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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO EM FILOSOFIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: METAFÍSICA E EPISTEMOLOGIA A ÉTICA DO BEM VIVER EM EPICTETO FERNANDO CARBONELL DA FONTOURA Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich PORTO ALEGRE 2016

A ÉTICA DO BEM VIVER EM EPICTETO - tede2.pucrs.brtede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/7284/2/DIS_FERNANDO_CARBON… · A ARTE DO BEM VIVER EM EPICTETO: UMA ABORDAGEM ÉTICA RESUMO

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    ESCOLA DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    MESTRADO EM FILOSOFIA

    REA DE CONCENTRAO: METAFSICA E EPISTEMOLOGIA

    A TICA DO BEM VIVER EM EPICTETO

    FERNANDO CARBONELL DA FONTOURA

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial obteno do grau de Mestre em

    Filosofia na Pontifcia Universidade Catlica

    do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich

    PORTO ALEGRE

    2016

  • DEDICATRIA

    Dedico o esforo deste trabalho memria de meu pai Ney Fontoura da Fontoura.

    preciso fora e valor para nadar contra

    a corrente, mas um peixe morto pode

    segui-la flutuando. (Samuel Smiles)

  • AGRADECIMENTOS

    Filosofar uma empresa coletiva tanto no pensamento quanto no apoio dirio, por isso

    agradeo aos colegas, em especial Diogo da Luz e Bruna Pormann, parceiros de dilogos

    interdisciplinares, esclarecimentos e, mais importante, de obscurecimentos que levaram

    a mais estudos e pesquisas. confiana e estmulo do meu orientador prof. Dr. Roberto

    Hofmeister Pich. Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

    Tecnolgico) pelo apoio financeiro para a realizao desse trabalho e possibilidade de

    estudos e pesquisas na PUCRS (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul).

    equipe de professores do mestrado que colocaram todas as questes e conhecimentos

    de forma aberta, franca e com muita propriedade e atualidade nas questes de suas reas.

    Agradeo aos funcionrios da Escola de Humanidades da PUCRS pelas aes de apoio e

    boa vontade em todas as situaes em que entramos em contato. Em carter de

    fundamental importncia, minha amada, querida e parceira esposa, Gisele Witt da

    Fontoura, que apoia e incentiva de forma basilar minhas buscas, projetos, ideias e aes

    na rea da filosofia acadmica e de vida.

  • A ARTE DO BEM VIVER EM EPICTETO: UMA ABORDAGEM TICA

    RESUMO

    A filosofia como modo de vida matria das escolas filosficas antigas, tanto gregas

    quanto romanas. Para tanto, vrias escolas filosficas desenvolveram discursos para

    esclarecer e apoiar a prtica filosfica. Essa a ideia central de Pierre Hadot, filsofo

    francs que retoma a questo da filosofia como modo de vida e do qual partimos para o

    desenvolvimento dos argumentos em direo a uma tica do bem viver. Este trabalho de

    dissertao desenvolver uma tica do bem viver especfica do filsofo greco-romano

    Epicteto, que viveu no primeiro sculo de nossa era. A busca por um ideal de vida tinha

    como tpicos fundamentais as virtudes (aretai), a felicidade (eudaimonia), o sereno fluxo

    de vida (euroia), a imperturbao da alma (ataraxia). Porm, a euroia ser considerada

    aqui como o prprio objetivo da tica do bem viver de Epicteto, essa se desenvolvendo

    pelo exerccio das virtudes. Para efetivar essa a tica do bem viver mostraremos a teoria

    da ao de Epicteto e as estruturas fundamentais para que ela se realize. Dentro da teoria

    da ao a proairesis ponto fundamental onde a razo e a diferenciao entre aquilo que

    est em nosso poder (ephhmin) daquilo que no est em nosso poder (k ephhmin)

    so de suma importncia para o desenvolvimento de uma teraputica de si em direo

    euroia.

    Palavras-chave: Epicteto, tica, virtudes, eudaimonia, euroia, proairesis.

  • THE ART OF WELL-LIVING IN EPICTETUS: AN ETHICAL APPROACH

    ABSTRACT

    Philosophy as a way of life is a matter of ancient philosophical schools, both Greek and

    Roman. To this end, several philosophical schools have developed discourses to clarify

    and support philosophical practice. This is the central idea of Pierre Hadot, a French

    philosopher who takes up the question of philosophy as a way of life and from which we

    set out to develop arguments towards an ethic of good living. This work of dissertation

    will develop a specific ethic of good living of the Greek-Roman philosopher Epictetus,

    who lived in the first century of our era. The search for an ideal of life had as fundamental

    topics the virtues (aretai), happiness (eudaimonia), the serene flow of life (euroia), the

    imperturbation of the soul (ataraxia). However, the euroia will be considered here as the

    fundamental goal of the ethics of well-being, which is developed by the exercise of the

    virtues. To accomplish this, the ethics of good living will show Epictetus's theory of

    action and the fundamental structures for it to be realized. Within the theory of action

    proairesis is a fundamental point where reason and the differentiation between that which

    is in our power (eph'hmin) of that which is not in our power (k eph'hmin) are of

    paramount importance for the development of a therapy of yourself toward euroia.

    Keywords: Epictetus, ethics, virtues, eudaimonia, euroia, proairesis.

  • Abreviaturas:

    D: Diatribes. Epicteto

    Ench: Encheiridion. Epicteto

    DL: Diogenes Laertius. Live of Eminent Philosophers

    Os ltimos nmeros de ambas as citaes dos livros acima so as linhas na verso grega

    do texto, por exemplo, D I.II.23 ou DL VII.88.

  • SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................................. 8

    CAPTULO 1 - A TICA DO BEM VIVER EM HADOT ...................................... 18

    CAPTULO 2 - TICA EM EPICTETO ................................................................... 26

    2.1 TPICOS FUNDAMENTAIS: RAZO, FSICA E NATUREZA ..................... 27

    2.2.1 RAZO .............................................................................................................. 27

    2.2.2 FSICA ............................................................................................................... 32

    2.2.3 NATUREZA ....................................................................................................... 37

    CAPTULO 3 AS AES EXCELENTES E O MECANISMO DA AO

    HUMANA: PROAIRESIS, ASSENTIMENTO E IMPULSO ................................. 44

    3.1 EU MORAL (PROAIRESIS) .................................................................................... 45

    3.2 ASSENTIMENTO (synkatathesis) .......................................................................... 59

    3.3 IMPULSO (horm) ................................................................................................... 65

    CAPTULO 4 DISCIPLINA E EXERCCIO ......................................................... 75

    4.1 ASKSIS .................................................................................................................. 75

    4.2 PROSOCH ............................................................................................................ 81

    CAPTULO 5 - VIRTUDE (aret) E EUROIA (serenidade) .................................... 85

    CAPTULO 6 BEM VIVER ..................................................................................... 98

    CAPTULO 7 - CONSIDERAES FINAIS ......................................................... 108

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 113

  • 8

    Tu no tens necessidade seno de ti mesmo para colocar-se imediatamente na paz

    interior, renunciando a inquietar-te com o passado e com o futuro. Tu podes ser feliz

    desde agora ou ento tu no o sers jamais. Pierre Hadot

    INTRODUO

    O objetivo principal desse projeto de dissertao est colocado no interior do debate sobre

    a tica estoica do filsofo grego que viveu em Roma, Epicteto (55 d.C. 135 d.C.)1 e seu

    desenvolvimento de uma filosofia prtica para a questo do bem viver, isto , como um

    modo de vida (techn peri ton bion), porm no qualquer modo de vida, mas uma vida

    filosfica que leve euroia ou ao sereno fluxo de vida. Para chegar at esse ponto, andarei

    junto s consideraes de Pierre Hadot sobre a maneira de compreender a filosofia antiga

    e as escolas filosficas, e como elas, em especial a estoica e mais especificamente a do

    estoico Epicteto, coloca a prtica da tica em direo ao bem viver. Para tanto sero

    considerados aspectos e conceitos fundamentais da tica do bem viver de Epicteto, sendo

    a aret (virtude), a eudaimonia (felicidade2), a euroia3 (sereno fluxo de vida), a ataraxia

    1 No muito se sabe sobre os detalhes da vida de Epicteto, comeando pelo seu nome. Segundo alguns historiadores Epicteto a latinizao do grego de Epikttos () o qual significa adquirido. Essa

    uma controversa questo. Segundo alguns pesquisadores de sua vida, ele nasceu entre 50 e 60 d.C e

    faleceu por volta de 135 d.C. Provavelmente foi um escravo desde que nasceu, foi adquirido por Epafroditus

    o qual o libertou depois dele comear a ter aulas de filosofia com Musnio Rufus, um importante e

    proeminente filsofo estoico da poca. Epicteto era manco, de sade frgil, pobre e mudou-se para

    Nicpolis onde estabeleceu sua escola, embora tenha comeado a lecionar em Roma. Sua mudana para

    Nicpolis se deu por causa do exlio que os filsofos de Roma sofreram (por volta de 89 ou 92 d.C.) sob o

    mando de Domitian (Domiciano), imperador romano de, mais ou menos, 81 a 96 d. C. 2 Felicidade um conceito complicado de ser traduzido para o portugus como equivalente a eudaimonia.

    Para Epicteto, eudaimonia uma condio interna independente da qualquer coisa exterior a ela e

    independe de resultado de obteno ou preservao de qualquer material ou objetivo fora da proairesis. Ao

    traduzir de forma equivalente eudaimonia por felicidade corre-se o risco de perder toda complexidade que

    este conceito tem na filosofia de Epicteto (e na filosofia antiga em geral) e ainda pode dar ao leitor uma

    ideia anacrnica do que se considera felicidade nos dias de hoje. Florescimento ou completude seria algo

    mais apropriado, mas ainda assim seria necessrio arguir a favor de cada escolha, o que no objetivo desta

    pesquisa. Por isso, a partir de agora usarei a palavra eudaimonia ao invs de felicidade. 3 vem de (bom)+ que vem de (correr, fluir) e que, ento, significa bom fluxo. No caso

    da tica do Epicteto, bom fluxo de vida ( ). A qualificao de bom fluxo para sereno um passo

    a mais que ser mostrado no captulo 5 virtude e euroia.

  • 9

    (imperturbao da alma4), a apatheia5 (livre das paixes) e a proairesis (eu moral).

    Mostrarei como Epicteto, nos seus Discursos, desenvolve uma tica para atingir a euroia

    atravs dessas prticas filosficas que visam fazer a diferena na vida daquele que a

    pratica.

    A literatura direta de Epicteto no existe, pois ele no escreveu nada. Mas seu aluno

    Arriano redigiu oito livros que acabou chamando de Diatribes ou Discursos. Nos

    sobraram quatro desses livros e mais uma compilao deles que se chamou de

    Encheiridion ou Manual, tambm realizado por Arriano. So essas as fontes primrias

    que vamos usar aqui para pesquisar o pensamento e a prtica da tica de Epicteto.

    Na literatura comentada sobre Epicteto, quase como uma totalidade considerada a tica

    dele como eudaimonista ou, no mximo, como conducente ataraxia. Mostraremos que,

    embora a tica de Epicteto est historicamente dentro do escopo das ticas eudaimonistas,

    e que dentro dela h um grande espao para a ataraxia, ela carrega uma caracterstica

    sutil que a coloca de modo diferenciado naquilo que objetiva ser o telos ou a finalidade

    de sua tica, que, em nossa perspectiva, a euroia. Mostraremos que esse conceito

    crucial e fundamental para o exerccio da tica de Epicteto e que ele coloca as virtudes

    (aret) e seu desenvolvimento como formas de chegar ela.

    Esse caminho argumentativo que faremos est amparado na viso sobre a filosofia antiga

    de Pierre Hadot. Para ele, as escolas filosficas greco-romanas tinham uma clara tica do

    bem viver qual se dava nfase s prticas que levam a esse objetivo. Em seu livro

    Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga ele trata exaustivamente das prticas filosficas

    dessas escolas e dos objetivos que tinham. Nessa esteira andaremos ao lado de Hadot, i..,

    na questo da filosofia antiga ser uma prtica que quer efetivar o bem viver, mas

    4 Ataraxia () literalmente no perturbado. Tranquilidade da alma psichs ataraxian (

    ). Mas vou usar, a partir de agora, ataraxia como equivalente tranquilidade da alma. Alma () um conceito que aparece nos Discursos de Epicteto em dois momentos, um como traduo para

    mente e outra para alma, ambas com cunho racional forte. neste sentido que usada aqui a palavra alma,

    i.., com esse peso racional. Ataraxia traduzida tanto por tranquilidade da alma quanto da mente, nos

    Discursos. Para no confundir com o conceito de mente contemporneo, usarei alma. H tambm nos

    Discursos psich () equivalente mente, por exemplo, em II.X.21; II.XV.4; II.XV.20; II.XVIII.5;

    II.XVIII.11; mas a traduo que aparece mais vezes como equiparada mente, e somente a ela, j que

    psich equivale tanto mente quanto alma, dianoia (). Aparece, por exemplo, em I.IV.32;

    I.XXVI.14; II.II.13; II.II.21; II.XVI.45; II.XXI.22; III.IX.18 e 19; III.XXII.20; IV.V.16. A traduo de

    mente como hegemonikn () aparece menos, por exemplo, em IV.VIII.40 e pode ser

    considerada, hegemonikn , como uma melhor traduo para razo, j que ela hegemnica sobre as outras

    faculdades. Psich como alma, parece, por exemplo, em I.IV.4, I.XIV.6, I.XXVIII.4, entre outras passagens

    nos Discursos. Como grandeza da alma aparece a palavra , por exemplo em I.IX.32. 5 literalmente significa sem paixes, mas tambm tem o sentido de tranquilidade.

  • 10

    colocaremos nossa perspectiva mais efetivamente em cima de Epicteto e de sua particular

    viso de bem viver e da tica estoica.

    Diferenciaremos bem viver de euroia no sentido de que a primeira um estado presente,

    no agora, enquanto que a segunda um telos, i.., um objetivo. Para estar em bem viver

    preciso que o indivduo no esteja em contradio com suas crenas e valores, no

    sentido de ter duas ou mais crenas ou valores que sejam opostas uma(s) a(s) outra(s).

    Nem pode o indivduo ter tenso ou contradio entre suas crenas e/ou valores e suas

    aes externas, como acreditar ou valorizar algo e efetivar em ao seu oposto ou algo

    que no seja o que acredita ou valoriza. Tambm no pode estar destacado dos princpios

    fundamentais de estudo dos trs campos do estoicismo fsica, tica e lgica. Entretanto,

    pode estar o indivduo em bem viver sem ainda ter atingido seu telos, o que poderia ser

    caracterizado, em Epicteto, como aquele que est em progresso (prokops). Pode o

    indivduo no estar em contradio com algum ou alguns valores ou crenas, estar ento

    em bem viver, e no estar com todas as condies satisfeitas para chegar euroia

    (desenvolvimento de todas as virtudes necessrias). Neste sentido, bem viver um modo

    de vida, uma filosofia prtica para o agora, como afirma Hadot. Mas ela no se justifica

    em si mesma, ela a condio para se chegar ao telos da tica de Epicteto, a euroia. Por

    isso, o contrrio no pode acontecer, i.., chegar euroia sem passar pelo bem viver.

    Como estrutura da dissertao, iremos, no captulo um, estabelecer nossa argumentao

    pelo caminho aberto por Hadot e analisar sua concepo de tica da filosofia antiga no

    geral. Pensamos ser importante colocar de forma resumida, porm enftica, a concepo

    de filosofia como modo de vida que Hadot, um contemporneo, percebe e defende da

    filosofia antiga greco-romana. Ele no o nico autor contemporneo que tem essa

    perspectiva da filosofia antiga e essa viso de prticas filosficas, porm sua concepo

    delas coaduna com nossa em ambos os aspectos, no coincidindo com ele apenas um

    exame mais especfico de Epicteto e a finalidade de sua tica do bem viver, que , sob

    nossa perspectiva, a euroia. Filosofia como modo de viver, alm de ser um modo que

    desenvolve a autossuficincia, a anlise de si e a vida racional, como em Hadot, para ns

    envolve o fim ltimo, a euroia. Neste captulo tambm queremos deixar evidente que a

    filosofia acadmica dos dias de hoje no prima por essa viso da prpria filosofia o que

    ajuda a distanci-la de uma prtica e a coloca mais no mbito do pensamento abstrato

    puro, o que, para Hadot, no era o propsito original do filosofar nas escolas antigas. Esse

    contraste importante pois define, logo no comeo, qual a linha de argumentao que

  • 11

    termos e qual o objetivo final da dissertao, qual seja, exatamente aquele da filosofia

    antiga: tentar, de forma parcial, deixar um registro de um modo de prtica filosfica.

    Finalizamos esse captulo com a definio de filosofia como teraputica de si ou

    transformao do indivduo atravs de prticas filosficas que se diferenciam de prticas

    no filosficas tanto em seu contedo quanto em sua finalidade.

    No captulo dois trataremos da tica em Epicteto. Ali comearemos nossa caminhada para

    mostrarmos porque a euroia e no a eudaimonia ou a ataraxia era o objetivo final da tica

    do bem viver do filsofo estoico. Passamos das consideraes gerais sobre filosofia e

    sobre o filosofar do captulo anterior para adentrarmos a questes mais conceituais e

    tcnicas da tica epictetiana. Iniciaremos respondendo porque uma tica do bem viver

    necessria e quais os parmetros ou balizadores que Epicteto coloca para o agir tico.

    Como caracterstica da filosofia estoica e da filosofia antiga no geral, a tica no era uma

    disciplina separada do corpus do restante do discurso filosfico. O corpus filosfico,

    praticamente de todas as escolas que tinham alguma sistematizao escrita da poca, era

    considerado algo orgnico, que no tinha como ser separado na prtica. Era separada

    apenas didaticamente para as aulas ou explicaes. Filosofar era um exerccio orgnico

    onde tudo estava ligado a tudo, todas as reas estavam interligadas de forma coesa e

    separ-las como se fossem disciplinas ou assuntos independentes era perder a essncia do

    filosofar. Dada essa advertncia adentramos aos tpicos fundamentais para um

    entendimento do agir tico e de como o indivduo pode pensar sua prpria constituio

    tica. Tivemos como perspectiva a escolha de trs tpicos fundamentais que formam a

    estrutura bsica (porm, no exaustiva) de um agir tico em Epicteto: razo, fsica e

    natureza. Com base nos Discursos de Epicteto, no Encheiridion (Manual) e nos

    comentadores da poca, como Diogenes Laertius e Stobaeus, mostraremos a importncia

    desses tpicos e qual a finalidade deles para um desenvolvimento de um entendimento de

    um agir filosfico em direo euroia.

    O primeiro tpico, razo, como usado por Epicteto denominada, no ser humano, como

    dynamis logik e ela uma herana da natureza csmica ou de Zeus. Ela no ser humano

    uma centelha divina que d toda a base para um desenvolvimento racional do bem viver

    e chegar euroia.

    O segundo tpico, fsica e o terceiro, natureza, esto imbricados organicamente, no

    diferente com a razo, mas que para os estoicos e para Epicteto o conceito de natureza

  • 12

    est contido no primeiro tpico de estudo da escola estoica, a fsica. Falaremos, ento,

    como segundo subtpico do captulo, sobre a fsica. Ela delimita, de forma geral, como o

    indivduo deve desejar e como deve ter averses para que ele nunca falhe em conseguir o

    que deseja e nunca caia naquilo que quer evitar. O desenvolvimento das virtudes

    necessrias para um bem viver nesse tpico de estudo estoico faz com que o indivduo

    consiga efetivar em si como bem desejar. Aqui surge um conceito fundamental em toda

    tica de Epicteto que o conceito de ephhmin, que pode ser traduzido como aquilo que

    est em nosso poder. Sabendo diferenciar as coisas que esto em nosso poder das coisas

    que no esto em nosso poder que podemos aprender a bem desejar e, assim, estar no

    caminho da euroia.

    O terceiro tpico da estrutura fundamental que falaremos natureza. Uma afirmao forte

    no estoicismo antes de Epicteto e que ele retoma em seus discursos de que estar em

    harmonia com a natureza fundamental para o bem viver. Entendendo natureza como

    algo divino, vivo, racional e completamente interligada com o ser humano, esse conceito

    ao mesmo tempo complexo e definidor das fronteiras daquilo que o indivduo pode ou

    no pode controlar, pode e no pode desejar, pode e no pode agir. Compreender a

    posio de si mesmo dentro da natureza clarear o entendimento para a prtica do bem

    viver e progresso em direo euroia. aqui que inicia o processo de interiorizao do

    poder humano de no ser determinado por nenhuma circunstncia externa e assim

    construir e manter sua inviolabilidade interna.

    No captulo trs falaremos das aes excelentes e sobre o mecanismo da ao humana,

    deixando em aberto at o final do captulo se ao algo que tem que se efetivar no

    mundo ou se considerada apenas uma deciso interna do indivduo. Dentre vrios

    mecanismos da ao humana escolhemos trs que, em concordncia quase geral na

    literatura, so os mais robustos para definir ao tanto no estoicismo quanto em Epicteto.

    So eles, proairesis, assentimento e impulso. Como subcaptulos do captulo trs

    trataremos de cada um em separado.

    Proairesis um termo que tem sua nfase maior em Aristteles, em sua tica, e depois

    passa despercebida de muita importncia at Epicteto. Ele d importncia crucial deste

    termo em sua tica e nele e com ele que se efetiva a euroia. Proairesis ser considerada

    por ns como o eu moral, aquele que tem continuidade de valor e referncia por no estar

    merc de valores contingentes e circunstncias fora de seu poder. Escolhemos por no

  • 13

    traduzir o termo por nenhuma das verses usadas nas tradues de referncia de Epicteto,

    mas nos aproximamos muito do que Brad Inwood coloca como personalidade moral.

    Andando neste sentido acabamos por nos inclinar definio de ao em Epicteto como

    no sendo uma ao necessria no mundo para efetivar a proairesis ou o eu moral. Ser e

    desenvolver um eu moral no depende de efetivar valores e aes no mundo, mas de

    manter a integridade interna independente de realizaes ou circunstncias externas. Ter

    uma proairesis inviolvel acontece mesmo quando o indivduo no se efetiva no mundo,

    no realiza as aes de sua vontade no mundo, mas, apesar disso, no deixa de ser. Neste

    ponto Epicteto difere de Crsipo, outro estoico anterior a ele. Para Crsipo aquilo que est

    em nosso poder, portanto a efetivao da proairesis, se d quando nada no mundo externo

    impede que se realize. Epicteto rebate essa afirmao e d nfase nas aes internas da

    vontade, por isso nos inclinamos a declarar que ao para Epicteto ao interna, no no

    mundo. Para atingir a euroia, a concepo de eu moral ou proairesis fundamental. Este

    conceito to fundamental em Epicteto que alguns autores declaram que dependendo do

    conceito que se tiver de proairesis a viso da tica do bem viver do filsofo romano muda

    completamente. E para nosso propsito, o conceito de proairesis aquele que est ligado

    intimamente com a euroia, pois o eu moral que, com suas faculdades, est em progresso

    em direo euroia.

    Como segundo subtpico desse captulo, falaremos sobre o assentimento. O assentimento

    tem a ver com o estudo do tpico da lgica estoica e ele lida com a capacidade de aceitar

    a verdade e recusar a falsidade. Ele o ncleo do qual o eu moral desenvolve a habilidade

    de lidar com as representaes externas. a capacidade de bem reagir s coisas que no

    esto sob o poder do indivduo. o ncleo da proairesis onde o indivduo pode

    estabelecer, efetivar e afirmar sua inteira liberdade. ali onde mora todo seu poder de ou

    ir em direo euroia ou afastar-se dela. O assentimento um campo da lgica pois o

    indivduo aceita ou recusa um julgamento de acordo com a proposio interna que

    estabelece para as coisas. Ao proferir uma declarao interna tipo Isso um bem, ele

    est dando autorizao para o impulso entrar em ao, portanto, a verdade ou falsidade

    lgica dessa assero interna de suma importncia para a prtica do bem viver e

    progresso em direo euroia.

    Como ltimo subtpico deste captulo, falamos do impulso. Impulso, como diz Hadot,

    aquilo que nos move em direo ao. Porm, com a ressalva nossa de que ao para

    Epicteto est no mbito do prprio julgamento do indivduo e no, necessariamente, em

  • 14

    uma ao no mundo. Se o indivduo tem o impulso, que advm de sua vontade, de

    caminhar, mas impedido por algo externo, isso no tira dele a inviolabilidade de seu eu

    moral, pois as contingncias externas no afetam as decises de sua vontade. O que

    demonstra a violabilidade da vontade e do eu moral se o indivduo, percebendo que no

    conseguir efetivar a ao no mundo apesar de sua vontade de faz-lo, acaba alterando

    sua vontade para conformar-se s circunstncias. Por isso, no final do captulo, acabamos

    por definir nossa viso de que para Epicteto, ao no tem a ver com efetivar realizaes

    ou feitos no mundo, mas um atributo interno e inviolvel apesar das circunstncias

    externas.

    Mas como efetivar a proairesis ou o eu moral? Somente o conhecimento e o entendimento

    dos tpicos fundamentais que do a posio do indivduo no cosmos e o entendimento

    dos mecanismos de aes excelentes so suficientes para um agir filosfico e um bem

    viver em direo euroia? Epicteto afirma que no. No captulo quatro, trataremos ento

    da disciplina e do exerccio. So prticas internas, muito delas cognitivas, mas no se

    exaurem a. Neste captulo mostraremos como Epicteto usa bastante o exemplo dos atletas

    olmpicos para fazer uma analogia com as dificuldades que encontramos em executar os

    corretos exerccios filosficos que advm das teorias e dos tpicos de estudos. Neste

    captulo entram os conceitos de progresso e de ateno a si mesmo (prosoch). Sem uma

    ateno constante a seus prprios julgamentos e opinies o indivduo no consegue

    manter-se em um suave fluxo de vida. Neste sentido, os exerccios dos julgamentos e das

    opinies toma frente como os mais importantes que Epicteto declara a seus pupilos.

    Treinar, diariamente, contra seus prprios julgamentos o verdadeiro teste para um

    indivduo estar em bem viver.

    No captulo cinco, chegamos ao ncleo da dissertao: o conceito de euroia e sua

    importncia fundamental na tica de Epicteto. Porm, no temos como falar de euroia

    sem falar de virtudes, pois Epicteto diz que o objetivo das virtudes alcanar a serenidade

    ou o sereno fluxo de vida. Comeamos por definir virtude como habilidade intelectual ou

    interna do indivduo. Mas ela est a servio de algo e no a eudaimonia, pois Epicteto

    equivale o desenvolvimento das virtudes prpria eudaimonia. Mas estabelece que o fim

    ltimo das virtudes o sereno fluxo de vida. Portanto, declaramos que as virtudes

    trabalham para a euroia. Mas o que exatamente esse conceito? Como o qualificamos e

    porque ele to importante para Epicteto? Faremos uma pequena anlise da construo

    da palavra e do conceito em grego para conseguirmos chegar concluso de que euroia

  • 15

    significa apenas bom fluxo, mas ainda no est qualificada como sereno. Para ter essa

    qualificao, euroia est associado a outros dois conceitos muito importantes na tica de

    Epicteto, que so ataraxia (imperturbao da alma) e apatheia (sem paixes). Faremos

    uma relao entre esses dois ltimos conceitos com euroia para chegarmos qualificao

    de sereno fluxo de vida. Mas por que esse conceito to importante para Epicteto.

    Pensamos que por Epicteto dar tanta nfase proairesis ou ao eu moral, ele quer defender

    uma continuidade deste eu moral independente das condies ou contingncias externas

    e por isso uma palavra que contenha fluxo d uma ideia de continuidade e no de

    cristalizao parcial ou permanente de um eu moral. Alguns comentadores colocam a

    ataraxia como objetivo ltimo da tica de Epicteto, mas discordamos por dois motivos:

    1) no podemos desconsiderar a enorme rivalidade que a escola estoica tinha com a escola

    epicurista e nada do que tinha de fundamental em uma poderia ter na outra. Epicteto

    dedica um captulo inteiro de seus Discursos para rebater o conceito de prazer epicurista,

    por exemplo. Para os epicuristas a natureza fundamental do ser humano est baseada na

    ideia de prazer ou evitao da dor. Epicteto coloca que a base fundamental da natureza

    humana no est no prazer mas na autopreservao. Epicteto no coloca a palavra prazer

    como fundamental em seus discursos, ao invs disso, utiliza o termo alegria (contentment

    e em grego ao invs de (prazer) que a palavra central no

    epicurismo) em um captulo inteiro para falar da boa emoo por aquele que usa de forma

    correta seus prprios julgamentos. Tamanha a disputa entre as escolas e, considerando

    isso, para os epicuristas, a ataraxia o fim ltimo de seu bem viver, o que deixa pouco

    espao para que Epicteto defenda a ataraxia como fim ltimo em sua tica. Ele d valor

    a ela, mas no a considera como fim ltimo; 2) outro motivo que ataraxia uma palavra

    que tanto denota privao quanto uma parte do todo e no o todo, em relao ao bem

    viver. Estar imperturbado muito importante em situaes onde o mundo externo ameaa

    de forma quase destruidora a inviolabilidade da proairesis. Neste momento, como um

    recurso de emergncia, estar ciente daquilo que est em nosso poder e daquilo que no

    est em nosso poder pode nos deixar em um estado de imperturbao, o que de suma

    importncia nestes contextos. Mas quando o mundo no ameaa ou oprime o indivduo a

    ataraxia por si mesma no suficiente, pois preciso efetivar algo positivo em si e no

    apenas a atitude interna de imperturbao. E euroia d o sentido de fluxo e continuidade

    independente das circunstncias externas e coloca como positivo o bom desenvolvimento

    das virtudes. Serenidade uma atividade que tem como base o exerccio das virtudes.

    Estar em um sereno fluxo de vida e imperturbado no so a mesma coisa, pois o primeiro

  • 16

    denota uma atividade constante da proairesis a qual engloba a ataraxia - em todas as

    instncias virtuosas, e o segundo uma habilidade referente a um aspecto da virtude e

    sobre uma determinada contingncias (ou determinadas contingncias, mas no na

    totalidade do uso das virtudes). Por fim, neste captulo acabamos ratificando a euroia

    como fim ltimo da tica de bom viver em Epicteto e a traduzimos por suave fluxo de

    vida.

    No captulo seis confirmamos o bem viver em Epicteto como uma prtica interna voltada

    ao suave fluxo de vida. Neste sentido ela uma teraputica de si ou cuidado de si nos

    termos que dizia Plato em Alcebades I. Epicteto anda na esteira de Scrates afirmando

    em seus Discursos, no exatamente nestas palavras, mas no mesmo sentido, que uma vida

    no examinada no pode ser bem vivida. Reiteramos que uma das bases fundamentais

    para a tica do bem viver em Epicteto diferenciar as coisas que esto em nosso poder

    das coisas que no esto em nosso poder e para isso preciso diferenciar, alm das coisas

    boas das ms, diferenciar ambas do grupo de coisas que so indiferentes. Neste captulo

    esse conceito tem destaque, pois para os estoicos as coisas podem ser avaliadas de trs

    formas, sendo boas, ms ou indiferentes. E, pela concepo de bom e mau que eles tm,

    o grupo das coisas indiferentes um grupo bem maior em nossa vida. Por isso temos que

    estar atento para saber diferenciar os indiferentes do grupo das coisas boas e ms. Dentro

    desse conceito h tambm os indiferentes preferveis, que so aquelas coisas que no so

    boas nem ms, mas podem ser preferidas por estarem em harmonia com valores da

    natureza, como a vida, a autopreservao, entre outros. Terminamos esse captulo

    reafirmando que o bem viver em Epicteto e o progresso em direo euroia so aes da

    proairesis e concernem exclusivamente ao mbito interior do indivduo.

    No ltimo captulo, o sete, desenvolvemos nossas consideraes finais. Alm de reiterar

    os pontos principais da dissertao para formar assim nossa concluso de que a euroia

    o objetivo final da tica do bem viver de Epicteto, colocamos essa prtica em relao

    contemporaneidade e quais os pontos convergentes entre ambas. O objetivo no , neste

    captulo, propor uma vida filosfica estoica ou epictetiana, mas estabelecer algumas

    tcnicas e teorias de teraputica de si em Epicteto que possam fazer sentido a quem entrar

    em contato com o texto.

    Vamos, ento, ao desenvolvimento do texto e mostrar como em Epicteto a euroia o fim

    ltimo de sua tica do bem viver.

  • 17

  • 18

    CAPTULO 1 - A TICA DO BEM VIVER EM HADOT

    Pierre Hadot um dos filsofos contemporneos que traz de volta a questo da filosofia

    antiga como arte de viver para recoloc-la como paradigma na contemporaneidade6.

    Pensamos ser importante colocarmos Hadot como guia de nossa pesquisa, pois sua

    perspectiva geral da filosofia antiga se aproxima muito daquilo que Epicteto propagava a

    seus alunos, mas especificamente, a filosofia tanto como teraputica de si quanto processo

    de autotransformao. Tambm coadunamos com Hadot a viso da filosofia como um

    filosofar e no como teoria sobre o filosofar. Para Hadot, viver filosoficamente era

    caracterizado, na antiguidade, como um modo de viver radicalmente diferenciado

    daqueles que no professavam uma vida filosfica. Uma vida filosfica era uma escolha

    existencial de certo modo de viver, uma experincia de certos estados internos e

    disposies. A diferena de uma vida filosfica para uma vida no-filosfica se colocava,

    alm das prticas, tambm no discurso7, porm no de forma suficiente. O discurso

    filosfico aquele que alimenta intelectualmente o indivduo nas escolhas, julgamentos,

    assentimentos8 e aes do dia-a-dia. Entre o discurso e as aes havia de ter coerncia,

    pois um indivduo que vive a prtica da filosofia, mas no consegue justificar com um

    discurso filosfico suas escolhas e aes, no um filsofo. Assim como aquele que tem

    o discurso mas no o pratica, tambm no um filsofo9. Para os estoicos, como afirma

    Hadot, o discurso filosfico se dividia em trs partes, sendo a fsica, a tica e a lgica,

    porm, adverte o filsofo francs, esse discurso no era confundido com a prpria

    filosofia, pois a filosofia era o ato da fsica, da tica e da lgica. Essa diviso tinha como

    6 Outro contemporneo de Hadot, Michel Foucault, tambm trabalha na mesma linha, porm com uma

    abordagem diferente de Hadot. Em seu livro Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga, Hadot tem um

    captulo especfico sobre suas divergncias e convergncias a respeito da filosofia antiga como arte de

    viver, que a sua concepo, com a concepo de filosofia de Foucault como esttica da existncia. Uma

    das divergncias sobre a concepo de Foucault que Hadot enfatiza justamente a ideia de que a tica

    antiga centrada no indivduo como fim ou limitao nele mesmo e no como uma forma de transcendncia

    do individual em direo comunidade. Sobre essa discusso, ver Philosophy as a way of life sobre Pierre

    Hadot editado por Arnold I. Davidson, publicado pela Blackwell, 1995. 7 Discurso entendido como teoria e toda gama de noes, princpios e valores de uma escola filosfica s

    quais so objeto de estudo intelectual do aluno de filosofia. 8 Assentimento uma palavra tcnica da do tpico da lgica estoica que lida com a reviso racional das

    primeiras representaes que o mundo externo nos imprime. H toda uma dinmica e passos que fazem

    dessa ao interna algo a termos muita ateno para o exerccio constante do indivduo em direo ao seu

    progresso na busca da sabedoria e do bem viver. Falaremos especificamente dela no captulo sobre as aes

    excelentes. 9 Na parte 2, captulo 5 de seu livro The art of living: the Stoics on the Nature and Function of Philosophy,

    John Sellars discute amplamente sobre essa relao entre discurso () e prtica ().

  • 19

    intuito uma ao pedaggica, mas com a clara determinao de servirem ao filosfica.

    Esta prtica do discurso requeria exerccio constante. Para o filsofo francs

    Os estoicos, por exemplo, declaram-no explicitamente: para eles, a filosofia

    um exerccio. A seus olhos, a filosofia no consiste no ensino de uma teoria

    abstrata, ainda menos na exegese de textos, mas numa arte de viver, numa

    atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engloba toda a

    existncia10.

    Portanto, Pierre Hadot atualiza o conceito de filosofia como prtica, como atitude, como

    modo de viver. Embora a filosofia antiga trabalhe com um vis forte em cima do

    conhecimento conhece-te a ti mesmo Hadot afirma que a filosofia antiga se situa

    tambm na ordem do eu e do ser e por isso engloba toda a existncia e todas as

    caractersticas desse ser, no somente o conhecimento, mas tambm a imaginao e a

    sensibilidade. Este outro ponto de convergncia entre Hadot e nossa pesquisa. E o

    objetivo dessa prtica tornar o indivduo melhor, no mbito de ter uma melhor viso de

    si, uma viso mais exata do mundo (e da natureza, como veremos com Epicteto), ter mais

    liberdade interior e serenidade. Esse era o objetivo das escolas filosficas da antiguidade,

    afirma Hadot. Para ele, escola filosfica [...] no sentido mais concreto da palavra, na

    qual um mestre forma discpulos e se esfora para conduzi-los transformao e

    realizao de si11 era o objetivo tanto da escola de Plato, de Aristteles, de Epicuro, da

    escola Cnica, da Ctica e da Estoica. Formar almas e no informar a tnica de Hadot

    para as escolas antigas. Sobretudo a obra, mesmo aparentemente terica e sistemtica,

    escrita no tanto para informar o leitor acerca de um contedo doutrinal mas para form-

    lo12.

    Reiterando essa parte prtica da filosofia, diz Epicteto

    10 HADOT, Pierre. Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flvio Fontenelle Loque e Loraine

    Oliveira, So Paulo: Realizaes, 2014, p. 22. 11 HADOT, Pierre. Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga, p.60. 12 HADOT, Pierre. Elogio da Filosofia Antiga. Trad. Flvio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira, So

    Paulo: Loyola, 2012, p. 32.

  • 20

    O construtor no vem e diz, Oua-me falar um discurso sobre a arte de

    construir; mas ele faz um contrato para construir uma casa, a constri, e ento

    prova que possui a arte. Faa algo da mesma maneira voc mesmo13.

    Portanto, o objetivo das escolas filosficas era uma sabedoria prtica14. Sneca escreve,

    As coisas tendem, de fato, a estarem erradas; parte da culpa repousa sobre os

    professores de filosofia, que nos ensinam hoje como argumentar ao invs de

    como viver; parte sobre seus estudantes, que vo procura dos professores em

    primeiro lugar em vista de desenvolver no seus carteres, mas seus intelectos.

    O resultado tem sido a transformao da filosofia, o estudo da sabedoria, em

    filologia, o estudo das palavras15.

    Nos Discursos, Epicteto enfatiza essa concepo de filosofia como sabedoria prtica

    tambm nesta passagem,

    Deixe um pensamento perturbador vir at ns e voc descobrir o que tem

    praticado e para o que estivemos treinando! Como resultado, por causa de

    nossa falta de prtica, acabamos saindo de nosso caminho para acumular

    terrores e faz-los maiores do que realmente so16.

    So para essas situaes dirias da vida que a tica do bem viver est direcionada. No

    para acmulo de informaes ou ensinamentos intelectuais. Como diz Duhot,

    A filosofia no uma massa de informaes que se acumula, que se organiza

    intelectualmente, ela tem de ser digerida e no amontoada. No se trata de fazer

    13 OLDFATHER, W. A. Epictetus the discourses as reported by Arrian, the manual and fragments, Livro

    III, Captulo XXI, 4-5. A partir de agora em abreviatura. 14 Como guia dessa busca da perfeio interna, h na tica de Epicteto, assim como em todas as outras

    escolas filosficas da antiguidade, uma representao racional do estado de perfeio que se chama sbio

    (sophos), e, segundo essa norma, viver cotidianamente, de forma ordinria e no refletida, estar fora do

    caminho do sbio, do bem viver filosoficamente e do progresso para o bom e excelente homem (kalos kai

    agathos). 15 SENECA. Letters from a Stoic epistulae morales as Lucilium. Trad. Robin Alexander Campbell, New

    York: Penguin Books, 1969, letter CVIII, p. 58. Sneca considerado um estoico da ltima fase e, por isso,

    contemporneo de Epicteto e Marco Aurlio. Foi senador de Roma, filho da Marcus Annaeus Seneca, que

    foi procurado imperial. 16 OLDFATHER, W. A. Epictetus the discourses as reported by Arrian, the manual and fragments. Vol.

    I Discourses Books I and II, London: Harvard University Press, 1956, Livro II, Captulo VI.20-21. A partir

    de agora em abreviatura.

  • 21

    filosofia, mas de ser filsofo. No seria um absurdo meditar sobre o bem e o

    mal se tal meditao no servisse para a realizao do bem? A filosofia no

    est, portanto, nos livros, eles so apenas um meio. A erudio pura no tem

    sentido17.

    Mas por que procurar o discurso filosfico? Hadot afirma que nossas concepes comuns

    e cotidianas de valor, vida e objetivo da mesma esto fora de sintonia com a sabedoria

    prtica filosfica. H um descompasso entre valores filosficos e valores sociais comuns.

    Neste sentido, dado como um fato por Epicteto que as prticas cotidianas comuns no

    estavam em sintonia com os ensinamentos da filosofia e que esta procurava estar em

    harmonia com o todo da natureza, portanto, os indivduos que aderiam a essas prticas (e

    teorias) no filosficas estavam fadados a perturbaes e infelicidades por no realizarem

    exerccios que o colocavam em harmonia ou sintonia com a natureza, justo o contrrio,

    tinham prticas que o afastavam disso18. Portanto, os ensinamentos filosficos e a vida

    filosfica tinham essa qualidade de estarem contra o fluxo daquilo que era senso-comum

    para a poca19. O bem e o mal, aquilo que depende de ns e aquilo que no depende de

    ns, os sentimentos e as representaes que tradicionalmente o senso-comum

    valorizavam estavam na contramo do bem viver, pelo menos do bem viver filosfico.

    Haver assim um perptuo conflito entre a tentativa do filsofo de ver as coisas

    tais quais elas so do ponto de vista da natureza universal e a viso

    convencional das coisas sobre a qual repousa a sociedade humana, um conflito

    entre a vida que seria preciso viver e os costumes e convenes da vida

    cotidiana.20

    17 DUHOT, Jean-Jol. Epicteto e a sabedoria estoica. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola,

    2006, p. 40. 18 Natureza um conceito importante em quase todas as escolas filosficas antigas e tem vrios sentidos e

    significados, alguns mais imanentes outros mais transcendentes, alguns mais voltados natureza humana

    outros mais voltadas natureza csmica ou universal. Mas todas as escolas filosficas que proclamavam

    esse conceito tinham como objetivo fazer com o que o homem vivesse em harmonia com ela, pois a natureza

    era um padro de organizao, racionalidade e tica. 19 Para A. A. Long, paradoxo tem conexo com doxa (), opinio. Diz Long, Mas um paradoxo

    literalmente um pensamento que incongruente com as crenas vulgares [do senso comum]. [...] A

    Repblica de Plato um gigante paradoxo no sentido grego que expliquei. Isso acontecia, continua Long,

    porque para os filsofos as razes das crenas no poderiam estar baseadas somente nos costumes ou nas

    convenes sociais, o que, para o indivduo vulgar (do senso comum) era suficiente. Por isso que os

    discursos e, consequentemente as aes, dos filsofos acabavam por criar uma diviso entre a vida do senso

    comum e a dos filsofos. 20 HADOT, Pierre. Elogio da filosofia antiga, p. 23

  • 22

    Esse conflito se dava entre aqueles que viviam sem filosofia e tambm queles que

    professavam alguns princpios filosficos, mas apenas no discurso. Isso ainda perdura

    hoje, segundo Hadot,

    De fato, todos os filsofos, inclusive aqueles que orientam [hoje] seu discurso

    em funo da vida filosfica, correm o risco de imaginar, por ter dito uma coisa

    e a terem dito bem, que tudo est resolvido. No entanto, resta tudo por fazer21.

    Em passagem nos Discursos, Epicteto, colocando uma prioridade entre os tpicos de

    estudos estoicos fsica, tica e lgica diz

    Mas os filsofos de hoje ignoram o primeiro e o segundo campos de estudo [a

    fsica e a tica], e se concentram sobre o terceiro [lgica], o qual deriva

    silogismos pelo processo de interrogao, o qual envolve premissas hipotticas

    e sofismas como O Mentiroso22.

    Para Epicteto, no que a lgica no fosse importante, mas havia uma progresso entre os

    tpicos, tanto que ele diz, um pouco antes da citao acima, que o terceiro campo de

    estudo pertence queles que j esto fazendo progresso, i.., que j esto de posse do

    conhecimento e dos exerccios dos dois primeiros tpicos de estudo. Ou, como diz Hadot

    acima, h muito ainda por fazer.

    Portanto, a filosofia tem como objetivo educar o homem nas questes do bem, do mal, da

    liberdade, dos julgamentos, da natureza. Neste sentido, a filosofia uma paideia23, uma

    tica voltada a si mesmo com o intuito de escolher e agir de modo correto para consigo

    mesmo comeando por aquilo que est verdadeiramente sob seu poder, i.., seus

    21 HADOT, Pierre. La filosofa como forma de vida conversaciones com Jeannie Carlier y Arnold I. Davidson. Trad. Mara Cucurella Miquel, Barcelona: Alpha Decay, 2009, p. 175. 22 D III.II.6-7. O sofisma do mentiroso: se um homem diz que est mentindo, ele est realmente mentindo

    ou dizendo a verdade? Se est mentindo, est dizendo a verdade; se est dizendo a verdade, est mentindo. 23 Paideia () em grego tem vrias acepes como educao, exerccio educacional, formao, conhecimento, ensino. Hadot trata de paideia como o desejo grego de formar e educar. Em Epicteto h uma

    forte tendncia em seus discursos de uma paideia neste sentido de formao, autoeducao de seus pupilos,

    inclusive em seus exemplos. A palavra chave para este tipo de educao na filosofia antiga aret ()

    que tambm, sobre vrias acepes, pode ser considerada como excelncia, virtude, nobreza. Sobre esse

    tema ver Werner Jaeger, Paideia: a formao do homem grego, traduo de Artur M. Pereira, editora

    Martins Fontes.

  • 23

    pensamentos e seus processos de julgamento e assentimento das representaes externas.

    Essa nfase d sustentao para a filosofia como teraputica de si ou autotransformao.

    Porm ela s possvel dentro daquilo que est no mbito de nosso poder ou controle.

    Scrates j ensinava isso conforme se l na Apologia quando fala do medo da morte24.

    Podia somente colocar valor naquilo que estava em seu poder e, neste caso, a inteno e

    a ao moral, pois elas dependiam inteiramente de sua escolha e de sua firmeza. Neste

    sentido, diz Hadot

    Aqui novamente, conhecimento no uma srie de proposies ou uma teoria

    abstrata, mas a certeza da escolha, deciso e iniciativa. Conhecimento no

    apenas saber claramente [sobre conceitos], mas saber-o-que-deve-ser-

    preferido, e assim saber como viver25.

    O intelectualismo socrtico26 muito combatido por tentar simplificar em demasia a

    questo da virtude e do bem viver. E ele se estende a Epicteto, porm, John Sellars diz

    At onde ns vimos, Scrates no identifica epistme [conhecimento]com

    logos [discurso]e no pensa que esses princpios sero o suficiente neles

    mesmos para transformar o comportamento de um indivduo. Ao contrrio, ele

    identifica epistme com techn [arte, habilidade]argumentando que isso que

    impacta sobre o comportamento de um indivduo, e no meramente a

    possesso dos logoi [discursos] subjacentes quela techn27

    Essa a viso tambm em Epicteto, pois ele afirma que o conhecimento no suficiente

    para viver filosoficamente.

    24 Ningum sabe o que seja a morte, e, ignorando at mesmo se porventura no ser para os homens o maior dos bens, temem-na como se soubessem com certeza que o pior dos males. (....) Neste particular,

    senhores, possvel que eu seja diferente da maioria dos homens, e se tivesse de considerar-me excepcional

    em alguma coisa, seria justamente nisto: como no conheo suficientemente o que se passa no Hades,

    tambm no tenho a iluso de conhecer. Apologia de Scrates, XVII, 29a b, no livro Dilogos, trad.

    Carlos Alberto Nunes, edies Melhoramentos, 1970. 25 HADOT, Pierre. What is ancient philosophy?, p. 33. 26 O intelectualismo socrtico sobrevive em Epicteto no sentido de que o princpio afirma que cada ao

    determinada pelas opinies ou julgamentos ou crenas que o indivduo estabelece. Ele tambm se estende

    de forma mais radical em Epicteto no sentido de que toda emoo fruto de julgamentos ou opinies e,

    portanto, ao alterar o primeiro, altera-se e corrige-se o segundo. 27 SELLARS, J. The art of living The Stoics on the Nature and Function of Philosophy. 2 ed. London:

    Bloomsbury, 2009, p. 52.

  • 24

    Quem, ento, est fazendo progresso? O homem que l muitos tratados de

    Crsipo? O que, a virtude no mais do que isso? ter ganho conhecimento

    de Crsipo? [...] Mas agora, enquanto reconhecemos que a virtude produz uma

    coisa, ns estamos declarando a aproximao virtude, a qual progresso,

    produz alguma coisa mais28.

    Desenvolver as virtudes realizar o a teraputica de si. Realizar isso inverter,

    consciente e racionalmente, os valores recebidos pela sociedade como riquezas,

    honrarias, prazeres, em valores filosficos como contemplao, felicidade, virtude,

    serenidade. a partir desses princpios que a filosofia antiga, segundo Hadot, revela um

    grande poder teraputico para o prprio indivduo. E baseado nisso que Hadot afirma a

    filosofia antiga como tica do bem viver. E neste caminho re-aberto por Hadot que

    vamos andar com Epicteto e seus ensinamentos de uma tica do bem viver. Para o

    estoico, filosofar ento exercitar-se a viver, isto , viver consciente e livremente29.

    28 D I.IV.6-7. 29 HADOT, Pierre. Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga, p. 31.

  • 25

  • 26

    CAPTULO 2 - TICA EM EPICTETO

    A tica em Epicteto fornece, para aqueles que querem viver uma vida filosfica, as

    ferramentas conceituais e prticas para estar em bem viver e atingir serenidade e evitar

    seus opostos. Como coloca Keith Seddon no incio de seu livro Epictetus Handbook and

    the Tablet of Cebes, a tica dos estoicos tentava responder a essa pergunta: A vida

    cheia de infortnios e desapontamentos, ento como podemos ser felizes e florescer?30

    A tica do bem viver deve responder a essa pergunta, e dar ao indivduo uma nova

    perspectiva de pensamento e ao. Mas do que trata a tica segundo os estoicos? Podemos

    inicialmente delimitar este campo no estoicismo como est em Diogenes Laertius

    Os estoicos dividem a parte tica da filosofia em doutrinas do impulso, do bem

    e do mal, das paixes, da excelncia, do fim supremo, do valor mais alto, dos

    deveres, e da exortao e dissuaso em face da ao31.

    E o que Epicteto diz sobre a tica estoica? [...] o segundo campo de estudo [tica]

    aquele o qual tem a ver com nossas escolhas e com a discusso do que nosso dever em

    considerao a elas32. De fato, a tica lida com as aes, mas no somente com as aes

    externas efetuadas pelo indivduo, mas com as escolhas e o assentimento ou a recusa

    racional logo anterior s essas aes. Essa a tnica em Epicteto. Prprio da tica, ento,

    realizar aes que venham atravs de um correto julgamento33. Neste sentido, a tica

    estoica centrada fundamentalmente no agente e ele pode fazer progresso moral

    exercitando sua capacidade para uma escolha racional de uma maneira que o leve

    euroia. Portanto, ele tem responsabilidade exclusiva por seu prprio bem ou mal. O bem

    do homem e o mal do homem residem na escolha moral [], e todas as outras

    coisas so nada para ns34. Dentro do campo da tica estoica, e de Epicteto, alguns

    entendimentos tericos so necessrios para dirigir com mais eficincia as aes do

    30 SEDDON, Keith. Epictetus Handbook and the Tablet of Cebes: guides to stoic living, Abingdon:

    Routledge, 2005, p. 2. 31 DIOGENES LAERTIUS. Diogenes Laertius: Live of Eminent Philosophers, Trad. R. D. Hicks, Vol. II,

    Cambridge: Harvard University Press, 1925, L VII, 84. A partir de agora em abreviatura. 32 D II.XVII.15. 33 Seria o que se chama de teoria da ao em Epicteto. Porm, discute-se se a teoria da ao que ele prope

    deva ser efetivada em aes exteriores ou no. Estou inclinado a pensar que o campo de ao que Epicteto

    prope a ao interna, no necessariamente tendo que ser efetivada no mundo exterior. Falaremos mais

    sobre isso no decurso deste trabalho. 34 D I.XXV.1.

  • 27

    indivduo. Por isso, antes de passarmos teoria da ao em Epicteto, aquela que leva em

    direo euroia, vamos analisar os tpicos fundamentais que do apoio a ela. Esses trs

    tpicos so uma perspectiva nossa a respeito dos limites tericos da ao tica do

    indivduo, mas sabemos que ao fazer isso, desmembrar alguns tpicos e no outros,

    estamos enfraquecendo a teoria tica como um todo, pois a filosofia tica de Epicteto e

    do estoicismo uma filosofia orgnica, onde todas as partes esto interligadas. Ao separ-

    las conseguimos um pouco mais de detalhamento e anlise aprofundada, mas perdemos

    um pouco (s vezes muito) da abrangncia do todo. Mas, dentro do recorte necessrio que

    um trabalho de pesquisa envolve, pensamos que ainda assim podemos ter, mesmo que

    parcial, uma ntida ideia do significado e da prtica da tica do bem viver de Epicteto.

    2.1 TPICOS FUNDAMENTAIS: RAZO, FSICA E NATUREZA

    Para podermos aprofundar a questo do bem viver e o objetivo dela, a euroia em Epicteto,

    faz-se necessrio definir os tpicos fundamentais de sua filosofia que daro apoio sua

    teoria da ao, a qual chamamos, no prximo captulo de aes excelentes. Sendo elas a

    razo, a fsica e a natureza, esses tpicos do forma e sustentabilidade a todo discurso e

    prtica da tica de Epicteto e por isso importante averiguarmos um pouco mais de perto

    cada uma delas, onde se fundamentam e quais limites colocam para desenvolver uma

    tica do bem viver.

    2.2.1 RAZO

    Nos Discursos Epicteto usa majoritariamente o termo logos para se referir a razo. O ser

    humano possui um logos, o usa para averiguar seus julgamentos e as representaes

    externas que chegam at ele. Porm, vamos considerar razo aqui como faculdade da

    razo ou faculdade do raciocnio (reasoning faculty) que nos Discursos est como

    dynamis logik ( ). Podemos argumentar nossa escolha pelo fato de que

    o termo faculdade combina mais com o termo habilidade, que , como veremos mais

    adiante, so consideradas as virtudes para Epicteto. Desenvolver a faculdade

    desenvolver uma habilidade e estar no desenvolvimento e progresso das virtudes,

  • 28

    portanto no caminho da euroia. Outro argumento que em dois captulos fundamentais

    da importncia e do uso da razo, o I e o XX do livro I, Oldfather traduz o termo logos

    por reasonig faculty, sendo que em um desses captulos, o primeiro do livro I, est, em

    grego, dynamis logik. Essa escolha de traduo se deve ao fato de que nestes captulos

    Epicteto est reiterando a poderosa habilidade que a razo tem de perceber e contemplar

    a si mesma e esta uma habilidade fundamental da razo qual fundamental tambm

    para sua prtica do bem viver35.

    Podemos considerar a razo como fundamento primeiro da tica e de toda doutrina

    estoica. Alis, no ser toa que os Discursos comeam no Livro I Das coisas que esto

    em nosso poder e das que no esto em nosso poder - j com a definio da faculdade da

    razo. Ele comea assim

    Dentre as artes e faculdades (dynamen) em geral voc no achar nenhuma

    que autocontemplativa, e, portanto, nenhuma que seja autoaprovvel ou

    autorreprovvel36.

    Nem a gramtica, nem a arte da msica so autocontemplativas mas lidam apenas com

    coisas externas a elas. Qual arte ou faculdade ento leva em considerao a

    autocontemplao? A faculdade da razo (dynamis logik); pois esta a nica que temos

    herdado a qual nos leva ao conhecimento tanto de si mesma [...] quanto de todas as outras

    faculdades37.

    A natureza da razo a faz ser autocontemplativa e ela no consegue ficar sem ser analisada

    a si mesma, pois no h nada superior a ela que possa analis-la. At porque isso levaria

    a uma reduo ao infinito. A razo, ento, pode ser analisada somente por ela mesma e

    essa sua caracterstica mais importante pois ela permite a autorreflexo.

    35 Psich () uma palavra que aparece nas Diatribes de Epicteto com forte cunho intelectual e racional

    tambm, mas parece que ela tem outros atributos que no apenas os intelectuais e racionais. Porm tanto

    em D III.III.2 quanto em D IV.XI.5 ele equipara psich a logos de forma inequvoca. O que deixa em aberto

    a diferenciao mais precisa entre ambos. Mas para ns, neste trabalho, no ter maiores problemas, pois

    definimos a traduo de razo por dynamis logik. 36 D I.I.1-2. 37 D I.I.4. Faculdade da razo est como .

  • 29

    Mas qual o propsito da razo? Diz Epicteto, [...] para o bom uso das representaes

    (phantasiai) externas38. A razo a faculdade que os deuses (Zeus, natureza) colocaram

    sobre nosso total poder e a mais excelente faculdade de todas, pois domina todas as outras.

    Se ento dominarmos o uso dela, dominaremos a ns mesmos.

    [Zeus falando com Epicteto] [...] o corpo no teu, mas apenas barro

    habilmente composto. No entanto, j que no pude te dar isso, demos a ti uma

    certa poro de ns mesmos, esta faculdade de escolha e recusa, de desejo e

    averso, ou, em uma palavra, a faculdade [] a qual faz uso das

    representaes externas. Se tu cuidas disto e coloca tudo o que tens nisto, tu

    nunca ficars frustrado, nunca impedido, no lamentars, no culpars, no

    bajulars homem algum39.

    O maior bem do ser humano a razo, porm, diz Epicteto, a mais negligenciada

    faculdade humana. Lidamos com ela de modo simplista e acabamos por dedicar mais

    cuidado com coisas externas a ns, como a aparncia e as riquezas. Temos em ns uma

    faculdade suprema e a descuidamos. nossa profisso40, como diz Epicteto, como seres

    humanos, transcender ao nvel do bruto ou do animal no racional, e realizamos isso

    quando agimos conforme nossa natureza racional.

    Como convinha, portanto, os deuses colocaram sobre nosso controle apenas a

    mais excelente faculdade de todas e a qual domina o resto, a saber, o poder de

    38 D I.XX.16. A literatura quase em sua totalidade traduz phantasia () por impresso

    (impression). Impresso aquilo que nos aparece, por exemplo uma nuvem negra de tempestade, ou,

    como coloca Tad Brennan no seu artigo Stoic moral Psychology em The Cambridge Companion to Stoics,

    [Para os estoicos] uma impresso uma alterao da alma, comumente embora no necessariamente

    levada a cabo por um objeto sensvel no ambiente do agente, a qual apresenta ela mesma como fornecendo

    informao sobre como as coisas so, p. 260. Traduzir por representao, por outro lado, indica mais

    claramente, como diz Ted Brennan acima, um conceito mental, i.., que h alguma alterao nela, o que

    no acontece com a palavra impresso, que pode ser referida, para o portugus, mais como algo onde h

    um toque externo, como uma marca deixada em uma cera, sem uma ntida alterao em quem a percebe.

    Portanto, vou adotar, a partir de agora, o termo representao para me referir traduo de phantasia. 39 D I.I.12. 40 Profisso em Epicteto com o sentido de funo ou aquilo que se espera naquela funo particular ou

    papel existencial. Ver em Diatribes Livro I, captulo 2 Como pode um homem preservar seu carter prprio

    sobre todas as ocasies, aqui carter e profisso se confundem mas no se excluem. Ver tambm Diatribes

    Livro II, captulo 9 Que embora no sejamos capazes de cumprir a profisso de um homem ns adotamos

    aquele de um filsofo, onde ele discorre mais sobre o papel a cumprir e aquilo que esperado em cada um.

    Em outras partes dos Livros I e II ele tambm fala da profisso de filho, pai, irmo entre outros papeis e

    quais so as aes esperadas e devidas em cada um.

  • 30

    fazer o correto uso das representaes externas, mas todas as outras eles no

    colocaram sobre nosso controle41.

    Para manter o homem no bem viver objetivando a euroia necessrio que a razo tenha

    um papel preponderante no correto uso das representaes externas qual efetivada

    pela autorrelfexo.

    O homem naturalmente tem sua funo (profession) qua homem, ento uma de suas

    tarefas desempenhar bem esse papel, cumprir sua funo de homem que se destaca das

    bestas selvagens pelo uso da razo, i.., completar sua jornada na determinao natural

    que lhe foi dada. Olhe para isso, ento, que voc nunca aja como uma besta selvagem;

    se voc o fizer, voc destruiu o homem em voc, voc no cumpriu seu ofcio42. Por isso

    temos que preservar a razo em todas nossas escolhas, julgamentos e aes.

    A razo a parte fundamental naquilo que central filosofia tica do bem viver em

    Epicteto, a proairesis43. Diz A. A. Long

    A anlise racionalista das emoes e das avaliaes implica que elas prprias,

    e os julgamentos sobre os quais eles dependem, esto completamente em nosso

    poder, depende de ns, dentro do controle de nossa vontade44.

    Isso quer dizer que nossas emoes no dependem do exterior, dependem, isso sim, de

    nossa capacidade de assentir racionalmente s representaes. Para Sorabji, esse o maior

    legado que o estoicismo, tanto na figura de Crsipo quanto de Epicteto, deixa para ns.

    Diz Sorabji,

    Na viso de Crsipo, todas as emoes consistem de dois julgamentos. H o

    julgamento que existe do bom e mau (benefcio ou prejuzo) por um lado, e o

    julgamento que apropriado reagir. [...] Mas as emoes em si mesmas

    consistem em julgamentos. importante salientar que julgamentos no so,

    como aquilo que aparece [phantasiai], involuntrios. Se aparece para voc que

    voc est em uma m situao, voc no pode ajudar naquilo que aparece. Mas

    41 D I.I.7. 42 D II.IX.3. Traduzi aqui profession por ofcio ao invs de profisso pois me parece mais apropriado

    com o intuito de cumprir com um papel determinado que se efetiva em aes ou escolhas. 43 Discutiremos a proairesis mais adiante em um captulo especfico sobre esse tema, apenas vale dizer que

    ela identificada com o eu moral. 44 LONG, A. A. A stoic and Socratic guide to life, New York: Oxford University Press, 2007, p. 28.

  • 31

    pode ajudar dando o assentimento de sua razo quilo que aparece. Muitas

    pessoas assentem automaticamente quilo que aparece [phantasia], mas o

    Estoicismo ensina voc como pode conter o assentimento enquanto questiona

    aquilo que aparece. [...] Aquilo que aparece no vira um julgamento at que

    voc d o assentimento para isso, e isto , para Crsipo, julgamento o qual

    constitui as emoes. Se ele est certo, h uma expectativa de mudar as

    emoes, e fazer isso por meios racionais, precisamente porque elas no so

    involuntrias45.

    Esse tipo de abordagem cognitiva das emoes tem a vantagem de possibilitar ao prprio

    indivduo exerccios teraputicos os quais, Epicteto tanto mostra em suas Diatribes46,

    servem para avaliar se aquilo o qual deu assentimento ou um verdadeiro benefcio ou

    prejuzo ou se a reao foi apropriada quilo que apareceu. E est a nossa maior e total

    liberdade: nossa liberdade de assentir sem o constrangimento externo47. Isso quer dizer

    que podemos fazer uso dessa deciso racional tanto corretamente quanto no

    corretamente e por isso que precisamos treino (asksis). Portanto, tudo o que interessa

    ao bem viver humano est dentro do escopo de nossa proairesis e s atravs dela podemos

    chegar euroia. E no podemos fazer isso sem o uso vigilante da razo, pois ela faz parte

    intrnseca de nossa natureza humana e afastar-se dela afastar-se de ns mesmos. Usar

    de modo incorreto a razo ou tentar abandon-la para apenas reagir de forma impulsiva

    aos eventos externos uma frmula exata para nos conectarmos ao desapontamento,

    ansiedade e infelicidade. Agir assim, contra a razo, agir irracionalmente48. A razo,

    ento, parte imprescindvel da proairesis, pois permite a autorreflexo e comanda as

    outras faculdades, por isso chamada muitas vezes de faculdade governante ou princpio

    governante49.

    45 SORABJI, Richard. Emotion and Peace of Mind from Stoic agitation to Christian Temptation the

    Gifford Lectures. New York: Oxford University Press, 2000, p. 2-3. 46 Diatribes () quer dizer discursos. 47 Se a teoria da ao de Epicteto interna ou externa, i.., necessita de ao no mundo ou no, uma

    discusso em aberto. Mas ns, no decorrer dessa dissertao, nos inclinaremos para uma teoria da ao

    interna, ou seja, a liberdade que ele assegura no da ao positiva no mundo, mas da liberdade de assentir

    ou recusar uma representao externa. Mais sobre isso trataremos no captulo seguinte. 48 No h em Epicteto uma parte irracional da alma, pois a alma para Epicteto, como para os estoicos,

    una, ou seja, no tem partes. Agir irracionalmente , ento, usar mal a razo, e no ser dominado por outra

    fora que no seja a prpria razo. O que deixa uma porta aberta para o aprendizado de como usar bem a

    razo pois todos temos essa capacidade. 49 Como princpio ou faculdade governante () cf., por exemplo, em I.XV.4; I.XX.11; II.I.39;

    II.XXVI.7.

  • 32

    2.2.2 FSICA

    Os trs campos de estudos da filosofia estoica, fsica, a tica e a lgica, tm uma relao

    orgnica na prtica da filosofia. Esta organicidade entre esses tpicos lembrada tambm

    por Diogenes Laertius quando diz

    Os estoicos comparam a filosofia a um ser vivo, onde os ossos e os nervos

    correspondem lgica, as partes carnosas tica e a alma fsica. Ou ento

    comparam-na a um ovo: a casca a lgica, a parte seguinte (a clara) tica, e a

    parte central (a gema) fsica50.

    Para elucidar mais a parte tica deste trabalho faz-se necessrio aprofundar um pouco a

    parte da fsica que, como visto na citao acima, tem parte fundamental nas duas

    comparaes feitas com a filosofia. Importante lembrar que essa metodologia analtica

    dos conceitos que estamos usando aqui prejudicial em vista da organicidade da filosofia

    estoica, portanto ao tentar abstrair somente uma parte dela pode-se cometer erros lgicos

    ou de interpretao, deixando lacunas ou faltando alguma explicao mais aprofundada

    que requereria outro campo de estudo ou no entendimento de um contexto mais

    abrangente. No entanto, vou me ater s especificaes da fsica e seus elementos

    simplesmente no tocante tica.

    Diz Epicteto, O primeiro [tpico, a fsica] tem a ver com os desejos e averses, que ele

    possa nunca falhar em conseguir o que deseja, nem cair naquilo que ele evita51. Por isso,

    continua ele mais adiante nos Discursos, dizendo quem o homem que est em prtica

    neste tpico,

    Ele o homem que pratica no empregar seu desejo, e exercita empregar sua

    averso apenas sobre as coisas que se encontram dentro da esfera de sua

    proairesis, sim, e exercita-se particularmente nas coisas que so difceis de

    dominar52.

    50 DL VII.40. 51 D III.II.1-2. 52 D III.XII.8.

  • 33

    As coisas que se encontram dentro da esfera da proairesis so aquelas que esto dentro

    do seu poder, i.., ephhmin53.

    As consequncias de uma m ao do indivduo neste campo so confuses, tumultos,

    infortnios e calamidades assim como as paixes (patheiai) da tristeza, lamentao,

    inveja, cime. Para Epicteto toda paixo ruim, pois so resultados de desejos

    desordenados, medos exagerados, i.., de um mau uso da razo. Essas paixes, alm de o

    tirar da serenidade, impossibilitam o indivduo de estar alinhado com a razo. Um

    indivduo tomado por paixes acaba por ser arrastado para o lado oposto do bem viver.

    Diz A. A. Long, Na poca de Epicteto (e de fato, bem antes dele) filosofia em geral era

    considerada como um remdio para aliviar os erros e as paixes que resultam de atitudes

    reativas e convencionais54. Mas importante deixar claro que Epicteto no contra as

    emoes ou sentimentos, justo o contrrio, aquele que est em progresso euroia busca

    ter bons sentimentos ou boas emoes (eupatheiai), i.., emoes ou sentimentos

    racionais, que sejam resultado de um correto uso das representaes e da proairesis55.

    Para entender a tica de Epicteto preciso considerar este princpio fundamental da fsica

    que lida com os desejos e averses. O que o desejo promete? No falhar em alcanar o

    que se deseja. E o que a averso promete? No cair naquilo em que se queira evitar. Mas

    para desejar algo necessrio antes limpar a representao que se tem das coisas e

    consider-las como realmente so, sem os julgamentos de valores humanos j associados

    a elas. um exerccio de desantropologizao56. Uma vez alcanada essa viso objetiva

    das coisas, que se pode desejar.

    53 ephhmin () um termo fundamental na tica de Epicteto. Algumas tradues para ele so o

    que est sob nosso controle, aquilo que est sob nosso poder, aquilo que encargo nosso, aquilo que

    est sobre ns (no sentido de responsabilidade). De qualquer forma o sentido para aquilo que somente

    ns podemos agir, controlar e garantir o resultado. Vou adotar aqui a traduo aquilo que est sob nosso

    poder pois contrasta, em minha opinio, melhor com aquilo que externo a ns e do qual no temos

    poder de escolher, alterar ou decidir, s quais se refere Epicteto nas Diatribes como k ephhmin (

    ). 54 LONG, A. A. A stoic and Socratic guide to life. New York: Oxford University Press, p. 18. 55 As boas emoes acabam por levar ao prazer, mas no se atinge as boas emoes pela ligao, primeiro,

    com os prazeres, ainda mais se forem prazeres exteriores, sejam materiais ou corporais. As boas emoes

    esto ligadas intimamente concepo de bem e este em ligao profunda com nosso eu, pois s na

    autorreflexo podemos chagar fonte do bem, que est conectada ligao entre nossa natureza humana

    racional e a natureza csmica. Boas emoes so manifestaes de conquistas profundas que tm a razo

    como guia, enquanto prazeres so conquistas mais superficiais e que tem a falta do bom ou correto uso da

    razo como parmetro. 56 Pierre Hadot chama de exerccio de eliminao do antropomorfismo. No livro Exerccios espirituais e

    filosofia antiga, entende-se antropomorfismo em Epicteto, e na teoria estoica, como o humano demasiado

    humano que o homem acrescenta s coisas quando ele as representa para si., p. 141.

  • 34

    O exerccio consiste, portanto, em primeiro lugar, em definir o objeto ou

    acontecimento em si mesmo, tal qual , separando-o das representaes

    convencionas que os homens habitualmente fazem dele57.

    Esse um esforo interno do desejo58 no sentido contrrio ao impulso irracional, sendo

    impulso irracional o resultado de desejar mal, desejar aquelas coisas que no esto sob

    nosso poder e, por isso, no deveriam ser permitidas desejar. Ao conseguir realizar esse

    exerccio, o indivduo supera a subjetividade e atinge a objetividade fenomenolgica59. A

    falta de treino do desejo uma das causas das vidas perturbadas, aflitas e infelizes. Se

    no se tem controle sobre a vontade, -se escravo daquelas coisas que se busca

    irracionalmente, pois no so coisas que esto dentro do mbito do desejo ou averso

    porque no esto no mbito das coisas que esto sob nosso poder. O prprio indivduo

    o nico que pode escravizar a ele mesmo quando no tem a prtica do desejo. Essa prtica

    est ligada diretamente faculdade da razo, por isso abrir mo da fsica abrir mo da

    razo e, consequentemente, ser arrastado por representaes que nos levaro s

    perturbaes.

    Diz A. A. Long sobre a fsica em Epicteto

    Este campo de diligncia nos diz a verdadeira identidade dos seres humanos

    enquanto tal, nos diferencia dos animais no-racionais e alinha nossas

    faculdades humanas e potencialidades com o divino autor de nosso ser60.

    Restringir nosso desejo e averso ao que est em nosso poder estar alinhado, como diz

    Long na citao acima, tambm com o divino autor (Zeus). Em funo disso, o objetivo

    desse primeiro tpico de estudo fazer com que o indivduo consiga sentir-se liberto das

    falsas concepes de bom e mau, que so as concepes que estimulam o desejo e a

    57 HADOT, Pierre. Exerccios espirituais e filosofia antiga. p, 137. 58 H o desejo sobre coisas internas, aquele que est sob o poder do indivduo, e o desejo sobre coisas

    externas, aquele que est vinculado s coisas que o indivduo no tem poder, dentre estes, o desejo que vem

    do corpo, pois ele considerado um externo para Epicteto. Treinar o desejo alinh-lo quelas coisas que

    so permitidas desejar porque esto em seu poder e no cair em desejos pelas coisas externas. Por isso,

    nesta frase desejo est em contraposio ao impulso irracional. 59 Ao realizar esse exerccio, o indivduo alcana a representao adequada (phantasia kalptik) em

    contraposio representao da primeira impresso, i.., sem uma devida anlise racional. 60 LONG, A. A. A stoic and Socratic guide to life, p. 231.

  • 35

    averso, e, consequentemente, impedir que caia em frustraes e perturbaes, e assim

    estar alinhado natureza divina. Emoes so resultados de desejos, ento ter boas

    emoes resultado de uma avaliao racional daquilo que se deseja. Ao falhar nos

    desejos e averses, ao invs de cair nas boas emoes (eupatheiai) acaba-se por cair nas

    paixes (patheiai).

    Mas como saber o que desejar e o que ter averso? Temos que compreender a natureza

    do cosmos e a nossa e, ao mesmo tempo que os diferenciar, entender como se relacionam,

    pois no h efetivamente uma linha divisria entre natureza csmica e humana.

    Especificamente sobre o conceito de natureza trataremos no prximo tpico, mas vale

    dizer que ao entendermos que h coisas s quais no so afetadas por nossa natureza

    humana, que pertencem natureza csmica, e outras que so do poder de nossa natureza

    humana, poderemos diferenciar o que e como bem desejar. Ao nos localizarmos dentro

    do universo (cosmos) e da natureza humana, o primeiro tpico no nos diz como

    desenvolver nossas potencialidades individuais e sociais. Apenas nos mostra os limites.

    O desenvolvimento de nossas potencialidades o assunto do segundo tpico, a tica.

    Entretanto, para delimitar o campo tico preciso compreender o mbito dos desejos e

    das averses, preciso que se deseje aquilo que possvel alcanar e tente-se evitar aquilo

    que possvel evitar, com o entendimento da natureza. Se aquilo que se deseja

    verdadeiramente um bem, ento nada pode impedir de consegui-lo. Se aquilo que se tem

    averso verdadeiramente um mal, nada pode impedir de evit-lo61. Se conseguir

    alcanar aquilo que se deseja e conseguir evitar aquilo que no se quer, o indivduo est

    em harmonia com a fsica. Se no conseguir alcanar aquilo que deseja, ou cair naquilo

    que queria evitar, falha neste campo.

    Mas como diferenciar aquilo que est em seu poder (ephhmin) daquilo que no est em

    seu poder (k ephhmin)? Ao dividir a natureza entre natureza csmica e natureza

    humana62, aprende-se a considerar que h coisas que no esto sob poder do indivduo

    e que so da ao da natureza csmica ou do destino e por isso no dependem dele, e

    61 Bem e mal so aquelas coisas que esto dentro do mbito daquilo que podemos e devemos desejar,

    portanto, dentro do mbito de nosso poder. Tudo o que est fora desse mbito no bom nem mau, mas um

    indiferente. Sobre os indiferentes, trataremos com mais especificidade mais adiante no captulo do Bem

    Viver, mas podemos dizer apenas que, enquanto indiferentes, no tm valor positivo ou negativo e por isso

    no deveriam fazer diferena para ns na busca da virtude, da felicidade e da euroia. Os indiferentes esto

    localizados no espao entre a virtude e o vcio e neste nterim deveriam ser tratados como tal, i.., com

    indiferena, ou seja, no atribuindo valor algum a eles. 62 Esta uma diviso didtica que alguns estudiosos de Epicteto utilizam. Porm, para Epicteto, como para

    o estoicismo, o termo natureza engloba universo, cosmos, homem, razo em uma unidade complexa.

  • 36

    h coisas que esto sob o poder do indivduo e por isso dependem somente dele63. Essa

    uma distino fundamental que Epicteto deixa bem clara em seus Discursos e no

    Encheiridion64, tanto que neste ltimo ele comea assim,

    H duas classes de coisas: aquelas das quais esto sob nosso controle e aquelas

    que no esto. Sob nosso controle esto a opinio, a escolha, o desejo, a averso

    e, em uma palavra, todas as coisas que so de nossa prpria ao; no esto

    sob nosso controle so, nosso corpo, nossas posses, nossa reputao, nossos

    ofcios e, em uma palavra, todas as coisas que no so de nossa prpria ao65.

    Essa questo fundamental da fsica nos mostra que h algumas coisas que no esto em

    nosso poder, que dependem de causas externas, e essas causas externas esto ligadas

    necessidade racional da natureza, e por isso elas tm uma finalidade tica tambm

    fundamental66. No devemos, ento, atentar contra elas. No temos, neste sentido, escolha

    de alterar as coisas que so necessrias e racionas da natureza ou do destino, pois tudo

    aquilo que externo perfeitamente racional e necessrio. Devemos fazer o melhor

    daquilo que est sob nosso poder, e levar o resto como a natureza 67. Seja a vontade de

    deus68, de Zeus, dos deuses ou do destino.

    63 Em Introduo ao manual de Epicteto, Aldo Dinucci, na nota 1, pgina 39, coloca o termo, em grego,

    em relao s coisas que esto sob nosso controle. Continua ele, Como Epicteto dir a seguir,

    preciso que nos concentremos sobre as coisas que esto sob nosso controle em trs sentidos. Em relao

    representao: retirando dela todo juzo (hypolpsis) equivocado, a partir da compreenso de que nada que

    no depende de ns por si mesmo um bem ou mal. Em relao ao desejo (orxis) e repulsa (ekklisis):

    partindo mais uma vez da compreenso de que nada externo por si s um bem ou um mal, preciso que

    o desejo e a repulsa se apliquem no mais s coisas que no dependem de ns (sendo-nos necessrio desej-

    las como so), mas s coisas que esto sob nosso controle. Em relao ao impulso (horm): uma vez cientes

    de que produzimos nosso bem e nosso mal, preciso moderar os impulsos e encontrar o modo de agir

    segundo a natureza. 64 Encheiridion um termo grego () que significa adaga, punhal, arma, i.., coisas que esto

    ao alcance da mo para serem utilizadas quando necessrias e que podem ser carregadas com o indivduo.

    Este o nome do Manual de Epicteto composto tambm por Arriano, seu aluno, exatamente para estar

    sempre ao lado e pronto para ser sacado como guia de princpios para enfrentar as agruras da vida. 65 BOTER, Gerard. The Encheiridion of Epictetus & its Three Christian Adaptations. Danvers: Brill, 1999,

    The Handbook of Epictetus, ch. 1, 1, p. 276. 66 A finalidade tica nas contingncias da natureza ou so porque so modelos de racionalidade ou porque

    so, mesmo que no consigamos representar no momento, coisas que so positivas para o todo csmico e,

    como fazemos parte do todo, acabaro por fazer bem a ns tambm. H muitas crticas a Epicteto sobre

    esse otimismo, considerando, por exemplo, que inclusive o torturador tem um papel positivo na comunidade

    csmica e, portanto, estaramos, de alguma forma, coniventes com o mal que ele faz. 67 D I.I.17. 68 Usarei a palavra deus () com inicial minscula neste trabalho, pois nos textos em grego no h inicial

    maiscula para essa palavra, sendo usada apenas no incio de nomes prprios como Zeus. Tambm pelo

    fato de que os estoicos eram pantestas e no tinham em deus uma personificao, mas o identificavam de

    forma impessoal com a natureza.

  • 37

    Qual ajuda, ento, devemos ter pronta mo em tais circunstncias? O que,

    o que mais do que o conhecimento do que meu, e do que no meu, e o que

    permitido a mim, e o que no permitido a mim69?

    Desejar aquilo que no me permitido desejar e recusar aquilo que no me permitido

    recusar ir contra a natureza e procurar, assim, a perturbao e a infelicidade. O

    conhecimento para essa diferenciao est em aceitar, na fsica, a distino entre natureza

    csmica e natureza humana e, ao mesmo tempo, entender que se conectam para perfazer

    o todo.

    2.2.3 NATUREZA

    O conceito de natureza (physis ou ) se insere dentro do campo da fsica, porm ele

    se estende a todos os outros campos como sendo um pano de fundo (como a razo) para

    o entendimento dos outros conceitos dos outros tpicos de estudos estoicos. Mas podemos

    comear com essa declarao de Epicteto, que concorda com o estoicismo antigo, [...]

    qualquer coisa que se faa de acordo com a natureza [ ] bem feito70. Para

    entender o conceito de natureza estoica e o papel que ela atua na tica, necessrio, ao

    mesmo tempo, termos uma viso do todo e uma viso particularista. Uma se insere na

    outra criando o que a filosofia estoica chamou de simpatia (simpatheia), a qual Oldfather

    definiu assim: [...] a unidade fsica do cosmos de tal forma que a experincia de uma

    parte necessariamente afeta cada outra [parte]71. Isso quer dizer que a presena de Zeus

    ou deus no uma presena destacada do mundo ou do ser humano, mas uma parte

    intrnseca do mundo (cosmos) e interna no indivduo72. Ento, como diz Diogenes

    69 D I.I.21-22. 70 D I.XI.5-6. 71 L I, nota de rodap 1, p. 100. Brad Inwood em The Cambridge Companion to Stoics define assim o

    conceito de simpatia: [...] uma conexo interna entre eventos que parecem bastante diferentes, p. 184. 72 Essa uma forma de transcendncia imanente. Segundo Luc Ferry, em seu livro Aprender a Viver

    filosofia para os novos tempos, Fundamentalmente, o pensamento grego um pensamento da imanncia,

    j que a ordem perfeita no um ideal, um modelo de ser que se situaria em outro lugar a no ser no

    universo, mas ao contrrio, uma caracterstica totalmente encarnada nele. [...] podemos dizer que a ordem

    harmoniosa do cosmos no deixa ser transcendente em relao aos humanos, no sentido exato em que eles

    nem o criaram nem o inventaram. [...] a palavra transcendente deve ser entendida aqui em relao

    humanidade. [...] A transcendncia no est no cu, mas na Terra., p. 281.

  • 38

    Laertius, Este termo [natureza] usado no significado do Todo e tambm naquilo que

    causa as coisas terrestres73. essa relao que devemos ter em mente quando pensamos

    na relao entre natureza e tica, ou entre os tpicos da fsica e da tica. O conceito de

    natureza, ento, delimita o espao em que o tpico da tica pode atuar e em quais

    circunstncias vlido atuar.

    Ambas, a natureza humana e a csmica, servem como fundamentos e primeiros

    princpios da tica estoica. Embora parea natural para ns perguntar como

    esses dois focos diferentes da teoria tica podem ter coerncia, os estoicos no

    tinham tal preocupao. Nada mais caracterstico da escola, desde seu incio,

    no final do sculo quarto at o final da antiguidade, do que a tese de que a

    natureza humana e csmica esto relacionadas como parte do todo74.

    Sem essa considerao a tica estoica no possvel. Tanto porque no fica delimitado o

    campo de ao humana, quanto por que muitos dos atributos humanos so emprestados

    do cosmos, como a racionalidade e a percepo.

    A base da tica est, ento, vinculada natureza csmica pois ela diz que somos uma

    centelha desse princpio governador racional que tudo criou, mas tambm est vinculada

    nossa natureza humana no sentido que, como seres humanos aqui e agora, somos

    guiados pelo princpio da autopreservao75.

    A pergunta quem gostaramos de ser est vinculada ao padro de ser, e h dois padres,

    diz Epicteto, para guiar a resposta a essa pergunta, um padro universal e outro individual.

    Primeiro de tudo, e devo agir como um homem. O que est incluso nisso? No

    agir como uma ovelha, gentilmente mas sem um propsito fixado; nem

    destrutivamente, como uma besta selvagem. O padro individual aplica-se a cada

    ocupao do homem e proairesis76.

    73 DL VII.148. 74 ALGRA, Keimpe; BARNES, Jonathan; MANSFELD, Jaap; SCHOFIELD Malcom. The Cambridge

    History of Hellenistic Philosophy. UK: Cambridge University Press, 1999, p. 676. 75 Neste ponto a filosofia tica estoica diferencia-se muito da filosofia tica epicurista que tinha como

    princpio bsico do ser humano o prazer. Para os estoicos buscar a autopreservao nem sempre buscar