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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
ESCOLA DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA
REA DE CONCENTRAO: METAFSICA E EPISTEMOLOGIA
A TICA DO BEM VIVER EM EPICTETO
FERNANDO CARBONELL DA FONTOURA
Dissertao apresentada como requisito
parcial obteno do grau de Mestre em
Filosofia na Pontifcia Universidade Catlica
do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich
PORTO ALEGRE
2016
DEDICATRIA
Dedico o esforo deste trabalho memria de meu pai Ney Fontoura da Fontoura.
preciso fora e valor para nadar contra
a corrente, mas um peixe morto pode
segui-la flutuando. (Samuel Smiles)
AGRADECIMENTOS
Filosofar uma empresa coletiva tanto no pensamento quanto no apoio dirio, por isso
agradeo aos colegas, em especial Diogo da Luz e Bruna Pormann, parceiros de dilogos
interdisciplinares, esclarecimentos e, mais importante, de obscurecimentos que levaram
a mais estudos e pesquisas. confiana e estmulo do meu orientador prof. Dr. Roberto
Hofmeister Pich. Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico) pelo apoio financeiro para a realizao desse trabalho e possibilidade de
estudos e pesquisas na PUCRS (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul).
equipe de professores do mestrado que colocaram todas as questes e conhecimentos
de forma aberta, franca e com muita propriedade e atualidade nas questes de suas reas.
Agradeo aos funcionrios da Escola de Humanidades da PUCRS pelas aes de apoio e
boa vontade em todas as situaes em que entramos em contato. Em carter de
fundamental importncia, minha amada, querida e parceira esposa, Gisele Witt da
Fontoura, que apoia e incentiva de forma basilar minhas buscas, projetos, ideias e aes
na rea da filosofia acadmica e de vida.
A ARTE DO BEM VIVER EM EPICTETO: UMA ABORDAGEM TICA
RESUMO
A filosofia como modo de vida matria das escolas filosficas antigas, tanto gregas
quanto romanas. Para tanto, vrias escolas filosficas desenvolveram discursos para
esclarecer e apoiar a prtica filosfica. Essa a ideia central de Pierre Hadot, filsofo
francs que retoma a questo da filosofia como modo de vida e do qual partimos para o
desenvolvimento dos argumentos em direo a uma tica do bem viver. Este trabalho de
dissertao desenvolver uma tica do bem viver especfica do filsofo greco-romano
Epicteto, que viveu no primeiro sculo de nossa era. A busca por um ideal de vida tinha
como tpicos fundamentais as virtudes (aretai), a felicidade (eudaimonia), o sereno fluxo
de vida (euroia), a imperturbao da alma (ataraxia). Porm, a euroia ser considerada
aqui como o prprio objetivo da tica do bem viver de Epicteto, essa se desenvolvendo
pelo exerccio das virtudes. Para efetivar essa a tica do bem viver mostraremos a teoria
da ao de Epicteto e as estruturas fundamentais para que ela se realize. Dentro da teoria
da ao a proairesis ponto fundamental onde a razo e a diferenciao entre aquilo que
est em nosso poder (ephhmin) daquilo que no est em nosso poder (k ephhmin)
so de suma importncia para o desenvolvimento de uma teraputica de si em direo
euroia.
Palavras-chave: Epicteto, tica, virtudes, eudaimonia, euroia, proairesis.
THE ART OF WELL-LIVING IN EPICTETUS: AN ETHICAL APPROACH
ABSTRACT
Philosophy as a way of life is a matter of ancient philosophical schools, both Greek and
Roman. To this end, several philosophical schools have developed discourses to clarify
and support philosophical practice. This is the central idea of Pierre Hadot, a French
philosopher who takes up the question of philosophy as a way of life and from which we
set out to develop arguments towards an ethic of good living. This work of dissertation
will develop a specific ethic of good living of the Greek-Roman philosopher Epictetus,
who lived in the first century of our era. The search for an ideal of life had as fundamental
topics the virtues (aretai), happiness (eudaimonia), the serene flow of life (euroia), the
imperturbation of the soul (ataraxia). However, the euroia will be considered here as the
fundamental goal of the ethics of well-being, which is developed by the exercise of the
virtues. To accomplish this, the ethics of good living will show Epictetus's theory of
action and the fundamental structures for it to be realized. Within the theory of action
proairesis is a fundamental point where reason and the differentiation between that which
is in our power (eph'hmin) of that which is not in our power (k eph'hmin) are of
paramount importance for the development of a therapy of yourself toward euroia.
Keywords: Epictetus, ethics, virtues, eudaimonia, euroia, proairesis.
Abreviaturas:
D: Diatribes. Epicteto
Ench: Encheiridion. Epicteto
DL: Diogenes Laertius. Live of Eminent Philosophers
Os ltimos nmeros de ambas as citaes dos livros acima so as linhas na verso grega
do texto, por exemplo, D I.II.23 ou DL VII.88.
SUMRIO
INTRODUO .............................................................................................................. 8
CAPTULO 1 - A TICA DO BEM VIVER EM HADOT ...................................... 18
CAPTULO 2 - TICA EM EPICTETO ................................................................... 26
2.1 TPICOS FUNDAMENTAIS: RAZO, FSICA E NATUREZA ..................... 27
2.2.1 RAZO .............................................................................................................. 27
2.2.2 FSICA ............................................................................................................... 32
2.2.3 NATUREZA ....................................................................................................... 37
CAPTULO 3 AS AES EXCELENTES E O MECANISMO DA AO
HUMANA: PROAIRESIS, ASSENTIMENTO E IMPULSO ................................. 44
3.1 EU MORAL (PROAIRESIS) .................................................................................... 45
3.2 ASSENTIMENTO (synkatathesis) .......................................................................... 59
3.3 IMPULSO (horm) ................................................................................................... 65
CAPTULO 4 DISCIPLINA E EXERCCIO ......................................................... 75
4.1 ASKSIS .................................................................................................................. 75
4.2 PROSOCH ............................................................................................................ 81
CAPTULO 5 - VIRTUDE (aret) E EUROIA (serenidade) .................................... 85
CAPTULO 6 BEM VIVER ..................................................................................... 98
CAPTULO 7 - CONSIDERAES FINAIS ......................................................... 108
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 113
8
Tu no tens necessidade seno de ti mesmo para colocar-se imediatamente na paz
interior, renunciando a inquietar-te com o passado e com o futuro. Tu podes ser feliz
desde agora ou ento tu no o sers jamais. Pierre Hadot
INTRODUO
O objetivo principal desse projeto de dissertao est colocado no interior do debate sobre
a tica estoica do filsofo grego que viveu em Roma, Epicteto (55 d.C. 135 d.C.)1 e seu
desenvolvimento de uma filosofia prtica para a questo do bem viver, isto , como um
modo de vida (techn peri ton bion), porm no qualquer modo de vida, mas uma vida
filosfica que leve euroia ou ao sereno fluxo de vida. Para chegar at esse ponto, andarei
junto s consideraes de Pierre Hadot sobre a maneira de compreender a filosofia antiga
e as escolas filosficas, e como elas, em especial a estoica e mais especificamente a do
estoico Epicteto, coloca a prtica da tica em direo ao bem viver. Para tanto sero
considerados aspectos e conceitos fundamentais da tica do bem viver de Epicteto, sendo
a aret (virtude), a eudaimonia (felicidade2), a euroia3 (sereno fluxo de vida), a ataraxia
1 No muito se sabe sobre os detalhes da vida de Epicteto, comeando pelo seu nome. Segundo alguns historiadores Epicteto a latinizao do grego de Epikttos () o qual significa adquirido. Essa
uma controversa questo. Segundo alguns pesquisadores de sua vida, ele nasceu entre 50 e 60 d.C e
faleceu por volta de 135 d.C. Provavelmente foi um escravo desde que nasceu, foi adquirido por Epafroditus
o qual o libertou depois dele comear a ter aulas de filosofia com Musnio Rufus, um importante e
proeminente filsofo estoico da poca. Epicteto era manco, de sade frgil, pobre e mudou-se para
Nicpolis onde estabeleceu sua escola, embora tenha comeado a lecionar em Roma. Sua mudana para
Nicpolis se deu por causa do exlio que os filsofos de Roma sofreram (por volta de 89 ou 92 d.C.) sob o
mando de Domitian (Domiciano), imperador romano de, mais ou menos, 81 a 96 d. C. 2 Felicidade um conceito complicado de ser traduzido para o portugus como equivalente a eudaimonia.
Para Epicteto, eudaimonia uma condio interna independente da qualquer coisa exterior a ela e
independe de resultado de obteno ou preservao de qualquer material ou objetivo fora da proairesis. Ao
traduzir de forma equivalente eudaimonia por felicidade corre-se o risco de perder toda complexidade que
este conceito tem na filosofia de Epicteto (e na filosofia antiga em geral) e ainda pode dar ao leitor uma
ideia anacrnica do que se considera felicidade nos dias de hoje. Florescimento ou completude seria algo
mais apropriado, mas ainda assim seria necessrio arguir a favor de cada escolha, o que no objetivo desta
pesquisa. Por isso, a partir de agora usarei a palavra eudaimonia ao invs de felicidade. 3 vem de (bom)+ que vem de (correr, fluir) e que, ento, significa bom fluxo. No caso
da tica do Epicteto, bom fluxo de vida ( ). A qualificao de bom fluxo para sereno um passo
a mais que ser mostrado no captulo 5 virtude e euroia.
9
(imperturbao da alma4), a apatheia5 (livre das paixes) e a proairesis (eu moral).
Mostrarei como Epicteto, nos seus Discursos, desenvolve uma tica para atingir a euroia
atravs dessas prticas filosficas que visam fazer a diferena na vida daquele que a
pratica.
A literatura direta de Epicteto no existe, pois ele no escreveu nada. Mas seu aluno
Arriano redigiu oito livros que acabou chamando de Diatribes ou Discursos. Nos
sobraram quatro desses livros e mais uma compilao deles que se chamou de
Encheiridion ou Manual, tambm realizado por Arriano. So essas as fontes primrias
que vamos usar aqui para pesquisar o pensamento e a prtica da tica de Epicteto.
Na literatura comentada sobre Epicteto, quase como uma totalidade considerada a tica
dele como eudaimonista ou, no mximo, como conducente ataraxia. Mostraremos que,
embora a tica de Epicteto est historicamente dentro do escopo das ticas eudaimonistas,
e que dentro dela h um grande espao para a ataraxia, ela carrega uma caracterstica
sutil que a coloca de modo diferenciado naquilo que objetiva ser o telos ou a finalidade
de sua tica, que, em nossa perspectiva, a euroia. Mostraremos que esse conceito
crucial e fundamental para o exerccio da tica de Epicteto e que ele coloca as virtudes
(aret) e seu desenvolvimento como formas de chegar ela.
Esse caminho argumentativo que faremos est amparado na viso sobre a filosofia antiga
de Pierre Hadot. Para ele, as escolas filosficas greco-romanas tinham uma clara tica do
bem viver qual se dava nfase s prticas que levam a esse objetivo. Em seu livro
Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga ele trata exaustivamente das prticas filosficas
dessas escolas e dos objetivos que tinham. Nessa esteira andaremos ao lado de Hadot, i..,
na questo da filosofia antiga ser uma prtica que quer efetivar o bem viver, mas
4 Ataraxia () literalmente no perturbado. Tranquilidade da alma psichs ataraxian (
). Mas vou usar, a partir de agora, ataraxia como equivalente tranquilidade da alma. Alma () um conceito que aparece nos Discursos de Epicteto em dois momentos, um como traduo para
mente e outra para alma, ambas com cunho racional forte. neste sentido que usada aqui a palavra alma,
i.., com esse peso racional. Ataraxia traduzida tanto por tranquilidade da alma quanto da mente, nos
Discursos. Para no confundir com o conceito de mente contemporneo, usarei alma. H tambm nos
Discursos psich () equivalente mente, por exemplo, em II.X.21; II.XV.4; II.XV.20; II.XVIII.5;
II.XVIII.11; mas a traduo que aparece mais vezes como equiparada mente, e somente a ela, j que
psich equivale tanto mente quanto alma, dianoia (). Aparece, por exemplo, em I.IV.32;
I.XXVI.14; II.II.13; II.II.21; II.XVI.45; II.XXI.22; III.IX.18 e 19; III.XXII.20; IV.V.16. A traduo de
mente como hegemonikn () aparece menos, por exemplo, em IV.VIII.40 e pode ser
considerada, hegemonikn , como uma melhor traduo para razo, j que ela hegemnica sobre as outras
faculdades. Psich como alma, parece, por exemplo, em I.IV.4, I.XIV.6, I.XXVIII.4, entre outras passagens
nos Discursos. Como grandeza da alma aparece a palavra , por exemplo em I.IX.32. 5 literalmente significa sem paixes, mas tambm tem o sentido de tranquilidade.
10
colocaremos nossa perspectiva mais efetivamente em cima de Epicteto e de sua particular
viso de bem viver e da tica estoica.
Diferenciaremos bem viver de euroia no sentido de que a primeira um estado presente,
no agora, enquanto que a segunda um telos, i.., um objetivo. Para estar em bem viver
preciso que o indivduo no esteja em contradio com suas crenas e valores, no
sentido de ter duas ou mais crenas ou valores que sejam opostas uma(s) a(s) outra(s).
Nem pode o indivduo ter tenso ou contradio entre suas crenas e/ou valores e suas
aes externas, como acreditar ou valorizar algo e efetivar em ao seu oposto ou algo
que no seja o que acredita ou valoriza. Tambm no pode estar destacado dos princpios
fundamentais de estudo dos trs campos do estoicismo fsica, tica e lgica. Entretanto,
pode estar o indivduo em bem viver sem ainda ter atingido seu telos, o que poderia ser
caracterizado, em Epicteto, como aquele que est em progresso (prokops). Pode o
indivduo no estar em contradio com algum ou alguns valores ou crenas, estar ento
em bem viver, e no estar com todas as condies satisfeitas para chegar euroia
(desenvolvimento de todas as virtudes necessrias). Neste sentido, bem viver um modo
de vida, uma filosofia prtica para o agora, como afirma Hadot. Mas ela no se justifica
em si mesma, ela a condio para se chegar ao telos da tica de Epicteto, a euroia. Por
isso, o contrrio no pode acontecer, i.., chegar euroia sem passar pelo bem viver.
Como estrutura da dissertao, iremos, no captulo um, estabelecer nossa argumentao
pelo caminho aberto por Hadot e analisar sua concepo de tica da filosofia antiga no
geral. Pensamos ser importante colocar de forma resumida, porm enftica, a concepo
de filosofia como modo de vida que Hadot, um contemporneo, percebe e defende da
filosofia antiga greco-romana. Ele no o nico autor contemporneo que tem essa
perspectiva da filosofia antiga e essa viso de prticas filosficas, porm sua concepo
delas coaduna com nossa em ambos os aspectos, no coincidindo com ele apenas um
exame mais especfico de Epicteto e a finalidade de sua tica do bem viver, que , sob
nossa perspectiva, a euroia. Filosofia como modo de viver, alm de ser um modo que
desenvolve a autossuficincia, a anlise de si e a vida racional, como em Hadot, para ns
envolve o fim ltimo, a euroia. Neste captulo tambm queremos deixar evidente que a
filosofia acadmica dos dias de hoje no prima por essa viso da prpria filosofia o que
ajuda a distanci-la de uma prtica e a coloca mais no mbito do pensamento abstrato
puro, o que, para Hadot, no era o propsito original do filosofar nas escolas antigas. Esse
contraste importante pois define, logo no comeo, qual a linha de argumentao que
11
termos e qual o objetivo final da dissertao, qual seja, exatamente aquele da filosofia
antiga: tentar, de forma parcial, deixar um registro de um modo de prtica filosfica.
Finalizamos esse captulo com a definio de filosofia como teraputica de si ou
transformao do indivduo atravs de prticas filosficas que se diferenciam de prticas
no filosficas tanto em seu contedo quanto em sua finalidade.
No captulo dois trataremos da tica em Epicteto. Ali comearemos nossa caminhada para
mostrarmos porque a euroia e no a eudaimonia ou a ataraxia era o objetivo final da tica
do bem viver do filsofo estoico. Passamos das consideraes gerais sobre filosofia e
sobre o filosofar do captulo anterior para adentrarmos a questes mais conceituais e
tcnicas da tica epictetiana. Iniciaremos respondendo porque uma tica do bem viver
necessria e quais os parmetros ou balizadores que Epicteto coloca para o agir tico.
Como caracterstica da filosofia estoica e da filosofia antiga no geral, a tica no era uma
disciplina separada do corpus do restante do discurso filosfico. O corpus filosfico,
praticamente de todas as escolas que tinham alguma sistematizao escrita da poca, era
considerado algo orgnico, que no tinha como ser separado na prtica. Era separada
apenas didaticamente para as aulas ou explicaes. Filosofar era um exerccio orgnico
onde tudo estava ligado a tudo, todas as reas estavam interligadas de forma coesa e
separ-las como se fossem disciplinas ou assuntos independentes era perder a essncia do
filosofar. Dada essa advertncia adentramos aos tpicos fundamentais para um
entendimento do agir tico e de como o indivduo pode pensar sua prpria constituio
tica. Tivemos como perspectiva a escolha de trs tpicos fundamentais que formam a
estrutura bsica (porm, no exaustiva) de um agir tico em Epicteto: razo, fsica e
natureza. Com base nos Discursos de Epicteto, no Encheiridion (Manual) e nos
comentadores da poca, como Diogenes Laertius e Stobaeus, mostraremos a importncia
desses tpicos e qual a finalidade deles para um desenvolvimento de um entendimento de
um agir filosfico em direo euroia.
O primeiro tpico, razo, como usado por Epicteto denominada, no ser humano, como
dynamis logik e ela uma herana da natureza csmica ou de Zeus. Ela no ser humano
uma centelha divina que d toda a base para um desenvolvimento racional do bem viver
e chegar euroia.
O segundo tpico, fsica e o terceiro, natureza, esto imbricados organicamente, no
diferente com a razo, mas que para os estoicos e para Epicteto o conceito de natureza
12
est contido no primeiro tpico de estudo da escola estoica, a fsica. Falaremos, ento,
como segundo subtpico do captulo, sobre a fsica. Ela delimita, de forma geral, como o
indivduo deve desejar e como deve ter averses para que ele nunca falhe em conseguir o
que deseja e nunca caia naquilo que quer evitar. O desenvolvimento das virtudes
necessrias para um bem viver nesse tpico de estudo estoico faz com que o indivduo
consiga efetivar em si como bem desejar. Aqui surge um conceito fundamental em toda
tica de Epicteto que o conceito de ephhmin, que pode ser traduzido como aquilo que
est em nosso poder. Sabendo diferenciar as coisas que esto em nosso poder das coisas
que no esto em nosso poder que podemos aprender a bem desejar e, assim, estar no
caminho da euroia.
O terceiro tpico da estrutura fundamental que falaremos natureza. Uma afirmao forte
no estoicismo antes de Epicteto e que ele retoma em seus discursos de que estar em
harmonia com a natureza fundamental para o bem viver. Entendendo natureza como
algo divino, vivo, racional e completamente interligada com o ser humano, esse conceito
ao mesmo tempo complexo e definidor das fronteiras daquilo que o indivduo pode ou
no pode controlar, pode e no pode desejar, pode e no pode agir. Compreender a
posio de si mesmo dentro da natureza clarear o entendimento para a prtica do bem
viver e progresso em direo euroia. aqui que inicia o processo de interiorizao do
poder humano de no ser determinado por nenhuma circunstncia externa e assim
construir e manter sua inviolabilidade interna.
No captulo trs falaremos das aes excelentes e sobre o mecanismo da ao humana,
deixando em aberto at o final do captulo se ao algo que tem que se efetivar no
mundo ou se considerada apenas uma deciso interna do indivduo. Dentre vrios
mecanismos da ao humana escolhemos trs que, em concordncia quase geral na
literatura, so os mais robustos para definir ao tanto no estoicismo quanto em Epicteto.
So eles, proairesis, assentimento e impulso. Como subcaptulos do captulo trs
trataremos de cada um em separado.
Proairesis um termo que tem sua nfase maior em Aristteles, em sua tica, e depois
passa despercebida de muita importncia at Epicteto. Ele d importncia crucial deste
termo em sua tica e nele e com ele que se efetiva a euroia. Proairesis ser considerada
por ns como o eu moral, aquele que tem continuidade de valor e referncia por no estar
merc de valores contingentes e circunstncias fora de seu poder. Escolhemos por no
13
traduzir o termo por nenhuma das verses usadas nas tradues de referncia de Epicteto,
mas nos aproximamos muito do que Brad Inwood coloca como personalidade moral.
Andando neste sentido acabamos por nos inclinar definio de ao em Epicteto como
no sendo uma ao necessria no mundo para efetivar a proairesis ou o eu moral. Ser e
desenvolver um eu moral no depende de efetivar valores e aes no mundo, mas de
manter a integridade interna independente de realizaes ou circunstncias externas. Ter
uma proairesis inviolvel acontece mesmo quando o indivduo no se efetiva no mundo,
no realiza as aes de sua vontade no mundo, mas, apesar disso, no deixa de ser. Neste
ponto Epicteto difere de Crsipo, outro estoico anterior a ele. Para Crsipo aquilo que est
em nosso poder, portanto a efetivao da proairesis, se d quando nada no mundo externo
impede que se realize. Epicteto rebate essa afirmao e d nfase nas aes internas da
vontade, por isso nos inclinamos a declarar que ao para Epicteto ao interna, no no
mundo. Para atingir a euroia, a concepo de eu moral ou proairesis fundamental. Este
conceito to fundamental em Epicteto que alguns autores declaram que dependendo do
conceito que se tiver de proairesis a viso da tica do bem viver do filsofo romano muda
completamente. E para nosso propsito, o conceito de proairesis aquele que est ligado
intimamente com a euroia, pois o eu moral que, com suas faculdades, est em progresso
em direo euroia.
Como segundo subtpico desse captulo, falaremos sobre o assentimento. O assentimento
tem a ver com o estudo do tpico da lgica estoica e ele lida com a capacidade de aceitar
a verdade e recusar a falsidade. Ele o ncleo do qual o eu moral desenvolve a habilidade
de lidar com as representaes externas. a capacidade de bem reagir s coisas que no
esto sob o poder do indivduo. o ncleo da proairesis onde o indivduo pode
estabelecer, efetivar e afirmar sua inteira liberdade. ali onde mora todo seu poder de ou
ir em direo euroia ou afastar-se dela. O assentimento um campo da lgica pois o
indivduo aceita ou recusa um julgamento de acordo com a proposio interna que
estabelece para as coisas. Ao proferir uma declarao interna tipo Isso um bem, ele
est dando autorizao para o impulso entrar em ao, portanto, a verdade ou falsidade
lgica dessa assero interna de suma importncia para a prtica do bem viver e
progresso em direo euroia.
Como ltimo subtpico deste captulo, falamos do impulso. Impulso, como diz Hadot,
aquilo que nos move em direo ao. Porm, com a ressalva nossa de que ao para
Epicteto est no mbito do prprio julgamento do indivduo e no, necessariamente, em
14
uma ao no mundo. Se o indivduo tem o impulso, que advm de sua vontade, de
caminhar, mas impedido por algo externo, isso no tira dele a inviolabilidade de seu eu
moral, pois as contingncias externas no afetam as decises de sua vontade. O que
demonstra a violabilidade da vontade e do eu moral se o indivduo, percebendo que no
conseguir efetivar a ao no mundo apesar de sua vontade de faz-lo, acaba alterando
sua vontade para conformar-se s circunstncias. Por isso, no final do captulo, acabamos
por definir nossa viso de que para Epicteto, ao no tem a ver com efetivar realizaes
ou feitos no mundo, mas um atributo interno e inviolvel apesar das circunstncias
externas.
Mas como efetivar a proairesis ou o eu moral? Somente o conhecimento e o entendimento
dos tpicos fundamentais que do a posio do indivduo no cosmos e o entendimento
dos mecanismos de aes excelentes so suficientes para um agir filosfico e um bem
viver em direo euroia? Epicteto afirma que no. No captulo quatro, trataremos ento
da disciplina e do exerccio. So prticas internas, muito delas cognitivas, mas no se
exaurem a. Neste captulo mostraremos como Epicteto usa bastante o exemplo dos atletas
olmpicos para fazer uma analogia com as dificuldades que encontramos em executar os
corretos exerccios filosficos que advm das teorias e dos tpicos de estudos. Neste
captulo entram os conceitos de progresso e de ateno a si mesmo (prosoch). Sem uma
ateno constante a seus prprios julgamentos e opinies o indivduo no consegue
manter-se em um suave fluxo de vida. Neste sentido, os exerccios dos julgamentos e das
opinies toma frente como os mais importantes que Epicteto declara a seus pupilos.
Treinar, diariamente, contra seus prprios julgamentos o verdadeiro teste para um
indivduo estar em bem viver.
No captulo cinco, chegamos ao ncleo da dissertao: o conceito de euroia e sua
importncia fundamental na tica de Epicteto. Porm, no temos como falar de euroia
sem falar de virtudes, pois Epicteto diz que o objetivo das virtudes alcanar a serenidade
ou o sereno fluxo de vida. Comeamos por definir virtude como habilidade intelectual ou
interna do indivduo. Mas ela est a servio de algo e no a eudaimonia, pois Epicteto
equivale o desenvolvimento das virtudes prpria eudaimonia. Mas estabelece que o fim
ltimo das virtudes o sereno fluxo de vida. Portanto, declaramos que as virtudes
trabalham para a euroia. Mas o que exatamente esse conceito? Como o qualificamos e
porque ele to importante para Epicteto? Faremos uma pequena anlise da construo
da palavra e do conceito em grego para conseguirmos chegar concluso de que euroia
15
significa apenas bom fluxo, mas ainda no est qualificada como sereno. Para ter essa
qualificao, euroia est associado a outros dois conceitos muito importantes na tica de
Epicteto, que so ataraxia (imperturbao da alma) e apatheia (sem paixes). Faremos
uma relao entre esses dois ltimos conceitos com euroia para chegarmos qualificao
de sereno fluxo de vida. Mas por que esse conceito to importante para Epicteto.
Pensamos que por Epicteto dar tanta nfase proairesis ou ao eu moral, ele quer defender
uma continuidade deste eu moral independente das condies ou contingncias externas
e por isso uma palavra que contenha fluxo d uma ideia de continuidade e no de
cristalizao parcial ou permanente de um eu moral. Alguns comentadores colocam a
ataraxia como objetivo ltimo da tica de Epicteto, mas discordamos por dois motivos:
1) no podemos desconsiderar a enorme rivalidade que a escola estoica tinha com a escola
epicurista e nada do que tinha de fundamental em uma poderia ter na outra. Epicteto
dedica um captulo inteiro de seus Discursos para rebater o conceito de prazer epicurista,
por exemplo. Para os epicuristas a natureza fundamental do ser humano est baseada na
ideia de prazer ou evitao da dor. Epicteto coloca que a base fundamental da natureza
humana no est no prazer mas na autopreservao. Epicteto no coloca a palavra prazer
como fundamental em seus discursos, ao invs disso, utiliza o termo alegria (contentment
e em grego ao invs de (prazer) que a palavra central no
epicurismo) em um captulo inteiro para falar da boa emoo por aquele que usa de forma
correta seus prprios julgamentos. Tamanha a disputa entre as escolas e, considerando
isso, para os epicuristas, a ataraxia o fim ltimo de seu bem viver, o que deixa pouco
espao para que Epicteto defenda a ataraxia como fim ltimo em sua tica. Ele d valor
a ela, mas no a considera como fim ltimo; 2) outro motivo que ataraxia uma palavra
que tanto denota privao quanto uma parte do todo e no o todo, em relao ao bem
viver. Estar imperturbado muito importante em situaes onde o mundo externo ameaa
de forma quase destruidora a inviolabilidade da proairesis. Neste momento, como um
recurso de emergncia, estar ciente daquilo que est em nosso poder e daquilo que no
est em nosso poder pode nos deixar em um estado de imperturbao, o que de suma
importncia nestes contextos. Mas quando o mundo no ameaa ou oprime o indivduo a
ataraxia por si mesma no suficiente, pois preciso efetivar algo positivo em si e no
apenas a atitude interna de imperturbao. E euroia d o sentido de fluxo e continuidade
independente das circunstncias externas e coloca como positivo o bom desenvolvimento
das virtudes. Serenidade uma atividade que tem como base o exerccio das virtudes.
Estar em um sereno fluxo de vida e imperturbado no so a mesma coisa, pois o primeiro
16
denota uma atividade constante da proairesis a qual engloba a ataraxia - em todas as
instncias virtuosas, e o segundo uma habilidade referente a um aspecto da virtude e
sobre uma determinada contingncias (ou determinadas contingncias, mas no na
totalidade do uso das virtudes). Por fim, neste captulo acabamos ratificando a euroia
como fim ltimo da tica de bom viver em Epicteto e a traduzimos por suave fluxo de
vida.
No captulo seis confirmamos o bem viver em Epicteto como uma prtica interna voltada
ao suave fluxo de vida. Neste sentido ela uma teraputica de si ou cuidado de si nos
termos que dizia Plato em Alcebades I. Epicteto anda na esteira de Scrates afirmando
em seus Discursos, no exatamente nestas palavras, mas no mesmo sentido, que uma vida
no examinada no pode ser bem vivida. Reiteramos que uma das bases fundamentais
para a tica do bem viver em Epicteto diferenciar as coisas que esto em nosso poder
das coisas que no esto em nosso poder e para isso preciso diferenciar, alm das coisas
boas das ms, diferenciar ambas do grupo de coisas que so indiferentes. Neste captulo
esse conceito tem destaque, pois para os estoicos as coisas podem ser avaliadas de trs
formas, sendo boas, ms ou indiferentes. E, pela concepo de bom e mau que eles tm,
o grupo das coisas indiferentes um grupo bem maior em nossa vida. Por isso temos que
estar atento para saber diferenciar os indiferentes do grupo das coisas boas e ms. Dentro
desse conceito h tambm os indiferentes preferveis, que so aquelas coisas que no so
boas nem ms, mas podem ser preferidas por estarem em harmonia com valores da
natureza, como a vida, a autopreservao, entre outros. Terminamos esse captulo
reafirmando que o bem viver em Epicteto e o progresso em direo euroia so aes da
proairesis e concernem exclusivamente ao mbito interior do indivduo.
No ltimo captulo, o sete, desenvolvemos nossas consideraes finais. Alm de reiterar
os pontos principais da dissertao para formar assim nossa concluso de que a euroia
o objetivo final da tica do bem viver de Epicteto, colocamos essa prtica em relao
contemporaneidade e quais os pontos convergentes entre ambas. O objetivo no , neste
captulo, propor uma vida filosfica estoica ou epictetiana, mas estabelecer algumas
tcnicas e teorias de teraputica de si em Epicteto que possam fazer sentido a quem entrar
em contato com o texto.
Vamos, ento, ao desenvolvimento do texto e mostrar como em Epicteto a euroia o fim
ltimo de sua tica do bem viver.
17
18
CAPTULO 1 - A TICA DO BEM VIVER EM HADOT
Pierre Hadot um dos filsofos contemporneos que traz de volta a questo da filosofia
antiga como arte de viver para recoloc-la como paradigma na contemporaneidade6.
Pensamos ser importante colocarmos Hadot como guia de nossa pesquisa, pois sua
perspectiva geral da filosofia antiga se aproxima muito daquilo que Epicteto propagava a
seus alunos, mas especificamente, a filosofia tanto como teraputica de si quanto processo
de autotransformao. Tambm coadunamos com Hadot a viso da filosofia como um
filosofar e no como teoria sobre o filosofar. Para Hadot, viver filosoficamente era
caracterizado, na antiguidade, como um modo de viver radicalmente diferenciado
daqueles que no professavam uma vida filosfica. Uma vida filosfica era uma escolha
existencial de certo modo de viver, uma experincia de certos estados internos e
disposies. A diferena de uma vida filosfica para uma vida no-filosfica se colocava,
alm das prticas, tambm no discurso7, porm no de forma suficiente. O discurso
filosfico aquele que alimenta intelectualmente o indivduo nas escolhas, julgamentos,
assentimentos8 e aes do dia-a-dia. Entre o discurso e as aes havia de ter coerncia,
pois um indivduo que vive a prtica da filosofia, mas no consegue justificar com um
discurso filosfico suas escolhas e aes, no um filsofo. Assim como aquele que tem
o discurso mas no o pratica, tambm no um filsofo9. Para os estoicos, como afirma
Hadot, o discurso filosfico se dividia em trs partes, sendo a fsica, a tica e a lgica,
porm, adverte o filsofo francs, esse discurso no era confundido com a prpria
filosofia, pois a filosofia era o ato da fsica, da tica e da lgica. Essa diviso tinha como
6 Outro contemporneo de Hadot, Michel Foucault, tambm trabalha na mesma linha, porm com uma
abordagem diferente de Hadot. Em seu livro Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga, Hadot tem um
captulo especfico sobre suas divergncias e convergncias a respeito da filosofia antiga como arte de
viver, que a sua concepo, com a concepo de filosofia de Foucault como esttica da existncia. Uma
das divergncias sobre a concepo de Foucault que Hadot enfatiza justamente a ideia de que a tica
antiga centrada no indivduo como fim ou limitao nele mesmo e no como uma forma de transcendncia
do individual em direo comunidade. Sobre essa discusso, ver Philosophy as a way of life sobre Pierre
Hadot editado por Arnold I. Davidson, publicado pela Blackwell, 1995. 7 Discurso entendido como teoria e toda gama de noes, princpios e valores de uma escola filosfica s
quais so objeto de estudo intelectual do aluno de filosofia. 8 Assentimento uma palavra tcnica da do tpico da lgica estoica que lida com a reviso racional das
primeiras representaes que o mundo externo nos imprime. H toda uma dinmica e passos que fazem
dessa ao interna algo a termos muita ateno para o exerccio constante do indivduo em direo ao seu
progresso na busca da sabedoria e do bem viver. Falaremos especificamente dela no captulo sobre as aes
excelentes. 9 Na parte 2, captulo 5 de seu livro The art of living: the Stoics on the Nature and Function of Philosophy,
John Sellars discute amplamente sobre essa relao entre discurso () e prtica ().
19
intuito uma ao pedaggica, mas com a clara determinao de servirem ao filosfica.
Esta prtica do discurso requeria exerccio constante. Para o filsofo francs
Os estoicos, por exemplo, declaram-no explicitamente: para eles, a filosofia
um exerccio. A seus olhos, a filosofia no consiste no ensino de uma teoria
abstrata, ainda menos na exegese de textos, mas numa arte de viver, numa
atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engloba toda a
existncia10.
Portanto, Pierre Hadot atualiza o conceito de filosofia como prtica, como atitude, como
modo de viver. Embora a filosofia antiga trabalhe com um vis forte em cima do
conhecimento conhece-te a ti mesmo Hadot afirma que a filosofia antiga se situa
tambm na ordem do eu e do ser e por isso engloba toda a existncia e todas as
caractersticas desse ser, no somente o conhecimento, mas tambm a imaginao e a
sensibilidade. Este outro ponto de convergncia entre Hadot e nossa pesquisa. E o
objetivo dessa prtica tornar o indivduo melhor, no mbito de ter uma melhor viso de
si, uma viso mais exata do mundo (e da natureza, como veremos com Epicteto), ter mais
liberdade interior e serenidade. Esse era o objetivo das escolas filosficas da antiguidade,
afirma Hadot. Para ele, escola filosfica [...] no sentido mais concreto da palavra, na
qual um mestre forma discpulos e se esfora para conduzi-los transformao e
realizao de si11 era o objetivo tanto da escola de Plato, de Aristteles, de Epicuro, da
escola Cnica, da Ctica e da Estoica. Formar almas e no informar a tnica de Hadot
para as escolas antigas. Sobretudo a obra, mesmo aparentemente terica e sistemtica,
escrita no tanto para informar o leitor acerca de um contedo doutrinal mas para form-
lo12.
Reiterando essa parte prtica da filosofia, diz Epicteto
10 HADOT, Pierre. Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flvio Fontenelle Loque e Loraine
Oliveira, So Paulo: Realizaes, 2014, p. 22. 11 HADOT, Pierre. Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga, p.60. 12 HADOT, Pierre. Elogio da Filosofia Antiga. Trad. Flvio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira, So
Paulo: Loyola, 2012, p. 32.
20
O construtor no vem e diz, Oua-me falar um discurso sobre a arte de
construir; mas ele faz um contrato para construir uma casa, a constri, e ento
prova que possui a arte. Faa algo da mesma maneira voc mesmo13.
Portanto, o objetivo das escolas filosficas era uma sabedoria prtica14. Sneca escreve,
As coisas tendem, de fato, a estarem erradas; parte da culpa repousa sobre os
professores de filosofia, que nos ensinam hoje como argumentar ao invs de
como viver; parte sobre seus estudantes, que vo procura dos professores em
primeiro lugar em vista de desenvolver no seus carteres, mas seus intelectos.
O resultado tem sido a transformao da filosofia, o estudo da sabedoria, em
filologia, o estudo das palavras15.
Nos Discursos, Epicteto enfatiza essa concepo de filosofia como sabedoria prtica
tambm nesta passagem,
Deixe um pensamento perturbador vir at ns e voc descobrir o que tem
praticado e para o que estivemos treinando! Como resultado, por causa de
nossa falta de prtica, acabamos saindo de nosso caminho para acumular
terrores e faz-los maiores do que realmente so16.
So para essas situaes dirias da vida que a tica do bem viver est direcionada. No
para acmulo de informaes ou ensinamentos intelectuais. Como diz Duhot,
A filosofia no uma massa de informaes que se acumula, que se organiza
intelectualmente, ela tem de ser digerida e no amontoada. No se trata de fazer
13 OLDFATHER, W. A. Epictetus the discourses as reported by Arrian, the manual and fragments, Livro
III, Captulo XXI, 4-5. A partir de agora em abreviatura. 14 Como guia dessa busca da perfeio interna, h na tica de Epicteto, assim como em todas as outras
escolas filosficas da antiguidade, uma representao racional do estado de perfeio que se chama sbio
(sophos), e, segundo essa norma, viver cotidianamente, de forma ordinria e no refletida, estar fora do
caminho do sbio, do bem viver filosoficamente e do progresso para o bom e excelente homem (kalos kai
agathos). 15 SENECA. Letters from a Stoic epistulae morales as Lucilium. Trad. Robin Alexander Campbell, New
York: Penguin Books, 1969, letter CVIII, p. 58. Sneca considerado um estoico da ltima fase e, por isso,
contemporneo de Epicteto e Marco Aurlio. Foi senador de Roma, filho da Marcus Annaeus Seneca, que
foi procurado imperial. 16 OLDFATHER, W. A. Epictetus the discourses as reported by Arrian, the manual and fragments. Vol.
I Discourses Books I and II, London: Harvard University Press, 1956, Livro II, Captulo VI.20-21. A partir
de agora em abreviatura.
21
filosofia, mas de ser filsofo. No seria um absurdo meditar sobre o bem e o
mal se tal meditao no servisse para a realizao do bem? A filosofia no
est, portanto, nos livros, eles so apenas um meio. A erudio pura no tem
sentido17.
Mas por que procurar o discurso filosfico? Hadot afirma que nossas concepes comuns
e cotidianas de valor, vida e objetivo da mesma esto fora de sintonia com a sabedoria
prtica filosfica. H um descompasso entre valores filosficos e valores sociais comuns.
Neste sentido, dado como um fato por Epicteto que as prticas cotidianas comuns no
estavam em sintonia com os ensinamentos da filosofia e que esta procurava estar em
harmonia com o todo da natureza, portanto, os indivduos que aderiam a essas prticas (e
teorias) no filosficas estavam fadados a perturbaes e infelicidades por no realizarem
exerccios que o colocavam em harmonia ou sintonia com a natureza, justo o contrrio,
tinham prticas que o afastavam disso18. Portanto, os ensinamentos filosficos e a vida
filosfica tinham essa qualidade de estarem contra o fluxo daquilo que era senso-comum
para a poca19. O bem e o mal, aquilo que depende de ns e aquilo que no depende de
ns, os sentimentos e as representaes que tradicionalmente o senso-comum
valorizavam estavam na contramo do bem viver, pelo menos do bem viver filosfico.
Haver assim um perptuo conflito entre a tentativa do filsofo de ver as coisas
tais quais elas so do ponto de vista da natureza universal e a viso
convencional das coisas sobre a qual repousa a sociedade humana, um conflito
entre a vida que seria preciso viver e os costumes e convenes da vida
cotidiana.20
17 DUHOT, Jean-Jol. Epicteto e a sabedoria estoica. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola,
2006, p. 40. 18 Natureza um conceito importante em quase todas as escolas filosficas antigas e tem vrios sentidos e
significados, alguns mais imanentes outros mais transcendentes, alguns mais voltados natureza humana
outros mais voltadas natureza csmica ou universal. Mas todas as escolas filosficas que proclamavam
esse conceito tinham como objetivo fazer com o que o homem vivesse em harmonia com ela, pois a natureza
era um padro de organizao, racionalidade e tica. 19 Para A. A. Long, paradoxo tem conexo com doxa (), opinio. Diz Long, Mas um paradoxo
literalmente um pensamento que incongruente com as crenas vulgares [do senso comum]. [...] A
Repblica de Plato um gigante paradoxo no sentido grego que expliquei. Isso acontecia, continua Long,
porque para os filsofos as razes das crenas no poderiam estar baseadas somente nos costumes ou nas
convenes sociais, o que, para o indivduo vulgar (do senso comum) era suficiente. Por isso que os
discursos e, consequentemente as aes, dos filsofos acabavam por criar uma diviso entre a vida do senso
comum e a dos filsofos. 20 HADOT, Pierre. Elogio da filosofia antiga, p. 23
22
Esse conflito se dava entre aqueles que viviam sem filosofia e tambm queles que
professavam alguns princpios filosficos, mas apenas no discurso. Isso ainda perdura
hoje, segundo Hadot,
De fato, todos os filsofos, inclusive aqueles que orientam [hoje] seu discurso
em funo da vida filosfica, correm o risco de imaginar, por ter dito uma coisa
e a terem dito bem, que tudo est resolvido. No entanto, resta tudo por fazer21.
Em passagem nos Discursos, Epicteto, colocando uma prioridade entre os tpicos de
estudos estoicos fsica, tica e lgica diz
Mas os filsofos de hoje ignoram o primeiro e o segundo campos de estudo [a
fsica e a tica], e se concentram sobre o terceiro [lgica], o qual deriva
silogismos pelo processo de interrogao, o qual envolve premissas hipotticas
e sofismas como O Mentiroso22.
Para Epicteto, no que a lgica no fosse importante, mas havia uma progresso entre os
tpicos, tanto que ele diz, um pouco antes da citao acima, que o terceiro campo de
estudo pertence queles que j esto fazendo progresso, i.., que j esto de posse do
conhecimento e dos exerccios dos dois primeiros tpicos de estudo. Ou, como diz Hadot
acima, h muito ainda por fazer.
Portanto, a filosofia tem como objetivo educar o homem nas questes do bem, do mal, da
liberdade, dos julgamentos, da natureza. Neste sentido, a filosofia uma paideia23, uma
tica voltada a si mesmo com o intuito de escolher e agir de modo correto para consigo
mesmo comeando por aquilo que est verdadeiramente sob seu poder, i.., seus
21 HADOT, Pierre. La filosofa como forma de vida conversaciones com Jeannie Carlier y Arnold I. Davidson. Trad. Mara Cucurella Miquel, Barcelona: Alpha Decay, 2009, p. 175. 22 D III.II.6-7. O sofisma do mentiroso: se um homem diz que est mentindo, ele est realmente mentindo
ou dizendo a verdade? Se est mentindo, est dizendo a verdade; se est dizendo a verdade, est mentindo. 23 Paideia () em grego tem vrias acepes como educao, exerccio educacional, formao, conhecimento, ensino. Hadot trata de paideia como o desejo grego de formar e educar. Em Epicteto h uma
forte tendncia em seus discursos de uma paideia neste sentido de formao, autoeducao de seus pupilos,
inclusive em seus exemplos. A palavra chave para este tipo de educao na filosofia antiga aret ()
que tambm, sobre vrias acepes, pode ser considerada como excelncia, virtude, nobreza. Sobre esse
tema ver Werner Jaeger, Paideia: a formao do homem grego, traduo de Artur M. Pereira, editora
Martins Fontes.
23
pensamentos e seus processos de julgamento e assentimento das representaes externas.
Essa nfase d sustentao para a filosofia como teraputica de si ou autotransformao.
Porm ela s possvel dentro daquilo que est no mbito de nosso poder ou controle.
Scrates j ensinava isso conforme se l na Apologia quando fala do medo da morte24.
Podia somente colocar valor naquilo que estava em seu poder e, neste caso, a inteno e
a ao moral, pois elas dependiam inteiramente de sua escolha e de sua firmeza. Neste
sentido, diz Hadot
Aqui novamente, conhecimento no uma srie de proposies ou uma teoria
abstrata, mas a certeza da escolha, deciso e iniciativa. Conhecimento no
apenas saber claramente [sobre conceitos], mas saber-o-que-deve-ser-
preferido, e assim saber como viver25.
O intelectualismo socrtico26 muito combatido por tentar simplificar em demasia a
questo da virtude e do bem viver. E ele se estende a Epicteto, porm, John Sellars diz
At onde ns vimos, Scrates no identifica epistme [conhecimento]com
logos [discurso]e no pensa que esses princpios sero o suficiente neles
mesmos para transformar o comportamento de um indivduo. Ao contrrio, ele
identifica epistme com techn [arte, habilidade]argumentando que isso que
impacta sobre o comportamento de um indivduo, e no meramente a
possesso dos logoi [discursos] subjacentes quela techn27
Essa a viso tambm em Epicteto, pois ele afirma que o conhecimento no suficiente
para viver filosoficamente.
24 Ningum sabe o que seja a morte, e, ignorando at mesmo se porventura no ser para os homens o maior dos bens, temem-na como se soubessem com certeza que o pior dos males. (....) Neste particular,
senhores, possvel que eu seja diferente da maioria dos homens, e se tivesse de considerar-me excepcional
em alguma coisa, seria justamente nisto: como no conheo suficientemente o que se passa no Hades,
tambm no tenho a iluso de conhecer. Apologia de Scrates, XVII, 29a b, no livro Dilogos, trad.
Carlos Alberto Nunes, edies Melhoramentos, 1970. 25 HADOT, Pierre. What is ancient philosophy?, p. 33. 26 O intelectualismo socrtico sobrevive em Epicteto no sentido de que o princpio afirma que cada ao
determinada pelas opinies ou julgamentos ou crenas que o indivduo estabelece. Ele tambm se estende
de forma mais radical em Epicteto no sentido de que toda emoo fruto de julgamentos ou opinies e,
portanto, ao alterar o primeiro, altera-se e corrige-se o segundo. 27 SELLARS, J. The art of living The Stoics on the Nature and Function of Philosophy. 2 ed. London:
Bloomsbury, 2009, p. 52.
24
Quem, ento, est fazendo progresso? O homem que l muitos tratados de
Crsipo? O que, a virtude no mais do que isso? ter ganho conhecimento
de Crsipo? [...] Mas agora, enquanto reconhecemos que a virtude produz uma
coisa, ns estamos declarando a aproximao virtude, a qual progresso,
produz alguma coisa mais28.
Desenvolver as virtudes realizar o a teraputica de si. Realizar isso inverter,
consciente e racionalmente, os valores recebidos pela sociedade como riquezas,
honrarias, prazeres, em valores filosficos como contemplao, felicidade, virtude,
serenidade. a partir desses princpios que a filosofia antiga, segundo Hadot, revela um
grande poder teraputico para o prprio indivduo. E baseado nisso que Hadot afirma a
filosofia antiga como tica do bem viver. E neste caminho re-aberto por Hadot que
vamos andar com Epicteto e seus ensinamentos de uma tica do bem viver. Para o
estoico, filosofar ento exercitar-se a viver, isto , viver consciente e livremente29.
28 D I.IV.6-7. 29 HADOT, Pierre. Exerccios Espirituais e Filosofia Antiga, p. 31.
25
26
CAPTULO 2 - TICA EM EPICTETO
A tica em Epicteto fornece, para aqueles que querem viver uma vida filosfica, as
ferramentas conceituais e prticas para estar em bem viver e atingir serenidade e evitar
seus opostos. Como coloca Keith Seddon no incio de seu livro Epictetus Handbook and
the Tablet of Cebes, a tica dos estoicos tentava responder a essa pergunta: A vida
cheia de infortnios e desapontamentos, ento como podemos ser felizes e florescer?30
A tica do bem viver deve responder a essa pergunta, e dar ao indivduo uma nova
perspectiva de pensamento e ao. Mas do que trata a tica segundo os estoicos? Podemos
inicialmente delimitar este campo no estoicismo como est em Diogenes Laertius
Os estoicos dividem a parte tica da filosofia em doutrinas do impulso, do bem
e do mal, das paixes, da excelncia, do fim supremo, do valor mais alto, dos
deveres, e da exortao e dissuaso em face da ao31.
E o que Epicteto diz sobre a tica estoica? [...] o segundo campo de estudo [tica]
aquele o qual tem a ver com nossas escolhas e com a discusso do que nosso dever em
considerao a elas32. De fato, a tica lida com as aes, mas no somente com as aes
externas efetuadas pelo indivduo, mas com as escolhas e o assentimento ou a recusa
racional logo anterior s essas aes. Essa a tnica em Epicteto. Prprio da tica, ento,
realizar aes que venham atravs de um correto julgamento33. Neste sentido, a tica
estoica centrada fundamentalmente no agente e ele pode fazer progresso moral
exercitando sua capacidade para uma escolha racional de uma maneira que o leve
euroia. Portanto, ele tem responsabilidade exclusiva por seu prprio bem ou mal. O bem
do homem e o mal do homem residem na escolha moral [], e todas as outras
coisas so nada para ns34. Dentro do campo da tica estoica, e de Epicteto, alguns
entendimentos tericos so necessrios para dirigir com mais eficincia as aes do
30 SEDDON, Keith. Epictetus Handbook and the Tablet of Cebes: guides to stoic living, Abingdon:
Routledge, 2005, p. 2. 31 DIOGENES LAERTIUS. Diogenes Laertius: Live of Eminent Philosophers, Trad. R. D. Hicks, Vol. II,
Cambridge: Harvard University Press, 1925, L VII, 84. A partir de agora em abreviatura. 32 D II.XVII.15. 33 Seria o que se chama de teoria da ao em Epicteto. Porm, discute-se se a teoria da ao que ele prope
deva ser efetivada em aes exteriores ou no. Estou inclinado a pensar que o campo de ao que Epicteto
prope a ao interna, no necessariamente tendo que ser efetivada no mundo exterior. Falaremos mais
sobre isso no decurso deste trabalho. 34 D I.XXV.1.
27
indivduo. Por isso, antes de passarmos teoria da ao em Epicteto, aquela que leva em
direo euroia, vamos analisar os tpicos fundamentais que do apoio a ela. Esses trs
tpicos so uma perspectiva nossa a respeito dos limites tericos da ao tica do
indivduo, mas sabemos que ao fazer isso, desmembrar alguns tpicos e no outros,
estamos enfraquecendo a teoria tica como um todo, pois a filosofia tica de Epicteto e
do estoicismo uma filosofia orgnica, onde todas as partes esto interligadas. Ao separ-
las conseguimos um pouco mais de detalhamento e anlise aprofundada, mas perdemos
um pouco (s vezes muito) da abrangncia do todo. Mas, dentro do recorte necessrio que
um trabalho de pesquisa envolve, pensamos que ainda assim podemos ter, mesmo que
parcial, uma ntida ideia do significado e da prtica da tica do bem viver de Epicteto.
2.1 TPICOS FUNDAMENTAIS: RAZO, FSICA E NATUREZA
Para podermos aprofundar a questo do bem viver e o objetivo dela, a euroia em Epicteto,
faz-se necessrio definir os tpicos fundamentais de sua filosofia que daro apoio sua
teoria da ao, a qual chamamos, no prximo captulo de aes excelentes. Sendo elas a
razo, a fsica e a natureza, esses tpicos do forma e sustentabilidade a todo discurso e
prtica da tica de Epicteto e por isso importante averiguarmos um pouco mais de perto
cada uma delas, onde se fundamentam e quais limites colocam para desenvolver uma
tica do bem viver.
2.2.1 RAZO
Nos Discursos Epicteto usa majoritariamente o termo logos para se referir a razo. O ser
humano possui um logos, o usa para averiguar seus julgamentos e as representaes
externas que chegam at ele. Porm, vamos considerar razo aqui como faculdade da
razo ou faculdade do raciocnio (reasoning faculty) que nos Discursos est como
dynamis logik ( ). Podemos argumentar nossa escolha pelo fato de que
o termo faculdade combina mais com o termo habilidade, que , como veremos mais
adiante, so consideradas as virtudes para Epicteto. Desenvolver a faculdade
desenvolver uma habilidade e estar no desenvolvimento e progresso das virtudes,
28
portanto no caminho da euroia. Outro argumento que em dois captulos fundamentais
da importncia e do uso da razo, o I e o XX do livro I, Oldfather traduz o termo logos
por reasonig faculty, sendo que em um desses captulos, o primeiro do livro I, est, em
grego, dynamis logik. Essa escolha de traduo se deve ao fato de que nestes captulos
Epicteto est reiterando a poderosa habilidade que a razo tem de perceber e contemplar
a si mesma e esta uma habilidade fundamental da razo qual fundamental tambm
para sua prtica do bem viver35.
Podemos considerar a razo como fundamento primeiro da tica e de toda doutrina
estoica. Alis, no ser toa que os Discursos comeam no Livro I Das coisas que esto
em nosso poder e das que no esto em nosso poder - j com a definio da faculdade da
razo. Ele comea assim
Dentre as artes e faculdades (dynamen) em geral voc no achar nenhuma
que autocontemplativa, e, portanto, nenhuma que seja autoaprovvel ou
autorreprovvel36.
Nem a gramtica, nem a arte da msica so autocontemplativas mas lidam apenas com
coisas externas a elas. Qual arte ou faculdade ento leva em considerao a
autocontemplao? A faculdade da razo (dynamis logik); pois esta a nica que temos
herdado a qual nos leva ao conhecimento tanto de si mesma [...] quanto de todas as outras
faculdades37.
A natureza da razo a faz ser autocontemplativa e ela no consegue ficar sem ser analisada
a si mesma, pois no h nada superior a ela que possa analis-la. At porque isso levaria
a uma reduo ao infinito. A razo, ento, pode ser analisada somente por ela mesma e
essa sua caracterstica mais importante pois ela permite a autorreflexo.
35 Psich () uma palavra que aparece nas Diatribes de Epicteto com forte cunho intelectual e racional
tambm, mas parece que ela tem outros atributos que no apenas os intelectuais e racionais. Porm tanto
em D III.III.2 quanto em D IV.XI.5 ele equipara psich a logos de forma inequvoca. O que deixa em aberto
a diferenciao mais precisa entre ambos. Mas para ns, neste trabalho, no ter maiores problemas, pois
definimos a traduo de razo por dynamis logik. 36 D I.I.1-2. 37 D I.I.4. Faculdade da razo est como .
29
Mas qual o propsito da razo? Diz Epicteto, [...] para o bom uso das representaes
(phantasiai) externas38. A razo a faculdade que os deuses (Zeus, natureza) colocaram
sobre nosso total poder e a mais excelente faculdade de todas, pois domina todas as outras.
Se ento dominarmos o uso dela, dominaremos a ns mesmos.
[Zeus falando com Epicteto] [...] o corpo no teu, mas apenas barro
habilmente composto. No entanto, j que no pude te dar isso, demos a ti uma
certa poro de ns mesmos, esta faculdade de escolha e recusa, de desejo e
averso, ou, em uma palavra, a faculdade [] a qual faz uso das
representaes externas. Se tu cuidas disto e coloca tudo o que tens nisto, tu
nunca ficars frustrado, nunca impedido, no lamentars, no culpars, no
bajulars homem algum39.
O maior bem do ser humano a razo, porm, diz Epicteto, a mais negligenciada
faculdade humana. Lidamos com ela de modo simplista e acabamos por dedicar mais
cuidado com coisas externas a ns, como a aparncia e as riquezas. Temos em ns uma
faculdade suprema e a descuidamos. nossa profisso40, como diz Epicteto, como seres
humanos, transcender ao nvel do bruto ou do animal no racional, e realizamos isso
quando agimos conforme nossa natureza racional.
Como convinha, portanto, os deuses colocaram sobre nosso controle apenas a
mais excelente faculdade de todas e a qual domina o resto, a saber, o poder de
38 D I.XX.16. A literatura quase em sua totalidade traduz phantasia () por impresso
(impression). Impresso aquilo que nos aparece, por exemplo uma nuvem negra de tempestade, ou,
como coloca Tad Brennan no seu artigo Stoic moral Psychology em The Cambridge Companion to Stoics,
[Para os estoicos] uma impresso uma alterao da alma, comumente embora no necessariamente
levada a cabo por um objeto sensvel no ambiente do agente, a qual apresenta ela mesma como fornecendo
informao sobre como as coisas so, p. 260. Traduzir por representao, por outro lado, indica mais
claramente, como diz Ted Brennan acima, um conceito mental, i.., que h alguma alterao nela, o que
no acontece com a palavra impresso, que pode ser referida, para o portugus, mais como algo onde h
um toque externo, como uma marca deixada em uma cera, sem uma ntida alterao em quem a percebe.
Portanto, vou adotar, a partir de agora, o termo representao para me referir traduo de phantasia. 39 D I.I.12. 40 Profisso em Epicteto com o sentido de funo ou aquilo que se espera naquela funo particular ou
papel existencial. Ver em Diatribes Livro I, captulo 2 Como pode um homem preservar seu carter prprio
sobre todas as ocasies, aqui carter e profisso se confundem mas no se excluem. Ver tambm Diatribes
Livro II, captulo 9 Que embora no sejamos capazes de cumprir a profisso de um homem ns adotamos
aquele de um filsofo, onde ele discorre mais sobre o papel a cumprir e aquilo que esperado em cada um.
Em outras partes dos Livros I e II ele tambm fala da profisso de filho, pai, irmo entre outros papeis e
quais so as aes esperadas e devidas em cada um.
30
fazer o correto uso das representaes externas, mas todas as outras eles no
colocaram sobre nosso controle41.
Para manter o homem no bem viver objetivando a euroia necessrio que a razo tenha
um papel preponderante no correto uso das representaes externas qual efetivada
pela autorrelfexo.
O homem naturalmente tem sua funo (profession) qua homem, ento uma de suas
tarefas desempenhar bem esse papel, cumprir sua funo de homem que se destaca das
bestas selvagens pelo uso da razo, i.., completar sua jornada na determinao natural
que lhe foi dada. Olhe para isso, ento, que voc nunca aja como uma besta selvagem;
se voc o fizer, voc destruiu o homem em voc, voc no cumpriu seu ofcio42. Por isso
temos que preservar a razo em todas nossas escolhas, julgamentos e aes.
A razo a parte fundamental naquilo que central filosofia tica do bem viver em
Epicteto, a proairesis43. Diz A. A. Long
A anlise racionalista das emoes e das avaliaes implica que elas prprias,
e os julgamentos sobre os quais eles dependem, esto completamente em nosso
poder, depende de ns, dentro do controle de nossa vontade44.
Isso quer dizer que nossas emoes no dependem do exterior, dependem, isso sim, de
nossa capacidade de assentir racionalmente s representaes. Para Sorabji, esse o maior
legado que o estoicismo, tanto na figura de Crsipo quanto de Epicteto, deixa para ns.
Diz Sorabji,
Na viso de Crsipo, todas as emoes consistem de dois julgamentos. H o
julgamento que existe do bom e mau (benefcio ou prejuzo) por um lado, e o
julgamento que apropriado reagir. [...] Mas as emoes em si mesmas
consistem em julgamentos. importante salientar que julgamentos no so,
como aquilo que aparece [phantasiai], involuntrios. Se aparece para voc que
voc est em uma m situao, voc no pode ajudar naquilo que aparece. Mas
41 D I.I.7. 42 D II.IX.3. Traduzi aqui profession por ofcio ao invs de profisso pois me parece mais apropriado
com o intuito de cumprir com um papel determinado que se efetiva em aes ou escolhas. 43 Discutiremos a proairesis mais adiante em um captulo especfico sobre esse tema, apenas vale dizer que
ela identificada com o eu moral. 44 LONG, A. A. A stoic and Socratic guide to life, New York: Oxford University Press, 2007, p. 28.
31
pode ajudar dando o assentimento de sua razo quilo que aparece. Muitas
pessoas assentem automaticamente quilo que aparece [phantasia], mas o
Estoicismo ensina voc como pode conter o assentimento enquanto questiona
aquilo que aparece. [...] Aquilo que aparece no vira um julgamento at que
voc d o assentimento para isso, e isto , para Crsipo, julgamento o qual
constitui as emoes. Se ele est certo, h uma expectativa de mudar as
emoes, e fazer isso por meios racionais, precisamente porque elas no so
involuntrias45.
Esse tipo de abordagem cognitiva das emoes tem a vantagem de possibilitar ao prprio
indivduo exerccios teraputicos os quais, Epicteto tanto mostra em suas Diatribes46,
servem para avaliar se aquilo o qual deu assentimento ou um verdadeiro benefcio ou
prejuzo ou se a reao foi apropriada quilo que apareceu. E est a nossa maior e total
liberdade: nossa liberdade de assentir sem o constrangimento externo47. Isso quer dizer
que podemos fazer uso dessa deciso racional tanto corretamente quanto no
corretamente e por isso que precisamos treino (asksis). Portanto, tudo o que interessa
ao bem viver humano est dentro do escopo de nossa proairesis e s atravs dela podemos
chegar euroia. E no podemos fazer isso sem o uso vigilante da razo, pois ela faz parte
intrnseca de nossa natureza humana e afastar-se dela afastar-se de ns mesmos. Usar
de modo incorreto a razo ou tentar abandon-la para apenas reagir de forma impulsiva
aos eventos externos uma frmula exata para nos conectarmos ao desapontamento,
ansiedade e infelicidade. Agir assim, contra a razo, agir irracionalmente48. A razo,
ento, parte imprescindvel da proairesis, pois permite a autorreflexo e comanda as
outras faculdades, por isso chamada muitas vezes de faculdade governante ou princpio
governante49.
45 SORABJI, Richard. Emotion and Peace of Mind from Stoic agitation to Christian Temptation the
Gifford Lectures. New York: Oxford University Press, 2000, p. 2-3. 46 Diatribes () quer dizer discursos. 47 Se a teoria da ao de Epicteto interna ou externa, i.., necessita de ao no mundo ou no, uma
discusso em aberto. Mas ns, no decorrer dessa dissertao, nos inclinaremos para uma teoria da ao
interna, ou seja, a liberdade que ele assegura no da ao positiva no mundo, mas da liberdade de assentir
ou recusar uma representao externa. Mais sobre isso trataremos no captulo seguinte. 48 No h em Epicteto uma parte irracional da alma, pois a alma para Epicteto, como para os estoicos,
una, ou seja, no tem partes. Agir irracionalmente , ento, usar mal a razo, e no ser dominado por outra
fora que no seja a prpria razo. O que deixa uma porta aberta para o aprendizado de como usar bem a
razo pois todos temos essa capacidade. 49 Como princpio ou faculdade governante () cf., por exemplo, em I.XV.4; I.XX.11; II.I.39;
II.XXVI.7.
32
2.2.2 FSICA
Os trs campos de estudos da filosofia estoica, fsica, a tica e a lgica, tm uma relao
orgnica na prtica da filosofia. Esta organicidade entre esses tpicos lembrada tambm
por Diogenes Laertius quando diz
Os estoicos comparam a filosofia a um ser vivo, onde os ossos e os nervos
correspondem lgica, as partes carnosas tica e a alma fsica. Ou ento
comparam-na a um ovo: a casca a lgica, a parte seguinte (a clara) tica, e a
parte central (a gema) fsica50.
Para elucidar mais a parte tica deste trabalho faz-se necessrio aprofundar um pouco a
parte da fsica que, como visto na citao acima, tem parte fundamental nas duas
comparaes feitas com a filosofia. Importante lembrar que essa metodologia analtica
dos conceitos que estamos usando aqui prejudicial em vista da organicidade da filosofia
estoica, portanto ao tentar abstrair somente uma parte dela pode-se cometer erros lgicos
ou de interpretao, deixando lacunas ou faltando alguma explicao mais aprofundada
que requereria outro campo de estudo ou no entendimento de um contexto mais
abrangente. No entanto, vou me ater s especificaes da fsica e seus elementos
simplesmente no tocante tica.
Diz Epicteto, O primeiro [tpico, a fsica] tem a ver com os desejos e averses, que ele
possa nunca falhar em conseguir o que deseja, nem cair naquilo que ele evita51. Por isso,
continua ele mais adiante nos Discursos, dizendo quem o homem que est em prtica
neste tpico,
Ele o homem que pratica no empregar seu desejo, e exercita empregar sua
averso apenas sobre as coisas que se encontram dentro da esfera de sua
proairesis, sim, e exercita-se particularmente nas coisas que so difceis de
dominar52.
50 DL VII.40. 51 D III.II.1-2. 52 D III.XII.8.
33
As coisas que se encontram dentro da esfera da proairesis so aquelas que esto dentro
do seu poder, i.., ephhmin53.
As consequncias de uma m ao do indivduo neste campo so confuses, tumultos,
infortnios e calamidades assim como as paixes (patheiai) da tristeza, lamentao,
inveja, cime. Para Epicteto toda paixo ruim, pois so resultados de desejos
desordenados, medos exagerados, i.., de um mau uso da razo. Essas paixes, alm de o
tirar da serenidade, impossibilitam o indivduo de estar alinhado com a razo. Um
indivduo tomado por paixes acaba por ser arrastado para o lado oposto do bem viver.
Diz A. A. Long, Na poca de Epicteto (e de fato, bem antes dele) filosofia em geral era
considerada como um remdio para aliviar os erros e as paixes que resultam de atitudes
reativas e convencionais54. Mas importante deixar claro que Epicteto no contra as
emoes ou sentimentos, justo o contrrio, aquele que est em progresso euroia busca
ter bons sentimentos ou boas emoes (eupatheiai), i.., emoes ou sentimentos
racionais, que sejam resultado de um correto uso das representaes e da proairesis55.
Para entender a tica de Epicteto preciso considerar este princpio fundamental da fsica
que lida com os desejos e averses. O que o desejo promete? No falhar em alcanar o
que se deseja. E o que a averso promete? No cair naquilo em que se queira evitar. Mas
para desejar algo necessrio antes limpar a representao que se tem das coisas e
consider-las como realmente so, sem os julgamentos de valores humanos j associados
a elas. um exerccio de desantropologizao56. Uma vez alcanada essa viso objetiva
das coisas, que se pode desejar.
53 ephhmin () um termo fundamental na tica de Epicteto. Algumas tradues para ele so o
que est sob nosso controle, aquilo que est sob nosso poder, aquilo que encargo nosso, aquilo que
est sobre ns (no sentido de responsabilidade). De qualquer forma o sentido para aquilo que somente
ns podemos agir, controlar e garantir o resultado. Vou adotar aqui a traduo aquilo que est sob nosso
poder pois contrasta, em minha opinio, melhor com aquilo que externo a ns e do qual no temos
poder de escolher, alterar ou decidir, s quais se refere Epicteto nas Diatribes como k ephhmin (
). 54 LONG, A. A. A stoic and Socratic guide to life. New York: Oxford University Press, p. 18. 55 As boas emoes acabam por levar ao prazer, mas no se atinge as boas emoes pela ligao, primeiro,
com os prazeres, ainda mais se forem prazeres exteriores, sejam materiais ou corporais. As boas emoes
esto ligadas intimamente concepo de bem e este em ligao profunda com nosso eu, pois s na
autorreflexo podemos chagar fonte do bem, que est conectada ligao entre nossa natureza humana
racional e a natureza csmica. Boas emoes so manifestaes de conquistas profundas que tm a razo
como guia, enquanto prazeres so conquistas mais superficiais e que tem a falta do bom ou correto uso da
razo como parmetro. 56 Pierre Hadot chama de exerccio de eliminao do antropomorfismo. No livro Exerccios espirituais e
filosofia antiga, entende-se antropomorfismo em Epicteto, e na teoria estoica, como o humano demasiado
humano que o homem acrescenta s coisas quando ele as representa para si., p. 141.
34
O exerccio consiste, portanto, em primeiro lugar, em definir o objeto ou
acontecimento em si mesmo, tal qual , separando-o das representaes
convencionas que os homens habitualmente fazem dele57.
Esse um esforo interno do desejo58 no sentido contrrio ao impulso irracional, sendo
impulso irracional o resultado de desejar mal, desejar aquelas coisas que no esto sob
nosso poder e, por isso, no deveriam ser permitidas desejar. Ao conseguir realizar esse
exerccio, o indivduo supera a subjetividade e atinge a objetividade fenomenolgica59. A
falta de treino do desejo uma das causas das vidas perturbadas, aflitas e infelizes. Se
no se tem controle sobre a vontade, -se escravo daquelas coisas que se busca
irracionalmente, pois no so coisas que esto dentro do mbito do desejo ou averso
porque no esto no mbito das coisas que esto sob nosso poder. O prprio indivduo
o nico que pode escravizar a ele mesmo quando no tem a prtica do desejo. Essa prtica
est ligada diretamente faculdade da razo, por isso abrir mo da fsica abrir mo da
razo e, consequentemente, ser arrastado por representaes que nos levaro s
perturbaes.
Diz A. A. Long sobre a fsica em Epicteto
Este campo de diligncia nos diz a verdadeira identidade dos seres humanos
enquanto tal, nos diferencia dos animais no-racionais e alinha nossas
faculdades humanas e potencialidades com o divino autor de nosso ser60.
Restringir nosso desejo e averso ao que est em nosso poder estar alinhado, como diz
Long na citao acima, tambm com o divino autor (Zeus). Em funo disso, o objetivo
desse primeiro tpico de estudo fazer com que o indivduo consiga sentir-se liberto das
falsas concepes de bom e mau, que so as concepes que estimulam o desejo e a
57 HADOT, Pierre. Exerccios espirituais e filosofia antiga. p, 137. 58 H o desejo sobre coisas internas, aquele que est sob o poder do indivduo, e o desejo sobre coisas
externas, aquele que est vinculado s coisas que o indivduo no tem poder, dentre estes, o desejo que vem
do corpo, pois ele considerado um externo para Epicteto. Treinar o desejo alinh-lo quelas coisas que
so permitidas desejar porque esto em seu poder e no cair em desejos pelas coisas externas. Por isso,
nesta frase desejo est em contraposio ao impulso irracional. 59 Ao realizar esse exerccio, o indivduo alcana a representao adequada (phantasia kalptik) em
contraposio representao da primeira impresso, i.., sem uma devida anlise racional. 60 LONG, A. A. A stoic and Socratic guide to life, p. 231.
35
averso, e, consequentemente, impedir que caia em frustraes e perturbaes, e assim
estar alinhado natureza divina. Emoes so resultados de desejos, ento ter boas
emoes resultado de uma avaliao racional daquilo que se deseja. Ao falhar nos
desejos e averses, ao invs de cair nas boas emoes (eupatheiai) acaba-se por cair nas
paixes (patheiai).
Mas como saber o que desejar e o que ter averso? Temos que compreender a natureza
do cosmos e a nossa e, ao mesmo tempo que os diferenciar, entender como se relacionam,
pois no h efetivamente uma linha divisria entre natureza csmica e humana.
Especificamente sobre o conceito de natureza trataremos no prximo tpico, mas vale
dizer que ao entendermos que h coisas s quais no so afetadas por nossa natureza
humana, que pertencem natureza csmica, e outras que so do poder de nossa natureza
humana, poderemos diferenciar o que e como bem desejar. Ao nos localizarmos dentro
do universo (cosmos) e da natureza humana, o primeiro tpico no nos diz como
desenvolver nossas potencialidades individuais e sociais. Apenas nos mostra os limites.
O desenvolvimento de nossas potencialidades o assunto do segundo tpico, a tica.
Entretanto, para delimitar o campo tico preciso compreender o mbito dos desejos e
das averses, preciso que se deseje aquilo que possvel alcanar e tente-se evitar aquilo
que possvel evitar, com o entendimento da natureza. Se aquilo que se deseja
verdadeiramente um bem, ento nada pode impedir de consegui-lo. Se aquilo que se tem
averso verdadeiramente um mal, nada pode impedir de evit-lo61. Se conseguir
alcanar aquilo que se deseja e conseguir evitar aquilo que no se quer, o indivduo est
em harmonia com a fsica. Se no conseguir alcanar aquilo que deseja, ou cair naquilo
que queria evitar, falha neste campo.
Mas como diferenciar aquilo que est em seu poder (ephhmin) daquilo que no est em
seu poder (k ephhmin)? Ao dividir a natureza entre natureza csmica e natureza
humana62, aprende-se a considerar que h coisas que no esto sob poder do indivduo
e que so da ao da natureza csmica ou do destino e por isso no dependem dele, e
61 Bem e mal so aquelas coisas que esto dentro do mbito daquilo que podemos e devemos desejar,
portanto, dentro do mbito de nosso poder. Tudo o que est fora desse mbito no bom nem mau, mas um
indiferente. Sobre os indiferentes, trataremos com mais especificidade mais adiante no captulo do Bem
Viver, mas podemos dizer apenas que, enquanto indiferentes, no tm valor positivo ou negativo e por isso
no deveriam fazer diferena para ns na busca da virtude, da felicidade e da euroia. Os indiferentes esto
localizados no espao entre a virtude e o vcio e neste nterim deveriam ser tratados como tal, i.., com
indiferena, ou seja, no atribuindo valor algum a eles. 62 Esta uma diviso didtica que alguns estudiosos de Epicteto utilizam. Porm, para Epicteto, como para
o estoicismo, o termo natureza engloba universo, cosmos, homem, razo em uma unidade complexa.
36
h coisas que esto sob o poder do indivduo e por isso dependem somente dele63. Essa
uma distino fundamental que Epicteto deixa bem clara em seus Discursos e no
Encheiridion64, tanto que neste ltimo ele comea assim,
H duas classes de coisas: aquelas das quais esto sob nosso controle e aquelas
que no esto. Sob nosso controle esto a opinio, a escolha, o desejo, a averso
e, em uma palavra, todas as coisas que so de nossa prpria ao; no esto
sob nosso controle so, nosso corpo, nossas posses, nossa reputao, nossos
ofcios e, em uma palavra, todas as coisas que no so de nossa prpria ao65.
Essa questo fundamental da fsica nos mostra que h algumas coisas que no esto em
nosso poder, que dependem de causas externas, e essas causas externas esto ligadas
necessidade racional da natureza, e por isso elas tm uma finalidade tica tambm
fundamental66. No devemos, ento, atentar contra elas. No temos, neste sentido, escolha
de alterar as coisas que so necessrias e racionas da natureza ou do destino, pois tudo
aquilo que externo perfeitamente racional e necessrio. Devemos fazer o melhor
daquilo que est sob nosso poder, e levar o resto como a natureza 67. Seja a vontade de
deus68, de Zeus, dos deuses ou do destino.
63 Em Introduo ao manual de Epicteto, Aldo Dinucci, na nota 1, pgina 39, coloca o termo, em grego,
em relao s coisas que esto sob nosso controle. Continua ele, Como Epicteto dir a seguir,
preciso que nos concentremos sobre as coisas que esto sob nosso controle em trs sentidos. Em relao
representao: retirando dela todo juzo (hypolpsis) equivocado, a partir da compreenso de que nada que
no depende de ns por si mesmo um bem ou mal. Em relao ao desejo (orxis) e repulsa (ekklisis):
partindo mais uma vez da compreenso de que nada externo por si s um bem ou um mal, preciso que
o desejo e a repulsa se apliquem no mais s coisas que no dependem de ns (sendo-nos necessrio desej-
las como so), mas s coisas que esto sob nosso controle. Em relao ao impulso (horm): uma vez cientes
de que produzimos nosso bem e nosso mal, preciso moderar os impulsos e encontrar o modo de agir
segundo a natureza. 64 Encheiridion um termo grego () que significa adaga, punhal, arma, i.., coisas que esto
ao alcance da mo para serem utilizadas quando necessrias e que podem ser carregadas com o indivduo.
Este o nome do Manual de Epicteto composto tambm por Arriano, seu aluno, exatamente para estar
sempre ao lado e pronto para ser sacado como guia de princpios para enfrentar as agruras da vida. 65 BOTER, Gerard. The Encheiridion of Epictetus & its Three Christian Adaptations. Danvers: Brill, 1999,
The Handbook of Epictetus, ch. 1, 1, p. 276. 66 A finalidade tica nas contingncias da natureza ou so porque so modelos de racionalidade ou porque
so, mesmo que no consigamos representar no momento, coisas que so positivas para o todo csmico e,
como fazemos parte do todo, acabaro por fazer bem a ns tambm. H muitas crticas a Epicteto sobre
esse otimismo, considerando, por exemplo, que inclusive o torturador tem um papel positivo na comunidade
csmica e, portanto, estaramos, de alguma forma, coniventes com o mal que ele faz. 67 D I.I.17. 68 Usarei a palavra deus () com inicial minscula neste trabalho, pois nos textos em grego no h inicial
maiscula para essa palavra, sendo usada apenas no incio de nomes prprios como Zeus. Tambm pelo
fato de que os estoicos eram pantestas e no tinham em deus uma personificao, mas o identificavam de
forma impessoal com a natureza.
37
Qual ajuda, ento, devemos ter pronta mo em tais circunstncias? O que,
o que mais do que o conhecimento do que meu, e do que no meu, e o que
permitido a mim, e o que no permitido a mim69?
Desejar aquilo que no me permitido desejar e recusar aquilo que no me permitido
recusar ir contra a natureza e procurar, assim, a perturbao e a infelicidade. O
conhecimento para essa diferenciao est em aceitar, na fsica, a distino entre natureza
csmica e natureza humana e, ao mesmo tempo, entender que se conectam para perfazer
o todo.
2.2.3 NATUREZA
O conceito de natureza (physis ou ) se insere dentro do campo da fsica, porm ele
se estende a todos os outros campos como sendo um pano de fundo (como a razo) para
o entendimento dos outros conceitos dos outros tpicos de estudos estoicos. Mas podemos
comear com essa declarao de Epicteto, que concorda com o estoicismo antigo, [...]
qualquer coisa que se faa de acordo com a natureza [ ] bem feito70. Para
entender o conceito de natureza estoica e o papel que ela atua na tica, necessrio, ao
mesmo tempo, termos uma viso do todo e uma viso particularista. Uma se insere na
outra criando o que a filosofia estoica chamou de simpatia (simpatheia), a qual Oldfather
definiu assim: [...] a unidade fsica do cosmos de tal forma que a experincia de uma
parte necessariamente afeta cada outra [parte]71. Isso quer dizer que a presena de Zeus
ou deus no uma presena destacada do mundo ou do ser humano, mas uma parte
intrnseca do mundo (cosmos) e interna no indivduo72. Ento, como diz Diogenes
69 D I.I.21-22. 70 D I.XI.5-6. 71 L I, nota de rodap 1, p. 100. Brad Inwood em The Cambridge Companion to Stoics define assim o
conceito de simpatia: [...] uma conexo interna entre eventos que parecem bastante diferentes, p. 184. 72 Essa uma forma de transcendncia imanente. Segundo Luc Ferry, em seu livro Aprender a Viver
filosofia para os novos tempos, Fundamentalmente, o pensamento grego um pensamento da imanncia,
j que a ordem perfeita no um ideal, um modelo de ser que se situaria em outro lugar a no ser no
universo, mas ao contrrio, uma caracterstica totalmente encarnada nele. [...] podemos dizer que a ordem
harmoniosa do cosmos no deixa ser transcendente em relao aos humanos, no sentido exato em que eles
nem o criaram nem o inventaram. [...] a palavra transcendente deve ser entendida aqui em relao
humanidade. [...] A transcendncia no est no cu, mas na Terra., p. 281.
38
Laertius, Este termo [natureza] usado no significado do Todo e tambm naquilo que
causa as coisas terrestres73. essa relao que devemos ter em mente quando pensamos
na relao entre natureza e tica, ou entre os tpicos da fsica e da tica. O conceito de
natureza, ento, delimita o espao em que o tpico da tica pode atuar e em quais
circunstncias vlido atuar.
Ambas, a natureza humana e a csmica, servem como fundamentos e primeiros
princpios da tica estoica. Embora parea natural para ns perguntar como
esses dois focos diferentes da teoria tica podem ter coerncia, os estoicos no
tinham tal preocupao. Nada mais caracterstico da escola, desde seu incio,
no final do sculo quarto at o final da antiguidade, do que a tese de que a
natureza humana e csmica esto relacionadas como parte do todo74.
Sem essa considerao a tica estoica no possvel. Tanto porque no fica delimitado o
campo de ao humana, quanto por que muitos dos atributos humanos so emprestados
do cosmos, como a racionalidade e a percepo.
A base da tica est, ento, vinculada natureza csmica pois ela diz que somos uma
centelha desse princpio governador racional que tudo criou, mas tambm est vinculada
nossa natureza humana no sentido que, como seres humanos aqui e agora, somos
guiados pelo princpio da autopreservao75.
A pergunta quem gostaramos de ser est vinculada ao padro de ser, e h dois padres,
diz Epicteto, para guiar a resposta a essa pergunta, um padro universal e outro individual.
Primeiro de tudo, e devo agir como um homem. O que est incluso nisso? No
agir como uma ovelha, gentilmente mas sem um propsito fixado; nem
destrutivamente, como uma besta selvagem. O padro individual aplica-se a cada
ocupao do homem e proairesis76.
73 DL VII.148. 74 ALGRA, Keimpe; BARNES, Jonathan; MANSFELD, Jaap; SCHOFIELD Malcom. The Cambridge
History of Hellenistic Philosophy. UK: Cambridge University Press, 1999, p. 676. 75 Neste ponto a filosofia tica estoica diferencia-se muito da filosofia tica epicurista que tinha como
princpio bsico do ser humano o prazer. Para os estoicos buscar a autopreservao nem sempre buscar