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13 de fevereiro de 2002 – edição 1738 Claudio de Moura Castro A (falsa) crise do vestibular "É a má qualidade das escolas de 1º e 2º graus que gera candidatos mal preparados. Permitir que passem mais quatro anos estudando é parte da solução, não do problema" Ilustração Alê Setti Mesmo eventos nefastos podem ser fonte de educação para a sociedade. O escandaloso julgamento de O.J. Simpson foi um curso de direito penal. A crise argentina deixa lições para o Brasil. Infelizmente, na educação os eventos não costumam deixar lições. No teste do Pisa, prenhe de ensinamentos, a única notícia foi o último lugar do Brasil. O incidente do analfabeto no vestibular da Estácio de Sá virou munição para acertos de conta. Mas podemos aproveitá-lo para iluminar o processo de entrada no superior. Todos os anos, dezenas de milhares de alunos, ainda cursando o 2º grau, fazem vestibular para as universidades federais. É uma prática para o aluno e um dinheirinho extra para as universidades. Mas, não tendo diploma, não podem matricular-se. O candidato da Estácio foi o mesmo caso, pois para fazer o exame e ganhar nota não precisou de diploma. Como não foi matriculado, não houve ilegalidade. O presente sistema de vestibular tomou corpo cerca de trinta anos atrás, quando as instituições federais abandonaram as tentativas de estabelecer critérios mínimos de aprovação. Quando as provas eram muito difíceis para os candidatos, sobravam vagas, gerando protestos e zangas. Quando eram fáceis demais, havia aprovados sem que houvesse vagas, gerando os "excedentes", que moviam ações legais para obter a matrícula. Escaldado com a situação, o MEC criou o vestibular puramente classificatório. A função da prova passou a ser somente a de ordenar os alunos por nível de conhecimento. Dadas as pontuações, são chamados os candidatos, até preencher todas as vagas. Pax romana nas províncias do vestibular.

A Falsa Crise Do Vestibular 13 de Fevereiro de 2002

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Page 1: A Falsa Crise Do Vestibular 13 de Fevereiro de 2002

13 de fevereiro de 2002 – edição 1738

Claudio de Moura Castro

A (falsa) crise do vestibular "É a má qualidade das escolas de 1º e 2º graus que gera candidatos mal preparados. Permitir que passem mais quatro anos estudando é parte da solução, não do problema"

Ilustração Alê Setti Mesmo eventos nefastos podem ser fonte de educação para a sociedade. O escandaloso julgamento de O.J. Simpson foi um curso de direito penal. A crise argentina deixa lições para o Brasil. Infelizmente, na educação os eventos não costumam deixar lições. No teste do Pisa, prenhe de ensinamentos, a única notícia foi o último lugar do Brasil.

O incidente do analfabeto no vestibular da Estácio de Sá virou munição para acertos de conta. Mas podemos aproveitá-lo para iluminar o processo de entrada no superior.

Todos os anos, dezenas de milhares de alunos, ainda cursando o 2º grau, fazem vestibular para as universidades federais. É uma prática para o aluno e um dinheirinho extra para as universidades. Mas, não tendo diploma, não podem matricular-se. O candidato da Estácio foi o mesmo caso, pois para fazer o exame e ganhar nota não precisou de diploma. Como não foi matriculado, não houve ilegalidade.

O presente sistema de vestibular tomou corpo cerca de trinta anos atrás, quando as instituições federais abandonaram as tentativas de estabelecer critérios mínimos de aprovação. Quando as provas eram muito difíceis para os candidatos, sobravam vagas, gerando protestos e zangas. Quando eram fáceis demais, havia aprovados sem que houvesse vagas, gerando os "excedentes", que moviam ações legais para obter a matrícula. Escaldado com a situação, o MEC criou o vestibular puramente classificatório. A função da prova passou a ser somente a de ordenar os alunos por nível de conhecimento. Dadas as pontuações, são chamados os candidatos, até preencher todas as vagas. Pax romana nas províncias do vestibular.

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Nas privadas e públicas, se os candidatos são em maior número que as vagas, o vestibular seleciona os melhores. Mas, com a expansão dos cursos, sobretudo nas grandes capitais, existem áreas com mais vagas que candidatos. Nesse caso, passam todos os que fazem a prova, pois é praticamente impossível não acertar alguma questão. Mesmo que haja redação, nada muda. Isso ocorre também em muitas federais. Se houver mais de nove vagas e só nove candidatos, aprovam-se os nove, mesmo que não saibam nada. Igualzinho à Estácio de Sá. Na ausência de níveis mínimos, se há menos candidatos que vagas, o vestibular é um mero rito, sem função prática. Para eliminar tal situação, só se voltássemos a exigir um mínimo de conhecimentos, abaixo do qual não se permitiria a entrada no superior.

Na Europa, há um exame de saída, podando os mais fraquinhos – que nem sequer se formam no ensino médio. Nos Estados Unidos, não há. A política é segmentar o ensino superior. Para uns, as universidades de elite, ferozmente competitivas. Para outros, os community e state colleges, que aceitam automaticamente todos os residentes no Estado. Nessas instituições, cujas funções incluem dar mais uma chance de aprender, um terço ou mais têm de fazer cursos de inglês e matemática, por serem semi-analfabetos.

No Brasil, tampouco existem exames de saída do médio e seria espinhoso criá-los, dadas as disparidades regionais. Considerando que nas federais praticamente não há níveis mínimos para entrar no ensino superior, será que o Estado deveria criá-los para as privadas? O Estado dificilmente poderia fazê-lo, ainda que fosse uma boa idéia, pois exigiria um vestibular único para todas. Claro, as privadas que queiram podem fixar o próprio mínimo (trabalho em uma faculdade onde a redação é eliminatória).

No fundo, são falsas respostas para falsos problemas. O vestibular nada mais faz que hierarquizar os candidatos pelo seu conhecimento. Pouca diferença faz se a prova é fácil ou difícil, ensaio ou múltipla escolha, é a concorrência que torna difícil a entrada. É claro que, se sobram vagas, entram todos. Ótimo, só resta a necessidade de recalibrar o ensino nas escolas que recebem os mais fracos, pois é contraproducente tentar ensinar o que eles não podem aprender.

Entendamos: é a má qualidade das escolas de 1º e 2º graus que gera candidatos mal preparados. Permitir que passem mais quatro anos estudando é parte da solução, não do problema, sobretudo se estão pagando do próprio bolso.