A Expropriação Da Saúde Ivan Illich

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A Expropriação Da Saúde Ivan Illich

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  • IVAN ILLICH

    AEXPROPRIAO

    DA SADE

    NEMESIS DA MEDICINA

    Traduo deJOS KOSINSKI DE CAVALCANTI

    3 edio

    EDITORA

    NOVAFRONTEIRA

  • Ttulo original em francs:

    NEMESIS MDICALE L'expropriation de la sant

    (c) Ivan Illich, 1975

    Capa:Rolf Gunther Braun

    Reviso:Clara Recht Diament

    Direitos adquiridos somente para o Brasil pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Baro de Itambi, 28 BotafogoZC-01 Tel.: 266-7474Endereo Telegrfico: NEOFRONTRio de Janeiro RJ

  • NDICEPREAMBULO...............................................................................5INTRODUO.............................................................................6PRIMEIRA PARTE IATROGNESE CLNICA ......................................8

    CAPTULO I EFICCIA TCNICA DO ATO MDICO ........................8Uma histria duvidosa ......................................................... 12Lamentvel realidade .......................................................... 18Nova epidemia resistente medicina..................................... 23

    SEGUNDA PARTE IATROGNESE SOCIAL ..................................... 31CAPTULO IIMSCARA SANITRIA DE UMA SOCIEDADE MRBIDA ................ 31

    Medicalizao do oramento ................................................. 31Invaso farmacutica .......................................................... 38Controle social pelo diagnstico ............................................ 43Manuteno pelo mago preventivo ........................................ 47Incorporao numa liturgia macabra ..................................... 51Investimento teraputico do meio ......................................... 56

    CAPTULO III AS DUAS DIMENSOES DA CONTRAPRODUTIVIDADEINSTITUCIONAL .................................................................... 62CAPTULO IV CINCO REMDIOS POLITICOS ADMINISTRADOSINUTILMENTE........................................................................ 77

    Drogados agrupam-se em associaes de consumidores .......... 80O legislador se esfora para controlar os fornecedores............. 85Automedicao ilusria da burocracia mdica ......................... 90Separao da medicina ortodoxa e do Estado ......................... 93Capitulao do mdico diante do politcnico ........................... 96

    TERCEIRA PARTE IATROGENESE ESTRUTURAL ........................... 100CAPTULO V COLONIZAO MDICA...................................... 100CAPTULO VI ALIENAO DA DOR ......................................... 104CAPITULO VII A DOENA HETERONOMICA.............................. 119CAPITULO VIII A MORTE ESCAMOTEADA ................................ 132

    A dana dos mortos .......................................................... 133A dana macabra .............................................................. 135A morte burguesa ............................................................. 143A morte clnica ................................................................. 147A morte sob teraputica intensiva ....................................... 152

    CAPTULO IX NEMESIS: MATERIALIZAO DO PESADELO ........ 158

  • PREAMBULO

    Neste ensaio eu encaro a empresa mdica como paradigma parailustrar a instituio industrial. A medicalizao perniciosa da sade apenas um dos aspectos de um fenmeno generalizado: a paralisia daproduo dos valores referentes ao uso por parte do homem eresultante do congestionamento de mercadorias produzidas para ele.A avaliao da empresa mdica uma tarefa poltica. Exige do no-mdico um esforo de pesquisa pessoal fora de qualquer tutelaprofissional: e do mdico a redescoberta de uma "medicina geral". Oconjunto de material bibliogrfico que reuni, e menciono nus notas dep de pgina, reflete meu desejo de associar o leitor a esta aventura.A participao na busca de uma alternativa concreta para o sistemaque nos oprime pressupe uma abertura imensa riqueza das opes.O debate prematuro desta ou daquela organizao nova do sistemamdico no seria mais que pura digresso.Eu teria, de boa vontade, deixado o manuscrito amadurecer por maisalgum tempo, para permitir ao texto decantar, se o estado dedescontentamento em relao medicina na Frana no me tivesseincitado a contribuir para o debate sem demora, fornecendo dados eindicaes bibliogrficas.A verso francesa, da qual feita esta traduo em portugus, foielaborada em janeiro de 1975, em Cuernavaca. Este estudo oresultado de 18 meses de pesquisa em conjunto com os participantesdo meu seminrio do CIDOC. Citarei alguns deles, ao passo que outrossero freqentemente os nicos a reconhecer seu pensamento originale mesmo seus prprios termos nas pginas que se seguem.Mais do que a qualquer outra pessoa, este livro deve sua publicao aValentina Borremans. As reunies de que surgiu foram por elasorganizadas. Foi ela quem se encarregou da documentao: foi elaainda quem pacientemente me incentivou a apurar meu julgamento.No Captulo VIII, eu no fiz seno resumir suas notas a respeito de umtrabalho sobre a expresso da morte.

    Ivan Illich

  • INTRODUO

    A empresa mdica ameaa a sade, a colonizao mdica da vidaaliena os meios de tratamento, e o seu monoplio profissional impedeque o conhecimento cientfico seja partilhado1.

    Uma estrutura social e poltica destruidora apresenta como libi opoder de encher suas vtimas com terapias que elas foram ensinadas adesejar. O consumidor de cuidados da medicina torna-se impotentepara curar-se ou curar seus semelhantes. Partidos de direita e deesquerda rivalizam em zelo nessa medicalizao da vida, e, com eles,os movimentos de libertao. A invaso da medicina no reconhecelimites. Uma sexocracia de mdicos, com a cooperao de clnicos, deprofessores e de laboratrios, laiciza e escolariza a sexualidade. E, aoortopedizar a conscincia corporal, reproduz o homem assistido atnessa rea ntima2.

    A dinmica mrbida da empresa mdica est em tempo de serreconhecida pelo grande pblico. O fechamento das faculdades demedicina durante a Revoluo Cultural chinesa representou a primeiraetapa de uma tomada de conscincia, cheia de sentido para os pasesem vias de desenvolvimento industrial; a seguinte ser nos pasesdesenvolvidos, onde a empresa mdica j contribui para o bloqueiogeral das instituies. Ela vai se tornar, inevitavelmente, nos prximosanos, plataforma privilegiada da ao poltica. Pretendo contribuir, comeste ensaio, para que essa ao no acabe resultando natransformao do mdico em tratador de pacientes para a vida inteira,assim como o professor se transformou em educador, numa empresade formao interminvel, para alunos perptuos.

    A medicalizao da vida mals por trs motivos: primeiro, ainterveno tcnica no organismo, acima de determinado nvel, retirado paciente caractersticas comumente designadas pela palavra sade;segundo, a organizao necessria para sustentar essa intervenotransforma-se em mscara sanitria de uma sociedade destrutiva, eterceiro, o aparelho biomdico do sistema industrial, ao tomar a seucargo o individuo, tira-lhe todo o poder de cidado para controlarpoliticamente tal sistema. A medicina passa a ser uma oficina de

    1 Philipe Roqueplo, Le Partage u savoir: science. culture, vulgarisation. Paris. Seuil, 1974.

    2 Dominique Wolton. Le Nouvel Ordre sexuel, Paris. Seuil, 1974. Ver tambm a critica dei. M.Domenach. Esprit, janeiro de 1975.

  • reparos e manuteno, destinada a conservar em funcionamento ohomem usado como produto no humano. Ele prprio deve solicitar oconsumo da medicina para poder continuar se fazendo explorado.

    Em trs pontos deste ensaio (com dimenses desiguais), tratodesses trs nveis de medicina maligna.

    O primeiro captulo uma introduo literatura que tem por temaa eficcia tcnica da empresa mdica: sua histria, seu presente, suasperspectivas. A ineficcia e o perigo da medicina cara so assuntosbatidos, porm devo deter-me brevemente neles para introduzir minhaargumentao, embora no sejam nem de longe o ponto central domeu objetivo.

    A segunda parte do livro consiste em trs captulos consagrados, oprimeiro, apresentao de seis sintomas do impacto malso damedicina sobre o meio (cap. II); o segundo, a uma teoria que permiteperceber o mecanismo da contraprodutividade que se manifesta emvrias de nossas grandes instituies (cap. III), e o terceiro, inutilidade das aes de uma sociedade votada ao crescimento decinco tipos de tentativas polticas que pretendem corrigir essacontraprodutividade (cap. IV).

    A terceira parte do livro trata do impacto psicolgico, sobre osindivduos, dos sinais e smbolos criados pelo ritual da medicina: afrieza realista enfraquece; a vontade de viver esmorece, e a angstiada morte torna-se insuportvel. A dor, a doena e a mortetransformam-se em estmulos produo de mercadorias e de novostipos de tabus que paralisam a experincia vivida.

    O ltimo captulo trata das fontes onricas dessa autodesregulagemda instituio mdica.

  • PRIMEIRA PARTEIATROGNESE CLNICA

    CAPTULO IEFICCIA TCNICA DO ATO MDICO

    As grandes doenas de que se sofre e de que se morre no mundoocidental passaram por profundas mudanas3. A peste e a poliomielitedesapareceram. Uma nica dose de medicamento conjura apneumonia. O DDT suprime os vetores da malria. Cada um estconvicto de conhecer algum que parece ter sobrevivido a uma doenaou a um acidente graas interveno da medicina. A indstria decuidados mdicos um dos grandes setores econmicos, de maisrpida expanso4. O aumento da produo de sade identificado coma desejada melhoria de qualidade de vida5. Quase sem excees,autores que fizeram recentemente projees do futuro das sociedadesindustriais prevem reduo de emprego nos setores primrio esecundrio e a inflao do tercirio teraputico, para em seguidainterpretarem essa transferncia como progresso social6. Odispendioso ritual da medicina alimenta o mito de sua eficcia.Qualquer ataque instituio mdica suscita angstia7. A promoo dasade pela progressiva reduo dos gastos da medicina e a sensatadesprofissionalizao dos cuidados mdicos ainda parecem idiairresponsvel ou bizarra. No entanto, a razo a impe.

    3 Marc Lalonde, Nouvelle Perspective e la sant des Canadiens, documento de trabalho bilinge (francs-ingls). Ottawa, abril de 1974. No um livro como os demais, mas um programa de pesquisa e umapelo ao debate poltico, feito pelo Ministro da Sade do Canad ao pblico. O leitor se surpreendercom o grau de acordo entre esse documento e as idias fundamentais de meu livro. E.H.Ackerknecht, Geschichte und Geographie der wichtigsten Krankheiten, Encker, 1963, histria egeografia das grandes doenas, escritas em linguagem muito simples, por um velho mestre.

    4 Brigitte Couder, Georges Rsch, Simone Sandier, "La consommation de services mdicaux continuera cotre rapidement", em Economie et Statistique, n. 37, setembro de 1972.

    5 Andr Bourguignon, "Le drame dela mdicine", em La Nef nova srie, n. 49, outubro-dezembro de1972, p. 7-20 (nmero especial intitulado Vers une An.- timdecine?).

    6 Michael Marien, World institute guide to alternative futures for health. A bibliocritique of trends,forecasts. problems, proposals, Draft, World Institute Council, Nova York, julho de 1973, 64 p..bibliografia crtica de 612 livros, artigos e relatrios de estudos, na maioria publicados nos EstadosUnidos desde 1960.

    7 Em outubro de 1974, Le Nouvel Observateur publicou, em dois nmeros consecutivos, um ensaio deMichel Bosquet, que levantava o problema da supermedicalizao iatrognica. As respostas ao ensaiose estenderam por oito semanas; a grande maioria dos crticos evitou enfrentar o problema e sedeteve obstinadamente em alguns pormenores, ou negou, por motivos politicos ou psicolgicos, alegitimidade do problema. Ver a resposta de Michel Bosquet para Schwarzenberg, em Le Nouvel 0bservateur, n. 523, 2-8 de dezembro de 1974.

  • A empresa mdica tornou-se um perigo maior para a sade,contrariamente ao mito criado pelo seu ritual:

    1. Sociedades providas de sistema mdico8 muito caro soimpotentes para aumentar a esperana de vida, salvo na faseperinatal;

    2. O conjunto dos atos mdicos9 impotente para reduzir amorbidade global;

    3. Atos mdicos e programas de ao sanitaria10 resultaram emfontes de nova doena: a iatrognica. Enfermidade, impotncia,angstia e doena provocadas pelo conjunto de cuidadosprofissionais constituem uma epidemia mais importante do quequalquer outra, e no obstante a menos reconhecida;

    4. As medidas tomadas para neutralizar a iatrognese continuaroa ter um efeito paradoxal: tornaro essa doena medicamenteincurvel ainda mais insidiosa, enquanto o pblico tolerarque a profisso que a provoca esconda-a como infecovergonhosa e se encarregue com exclusividade do seu controle.

    Este primeiro captulo destina-se aos no-mdicos; convida-os aestudar esses quatro aspectos nefastos da empresa mdica,orientando-os para a pesquisa do antdoto no plano poltico, econmicoe moral.

    Trata-se de convencer os mdicos, mas antes de tudo os seusclientes, de que, acima de determinado nvel de esforos, a soma deatos preventivos, diagnsticos e terapias que visam a doenasespecficas de uma populao, de um grupo de idade ou de indivduos,reduz necessariamente o nvel global de sade da sociedade inteira aoreduzir o que constitui justamente a sade de cada indivduo: a suaautonomia pessoal.

    Trata-se de suscitar num povo de consumidores de sade a

    8 Emprego o termo sistema mdico para designar o conjunto das atividades profissionais e administrativascujo financiamento motivado por uma razo de sade.

    9 O ato mdico aparece no vocabulrio da previdncia social e designa uma prestao profissionalcodificada no quadro de uma nomenclatura de prestao de servios que proporcionam remunerao.Na base est a introduo de um conceito financeiro, apesar de forte resistncia dos mdicoscontrrios parcelizao de sua atividade. Por extenso, tornou-se um ato que somente o mdico ououtros determinados profissionais de Sade so considerados capazes de efetuar. 0 termo ganhouconotao jurdica: ato mdico aquele reservado, pela vontade do legislador, a certos membrosautorizados das profisses sanitrias. Assim, o aborto se tornou recentemente na Frana um atomdico. E ato mdico ainda que a previdncia social no pague por ele. Nesse sentido, jurdico,continua ato mdico mesmo se for realizado por pessoa no autorizada. Ento um ato ilegal e porisso sujeito a sanes previstas pela lei. A votao da lei sobre o aborto deu uma segunda definio doato mdico, ainda mais importante: a mulher resolve se o ato deve ser executado ou no; sob certascondies, previstas pela lei, o mdico executa o ato sem ter o direito de decidir sobre suanecessidade. Neste ensaio, emprego o termo ato mdico para designar o conjunto de intervenestcnicas da empresa mdica nos indivduos doentes ou que podero adoecer.

    10 Emprego o termo atividade sanitria para designar a interveno tcnica no meio fisico ou no meiosocial que tem como objetivo especfico a sade.

  • conscincia de que apenas o leigo tem competncia e podernecessrios para reformular um sacerdcio sanitrio que impe umamedicina mrbida.

    Trata-se de demonstrar que somente a ao poltica e jurdica podedeter essa calamidade pblica contagiosa que a invaso da medicina,quer se manifeste sob a forma de dependncia pessoal quer apareacomo medicalizao da sociedade.

    A cura da medicina uma tarefa poltica e jurdica que se devefundamentar na anlise dos males sociolgicos (2.a parte) e psicolgicosproduzidos pelos tratamentos profissionais. Este primeiro captulo tempor objetivo apenas familiarizar o leitor com a avaliao tcnica do atomdico e encoraj-lo a conquistar nesse campo uma competncia queo seu mdico, ainda que seja um grande medalho, provavelmenteno tem11.

    O que pretendo apresentar nele um resumo sucinto de idias,sugestes, hipteses e explicaes de uma literatura cientfica bemvasta, que abrange cincias sociais12, histria13, biologia14,demografia15 e medicina16. uma literatura heterognea e de

    11 O leitor que desejar prosseguir pesquisas autnomas numa biblioteca mdica no necessita deintroduo s usuais. John B. Blake, Charles Koos, ed., Medical reference works 1679-1966. A selectedbibliography, Chicago, Medical Library Association, 1967, e Mary Virginie Clark, Medical referenceworks 1679-1960. A selective bibliography, suplemento 1, Medical Library Association, Chicago, 1970,so, sem qualquer possvel comparao, o que h de melhor para a literatura internacional e asreferncias dos manuais em uso de matrias auxiliares. Para orientao geral do leitor, verGenevieve Koest, "Sciences Mdicales", em L.N. Malcls, Les sources du travail bibliographique, tomoIII, cap. XII, p. 426-507, Genebra, Librairie Droz, 1958. Ver tambm Leslie Morton, A medicalbibliography. An annoted checklist of texts ilustrating the history of medicine, 1970, e Leslie Morton,ed., Use of medical literature. Information sources of research and development. Butterworth, 1974.

    12 John Powles, "On the limitations of modern medicine", em Science, Medicine and Man. vol. 1, p. 1-30,Gr-Bretanha, Pergamon Press, 1973, introduo crtica e slida literatura das cincias sociais queavalia o impacto da interveno mdica na evoluo do estado de sade (reproduzida na AntologiaCIDOC, n. A7). Rick J. Carlson, The end of medicine, a draft manuscript, to be published by Wiley,Nova York. 1975. Carlson jurista. Seu ensaio um "dossi de natureza terica mas que repousasobre bases empricas". Em suas acusaes medicina americana restringiu-se aos aspectos para osquais dispunha de provas completas e verificveis. Carlson participou de meus seminrios e me ajudoumuito a desenvolver os debates.

    13 Gordon McLachlan, Thomas McKeown, eds., Medical history and medical care: a symposium ofperspectives, Londres, Oxford University Press, 1971. pode servir de guia ao estudo histrico darelao entre a organizao mdica e o quadro de doenas.

    14 Rene Dubos, L'Homme et !'Adaptation au milieu, Paris, Payot, 1973 (traduzido do ingls). Dubos umpioneiro, tanto no tema de suas pesquisas como na forma bem documentada como transmitiu osresultados ao pblico.

    15 Population et Societ, boletim mensal de informaes demogrficas, econmicas e sociais. E umaanotao de informes, em forma sinttica, publicada pelo Institut national d'tudes dmographiques. Oboletim reproduz resultados divulgados tanto em Population et Societ como nas monografias do Institut national deIa sant et de la recherche mdicale (INSERM) consagradas a dados estatsticos sobre causas de bitos definidassegundo critrios mdicos. As informaes so escolhidas pelos mesmos demgrafos que elaboram as estatsticas demortalidade, e os comentrios refletem seu julgamento sobre o significado e a validade desses resultados.Paul Damiani, "Notes sur les principales statistiques disponibles dans le domaine sanitaire et social", em Cahiers desociologie et de dmographie mdicales, Ano 10, n. 1, janeiro-maro de 1970, p. 23-30, um apanhado depublicaes teis ao planejador.

    16 Gordon McLachlan, ed., Porto olio for health. 2. The developing programme of the DHSS in health services research.Problems and progress in medical care, published for the Nuffield Provincials Hospitals Trust by Oxford University

  • qualidade bastante desigual. Importa, porm, evidenciar apossibilidade de selecionar dentro dela um conjunto de trabalhos comincontestvel valor cientfico, independentemente das tesessubjacentes para as observaes ou anlises efetuadas. Podemosverificar, a propsito, que a literatura citada neste primeiro captulo essencialmente inglesa e norte-americana. Seria o cmulo donarcisismo profissional interpretar a ausncia de avaliaes do atomdico francs, italiano, alemo ou sovitico como ndice de suaqualidade superior. Razes sobretudo histricas, polticas e jurdicasexplicam que avaliaes no tenham sido feitas fora da Gr-Bretanhae dos Estados Unidos. Na Frana, a subordinao da pesquisa sobre asade pblica a uma ideologia teraputica triunfalista17 e a reduo damedicina ao individual e ao tecnicismo que tudo invade so reforadaspela organizao centralizada das faculdades de medicina, pela aopreventiva introduzida com a lei que protege todo ato profissional eprivado, pela estrutura de classe criada para a Ordem dos Mdicos sobo regime de Vichy, pela forma sindical dos organismos que protegemos interesses dos produtores de sade e pelo incontestvel privilgiopblico dado coalizo de interesses que ligam a medicina indstriafarmacutica18; em conseqncia, a pesquisa crtica sobre o atomdico se estanca19, entrava-se a divulgao dos conhecimentosadquiridos20, o pblico privado do direito de acesso a informaescontraditrias no campo da sade21, e a contestao das iluses

    Press, Londres, Nova York. Toronto, 1973, aborda a pesquisa atual sobre a eficcia do sistema de tratamentos naInglaterra.

    17 Jean Bernard. Grandeur et Tentations de la mdecine, Paris, BuchetChastel, 1973. Catherine eGeorges Math, La sant est-elle au-dessus des nos moyens?, Paris, Plon, 1970: bons exemplos disso.

    18 Os boletins de publicidade dos laboratrios farmacuticos na Frana tm o aspecto de uma supostaimprensa mdica. So enviados com tarifa postal reduzida porque estritamente reservados a mdicos.

    19 O oramento do Institut national de la sant et de la recherche mdicale (INSERM) comporta bem umalinha inteira epidemiologia e sade pblica. No identifiquei sequer um pesquisador em servio quetivesse como principal tarefa o impacto global dos mtodos de diagnstico e teraputicos em vigorsobre a sade pblica. preciso procurar com afinco para encontrar-se a pouca informao existente na Frana sobre aavaliao do ato mdico segundo critrios epidemiolgicos. Centre national de la recherchescientifique. "Gnie biomdical et informatique biomdicale", em Bulletin Signaltique 310 (antes de1972, includo no Bull. 320), v. A. 05 ch. 05, informao biomdica, sade pblica, preveno, examesde sade, estatstica sanitria e epidemiolgica Centre nationale de la recherche scientifique, "Eauet assainissement, pollution atmosphrique", em Bulletin Signaltique 885: comea em 1971; ttulo apartir de 1973: Nuisances. Section E. Droits des n uisances.

    20 No existe na Frana publicao anloga ao Physician Drug Manual que d informao correta sobrecontra-indicaes de medicamentos. Albert la Verne, ed.. Physicians' Drug Manual/PDM (CongressoInternacional de Farmacologia), Nova York Physicians' Drug Manual, Inc., 17 East 82nd street, N.Y.10028. C. Heusghen. P. Lechat, Les effis indsirables des mdicaments. Paris, Masson, 1973, 884p.. 365 F, o nico manual recente, mas quase no encontra compradores. O Vidal. principal manualusado pelos mdicos e farmacuticos, compe-se de anncios publicitrios redigidos pelos laboratriossobre seus medicamentos, apresentados em ordem alfabtica.

    21 Henri Pradal, Guide de les mdicaments les plus courants, Paris, Seuil, 1974, 8,50 F. Cinqenta e setelaboratrios ameaaram mover uma ao contra a venda desse livro (onze deles o fizeram) e ele foi

  • difundidas pela empresa mdica fica restrita a alguns pesquisadoresisolados22, marginais23 ou extravagantes.

    Uma histria duvidosa

    A primeira dessas iluses diz respeito histria das doenas24. Oestudo da evoluo da estrutura da morbidade fornece a prova de queela no foi mais afetada pelos mdicos no ltimo sculo25 do que pelossacerdotes em pocas precedentes. Epidemias vinham e iam: doutorese sacerdotes as conjuravam, mas nem uns nem outros podiammodificar o seu curso26. Elas no foram alteradas de maneira maisnotvel pelos rituais da clnica mdica do que pelos costumeirosexorcismos ao p dos altares religiosos27. Seria til que o debate sobreo futuro da instituio mdica comeasse pelo reconhecimento dessefato.

    Desde o comeo do sculo XVIII a criana francesa tem umaesperana de vida superior de seus pais28. A diferena de geraopara gerao se acentua mais entre 1899 e 1920. Durante esse curtoperodo e uni pouco em toda parte, cada ano acrescenta, para onascituro, o suplemento de algumas semanas de probabilidade desobrevivncia. Durante o ltimo meio sculo essa diferena se reduziu.

    retirado do comrcio duas vezes em seguida a uma ordem judicial, numa liminar de mandado desegurana.

    22 J.-P. Dupuy, J. Ferry, S. Karsenty, G. Worms, La consommation de mdicaments. Paris, CEREBE,setembro de 1971.

    23 Michle Manceau, Les Femmes e Gennevilliers, Paris, Mercure de France, 1974. Comit d'ActionSant, Hpital-silence-rpression. Paris, F. Maspero, 1968, d uma boa idia sobre o pensamentoradical tpico de 1968.

    24 Erwin Heinz Ackerknecht, Therapie von den Primitiven bis zum 20 Jh mit einem Anhang: Geschichte derDiatetik, Stuttgart, Enke Verlag, 1960, histria da terapia e da sua eficcia. Emanuel Berghoff,Entwicklungsgeschichte des Krankheitsbegriffes. In seinen Hauptzgen dargestellt. 2. erw. Aufl. Wien,Maudrich, 1947, em Wiener Beitrdge zur Geschichte der Medizin, Band 1, histria do conceito dedoena.

    25 John Powles, Health and industrialisation in Britain; the interaction of substantive and ideologicalchange, preparado para o colquio sobre Adaptabilidade do Homem Vida Urbana, I CongressoMundial sobre Ambiente Mdico e Biolgico, Paris, 1 a 5 de julho de 1974.

    26 Sobre a histria das utopias mdicas, ver Heinrich Schipperges, Utopien der Medizin: Geschichte undKritik der rztlichen Ideologia des 19. Jh, Salzburg, Otto Muller Verlag, 1966. Algumas idiasprovocadoras sobre o clericalismo mdico: "Clricalisme de la fonction mdicale? Mdecine et politique.Le sacerdote mdical. La rlation thrapeutique. Psychanalise et christianisme", em Le Semeur; emsuplemento, Le Mini-Semeur, n. 2, em Le Semeur, Ano 65, n. 5, nova srie, n. especial, 1966-1967.

    27 Ren Dubos. Le mirage de la sant, traduo do ingls, prefcio de Andr Maurois, Paris. Denoll,coleo "Essais", 1961, 256 p., utiliza essa analogia; foi ele quem lanou a idia de que o esforoindustrial para o "progresso da sade" constitui doena infecciosa da qual a profisso mdica oagente patognico.

    28 Daniel Noin, La gographie dmographique de la France, Paris, PUF, 1973. J. Vallin. La mortalit enFrance par tranches depuis 1899. Paris, PUF.

  • Para alguns povos altamente industrializados, ela desapareceu. Osjovens de hoje tm motivo para temer que no duraro tanto quantoseus ancestrais. Agora se morre ao nascer, ou pela violncia, ou peladegenerescncia. Mais da metade dos que encontram a morte antes daidade de 25 anos vtima de acidentes, desejados ou no, durante agestao ou no parto29, e mais de um quarto morre de acidentes30,agresses ou suicdios.

    Seria grave erro explicar essas mudanas nas taxas de mortalidadeglobais pelo progresso global da eficcia do ato mdico. A variaoentre a esperana de vida de sucessivas geraes aparece no AncienRegime sem que no entanto tenham ocorrido na poca progressosteraputicos notrios. Amplia-se com a revoluo pasteuriana edesaparece bem antes do surgimento recente do arsenal do mdicocontemporneo.

    Deve-se admitir ento que a soma de gratificaes que cada mdicosente quando est convicto de ter salvado um indivduo em perigo demorte no tem reflexo significativo ao nvel de anlise dos fatosdemogrficos gerais. Em outros termos, os indicadores parciais queservem apreciao da eficcia dos atos mdicos especficos no soutilizveis como indicador global31.

    As molstias infecciosas que dominaram o nascimento da eraindustrial ilustram a maneira come a medicina fez sua reputao. Atuberculose, por exemplo, atingiu o apogeu em duas geraes. EmNova York, a taxa de mortalidade era da ordem de 700 para 100.000

    29 P. Longone, "Mortalit et morbidit", em Population et Societ, boletim mensal de informaesdemogrficas, econmicas e sociais, n. 43, janeiro de 1972: em todos os pases europeus a taxa demortalidade perinatal (correspondente ao perodo que abrange desde o 6. ms da gravidez ao 6.ms depois do nascimento) superior taxa de mortalidade de todas as outras idades inferiores a 30anos.

    30 P. Longone, "Les maux de la richesse. Morts violentes et surmortalit masculine", em Population etSociet, boletim mensal de informaes demogrficas, econmicas e sociais, n. 11, fevereiro de1969; e P. Longone, "La surmortalit masculine", em Population et Societ, n. 59, junho de 1973: osacidentes automobilsticos na Frana so responsveis por 66% da mortalidade masculina e 39% damortalidade feminina para as idades compreendidas entre 15 e 34 anos; de 50% da mortalidade dosmeninos entre 5 e 14 anos, de 33% da mortalidade dos dois sexos entre 1 e 4 anos.

    31 J.-P. Dupuy, A. Letourmy. Dterminants et Colts sociaux de l'innovation en rnatire de sant, relatrioQCDE, 1974, passam em revista os diversos fatores que explicam por que um conjunto de aesmdicas tendo cada uma eficcia num indicador especfico pode ter apenas efeito muito fraco numindicador global. Um dos mais importantes a progressiva especializao da medicina. Ela faz com quecada vez sejam levadas em menor conta as interdependncias entre os indicadores especficos. Oshiperespecialistas mdicos se valem de indicadores com tais resultados que se sentem seguros deestar agindo com eficcia. H, assim, poucas probabilidades para que o efeito de tal indicador setraduza em nvel de indicador mais global da sade.E. Desanti, Mdecine sociale, Maloine 1967, 402 p.: histria da aferio da morbidade que mostra ainfluncia da qualidade da coleta da informao e da ideologia do mdico. A freqncia de uma doenanas estatsticas reflete mais a atividade mdica a que se aplica do que um estado de sade que teriasentido fora da viso dos autores sociais. Ver tambm J. N. Morris, Uses of epidemiology, 2.a ed.,Livingstone. Edimbourg, Londres, 1964: sobre a maneira como cada civilizao cria suas prpriasdoenas.

  • em 1812, e baixou para 370 por volta de 1882 quando Koch estavaainda se preparando para cultivar e colorir o primeiro bacilo. Mesmoque a tuberculose mantivesse sempre o segundo lugar entre as causasde bito, a sua taxa j havia cado para 180 quando foi aberto oprimeiro sanatrio, em 1904. Depois da Segunda Guerra Mundial,antes do emprego dos antibiticos, havia passado para 11. lugar, comtaxa de 48 para 100.00032. Clera, disenteria e tifo conheceram seumximo da mesma forma e em seguida desapareceram,independentemente da ao mdica. Quando a etiologia dessasmolstias foi compreendida e lhes foi aplicada teraputica especfica,elas j tinham perdido muito de sua atualidade33. Adicionando-lhes astaxas de mortalidade da escarlatina, da difteria, da coqueluche e davarola de 1860 a 1965, em crianas com menos de 15 anos, mostra-se que quase 90% da diminuio total da mortalidade durante esseperodo ocorreu antes da introduo dos antibiticos e da imunizaoem grande escala contra a difteria34. possvel que a explicao sedeva em parte queda de virulncia dos microrganismos e melhoriadas condies de habitao, mas ela reside sobretudo, e de maneiramuito ntida, numa maior resistncia individual, devida melhoria danutrio. Hoje, nos pases pobres, a diarria e as infeces das viasrespiratrias superiores so mais freqentes, duram mais tempo eresultam em mortalidade mais elevada quando a alimentao insuficiente, seja qual for o grau de cuidados mdicos disponveis35. bem certo que a eliminao das antigas causas de mortalidade nopode ser posta no ativo da ao profissional dos medicos36, comotambm no se pode jogar em seu passivo o alongamento de umavida que dever ser passada com o sofrimento de novas doenas.

    32 R. Dubos, J. Dubos, The white plague. Boston, Little Brown, 1952. H. Huebschmann. Psyche undTuberkulose, Stuttgart. Enke Verlag, 1952, p. 268-284: a bibliografia do autor constitui um guia para oestudo dos fatores psquicos que entram na etiologia da tuberculose e de suas determinantes sociais.

    33 Ren Dubos, L'Homme et l'Adaptation au milieu. op. cit.: mais especialmente no captulo 7, sobre aevoluo das doenas microbianas, e a bibliografia deste captulo.

    34 R. R. Porter, The contribution of the biological and medical sciences to human welfare. Presidentialaddresses of the British Association for the Advancement of Science, Swansea meeting. 1971,publicado pela Associao, 1972, 95 p.

    35 N. S. Scrimshaw, C. E. Taylor, John E. Gordon, Interactions of nutrition and infection, OrganizaoMundial de Sade (OMS), Genebra, 1968.

    36 Warren Winkelstein. Jr., "Epidemiological considerations underlying the allocation of health and diseasecare resources", em International Journal of Epidemiology. vol. 1, n. 1, Oxford University Press, 1972,p. 69-74. d a comprovao; frisa que os mdicos ingleses da metade do sculo XIX j viam no meioambiente uma das maiores determinantes do estado de sade de toda a populao; refere-sesobretudo a E. Chadwick, 1842, e L. Schattuck, 1850. International Journal of Epidemiology, OxfordUniversity Press, trimestral, vol. 1. n. 1, primavera de 1972. Ver tambm J. P. Frank, AkademischeRede vom Volkselend als der Mutter der Krankheiten (Pavia 1790). Leipzig, Barth, 1960.

  • A anlise das tendncias da morbidade37 mostra que o meio (nooque inclui o modo de vida) a primeira determinante do estado desade global de qualquer populao38. A alimentao, as condies dehabitao e de trabalho, a coeso do tecido social e os mecanismosculturais que permitem estabilizar a populao desempenham papeldecisivo na determinao do estado de sade dos adultos e da idadeem que tm probabilidade de morrer39.

    Justamente quando as antigas formas patolgicas tendem adesaparecer, com as transformaes da idade industrial, surgem novasformas de morbidade. De novo o regime alimentar que volta a serprioritrio na determinao do tipo de molstias correntes, sobretudose nele inclumos o consumo do tabaco, do lcool e do acar. Novotipo de m nutrio est em via de tomar forma de epidemia moderna,

    37 lnstitut national dela sant et dela recherche mdicale. Rapport surl'tat de Santo de la populationfranaise. Estudos particulares, 1972, contm todas as informaes necessrias que permitem a umaluno de curso primrio preparar um relatrio para a nao francesa anlogo ao Relatrio Lalonde (vernota 3). Contudo, esse excelente documento, em seu presente estado, no serve ao debate pblico.

    38 Franois Lebrun. Les Hommes et la Mort en Anjou aux XVIIe et XVIII sicles. Essai de dmographie etde psychologie historiques, Paris. Mouton, 1971, belssimo estudo que acentua a importncia dosfatores econmicos e sociolgicos para o nvel de sade. Ver tambm G. Melvyn Howe, Man,environment and disease: a medical geography of Britain through the ages, Nova Iorque. Barnes andNobles Books, 1972.

    39 F. Fagnani. Sant, consommation mdicale et environnement. Problmes Pt mthoes, Saint-Nizier-Grenoble. 12-15 de dezembro de 1972, Paris, Mouton, 1973. Encontramos justificaes. estatsticas ouno, da tese de que o meio fsico e social, nele compreendido o modo de vida, abstradas asintervenes mdicas especficas sobre grupos e em indivduos. a principal determinante damortalidade global de uma populao, em Alain Letourmy, Franois Gibert, Sant, environnement.consommations mdicales. Un modele et son estimation partir des donnes de mortalit, relatrioprincipal, Paris, CEREBE, junho de 1974. Eles mostram que as diferenas de mortalidade entredepartamentos franceses se explicam essencialmente pelas diferenas dos modos de vida,particularmente quanto ao alcoolismo e o tipo de alimentao. O consumo de cuidados tem influnciaquase nula. Em contrapartida, o nvel de consumo mdico perfeitamente explicado pela densidademdica e totalmente sensvel sua variao. O aumento de 10% da densidade mdica numdepartamento provoca baixa de somente 0,3% da mortalidade e mais um aumento de 6% dasconsultas e visitas. Ao contrrio, uma reduo de 10% do consumo de lcool baixa a mortalidade em1,8%, e uma reduo de 10% do consumo de lipdios baixa essa mesma mortalidade em 2,5%. Richard Auster, et al., "The production of health, an exploratory study", em Journal of HumanResources, 4, outono de 1969, p. 411-436: como Letourmy, sobre os Estados norte-americanos.Gibert, no caso da Frana, estuda a relao entre mortalidade de um lado e consumos mdicos e meioambiente de outro. Num dado consumo mdico e educacional, as altas rendas esto associadas fortemortalidade. A razo disso est provavelmente no modo de vida: m alimentao, falta de exerccios,tenso psicolgica, etc. L. Lebart, Recherches sur le cot de protection de la vie humaine dans ledomaine mdical, relatrio CREDOC, junho de 1970. Reuel A. Stallones. Environnement. Ecologie etEpidmiologie (resumo do texto da quarta conferncia do Ciclo de Conferncias Cientficas OPAS/OMS,Washington, 30 de setembro de 1971), mostra que existe uma forte correlao positiva entre adensidade dos mdicos e a incidncia das doenas coronarianas, enquanto essa correlao acentuadamente negativa com relao a doenas vasculares ligadas ao sistema nervoso central. Frisaque, da, nada se pode concluir sobre possvel influncia dos mdicos em umas ou outras. A morbidadee mortalidade fazem parte integrante da condio humana e so independentes dos esforos feitospara curar essa ou aquela doena especfica. Delpit-Morando, Radenac, Vilain, "Disparits rgionalesen matiere de sant", Bulletin de Statistique du ministre de la Sant et de la Scurit sociale, n. 3,1973, Jean-Paul Desaive, et al., Mdecins, climat et pidmies la.fn du XVIIle sicle, Paris,Mouton, 1973, 254 p. John Powles, Prospects for health in rich and poor countries, Staff discussiondocument, abril de 1974, 9 p. mimeograf. Lester B. Lave, Eugene P. Seskin, "Air pollution andhuman health", em Science, vol. 169, n. 3947, 21 de agosto de 1970, p. 723-733. M. J. Gardner,"Using the environment to explain and predict mortality", em J. R. Statist. Social, 136, parte 3, 1973,p. 421-440. "La mort prmature et la morbidit dues aux maladies chroniques sont en train de fairede grands ravages dans les catgories les plus jeunes de la population."

  • com taxa de crescimento particularmente rpida. Um tero dahumanidade sobrevive em nvel de subalimentao, que antes teriasido letal, enquanto mais e mais indivduos absorvem, nos alimentos,txicos e mutagnicos40.

    A ao destruidora do homem sobre o meio intensificou-separalelamente aos pretendidos progressos da medicina. A poluio danatureza pela indstria qumica ocorreu junto com a suposta crescenteeficcia dos medicamentos; a m nutrio moderna, junto com oprogresso da cincia diettica.

    A atividade de saneamento pode ser considerada a segundadeterminante do estado de sade global de uma populao, muitomenos importante, porm, que o nvel e a qualidade da alimentao eda habitao, a estabilidade cultural e as condies de trabalho jmencionadas. Nessa categoria, preciso distinguir dois tipos deinovaes surgidas no sculo XIX. H, antes de tudo, transformaesda cultura popular que, hoje, fazem parte do comportamento geral dapopulao e que por si ss podem explicar, em parte muito grande, oimpacto global das tcnicas sanitrias sobre a baixa da mortalidade. Otratamento das guas41, a fossa sptica42, o uso do sabo43 e de

    40 At agora, a fome e a m nutrio no mundo aumentaram com o desenvolvimento industrial. MarshallSahlins. Stone age economics, Chicago, Aldine-Atherton. 1972, p. 23. "(...) Um tero ou talvez ametade da humanidade vai dormir noite com fome. Na Idade da Pedra, a proporo devia ser bemmenor. Nossa era de uma fome sem precedentes. Hoje, numa poca em que o poderio tcnico maior do que nunca, a fome se tornou uma instituio." Adele Davis, Let's eat right to keep/-it, Rev.and updated ed., Nova York, Harcourt Brace, 1970, bem documentado relatrio sobre o declnio daqualidade da alimentao nos Estados Unidos com o progresso da industrializao, e as suasconseqncias sobre o estado de sade da populao americana. Ruth Mulvey Harmer. Unfit forhuman consumption, Prentice-Hall, 1971, 374 p., afirma que a Organizao Mundial-de Sade teminteresse na continuao do uso de pesticidas txicos ao lado de seus programas de sade pblica. Harrison Wellford, Sowing the wind, relatrio para o Ralph Nader's Center for Study of Responsive Lawon Food Safety e o Chemical Harvest; introduo de Ralph Nader sobre a concentrao de pesticidasnos alimentos comuns. O mau uso dos pesticidas ameaa mais o homem do campo do que oshabitantes das cidades, destri sua sade, eleva os custos de produo e a longo prazo tende a fazerbaixar a produo. A documentao sobre o perigo representado pelas micotoxinas muito menosrica. Trata-se de subprodutos de microrganismos que se desenvolvem inevitavelmente quandoalimentos so produzidos em quantidades industriais. Arturo Aldama (CIDOC, Apartado 479,Cuernavaca, Mxico) est estudando os aspectos endmicos da micotoxicose secundria. Vertambm Grald Messadi, L'Alimentation suicide. Les dangers rels et imaginaires des produitschimiques dans notre alimentation, Paris, Fayard, 1973.

    41 Guy Thuillier, "Pour une histoire rgionale de l'eau en Nivernais au XIXe sicle", em Annales, 23. ano,n. 1, janeiro-fevereiro 1968, p. 49 ff.

    42 Guy Thuillier, "Pour une histoire de I'hygine corporelle. Un exemple rgional: le Nivernais". em Revued'Histoire conomique et sociale, 46, 2, 1968, p. 232-253. Lawrence Wright. Clean and decent. Thefascinating history of the bathroom and the water closet and of sundry habits, fashions and accessoriesof the toilet. principally in Great Britain. France and America. Toronto, University. of Toronto Press,1967.

    43 Erwin H. Ackerknecht, "Hygiene en France, 1815-1848". em Bull. Hist. Md., 22, 117-155, 1948. Guy Thuillier, "Pour une histoire de la lessive au XIXe sicle", em Annales. Ano 24, n. 2, 1969, p.355-390.

  • tesouras pelas parteiras44 (esta ltima inovao foi a nica introduzidapelos mdicos) so trs procedimentos cujo impacto global certamente superior ao do conjunto das atividades sanitrias que emgeral ainda exigem a interveno do especialista. Se acrescentarmos oemprego no profissional de alguns bactericidas, inseticidas epesticidas, a ventilao dos quartos, a limpeza freqente, a guapurificada, a ao sanitria que continua domnio reservado dosprofissionais mostra efeito bastante secundrio.

    Entre as tcnicas desenvolvidas pelos mdicos e incorporadas cultura popular, deve-se dar lugar privilegiado aos mtodos delimitao da natalidade. Trata-se de tcnicas que os mdicos foramaparentemente os primeiros a utilizar na vida privada, ainda noperodo em que as associaes mdicas se opunham explicitamente aoseu emprego por parte da populao45. Se tcnicas similares, emboratalvez mais artesanais, utilizadas com sucesso vrias geraes antes,nas relaes extramaritais, no tivessem se estendido s relaesmaritais em vastas camadas sociais da Europa46, a superpopulaoteria tornado impossvel as baixas de mortalidade registradas durante osculo XVIII graas s melhorias trazidas ao regime alimentar47.

    apenas em um terceiro lugar que se deve situar o impacto do atomdico sobre a sade global. Contrariamente ao meio e s tcnicassanitrias no profissionais, os tratamentos mdicos consumidos poruma populao so uma pequena parte e jamais ligada

    44 Morton Thompson. Tu enfanteras dans la souffrance, Paris, Presses de la Cite, 1967. bom romancehistrico que tem como heri o Dr. Ignaz P. Semmelweis (1818-1865).

    45 J. A. Banks, Family planning and birth control in Victorian times, documento lido na SegundaConferncia Anual, Society for the History of Medicine, Leister Univ., 1972.

    46 J.-L. Flandrin, "Contraception, manage et relations amoureuses dans I'Occident chrtien", em Annales.Economies, Socits. Civilisations (24) 6, novem- bro-dezembro de 1969, p. 1370-1390, um esforopara retomar a pesquisa e mostra a insuficincia das idias admitidas at agora. Sob pena de heresia,a contracepo no podia ser visada seno fora do casamento. Sob pena de escndalo, as relaesilegtimas deviam ser estreis. As estatsticas demogrficas, no atual estado das pesquisas quanto aossculos XVII e XVIII na Frana, de fato, no apontam praticamente a contracepo dentro docasamento, mas sim uma taxa muito baixa de nascimentos ilegtimos. O fato novo que aparece nosculo XIX o nivelamento do comportamento dentro e fora do matrimnio. E provvel que o usoeficaz da contracepo s tenha se generalizado nas famlias camponesas pertencentes a laressuficientemente confortveis onde os riscos de mortalidade infantil diminuram. M. Leridon."Fcondit et mortalit infantile dans trois villages bavarois. Une analyse de donnes individualises duXIXe sicle", em Population. 5, 1969, p. 997-1002. Ver tambm John Thomas Noonan.Contraception et manage. Evolution ou contradiction dans la pense de I'Eglise, traduo do ingls porMarcelle Jossua (Contraception: a history of the treatment by the catholic theologians and canonists),Paris, Cerf, 1969.

    47 Para a metodologia da pesquisa sobre a histria da alimentao: Guy Thuillier. "Notes sur les sourcesde l'histoire rgionale de l'alimentation au XIXe sicle", em Annales, 23, 6, novembro-dezembro de1968, p. 1301-1319, e Guy Thuillier, "Au XIXe sicle: l'alimentation en Nivernais", em Annales, 20, 6,novembro-dezembro de 1965, p. 1163-1184. Hans J. Teuteberg, Gnter Wiegelmann, Der Wandel derNahrungsgewohnheinten unter dem Einfluss der Industrialisierung, Gdtingen, Vandenheeck & Ruprecht, 1972,trata do impacto da industrializao sobre a quantidade, qualidade e distribuio dos alimentos.Bibliografia muito boa mas mal organizada.

  • significativamente reduo do peso da morbidade ou aoprolongamento da esperana de vida48. Nem a proporo de mdicosnuma populao, nem os meios clnicos de que esta dispe, nem onmero de leitos hospitalares ocasionam mudana profunda dasestruturas globais da morbidade. As novas tcnicas de que se dispepara reconhecer e tratar condies to perniciosas como a anemia e ahipertenso, ou para corrigir as malformaes congnitas, graas aintervenes cirrgicas, redefinem a morbidade mas no a reduzem. Ofato de existirem mais mdicos onde certas molstias se tornaramraras tem pouco a ver com a capacidade destes de trat-las ou deelimin-las49. A primeira vista isso significa simplesmente que osmdicos se instalam segundo suas inclinaes mais facilmente queoutros profissionais e que tm a tendncia de se concentrarem ondeo clima sadio, a gua pura e as pessoas trabalham e podem pagarseus servios.

    Lamentvel realidade

    Um aparelho tcnico imposto, aliado a uma burocracia igualitria,criou a perigosa iluso de uma correlao natural entre a intensidadedo ato mdico e a freqncia das curas. Essa hiptese, que apesar detudo o alicerce da prtica mdica contempornea, jamais foi provadacientificamente. Muito ao contrrio, temos todo o motivo para pensarque est errada. Por exemplo, o conjunto de estudos feitos paraavaliar a eficcia do ato mdico na reduo da morbidade ou damortalidade de pacientes afetados por patologias especficas forneceuresultados surpreendentes. Quanto mais o ato exige a interveno doespecialista ou de uma infra-estrutura dispendiosa, maiores so asprobabilidades:

    1. de que a esperana de vida do paciente submetido aotratamento no ser modificada pelo ato;

    2. de que o perodo de invalidez do paciente aumentar, e

    3. de que o paciente ter necessidade de tratamentos adicionais

    48 A. Letourmy, F. Gibert, op. cit. R. Auster, et al., op. cit. Charles T. Stewart. Jr., "Allocation ofresources to health", em The Journal of Human Resources, VI, I. 1971, classifica os recursos que soconsagrados sade em despesas de tratamento, de preveno, de informao e de pesquisa. Emtodas as naes do hemisfrio ocidental, a preveno (gua potvel) e a educao sosignificativamente correlatas com a esperana de vida. No o caso das variveis que pertencem categoria tratamento.

    49 Reuel A. Stallones, op. cit. Ver tambm Organizao Mundial de Sade, "The urban and rural distribution of medicalmanpower", em World Health Organization Chronicle, 22: 100-104, n. 3, maro de 1968.

  • para ajud-lo a suportar os danos, mutilaes, angstias edores provocados pela interveno medica50.

    Pode-se dizer, de um modo geral, que o conjunto de mtodos dediagnstico e teraputicos introduzidos durante as duas ltimasgeraes cuja eficcia seja comprovadamente superior dostratamentos tradicionais constitui pequeno nmero, de baixo custo ede aplicao muito simples. No obstante, a maior parte da despesamdica destinada a diagnsticos e tratamentos cujo beneficio para opaciente nulo ou duvidoso, porque o seu efeito, em caso de sucesso, mudar a patologia, freqentemente prolongando e intensificando osofrimento51.

    Para ilustrar esse ponto, farei uma distino entre doenasinfecciosas e no-infecciosas. E impossvel contestar a eficcia dainterveno dos mdicos na cura das primeiras. Pode-se apenasindagar se o mdico ainda necessrio para a realizao dos atos quelhe correspondem52.

    A vacinao praticamente varreu a poliomielite dos pases ricos. Asvacinas, provavelmente, deram tambm alguma contribuio diminuio da coqueluche, da varola e do ttano. A quimioterapia e aantibioticoterapia desempenharam significativo papel no controle dapneumonia, da gonorria e da sfilis. Os bitos devidos pneumonia,outrora pondervel causa de morte na velhice, diminuram de 5 a 8%depois que apareceram no mercado as sulfamidas e antibiticos. Oscasos de malria, tifo, sfilis e bouba podem ser facilmente curados. Eum belo progresso, ainda que muitas vezes seja impossvel aplicar ateraputica adequada por se estar preso a obstculos tcnicos eeconmicos, negligncia e aos tabus, e sobretudo ao monopliomdico. O tratamento dessas infeces poderia tornar-se bem mais

    50 A. L. Cochrane, Effectiveness and efficiency. Random reflections on health services, The NuffieldProvincial Hospitals Trust. 1972: trabalho modelar de valor internacional no que diz respeito ao uso dainformao sobre o julgamento tcnico da eficcia do ato mdico dentro de uma crtica poltica de suaeficcia social. A conjuno de trs fatores torna muito difcil um estudo equivalente fora da Gr-Bretanha: 1) a avaliao se baseia em duas dcadas de funcionamento do National Health Service; 2)a crtica alimentada por uma tradio emprica tipicamente britnica; 3) o estilo claro, austero,brilhante e cheio de humor dificilmente traduzvel. Ver tambm, como exemplo, F. Fagnani,"Secours d'urgence. Application de la recherche oprationnelle un problme de sant publique, lessecours d'urgence", em Colloque international de recherche oprationnelle. Dublin, 1972. Ross ed.North Holland, Elsevier.

    51 Ministre de la Sant publique et de la Scurit sociale, "Les problmes de la decision en matire desant", em Economic et Sant, suplemento do Bulletin des statistiques de sant et de scurit sociale.n. 3, setembro de 1973: atualiza sobre o estgio dos debates desse tema na Frana. Para abibliografia sobre a fronteira entre a biologia, a tica e a poltica no domnio mdico. Sharmon Sollito,Robert M. Veatch, Bibliography of society, ethics and the life sciences. Hudson, Nova York, TheHastings Center, 1973.

    52 Rene Dubos, L'Hotnme et !Adaptation au milieu, op. cit. (bibliografia do captulo 7).

  • eficaz na medida em que fosse desprofissionalizado e passasse a serparte da cultura higinica popular.

    Mesmo levando-se em conta essas limitaes, certo, ao menospor ora, que o impacto dos tratamentos mdicos dessas infecesfortalece a crena popular em um progresso da medicina. Issocontinua verdadeiro mesmo que para a maior parte das outrasinfeces a medicina possa mostrar resultados semelhantes e mesmoque os sucessos observados ao nvel de casos individuais estejamlonge de se refletir nas estatsticas globais. O tratamentomedicamentoso das infeces individuais reduziu a mortalidade devida tuberculose, ao ttano, difteria e escarlatina. Mas na baixa totalda mortalidade ou da morbidade relativas a essas doenas, omedicamento moderno teve pequeno efeito, talvez nem mesmosignificativo. A malria, a leishmaniose e a doena do sono seretraram algum tempo com o ataque de produtos qumicos, mas estoagora em plena recrudescncia nos pases do Terceiro Mundo. Essareativao53 conseqncia do desenvolvimento dos transportes, dasredes de energia, da urbanizao, mas, tambm, da evoluo devetores resistentes. Da mesma forma, a freqncia crescente dasinfeces venreas se deve a novos costumes e no a tratamentosineficazes. Recrudescimentos e recidivas continuam a ser fenmenosextramdicos.

    A eficcia da interveno mdica na luta contra as doenas no-infecciosas ainda mais duvidosa. Apenas em alguns' tratamentosespecficos foi demonstrado efetivo progresso. A preveno parcial dascries dentrias pela fluorao da gua possvel, embora os efeitosfinais da absoro regular do flor sejam mal conhecidos. Maiornmero de pessoas sobrevive aos grandes traumatismos de acidentese de intervenes cirrgicas. Uma teraputica de substituio reduz, acurto prazo, os efeitos diretos do diabetes54. Os tratamentos de umtipo de cncer de pele e o da doena de Hutchison so eficazes.Faltam-nos provas claras da eficcia do tratamento de uma dzia de

    53 Charles C. Hughes, John M. Hunter, "Disease and development in Africa". em Social Science andMedicine, vol. 3, n. 4, 1970, p. 443-488, analisam a literatura sobre o recrudescimento de doenasinfecciosas que haviam desaparecido e reaparecem como conseqncia dos programas dedesenvolvimento, particularmente na Africa tropical.

    54 Universities Group Diabetes Program, "A study of the effects of hypoglycemic agents on vascularcomplications in patients with adult onset diabetes. II: Mortality results, 1970". em Diabetes, 19,suplemento 2. G. L. Knatterud, C. L. Meinert, C. R. Klimt, R. K. Osborne. D. B. Martin, "Effects ofhypoglycemic agents on vascular complications in patients with adult onset diabetes, 1971", emJournal of the American Medical Association, 217, 6, 777: nos diabticos no dependentes da insulina,a aplicao de um regime rigoroso permite taxas de sobrevida su periores s observadas nos doentestratados com as sulfamidas hipoglicemiantes e as biguanidas.

  • outros tipos de cnceres freqentes55.

    O cncer da mama a forma de cncer mais comum. A taxa desobrevida de cinco anos, no caso, aproximadamente de 50%,independente dos gastos com mdicos ou do tipo de tratamentoaplicado56. No foi demonstrado que essa taxa seja diferente noscnceres no tratados57 ou que, no conjunto, os tratamentos cominteno curativa tenham tornado o estgio terminal menos penoso.Embora os cancerologistas tendam a insistir na importncia dapreveno e do tratamento precoce desse e de vrios outros tipos decncer, os epidemiologistas so incapazes de provar que a intervenoprecoce altera a taxa de sobrevida58. A interveno precoce no cncerdo colo do tero aumenta de modo significativo mas no muitoimportante a taxa de sobrevida de cinco anos. Para obter esteresultado so necessrios vrios exames preventivos por ano,procedimento que parece inaceitvel a certas mulheres. A prevenorevela-se de qualquer modo estatisticamente intil, porque justamenteas pessoas que no vo regularmente ao consultrio so as queapresentam riscos mais elevados59. Ainda mais ntida a situao nocaso do cncer de pulmo, o mais freqente nos homens. Asacrobacias publicitrias dos cirurgies, que so qualificadasreverentemente de milagres mdicos, traduzem-se, durante essesltimos vinte anos, numa considervel multiplicidade de intervenes ede episdios diversos tendo sempre a mesma concluso: maisdespesas e mais sofrimentos novos sem qualquer efeito sobre a taxade sobrevida60. Estudo recente indica que os mdicos que descobremno prprio organismo sintomas do cncer retardam mais que outros

    55 N.E. McKinnon, "The effects of control programs on cancer mortality", em Canadian Medical AssociationJournal, 82, 25 de junho de 1960, P. 1308-1312. E. C. Easson, H. M. Russel, The curability of cancerin various sites. Londres, Pitman Medical Publishing. 1968.

    56 Breast Cancer Symposium, "Points in the practical management of breast cancer" (1969). em BreastJournal Surg., 56, 782. -- R. W. Scarff. "Prognosis in carcinoma of the breast", em Br. J. Radiol., 21,594-596, 1948.

    57 Edwin F. Lewison, "An appraisal of long term results in surgical treatment of breast cancer", em Journalof the American Medical Association, 186, 14 de dezembro de 1963, 975-978. H. J. G. Bloom, "Theinfluence of delay on the natural history and prognosis of breast cancer", em Br. J. Cancer, 19, 1965,p. 228: o prognstico depende muito mais das caractersticas do tumor que do estgio que feito odiagnstico ou do tipo de tratamento.

    58 Robert Sutherland. Cancer: the significance of delay, Londres, Butterworth and Cy., 1960, p. 196-202. Hedley Atkins, et al.. "Treatment of early breast cancer: a report after ten years of clinical trial", emBritish Medical Journal, 1972, 2, p. 423-429 e 417.

    59 F. Fagnani, Etude sur la prvention du cancer. INSERM, 1972 (a aparecer em La Chronique OMS de1975).

    60 L. M. Axtell. S. J. Cutler, M. M. Myers. ed., End results in cancer, relatrio n. 4, U. S. Department ofHealth Education and Welfare Publication, 1972 (NIH) 73-272. S. J. Cutler, H. W. Heise, "Long-termend results of treatment of cancer", em Journal of American Medical Association 72, 1971, vol. 216,n. 2. p. 293297.

  • profissionais do mesmo nvel de educao o recurso ao diagnsticoe ao tratamento profissionais: esto bem conscientes do seu valorsobretudo ritual61. Em relao s doenas cardacas congnitas e deorigem reumtica, a cirurgia e a quimioterapia no aumentaram aschances de voltar a uma vida ativa, a no ser para certas categoriasrestritas dos que sofrem dessas afeces62. O tratamento mdico dasdoenas cardiovasculares comuns63 e das doenas cardacas64 temuma eficcia global muito limitada. O tratamento intensivo do enfartodo miocrdio nos servios hospitalares especializados revelou-semenos eficaz que o tratamento a domiclio65. O tratamentomedicamentoso da hipertenso arterial eficaz nos casos que no tmorigem em algum fator mrbido pernicioso, e pode fazer muito malquando se aplica noutras condies66. A grande propagandainternacional feita no incio de 1975 para regular a presso arterial depopulaes inteiras atravs da interveno mdica pareceirresponsvel. "Quais so os efeitos do tratamento? Atualmente, no possvel responder seno relativamente morbidade a curto prazo dahipertenso severa bem tratada. No h suficientes dados disponveissobre a mortalidade ou morbidade a longo prazo, nem sobre os efeitosdo tratamento na hipertenso moderada, discreta ou lbil. (...) Noexiste qualquer critrio, antes de aparecerem complicaes, quepermita avaliar o prognstico e, conseqentemente, selecionar aspessoas suscetveis de se beneficiarem do tratamento (...) Certosefeitos secundrios incmodos de determinadas drogas soconhecidos, mas os inconvenientes a longo prazo desses tratamentosesto muito mal avaliados e, como sempre, so difceis de prever.Seguramente, eles no so negligenciveis e devem ser postos na

    61 Barbara Blackwell, "The literature of delay in seeking medical care for chronic illnesses", em Healtheducation monograph, n. 16, So Francisco, Society of Public Health Education Inc., 1973: guia parao conjunto de literatura que trata do tempo decorrido entre a apraio dos sintomas. seu diagnstico ea interveno.

    62 Ann G. Kutner, "Current status of steroid therapy in rheumatic fever", em American Heart Journal, 70,agosto de 1965. p. 147-149. The Rheumatic fever working party of the medical research council ofGreat Britain and the subcommittee of principal investigators of the American Council on rheumaticfever and congenital heart disease, American Heart Association, "Treatment of acute rheumatic feverin children: a cooperative clinical trial of ACTH, cortisone and aspirin", em British Medical Journal, 1,1955. p. 555-574.

    63 Harvey D. Cain, et al.. "Current therapy of cardiovascular disease", em Geriatrics, 18 de julho de 1963,p. 507-518. Albert N. Brest, "Treatment of coronary occlusive disease: critical review", em Diseaseof the Chest, 45, janeiro de 1964, p. 40-45.

    64 Malcolm I. Lindsay, Ralph E. Spiekerman. "Re-evaluation of therapy of acute myocardial infarction", emAmerican Heart Journal, 67, abril de 1964, p. 559564.

    65 H. G. Mather, N. G. Pearson, K. L. G. Read. et al., "Acute myocardial infarction: home and hospitaltreatment", em British Medical Journal, 3, 7 de agosto de 1971, p. 334-338.

    66 Combined Staff Clinic, "Recent advances in hypertension", em American Journal of Medicine, 39,outubro de 1965, p. 634-638.

  • balana juntamente com o beneficio previsto do tratamento. Comoaqueles efeitos parecem reduzir-se medida em que so menores osvalores tensionais, no sem razo que se deve julgar que, a partir decerto nvel tensional, a avaliao que leva em conta vantagens edesvantagens dos medicamentos pode ser nula e at negativa67." Osilncio sobre a probabilidade desse perigo, mantido pelas oficinas delanternagem humana, nova manifestao pblica da incapacidade daprofisso mdica de fazer uma profunda autocrtica, o que s podetrazer conseqncias sinistras para a sociedade.

    Nova epidemia resistente medicina

    Infelizmente, a inutilidade dos cuidados mdicos o menor dosdanos que uma empresa mdica proliferante pode infligir sociedade.O impacto negativo da empresa mdica constitui uma das epidemiasem maior expanso no nosso tempo68. A dor, as disfunes, ainvalidez e a angstia resultantes das intervenes mdicas rivalizamagora com a morbidade provocada pela circulao de veculosautomotores, o trabalho e at as guerras. Somente a m nutriomoderna causa claramente maiores males.

    O termo tcnico que qualifica a nova epidemia de doenasprovocadas pela medicina, iatrognese, composto das palavrasgregas iatros (mdico) e genesis (origem)69. Em sentido estrito, umadoena iatrognica a que no existiria se o tratamento aplicado nofosse o que as regras da profisso recomendam. Por essa definio,tem-se o direito de processar o mdico prudente que no submeteuseu paciente a um tratamento admitido pelas prticas profissionais portemer que os efeitos desse ato lhe fossem nocivos70.

    67 Ministre de la Sant publique et de Ia Scurit sociale, "Les problmes de la dcision en matire desant. II: Traitement de I'hypertension artrielle", em Economie et Sant, setembro de 1973. p. 49.

    68 P. E. Sartwell, "latrogenic disease: an epidemiological perspective", em International Journal of HealthServices, 4: 89-93, inverno de 1974.

    69 Masson, ed., Dictionnaire franais de mdicine et de biologie, 4 tornos, Paris, Masson, 1971: "Iatrogenese, a. 1. Que criado ou provocado pelo mdico. V. doena iatrognica. 2. Diz-se de um malou de uma afeco que ocorre em seguida a um ato mdico qualquer, comumente aps administraomais ou menos prolongada de um medicamento. Ling. diz-se tambm iatrogene. - Doena iatrognica(ou iatrogene) 1. Conjunto de manifestaes patolgicas hem definidas imputveis a um ato mdicoqualquer, comumente em seguida administrao mais ou menos longa de um medicamento. 2.Segundo Sir Arthur Hurst, conjunto dos sintomas objetivos semelhantes aos de uma determinadadoena, sugeridos involuntariamente pelo mdico ao doente (esta ltima acepo pouco usada)." Euemprego essa palavra com um sentido mais amplo, para designar os efeitos no desejados provocadospela empresa mdica sobre a sade. no apenas por seu impacto direto mas igualmente pelastransformaes que opera ao nvel social e ao nvel simblico.

    70 O estudo da iatrognese clnica pode ser facilitado com a consulta a certo nmero de manuais que lheforam consagrados. Neles, as doenas iatrognicas so classificadas segundo diferentes critrios: pelo

  • Em sentido mais amplo, a doena iatrognica engloba todas ascondies clnicas das quais os medicamentos, os mdicos e oshospitais so os agentes patognicos. Chamarei iatrognese clnicaessa multido de efeitos secundrios, porm diretos, da teraputica.Fao a distino da iatrognese clnica de outros danos iatrognicosque so resultados no tcnicos da interveno tcnica do medico71.

    Os medicamentos sempre foram venenos potenciais, mas seusefeitos secundrios no desejados aumentaram com a sua eficcia e aextenso de seu uso72. A doena iatrognica fazia parte outrora doensino da medicina73.

    A importncia do risco associado utilizao de medicamentosparticularmente poderosos foi, at agora, constante esistematicamente subestimada74. Nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha, de 50 a 80% dos adultos absorvem a cada 24 ou 36 horasum produto qumico prescrito por um mdico. Alguns tomammedicamento que no foi submetido a suficientes testes para provarsua inocuidade e sua eficcia; outros recebem um produto

    rgo atingido ou pelo tipo de interveno, ou por qualquer outro critrio clnico. Mais til nossapesquisa ser a distino mais jurdica entre os danos que derivam: da atividade rotineira e conformeas normas profissionais; da rotina negligente; da negligncia criminosa; do erro humano: da falha doequipamento; do tratamento herico e, enfim, do conjunto de esforos para evitar a iatrognese. -Robert H. Moser, Disease of medical progress: a study of iatrogenic disease. A contemporary analysisof illness produced by drugs and other therapeutic procedure, Foreword by Denette F. Adams,Springfield,,USA, Charles C. Thomas, 1969. - David M. Spain. The complications of modern medicalpractices, Nova York, Londres, Grune & Stratton, 1963. - H. P. Kummerle, N. Goossens, Klinik undTherapie der Nebenwirkungen, Stuttgart, Thime Verlag, 1973 (1. Aufl. 1960). - R. Heintz.Erkrankungen durch Arzneimittel Diagnostik, Klinik, Pathogenese, Therapie, Stuttgart, Thieme, 1966. -Guy Duchesnay, Le Risque thrapeutique, Paris, Doins, 1954. - P. F. d'Arcy. J. P. Griffin, latrogenicdisease, Oxford University Press. 1972. - P. Holtz, "Pharmakologie und Toxikologie.Arzneimittelschden und nebenwirkungen in der Sicht des Pharmakologen". em Karl Rotschuh,Physiologie. Der Wandel ihrer Konzepte, Probleme und Methoden vom 16. bis 20. Jahrhundert,Freiburg, Alber, 1968. - Para o erro de diagnstico em particular: Max Barger, Klinische Fehldiagnosen.Stuttgart, Thieme. 1953. - Para a negligncia mdica: C. V. Brandis, Arzt und KunstfehlervorwurfGoldmann Wissenchaftliches Taschenbuch, 1971. A diviso que proponho neste ensaio, entreiatrognese clnica, social e estrutural, no se encontra na literatura disponvel.

    71 Notar que, pelo contrrio, segundo boletim de grande vulgarizao de um laboratrio farmacutico, "adoena iatrognica quase sempre de base nervosa". - Pr. L. Israel, "La maladie iatrogene", emDocumenta Sandoz.

    72 No grego arcaico, remdio e veneno eram designados pelo mesmo nome, pharmakon, que indicava ummeio mgico. Walter Artelt, Studien zur Geschichte der Begriffe 'Heilmitte!' und 'Gift'. Urzeir - Homer -Corpus Hippocraticum, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968, 1 Aufl., Leipzig, 1937.

    73 A iatrognese clinica j era conhecida e estudada pelos rabes. Al-Razi, mdico-chefe do Hospital deBagd, viveu de 865 a 925. Interessou-se pelo estudo mdico da iatrognese, segundo Al-Nadim, emal-Fihrist, captulo VII, seo 3. Na poca de Al-Nadim, em 935, ainda eram conservadas trs obras euma carta a esse respeito: "Les erreurs des desseins des mdecins", "Sur la purge des maladesfivreux avant que le temps ne soit mar" e "Sur la raison pour laquelle les mdecins ignorants, lesgens ordinaires et les femmes des villes ont plus de succs que les hornmes de science danstraitement de certaines maladies, et les pretextes que les mdecins alleguent pour s'en excuser", efinalmente a carta que explica "por que um mdico hbil no tem o poder de curar todas as doenas,pois isso ne est no domnio do possvel". Ver tambm Erwin H. Ackerknecht, "Zur Geschichte deriatrogen Krankheiten", em Gesnerus, Vierteljahresschrift herausgegeben von der schweizerischenGesellschaft der Medizin un Naturwissenschaften (Aarau). 27: 5763, 1970.

    74 W. H. Inman. "Monitoring adverse reactions to drugs", em Gordon McLachlan, ed., Portofblio fr health.2: The developing programme of the DHSS in health services research. Londres, Oxford UniversityPress, 1973. cap. VIII, p. 6370.

  • contaminado ou com data limite de emprego ultrapassada; outroscompram uma contrafao75; outros absorvem produtos que,associados, se tornam perigosos76; outros so apenas e simplesmentevtimas de seringas mal esterilizadas77 ou de agulhas frgeis. Certosmedicamentos criam hbito, outros uma leso, outros tm aomutagnica que pode ocorrer quando entram em sinergia com o efeito,sobre o paciente, de um colorante alimentar ou de um inseticida78. Emalguns pacientes os antibiticos alteram a flora intestinal e produzemuma superinfeco que permite a proliferao e a invaso deorganismos mais resistentes no portador. Outros contribuem para odesenvolvimento de espcies bacterianas resistentes aosmedicamentos79. De 3 a 5% de todas as admisses nos hospitais dosEstados Unidos tm como principal motivo a m reao a ummedicamento. Uma vez dentro do hospital, de 18 a 30% de todos ospacientes tm uma reao patolgica induzida por substnciamedicamentosa. Nesse grupo, a aplicao do produto farmacuticodobra a durao da estada no hospital80. A literatura divulgada pelaspublicaes provenientes da indstria farmacutica ou dos burocratasa seu servio toma, cada vez mais, um tom de defesa81.

    A agresso cirrgica constituda pelas intervenes inteis82 se

    75 Margaret Kreig, Black market medicine, N. J., Prentice-Hall, 1967, 304 p.: reprter policial, relata eprova que crescente percentagem de medicamentos vendidos nas lojas americanas so contrafaescriminosas sem real atividade farmacodinmica e indiscerniveis, por seu acondicionamento eapresentao, das especialidades imitadas. Torna-se cada vez mais dificii descobrir os membros daMfia internacional que organizam esse mercado negro, e a abertura de processos judiciais contra elesest acima do poder das administraes encarregadas de aplicar a lei.

    76 Adverse Reactions Titles, A monthly bibliography of titles from aproximately 3 400 biomedical journalspublished throughtout the world, Amsterd, desde 1966. Allergy Injbrrnation Bulletin. AllergyInformation Association, 3 Powbarn P1. Weston 627, Ontrio, Canad.

    77 B. Opitz, H. Horn. "Verhtung iatrogener Infektionen bei Schutzimpfungen", em DeutschesGesundheitswesen, 27/24. 1972, 1131-1136.

    78 Para o conjunto, ver Morton Mintz, By prescription only. A report on the roles of the United States Foodand Drug Administration, the American Medical Association, pharmaceutical manufacturers and others,in connection with the irrational and massive use of prescription drugs that may be worthless, injuriousor even lethal. Boston, Houghton Mifflin, 1967, 446 p. (segunda edio, revista e adaptada,anteriormente publicada sob o titulo: The therapeutic nightmare), bem documentada exposiojornalistica sobre a prescrio iatrognica e a cobertura dada pelo governo e a Ordem dos mdicos. L. Meyler, Side effects of drugs, Williams & Wilkins, 1972: informao tcnica sobre os efeitossecundrios dos medicamentos. Irving Sax, Dangerous properties of industrial materials, NovaYork,Van Nostrand, 1968: manual de toxicologia industrial, til para identificar os perigos deenvenenamento devidos s substncias utilizadas no saneamento do meio ambiente.

    79 Harry Beatty, Robert Petersdorf, "Iatrogenic factors in infectious disease", em Annals of InternalMedicine, vol. 65, n. 4, outubro de 1966, p. 641-655. Thomas H. Weller, "Pediatric ,perceptions.The pediatrician and iatric infectious disease", em Pediatrics, vol. 51, n. 4, abril de 1973.

    80 Nicholas Wade, "Drug regulation: FDA replies to charges by economists and industry", em Science,179, 23 de fevereiro de 1973, p. 775-777.

    81 Nicholas Wade, op. cit.

    82 James C. Doyle, "Unnecessary hysteroctomies. Study of 6 248 operations in thirty-five hospital during1948", em DAMA, vol. 151, n. 5, 31 de janeiro de 1953. James C. Doyle, "Unnecessary

  • transformou num fenmeno generalizado. Seu efeito global variaconforme o pas. Depende da ideologia mdica, do receio doscirurgies de perderem o emprego e do interesse que eles tm naexperimentao83.

    Quase todos os moribundos que recorrem a novas clnicasespecializadas no tratamento das dores terminais resistentes a todaanalgesia so os grandes mutilados das intervenes hericas,estatisticamente inteis, feitas pelos especialistas. So as maioresvtimas de uma empresa mdica que protege e encoraja os mdicoscondenados por R. Leriche84, "esses que tm uma paixo chamejantepela atividade esportiva, (que) gostam mais de operar do que fazerdiagnsticos, do que avaliar as consequncias do seu ato".

    A mania de descobrir anomalias provoca uma nova epidemia, quese chama s vezes de no-doena iatrognica85. Essa no-doena semanifesta sob a forma de invalidez, excluso da vida social, angstiae, bem freqentemente, sintomas funcionais, tudo com origem nodiagnstico e tratamento prescrito. Em certos casos o diagnsticobaseou-se na ignorncia do mdico; noutros, num erro do laboratriode anlises86, ou mesmo num malentendido com o paciente. No Estadode Massachusetts (EUA), o nmero de crianas que se tornaminvlidas em seguida a um falso diagnstico de doena cardacaexcede o das que esto em tratamento efetivo de doena cardaca87.

    ovariectomies. Study based on the removal of 704 normals ovaries of 546 patients", em JAMA, vol.148, n. 13, 29 de maro de 1952, p. 1105-1111.

    83 Eugene Vayda, "A comparison of surgical rates in Canada and in England and Wales", em The NewEngland Journal of Medicine, vol. 289, n. 23, 6 de dezembro de 1973, p. 1224-1229: essacomparao entre o Canad e a Inglaterra mostra que as taxas de intervenes cirrgicas, em 1968,eram 1,8 vezes mais altas para os homens e 1.6 vezes mais elevadas para as mulheres no Canad. Osmotivos dessas diferenas podem ser os preos e a forma de pagamento, e a disponibilidade de leitoshospitalares e de cirurgies. Charles E. Lewis, "Variations in the incidence of surgery", em The NewEngland Journal of Medicine. 281 (6), 880-884, 16 de outubro de 1969, encontra nos Estados Unidosvariaes regionais de 1 a 3 ou di I a 4 nas taxas de realizao de seis tipos de operaes cirrgicasclssicas. O fator essencial que explica essas variaes revelou ser nmero de cirurgies disponveis.

    84 Rene Leriche, La Philosophie de la chirurgie, Paris, Flammarion, 1951, p. 12.

    85 Clifton Meador, "The art and science of non-disease", em The New England Journal of Medicine. 272,1965, p. 92-95: para os mdicos acostumados patologia clssica, urna expresso como no-doena estranha e incompreensvel. Esse artigo apresenta uma classificao das no-oenas assim como osessenciais princpios teraputicos que podem ter por base esse conceito. A origem das doenasiatrognicas. sem dvida, freqentemente reside tanto no tratamento das no-doenas como no dasdoenas. Mary L. Hampton, et al.. "Sickle cell ondisease: a potentially serious public healthproblem", em American Journal of Disease of Childhoo. 128, julho de 1974, p. 58-61. J. P. Keeve,"Perpetuating phantom handicaps in school age children", em Exceptional Children, abril de 1967, p.539544.

    86 H. Kalk, E. Wildhirt, "Die Krankheiten der Leber", em-Klinik der Gegenwart, Band VII, 1958.

    87 Abraham B. Bergman, Stanley J. Stamm, "The morbidity of cardiac non-disease in school children", emThe New England Journal of Medicine, vol. 276, n. 18, 4 de maio de 1967, do um exemplo particulardos "limites em que as pessoas percebem ou so percebidas pelas outras como acometidas por umadoena que no existe. Os efeitos mrbidos que acompanham certas no-doenas so por vezesacentuados como os que acompanham as doenas correspondentes. (...) Estima-se que o grau de

  • Estima-se que em quatro casos de morbidade e de mortalidadeiatrognicas, um deles, em mdia, foi resultado do diagnstico, isto ,do processo tcnico empregado para faz-lo, muitas vezestraumatizante, invalidante ou mortal.

    A produo profissional de traumatismos psicolgicos no ,portanto, uma exclusividade do psiquiatra88: todo contato com aempresa mdica expe o paciente ao perigo de danos psquicos89. Aangstia talvez o efeito mais generalizado de qualquer contato com atcnica medica90. No se manifesta somente pela depresso, pelassndromes hipocondracas91 ou orgnicas92, mas pode tambmconduzir ao suicdio93. A iatrognese da suposta doena mental94 e suaexportao para alem-mar95 esto fora do tema que me propus tratar.

    Os danos infligidos pelos mdicos sempre tm feito parte da prticamdica e levantado problemas jurdicos96. A indiferena profissional, anegligncia e a pura incompetncia so falhas velhas como o mundo97.Com a transformao do mdico arteso, que exercia sua habilidadeem indivduos que conhecia pessoalmente, em mdico tcnico queaplica regras cientficas a categorias de doentes, as falhas adquiriramnovo status, annimo e quase respeitvel. O que antes eraconsiderado abuso de confiana e falta moral agora pode serracionalizado como falha ocasional de equipamento ou dos seusoperadores. Num hospital em que a tcnica complexa, a neglignciase transforma em erro humano "aleatrio", a insensibilidade em"desinteresse cientfico", e a incompetncia em "falta de equipamento

    invalidez resultante de no-doenas cardacas entre as crianas superior ao ocasionado pelasverdadeiras doenas cardacas".

    88 A. E. Bennet, "Role of iatrogenesis in diagnosis, prognosis and treatment in psychiatry", em Disease ofthe Nervous System, 32, 627-631, setembro de 1971.

    89 W. Schulte, Iatrogene seelische Schdigungen. Westf. Arzteblatt 10, 1956. p. 145-150.

    90 Herbert Shey, "Iatrogenic anxiety", em Psychiatric Quarterly, vol. 45 , 1971, p. 343-356.

    91 G. A. Ladee, Hypocondriacal syndroms, Amsterd, Elsevier. 1966.

    92 Maurice Lunger, Arthur Shapiro, "Iatrogenic illness and psychosomatic medicine", em David M. Spain,The complications of modern medical practices, Nova York, Londres, Grune & Stratton. 1963: aresistncia psquica induzida pelo psicoterapeuta pode provocar a morte do doente cardaco.

    93 J. Andriola, "A note of possible iatrogenesis of suicide", em Psychiatry, 36/2, 1973, p. 213.218.

    94 E. H. Ackerknecht, Geschichte der iatrogenen Krankheiten des Nervensystems, op. cit.

    95 Danielle Storper-Perez, La Folie colonise. Textes l'appui. Paris, F. Maspero, 1974.

    96 A irresponsabilidade dos mdicos, muitas vezes acusados de mata, os doentes, deplorada por Plinio oVelho, Histria Natural, Livro XXIX, 18: "no h qualquer lei que castigue a ignorncia, nenhumexemplo de pena capital. Os mdicos aprendem s nossas custas e riscos; experimentam e matamcom impunidade soberana, e o mdico o nico que pode causar a morte. Em geral, acusa-se de erroo doente; acusa-se sua intemperana e se faz o processo daquele que sucumbe".

    97 Montesquieu, Do esprito das leis, ou da relao que as leis devem ter com a constituio de cadagoverno, os costumes, o clima, a religio, o comrcio, etc., Paris. Bibliothque dela Pliade, 1951,Livro XXIX, cap. XVI.b.

  • especializado". A despersonalizao do diagnstico e da teraputicatransferiu as falhas do campo tico para o mbito do problema tcnico.

    Em 1971, entre 12.000 e 15.000 processos contra falhas noexerccio profissional da medicina deram entrada na Justia dosEstados Unidos. Entretanto, os mdicos somente so vulnerveis numtribunal se forem acusados de ao em desacordo com o Cdigo deSade Pblica, incompetncia em matria de tratamento ou por faltaao dever, por avidez de lucro ou por preguia98. A maior parte dosdanos infligidos pelo mdico moderno no se enquadra em nenhumadessas categorias. Na verdade so produzidos na prtica diria dehomens bem formados, que aprenderam a agir conforme o quadro devalores e as tcnicas admitidas pela profisso, e foram treinados parareprimir a conscincia dos danos que provocam. Os controles que asOrdens de Mdicos exercem sobre seus membros para neutralizar asovelhas negras que levam m reputao ao conjunto dos mdicosapenas lhes d maior prestgio para prosseguirem sua aoiatrognica.

    O Departamento de Sade Pblica dos Estados Unidos calculou que7% dos doentes hospitalizados sofrem, enquanto esto hospitalizados,leses pelas quais poderiam exigir indenizao, embora poucos ofaam. Alm disso, ocorrem proporcionalmente mais acidentes noshospitais do que em qualquer outro setor industrial, excetuando-se odas minas e o da construo de edifcios altos. Recente pesquisanacional mostra que a causa de bito mais freqente de crianas nosEstados Unidos so os acidentes e que estes ocorrem muito mais noshospitais do que em qualquer outro lugar99. Quanto maior a invasotcnica na rotina hospitalar, mais os acidentes so inesperados einevitveis. Em geral os hospitais universitrios so os maispatognicos. Verificou-se que um em cada cinco pacientes admitidosnum hospital universitrio padro contrai doena iatrognica, algumasvezes benigna, mas que na maioria dos casos exige tratamentoespecial, e que um entre cada trinta pacientes contrai doena

    98 Para a evoluo da jurisprudncia relativa ao controle social do hospital: M. N. Zald, "The social controlof general hospitals' , em B. S. Georgopoulos. ed., Organization Research on Health Institutions.University of Michigan. Institute for Social Research, 1972. Na Frana, a Corte de cassao no fezqualquer aluso responsabilidade mdica durante o ano judicirio de 1968-1969. No ano de19691970, h algumas linhas referentes a um litgio julgado pela alta justia... O de 1970-1971comporta apenas cinco pginas consagradas responsabilidade dos mdicos e cirurgiiies. Observa-seum suave avano sobre o dever de meios (cuidados conscienciosos, atentos e conforme os dadosadquiridos pela cincia) em vista da obrigao do resultado (cura): C. Leclercq, "Le rapport de la Courde cassation et la Responsabilit mdicale", erh La Revue du praticien, tomo XXII, n. 16, 1. de junhode 1972.

    99 George H. Lowrey, "The problem of hospital accidents to children", em Pediatrics, 32 (6): 1064-1068,dezembro de 1963.

  • iatrognica mortal, a metade delas complicaes posteriores a umaterapia medicamentosa, e, surpreendentemente, um entre cada dez efeito de processos tcnicos de diagnstico100. Fatos similares levariamum oficial a perder seu comando, quaisquer que fossem as declaraesque fizesse de boa inteno e devotamento causa pblica, ou a serfechado pela polcia qualquer restaurante ou casa de diverses.

    Um dos aspectos mais espantosos da iatrognese clnica epidmica sua capacidade de resistir a todo esforo mdico para a debelar. Asinfeces mais temveis so adquiridas na sala de cirurgia, ondesomente microrganismos resistentes a fortes doses de bactericidaspodem sobreviver. Os hospitais que procuraram se proteger contraerros na administrao de medicamentos tornando obrigatrio controlede cada receita por um farmacologista especializado tiveram dereconhecer, aps trs anos de experincia, que no apenas a despesamas o dano global aumentou com o nvel de complexidade. QuentinYoung, diretor do maior hospital de Chicago, afirma que "os riscos deiatrognese, provocados pelas precaues de evitar litgios e processosjudicirios, causam maior mal que qualquer outro fator iatrognico". Amedicina, obrigada a examinar no apenas um ou outro de seus atosmas sua empresa em conjunto, tornou claro seu insucesso bsicoquanto aos erros a reparar, problemas a resolver, progressos arealizar101 A iatrognese de segundo grau, produzida pelas medidasantiiatrognicas, comprovou a autodesregulagem estrutural daempresa. Ela perdeu toda possibilidade de racionalizar seu fracassofundamental.

    A profisso mdica, em confronto com os danos que provoca e suaimpotncia para corrigir suas estruturas, se ps a convocar freqentescongressos com o objetivo de autolimitar a empresa mdica. umesforo que se parece muito com a aliana entre a Fiat, a Ford e aVolkswagen para financiar estudos do Clube de Roma sobre a limitaonecessria s empresas industriais. Ao mesmo tempo se multiplicamapelos de mdicos que, invocando sua experincia, nos imploram parano debater publicamente as provas da epidemia iatrognica. Adiscusso da iatrognese pelo grande pblico, segundo eles, ativaria asua proliferao.

    A meu ver o debate pblico tanto do atual nvel da iatrognese

    100 J. T. McLamb, R. R. Huntley, "The hazards of hospitalization", em Southern Medical Journal, vol. 60,maio de 1967, p. 469-472.

    101 Jacques Sarano, "L'chec et Ie mdecin", em Jean Lacroix (sob a direo de) Les Hommes devantl'chec, cap. III, "Mdecine", Paris, PUF, 1968, p. 69-81.

  • como da generalizada imprudncia manifestada diante desse perigopelos que praticam a medicina constitui uma das condies da lutacontra essa calamidade pblica. Para participar dessa luta, precisoreconhecer, antes de tudo, que os novos mtodos tcnicos e novasmodalidades de organizao mdica concebidos como remdios para aiatrognese clnica direta tendem, eles mesmos, a se tornarpatognicos, desde que utilizados em populaes suficientementegrandes para justificar sua eficcia primria. As medidas tcnicas quetm por objetivo a iatrognese direta contribuem para odesenvolvimento de uma iatrognese clnica de segundo grau,epidemia que j se pode verificar e descrever. As medidas tcnicas ouburocrticas adotadas para evitar que uma medicina malignaprejudique o doente tendem necessariamente a criar essa novacategoria de iatrognese cuja etiologia anloga escalada destrutivaprovocada pelas medidas contra a poluio102.

    102 No domnio da degradao do meio ambiente, surgiu um conflito entre dois enfoques opostos doproblema. De um lado. pessoas como James B. Quinn, "Next big industry: environmentalimprovement", em Harvard Business Review, 49, setembro-outubro de 1971, p. 120-130, pensam quea proteo do meio ambiente oferece a possibilidade da abertura de novos mercados dinmicos erentveis para a indstria. e de aumentar assim, de forma considervel, a renda nacional e o ProdutoNacional Bruto. De outra parte, autores como Herman Daly, Toward a steady state economy, FreemanCo., 1973, distinguem dois aspectos no PNB. Um representa o valor correspondente aos bens eservios postos no mercado e que tm utilidade direta para os consumidores, outro constitudo dedespesas vinculadas a urna finalidade defensiva para proteger a sociedade dos valores assim criados.Daly acha que s6 uma radical diminuio da produo industrial pode salvar o meio ambiente. Nosdomnios da medicina. a tendncia ainda mais forte a favor de um crescimento da produo deservios mdicos, talvez simplesmente com a vontade de que sejam mais seguros. A necessidade deuma radical diminuio da produo industrial dos servios no em geral objeto de qualquerdiscusso, seja no setor da sade, da educao ou do bem-estar social.

  • SEGUNDA PARTEIATROGNESE SOCIAL

    CAPTULO IIMSCARA SANITRIA DE UMASOCIEDADE MRBIDA

    No primeiro captulo a nossa ateno foi dirigida s conseqnciasbiomdicas do ato tcnico manifestadas sob a forma de sintomasclnicos. Tais efeitos nefastos dos contatos tcnicos entre o sistemamdico e seus clientes constituem apenas o primeiro nvel dos danosque uma empresa mdica desmesurada inflige ao homemcontemporneo. As intervenes tcnicas das profisses de sadecontra-indicadas, erradas, brutais, inteis, ou mesmo as prescritas deacordo com as regras da arte, representam apenas uma das fontes dapatologia de origem mdica. O termo iatrognese clnica cobre esseconjunto de patologias na nomenclatura corrente.

    A aventura mdica causa outros danos, na ordem social dessa vez.A sade do indivduo sofre pelo fato de a medicalizao produzir umasociedade mrbida. A iatrognese social o efeito social no desejadoe danoso do impacto social da medicina, mais do que o de sua aotcnica direta. A instituio mdica est sem dvida na origem demuitos sintomas clnicos que no poderiam ser produzidos pelainterveno isolada de um mdico. Na essncia a iatrognese social uma penosa desarmonia entre o indivduo situado dentro de seu grupoe o meio social e fsico que tende a se organizar sem ele e contra ele.Isso resulta em perda de autonomia na ao e no controle do meio103.

    Medicalizao do oramento

    O nvel de sade no melhora mesmo quando aumentam as

    103 P. M. Brunetti, "Health in ecological perspective", em Acta Psychiatrica Scandinavica, vol. 49, fasc. 4,p. 393-404, Copenhague, 1973. 0 meio vital deteriorado pela concentrao do poder e a progressivadependncia em face de energias extrametablicas. Sb a renncia tecnologia violenta pode devolverao meio sua capacidade de servir a um ser humano que no sabe integrar-se seno exercendo suaautonomia.

  • despesas medicas104 cabe ento concluir pela ineficcia globalcrescente da empresa mdica e que a sociedade se torna rapidamentecada vez menos sadia. Creio poder demonstrar que em boa parte amedicina atual que torna a sociedade menos sadia. O controleinstitucional da populao pelo sistema mdico retiraprogressivamente do cidado o domnio da salubridade no trabalho e olazer, a alimentao e o repouso, a poltica e o meio. Esse controlerepresenta um fator essencial da inadaptao crescente do homem aomeio. preciso ter viso profundamente deformada da realidade, pelaescolaridade mdica muito prolongada, para sustentar o oposto, como moda corrente na Frana105 e fazer o pblico deslumbrado pelatecnologia mdica acreditar que a sade de uma sociedade aumentana exata medida em que seus membros venham a depender deprteses sob a forma de medicamentos, teraputicas, internaesdiversas e controles preventivos. O crescimento da parte das despesasmdicas dentro do Oramento e do PNB, ou seja, a medicalizao doOramento e do PNB, constitui indicador global do declnio daautonomia biolgica dos indivduos, autonomia que se identifica com asade.

    Na Frana, a taxa de progresso anual das despesas mdicas nodecorrer dos anos sessenta se manteve entre 8 e 10% a preosconstantes, ou seja, 12 a 14% em francos correntes. uma taxanitidamente superior da produo nacional106. Nenhum subsistemaeconmico de importncia comparvel registrou uma tal progresso.107

    104 Victor Fuchs, Health care and the United States economic system. An essay in abnor