A evidencialidade e a construção de provas nos delitos de palavra: calúnia, difamação e preconceito racial

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O objetivo geral deste artigo é refletir sobre o funcionamentodos marcadores de evidencialidade no discurso jurídico,especificamente em processos referentes aos chamados“Crimes contra a honra” do Código Penal Brasileiro.

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  • Estudos da Lngua(gem) Vitria da Conquista v. 10, n. 1 p. 63-85 junho de 2012

    *Sobre as autoras ver pgina 85, no final do artigo.

    A evidencialidade e a construo de provas nos delitos de palavra: calnia, difamao e preconceito racial

    La evidencialidad y la construccin de pruebas en los delitos de palabra: calumnia, difamacin y prejuicio racial

    Mnica Graciela Zoppi Fontana*Universidade estadUal de Campinas (UniCamp/Brasil)Conselho naCional de desenvolvimento CientfiCo e teCnolgiCo (Cnpq)

    Valda de oliVeira FaGundes* eComUseU dr. agoBar fagUndes

    RESUMOO objetivo geral deste artigo refletir sobre o funcionamento dos marcadores de evidencialidade no discurso jurdico, especificamente em processos referentes aos chamados

    Crimes contra a honra do Cdigo Penal Brasileiro. O corpus reunido para este trabalho consiste em um processo de ao penal dirimido no mbito dos Tribunais de Justia Comum e Penal do Estado de Santa Catarina (Brasil), no qual se apresenta denncia (queixa-crime) por calnia, injria e difamao, com manifestao explcita de preconceito racial. O corpus constitudo pela totalidade dos textos que integram o processo,

    Estudos da Lngua(gem)

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    desde sua abertura at a sentena final. O julgamento foi realizado unicamente por meio de peas legais, escritas em conformidade com as regras do Cdigo Penal Brasileiro para este tipo de delito. O estudo da evidencialidade no discurso jurdico um tema relevante (embora pouco estudado) tanto para o campo do Direito como da Anlise de Discurso, dado que a presena de marcadores de evidencialidade afeta, do ponto de vista jurdico, a validade das evidncias apresentadas em juzo para a construo de prova, e, do ponto de vista discursivo, produz efeitos de verdade regulados institucionalmente que configuram tanto a relao estabelecida entre as partes (atores jurdicos e leigos) como suas prticas discursivas. Dada a natureza do delito julgado, no seria possvel excluir os marcadores de evidencialidade presentes nos testemunhos sem afetar os julgamentos de veracidade atribudos a eles. Nossa anlise descreve o funcionamento das diversas formas de discurso relatado e de modalizadores epistmicos que aparecem no corpus, relacionando-as com a interpretao do caso produzida por cada uma das partes implicadas.

    Palavras-chave: Evidencialidade. Efeito de pr-construdo. Discurso jurdico. Modalidade. Interpretao.

    RESUMENEl objetivo general de este artculo es reflexionar sobre el funcionamiento de los marcadores de evidencialidad en el discurso jurdico, especficamente en procesos referentes a los llamados Crimes contra a honra, segn el Cdigo Penal Brasileiro. El corpus reunido para este trabajo consiste en un proceso de accin penal dirimido en el mbito de los Tribunales de Justicia Comn y Penal del Estado de Santa Catarina (Brasil), que presenta denuncia (queixa-crime) por calumnia, injuria y difamacin, incluyendo la manifestacin explcita de prejuicio racial. Es importante destacar que constituyen el corpus la totalidad de los textos que integran los procesos, desde su apertura hasta la sentencia final, y que el juicio fue realizado nicamente a travs de piezas legales escritas, de acuerdo con las reglas del Cdigo Penal brasileo para este tipo de delitos. El estudio de la evidencialidad en el discurso jurdico es un tema relevante (aunque poco estudiado) tanto en el campo del Derecho como en el Anlisis del discurso, dado que la presencia de marcadores de evidencialidad afecta, del punto de vista jurdico, la validez de las evidencias presentadas en juicio para la construccin de pruebas en relacin al delito juzgado, y del punto de

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    vista discursivo, produce efectos de verdad regulados institucionalmente que configuran tanto la relacin establecida entre las partes (actores jurdicos y legos), como sus prcticas discursivas. Dada la naturaleza del delito juzgado, no sera posible excluir los marcadores de evidencialidad presentes en los testimonios sin afectar los juicios de veracidad a ellos atribuidos. Nuestro anlisis describe el funcionamiento de las diversas formas de discurso relatado y de modalizadores epistmicos que aparecen en el corpus en relacin con la interpretacin producida sobre el caso por las partes implicadas.

    PALABRAS-CLAVE: Evidencialidad. Efecto de pr-construido. Discurso jurdico. Modalidad. Interpretacin.

    1 Introduo

    O estudo da evidencialidade no discurso jurdico um tema

    relevante (ainda que pouco estudado) tanto no campo do Direito

    quanto na Anlise de Discurso, pois a presena dos marcadores de

    evidencialidade afeta, do ponto de vista jurdico, a validade das evidncias

    apresentadas em julgamento para a construo das provas em relao ao

    delito julgado e, do ponto de vista discursivo, produz efeitos de verdade

    regulados institucionalmente, que configuram a relao estabelecida

    entre as partes (atores jurdicos e leigos) e suas prticas discursivas.

    Nosso objetivo neste trabalho estudar o funcionamento da

    evidencialidade em relao aos chamados Crimes contra a Honra,

    definidos no Captulo V do Cdigo Penal Brasileiro, como se mostra

    a seguir:

    CalniaArt.138-Caluniar algum, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena-deteno, de 6 (meses) a 2 (dois) anos, e multa. 1-Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputao, a propala ou divulga. 2- punvel a calnia contra os mortos.

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    DifamaoArt.139- Difamar algum, imputando-lhe fato ofensivo sua reputao:Pena-deteno, de 3 (trs) meses a 1 (um) ano, e multa.

    InjriaArt. 140-Injuriar algum, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:Pena-deteno, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. 3-Se a injria consiste na utilizao de elementos referentes a raa, cor, etnia, religio, origem ou a condio de pessoa idosa ou portadora de deficincia: Pena - recluso de um a trs anos e multa.

    Ainda que, por definio, sejam considerados delitos de tipo

    penal, no comum que os processos por calnia, difamao ou injria

    cheguem instncia penal, j que geralmente se resolvem durante a

    audincia de conciliao com a retratao formal por parte do acusado

    ou de um acordo de indenizao assinado entre as partes. Somente se

    instaura o processo penal em uma causa referente a estes delitos quando

    no possvel a conciliao de interesses entre as partes e se a vtima

    insiste em prosseguir com a denncia. So estes os casos que do lugar

    a processos como o que analisamos neste trabalho, integrado em sua

    totalidade por textos escritos, que incluem desde a denncia inicial e sua

    aceitao por parte do juiz competente (queixa-crime) at a sentena

    final e seu fundamento jurdico.

    Nosso interesse est centrado justamente na natureza das provas

    consideradas vlidas para substanciar a apreciao deste tipo de delito,

    cuja principal caracterstica consiste em apresentar-se como um relato

    de enunciados proferidos por terceiros, o que favorece a apario dos

    marcadores de evidencialidade nos textos analisados. Esta dimenso

    citativa de seu funcionamento permite que, na jurisprudncia, estes

    delitos sejam conhecidos tambm como crimes de palavra. Esta

    denominao encontra algum fundamento no texto da lei, que prev a

    iseno da pena para os imputados que se retratarem de suas palavras

    antes de emitida a sentena, como se pode observar no art. 143:

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    RetrataoArt.143- o querelado que, antes da sentena, se retrata cabalmente da calnia ou da difamao, fica isento de pena.

    Ainda mais interessante, do ponto de vista discursivo, o fato

    de o Cdigo permitir que sejam aceitas denncias nas quais os delitos

    so inferidos, e no diretamente observados, como consta no art.144:

    Art.144. Se, de referncias, aluses ou frases, se infere calnia, difamao ou injria, quem se julga ofendido poder pedir explicaes em juzo. Aquele que se recusa a d-las ou, a critrio do juiz, no as d satisfatrias, responde pela ofensa.

    Pelo exposto possvel perceber que este tipo de delito se

    distingue de outros por sua dimenso discursiva, quer dizer, pelo fato

    de consistirem na enunciao efetivamente realizada de contedos

    considerados ofensivos dignidade da pessoa. Quando existe constncia

    escrita da ofensa, porque circulou em verso escrita em diversos veculos

    de comunicao, ou quando existe gravao dos enunciados ofensivos,

    estes elementos (se forem considerados vlidos pelo juiz) constituem,

    em si mesmos, provas materiais do fato julgado. Contudo, muitos dos

    processos por delitos de palavra se referem a fatos dos quais no resta

    nenhum registro concreto e cuja existncia deve ser verificada com base

    na declarao das testemunhas. Nesses casos, como no processo que

    analisamos neste trabalho, as provas construdas para substanciar os

    argumentos da acusao e da defesa consistem em reunir testemunhas que

    tenham presenciado o ato de enunciao em questo e que o descrevam

    em sua declarao. A partir destes testemunhos, os atores jurdicos (juiz,

    advogados de acusao e defesa e o representante do Ministrio Pblico)

    inferem o que crucial para a interpretao do fato jurdico, dado que

    no existe, nesses casos, nenhum outro tipo de provas tcnicas que os

    levem a tomar uma determinada posio sobre: a credibilidade atribuda

    testemunha, a credibilidade de sua enunciao e a veracidade de seus

    enunciados. Isto implica, do ponto de vista enunciativo, interpretar os

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    marcadores de evidencialidade presentes nos enunciados em relao com

    seus efeitos na modalizao epistmica, considerando-os como indcios

    da validade das declaraes. Neste trabalho, assumindo os princpios

    tericos da Anlise de Discurso de filiao pecheutiana, consideramos

    que os marcadores de evidencialidade se apoiam em elementos de saber

    pr-construdos (PCHEUX, 1975), que participam de forma decisiva

    na produo de efeitos de verdade que direcionam a interpretao.

    Como permanecem implcitos nos enunciados, esses elementos de saber

    se impem como bvios ou autoevidentes para as partes implicadas,

    construindo um simulacro de raciocnio lgico-formal que desconhece

    necessariamente a determinao ideolgica das premissas silenciadas

    que lhe servem de esteio.

    A partir dessas consideraes, orientamos nossa reflexo como

    um trajeto investigativo que persegue, com a anlise dos dados, responder

    s seguintes perguntas:

    1. Que efeitos de sentido produz o funcionamento da

    evidencialidade com relao aos gestos de interpretao

    realizados pelos advogados e pelo juiz em suas intervenes

    durante o processo?

    2. Que elementos de saber no explicitados fundamentam

    a apreciao pelas partes do grau de veracidade e de

    confiabilidade das provas testemunhais?

    2 Evidencialidade e modalizao epistmica dos enunciados

    O estudo da evidencialidade e dos marcadores de evidencialidade1 na lingustica tem uma larga tradio: segundo Jakobson (1986, apud

    DENDALE; TASMOWSKI, 2001), este termo foi inicialmente usado

    por Franz Boas em sua gramtica da lngua Kwakiult publicada em 1 Em relao ao termo usado para referir a esta categoria semntica, importante sinalizar, como fazem Dendale & Tasmoswki (2001), que em francs est consagrado o uso do termo mdiatif no lugar de videncialit (que traduz na forma de emprstimo lingustico o termo ingls), a partir da publicao do livro de Guntcheva (1996) Lnonciation mdiatise.

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    1947. Este novo objeto de estudo se instala definitivamente como

    problemtica lingustica em 1981, com a realizao de um encontro

    sobre o tema organizado pela Universidade de Berkeley, cujas atas com

    anlises do funcionamento da evidencialidade em diferentes lnguas

    foram publicadas por Chafe & Nicholson (1986). Recentemente, novas

    publicaes (DENDALE; TASMOWSKI, 2001; AIKHENVALD,

    2003, 2004) contriburam com o debate deste fenmeno lingustico,

    sobre o qual difcil encontrar consenso entre os autores. Podemos

    resumir as posies defendidas sobre o tema, remetendo-as a dois

    tipos de definio de evidencialidade: uma restrita e outra ampliada.

    A definio restrita assumida por Aikhenvald (2003, 2004) e outros

    autores que trabalham principalmente com a descrio de lnguas no

    indo-europeias, nas quais o domnio semntico da evidencialidade tem

    realizao morfolgica ou sinttica, ou se manifesta gramaticalmente

    de forma obrigatria nos enunciados. Nesse caso, a evidencialidade

    entendida como uma categoria gramatical obrigatria, que expressa

    exclusivamente o significado de sinalizar a fonte ou origem da informao

    veiculada pelo enunciado.

    Por outro lado, numerosos autores (CHAFE, 1986; PALMER,

    1986; JOSEPH, 2004) ampliam esta definio para incluir outros

    contedos semnticos, alm da fonte de informao, considerando

    tambm a atitude do locutor em relao veracidade do enunciado

    (modalizao epistmica), o compromisso do locutor com a enunciao

    (distncia do locutor com relao ao enunciado), a confiabilidade

    atribuda fonte de informao, a relao intersubjetiva estabelecida

    com o interlocutor sobre conhecimentos compartilhados ou crenas

    supostas. Esta definio ampliada se aplica mais facilmente a lnguas

    que no gramaticalizam morfologicamente a evidencialidade, apesar de

    marc-la em certos enunciados como significados derivados ou agregados

    ao contedo semntico especfico de diversas formas lingusticas

    (tempos, modos e aspectos verbais, advrbios, enunciados relatados, etc.).

    Nesses casos, a categoria semntica da evidencialidade frequentemente

    se sobrepe modalidade epistmica, sendo difcil interpret-las

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    em separado do funcionamento das formas lingusticas. Dendale e

    Tasmowski (2001) citam como exemplo o uso do modo condicional

    em francs Il y aurait de nombreuses victimes, muito semelhante ao portugus brasileiro Haveria numerosas vtimas, que evoca ao mesmo tempo: 1 - atribuio da informao a um terceiro (evidencialidade); 2 -

    incerteza sobre a informao prestada (modalidade) e 3 - distanciamento

    (no compromisso) do locutor em relao a essa informao.

    O portugus brasileiro no marca gramaticalmente a evidencialidade,

    ou seja, no existe uma categoria gramatical que materialize obrigatoriamente

    nos enunciados este domnio semntico. Contudo, alguns autores

    (GONALVES, 2003; DALLGLIO- HATTNER, 1995) propem

    descrever como evidenciais verbos como parecer, achar em contextos especficos (quando introduzem oraes subordinadas substantivas

    objetivas) e atribuem este novo valor semntico a um processo de

    gramaticalizao em curso.

    Em nosso trabalho assumimos uma definio ampla da

    evidencialidade, na qual esto includos os seguintes aspectos, j

    mencionados por Chafe (1986): fonte do conhecimento, modo do

    conhecimento, confiabilidade do conhecimento, previsibilidade do

    conhecimento. Por outro lado, consideramos, de acordo com Gonalves

    (2003), que os domnios semnticos da evidencialidade e da modalidade

    epistmica expressam seus significados de forma gradual, ocorrendo

    sobreposies e entrecruzamentos que impossibilitam determinar, em

    cada caso, qual o valor semntico predominante. Consequentemente,

    este autor prope assumir, por um lado, uma postura de neutralidade

    em relao incluso de uma categoria no domnio semntico da outra;

    e, por outro lado, o reconhecimento da necessidade de distinguir o

    significado especfico de cada um dos domnios.

    Em relao aos tipos de evidencialidade (em sentido restrito)

    que podem aparecer marcados nos enunciados, adotamos a subdiviso

    proposta por Willet (1988, p. 57):

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    - evidencialidade direta, quando atestada sensorialmente (pelo locutor ou por outro participante da interlocuo): visual, auditiva, tctil, gustativa, olfativa;

    - evidencialidade indireta, que se subdivide em relatada, quando se trata de informao recebida por meio do relato de outro (heresay), abarcando inclusive relatos mticos e folclricos; e inferencial, quando apresentada como fato inferido de causas conhecidas ou como concluso de um raciocnio cujas premissas podem estar implcitas ou pressupostas.

    3 Evidencialidade e discurso jurdico

    Stygall (2004) desenvolve um trabalho pioneiro sobre o uso

    de marcadores de evidencialidade em julgamentos orais e demonstra

    que advogados, juzes e jurados avaliam diferentemente, a partir de

    marcadores de evidencialidade, a veracidade e a validade dos enunciados

    proferidos por testemunhas e atribui essa diferena ao carter disciplinar

    do discurso jurdico e s restries impostas pelas prticas discursivas

    e no discursivas que o configuram como uma formao discursiva

    especfica (FOUCAULT, 1969). Coulthard e Alison (2007) analisam as

    diversas formas de construo da evidncia disponvel como provas em

    processos judiciais. Nesse sentido, seu trabalho, ainda que no considere

    a evidencialidade como categoria gramatical, til para delinear um

    panorama geral sobre a construo e interpretao de provas nos

    processos.

    Em portugus, so poucos os estudos que analisam o

    funcionamento da evidencialidade em corpora jurdicos; dois s autores,

    no entanto, merecem destaque, a saber: Ferreira (2007), que descreve

    o funcionamento da evidencialidade em audincias de conciliao do

    PROCON (organismo de defesa dos direitos do consumidor), e Cabral

    (2001), que analisa os verbos modalizadores e a produo de evidncia

    inferencial atravs da pressuposio em trs processos cveis.

    Em nosso trabalho consideramos que, para o caso especfico dos

    delitos de palavra, o funcionamento da evidencialidade na construo

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    das provas constitutivo dos efeitos de verdade produzidos pelos

    enunciados no processo e contribui, assim, para a interpretao do caso

    e a deciso da sentena. Dada a natureza do delito julgado, afirmamos

    que no seria possvel excluir os marcadores de evidencialidade presentes

    nos testemunhos sem afetar os julgamentos de verdade a eles atribudos,

    como podemos observar no fragmento que citamos a seguir:

    1- quando ento veio uma discusso entre a querelada e a querelante; que a depoente ouviu a querelada dizer: servio de negra suja e que s podia ser servio de negro [...] s perguntas respondeu: que acreditava que o fato se sucedeu no ano de 2000, no podendo precisar o dia ou o ms.

    Nossa anlise descreve o funcionamento das diversas formas

    de discurso relatado e de modalizadores epistmicos que aparecem no

    corpus em relao com a interpretao produzida sobre o caso pelas

    partes implicadas. Desta maneira, buscamos mostrar como, ao ordenar a

    realidade dentro dos padres das normas legais e adequ-la linguagem

    institucional, os operadores da justia no s investigam a verdade dos

    fatos, como tambm processam, geram uma verdade, conforme

    afirma Foucault (1974).

    4 Descrio do corpus

    O processo que analisamos se desenvolveu no Frum do Juizado

    Especial da Comarca de Blumenau, entre novembro de 1988 e maio de

    2002, e se refere a uma denncia por calnia, difamao e injria com

    elementos de preconceito racial. Resumindo o caso, apontamos que

    a denunciante D.M.B., que negra, e a acusada M.M.B. so vizinhas

    contguas, e entre os terrenos de suas respectivas casas, como diviso,

    foi levantado um muro que no demorou a cair. A acusada M.M.B.

    responsabilizou sua vizinha D.B.M. pelo fato e a atacou verbalmente,

    proferindo enunciados vexatrios que atacam sua dignidade pessoal,

    aludindo de forma pejorativa a sua cor de pele. Os enunciados conflitivos