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O agir pessoal e a prática social: a ética e a política Em toda a história da filosofia é possível perceber o quanto as questões relacionadas com o agir do homem ocuparam lugar importante na reflexão dos filósofos. Podemos até mesmo dizer que, se o problema fundamental da filosofia clássica foi o problema do ser e o da filosofia moderna, o do conhecer, o problema fundamental da filosofia contemporânea é, sem dúvida, o problema do agir. Embora estejamos ainda preocupados em saber melhor quem é o homem e como é que podemos conhecer, o que mais nos angustia hoje é saber quais são os critérios de nossa ação, é saber como devemos agir, qual a melhor maneira de agir enquanto homens. É por isso que a filosofia continua buscando fundamentar também os nossos juízos de valor moral. Por mais que já saibamos que os valores que embutimos em nossas práticas pessoais cotidianas sejam herdados de nossa própria cultura, recebendo-os através dos processos informais e formais de educação, continuamos desafiados a justificá-los, a fundamentá-los, bus- cando esclarecer como eles se legitimam e legitimam o nosso agir individual e coletivo. De um lado, o caráter imperativo da norma moral nos impressiona. Os valores morais se impõem a nós com força normativa e prescritiva, quase que ditando como nossas ações devem ser praticadas. Não segui-los nos sempre a sensação de que estamos infringindo normas, fazendo o que não devia ser feito. De outro lado, nossas referências se tornaram mais frágeis na atualidade em decorrência da ampliação de nossos conhecimentos sobre a realidade. Quando insistimos na autonomia do sujeito, entendendo o homem como um ser dotado de vontade soberana e livre, nossos conhecimentos atuais 1 Antônio Joaquim Severino

A Ética e a Política

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Relação entre ética e política. Estuda as múltiplas relações em direção a cidadania

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  • O agir pessoal e a prtica social: a tica e a poltica

    Em toda a histria da filosofia possvel perceber o quanto as questes relacionadas com o agir do homem ocuparam lugar importante na reflexo dos filsofos. Podemos at mesmo dizer que, se o problema fundamental da filosofia clssica foi o problema do ser e o da filosofia moderna, o do conhecer, o problema fundamental da filosofia contempornea , sem dvida, o problema do agir. Embora estejamos ainda preocupados em saber melhor quem o homem e como que podemos conhecer, o que mais nos angustia hoje saber quais so os critrios de nossa ao, saber como devemos

    agir, qual a melhor maneira de agir enquanto homens.

    por isso que a filosofia continua buscando fundamentar tambm os nossos juzos de valor moral. Por mais que j saibamos que os valores que embutimos em nossas prticas pessoais cotidianas sejam herdados de nossa prpria cultura, recebendo-os atravs dos processos informais e formais de educao, continuamos desafiados a justific-los, a fundament-los, bus- cando esclarecer como eles se legitimam e legitimam o nosso agir individual e coletivo.

    De um lado, o carter imperativo da norma moral nos impressiona. Os valores morais se impem a ns com fora normativa e prescritiva, quase que ditando como nossas aes devem ser praticadas. No segui-los nos d sempre a sensao de que estamos infringindo normas, fazendo o que no devia ser feito.

    De outro lado, nossas referncias se tornaram mais frgeis na atualidade em decorrncia da ampliao de nossos conhecimentos sobre a realidade. Quando insistimos na autonomia do sujeito, entendendo o homem como um ser dotado de vontade soberana e livre, nossos conhecimentos atuais

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    Antnio Joaquim Severino

  • nos mostram o quanto somos frgeis contingentes, dominados pelas estru-turas e foras pr-humanas; quando insistimos na predeterminao absoluta desses condicionamentos, defrontamo-nos com a experincia insupervel de sermos os sujeitos de nossa ao, sempre responsveis por elas e sempre sabedores de todas as suas conseqncias.

    Essa a esfera da moral, campo de investigao da tica, rea da filosofia que trata das questes do agir dos homens enquanto fundado em valores morais. Na filosofia contempornea, a tica ocupa lugar de extrema relevncia, tal a dificuldade que os homens continuam encontrando para resolver os problemas de sua ao. Sem dvida, a tica contempornea est buscando novos caminhos, est tentando fundamentar o agir moralmente vlido de maneiras diferentes daquelas apresentadas pela histria da filosofia.

    A tica

    Todos ns vivenciamos a experincia da conscincia moral. Temos uma sensibilidade moral que nos faz avaliar se nossas aes so boas ou ms, justas ou injustas, corretas ou no. Observamos que, em funo desses valores, as vrias culturas, nos vrios momentos histricos, vo constituindo seus cdigos de ao, seus sistemas jurdicos, impondo aos seus integrantes um modo de agir considerado adequado a essas normas. Esses aspectos, no entanto, so objeto de estudo de outras cincias: antropologia, sociologia, direito, histria etc. A filosofia se preocupa em dar conta dos possveis fundamentos desse modo de sentir as coisas. Construiu, para tanto, os seus sistemas ticos, bem de acordo com suas grandes referncias.

    O que nos mostra, com efeito, a histria da filosofia? Num primeiro momento, tendeu a vincular os valores ticos prpria natureza metafsica dos homens. Na essncia dos homens, j estariam inscritos, de maneira estvel e permanente, os valores que deveriam presidir a sua ao, uma vez que definem bem os seus fins. O homem, como qualquer outro ser, busca a sua prpria perfeio, que acontecer quando sua essncia estiver plena- mente realizada. Como ela se realizar atravs de aes, o importante que ele aja ento de acordo com os valores a que se tem a devida sensibilidade

    mediante sua conscincia moral. Estamos assim diante de uma tica essen- cialista: os valores da ao humana esto inscritos na prpria essncia do homem. Ao conhecer essa essncia, podemos igualmente nos dar conta dos valores que a ela se vinculam e que podero dirigir nossas aes no sentido de se tornarem moralmente boas!

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  • J sob a predominncia do modo cientfico de pensar, a tica tende a se apoiar numa concepo naturalista do homem. Este concebido to-so-mente como um organismo vivo, regido pelas leis naturais, tanto no plano individual como no plano social, e que determinam sua maneira de ser e de se desenvolver. Valores e fins da ao humana se encontram expressos nas prprias leis naturais que regulam a vida! E bom tudo aquilo que reforar a vida natural. Buscou-se assim, em vrios sistemas filosficos, constituir-se uma tica naturalista.

    A tica, tal qual vem se expressando no mbito da filosofia contem-pornea, tende a ser, por sua vez, uma tica praxista. Isso em decorrncia da nova referncia antropolgica que vem predominando na filosofia, como j vimos nos captulos anteriores. Embora o homem seja entendido como ser natural e dotado de uma conscincia subjetiva que lhe permite projetar e antever suas aes, ele no visto mais, na filosofia atual, nem como um ser totalmente determinado nem como um ser totalmente livre. Sua ao sempre um compromisso, um equilbrio instvel entre as injunes impostas pelas condies objetivas de sua existncia e a sua iniciativa enquanto sujeito dotado de uma conscincia livre.

    Assim, a tica contempornea entende que o sujeito se encontra sob as injunes da histria que at certo ponto o conduz, mas que tambm constituda por ele, por meio de sua prtica efetiva. Ele no mais nem um sujeito substancial, soberano e absolutamente livre, nem um sujeito emprico puramente natural. Ele simultaneamente os dois, na medida em que um sujeito histrico-social. uma entidade natural histrica, deter-minada pelas condies objetivas de sua existncia, ao mesmo tempo que atua sobre elas por meio de sua prxis.

    A prxis sua prtica real enquanto atravessada pela intencionalidade subjetiva, ou seja, pela reflexo crtica, quando est agindo levando em considerao a totalidade dos esclarecimentos que sua subjetividade pode lhe fornecer quando criticamente aplicada.

    Assim, tanto o sujeito da ao como o mundo enquanto objeto dessa ao se constituem historicamente. Nenhum deles dado aprioristicamente ou s empiricamente. Isso tem profundas implicaes quanto tica. A tica adquire um dimensionamento poltico, uma vez que a ao do sujeito no pode mais ser vista e avaliada fora da relao social coletiva. Para julgar se uma determinada ao boa ou m, no se pode mais deixar de avaliar se ela justa ou no, ou seja, se ela contribui ou no para diminuir

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  • o coeficiente de poder dos homens entre si. que, nenhuma ao mais puramente individual, todo agir solidrio no tecido histrico-social. S boa a ao que efetivamente contribuir para o aumento da igualdade entre os homens.

    Desse modo, na filosofia contempornea, a tica se entrelaa, neces-sariamente, com a poltica, entendida esta como a rea de avaliao dos valores que atravessam as relaes sociais que interligam os indivduos entre si. Mas a poltica, por sua vez, est intimamente vinculada tica, pois ela no pode ater-se exclusivamente a critrios tcnico-funcionais, caso em que se transformaria numa tica totalitria que sufocaria as pessoas, destruindo sua identidade e sua dignidade.

    Em se tratando, pois, de avaliar uma ao do ponto de vista tico, no basta se perguntar at que ponto ela fere um valor individual do sujeito: preciso perguntar ainda at que ponto essa ao interfere na distribuio do poder entre os homens, ou seja, se ela aumenta ou diminui o ndice de opresso e de dominao entre as pessoas. Isso porque a dignidade das pessoas no se circunscreve apenas a sua posio individual mas tambm a sua relao no tecido social.

    Portanto, para que uma ao seja eticamente boa, preciso que ela seja tambm politicamente boa, ou seja, que ela contribua para o aumento da justia, entendida esta como a condio de distribuio eqitativa dos bens materiais, culturais e "espirituais" (mbito da dignidade humana). A gravidade de uma ao praticada contra as pessoas diretamente propor-cional s conseqncias que lhes acarreta na sua situao no contexto social, prejudicando-as no exerccio de sua cidadania, degradando seu ser quer na esfera do trabalho, quer na esfera da convivncia social, quer ainda na esfera de sua indentidade subjetiva.

    Esse problema tico-poltico extremamente grave no momento his-trico que estamos vivendo. De um lado, porque as foras de dominao se consolidaram nas estruturas sociais e econmicas; de outro, porque nem sempre conseguimos ver claramente as coisas, obscurecidas que esto pela ideologia que envolve nossa percepo da realidade. Ademais, mesmo quan-do vemos claramente as coisas, nem sempre temos fora para suplantar seu poder de dominao; outras vezes, sequer chegamos a entender os processos que nos envolvem, tal fora da deturpao ideolgica. Da as dificuldades que enfrentamos para estabelecer os critrios de nossa ao e para desen-volver nossa prtica em coerncia com eles.

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  • por essa razo que dissemos acima que nossa atividade s ser prxis se for impregnada por uma reflexo crtica, capaz de elucidar todas as suas implicaes.

    A criticidade a qualidade da reflexo que supera a condio da conscincia ingnua e da conscincia dogmtica, capaz de desvelar o en-viesamento ideolgico de todas as formas de discursos, tericos e prticos, que constituem a cultura humana. Ela permite entender o prprio processo do conhecimento como situado sempre num contexto mais amplo e envol-vente do que a relao direta sujeito/objeto. Ela situa as atividades da conscincia, tanto da conscincia cognoscitiva como da conscincia valo-rativa, num contexto geral complexo, no mbito da totalidade do existir humano. A vida da conscincia tambm uma resultante da trama dos relacionamentos socioculturais. Os conhecimentos hoje disponveis para a humanidade constituem a expresso histrico-cultural do esforo que os homens fizeram para compreender e dominar os vrios aspectos do seu universo. Ao serem elaborados, eles incorporaram marcas do profundo con-dicionamento que exercem sobre a atividade subjetiva do homem, a sua condio biolgica, a esfera das relaes produtivas, a esfera sociocultural e a esfera das relaes de poder, provocando-lhe no s Umitaes especficas como tambm fortes enviesamentos ideolgicos.

    Desse modo, quando se buscam os fundamentos do agir, a conscincia reflexiva praticada pela filosofia, alm de reconhecer o legado de sua in-sero na realidade natural, social e cultural, precisa equacionar ainda a fora de alienao que possui essa realidade, bem como denunciar e des-mascarar o carter ideolgico de toda produo da subjetividade humana.

    Esclarecendo alguns conceitos

    Moral: o conjunto de prescries vigentes numa deteiminada socie- dade e consideradas como critrios vlidos para a orientao do agir de todos os membros dessa sociedade.

    A ao humana, do ponto de vista da moral, fundada em valores, ou seja, princpios expressos mediante juzos apreciativos que so viven- ciados por uma sensibilidade da conscincia subjetiva dos indivduos e que

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  • so concretizados objetivamente em normas prticas de ao e em costumes culturais no seio das sociedades.

    tica: a rea da filosofia que investiga os problemas colocados pelo agir humano enquanto relacionado com valores morais. Busca assim discutir e fundamentar os juzos de valor a que se referem as aes quando neles fundam seus objetivos, critrios e fins.

    bom atentar para o fato de que em nosso meio, muitas vezes, os termos tica e moral so tomados como sinnimos, tanto para designar as prescries vigentes como para designar a disciplina que estuda os valores implicados na ao. S o contexto pode dizer em que sentido os termos esto sendo usados.

    Questes para pesquisa e discusso

    Como se coloca, nas condies atuais, a questo da moralidade?

    At que ponto se pode falar que o homem um ser livre, que dotado de liberdade e autonomia, sendo responsvel por seu agir, frente a tantos condicionamentos de sua ao?

    Correlacione as posturas tica, tcnica e poltica.

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