de modo que a desconfianados sentimentos era acrescentada desconfiana dos sentidos e da ra-zo; a falsa doutrina dos compromis-sos sociais, que substitua a amizadepela justia, a falsa doutrina deDeus, que assediava o esprito doshomens de medo em vez de ench-los de alegria.

    A funo de Epicuro era apoderar-sedos progressos que haviam sido fei-tos nos crculos do Liceu, incorpor-

  • GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p., jul. 2003

    161

    los em sua prpria doutrina e dar-lhes a maior divulgao possvel,pois compreendera que tinha algo denovo a dizer, algo que em si mesmotinha futuro. Propunha, atravs desuas idias, uma filosofia coerente eexpressada numa divulgao que olevou ao alcance da compreenso dohomem comum.

    Nova exortao prtica filosfica

    Quem ento poder ser feliz? Per-gunta Epicuro a Meneceu, sugerindocomo resposta o sbio. Este porquetem um juzo acerca dos deuses, indiferente morte, compreende anatureza e entende que coisas sim-ples e fceis podem ser boas e cau-sa de uma vida feliz.

    Consideraes Possveis

    A sabedoria de Epicuro volta-se parao exerccio prtico de um modo devida.

    Ele cr nos deuses, ou, pelo menos,julga no ter boas razes para neg-los; parece-lhe, porm, inconcebvelque os deuses se ocupem dos ho-mens e do mundo. O mundo s seexplica pelo acaso; o mundo feitode tomos que se combinam semregra; o prprio homem uma com-binao de tomos, fruto do acaso e,quando morre, tudo se dissolve. Nose tem, pois, que preocupar com avida futura, nem mesmo com a mor-te, porque enquanto ainda existimos,a morte no est presente; mas,quando chega a morte, ento somosns que no existimos mais.

    Temos que nos ocupar com estavida. O problema da vida pass-lao mais agradavelmente possvel,sendo o prazer o bem primitivo einato.

    Segundo Epicuro, a amizade de-sempenha papel fundamental na fe-licidade. A amizade corresponde aum desejo que no nem naturalnem necessrio; ocupando lugarimportante no ideal da maior partedos filsofos gregos. ela uma for-ma de amor que no desperta pai-xes carnais e que satisfaz plena-mente o esprito. Quando consideraa amizade como o primeiro dos bens,concorda Epicuro, simplesmente,com uma tradio, que, sem dvida,se apresentava a seu esprito comouma evidncia.

    Em suma, Epicuro representa umaatitude perante a vida, que centralizaao no clculo dos prazeres. Esco-lher as sensaes para s reter ouprocurar as que do os prazeresmais puros, isto , mais livres de so-frimento, procurar o gozo no prazerfsico, mas s se dar aos prazeresfsicos em que o esprito tenha amaior participao. O epicureu bus-car a qualidade, no a quantidade;porque no prazer do gastrnomo oprazer do corpo serve de alimento aoprazer do esprito.

    Sbio ser feliz e, vice-versa, paras-lo necessrio buscar a sabedo-ria. A Carta a Meneceu exorta aoexerccio do filosofar como caminhoindispensvel ao maior dos bens, a

  • 162 GOMES. Turia Oliveira. A tica de Epicuro: um Estudo da Carta a Meneceu

    Revista Eletrnica Print by UFSJ Metavnoia. So Joo del-Rei, n. 5, p.147-162, jul. 2003

    felicidade (o prazer da ataraxa)compreendida e realizada na vida. neste sentido bsico que a Carta temo carter de um pensamento e ori-entao prtico-tica. Sendo a felici-dade a busca do prazer como aponae ataraxa.

    O exerccio do filosofar impregnadode seu fim prtico que rene a refle-xo, os afetos e a experincia corp-

    rea. E, ainda, da amizade como o elonecessrio entre a felicidade do indi-vduo e a harmonia da comunidade.

    Cabe, finalmente, observar um traoda tica epicuria, que se depreendedo exposto, e qui de toda filosofiaantiga: a interao e o engajamentoentre pensamento e atitude.

    Referncias Bibliogrficas

    DARAKI, Mara; ROMEYER-DHERBEY, Gilbert. El mundo helenstico: cnicos, estoicos yepicreos. (Fernando Guerrero). Madrid: Akal, 1996.

    DIGENES LARTIOS. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres. (Mrio da Gama Kury).2. ed. Braslia: UNB, 1997.

    EPICURO. Antologia de textos. So Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores)

    ______. Carta a Meneceu. (lvaro Lorencini, Enzo Del Carratore). So Paulo: UNESP,1997.

    FARRINGTON, Benjamim. A doutrina de Epicuro. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

    GUAL, Carlos Garca. Epicuro. Madrid: Alianza, 1996.

    HADOT, Pierre. O que a filosofia antiga? (Dion Davi Macedo). So Paulo: Loyola,1999.

    JOYAU, E. Epicuro. IN: EPICURO. Antologia de textos. So Paulo: Abril Cultural, 1973.(Os Pensadores)

    LORENCINI, lvaro; DEL CARRATORE, Enzo. Introduo. IN: EPICURO. Carta a Me-neceu. So Paulo: UNESP, 1997.

    LUCRCIO CARO, Tito. Da Natureza. (Agostinho da Silva). So Paulo: Abril Cultural,1973. (Os Pensadores)

    MORAES, Joo Quartim de. Epicuro: as luzes da tica. So Paulo: Moderna, 1998. (Lo-gos)