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8/14/2019 Ivan iLLich - O Direito ao Desemprego Criador
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Ivan iLLich
O DIREIT O AODESEMPREGO
CRIADORA DECADENCIA DA IDADE PROFISSIONAL
Editorial AlhambraTtulo do o ri ginal ingls:
The Right To Useful Unemploymentand its professional enemies
Ttulo do ori ginal espanhol:La decadencia de la edad profesional
T r a d u o d e
Joaquim Campelo Marques
I v a n I l l i c h, 1 9 7 8Ficam reservados todos os direitos.
vedada a publicao deste texto, integral ou parcial,por quaisquer meios de comunicao eletrnicos, mecnicos,reproduo xerogrfica, gravao, ou similares, exceto para
fim de citao critica, sem o consentimento prvio e porescrito do editor e do Autor (detentor do copirraite).
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NDICEINTRODUO ..............................................................................................3
1 A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO............................................4a) Uma opo mundial ..............................................................................5b) Para uma cultura de produtos estandardizados .......................................6c) A pobreza modernizada ....................................................................... 11d) A metamorfose das necessidades.........................................................15
2 OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES ........................................ 19a) Rumo ao fim de uma poca ................................................................. 24b) As profisses dominantes .................................................................... 26c) As profisses tirnicas ......................................................................... 29
d) As profisses estabelecidas.................................................................. 32e) A hegemonia das necessidades imputadas............................................34
3 COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES................................. 41a) Confuso entre congesto e paralisia ................................................... 43b) Cegueira ante as ferramentas convivenciais..........................................47c) A confuso entre liberdades e direitos .................................................. 50d) A eqidade no desemprego criador......................................................53
4 FLANQUEANDO O NOVO PROFISSIONAL .................................................. 57
a) O traficante ........................................................................................ 57b) A aliana dos benfeitores pblicos........................................................ 59c) A profissionalizao do cliente..............................................................61
5 O ETHOS POS-PROFISSIONAL.................................................................. 63
APNDICE.................................................................................................. 65
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INTRODUO
H cinqenta anos, nove de cada dez palavras que um homem
civilizado ouvia eram-lhe transmitidas como a um ind ivduo. Som ente umaem dez lhe chegava como elemento indiferenciado de uma multido na
sala de aula, na igreja, em reunies ou espetculos. As palavras eram
ento como cartas seladas, escritas a mo, bem diferentes da escria
que hoje contamina nosso correio. Atualmente so poucas as palavras
que tentam chamar a ateno de uma pessoa. Com regularidade de
relgio, assaltam nossa sensibilidade as imagens, idias, sentimentos e
opinies empacotadas e entregues atravs dos meios de comunicao,
como artigos padronizados. Duas coisas se tornaram evidentes: 1) O que
acontece com o idioma se tornou paradigmtico para uma ampla gama
de relaes entre necessidade e satisfao; 2) Estes so, j, fenmenos
universais, e nivelam o professor de Nova Iorque, o membro da
comuna chinesa, o estudante de banto e o sargento brasileiro. Neste apndice
a meu ensaio sobre a convivencialidade, pretendo fazer trs coisas: a)
Descrever o carter de uma sociedade de mercado-de-bens intensivo, na
qual a multiplicidade, especializao e volume das mercadorias destrem o
ambiente propcio criao de valores de uso; b)Insistir no papel oculto que
as profisses numa sociedade desse tipo desempenham ao modelar suas
necessidades; c) Propor algumas estratgias para romper o poder
profissional que perpetua esta dependncia do mercado.
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1A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO
Atualmente, chama-se crise quele instante em que mdicos,
diplomatas, banqueiros e todo tipo de engenheiros sociais assume os
controles e se suspendem as l iberdades. Tal como os pacientes, as
naes se catalogam conforme o estado crtico. E isto porque a crise, depois
de ter sido uma possibilidade de ligar rumos, hoje somente significa o ir-e-
vir de um para outro lado. Remete, na atualidade, a uma ameaa
ominosa, mas controlvel, contra a qual podem unir-se o dinheiro, a
fora de trabalh o e a administrao. Um exemplo tpico deste tipo de
resposta poderia ser o de uma cidade de 13 milhes de habitantes, a 2.500
metros acima do nvel do mar, na qual, diante das cifras alarmantes de
escassez e das dificuldades no abastecimento de gua para a maioria de seus
habitantes, que somente tm acesso a menos de cinco litros, declara-se uma
crise que dar mais trabalho aos engenheiros, em vez de racionar o
consumo de 5% das pessoas que utilizam a metade da gua em suas tinas etanques. Entendida desta maneira, a crise acaba sendo sempre conveniente
para os executivos e comissionados, especialmente para os urubus que vivem
dos efeitos secundrios, no desejados, do crescimento anterior: os
educadores que vivem da alienao da sociedade, os mdicos queprosperam
base do trabalho e do cio que destruram a sade, os polticos que
triunfam graas distribuio de um bem-estar que, em primeira instncia,
foi tirado aos mesmos que recebem a assistncia.
O termo crise, entretanto, no deve significar necessariamente isto. Nem
deveria implicar uma corrida desatinada numa escalada pela
administrao. Pode significar o instante de escolha, esse momento
maravilhoso em que a gente se torna consciente da prpria priso auto-imposta
e da possibilidade de uma vida diferente. E st a a cr ise que hoje,
simultaneamente, os Estados Unidos e o mundo enfrentam.
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a) Uma opo mundial
O mundo se uniformizou numas quantas dcadas. As respostas humanas
aos acontecimentos de todos os dias se tornaram standard. Embora os idiomas
e os deuses ainda paream diferentes, a gente se une todos os dias admirvel maioria que marcha ao compasso do mesmo tambor. O
interruptor de luz, junto porta, substituiu as mltiplas formas como
antigamente se acendiam os fogos, as velas, os candeeiros. O nmero de
pessoas que ligam interruptores de luz triplicou no mundo em dez anos; o
fluxo de gua e o papel se converteram em condies essenciais para
aliviar os intestinos. A luz que no provm das redes de alta voltagem e a
higiene que exclui o papel higinico vm funcionando como medidores da
pobreza de milhes de pessoas. A intromisso, sopotorfera s vezes, opaca
outras, dos meios massivos de comunicao, penetra muito profundamente
no bairro, no povoado, na sociedade, na escola. Os rudos emitidos pelo locutor
e os anunciadores de textos programados pervertem diariamente as
palavras de uma linguagem falada, transformando-as em tijolos de
mensagens em pacotes. Para que os no ssos f ilhos hoje tenham a
possibilidade de brincar num ambiente em que uma de cada dez palavras
que ouvem lhes seja dirigida pessoalmente, eles devem estar isolados ou
afastados no tempo, ou melhor, devem converter-se em marginais opulentos
aos quais se proporciona cuidadosa proteo. Em qualquer parte do
mundo pode-se notar um rpido enquistamento da aceitao disciplinada que
caracteriza o auditrio, o cliente, o comprador. A padronizao da ao humana
vai-se estendendo.
Torna-se evidente agora que o problema crtico que a maior parte das
naes enfrenta exatamente o mesmo: ou bem as pessoas se convertero
em cifras de uma multido condicionada que avana para uma dependncia
cada vez maior e enfrentaro, portanto, batalhas selvagens para obter
um mn imo das drogas que alimentam os seus hbitos ou bem
encontraro o valor que a nica coisa que pode salvar no pnico; ou
seja, manter-se sereno e buscar em torno outra sada que no seja o bvio j
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marcado como sada. Entretanto, muitas pessoas s quais se diz que os
bolivianos, os canadenses, os hngaros enfrentam todos a mesma opo
fundamental, no s se sentem atingidas como tambm se ofendem
profundamente. A idia lhes parece no apenas louca, mas chocante. Noalcanam detectar a analogia nesta nova degradao amarga que vai
permeando a fome do ndio do Altiplano, a neurose do trabalhador de
Amsterd e a cnica corrupo do burocrata de Var svia.
b) Para uma cultura de produtos estandardizados
O desenvolvimento teve os mesmos efeitos em todas as sociedades:
viram-se apanhadas numa nova trama de dependncia de mercadorias quefluem do mesmo tipo de mquinas, fbricas, clnicas, estdios de TV, Think
tanks. Para satisfazer esta dependncia, tem-se de continuar produzindo,
sempre mais, a mesma coisa: bens e servios padronizados por engenheiros e
destinados aos consumidores que, por sua vez, so padronizados pelos
educadores e promotores comerciais para que acreditem necessitar do que
se lhes oferece.
Sejam eles tangveis ou intangveis, so estes os produtos estandardizados
do mundo industrial; assumem valor monetrio como mercadores e se
estabelecem tanto pela ao do Estado como pelo mercado, embora o nvel de
participao de um e outros varie nos diferentes regimes. As distintas
culturas chegam a ser assim resduos inspidos de um estilo de ao
tradicional, perdidas numa paragem mundial; um terreno rido, desbastado
pela maquinaria necessria para produzir e consumir. Nas margens doSena e nas do Niger, as pessoas se esqueceram de como ordenhar,
porque o lquido branco lhes chega engarrafado. Graas maior proteo do
consumidor, na Frana o leite menos txico do que em Mli. verdade
que agora existe um nmero maior de criaturas que bebem leite de
vac a, mas os sei os da s mulheres, ricas e pobres, secam igualmente. A
dependncia nasce com o primeiro vagido do beb que tem fome, quando seu
organismo apreende o leite artificial, abandonando o seio materno que, dessemodo, se atrofia. Todas aquelas aes humanas, autnomas e criativas,
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necessrias par a o florescimento do universo do homem, acabam por se
atrofiarem. Os tetos de barro ou de palha, de junco ou de telha, foram sendo
substitudos por tetos de concreto para uns poucos e de plstico para a
maior parte. Nem os obstculos da selva, nem os matizes ideolgicoslibertaram os pobres e os socialistas de se apressarem a construir auto-
estradas para os ricos, essas vias que os conduzem ao mundo onde os
economistas tomaram o lugar dos sacerdotes. A cunhagem das moedas
traga todos os tesouros locais e os dolos. O dinheiro desvaloriza o que no
pode medir. A crise, pois, a mesma para to dos: a op o entre uma
mai or ou um a men or dependncia de bens de consumo industriais. Uma
dependncia maior significaria a destruio rpida e total das culturas comoprogramas de atividades de subsistncia que produzam satisfao; uma
dependncia menor significa o florescimento variado de valores de uso em
culturas de intensa atividade. A opo essencialmente a mesma para ricos
e pobres, ainda que, mesmo imagin-lo, fosse extremamente difcil para
quantos j esto acostumados a viver em um supermercado, diferente, mas
somente no nome, das instituies para idiotas.
Nas sociedades de industrialismo tardio, toda a vida se organiza em
funo das mercadorias. Nossas sociedades de mercado intensivo medem seu
progresso material de acordo com o aumento no volume e na variedade das
mercadorias produzidas; e, segundo esta mesma linha, medimos o
progresso social de acordo com a distribuio do acesso a esses bens e
servios. A economia poltica converteu-se na grande propagandista a servio
da dominao dos que produzem em grande escala. O socialismo se degradouao transformar-se numa luta contra a distribuio no igualitria e a
economia de bem -estar identificou o bem pblico com a distribuio da
opulncia e, num sentido mais estrito, com a humilhante opulncia do pobre:
um dia de degradao organizada num hospital pblico, crcere ou laboratrio
educacional, nos Estados Unidos, alimentaria durante um ms uma famlia da
ndia.
Ao depreciar todos aqueles custos aos quais a Economia clssica no
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fixou preos, a sociedade industrial criou um ambiente no qual a gente
no pode viver sem devorar cada dia o equivalente ao prprio peso em
metais, combustveis e materiais de construo. Criou um mundo no qual a
constante necessidade de proteger-se contra os resultados negativos docrescimento cavou novos abismos de discriminao, de impotncia e de
frustrao. Nunca esquecerei a afirmao do ianque diante de um chileno:
Seremos sempre ns os que, num mundo envenenado, vamos ter os filtros
de ar de maior potncia. At agora os movimentos ecolgicos a servio do
poder s tm servido para dar maior consistncia a esta orientao, ao
concentrar a ateno pblica na irresponsabilidade tcnica de quantos irrigam
zonas habicionais com subprodutos venenosos e mutgenos e, no melhordos casos, tm desmascarado os interesses privados que aumentam, para o
indivduo, a dependncia de necessidades criadas. Mas, ainda agora,
depois que se fixaram preos e custos para refletir o impacto sobre o meio
ambiente (a desvalorizao devida aos prejuzos ou o custo da polarizao),
no temos sido capazes de perceber com clareza que este processo substituiu,
por artigos embalados e produzidos em srie, tudo aquilo que as pessoas
faziam ou criavam por si mesmas.
Faz a lguns anos, cada semana morre uma ou outra forma de
expresso. As que permanecem se uniformizam cada vez mais. Entretanto,
mesmo aqueles que se preocupam com a perda de variedades genticas
ou com a multiplicao de istopos radiativos, no se advertem do
esgotamento irreversvel das habilidades artesanais, das histrias e dos
sentidos da forma. Esta substituio gradual de valores teis, mas nomercantilizveis, por bens industriais e por servios tem sido a meta
compartida por faces polticas e regimes que, de outro modo, se
oporiam uns aos outros violentamente.
Por, este caminho, pedaos cada vez mais longos de nossas vidas se
transformam de tal maneira que a vida passa a depender quase exclusivamente
do consumo de mercadorias. Isto o que deveramos chamar crescimento
da intensidade de mercado nas culturas modernas. Naturalmente, os
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diferentes regimes aplicam recursos de maneira distinta: aqui decide a
sa bedoria da mo oculta do mer cado, a li a do idel ogo e o
planificador. Mas a oposio poltica entre estes proponentes de mtodos
alternativos para a aplicao dos recursos, disfara somente o prpriodesprezo grosseiro que todas as faces e partidos nutrem pela liberdade
e a dignidade pessoal. A poltica sobre energia em diferentes pases nos d um
bom exemplo para estudarmos a profunda identidade que existe entre os
diferentes promotores do sistema industrial, chamem-se eles socialistas ou
liberais. Se exclumos lugares como a Nova Camboja, sobre a qual me falta
informao, no existe elite no governo nem oposio organizada que
conceba um futuro desejvel fundado em um instrumental social cujoconsumo de energia per cpita fosse inferior em vrias ordens de
magnitude aos nveis que prevalecem hoje na Europa. Todas, as
correntes polticas insistem num pretenso imperativa tcnico que torna
inevitvel que o modo de produo moderno seja intensivo tambm no
uso de energia. At agora no existe nenhum partido que reconhea que
um modo de produo desta espcie castra inevitavelmente a capacidade
criadora dos indivduos e grupos prim rios. Todos os partidos insistem namanuteno de nveis de emprego elevados na fora de produo e parecem
ser incapazes de reconhecer que os empre gos tendem a destruir o valor de
uso do tempo livre. Insistem em que as necessidades dos indivduos se
definam, na forma mais objetiva e total, por especialistas diplomados
publicamente para tal competio, e parecem insensveis conseqente
expropriao da prpria vida.
Nos fins da Idade Mdia, usou-se a assombrosa simplicidade do modelo
heliocntrico como argumento para desacreditar a nova Astronomia. Sua
elegncia foi interpretada como ingenuidade. Em nossos dias, no so
poucas as teorias centradas no valor de uso, capazes de analisar o custo
social gerado pela economia estabelecida. Estas teorias foram propostas por
muitos outsiders da economia que situam suas perspectivas numa nova escala
de valores: a beleza, a simplicidade, a ecolog ia, a vida em comunidade .Como uma forma recorrente de solapar estas teorias, a economia moderna
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e seus praticantes tm-se dedicado a falsear e ressaltar os fracassos
que, com freqncia, estes outsiders sofreram ao experiment-las em
novos estilos de vida pessoal e se recusam a olh-las sequer do mesmo
modo que o inquisidor legendrio se recusou a olhar atravs do telescpio deGalileu sendo que sua anlise poderia conduzir ao deslocamento do centro
convencional do sistema econmico vigente. Estes instrumentos analticos
distintos poderiam lev-los a pr os valores de uso no mercantilizveis no
centro de uma cultura desejvel na qual somente se atribui um valor
queles bens mercantis que fomentem uma extenso mais ampla desses
mesmos valores de uso. Porm o que continua valendo no o que a gente
faz ou cria, mas sim o produto das corporaes pblicas ou privadas. Todoscolaboram por igual no esforo de transformar nossas futuras sociedades numa
grande brincadeira inconseqente, na qual cada lucro e cada satisfao de uma
pessoa se transforma inevitavelmente em perda para as outras.
Nesta estrada, ficaram destroados inumerveis conjuntos de infra-
estruturas nas quais a pessoa enfrentava a vida, nas quais brincava, comia,
estreitava laos de amizade e at de amor. Umas quantas das chamadas
dcadas de desenvolvimento foram suficie ntes para desmantelar mais de
dois teros dos moldes culturais do mundo. Antes dessas dcadas,
aqueles moldes permitiam s pessoas satisfazerem a maior parte de suas
necessidades segundo um modelo de subsistncia. Depois delas, o plstico
substituiu a cermica, as bebidas gasosas substituram a limonada, o Valium
tomou o lugar do ch de camomila, e os discos o do violo. Ao longo de
toda a Histria, a melhor medida dos tempos maus foi o percentual dealimentos que se devia comprar. Nos bons tempos, a maior parte das famlias
conseguiam quase todos os seus alimentos atravs do que cultivavam ou
adquiriam num quadro de relaes gratuitas.
At f ins do sculo XVIII, o a limento que se produzia alm do
horizonte abarcvel pela vista do consumidor que olhasse de um campanrio
ou minarete era menos de 1% em todo o mundo. As leis encaminhadas para
controlar o nmero de galinceos e de porcos no mbito dos muros da
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cidade sugerem que, exceo de umas quantas zonas urbanas mais extensas, '
quase a metade dos alimentos tambm se cultivava igualmente dentro da vila.
Antes da segunda guerra mundial, os alimentos trazidos de fora para uma
regio determinada constituam menos de 4% do total que se consumia; almdisso, estas importaes estavam destinadas, em grande parte, s 11
cidades que tinham mais de dois milhes de. habitantes. Atualmente, 40% das
pessoas sobrevivem graas ao acesso que tm aos mercados interregionais.
Conceber hoje em dia um mundo em que se reduzisse radicalmente o
mercado mundial de capitais e bens representa um tabu pelo menos to
abso luto como conceber um mundo no qual pessoas autnomas utilizassem
ferramentas convivenciais para libertarem -se da necessidade de consumire para criar valores de uso em abundncia. Neste tabu se reflete a crena
de que as atividades teis por meio das quais as pessoas se expressam e
satisfazem as suas necessidades podem ser substitudas indefinidamente
por bens e por servios.
c) A pobreza modernizada
Passado certo umbral, a multiplicao de mercadorias induz impotncia, incapacidade de cultivar alimentos, de cantar ou de construir. O af e o
prazer, condies humanas, chegam a converter -se em privilgio de
alguns ricos caprichosos. Em Acat zingo, como na maioria dos povoadozinhos
mexicanos de seu tamanho, existiam, quando Kennedy lanou a Aliana
para o Progresso, quatro bandas de msica que tocavam em troca de um
trago e serviam a uma populao de 800 pessoas. Atualmente, os discos
e as rdios ligadas a alto -falantes afogam todo o talento local. Socasionalmente, num ato de nostalgia, se faz uma coleta para trazer um
conjunto formado com rapazes que abandonaram a Universidade, para
cantar velhas canes em alguma festa especial. No dia em que a
legislao venezuelana determinou para cada cidado um direito
habitacional concebido como mercadoria, trs quartas partes das famlias
acharam que as casinhas levantadas com suas prprias mos ficavam
rebaixadas ao nvel de telheiros. Alm disso, e isto era o mais importante,
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existia j um preconceito contra a autoconstruo. No se podia iniciar
legalmente a construo de uma casa sem antes apresentar o plano desenhado
por um arquiteto diplomado. Os dejectos e sobras da cidade de Caracas,
teis at ento como excelentes materiais de construo, criavam agora oproblema que era livrar-se de refugos slidos. O homem que tentava levantar
a prpria morada era olhado como um transviado que recusava cooperar
com os grupos de presso local para a entrega de unidades habitacionais
fabricadas em srie. Alm do mais, promulgaram-se inumerveis regulamentos
que acoimaram sua ingenuidade de ilegal e at de delituosa. Este exemplo
ilustra o fato de que so os pobres os primeiros a sofrer quando uma
nova mercadoria castra um dos tradicionais ofcios de subsistncia. Odesemprego til dos inativos se sacrifica expanso do mercado de
trabalho. A construo da casa, como atividade escolhida por algum,
converte-se no privilgio de alguns ricos, ociosos e extravagantes.
Uma vez se tenha incrustado numa cultura, a dependncia opulncia
paralisante gera pobreza modernizada. Esta uma forma de desvalor que se
associa necessariamente multiplicao de produtos industrais; escapou
ateno dos economistas porque no se pode apreender com suas medies, e
dos servios sociais porque seus mtodos no so operativos para estes
casos. Os economistas no dispem de meios efetivos para incluir em seus
clculos o que a sociedade perde quanto a uma certa satisfao que no tem
seu equivalente no mercado. Assim, poda mos atualmente definir os
economistas como membros de uma confraria que somente aceita aquelas
pessoas que, no exerccio de seu labor profissional, sabem praticar umacegueira adestrada at a conseqncia social mais fundamental do crescimento
econmico: alm de certo umbral, cada grau que se acrescenta quanto
opulncia em mercadorias traz como conseqncia uma queda na habilidade
pessoal para fazer e criar.
Enquanto a pobreza modernizada afetou somente aos pobres, sua
existncia e sua natureza permaneceram ocultas mesmo nas conversaes mais
correntes. Na medida que o desenvolvimento, ou a moderniza o, chegou
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aos pobres que at ento tinham conseguido sobreviver, apesar de sua
excluso de muitos setores da economia de mercado, estes foram vendo-se
implacavelmente constrangidos a sobreviver adquirindo mercadorias num
sistema de compras, o que para eles significa sempre e necessariamenteobter as escrias do mercado. Os ndios de Oaxaca, que anteriormente no
tinham acesso s escolas, so agora recrutados pelo sistema educacional
para que ganhem uns certificados que medem precisamente sua
inferioridade em relao populao urbana.
Alm disso, e eis aqui a ironia, sem esse pedao de papel, no podem
sequer trabalhar numa construo.
Esse processo a modernizao de renovados aspectos da pobreza
dos pobres continua ocultando-se, culpando as vtimas por sua apreciao
indiferente diante do acesso aos privilgios do progresso. En quanto isso, a
aliana non-sancta entre os produtores de mercadorias e seus assistentes
profissionais continua unindo-se coesamente sem questionamento.
Um resultado de forte significao social do que dizemos que agora apobreza modernizada se transforma na experincia comum de todos,
exceo daqueles que no so to ricos que podem retirar-se para sua
Arcdia. A medida que as facetas da vida, umas depois das outras, se fazem
dependentes das mercadorias padronizadas, muitos poucos nos livra mos
dessa experincia recorrente da pobreza modernizada. Nos Estados Unidos, o
consumidor mdio ouve por dia quase cem anncios publicitrios, mas s
uma dzia deles o fazem reagir e, na maioria dos ca sos, de forma negativa. At os compradores bem providos de dinheiro adquirem, junto com a
mercadoria novidadeira, uma nova experincia de desutilidade. Sentem que
adquiriram algo de valor duvidoso, talvez intil a curto prazo, ou mesmo
daninho, algo que exige tambm complementos ainda mais custosos. As
vezes, as atividades dos organismos de proteo ao consumidor tornam
consciente este processo porque, se bem comeam por exigir controles de
qualidade, podem levar a uma resistncia radical por parte do consumidor. H
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muitos que se acham quase dispostos a reconhecer abertamente a
existncia de uma nova forma de r iqueza: a r iqueza frustradora,
produzida pela expanso cada vez maior de uma cultura de mercado
intensivo. Alm disso, os opulentos chegam a pressentir o reflexo de suaprpria condio no espelho dos pobres. Entretanto, esta intuio
geralmente no se desenvolve alm de uma espcie de romanticismo.
A ideologia que identifica o progresso com a opulncia no se restringe,
naturalmente, aos pases ricos. Essa mesma ideologia degrada as atividades
no mercantilizveis ainda em zonas onde, at pouco, quase todas as
necessidades se satisfaziam atravs de um modo de vida de subsistncia. Os
chineses, por exemplo, inspirando-se em sua prpria tradio, pareciam estar
dispostos a ser capazes de redefinir o progresso tcnico. Viam-se prontos a
optar por uma bicicleta em lugar do jato. Parecia que davam importncia a
seu prprio poder de deciso local como uma meta de um povo inventivo
mais do que como um meio para a defesa nacional. Mas, em 1977, sua
propaganda glorifica a capacidade industrial chinesa de dar, a baixo custo,
maior assistncia tcnica, educa o, habitao e bem-estar geral. Atribuem-
se provisoriamente funes meramente tticas s ervas que se encontram nas
bolsas dos mdicos descalos ou aos mtodos de trabalho intensivo na
produo. Neste caso, como em outros, a produo heternoma de bens
quer dizer, dirigida por outros padronizada para distintas categorias de
consumidores annimos, fomenta as expectativas irreais e, em ltimo termo,
frustradoras. E alm disso este processo corrompe inevitavelmente a confiana
da gente nessa sempre surpreendente competio autnoma que existedentro de si mesmo e em seu vizinho. A China representa simplesmente o
ltimo exemplo da particular verso ocidental da modernizao por meio
da dependncia de um mercado intensivo, que se apodera de uma
sociedade tradicional, da mesma forma como alguns cultos irracionais surgiram
em comunidades isoladas como resultado da invaso desses estranhos seres
que se matavam na segunda guerra mundial.
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d) A metamorfose das necessidades
Entretanto, tanto nas sociedades tradicionais como nas modernas
ocorreu uma alterao importante em um perodo muito curto: modificaram-se
radicalmente os meios socialmente desejveis para satisfazer as necessidades.O motor atrofiou o msculo, a instrumentao escolar tolheu a curiosidade,
o md ico se fez necessrio para todo homem em pleno vigor. Como
conseqncia disso, as necessidades e os desejos adquiriram um carter que
no tem precedentes histricos. Pela primeira vez, as necessidades se
tornaram quase exclusivamente co-limitantes como as mercadorias. A liberdade
de mover-se se degradou no esforo feito para produzir, distribuir e
consumir o direito a transporte. A busca insistente de criar um mbito de
liberdade se eclipsou ante o direito de consumir. Enquanto as pessoas
chegavam onde podiam chegar por meio dos prprios ps, no precisavam
para sua mobilidade seno da liberdade de movimento. Porm agora que
os homens compreendem que so entes que devem transportar -se,
distinguem-se uns dos outros pela amplido e qualidade de seus direitos
ao uso de quilmetro-passageiro. O mundo j no to grande e distante, mas
sim uma sucesso de lugares de estacionamentos. Para a maioria das
pessoas, os desejos de adquirir acompanham as novas necessidades, e elas
no podem imaginar sequer que um homem moderno possa aspirar a
libertar-se de viver nesta dependncia de ser transportado. Esta si tu a o,
que se apresenta hoje como uma inter dependncia rgida entre
necessidades e mercado, legitima-se por meio de um chamado percia de
uma elite cujo conhecimento, devido a sua prpria natureza, no pode ser
compartido. Os economistas de todo tipo informam ao poltico que o nmero de
empregos depende dos watts em circulao. Os educadores convencem o
pblico de que a produtividade depende do nvel de instruo. Os gineclogos
insistem em que a qualidade da vida infantil e materna depende de sua
intromisso nela. Portanto, no podemos questionar efetivamente a extenso
quase universal das culturas de mercado intensivo de mercadorias
enquanto no se tenha destrudo a impunidade das elites que legitimam ovnculo entre mercadoria e necessidade. Este ponto fica muito bem ilustrado
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com o relato de uma mulher sobre o parto. Encontrava-se num hospital e
sentiu que o filho ia nascer. Chamou a enfermeira, a qual, em vez de
ajud-la, correu em busca de uma toalha esterilizada para empurrar a
cabea da criana para dentro, de volta ao tero. Ento ordenou me quedeixasse de fazer fora porque o doutor Levi ainda no chegou.
Chegou o momento de tomar uma deciso pblica. As sociedades
modernas, sejam ricas, sejam pobres, podem tomar duas direes
opostas. Podem produzir uma nova lista de bens mais seguros, com menos
desperdcios e mais fceis de compartilhar e, por fim, intensificar ainda
mais a dependncia de produtos padronizados. Ou podem abordar o
problema da relao entre necessidades e satisfao de uma forma
inteiramente nova. Em outras palavras: as sociedades podem manter suas
economias de mercado intensivo trocando somente o desenho do produto; ou
podem reduzir sua dependncia da mercadoria. Esta ltima soluo encerra a
aventura de imaginar e construir novas infra-estruturas nas quais os indivduos
e grupos primrios possa desenvolver um conjunto de ferramentas
convivenciais. Estariam organizadas de maneira que permitissem s pessoas
formarem e satisfazerem, direta e pessoalmente, uma crescente proporo de
suas necessidades.
A primeira opo mencionada representa uma contnua identificao do
progresso tcnico com a multiplicao de mercadorias. Os administradores
burocrticos do etos iguali tr io e os tecnocratas do bem-estar
coincidiram num chamado austeridade: substituir os bens que como os
jatos no podem obviamente ser compartidos, por um equipamento
chamado social como os nibus; distribuir mais eqitativamente as
decrescentes horas de emprego de que se dispe e limitar a tradicional
semana de trabalho a 20 horas; desenhar o novo tempo de vida de cio
para ocup-lo em reaprendizagens ou servios voluntrios, maneira de Mao,
Castro ou Kennedy. Este novo estgio da sociedade industrial se bem
socialista, efetiva e racional nos introduziria simplesmente num novo estado
da cultura que degrada a satisfao dos desejos ao convert-los num alvio
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repetitivo de necessidades imputadas por meio de artigos padronizados. No
melhor dos casos, esta alternativa produziria bens e servios de tal forma que
sua distribuio fosse mais eqitativa. A participao simblica do indivduo
nas decises sobre o que se deveria fazer poderia transferir-se davociferao no mercado ao voto na assemblia poltica. Poder-se-ia suavizar o
impacto ambiental da produo. Entre as mercadorias, cresceriam certamente
muito mais rapidamente os servios do que a manufatura de bens. Enormes
somas de dinheiro se inverteriam na indstria oracular, a fim de que os
profetas da administrao pudessem fabricar cenrios alternativos
desenhados para escorar esta primeira opo. E interessante notar que
estes orculos convergem para um mesmo ponto: em que ser iainsuportvel o custo social necessrio para produzir desde cima a
austeridade indispensvel numa sociedade ecologicamente factvel, mas que
ainda continua centrada na indstria.
A segund a opo faria cair o pano sob re a dominao absoluta do
mercado e fomentaria um etos de austeridade em benefcio de uma
variedade de aes satisfatrias. Se bem que na primeira alternativa
austeridade queira dizer aceitao dos ucasses administrativos em benefcio da
crescente produtividade institucional, na segunda, austeridade quer significar
essa virtu de social pela qual a gente reconhece e decide os l imites
mximos de poder articulado que qualquer pessoa possa exigir, a fim de
conseguir sua prpria satisfao e sempre a servio dos demais. A austeridade
convivencial inspira uma sociedade a proteger valores de uso pessoais diante
do enriquecimento inabilitante. Se num lugar as bicicletas pertencem comunae em outra aos ciclistas, a natureza convivencial da bicicleta como ferramenta
no muda em nada. Tais mercadorias continuariam sendo produzidas em
grande escala com mtodos industriais, mas seriam vistas e avaliadas de
forma distinta. Atualmente, as mercadorias so consideradas somente
como bens de consumo que alimentam as necessidades criadas por seus
inventores. Dentro desta segunda opo, as mercadorias se valorizariam
por ser matrias bsicas ou ferramentas que permitem s pessoasgerarem valores de uso para manter a subsistncia de suas comunidades
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respectivas. Mas esta opo depende, certamente, de uma revoluo
copernicana em nossa percepo de valores. Hoje, os bens de consumo e os
servios profissionais constituem o centro de nosso sistema econmico e os
especialistas relacionam nossas necessidades exclusivamente com esse centro.A inverso social que consideramos aqui colocaria no centro de nosso sistema
econmico os valores de uso criados pelo prprio indivduo. E certo que a
discriminao mundial contra os autodidatas viciou a confiana de muitas
pessoas na definio de suas prprias metas e necessidades. Mas essa prpria
discriminao deu or igem a uma minoria crescente que est enfurecida por
esse despojamento insidioso.
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2OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES
Estas minorias vem j a ameaa que encerra para elas e para toda
a vida cultural autctone os mega-instrumentos que expropriam
sistematicamente as condies ambientais. Elas esto prontas para pr
fim a uma Idade. Esto resolvidas a recuperar sua autonomia para fixar suas
prprias metas, decididas a proteger o domnio sobre o prprio corpo, a
memria e suas habilidades, determinadas a lutar contra a expropriao
sistemtica do ambiente vital perpetrada pelo sistema industrial em expanso.
Embora seja uma maioria que se encontra frustrada pelo transporte, poucos
so os que esto decididos a opor-se a uma invaso ulterior de mais redes
de estradas; se bem seja uma maioria que v seus sonhos e sua capacidade
de sonhar destrudos pelo estrangulamento de seus ritmos vitais, so
somente uns poucos aqueles que esto dispostos a pagar o preo necessrio
para rechaar tal situao. Ainda que estejam em maioria o nmero de
mulheres que vem seu equilbrio hormonal destrudo pela plulaanticoncepcional e uma maioria de empregados, os espaos de silncio
interior contaminados pela msica ambiental, so somente uns poucos os
que se organizam ativamente. Mas cada uma destas minorias representa
uma categoria de pobreza modernizada que potencialmente se pode
reconhecer como sendo a maioria. O industrialismo tardio justificou a
organizao da sociedade como um conglomerado de mltiplas maiorias,
todas estigmatizadas pelas burocracias provedores de servios; no obstante,no interior de cada uma destas maiorias se desenvolvem e crescem
minorias ativas, que se combinam entre s i numa nova forma de
dissidncia.
Mas, para poder liquidar com uma Idade, ela deve ter um nome que
pegue. Proponho que se d o nome de Idade das Profisses inabilitantes
porque ela compromete a quantos a utilizam. Revela as funes anti-sociaisexercidas pelos fornecedores menos desafiados pelos educadores, pelos
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mdicos, os assistentes sociais, os cientistas e outras belas pessoas.
Simultaneamente instaura um processo contra a complacncia dos cidados
que se submeteram, como clientes, a esta servido multifacetada. Falar
do poder das profisses inabilitantes envergonha as vtimas e as leva reconhecer a conspirao do eterno estu dante, do caso ginecolgico ou do
consumidor, com seus respectivos administradores. Ao descrever o
decnio dos anos sessenta como o apogeu dos solucionadores de problemas,
evidencia-se de imediato no s o orgulho de nossas elites acadmicas como
tambm a credulidade gulosa de suas vtimas.
Mas este enfoque nos fabricantes da imaginao social e nos valores
culturais pretende, mais que expor e denunciar: ao designar os ltimos
25 anos como a Idade das Profisses tirnicas, tambm estamos propondo
uma estratgia. Indica-se a necessidade de ir mais alm na redistribuio
planejada de mercadorias de refugo, irracionais e paralisantes, que so a marca
do Profissionalismo radical. O que proponho vai obviamente muito mais alm da
critica da prpr ia profisso, que veio ganhando forma, nos ltimos anos,
tanto na Amrica do Norte e na Europa quanto em certos pases pobres, entre
mdicos, advogados ou professores, que se autodefinem freqentemente
como profissionais radicais. Esta estratgia exige nada menos que o
desmascaramento do etos profissional. A f e a confiana no tcnico
profissional, seja ele cientista, seja terapeuta ou executivo, constitui o
calcanhar-de-aquiles do sistema industrial. Portanto, somente as iniciativas dos
cidados e as tecnologias radicais que desafiem diretamente a dominao
enervante das profisses inabilitantes podero abrir o caminho para aconquista da liberdade medi ante uma competio no hierrquica, baseada
na comunidade. Invalidar o etos profissional tal como existe atualmente
condio necessria para o surgimento de uma nova relao entre
necessidades, ferramentas contemporneas e satisfao pessoal. O
primeiro passo para alcanar essa invalidao libertadora que o cidado
adote um postura cptica e condescendente diante do tcnico profissional. A
reconstruo social comea pela dvida.
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Cada vez que proponho a anlise do poder profissional, como a chave para
a reconstruo da sociedade, pergunto se no um erro perigoso escolher
este fenmeno como eixo da recuperao do sistema industrial. Por acaso as
formas organizativas dos estabelecimentos educacionais, mdicos e deplanificao so outra coisa que o reflexo da distribuio do poder e do
privilgio de uma elite capita lista? No ser irresponsvel minar a confiana
que o homem da rua depositou em seu protetor preparado cientificamente,
em seu mdico ou em seu economista, precisamente nos momentos em que
os pobres precisam de protetores, precisam do acesso escola, s clni cas
e aos tcnicos? No deveria processar o sistema industrial, denunciando com
maior fora os Rockefellers e os Stalins? Por acaso no ser umaperversi dade denegrir aquele que adquiriu com tanto esforo o
conhecimento necessrio para reconhecer e servir nossas necessidades de
bem-estar, particularmente, se os denunciados provm da mesma
classe que protegem? De fato, no se devia assinalar e escolher estes
indivduos como os lderes mais aptos a cumprir as tarefas sociais j em
marcha e para identificar as necessidades das pessoas?
As argumentaes contidas nestas perguntas s apresentam uma defesa
frentica dos privilgios por parte daquelas elites que, inclusive podendo
perder em dividendos, na verdade conseguiriam certamente maior status e
poder se se tornasse mais eqitativo o acesso a seus servios nesta nova
forma de economia de mercado intensivo. Uma segunda srie de obje es
que se suscitam diante da possibilidade de uma sociedade moderna centrada
nos valores de uso ainda mais sria: surge da conscincia do papelcentral que a segurana nacional adquiriu. Esta objeo particulariza, como
ponto central da anlise, os conglomerados da defesa, que aparentemente se
encontram no centro de toda sociedade burocrtico-industrial. O argumento
exposto postula que as foras de segurana so o motor que est por trs da
regulamentao contempornea universal no que diz respei to disciplina
que depende do mercado. Identifica como principais fabricantes de
necessidades as burocracias armadas que nasceram quando, sob Lus XIV,Richelieu estabeleceu a primeira polcia profissional, ou seja, agncias
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profissionais que esto atualmente encarregadas de armamentos, da
inteligncia e da propaganda. Desde Hiroxima, estes chamados
servios tm s ido, parece, os que deter minam a pesquisa, o
planejamento da produo e do emprego. Estes servios repousam sobre basescivis: como a escolaridade para a disciplina, o treinamento do consumidor para
o desfrute do intil, o hbito s velocidades violentas, a engenharia mdica
para a vida num refgio que abarca a terra e a dependncia padronizada dos
temas da atualidade que dispensam policiais benvolos da cultura. Esta linha de
pensamento v na segurana do estado o gerador dos padres de produo
da sociedade e pensa que a economia civil , em grande parte, um resultado
ou um pr-requisito do militar.
Se fosse vlida uma argumentao construda em torno desta noo, teria
uma sociedade deste tipo a possibilidade de renunciar ao poder atmico,
mesmo sabendo quo venenoso, tirnico ou contraprodutivo pode resultar o
excesso de energia ulterior? Como esperar que um estado conduzido
pel a sua def esa tolerasse a organizao de grupos de cidados descontentes
que desconectam suas vizinhanas do consumo para proclamar a liberdade de
produzir em pequena e intensiva escala valores de uso, liberdade dada
numa atmosfera de austeridade prazenteira e satisfatria? No teria uma
sociedade militarizada que mover-se de pronto contra os desertores de
necessidades, qualific-los de traidores e, se fosse possvel, exp-los no s ao
desprezo mas tambm ao ridculo? No teria uma sociedade conduzida pela
defesa que suprimir aqueles exemplos que levariam a uma modernidade no
violenta, nestes instantes em que a poltica pblica exige uma descentralizaoda produo de mercadorias (que lembra Mao) e um consumo mais racional,
eqitativo e supervisionado profissionalmente?
Esta argumentao confere um crdito indevido ao militar como fonte da
violncia num estado industrial. Devemos denunciar como uma ilus o a
presuno de que as exigncias militares so culpadas da agressividade e
destrutividade da sociedade industrial avan ada. Sem dvida, se fosse
verdad e que os militares usurparam de algum modo o sistema industrial,
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que de algum modo se desviaram do controle civil, as numerosas esferas de
esforo e ao social, ento o presente estado da poltica militarizada teria
alcanado um nvel irreversvel; pelo menos impossvel para uma reforma
civil. Esta , de fato, a argumentao que os lderes militares do Brasilesgrimem, os quais vem nas foras armadas os nicos tutores legtimos da
busca pacfica da industrializao durante o resto deste sculo.
Mas isto simplesmente no assim. O estado industrial tardio no um
produto do exrcito. O exrcito constitui mais um dos sintomas de sua
orientao f irme e totalizadora. certo que o presente modo de
organizao industrial pode ter seus antecedentes militares mais remotos em
tempos napoleni cos. certo que a educao obrigatria dos meninos
camponeses, em 1830, a ateno universal da sade para o proletariado
industrial, em 1850, as crescentes redes de comunicao, tal como a maior
parte das formas de padronizao industrial, foram estratgias introduzidas na
sociedade, em primeiro lugar, como exigncias militares, e s mais tarde se
entenderam como formas dignas de progresso pacfico, civil. Mas o fato de os
sistemas de sade, de educao e de bem-estar necessitarem de uma lgica
militar para ser promulgados como leis, no significa que no tivessem
consistncia com o impulso industrial bsico que, de fato, nunca foi
no-violento, pacfico ou respeitador das pessoas.
Hoje em dia mais fcil ter esta viso. Primeiro, porque desde o Polris,
j no possvel distinguir entre exrcitos de tempos de paz e de
guerra, e, segundo, porque desde a guerra contra a pobreza, a paz est
em p de guerra. Atualmente, as sociedades industriais esto constante e
totalmente mobilizadas; esto organizadas para constantes emergncias
pblicas; so bombardeadas com estratgias variadas em todos os setores;
os campos de batalha da sade, da educao, do bem-estar e da igualdade
positiva esto semeados de vtimas e cobertos de runas; as liberdades dos
cidados se suspendem continuamente para lanar campanhas contra
males sempre redes cobertos; cada ano descobrem-se novos habitantes
fronteirios que devem ser protegidos ou recuperados de alguns novos
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mal-estares, de alguma ignorncia previamente desconhecida. As necessidades
bsicas formuladas e imputadas por todas as agncias profissionais so
necessidades para a defesa contra males.
Os professores e cientistas sociais que hoje procuram culpar os militares
pela destrutividade das sociedades mercantilizadas intensamente so gente
que tenta deter, de forma bastante torpe, a eroso de sua prpria
legitimidade. Alegam que os militares levam o sistema industrial a este
estado frustrador e destrutivo, e distraem, desta maneira, a ateno da
natureza profundamente destruidora de uma sociedade de mercado
intensivo que leva seus cidados s guerras de hoje. A quantos procuram
proteger a autonomia profissional como uma vtima do estado militarizado, se
responder com uma simples alternativa: a direo que os cidados livres
devem seguir a fim de superar a crise mundial.
a) Rumo ao fim de uma poca
Para o senso comum, so cada vez mais evidentes as iluses que
levaram a instituir as prprias profisses como rbitro das necessidades
cada vez mais evidentes. Freqentemente, a gente v j o que realmente so
os procedimentos no setor de servios por exemplo, os das companhias de
seguros, ou os rituais que ocultam aos olhos do emaranhado formado pelo
provedor-consumidor a posio existente entre o ideal em honra do qual se
rende o servio e a realidade engendrada por este servio. As escolas
que prometem a mesma ilustrao para todos geram uma meritocracia
degradante e uma dependncia permanente de uma tutoria cada vez maior.Os veculos compelem todos a irem cada vez mais longe e a correrem mais.
Mas o pblico ainda no tem claras as possibilidades de escolha. Os projetos
patrocinados pelos lderes profissionais poderiam desembocar no surgimento
de credos polticos compulsivos (com suas verses que acompanham um novo
tipo de fascismo), ou ento as experincias que os cidados
empreendessem poderiam desfazer nossa hybris como se fosse outra coleo
histrica de loucuras, se bem neoprometeicas, embora essencialmenteefmeras. Uma opo informada requer que examinemos o rol especfico
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das profisses para determinar quem nesta Idade obtm que coisa e por qu.
Para ver o presente com clareza, imaginemos as crianas que logo
brincaro entre as runas das escolas secundrias, dos Hiltons e dos hospitais.
Nestes castelos profissionais convertidos em catedrais, construdos para
proteger-nos da ignorncia, contra o desconforto, a dor e a morte, os meninos
de amanh representaro de novo nas suas brincadeiras as desiluses de
nossa Idade das Profisses, tal como ns reconstitumos as cruzadas dos
cavaleiros contra o pecado e os turcos, na Idade da F, em antigos
castelos e catedrais. Em seus brinquedos, as crianas asso-ciaro o grasnido
universal que contamina hoje nossa linguagem com os arcasmos herdados dos
grandes gngsters e dos caubis. Imagino-os chamando-se uns aos outros de
Senhor Presidente da Assemblia ou Senhor Secretrio, em vez de
Chefe ou Xerife.
Recordaremos a Idade das Profisses como aque le tempo em que a
poltica entrava em decomposio quando os cidados, guiados por
professores, confia vam a tecnocratas o poder de legislar sobre suas
necessidades, a autoridade de decidir sobre quem necessitava de tal coisa e o
monoplio dos meios que satisfaziam estas necessidades. Lembraremos como a
Idade da Escolarizao os tempos em que se treina vam as pessoas durante
um tero da vida para que acumulassem necessidades prescritas, para durante
os dois teros restantes passarem a ser clientes de prestigiosos traficantes que
dirigiam seus hbitos. Recordaremos a Idade das Profisses como aquela na
qual as viagens de recreio significavam o olhar fixo e formal para os
estranhos e na qual a intimidade era um requentado programa de
televiso da noite anterior, e votar era dar sua aprovao a um vendedor
s para alcanar mais dele.
Os estudantes do futuro se sentiro to confundidos pelas supostas
diferenas entre as instituies profissionais capitalistas e as socialistas, como
se sentem os estudantes de hoje com as pretendidas diferenas entre as
ltimas seitas crists reformadas. Descobriro tambm que os bibliotecrios
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profissionais, os cirurgies, os desenhistas de supermercados nos pases
pobres ou nos pases socialistas, em fins de cada decnio, terminam com os
mesmos registros, utilizando os mesmos instrumentos e construindo os
mesmos espaos que seus colegas dos pases ricos tinham introduzido nosincios da dcada. Os arquelogos no fixaro os perodos de nossa Idade
de acordo com os restos de cermica encontrados nas escavaes, e sim com
as modas profissionais refletidas nas tendncias das publicaes das
Naes Unidas.
Seria pretensioso predizer se esta Idade, na qual as necessidades se
projetam profissionalmente e de antemo, ser lembrada com um sorriso ou
uma maldio. Naturalmente, espero que se lembrar da noite em que o pai
saiu para a pndega, malbaratou a fortuna da famlia e obrigou os filhos a
comearem do nada. Desgraadamente, muito mais provvel que esta
Idade seja lembrada como os tempos em que toda uma gerao se lanou
numa busca frentica de riqueza empobrecedora, permitindo a alienao
de todas as liberdades, e que depois de ter posto a poltica merc das
garras organizadoras dos receptadores de bem-estar, deixou que se extinguisse
num totalitarismo tcnico.
b) As profisses dominantes
Enfrentemos primeiro o fato de que as associaes de especialistas que
atualmente dominam a fabricao, a adjudicao e a satisfao de
necessidades formam um novo tipo de cartel. E importante tambm saber
reconhecer as novas caractersticas essenciais do profissional no industrialismotardio. Se no se reconhecerem, ocorrer inevitavelmente, no momento da
discusso, o novo biocrata se ocultar por trs da mscara benvola do
mdico da famlia de antanho; o novo pedocrata, em seus esforos para
modificar comportamentos, tomar a forma do inocente mestre de
Kindergarten, que faz umas experi ncias interessantes, e a luta que
travemos contra o novo selecionador de pessoal, armado de todo um
arsenal psicolgico para a degradao, ser levada a cabo ineludivelmentecom as antigas tticas desenvolvidas para defender-se contra o capataz da
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fbrica. Se devssemos batizar a estes novos profissionais, eles
mereceriam ser chamados de algum termo diferente, que ainda no temos.
As novas profisses se encontram entrincheiradas muito mais profundamente
que uma burocracia bizantina. So mais internacio nais que uma igrejauniversal, mais estveis que um sindicato, dotadas de maiores capacidades
que qualquer xam e exercem um domnio mais forte que o de qualquer mfia
sobre aqueles que desejam controlar.
Entretanto, devemos distinguir cuidadosamente entre os novos especialistas
organizados e os chantagistas mafiosos. Por exemplo: os educadores podem
atualmente dizer sociedade o que deve aprender e podem desqualificar
tudo que for aprendido fora da escola. De acordo com este tipo de
monoplio, que lhes permite impedir que voc faa suas compras em qualquer
outro lugar ou que voc fabrique seu prprio licor, pareceria primeira vista
que lhes quadra a definio que o dicionrio d palavra gngster. Mas os
gngsters acuam uma necessidade bsica, ao controlar os acontecimentos
em proveito prprio. Atualmente os mdicos e os assistentes sociais
como antes os sacerdotes e advogados ganham um poder legal de criar
necessidades que, de acordo com a lei, somente eles podem satisfazer.
Convertem o estado moderno numa corporao que abarca outras
empresas, as quais, por sua vez, facilitam o exerccio de suas capacidades,
garantidas pelas mesmas empresas.
O controle legalizado sobre o trabalho tomou muitas formas distintas:
os soldados ocasionais recusavam lutar enquanto no tivessem licena para
saquear. Lisstrata organizou as mulheres submetidas para, pelo
refreamento do sexo, obrigar os seus homens paz. Os doutores de
Cos se juramentaram para divulgar somente aos filhos os segredos do
oficio. Foram as corporaes que estabeleceram os currculos, as oraes, os
exames, as peregrinaes e as provas por que teve de passar Hans Sachs
antes que lhe permitissem calar seus vizinhos do burgo. Nos pases
capitalistas, os sindicatos procuram controlar quem h de trabalhar,
durante quantas horas e qual o salrio a perceber. Todas estas associaes
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representam os esforos que os especialistas fazem para determinar
como e por quem dever ser feito certo tipo de trabalho. Mas nenhum
destes grupos constitui uma profisso em sentido estrito. As profisses
tirnicas de hoje, das quais constituem um bom exemplo os mdicos oexemplo, literalmente, mais doloroso vo muito mais longe: eles decidem
sobre o que que se deve fabricar , por quem e como se deve
administrar. Elas proclamam um conhecimento especial, incomunicvel, no
somente sobre o que as coisas so e como devem ser feitas como
tambm sobre a razo por que se deve necessitar de seus servios. Os
comerciantes vendem os artigos que armazenam. Os homens do grmio
garantem a qualidade. Alguns artesos confeccionam o artigo de acordo comas medidas e os desejos do cliente. Os profissionais dizem a voc o que
que voc precisa. Reclamam para si o poder de receitar. No s
recomendam o que bom, como tambm decretam o que correto. A
caracterstica do profissional no nem o lucro, nem uma longa preparao,
nem as tarefas delicadas, nem a condio social. Seus rendimentos podem ser
baixos ou consumidos pelos impostos, sua preparao pode demorar
semanas em vez de anos. Seu status pode ser comparado ao da profissomais antiga da Histria. Melhor: a autoridade que o profissional tem para
tomar a iniciativa de definir uma pessoa como cliente, para determinar as
necessidades dessa pessoa e para entregar a essa pessoa uma receita
que a defina neste novo rol social. Ao contrrio das prostitutas de antanho, o
profissional moderno no aquele que vende o que os outros do grtis,
principalmente aquele que decide o que se deve vender e no se deve
entregar gratuitamente.
Existe outra diferena entre o poder profissional e o de outras
ocupaes. Este poder provm de fontes distintas. Uma corporao,
um sindicato ou uma mfia obrigam a respeitar seus interesses e direitos
por meio das greves, do suborno ou da violncia aberta. Uma profisso, tal
como um clero, exerce o poder cedido pela elite, cujos interesses apia.
Tal como um clero oferece o caminho da salvao seguindo os passos de umsoberano ungido, uma profisso interpreta, protege e administra um interesse
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especial e deste mundo aos sditos de uma sociedade moderna. O poder
profissional uma forma especial que o privilgio assume para receitar o que
correto para os d emais e que, portanto, precisam d isso. E st e poder
a fonte de status e de mando na Idade industrial tardia. Este tipo de poderprofissional s pode existir nas sociedades em que pertencer elite se
consegue e legit ima por meio do status profissional. Isso cai
perfeitamente bem Idade em que, at o acesso ao Parlamento, ou
seja, Cmara dos Comuns, se encontra, de fato, rest rito a quantos
obtiveram o ttulo de mestre que abona seu patrimnio de conhecimentos
armazenados, ministrados na universidade. A autonomia e a licena profissonal
para definir as necessidades da sociedade so a forma lgica que aoligarquia adota numa cultura poltica que substitui as antigas formas de
credibilidade por certificados de stocks de conhecimentos entregues pelas
universidades. O poder que as profisses tm sobre o trabalho que seus
membros realizam diferente, portanto, no so mente quanto a sua
exte ns o como tambm quanto a sua origem.
c) As profisses tirnicasO mdico ambulante se converteu em doutor em medicina quando deixou o
comrcio dos medicamentos aos farmacuticos e reservou para si a
faculdade de receitar. Nesse momento, ganhou uma nova forma de
autoridade, juntando trs papis num s personagem. A autenticidade
sapiente para aconselhar, instruir e dirigir; a autoridade moral que faz sua
aceitao no s til mas obrigatria; e a autoridade carismtica que permite
ao mdico apelar a certo interesse supremo de seus clientes, que no sest por cima de sua conscincia, como, s vezes, at por cima da razo
de estado. Naturalmente, este tipo de doutor ainda existe, mas dentro do
sistema mdico moderno uma figura do passado. Atualmente bastante
mais comum um novo tipo de cientista da sade aplicada. Cada vez mais se
ocupa de casos e no de pessoas; ocupa-se dos desvios que detecta no
caso, mais do que da dor que aflige o indivduo; protege o interesse da
sociedade mais do que o inter esse da pessoa. Os tipos de autoridade que se
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acumularam na imagem do doutor dos velhos tempos, durante os anos de
liberalismo, e que colaboravam com o facultativo individual no tratamento do
paciente, so desempenhados atualmente pela corporao profissional a servio
do Estado. E a esta instituio que se atribui hoje uma misso social.
Nos ltimos vinte e cinco anos, a medicina se converteu, de uma profisso
liberal, numa profisso dominante ao adquirir o poder de indicar o que
constitui uma necessidade de sade para o po vo em ge ra l. Os
especialistas da sade, enquanto corpora o, adquiriram a autoridade para
determinar que tipo de ateno mdica se deve ministrar sociedade em
geral. J no um indivduo profissional o que atribui uma necessidade a
outro indivduo como cliente, e sim uma agncia corporativa que atribui uma
necessidade a camadas inteiras da populao e que, depois, se arroga o
mandato de submeter prova a popula o inteira a fim de identificar
aqueles que pertencem ao grupo dos clientes potenciais. E o que acontece na
esfera do atendimento mdico totalmente coerente com o que acontece
em outros domnios. Cada dia, uma nova seita se atribui uma nova misso
teraputica e esta misso ganha legitimidade pblica. Obviamente, os
educadores conquistaram o poder de diagnosticar e ministrar terapias do
comportamento, como tambm os trabalhadores sociais, os policiais e os
arquitetos, tal como os mdicos, que gozam de ampla autoridade para criar
instrumentos de diagnstico que util izam para caar o cliente,
instrumentos que o pblico j no ousa checar. Dezenas de fabricantes
de outras necessidades procuram imit-los. Os banqueiros internacionais
se atribuem o poder de diag nosticar as necessidades chilenas, sob Allende ou baixo Pinochet, e de definir as condies sem as quais no
ministraro as terapias. Os especialistas da segurana avaliam o risco que
vrios tipos de cidados representam e se atribuem a competncia de
invadir o seu ambiente privado. J no h jeito de parar a escalada de
necessidades se no se expem de forma poltica aquelas iluses que
legitimam a tirania profissional. Muitas profisses se encontram to
firmemente estabelecidas que no s exercem tutoria sobre o cidado-feito-cliente como tambm do forma a seu mundo-convertido-em-custo/dia.
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A linguagem em que se percebe a si mesmo, sua percepo dos direitos
e liberdades, e sua conscincia das necessidades, derivam da hegemonia
profissional. A diferena existente entre o arteso, o profissional liberal e o
novo tecnocrata pode tornar-se clara se enfatizamos suas tpicas reaes ante agente que desprezava seus respectivos conselhos. Se algum desprezava o
conselho do arteso, era um louco. Se algum desprezava o conselho liberal,
era condenado pela sociedade. Se algum escapa atualmente da ateno
que o cirurgio ou o psiquiatra decidiram aplicar-lhe, o governo ou a
profisso mesmo podem ser inculpadas.
De arteso-mercador ou conselheiro culto, o profissional se transformou
num cruzado filantropo que sabe como se deve alimentar as crianas, que
alunos devem continuar os estudos mais avanados e que remdios a pessoa
no deve tomar. De tutor que observava enquanto algum decorava a
lio, o mestre-escola se transformou num educador cuja cruzada
moralizadora lhe confere ttulo para intrometer-se entre algum e
qualquer coisa que deseje aprender. At os empregados do canil de Chicago
se transformaram em tcnicos de controle canino. Como resultado dessa
mudana, o custo para eliminar um ca chorro se elevou em vinte anos de
$7.50 para $320.00 dlares. Entretanto, 5.4% de todas as leses tratadas
no hospital Cook County o maior do mundo so mordidas do melhor
amigo do homem.
Os profissionais exigem um monoplio sobre a definio de desvio de
conduta e sobre suas solues. Por exemplo: os advogados afirmam que
somente eles tm competncia e direito legal para dar assistncia num
divrcio. Se algum descobre um mtodo para um divrcio faa voc
mesmo, vai se meter numa dupla complicao: se no for advogado,
expe-se acusao de prat icar sem l icena; se membro de um
escritrio de advocacia , p ode ser expulso por falta de tica profissional.
Os profissionais proclamam tambm um saber oculto sobre a natureza
humana e suas fraquezas, saber que s eles podem aplicar com
vantagem. Os coveiros, por exemplo, no se transformaram em
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mem bro s de uma profisso por passarem a chamar-se empresrios de
pompas fnebres, nem por obter diplomas escolares, nem por aumentarem
os lucros, ou por se libertarem do odor que acompanha seu negcio quando
um deles se elege presidente do Lions Club. Mas os empregados de pompasfnebres formam uma profisso, dominante e inabilitante, a partir do
momento em que tm fora para conseguir que a polcia impea o teuenterro
se no tiveres sido embalsamado e encaixota-'do por eles. Em qualquer
campo em que se possa imaginar uma necessidade humana, estes novos
profissionais inabilitantes proclamam ser os especialistas exclusivos do bem
pblico.
d) As profisses estabelecidas
A transformao de uma profisso liberal em dominante equivalente ao
estabelecimento legal de uma igreja de estado. Os mdicos transformados em
biocratas, os professores em gnoseocratas, os agentes funerrios em
tanatocratas algo que est muito mais prximo das clerezias subsidiadas
pelo Estado do que as associaces comerciais. O profissional, como mes tre da
linha de moda da ortodoxia, atua como telogo. Como empresrio moral,atua no papel do sacerdote: com sua atuao, cria a necessidade para sua
mediao. Como cruzado benefactor, atua no papel de missionrio
caa de ovelhas transviadas. Como inquisidor, pe fora da lei o no -
ortodoxo: impe suas solues ao recalcitrante que recusa reconhecer-se como
problema. Esta investidura multifacetada, combinada com a tarefa de aliviar os
inconvenientes especficos da condio humana, faz que cada profisso seja
anloga a um culto estabelecido. A aceitao pblica das profissestirnicas essencialmente um fato poltico. Toda afirmao nova de
legitimidade profissional significa que as tarefas polticas de legislar, a reviso
judicial de casos e o poder executivo perdem algo de sua independncia e de
suas caracteristicas prprias. Os assuntos pblicos passam das mos de
leigos escolhidos por seus semelhantes s de uma elite que se outorga seus
prprios crditos.
Quando a medicina sobrepujou recentemente suas limitaes liberais,
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invadiu o campo legislativo e estabeleceu normas pblicas. Os mdicos sempre
tinham determinado em que as enfermidades consistiam; atualmente a
medicina determina quais so as enfermidades que a sociedade no tolerar. A
medicina invadiu as cortes de justia. Os mdicos sempre ti nhamdiagnosticado quem era o enfermo; atualmente porm a medicina resolve sobre
os que merecem tratamento. Os mdicos liberais prescreviam um
tratamento: a medicina dominante tem poderes pblicos de retificao;
ela decide o que teremos de fazer com o doente.
Numa democracia, o poder de legislar, de aplicar as leis e de fazer justia
deve derivar dos prprios cidados. Este controle do cidado sobre os
poderes chaves foi restringido, enfraquecido e at abolido pela ascenso de
profisses clericais. Um governo que dita suas leis de acordo com as
opinies tcnicas de tais profisses pode ser um governo para o indivduo
mas nunca do indivduo. Este no o momento de pesquisar quais foram as
intenes para enfraquecer assim o poder politico, se a tirania profissional
legitimou a sua invaso do poder legislativo por estar a servio da classe
mdia, de quantos ganharam o poder com o suor do rosto, da
multinacional ou da tentativa de estabelecer o socialismo, ou se
respondendo indagao de a cada um segundo seu trabalho ou a
cada qual segundo suas necessidades. Como condio necessria para tal
subverso, basta indicar a desqualificao da opinio do vulgo p or parte
dos profissionais.
As liberdades civis se fundam na norma que exclui todo testemunho
de ouvido das declaraes em que se baseiam as decises pblicas. O que a
pessoa pode ver por si mesma e interpretar deveria ser a base comum
para estabelecer normas obrigatrias. As opinies, as crenas, as dedues ou
persuases no deveriam ser levadas em conta quando entram em conflito com
testemunhos oculares: invertendo esta norma, as elites de tcnicos
poderiam converter-se em profisses dominantes. Nos aparelhos legislativos
e nas cortes de justia, descartou -se, de fato, o regulamento contra a
evidncia que antes proporcionava testemunhos orais e oculares e se
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substituiu pelas opinies proferidas pelos membros destas elites que se
auto-abonam.
Mas seria arriscado confundir o uso pblico de conhecimentos tcnicos
com o juzo normativo entregue ao exerccio corporativo de uma profisso.
Quando a corte de justia citava um perito artesanal por exemplo, um
fabricante de armas para que revelasse ao jri os se gredos de seu
ofcio, nesse mesmo lugar ele poderia instruir o jurado sobre sua arte.
Apontava, numa demonstrao prtica, a parte do carregador do revlver de
onde a bala tinha part i do. Hoje, a maioria dos tcnicos desempenha papel
diferente. O profissional dominante leva ao jri ou aos legisladores a
opinio dos colegas, todos iniciados na matria, em vez de apresentar
evidncia baseada em fatos e em alguma destreza. Atua como telogo a
servio da corte. Exige que se suspenda o regulamento dos testemunhos
de ouvido, e solapa inevitavelmente o poder da lei. Deste modo, o poder
democrtico se enfraquece cada vez mais.
e) A hegemonia das necessidades imputadas
Se no fosse por estar o indivduo pronto a considerar como carncia o
que os tcnicos lanam em sua conta como necessidade, as profisses no
teriam podido chegar a tornar-se dominantes e inabilitantes.
A dependncia entre uns e outros (como tutores e alunos) se tornou
resistente anlise porque se acha obscurecida por uma linguagem
degenerada. As boas palavras de antigamente se transformaram em ferros
em brasa que reclamam o controle dos tcnicos sobre o lar, a loja, o
comrcio e o espao e sobre tudo o que ocorre nesse meio. A linguagem,
o bem comum mais fundamental, se acha contaminada assim por esses
fiapos de gria retorcidos, pegajosos, cada um sujeito ao controle de uma
prof isso. O empobrecimento das palavras, o esgotamento da
linguagem cotidiana e sua degenerao em terminologia burocrtica
equivalem, de maneira mais intimamente degradante, de gradao
ambiental to discutida. No se pode propor mudanas possveis nos
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planos, nas atitudes e nas leis se no nos fazemos mais sensveis ao
repdio destes nomes errneos que s ocultam a dominao. Quando
aprendi a falar, falava-se de problemas somente nas matemticas ou no
xadrez, de solues s quando eram salinas ou jurdicas, e necessitarse conjugava, mas quase no se usava como substantivo. As expresses
tenho um problema ou tenho uma necessidade soavam loucas.
Quando cheguei adolescncia, e Hitler buscava solues, tambm se
estendeu o problema social. Descobriram-se meninos problemas com
matizes sempre novos, entre os pobres, medida que os trabalhadores sociais
aprendiam a catalogar suas vtimas e a padronizar suas necessidades. A
necessidade, usada como substantivo, chegou a ser a forragem queengordou as profisses at a tirania. Assim se modernizou a pobreza. Os
novos termos transformaram uma experincia pessoal e comunitria em
assunto de tcnicas: os pobres se fizeram necessitados.
Durante a segunda metade de minha vida ser necessitado chegou a
constituir algo respeitvel. As necessidades, computveis e imputveis,
promoviam na escala social. Ter necessidades deixou de ser um sinal de
pobreza. O rendim ento econmico abru novos registros de necessidades.
Spok, Comfort e os divulgadores de Nader treinaram os leigos na compra de
solues dos problemas que tinham aprendido a cozinh ar de acordo com
receitas profissionais. A educao qualificou os diplomados para subirem
a alturas cada vez mais raras e plantar e cultivar ali cepas sempre novas
de necessidades hbridas.
Cada vez mais, um nmero crescente de medicamentos teve que ser
adquirido com receita autorizada. Aumentou a prescrio e diminuiu a
competio. Por exemplo, na medicina, recetaram -se cada vez mais
remdios farmacologicamente ativos e as pessoas perderam a vontade e a
habilidade de enfrentar uma indisposio ou um mal-estar. Cerca de mil e
quinhentos produtos novos aparecem cada ano nas prateleiras dos
supermercados norte-americanos: depois de um ano s 20%
sobrev ivem. O resto se retirou aps algum tempo, tendo servido aos
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vendedores como gancho, seja para experncias, ou por terem sido moda
efmera, ou por se terem revelado perigosos para o consumidor,
antieconmicos para o produtor ou por no terem resistido competio.
Cada vez mais, os consumidores se vem forados a procurar ajuda dosprotetores profissionais do consumidor.
Alm do mais, a substituio constante dos produtos faz que os desejos
se tornem superfcias e plsticos. Embora soe paradoxal, o resultado que
o consumo elevado segue a par de uma nova forma de indiferena de parte do
consumidor: quanto maior for o nmero, o volume e a especificidade das
necessidades que se lhes atribui profissionalmente, m aior se torna a
indiferena para satisfazer seus prprios desejos, que j no sabe especificar.
Cada vez mais, as necessidades se criam por slogans comerciais, as compras
se fazem por ordens do decano universit rio, ou das especialistas em
beleza, ou do gineclogo, do diet ista e de dezenas de outros
diagnosticadores com poder de receitar. O resultado lgico que os
quiromantes e os astrlogos nunca tenham experi mentado tanta
prosperidade quanto hoje. Uma atri buio desse tipo parece quase razovel
numa cul tura em que a ao prpr ia no o resu ltado de uma
experincia pessoal em busca de uma satisfao, e em que o consumidor
conseqentemente adaptado substitui as necessidades sentidas pelas
aprendidas. A medida que a pessoa se torna tcnica na arte de
apren der a necessitar, chega a ser cada vez mais remota a capacidade
de aprender a moldar os desejos de acordo com a experincia. A
medida que as necessidades se partem em pedacinhos cada vez maispequenos, cada um ministrado pelo especialista apropriado, o consumidor
sente dificuldade de integrar num todo significante que se pudesse
desejar com empenho e possuir com gosto as ofertas que em separado lhe
fazem seus distintos tutores. Os administradores de empresa, os conselheiros
do estilo de vida, os assessores acadmicos, os especialistas em dieta de
moda, os desenvolvedores da sensibilidade e outros semelhados, percebem
claramente as novas possibilidades de controle e se mobilizam paraequiparar os bens enlatados com estas necessidades interesseiras.
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Necessidade, empregado como substantivo, a reproduo individual de
um modelo profissional; a rplica em isopor do molde no qual os profissionais
marcam seus artigos; o molde publicitrio do favo de mel do qual se
fabricam os consumidores. Ser ignorante ou no estar convencido dasprprias necessidades chegou a ser o ato de dissoluo social imperdovel. O
bom cidado aquele que se atribui necessidades grampeadas umas s
outras com tal convico que afoga qualquer desejo de procurar alternativas
ou de renunciar a estas necessidades.
Quando nasci, antes que Stalin, Hitler ou Roosevelt fossem conhecidos,
s os ricos, hipocondracos e membros dos sindicatos poderosos falavam de
necessidades de cuidados mdicos quando lhes subia a temperatura. Era uma
necessidade questionvel, porque os doutores no podiam fazer muito mais
do que a av tinha fe ito. Na medicina, a pr imeira mutao das
necessidades chegou com a sulfa e os antibiticos. Quando o controle
das infeces chegou a ser uma rotina simples e efetiva, cada vez mais
remdios passaram para a lista das receitas. A anotao da papeleta
mdica do enfermo passou a ser um mono plio do mdico. A pessoa que
se sentia mal tinha que ir a uma clnica para ser etiquetada com o nome
de uma enfermidade e poder assim ser declarada legitimamente membro da
minoria dos chamados doen tes; ou seja: pessoas dispensadas do trabalho,
necessitando de ajuda, colocadas sob ordens mdicas e obr igadas a ser
curadas, a fim de voltar em a ser novamente teis. Em outras palavras:
quando a tcnica farmacolgica teste e medicamentos chegou a ser to
barata e predizvel que a gente poderia ter prescindido do mdico, osacerdcio mdico chamou em seu auxlio o brao secular.
A segunda mutao que as necessidades mdicas experimentaram ocorreu
quando o doente deixou de ser minoria. Atualmente, muito poucas pessoas
se livram de estar sob ordens mdicas durante algum lapso de tempo.
Tanto na Itlia, como nos Estados Unidos, na Frana ou na Blgica, um de
cada dois cidados est sendo acompanhado simultaneamente por mais de
trs profissionais da sade, que o tratam, aconselham-no ou simplesmente o
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observam. O objeto desta ateno especializada , na maior parte dos
casos, a condio dos dentes, do tero, das emoes, da presso sangunea
ou dos nveis hormonais, que o prprio paciente no est percebendo. Os
pacientes j no so minoria. Os que so minoria atualmente so os vriostipos de transviados que escapam de um modo ou de outro das
diferentes listas de pacientes. Esta minoria est constituda pelos pobres, os
camponeses, imigrantes recentes e vrios outros que, s vezes por
vontade prpria, se converteram em desertores do sistema mdico. H
somente vinte anos, constitua indcio de sade normal, que se presumia
bom, poder passar sem mdico. A mesma condio de no-paciente se
v hoje como indicadora de desamparo ou de dissidncia. At mesmo acondio de hipocondraco mudou. Para um profissional liberal, esta era a
etiqueta aplicvel e algum que chegava batendo com a porta, ou seja,
designao reservada ao doente imaginrio. Agora, os mdicos a utilizam
para referir-se minoria que lhes escapa: hipocondracos so os sos
imaginrios. Ser parte do sistema profissional, como cliente toda a vida, j
no um est igma que separa o incapacitado do c idado comum.
Vivemos hoje numa sociedade organizada para as maiorias transviadas epara seus guardies. Ser cliente ativo de muitos profissionais no permite
ter um lugar bem definido no reino dos consumidores para os quais esta
sociedade funciona. Deste modo, a transformao da medicina, de profisso
liberal de consulta, em profisso dominante e inabilitante, aumentou
incomensuravelmente o nmero de necessitados.
Neste momento crtico, as necessidades imputadas experimentam suaterceira mutao. Esto-se fundindo no que os tcnicos chamam problema
multi-disciplinar e que, portanto, requer uma soluo multi-profissional. Em
primeiro lugar, a multiplicao das mercadorias, procurando cada uma delas
converter-se numa exigncia para o homem moderno, conseguiu um
treinamento eficaz do consumidor para necessitar quando lhe fosse ordenado
que necessitasse. Depois, a fragmentao progressiva das necessidades em
partes cada vez menores e mais desconectadas conseguiu que o clientedependesse do juzo profissional para poder combinar suas necessidades
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num todo que tivesse sentido. Um bom exemplo nos d a indstria automotriz.
Em fins dos anos sessenta, o equipamento opcional que se necessitava
para fazer desejvel um Ford comum havia aumentado enormemente. A
maior parte desse equipamento era instalada na prpria cidade de Detroit,e o comprador que vivia em Plains ou em qualquer outra cidade somente
tinha a possibilidade de escolher entre o conversvel que desejava, mas com
os assentos verdes que ele detes tava, e o com assentos de pele de leopardo
que ia alegrar a namorada, mas com teto comum. O consumidor, que j havia
aprendido a depender da merca doria, agora tem que aprender a
resignar-se que outros escolham por ele.
Por fim, o cliente treina para que necessite de uma ajuda-de-equipe ao
receber o que seus guardies consideram um tratamento satisfatrio. Os
servios pessoais que fazem o consumidor sentir-se melhor ilustram este
ponto. A abundncia teraputica esgotou o tempo de vida disponvel de
muitas pessoas sobre as que os servios profissionais diagnosticaram
necessitar ainda mais. A intensidade da economia de servios tornou
cada vez mais insuficiente o tempo, de que se necessita para o consumo de
tratamentos pedaggicos, mdicos ou sociais. A escassez de tempo pode
converter -se muito cedo no maior obstculo para o consumo de
servios receitados, amide financiados por organismos pblicos.
Sintomas desta escassez vo-se tornando evidentes desde os primeiros
anos de qualquer pessoa. Desde o jardim da infncia, a criana est sujeita ao
controle de uma equipe constituda de especialistas, como o alergista, o
patologista da linguagem, o pediatra, o psiclogo infantil, o trabalhador social,o instrutor de educao fsica e o professor. Ao formar uma equipe
pedocrtica (de poder sobre a criana) de tal tipo, muitos profissionais
tentam compartir o tempo que se converteu no fator mais limitante da
aplicao de novas necessidades. Para o adulto, no no colgio, mas no local
de trabalho que se concentram os pacotes de servios. O chefe de pessoal,
o tcnico em formao profissional, o instrutor de planto, o planificador de
seguros, o animador de responsabilidades, conside ram proveitosocompartilhar o tempo do operrio que competir por ele. Um cidado sem
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necessidades seria suspeitoso. Diz-se s pessoas que se precisa de seu
trabalho no tanto pelo dinheiro que ganham como pela prestao de
servios que obtm. As coisas comuns se extinguiram e foram substitudas
por uma nova matriz, feita de condutos que fornecem servios profissionais. Avida se acha paralisada num permanente cuidado intensivo.
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3COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES
A inabilitao de cidados mediante a cominao profissional se completa
por meio do poder da iluso. A religio deslocada, em ltima instncia, no
pelo Estado, mas pelas esperanas postas nos profissio nais. Eles
proclamam um conhecimento especial para definir os assuntos pblicos em
termos de problemas. A aceitao desse clamor legitima o reconhecimento
dcil por parte do leigo das carncias impostas, seu mundo se transforma em
uma caixa de ressonncia de necessidades. Esta. dominao se reflete no perfil
da cidade. Os edificios profissionais olham para as multides que formigam
entre eles, em peregrinao contnua, rumo s novas catedrais da sade, da
educao e do bem-estar. Os lugares sos se transformam em departamentos
higinicos onde ningum pode nascer, adoecer ou morrer decentemente. No
s os vizinhos serviais, mas tambm os mdicos liberais, que visitavam as
casas, so espcies em extino. Os locais de trabalho adequados para a
aprendizagem se con vertem agora em opacos labirintos de corredores quepermitem o acesso somente a funcionrios equipados com cartes de
identificao. Os ambientes profissionais so o ltimo refgio dos dependentes
de medicamentos.
A adio prevalecente s necessidades imput veis por parte dos ricos e
a fascinao paralisadora frente s necessidades por parte do pobre seriam
completamente irreversveis se as pessoas e o clculo de necessidades
fossem equiparveis. Mas no assim. Alm de certo nvel, a medicina
engendra desamparo e enfermidade; a educao se converte no maior
gerador de uma diviso inabilitante do trabalho; os sistemas de transporte
veloz transformam as pessoas em passageiros durante 17% de suas horas
te is e , por uma quantidade igual de tempo, em membros das
quadrilhas de trabalhadores de estradas que trabalham para pagar o Ford, a
Esso e o Departamento de Estradas. O nvel no qual a medicina, aed uca o ou o tra nsp ort e se co nv er tem em in str u mentos
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