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A EXPERIÊNCIA DE SER PAI NA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR RESUMO Esta pesquisa procurou compreender o sentido da paternidade para homens autores de violência intrafamiliar. Lançou mão da questão: como é a vivência da paternidade para homens autores de violência?, tendo como metodologia a narrativa, numa perspectiva fenomenológica existencial. Com isso, foi possível transitar sobre masculinidades e paternidades, bem como, sobre como a violência entrecruza-se com o ser-homem. A modalidade de investigação foi entrevista. Foram entrevistados três homens pais autores de violência, os quais fazem parte do grupo reflexivo para homens autores de violência contra a mulher. Através das entrevistas foi possível compreender que paternidade nesse contexto toma diversos sentidos, é atravessada por questões como a violência, a conjugalidade e a religiosidade. Encontra sua visibilidade através do prover, do aconselhar, do disciplinar, como também, da preocupação com a educação e com a alimentação, do estar junto através de um vínculo afetivo indissolúvel. Palavras-chave: paternidades; masculinidades; homens autores de violência intrafamiliar.

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A EXPERIÊNCIA DE SER PAI NA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR

RESUMO

Esta pesquisa procurou compreender o sentido da paternidade para homens autores de

violência intrafamiliar. Lançou mão da questão: como é a vivência da paternidade para

homens autores de violência?, tendo como metodologia a narrativa, numa perspectiva

fenomenológica existencial. Com isso, foi possível transitar sobre masculinidades e

paternidades, bem como, sobre como a violência entrecruza-se com o ser-homem. A

modalidade de investigação foi entrevista. Foram entrevistados três homens pais autores de

violência, os quais fazem parte do grupo reflexivo para homens autores de violência contra a

mulher. Através das entrevistas foi possível compreender que paternidade nesse contexto

toma diversos sentidos, é atravessada por questões como a violência, a conjugalidade e a

religiosidade. Encontra sua visibilidade através do prover, do aconselhar, do disciplinar, como

também, da preocupação com a educação e com a alimentação, do estar junto através de um

vínculo afetivo indissolúvel.

Palavras-chave: paternidades; masculinidades; homens autores de violência intrafamiliar.

A EXPERIÊNCIA DE SER PAI NA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR

Bruno Robson de Barros Carvalho

Orientadora: Profª. Ma. Suely Emilia de Barros Santos

Banca Avaliadora

Profª. Ma Claudine Alcoforado Quirino Costa

Profª. Ma Etiane Cristine de Oliveira

Introdução e justificativa ou

Apresentação: olhando para a relação paterna

Debruçar-me sobre as questões referentes à paternidade e à violência falam do meu

percurso de graduação. Academicamente, tive uma trajetória nos estudos de gênero e

violência. Primeiramente, no ano de 2009, o ingresso na Iniciação Científica, a qual tinha

como objetivo compreender como é ser-masculino na convivência de abrigamento, ao mesmo

tempo em que cursei a disciplina Psicologia e Gênero. Os estudos de gênero circundaram,

inicialmente, acerca de masculinidade e em seguida paternidade.

Neste segundo momento passei a pesquisar, junto ao grupo de iniciação científica,

como pais adolescentes em privação de liberdade dão sentido à paternidade. Nesta pesquisa,

em específico, passei a me voltar mais detidamente às paternidades possíveis de serem

vividas.

Esta pesquisa possui outra interface além da paternidade, a violência. Mais

especificamente a violência de gênero. Enquanto aluno do curso de psicologia tive um

percurso na escuta de pessoas violentadas/violadas/anuladas ou autores de algum tipo de

violência. Desde o inicio de meus estágios – básico e específico – percorri lugares os quais a

clientela atendida esteve envolvida em situações de violência. Assim, transitei entre mulheres

usuárias de drogas, idosos e idosas em situação de abrigamento, homens reclusos em razão de

alguma infração, homens autores de violência de gênero e sexista e, no Centro de Referencia

Especializado de Assistência Social (CREAS), o qual trabalha especificamente com violação

de direitos.

Além disso, passei a olhar para a violência de gênero devido a meu ingresso no projeto

de extensão universitária intitulado: Projeto de acolhimento e acompanhamento psicossocial

às mulheres vítimas de violência doméstica e sexista e de grupos reflexivos para os autores de

violência, o qual tem foco na intervenção psicossocial com mulheres e homens em situação de

violência sexista e de gênero, viabilizado pelo Laboratório de Práticas Psicológicas e

Organizações Sociais (LAPOS) da Faculdade do Vale do Ipojuca, da cidade de

Caruaru/Pernambuco.

No momento de realizar minha pesquisa para o trabalho de conclusão de curso me

disponibilizei a unir dois temas já presentes em minhas histórias, a paternidade e a autoria de

violência. Desejei compreender como é a vivência da paternidade para homens autores de

violência, visto que, em muitos momentos ao me deparar com o senso comum, usualmente,

escutei que estes homens por terem violado suas companheiras, consequentemente, não

poderiam ter contato com seus/suas filhos/as.

Diante de minha questão, tive como objetivo geral compreender a experiência da

paternidade para homens autores de violência intrafamiliar. Como objetivos específicos,

apresentei: discutir a temática da paternidade atrelada às questões de gênero; problematizar

teoricamente a violência intrafamiliar e de gênero; interpretar narrativas dos homens pais

autores de violência de gênero e sexista e articular sentidos possíveis para a paternidade de

homens pais autores de violência de gênero e sexista, a partir de conhecimentos anteriormente

construídos.

A relevância social de tal pesquisa se mostra pelo fato de a relação entre o homem e a

violência ser culturalmente construída e mostra-se como vértice na violência intrafamiliar,

todavia, a paternidade é mostrada como possível via de reflexão e ressignificação desta

realidade; como também contribuir para a elaboração de programas, projetos e políticas as

quais enfocam o homem. Pessoalmente, esta pesquisa se tornou relevante por me possibilitar

ter acesso e compreensão de uma experiência singular, mas que, me levou a reflexão

particular sobre a temática.

Cientificamente, olhar para a experiência de homens pais autores de violência

intrafamiliar é uma abordagem nova. No percurso da construção de meu Trabalho de

Conclusão de Curso foram acessadas as plataformas do Scielo, Google Acadêmico, Biblioteca

Virtual da Saúde, bem como, artigos, periódicos e livros. O material sobre violência de gênero

e paternidade se fez frequente, todavia, se fizeram escassos trabalhos sobre a paternidade de

homens autores de violência intrafamiliar. Em razão disso, no meu título destaco que eu “VI”

a paternidades desses homens.

Problema e Objeto ou

Visões Socioculturais: compreendendo as masculinidades e paternidades

Anteriormente apresentei como se deu o percurso e a escolha dos temas para a

produção deste trabalho. Neste momento viso mostrar como estes temas se tornaram problema

de pesquisa. Para realizar tal tarefa creio que o percurso mais interessante é partir da violência

contra a mulher, passando pelas masculinidades e então chegar às paternidades.

Focando o olhar na violência contra a mulher, dados da Organização Mundial da

Saúde (OMS, 2002) apontam que mundialmente entre 10 e 60% das mulheres sofrem algum

tipo de violência perpetrada na convivência intrafamiliar. Tais dados apontam que a violência

intrafamiliar é caso de saúde pública.

Comumente vê-se a violência pelo prisma dos papeis de agressor e vítima. Esta

perspectiva coloca a violência equivalente a agressividade, conseguinte, natural do homem.

Acosta, Andrade Filho e Bronz (2004, p.17) ao falarem sobre agressividade expõe que esta é:

[...] uma força biopsicológica, sempre acompanhada de significados, que usamos para satisfazer aspectos vitais (fome, por exemplo), não para controlar ou submeter alguém, o que normalmente acontece nas relações marcadas pela violência.

Olhando desse modo, pode-se inferir que a violência difere da agressividade. A

violência passa a ser olhada como um fenômeno relacional, ou seja, que se dá entre os

envolvidos. Granja (2008) aponta a importância de se compreender o fenômeno da violência

enquanto relacional e para, além disso, destaca a necessidade de cuidar-se do homem, da

mulher e do contexto social. Nas palavras da autora “é preciso sim cuidar de cada um dos

vértices dessa relação triangular, que envolve homens, mulheres e um meio sócio-cultural

pulsante” (GRANJA, 2008, p. 33).

Em minha pesquisa tratei sobre o fenômeno da violência, vendo especificamente a

violência de gênero e a violência intrafamiliar. A violência intrafamiliar foi compreendida

como violência de qualquer natureza – física, sexual, psicológica, privação ou negligência

(OMS, 2002) – no contexto familiar. Castro et al. (2010) aponta que esta modalidade de

violência pode acontecer entre parceiros íntimos, contra crianças e/ou adolescentes e contra

idosos.

Aqui se faz relevante apontar como foi compreendida a diferenciação entre gênero e

sexo. Strey (2007) afirma que sexo refere-se aos atributos fisiológicos e biológicos que

designam homens e mulheres, enquanto isso, “gênero depende de como a sociedade vê a

relação que transforma um macho em um homem e uma fêmea em uma mulher” (STREY,

2007, p. 183).

A violência de gênero tem como pilar o ideário de que existe pessoas

(majoritariamente homens) que possuem o papel/dever/autorização de punir aqueles os quais

saem do esperado (CASTRO et al., 2010). Saffioti (2001, p. 115) aponta que a violência de

gênero tem como pressuposto a concepção de que homens, no exercício de suas

masculinidades, “detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas,

recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes

apresenta como desvio”.

Pode-se notar que a violência intrafamiliar se dá apenas nas relações familiares,

enquanto, a violência de gênero é toda e qualquer violência cometida em razão de

expectativas sociais não cumpridas em relação ao ser-masculino e ser-feminino.

Segundo Machado (2004) a violência contra a mulher aparece como parte do contrato

conjugal, pois, refere-se a um ato corretivo/disciplinar. Segundo a autora:

[Os homens] Alegam que as mulheres não obedecem ou não fizeram o que deviam ter feito em função aos cuidados com os filhos [...]. A violência é sempre disciplinar. Eles não se interpelam sobre por que agiram desta ou daquela forma. Sua interpelação é apenas e somente sobre seus excessos: descontrole, bebida ou o eu não sei o que me deu. O descontrole, o ficar descontrolado não constituem o ato violento. É a sua função disciplinar que o constitui, cabendo à fraqueza apenas os ‘excessos’” (MACHADO, 2004, p. 53, grifos e aspas da autora).

A academia tem se voltado, cada vez mais, para estudos acerca da violência contra a

mulher, contudo, a escuta dos homens autores de violência ainda é precária (ROSA et al.,

2008; TONELI et al., 2010). A relevância da escuta dos homens autores de violência se

mostra ao compreender a violência como um fenômeno relacional (GRANJA, 2008) e que

todos os componentes fazem parte do enfrentamento de tal fenômeno (ACOSTA; ANDRADE

FILHO; BRONZ, 2004; ROSA et al., 2008).

A respeito da precariedade citada acima, trago as ideias de Santos, Coelho e Silva

(2007) sobre a realidade dos autores de violência. Segundo as autoras:

É preciso questionar as formas de atendimento correcional-repressivo destinada aos/as autores/as de violência, nas quais, muitas vezes, alimentam a inclusão precária através da ruptura dos vínculos sociais e da promoção da vida através de rituais de mortificação (SANTOS; COELHO; SILVA, 2007, p. 159).

Refletindo sobre as afirmações acima, mais especificamente sobre as formas de

atendimento dirigidas aos homens autores de violência, considero importante ressaltar que o

cuidado para com este público está previsto na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006). Em seu

Artigo 30 está disposto que cabe ao Juiz, Ministério Público e à Defensoria Pública

“desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, preven¬ção e outras medidas,

voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos

adolescentes” (BRASIL, 2006, p. 18-19). Nesse sentido, vê-se que na Lei de enfrentamento a

violência contra a mulher, o homem é colocado como mais um segmento presente no ciclo da

violência e que precisa ser cuidado.

Por concordar com Nolasco (1993) que as qualificações de “homem”, “masculino” e

“pai” remetem ao modo de inserção do sujeito na sociedade e, que a paternidade se mostra

uma via possível de se olhar e cuidar das masculinidades, passo agora a discorrer sobre o ser

masculino, para então abrir as cortinas para a paternidade.

Welzer-Lang (2004), ao falar sobre a historicidade dos estudos sobre homens, diz que

é necessário lembrar que os estudos sobre eles, os homens, são uma questão recente. O autor

remonta a hegemonia dos estudos feministas, ou seja, por muito tempo apenas o feminino, o

ser-mulher foi estudado e questionado.

Somente em 1971, Nicole-Claude Mathieu propõe tornar o masculino uma categoria

de estudo, assim como as mulheres. De acordo com a autora:

Uma vez que nas sociedades as duas categorias de sexo cobrem a totalidade do campo social, parece lógico que qualquer especificidade de uma se defina apenas em sua relação com a especificidade da outra, e que uma e outra não possam ser estudadas isoladamente, pelo menos antes de terem sido

totalmente conceituadas como elementos de um mesmo sistema estrutural (MATHIEU, 1991, p.9. grifos da autora apud WELZER-LANG, 2004, p. 108)

Apesar dessa consideração, os homens ficaram alheios aos estudos sociológicos por

um longo tempo, tempo esse em que a mulher era observada em suas condições de vida e

relações de opressão. Todavia, é inexato afirmar que os homens não foram olhados nas

produções científicas ou não foram categoria de pesquisa. Estudos ocorreram, em menos

escala, sobre a identidade masculina, por homens heterossexuais fora das ciências sociais e

por homens gays à margem das ciências sociais acadêmicas (WELZER-LANG, 2004).

Refletindo sobre esta demora na produção acadêmica sobre as masculinidades, me

remeto a Machado (2004) quando ela afirma que o masculino, bem como o feminino,

enquanto categorias foram construídas sob um solo social e cultural de longa duração, sendo

assim, questionar – ou mesmo olhar – estas construções torna-se tarefa difícil.

Lyra et al. (2008) aponta que acreditava-se que trabalhar com homens era

extremamente complicado, em razão de homens serem muito agressivos e pouco abertos à

suas questões. Contudo, mesmo se configurando árduo trabalho, academicamente vêm-se

construindo uma forte base teórica sobre as masculinidades. Muito se tem estudado e

produzido visando uma desconstrução do modelo hegemônico de ser homem, principalmente

por que percebeu-se que este modelo pré-estabelecido tem afetado negativamente a vida dos

homens (BRASIL, 2009).

Carvalho et al. (2009) assinalam, no que se refere ao exercício das masculinidades e

feminilidades, que na atualidade estamos vivenciando uma abertura de possibilidades em

razão dos efeitos das mudanças socioculturais. Fiz apontamentos sobre dois aspectos

importantes referentes as masculinidades: a violência e as paternidades.

Sobre a relação entre as masculinidades e a violência é importante apontar que o

modelo machista postula a superioridade masculina, contudo, desde a infância destitui o

masculino de seus sentimentos e o atravessa pela violência (GIFFEN, 1994; GRANJA, 2008;

NOLASCO, 1993; SOUZA, 2005).

Dados de mortalidade e morbidade do Brasil apontam que em relação às mulheres,

homens morrem até 10.1 vezes mais (SOUZA, 2005). Interessante ressaltar que as causas das

mortes de homens, em sua maioria, estão associadas a locais públicos, envolvendo violência,

arma de fogo e acidentes automobilísticos.

Souza (2005) ao olhar para estes dados reflete sobre o simbolismo permeado pela

conjuntura das mortes e o mundo masculino. Sobre as armas e os acidentes envolvendo carros

a autora reflete:

[...] estão diretamente ligadas aos dois grandes símbolos de masculinidade no mundo atual – as armas e os carros – e exercem uma forte atração sobre os jovens. Os carros simbolizam poder de locomoção, velocidade, liberdade e status social, que são signos de sucesso e de sedução. As armas têm o poder de submeter o outro a seus desejos e interesses, o poder de vida ou morte. Esses objetos são introduzidos desde cedo na vida do menino, na forma de brinquedos, e passam a fazer parte do universo masculino com todos os simbolismos que possuem no contexto capitalista ocidental contemporâneo (SOUZA, 2005, p. 65, grifo da autora).

Ressalto o olhar da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem quanto

ao encontro da violência e das masculinidades:

A socialização é em grande parte responsável pela tendência ao envolvimento em episódios agressivos e de violência por parte dos homens, sendo a masculinidade associada à agressividade, bem como à invulnerabilidade e conseqüente exposição a riscos variados, como o uso abusivo de álcool e outras drogas ilícitas, e o acesso a armas de fogo. A violência, desde que percebida como uma forma social de poder, advém estratégia de empoderamento masculino, mas com ônus para os homens autores de violência, que se vulnerabilizam na adoção de práticas que decorrem em graves danos à saúde física, psíquica e social para si próprios e para os outros (BRASIL, 2009, p. 13).

Ainda sobre o entrelace entre as masculinidades e a autoria de violência, Muszkat

(1998) em seu trabalho objetivou mostrar a necessidade de conhecer como homens autores de

violência se comportam ao se depararem com questões referentes à saúde reprodutiva e à

paternidade. Ela concluiu que “os homens que utilizam a violência contra a mulher como uma

forma de resolução de conflito estão buscando reassegurar-se de sua virilidade, recuperar

auto-estima e o controle sobre a relação” (MUSZKAT, 1998, p. 232).

Contudo, em minhas buscas por referenciais teóricos me deparei com a realidade de

que o modo de ser pai de homens autores de violência tem aparecido como tema transversal

em trabalhos sobre homens autores de violência, como nos trabalhos de Cabral (1999), Deek

et al. (2009), Lima, Büchele e Climaco (2008) e Rosa et al. (2008), por vezes, indo de

encontro ao que Muszkat (1998) afirma, de que a violência refere-se a algo particular do

homem, seja sua virilidade, seja sua auto-estima, ou ainda, o seu controle na relação.

O estudo de Rosa et al. (2008) apresenta a fala de homens justificando a violência as

esposas, por eles se preocuparem delas não cuidarem bem dos filhos, apontando então que as

proposições de pai e homem estão atreladas ao fenômeno da violência intrafamiliar.

Cabral (1999) constatou que 41% dos homens autores de violência física também são

violentos com seus filhos. Esta realidade para a autora faz com que o ciclo da violência se

fortifique. Este estudo é coerente com o de Kaufman (1999, apud LIMA; BUCHELE;

CLIMACO, 2008), no qual o autor buscou tentar compreender a violência de homens sobre

mulheres. Em sua teorização diz: “o fato de muitos homens crescerem observando atos de

violência realizados por outros homens – muitas vezes seus pais – pode caracterizar tais

situações como uma norma a ser seguida” (KAUFMAN, 1999, apud LIMA; BUCHELE;

CLIMACO, 2008, p.76, grifo nosso). Por este viés, mesmo quando não são vítimas da

violência física, os filhos/as assistem e convivem com a violência, fato o qual, de acordo com

o autor, fortalece o ciclo da violência.

Acosta e Barker (2003) tendo a mesma constatação de Kaufman (1999, apud LIMA;

BUCHELE; CLIMACO, 2008) faz a ressalva de que:

[...] é evidente que nem todos os meninos que testemunharam e/ou foram vítimas de violência doméstica usarão de violência contra suas parceiras. Porém, o fato dos homens serem socializados em contextos em que a violência é banalizada e considerada como algo ‘normal’ aumenta a probabilidade do uso de violência em suas relações íntimas (ACOSTA; BARKER, 2003, p. 5, aspas do autor).

Considero importante destacar que no levantamento bibliográfico para o projeto do

Trabalho de Conclusão de Curso não encontrei propostas de políticas públicas que se

voltassem para a paternidade de homens autores de violência. Realizei a busca nos sites do

Ministério da Saúde, Ministério da Educação e Ministério do Desenvolvimento Social,

contudo, destaco o engajamento de homens para o fim da violência contra mulheres na

Campanha do Laço Branco . Esta se mostra como “uma campanha mundial de engajamento

dos homens pelo fim da violência contra a mulher e que é coordenada no Brasil pela Rede de

Homens pela Equidade de Gênero (RHEG)” (NASCIMENTO; SEGUNDO; BARKER, 2009,

p. 14).

Nascimento, Segundo e Barker (2009, p.30) ao realizarem mapeamento sobre como o

homem está inserido nas políticas públicas, visando à equidade de gênero, fazem

recomendações, das quais, aponto duas importantes para este trabalho: 1) “é de fundamental

importância que os homens sejam vistos como aliados e considerados como atores chaves

nesses esforços”, por considerarem o homem como vértice de cuidado na relação da

violência; e 2) “Criação de mecanismos de apoio para a paternidade, incluindo

reconhecimento do direito de casais do mesmo sexo adotarem e/ou terem filhos biológicos”

por considerar o exercício da paternidade como possível meio de cuidado às questões de

gênero.

Diante da constatação de que as paternidades se mostram como uma forma possível de

cuidado com as masculidades, passo agora a refletir sobre como o ser-masculino atravessa e é

atravessado pelas paternidades.

Juritsch (1970, p. 8) inicia sua obra afirmando: “A paternidade é uma forma de ser

homem [...]”, ele se refere, ao que denominou de, “a fundamentação da paternidade”. O autor

elenca diversos modos como a antropologia já olhou para a origem paternidade.

Inicio meu diálogo com Juritsch (1970) pela consideração dele de que a paternidade se

inicia, no homem, com o que ele chama de “fundação ontológica”. Segundo o autor o pai

participa de modo muito vago na gestação de seus filhos, contudo, ele é responsável pela

origem de um novo ser, de uma nova vida. A partir daí o homem já pode/deve sentir-se como

paternando uma nova existência, mesmo sem carregá-lo em seu ventre, seria então o

“acalentar o filho que quero ter” colocado por Toquinho e Vinícius de Morais?

O autor supracitado coloca, ainda, que a paternidade é também uma adoção. Segundo

as leituras do autor esta adoção “implica a aceitação e a vontade de fazer do filho um ser

humano total” (JURITSCH, 1970, p. 87). Ele complementa dizendo que a paternidade é um

exercício social, estando orientada para o futuro, pois, o pai seria um laço de união

intergeracional.

Outro apontamento de Juritsch (1970, p. 87) é sobre a paternidade para além da

consanguinidade. De acordo com o autor a paternidade também pode ser vista como uma

relação espiritual. Em suas palavras, a paternidade é: “[...] uma pura relação inacessível aos

sentidos, percebida apenas unicamente pelo espírito”. Ao debruçar-se mais sobre estas

inferências o autor expõe que a consanguinidade remete a uma origem biológica, contudo este

nascimento em nada difere de outros mamíferos. Segundo o seu olhar, a paternidade está

fundada não no sangue, mas sim, na tarefa de “edificar a personalidade sócio-cultural” dos

filhos.

Pensando sobre esta “edificação” me remeto aos pais entrevistados por Freitas et al.

(2009). Os pais ao falarem sobre o exercício da paternidade, se colocaram como aqueles os

quais deveriam, na infância de seus filhos, ensinar a como ser forte e não demonstrar

fraquezas.

Esse modo de ser pai fala de uma construção histórica. Neste ponto, remonto à idade

média, isso em razão de que é neste período que surge o sentimento materno. Segundo Àries

(1981) é na idade média que a afetividade surge efetivamente no seio familiar. Contudo,

Machado (2004) e Lyra et al. (2008) apontam que neste mesmo período o sentimento paterno

foi pouco desenvolvido. Em razão deste pouco desenvolvimento a paternidade foi colocada e

cristalizada no lugar do provimento, do controle e da correção dos filhos; e mais, foi neste

período, também, que o princípio da honra foi colocado ao masculino como parte de seu ser,

como afirma Machado (2004, p. 53, grifo e aspas da autora):

A paternidade é referenciada e constitutiva da idéia de honra: ela parece reforçar e consolidar o valor da função de provedor, fazendo paulatinamente “nascer” o sentimento de responsabilidade. Um grande silêncio permanece sobre a paternidade enquanto sentimento na relação com os filhos. Este silêncio está inscrito na redução da paternidade ao valor do provimento e ao poder de controle que dele deriva.

Faz-se importante apontar que nos últimos anos, talvez visando quebrar o silêncio

apontado por Machado (2004), as pesquisas sobre paternidade têm acontecido com maior

frequência.

Freitas et al. (2009) apontam que a paternidade tornou-se foco de pesquisa em razão

de transformações sociais, favorecidas pelo movimento feminista. Segundo as autoras as

transformações decorridas do feminismo fizeram com que a paternidade passasse a ser vista

em seu contexto social, facilitando o declínio do patriarcado e colocando a temática às vistas

da ciência.

Valente (2011) realizou levantamento de dissertações e teses sobre paternidade no

portal da CAPES entre 1987 e 2009. Em seu levantamento notou que a paternidade surge

efetivamente como questão na década de 1990. Entre 1991 e 2001 temas como os sentidos da

paternidade e as crises nos modelos hegemônicos foram predominantes. Da década seguinte –

2002 a 2009 – as paternidades tornaram-se foco de pesquisa das mais diversas áreas do

conhecimento. Questões transversais à paternidade começaram a ser olhados como a mídia, o

discurso jurídico e a inseminação artificial.

Além do avanço acadêmico, Silva e Piccinini (2007) apontam que a sociedade em seu

progresso fez com que a família nuclear burguesa e seus protótipos de pai e mãe deixassem de

ser viáveis. Segundo a autora e o autor, ao falarem do papel do pai:

[...] essa caracterização do pai como essencialmente provedor do sustento econômico, desempenhando um papel reduzido ou indireto sobre a criação dos seus filhos, não mais corresponde à realidade das famílias em grande parte das sociedades ocidentais (SILVA; PICCININI, 2007, p. 562).

A realidade social requisitou dos homens e mulheres novas atuações, incluindo, os

modos de ser pai e ser mãe. Aqui, me remeto a Oliveira (2010) em sua pesquisa sobre a

representação social da paternidade no contexto da pobreza, situação na qual o exercício do

provimento é dificultado. Na citada pesquisa, o ser pai é definido, principalmente, pelo: amor,

cuidado, educação, obrigação e responsabilidade. Nas palavras da autora:

[A] representação social sobre paternidade para este grupo de pais está fundamentado em um modelo de paternidade que enfatiza o exercício paterno através dos cuidados, do desenvolvimento moral, educacional e emocional dos filhos. O que caracteriza a presença do modelo moderno e da perspectiva emergente de paternidade nas concepções de pai das famílias pobres (OLIVEIRA, 2010, p. 49-50).

Interessante como as constatações de Oliveira (2010) vão de encontro com as de

Freitas et al. (2009). No estudo das autoras, do ano de 2009, a paternidade está fortemente

arraigada no provimento dos filhos e na responsabilidade que é ter filhos. Já no estudo de

Oliveira (2010) a afetividade aparece como um dos norteadores principais da paternidade.

Ainda me remetendo aos dois estudos supracitados, eles parecem-me anunciar que a

paternidade é um fenômeno social que pode ser olhado de vários lugares. O estudo de Freitas

et al. (2009), de um lado, se deu com homens pais no ano de 2003, que residiam com os filhos

e a companheira, caracterizando uma família nuclear. De outro lado, o estudo de Oliveira

(2010) teve como participantes homens pais pobres, com baixa escolaridade, e que

vivenciavam a paternidade em situação de ruptura conjugal.

De modo algum estou afirmando que a afetividade está ligada à pobreza, ou que, o

fato de a família ser nuclear faz com que a paternidade seja uma vivência norteada pelo

patriarcado. Olhando para estas realidades, percebo que as pesquisas acima apontam que a

paternidade é um fenômeno múltiplo e que tanto se mostra, quanto pode ser olhado, de

diversos lugares.

Passo agora a olhar a paternidade situada em um contexto contemporâneo no qual a

afetividade é colocada como possível modo de vivência.

Freitas, Coelho e Silva (2007) buscaram o sentido de ser pai para homens em uma

perspectiva de gênero. Sua pesquisa traz a fala de homens sobre o momento em que

começaram a se sentir pais. Este momento foi colocado: a partir da gestação, no nascimento e

bem após o nascimento.

As autoras apontam que o sentimento de ser pai passando a existir no e após o

nascimento é uma reafirmação do modelo patriarcal, no qual, a paternidade remete a uma

concretude, a um ver para crer/ser (FREITAS; COELHO; SILVA, 2007).

Debruçando-me sobre um olhar afetivo da paternidade, trago os apontamentos feitos

acerca daqueles pais, do estudo anteriormente referenciado, os quais passaram a se sentir

como tal desde a notícia da gravidez. As autoras expõem que este envolvimento é positivo,

pois, aproxima pai-mãe-filho. A pesquisa revelou que o sentido dado à paternidade, neste

contexto, é o da satisfação, bem-estar e afeto pela parceira. Revela ainda que a relação pai-

filho na gravidez anuncia um melhor sentido a ser percorrido na vinculação pai-filho fora do

útero.

Pensando sobre novas possibilidades de ser pai trago Vannuchi (2011), o qual nos

conta sua própria experiência de ser pai na atualidade. Sua narrativa inicia com a notícia da

gravidez: “[...] Pai dá um baita medo. Enche a gente de orgulho – ‘Fui eu que fiz’ – mas, ao

mesmo tempo, traz um monte de preocupações. Será uma criança saudável? O dinheiro será

suficiente? Vou saber educar?” (VANNUCHI, 2011, p.115, aspas do autor).

Olhando para essa história me lembro da “Fundação Ontológica” ressaltada por

Juritsch (1970), me parece que Vannuchi (2011) desvela a paternidade se iniciando já na

gestação, com a preocupação com a saúde, com a criação, com a educação, mas também, que

afeta o homem pai de modo que ele se percebe sentindo sentidos que ele nunca imaginara

como chorar ao ouvir o batimento cardíaco de sua filha. Parece-me que a paternidade,

atravessada pela afetividade vem sendo, cada vez mais, vista e vivenciada nas relações

contemporâneas.

No que se refere a esta realidade contemporânea da paternidade, vejo que os vínculos

afetivos são de fato sua marca principal. Sobre este momento Vannuchi (2011, p. 118) diz:

Quase toda noite, converso por longos minutos com o Daniel [filho em gestação]. Descrevo as frutas que a Aline [esposa] anda comendo, explico o contexto histórico em que foram feitas as canções que ouvimos juntos, mostro a ele a beleza da lua. Chamo isso de criar vínculo – tanto com Daniel quanto com sua mãe e com a ideia da paternidade.

Após discorrer sobre as paternidades, me deparo com uma realidade permeada pela

afetividade e que encontra-se em desbravamento. Cada vivência paterna, na

contemporaneidade parece ser atravessada por um turbilhão de emoções e sentimentos.

Procedimentos ou

Vi (Entre)Vistas a Paternidade de Homens Autores de Violência

A presente pesquisa foi guiada de modo qualitativo, numa perspectiva fenomenológica

existencial tendo como objetivo compreender a experiência de ser pai para homens pais

autores de violência. O método qualitativo foi compreendido pelo olhar de Minayo (2007,

p.21) “a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas

ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado”.

No percurso da pesquisa estive apoiado pelo olhar fenomenológico existencial. Feijoo

(1991) ao falar do entrelaçamento entre a psicologia e a fenomenologia afirma:

A psicologia fenomenológica visa a descrever com rigor, e não deduzir ou induzir; mostrar e não demonstrar, explicitar as estruturas em que a experiência se verifica e não expor a lógica da estrutura; por fim deixar transparecer na descrição da experiência suas estruturas e não deduzir o aparente por aquilo que não se mostra (FEIJOO, 1991, p.33).

Considerei que o melhor modo para encontrar este sentido era ter comigo os

depoimentos daqueles que se encontram nesta situação ou como diz Santos (2005, p.91), “um

dizer no fazer situado”. Para tal fiz uso da narrativa de Walter Benjamin (1985) para ter

acesso ao que os homens pais autores de violência de gênero e sexista pensam e sentem sobre

a paternidade. A narrativa aqui foi vista como

[...] uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em-si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retira-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1985, p.205, aspas do autor).

Benjamin (1985) me fez ver que a narrativa dos sujeitos da pesquisa fala de

sentimentos próprios a eles, por ser a mostração das suas experiências. Como o autor coloca,

não foi buscado o “puro-em-si” da paternidade, mas sim, como eles atravessam e são

atravessados pela paternidade. Cada narrativa que será apresentada a seguir traz “a marca do

narrador” de modo que remete a realidade pesquisada em sua complexidade, considerando o

sentido dado e tomado pelos narradores ao/no fenômeno.

A “entrevista clínica de pesquisa” de Lévy (2001) foi a modalidade de

intervenção/investigação escolhida para colher a narrativa dos sujeitos da pesquisa,

considerando que:

A situação de entrevista clínica, baseada em uma escuta compreensiva de caráter não diretivo, foi concebida, precisamente, para favorecer, no entrevistado o trabalho de ‘elaboração de seu pensamento subjetivo’, do qual se espera saberes pertinentes; não é porque se declara que este trabalho não tem lugar que ele não se produz e não engaja a responsabilidade do entrevistador (LÉVY, 2001, p. 91, aspas do autor).

A escolha desta modalidade se fez consonante com as considerações sobre narrativa,

uma vez que a esta tem a “marca do narrador” (BENJAMIN, 1985), bem como, o caráter não

diretivo da entrevista clínica de pesquisa favorece que as mesmas sejam impressas. Há ainda o

fato de que esta modalidade leva em consideração “saberes pertinentes” (LÉVY, 2001) do

entrevistado/narrador, ou seja, mais uma vez a modalidade favorece que o

entrevistado/narrador adentre em sua experiência e vá além da objetividade do “puro-em-si”

(BENJAMIN, 1985).

A pesquisa teve como sujeitos participantes três homens pais autores de violência

intrafamiliar, os quais foram contatados por alunos/as extencionistas que participam do

Projeto de acolhimento e acompanhamento psicossocial às mulheres vítimas de violência

doméstica e sexista e de grupos reflexivos para os autores de violência – viabilizado pelo

Laboratório de Práticas Psicológicas e Organizações Sociais da FAVIP (LAPOS) – o qual tem

foco na intervenção psicossocial com mulheres, com homens em situação de violência sexista

e de gênero e com policiais. Através do referido projeto, os/as extencionistas realizam

atendimento a homens autores de violência contra a mulher, na CASA FAVIP (Centro de

Atendimento Social), através de grupo reflexivo. Cabe ressaltar que o grupo reflexivo é uma

modalidade de trabalho a qual visa uma “reflexão responsabilizante”, nesta lógica o autor de

violência é cuidado sem psicologismos, sem ser patologizado e sem ser criminalizado.

Caracteriza-se, ainda, como:

[...] uma oportunidade para que os homens pudessem se comprometer em construir com suas parceiras, presentes e futuras, relações mais cooperativas e solidárias, a partir do reconhecimento da violência praticada (ACOSTA; ANDRADE FILHO; BRONZ, 2004, p. 9, grifo nosso).

Após a expressão de interesse desses homens em participarem da pesquisa, me

encontrei, pessoalmente, com eles para agendar as entrevistas as quais aconteceram com data,

horário e local definidos com os sujeitos da pesquisa, considerando a disponibilidade dos

mesmos. Ressalto que, pela pesquisa não ter o caráter quantitativo, nem visar generalizações,

a quantidade de sujeitos não foi pré-determinada, uma vez que o relevante é serem homens

pais autores de violência intrafamiliar. Desse modo a quantidade dependeu da disposição dos

sujeitos, que foram convidados, a participar.

No momento da colheita das narrativas minha questão – Como é ser pai na situação de

violência intrafamiliar? – foi transformada em questão provocadora: Como é para você ser pai

no contexto da violência intrafamiliar?

Após a colheita das narrativas o procedimento técnico para compreensão de sentido foi

o mesmo que o observado em Santos (2005) e Costa (2005) obedecendo à seguinte ordem: a)

transcrição – momento no qual transcreverei o áudio das entrevistas, tal qual como foram

ditos; b) literalização – olhando para as narrativas transcritas começo a textualizá-las,

facilitando a compreensão; c) autenticação – refere-se à devolutiva das narrativas literalizadas

para os sujeitos narradores, para que eles possam validar o dito e o escrito; d) análise dos

depoimentos – momento no qual me encontro com as narrativas objetivando questionar e

compreender os fenômenos desvelados.

No momento de análise das entrevistas estive respaldado pela “Analítica do Sentido”

de Critelli (2007). Este modo de analisar está fundamentado nas compreensões de Martin

Heidegger e Hannah Arendt, e propõe que ao procurarmos o sentido, busquemos diferentes

articulações metodológicas “sempre desenvolvidas num acordo com a questão e o fenômeno

que provocarem o querer saber a seu respeito” (CRITELLI, 2007, p. 144). O que significa

dizer que, todo e qualquer conhecimento é válido no momento da análise, desde que,

provoque o querer saber, ou seja, provoque no pesquisador uma compreensão do fenômeno.

Vale salientar que, para fazer a análise, e encontrar nas entrevistas, o(s) sentido(s) de

ser pai na situação de violência intrafamiliar, segui os “movimentos de realização” propostos

por Critelli (2007) e, aqui, apresentados nas palavras de Santos (2005, p. 92-93, grifos da

autora):

a) Desvelamento – modo como sou afetada, enquanto pesquisadora, pelos depoimentos das sujeitos/narradoras (o momento da afetabilidade, ou do sentido sentido). b) Revelação – vem do impacto que o desvelamento do fenômeno provoca. No entanto, aqui, a questão já está no nível de revelação porque já estou, como pesquisadora, na busca de um sentido (o momento da compreensibilidade, pelo qual o sentido sentido se transforma em significado sentido). c) Testemunho – é a literalização (dizer a partir das palavras das sujeitos/narradoras). Neste momento, dou à mostra o que me foi revelado; isto é, a partir do depoimento, estou dando o testemunho do que se revelou (o momento da comunicabilidade, pelo qual ocorre a expressão do significado sentido). d) Veracização– é o início da minha dissertação. Nesse momento, dou o meu depoimento acerca desses passos anteriores, articulando-o com os conhecimentos prévios encontrados durante essa produção. Propriamente posso dizer que é o momento da mostração da minha compreensão (mostração argumentativa na minha pesquisa) ou, simplesmente, o início da mostração do sentido. e) Autenticação – é o momento que, por fim, levarei a minha pesquisa a público, autenticando-a.

A forma de análise colocada por Critelli (2007) se fez importante em razão de autora

frisar em sua obra a irrealidade da verdade absoluta, sendo assim, quando busquei

compreender a experiência da paternidade para homens autores de violência intrafamiliar, já

estava cônscio da importância de olhar com abertura para a possibilidade de me deparar com a

pluralidade de sentidos sentidos e tomados na vivência desta experiência.

Diante do exposto acima, posso afirmar que uma pesquisa a qual se firma na narrativa,

pesquisa interventiva e na análise do sentido, em momento algum preza pela neutralidade,

mas sim, pela implicação entre pesquisador e sujeitos da pesquisa.

Importante informar que todos os nomes aqui expressos são fictícios visando

resguardar a identidade dos sujeitos narradores, a saber, Thiago, Carlos e Felipe.

Resultados e Discussão ou

Articulando Sentidos Possíveis para a Paternidade de Homens Autores de Violência de

Gênero e Sexista

Embora a pesquisa seja centrada em paternidades, quando busco a compreensão do

fenômeno tenho de estar aberto às questões que o atravessam. Nesta pesquisa, temáticas

importantes perpassaram as narrativas sobre as paternidades de homens autores de violência,

dando-me assim, meios para obter uma compreensão mais ampla do fenômeno pesquisado; a

exemplo, o fenômeno do uso/abuso de álcool se relacionando com a autoria de violência. É

possível ver essa intersecção nas seguintes narrativas:

Carlos: “E uma... a bebida fica perto também! Porque quando a pessoa bebe... se transforma em outra pessoa! Então pronto! O causo que me trouxe aqui foi esse... nós estávamos bebendo... ela disse umas coisas... que não eram certas... então... se eu estivesse consciente... se não tivesse bebido nada... talvez eu tivesse levado menos problemas!” Felipe: “Meu caso é a mesma coisa! O negócio da bebida está no meio! A mulher começou a soltar aquelas... eu não vou dizer o que... mas ai eu dei uns dois empurrões só!... e ela foi para a delegacia!” Thiago: “Tinha bebido sim!”

As narrativas me levam a compreender que nas experiências, dos sujeitos narradores,

o álcool, de algum modo, fez passagem na história da autoria de violência, seja pela

presentificação, como Carlos e Felipe revelam, seja pelo simples assumir que tinha bebido,

como fez Thiago.

O enlace entre a autoria de violência contra a mulher e o uso/abuso de álcool já foi

percebido na literatura. Rosa et al. (2008) em seu estudo realizou grupos focais com homens

autores de violência contra a mulher e constatou que a bebida é colocada como motivação

para a agressão quando as mulheres requisitam que os homens parem de beber.

Outro fenômeno que claramente atravessa as narrativas de Carlos e Felipe é o modo

como eles vêem a violência cometida:

Felipe: “mas ai eu dei uns dois empurrões só!” Carlos: “depois dessa Maria da Penha qualquer coisinha quer levar o problema e a policia quer se envolver!” Felipe: “Te dei dois empurrões e você teve de ir lá! Você foi!”

Nos depoimentos se faz presente uma desqualificação da violência praticada. Há a

compreensão de que a violência contra a mulher é “qualquer coisinha” e de que “dois

empurrões só!” não se configuram como violência. As narrativas demonstram a indignação

dos sujeitos narradores por terem sido denunciados por “tão pouco”.

Apresentei anteriormente a concepção de que homens estão autorizados a violentar

suas mulheres. Enquanto pesquisador vejo que as narrativas apresentam a mim uma realidade,

a saber, a mostração de que estes ideais ainda não estão mortos.

Mostra-se como compreensão possível, que para estes homens autores de violência os

atos cometidos não teriam tamanha gravidade. Deek et al. (2009, p. 252) afirmam que “os

homens, de maneira geral, tendem a relatar uma periodicidade menor dos comportamentos

violentos quando comparados às mulheres, e alguns não admitem atos de violência”. Diante

desta constatação reflito que a minimização e/ou negação dos atos violentos embasa-se

fortemente numa compreensão machista, na qual o homem possui a liberação para corrigir

comportamentos inadequados femininos (MACHADO, 2004).

A autoria de violência foi atravessada nas narrativas pelo modo como os sujeitos

narradores dão sentido à Lei Maria da Penha:

Carlos: “depois dessa Maria da Penha qualquer coisinha quer levar o problema e a policia quer se envolver!” Felipe: “ai inventaram esse negocio de Maria da Penha... ai as mulheres agora querem crescer demais... e ai... num tem como!” Carlos: “Se prender... é porque você fez errado!... mas depois desse negócio de Maria da Penha... prejudicou muito cidadão também!” Carlos: “Se ela gostasse de mim... ela tinha pensado na vida... duas... ou três vezes... e no que ia fazer ou dizer antes de complicar o camarada!”

A Lei Maria da Penha aparece a Carlos e Felipe como um dispositivo que atrapalha a

vida do homem autor de violência, visto que, causa problemas, prejudica o cidadão e permite

às mulheres uma sobreposição aos homens.

Onde está à compreensão de que mulher também é cidadã? De que a mulher tem sua

vida inviabilizada pela violência? Me parece que o fato de estarem sendo investigados é visto

como absurdo para os sujeitos narradores. É como se, a mulher pudesse ser violada, e o fato

delas terem um dispositivo jurídico em sua defesa, automaticamente, diminuísse o homem.

Aqui me lembro da campanha do Laço Branco, a qual é um movimento mundial pelo

engajamento masculino pelo fim da violência contra a mulher (NASCIMENTO; SEGUNDO;

BARKER, 2009). Parece-me então, que na cidade de Caruaru, ou mesmo, em Pernambuco, se

faz necessário um maior engajamento social e político nesse sentido.

Chama minha atenção, também, que a “malfeitoria” da Lei Maria da Penha, embora

seja sentida por Carlos e Felipe, é remetida a terceiros, é o “camarada” e o “cidadão” que

sofre com Lei e não eles, os quais estão sendo penalizados pela Lei.

Em vista dessa impessoalidade trago Rodrigues (2006) quando diz de que esse

movimento é o de-cair, ou seja, tornar impessoal uma vivência. Este modo de ser

impossibilita ao sujeito ver as possibilidades de ser, refletindo sobre a autoria de violência,

este movimento dificulta que os sujeitos se dêem conta de si na situação de violência.

Thiago mostra o dar-se conta da autoria de violência ao narrar sobre o momento da

violência e o atual:

Thiago: “Ouvir os outros ajuda... a refletir... e ver que a pessoa errou tanto! Porque não adianta a pessoa chegar e dizer... ‘não!... minha mulher errou!’... mas... para ela ter errado... a pessoa errou também!”

O depoimento de Thiago revela a possibilidade de transformação a partir da

participação nos grupos reflexivos com autores de violência. Diante dessa narrativa vejo a

possibilidade, de fato, de engajar homens no enfrentamento à violência contra a mulher.

Afirmo isso aliando o seu depoimento acima com a proposta dos grupos reflexivos que é:

[...] uma oportunidade para que os homens pudessem se comprometer em construir com suas parceiras, presentes e futuras, relações mais cooperativas e solidárias, a partir do reconhecimento da violência praticada (ACOSTA; ANDRADE FILHO; BRONZ, 2004, p. 9).

Agora, me detendo à paternidade dos homens autores de violência narradores, algumas

leituras são possíveis. Inicio minha compreensão da questão da pesquisa através do

alinhamento entre paternidade e a responsabilidade pelo provimento dos filhos:

Carlos: “Eu tenho que ter responsabilidade! Eu sei que ele come... então pronto! Eu sei que todo mês eu tenho que dar...” Thiago: “Falou de filho... eu sempre faço de tudo para chegar com as coisas em casa...”

Como apontei anteriormente neste trabalho, várias pesquisas (FREITAS et al., 2009;

LYRA et al., 2008; MACHADO, 2004; NOLASCO, 1993) apontam a ligação entre

paternidade e provimento; esse arranjo remete há uma paternidade clássica, caracterizada pelo

provimento material e afastamento afetivo.

Todavia, como num jogo de luz e sombra, os sujeitos narradores por vezes sombreiam

o provimento para iluminar a afetividade, expressando assim uma quebra do paradigma:

Thiago: “procuro saber como é que está andando na escola!” Felipe: “Porque pai sempre gosta de ficar com os filhos! Ai pronto... amor de pai tem que dar para os meninos! Tem que ser assim... para frente!” Carlos: “O meu mesmo é assim... o meu gosta... vamos supor... de “painho leva na pracinha”... eu levo na pracinha! Dou uma volta com ele...” Felipe: “É... tem que cuidar deles! Eu faço almoço... É eu cozinho!... Faço arroz... feijão... dou comer a eles... dou café a noite! A mulher chega uma oito e meia... quando ela chega já estão todos deitadinhos... tomados banho... tomados café!”

A paternidade dos sujeitos narradores aparece para além do sentido do provimento. O

caminho percorrido, na paternidade, por Felipe, Carlos e Thiago, os permite vivenciar a

preocupação com a educação, a demonstração de afeto, o acompanhar à pracinha, o cuidado

com a alimentação.

Este modo de vivenciar a paternidade é conceituado como paternidade participativa,

sendo esta, “aquela que subentende o cuidado e o envolvimento constante com o cotidiano

dos filhos – nos domínios da alimentação, higiene, lazer e educação” (SUTTER; BUCHER-

MALUSCHKE, 2008, p. 75).

Desse modo vê-se que a paternidade aqui narrada se faz vivida através da coexistência

do pai provedor e do pai participativo, ou seja, embora a noção de provimento ainda esteja

fortemente arraigada, a noção de participação afetiva na vida dos filhos já se presentifica.

Outro ponto percebido é que o sentido da paternidade toma caminhos distintos diante

da conjugalidade. Há, nas narrativas, uma diferenciação entre a paternidade daqueles que

mantiveram a relação conjugal e aquele o qual vivencia a separação.

Felipe e Thiago mantiveram a relação marital com suas companheiras após a

denúncia, Carlos não. Oliveira (2010) em sua pesquisa percebeu que a existência do vínculo

conjugal possibilita ao homem a vivência afetiva da paternidade de modo mais próximo.

Felipe e Thiago narram momentos de possíveis trocas afetivas decorrentes de morar

junto a seus filhos:

Thiago: “Uma de minhas filhas... só dorme comigo... depois é que eu a tiro e coloco na cama dela!” Felipe: “Coloca um desenho... um DVD... fica tudo quietinho! Eu digo... ‘olhe... fique quietinho... assistindo direitinho!’! Quando um começa a criticar o outro... eu digo... ‘eu vou desligar e colocar de castigo!’. Thiago: “Ela não pode ouvir a zoada da moto chegando em casa... que ela já está na área... ‘lá vem meu pai’... e ai vem me abraçar... pára de brincar e diz... ‘eu vou para casa ficar com meu pai’!”

Thiago e Felipe realizam a mostração, via narrativa, de que quando pai e filho/a

convivem, o leque de possibilidades, quanto aos modos de se estabelecer relação, aumentam.

O dormir junto, o ver DVD com o pai e irmãos, o saber que o pai vai chegar (ou está

chegando) possibilita a esses homens a chance de poderem se relacionar de modo mais

próximo a seus filhos.

Quanto a Carlos, no momento da entrevista, surge a paternidade na ruptura conjugal.

Oliveira (2010) aponta que a vivência paterna, na separação de corpos entre marido e mulher,

é dificultada principalmente pela distância entre pai e filho. Essa realidade fica clara a mim

quando Carlos narra a relação com seu filho muito ligada aos poucos momentos em que estão

juntos, momentos estes marcados pela troca de presentes e pela correção de comportamentos

julgados como errados:

Carlos: “O meu mesmo é assim... o meu gosta... vamos supor... de ‘painho leva na pracinha’... eu levo na pracinha! Dou uma volta com ele... dou dinheiro... por que menino gosta de dinheiro... então eu sempre dou dinheiro a ele! Compro um presente alguma coisa! Por que assim... é uma influência!” Carlos: “eu sempre digo que ele tem que obedecer ela! ‘Se ela arenga é por que você fez errado! Eu disse a ela que se pegar você na rua... perturbando ou fazendo alguma coisa... dá uma pisinha... dá um banho e coloca para dormir!’! Pronto... ai ele normalizou e não me queixou mais!”

Desde já, informo que este estudo não tem caráter comparativo. Contudo, olhando

para Felipe e Thiago, e agora para Carlos, se clarifica que o distanciamento, na experiência de

Carlos causado pela ruptura conjugal, é um entrave nas possibilidades de poder ser pai. Nas

narrativas de Carlos os momentos junto a seu filho são preenchidos pelo caráter disciplinador

do pai ou pelo presentear.

Ressalto, novamente, o caráter não comparativo da pesquisa. Mas, diante de Felipe,

Thiago e Carlos, fica nítido que este último é privado de momentos tão importantes e que

podem ser carregados por afeto, pelo fato de está fisicamente distante de seu filho.

Apesar de se relacionar, quantitativamente, menos vezes com seu filho, Carlos atribui

à relação filial o sentido de indissolubilidade do vínculo entre pai e filho; e Felipe corrobora:

Carlos: “O filho... ele é para sempre... ele nunca deixa de ser filho! Mulher... amizade... isso tudo é hoje... e se acaba amanhã... mas filho é para sempre! Sempre tem de ter o cuidado! No que o cara puder ajudar... sempre tem que estar na sombra olhando! Não pode é ficar separado! Não pode é ter um filho e deixar para lá! Não é assim!” Felipe: “É... o filho não!” Carlos: “Eu tenho que ter responsabilidade! Eu sei que ele come... então pronto! Eu sei que todo mês eu tenho que dar... já para não ser chamado! Porque se eu passar um mês sem dar alguma coisa... claro que eu vou ser chamado! Então eu tenho que cumprir com meu dever! E é o que eu disse para você... ‘o filho é para sempre’!” Felipe: “O filho da pessoa!” Carlos: “É aquilo que eu falei para você... ‘o filho é para sempre’! Agora... mulher... amizade... qualquer coisa vai e acaba... o filho não!!!”

Quando falo do sentido de indissolubilidade do vínculo pai-filho, falo de algo da

ordem sentimental. Inicialmente quando me deparei com a fala “O filho é para sempre!”

pensei que Carlos falava de uma dívida financeira para sempre. Todavia, agora, é muito claro

que na verdade Carlos fala de um sentimento que não acaba. Que sentimento é este, este

pesquisador não se propõe a conjecturar.

Clara, a mim, é a compreensão de que Carlos e Felipe narram de um vínculo tão forte,

mas tão forte, entre pai e filho, que nem mesmo a violência ou ruptura conjugal foi capaz de

romper. O/a filho/a, me parece, é uma pessoa que apesar de tudo é “O filho da pessoa!”.

Lembro agora de Juritsch (1970, p. 87) quando ele fala que a paternidade é uma

“obrigação criadora e na responsabilidade pela vida do filho. [...] implica a aceitação e a

vontade de fazer do filho um ser humano total”.

Muszkat (1998, p.224) em sua pesquisa afirmou que a paternidade para homens

autores de violência aparecia através do descaso, nas palavras da autora: “Em modo geral, a

paternidade parece inteiramente alheia a esses homens”. Contudo, perante Carlos, Felipe e

Thiago, meu olhar é para outra direção. Não ao alheio, mas sim, para o vínculo que continua

independente da violência.

As narrativas de Carlos, confirmadas por Felipe, me anunciam que a paternidade é

uma relação que não acaba. Esta relação é permeada pela obrigação. Obrigação, não somente

com o provimento, mas também, com o afeto e o desejo de tornar o filho um ser humano.

Acrescento mais, independente do que este ser humano se tornar, o afeto para com ele

continuará a se presentificar:

Carlos: “O filho... ele pode ser o que for! Pode ser ladrão... matador... o que for... mas é o filho!” Felipe: “O filho da pessoa!”

Thiago revela, ainda, a religiosidade ligada a mudanças de comportamento, incluindo

a vivência da paternidade:

Thiago: “Pronto! Toda sexta-feira quando eu largava do serviço... já ia beber! Vinha aquela ansiedade... aquela vontade... e hoje já não tenho mais! Não tenho mais vontade de beber... estou indo para a igreja... mudou tudo! Está tudo tão bom... que eu nem sei te explicar!” Thiago: “Hoje eu fui com ela na igreja... louvei com ela! Mesmo que a mãe não vá... vamos nós dois na moto! Ela é muito apegada a mim!”

Em minha pesquisa bibliográfica em plataformas de pesquisa (Scielo e Google

Acadêmico) evidenciaram que pouco se tem pesquisado a paternidade em sua ligação com a

religiosidade. Todavia, vejo que a religiosidade aparece na experiência de Thiago como

propiciadora de momentos afetivos com sua filha.

Conclusão ou

Revisitando a questão

Ao revisitar às narrativas, na busca dos sentidos à paternidade para homens de

violência, vejo que para os sujeitos narradores a paternidade percorre caminhos, os quais têm

mais de um sentido.

A paternidade, na autoria de violência intrafamiliar, transita entre concepções

arraigadas na cultura, como o provimento financeiro, a prática da ordem e da disciplina; bem

como novas relações, vividas no cotidiano, no contato direto com seus/suas filhos/as,

pautadas na afetividade. Vejo que como num jogo de luz e sombra, os sujeitos narradores por

vezes sombreiam o provimento para iluminar a afetividade, expressando assim uma quebra do

paradigma.

Essas novas relações paternas são um lançar-se. Lançar-se às possibilidades. Projetar-

se ao estar junto, vendo DVD, indo à pracinha, louvando, preparando a comida,

aconselhando; abrir-se à possibilidade de vivenciar de outro modo e lugar a paternidade.

A paternidade dos sujeitos narradores aparece para além do sentido do provimento. O

caminho percorrido, nas paternidades, por Felipe, Carlos e Thiago, os permite vivenciar a

preocupação com a educação, a demonstração de afeto, o acompanhar à pracinha, o cuidado

com a alimentação.

Ser pai e autor de violência intrafamiliar é ser pai na possibilidade de vivenciar o não

contato diário. Felipe e Thiago mantiveram a relação marital com suas companheiras após a

denúncia, Carlos não. Oliveira (2010) em sua pesquisa percebeu que a existência do vínculo

conjugal possibilita ao homem a vivência afetiva da paternidade de modo mais próximo.

Desde já, ressalto que este estudo não tem caráter comparativo. Contudo, olhando para

Felipe e Thiago, e agora para Carlos, se clarifica que o distanciamento, na experiência de

Carlos causado pela ruptura conjugal, é um entrave nas possibilidades de poder ser pai. Nas

narrativas de Carlos os momentos junto a seu filho são preenchidos pelo caráter disciplinador

do pai ou pelo presentear.

Reafirmo, novamente, o caráter não comparativo da pesquisa. Mas, diante de Felipe,

Thiago e Carlos, fica nítido que este último é privado de momentos tão importantes e que

podem ser carregados por afeto, pelo fato de estar fisicamente distante de seu filho.

Ser pai na autoria de violência se mostrou, também, pela via de viver/sentir na pele o

entrave de só ver o filho para dar dinheiro, argumentar rapidamente sobre o porquê de pai e

filho não viverem juntos, mas, ainda assim conceder à relação pai-filho um caráter

indissolúvel.

Quando falo do sentido de indissolubilidade do vínculo pai-filho, falo de algo da

ordem sentimental. Inicialmente quando me deparei com a fala “O filho é para sempre!”

pensei que Carlos falava de uma dívida financeira para sempre. Todavia, agora, é muito claro

que na verdade Carlos fala de um sentimento que não acaba. Que sentimento é este, este

pesquisador não se propõe a conjecturar.

Clara, a mim, é a compreensão de que Carlos e Felipe narram de um vínculo tão forte,

mas tão forte, entre pai e filho, que nem mesmo a violência ou ruptura conjugal foi capaz de

romper.

Afetado com tudo que vi e vivi, revisito minha questão provocadora, vislumbrando

outra questão: Como filhos de casais em situação de violência intrafamiliar dão sentido à

paternidade?

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A pesquisa aqui descrita foi vivida por mim, autor/pesquisador, como um grande

desafio. Desde o desenvolvimento do tema e o surgimento da questão de pesquisa abriu-se a

provocação de pesquisar algo de ordem afetiva, a paternidade.

A provocativa, de âmbito pessoal, permeou todo o percurso da construção e vivência

do trabalho de conclusão de curso. Ao mesmo tempo, o trilhar do trabalho (somado as

orientações, ao trabalho pessoal, ao convívio com a temática, ao estar junto com os amigos)

possibilitou que eu tivesse acesso à compreensão de uma experiência singular, mas que, muito

me fez refletir.

Ao me debruçar sobre uma temática, que é também de ordem pessoal, me permiti

vivenciar algo que a pesquisa numa perspectiva fenomenológica existencial propõe: a

afetação. Por vezes a afetação me fez estagnar, mas também foi o que me proporcionou

analisar de forma afetiva e afetada as narrativas.

As narrativas e entrevistas falam também do desenrolar das atividades e das

provocações encontradas. Como entrevistar homens autores violência? Como acessar essa

narrativa? O que perguntar? Como perguntar?

No momento da banca de avaliação tive o feedback de que um aspecto positivo da

minha pesquisa foi ter lançado uma pergunta clara – Como é ser pai na situação de violência

intrafamiliar? – ao mesmo tempo em que remetia a temática que pesquisava, não era uma

pergunta invasiva e possibilitava aos sujeitos narradores falarem sobre o que atravessava a

paternidade no contexto pesquisado.

Olhando hoje para a pesquisa, acredito que o maior desafio (o qual considero vencido)

foi propor e realizar um modo de fazer ciência que não visa neutralidade, mas sim, preza pela

implicação entre pesquisador e sujeitos da pesquisa; e pela afetação do pesquisador. Observo

que esta pesquisa é a evidencia que existem distintos modos de fazer ciência.