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    Andrew Feenberg

    Fenomenologia deMarcuse: lendo o captuloseis de O Homem

    unidimensional*

    O captulo 6 de o Homem Unidimensional apresenta uma memorvelsntese de conceitos fenomenolgicos e marxistas. O problema que Marcu-se coloca como explicar a conexo entre cincia, tecnologia e capitalismoenquanto um sistema de dominao. A problemtica originariamente foiarticulada a partir do marxismo, atravs de Lukcs em seu Histria e Cons-cincia de Classes(History and Class Consciousness). Lukcs sinalizou a

    congruncia entre os modos de pensamento cientfico moderno e da expe-rincia cotidiana no capitalismo.

    O que importante reconhecer claramente que todas as relaes hu-manas (vistas como objetos de atividade social) assumem de modo cres-cente a forma da objetividade dos elementos abstratos dos sistemas con-ceituais da cincia natural e dos substratos abstratos das leis da natureza.E, tambm, o sujeito dessa ao assume igualmente de modo crescente aatitude de observador puro desses- artificialmente abstratos- processos, a

    atitude daquele de experimenta.Lukcs est descrevendo a reificao da experincia atravs da qual elaperde seus atributos humanos e se torna semelhante aos fatos da cincianatural.

    [email protected]

    * Traduzido por Vanessa di Lego, integrante do Ncleo de Estudos doPensamento Contemporneo (NEPC/UFMG) e mestranda em Demografa peloCEDEPLAR/UFMG. Apoio tcnico de termos em alemo e conceitos flosfcos

    de Vitor Sommavilla de Souza Barros, mestrando em Filosofa/UFMG.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Esse o pano de fundo geral para a anlise de Horkheimer e Adornoem a Dialtica do Esclarecimento (Dialectic of Enlightenment). Eles focamna crtica a quantificao e apresentam a idia de um telos originrio datecnologia. Em cada caso os argumentos de Marcuse esclarecem a revisodo marxismo feita pela Escola de Frankfurt, mas no resolve plenamenteas suas dificuldades.

    De acordo com a Dialtica do Esclarecimento, a quantificao universaltrai o real poder do pensamento. A reduo do pensamento a um aparatomatemtico condena o mundo a ser a sua prprio medida. A expulsodas essncias atravs da reduo das coisas a seus aspectos mensurveisimpossibilita o pensamento de criticar ou de medir o mundo. A cincia

    figura portanto como cmplice do sistema de dominao que prevaleceno capitalismo. Essa cumplicidade vai alm de simplesmente fornecer aocapital a mquina que este precisa; ela tambm corrompe a experincia elamesma atravs da mediao das prticas quantificadoras do capitalismo nocotidiano. O trabalho abstrato e o fetichismo da mercadoria se tornam aspedras de toque da experincia, despindo-a de todas as qualidades norma-tivas. A eliminao de uma medida apropriada da sociedade priva os indi-vduos de fundamento para resistir conformidade de suas demandas. Isto

    o que Marcuse descreve como a unidimensionalidade. A sua anlise antecipada em linhas gerais na Dialtica do Esclarecimento.

    Essa anlise de quantificao difcil de conciliar com a noo que essespensadores compartilham de que a razo essencialmente um instrumen-to da vida. O seu telosimanente portanto fixo desde o princpio comoafirmao da vida, no destrutivo. No entanto, mediante o capitalismo amaestria tcnica foi transformada em um meio de dominao. Essa trans-formo afeta no somente odesigndas mquinas, mas tambm a estrutu-ra da razo moderna ela mesma.

    Na Dialtica do Esclarecimentotudo isso condensado em uma passa-gem na qual os autores descrevem a ambivalncia da mquina como algoque representa a humanidade como um todo, ao mesmo tempo que seapresenta como um instrumento de dominao.

    O atributo de coisa dos meios, o qual torna os meios universalmentedisponveis- a sua validade objetiva- para todos, em si mesmo implica emuma crtica da dominao da qual o pensamento surge como seu meio. Nocaminho da mitologia para a logstica, o pensamento no s perdeu o seu

    elemento de reflexo sobre si prprio, como tambm o maquinrio mutilaas pessoas, apesar de as alimentar. Na forma de mquinas, no entanto, arazo alienada est se movendo em direo uma sociedade que concilia

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    pensamento - em sua solidificao como um aparato tanto material comointelectual- e um elemento de liberao vivo, relacionando-o a sociedadeela mesma enquanto seu sujeito verdadeiro.

    Em suma, a mquina surgiu como um produto do pensamento dedicado sobrevivncia, isto , a razo. O elemento de dominao implcita naquelaorigem assumiu o poder de reflexo que tambm pertence essencialmenteao pensamento. Mas a sobra alienada da razo corporificada nas mquinas uma realidade objetiva e como tal refere-se a um sujeito universal, a hu-manidade como um todo, e no simplesmente a seus proprietrios. A suaobjetividade significa que ela deveria ser controlada por todos em interessede todos. Isso seria a realizao universal, social do pensamento, a qual

    obstruda pela sociedade capitalista existente.Adorno, Horkheimer e Marcuse concordam a respeito da origem da ra-

    zo e lamentam a sua forma truncada na sociedade moderna. De acordocom Horkheimer e Adorno, a racionalidade tcnico-cientfica moderna igualmente comprometida com a dominao por sua reduo quantifica-dora do real, bem como destinada apropriao pela humanidade comoum todo atravs da sua forma objetiva como maquinrio. A capacidade dereflexo mutilada deve ser recuperada para realizar esse destino. Somente

    na reflexo que os seres humanos reconhecem as suas limitaes natu-rais e assim moderam a sua luta de dominar a natureza. Uma humanidadereflexiva pode orientar a luta com a natureza em rumo a seu verdadeiroobjetivo: a preservao e a proteo da vida. De acordo com Marcuse, a ra-cionalidade tcnico-cientfica est envolvida na dominao, mas ela podeser reapropriada atravs da emergncia de uma nova forma de experinciaque restauraria o seu propsito original, a saber, a preservao da vida. Istoseria um modo de experincia em resposta as potencialidades das pessoase coisas.

    Marcuse chega a concluses muito mais radicais a partir de sua cr-tica da cincia e tecnologia do que simplesmente uma nfase na reflexoem a Dialtica do Esclarecimento. Horkheimer e Adorno no explicam quemotivo poderia mover as pessoas a refletir, tampouco qual reflexo seriarevelada a elas para alm de seus limites. Para salvar o Esclarecimento de simesmo aquelas pessoas deveriam superar o dano causado por sua experi-ncia e pela razo nas mos do sistema.

    Talvez a implausibilidade de tal desenvolvimento explica o crescente

    hiato entre a teoria de Horkheimer e Adorno e a real prtica poltica. Talhiato finalmente culmina na rejeio por parte deles da Nova Esquerda.

    A Nova Esquerda foi recebida de forma bem diferente por Marcuse.

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    Com base em sua anlise de movimento, ele imaginou uma nova estruturade experincia. A partir de tal estrutura nova, uma orientao rumo a po-tencialidade liberaria o poder crtico da reflexo. Ele ento desenvolveu umsubstituto para a teoria original de Marx acerca da conscincia de classe ecom base nisso concebeu uma unidade da teoria e prtica novamente. Isto o que h de mais significante na apropriao da fenomenologia por Mar-cuse para o marxismo.

    O ponto de partida de Marcuse o mesmo que a crtica de Lukcs cientifizao da cultura que influencia Adorno e Horkheimer. A forma deobjetividade cientfica qual Lukcs se refere na passagem que eu citei noincio desse artigo a verso neo-kantiana das condies de experincia

    a priori kantianas. Lukcs modifica essa noo kantiana em seu relatomarxista de reificao. Reificao vem da estrutura de fetichismo da mer-cadoria capistalista ao invs da estrutura de conscincia.

    Kant introduziu a noo de pr-condies da experincia para expli-car o poder formador da mente na construo do mundo objetivo. As for-mas puras da mente so anteriores a experincia, por isso o termo a prio-ri. Kant chama as explicaes da experincia por suas pr-condies detranscendentais.

    A noo de estruturao da experincia a priori finalmente materiali-zada no conceito de cultura. As condies da experincia no esto maisna mente, mas na sociedade. Em aplicaes marxistas essas condies sur-gem de prticas associadas com o modo de produo. Em uma forma vaga-mente naturalizada, o conceito kantiano agora pertence ao senso comum,apesar do termo a prioriainda ser prprio da linguagem tcnica dos filso-fos. Mas todos ns estamos cientes de que tendemos a ver o que esperamosver, e que essas expectativas so devido a condies psicolgicas ou sociais.Dessa maneira, a idia de pr-condies da experincia a priori triviali-zada, mas tambm completamente familiar.

    Marcuse tenta recuperar a fora total da idia em relao a cincia e a tec-nologia. A histria da racionalidade culmina na cincia moderna. Essa for-ma de racionalidade supera e substitui todas as verses anteriores. Naque-las verses anteriores a razo encontrou um mundo de coisas substanciais,cada qual com um sentido e propsito perpassando e ordenando as partesdas quais composta. No acreditamos mais hoje em tais substncias tele-olgicas, mas sim somos apresentados pela razo cientfica com explicaes

    matemticas de uma natureza aleatorizada. As coisas da experincia so di-vididas em componentes mensurveis e as relaes entre esses componentesexplicadas causalmente, como uma espcie de maquinrio natural.

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    Essa nova concepo de razo a cincia a priori,a pr-condio do seumodo de experimentar e entender o mundo. O que a estrutura desse novoa priori? Ele possui duas caractersticas essenciais, a saber, a quantificaoe a instrumentalizao. A cincia no trata a experincia em sua imediati-cidade, mas transforma tudo que encontrar em quantidades. Essa instnciaelimina o propsito do mundo; quantidades so alheias valores. Essa abase da neutralidade axiolgica da cincia, a sua indiferena aos bons e be-los interesses da verdade. Mas os valores existem de fato e requerem algumespao no universo. Logo, correlato a realidade quantificada da cincia hum mundo interno no qual tudo associado a valores se refugia nele. Essemundo interno de sentimentos subjetivos excludo do mundo objetivo

    que a cincia explica.Tal mundo, agora despido de qualquer atributo valorativo e desagre-

    gado, exposto a controle instrumental irrestrito. Dentro do esquema depesquisa cientfica esse instrumentalismo inocente o suficiente. A cinciaaprende atravs da manipulao de seus objetos em experimentos. A quan-tificao anterior desse objetos torna possvel chegar a concluses precisasatravs dessas manipulaes. Mas a inocncia da cincia perdida quandoas possibilidades de controle instrumental disponibilizadas pela cincia a

    priori so exploradas em uma escala muito maior pela tecnologia. Esta aconexo interna entre cincia e tecnologia. Ela revela a natureza ineren-temente tecnolgica da cincia escondida no laboratrio. Logo, Marcuseescreve, A cincia da natureza se desenvolve atravs do a priori tecnol-gico que projeta a natureza como instrumentalidade potencial, controle eorganizao.

    Em apoio a essa viso Marcuse cita vrias passagens de escritos de Hei-degger sobre cincia e tecnologia. Heidegger explica que o que ele denomi-na de essncia da tcnica- o a pioride Marcuse- a base da mecanizao.

    O homem moderno toma a totalidade do ser como matria prima paraa produo e submete a totalidade do mundo objetivo ao movimento e ordem da produo. ... o uso de maquinrio e a produo de mquinasno a tcnica ela mesma, mas meramente um instrumento adequadopara a realizao da essncia da tcnica, em sua matria prima objetiva.

    Assim, a unidade entre cincia e tecnologia jaz no fato de que a realidadequantificvel da cincia uma realidade instrumentalizvel para a socieda-de. Aquilo que para a cincia um objeto mensurvel para experimentao

    matria prima para a produo em sociedade. Em ambos os casos, o con-ceito a prioride objeto precede e torna possvel sua apropriao pela teoriae pela prtica racionais. A conexo entre cincia, tecnologia e sociedade aforma a priorida experincia por elas compartilhada.

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    Isto nos conduz ao ponto de virada no captulo seis de Marcuse. Desteponto em diante, ele desenvolve a ideia de que a racionalidade tecnolgica derivada das prticas do capitalismo. Ele primeiramente cita Horkheimere Adorno, que fazem essa conexo em termos de uma transformao capi-talista do trabalho: Por conta da racionalizao dos modos de trabalho, aeliminao de qualidades transferida do universo da cincia para aqueleda experincia cotidiana. Marcuse busca, ento, demonstrar a base paraesse paralelismo.

    Ele argumenta que a estrutura da razo cientfica moderna est ajustadaaos requisitos de um universo de controle produtivo que se impulsiona a simesmo. No so os objetivos da cincia ou de suas teorias particulares que

    so de tal forma determinados pela racionalidade cientfica. A projeo danatureza como matria quantificvel [...] seria o horizonte para uma prticasocietria concreta, que seria preservada no desenvolvimento do projetocientfico. Como esta situao se produziu? Marcuse rejeita uma explica-o causal e volta-se para a anlise fenomenolgica husserliana da relaoda cincia com o mundo da vida da experincia cotidiana.

    Segundo Husserl, o a prioribsico do empreendimento cientfico, seusconceitos e seus mtodos derivam do mundo da vida e no so criaes au-

    tnomas da razo pura como parecem ser. O conceito de mundo da vidase refere experincia cotidiana. Husserl entende essa experincia comoum sistema de significados imediatamente disponveis conscincia e pos-tos em ao na prtica ordinria. Em Heidegger, um conceito similar cha-mado simplesmente de mundo. Para esses dois fenomenlogos, a teoriaemerge em ltima instncia de uma realidade correspondente no mundoda vida.

    Marcuse escreve que o mundo da vida um modo especfico de ver[...] em meio a um contexto prtico com propsitos. Sob o capitalismo, talcontexto o projeto de dominao da natureza. Qualidades individuais eno quantificveis pem-se no caminho de uma organizao dos homens ecoisas em conformidade com o poder mensurvel a ser extrado deles. Este, contudo, um projeto especfico, scio-histrico, e a conscincia que levaa cabo este projeto o sujeito oculto da cincia galileana. Este sujeito aburguesia ou, em outra leitura de Marx, o capital ele mesmo.

    O conceito de projeto introduzido por Marcuse nessa passagem deri-va de Sartre. Sartre empregou o termo para enfatizar a liberdade do su-

    jeito para escolher seu caminho na vida. Um projeto no um plano deao particular. Ele se baseia no que Heidegger chamou de projeo deum mundo, isto , um ordenamento da experincia em torno de um de-terminado modo de ser no mundo. Planos particulares somente se tornam

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    possveis no interior de uma projeo desse tipo. Em Sartre e em Heideg-ger, esses termos so categorias metafsicas de existncia individual, masMarcuse as historiciza como categorias civilizacionais. Como tais, elas sereferem liberdade de sociedades inteiras para mudarem seu mundo.

    Marcuse conclui que a congruncia entre cincia, tecnologia e socieda-de, no nvel da forma de experincia, est em ltima instncia enraizadonas exigncias sociais do capitalismo e do mundo por ele projetado. Comotais, cincia e tecnologia no so capazes de transcender aquele mundo.Antes, elas esto destinadas a reproduzi-lo, por meio de sua estrutura mes-ma. Elas so, portanto, inerentemente conservadoras, mas no porque soideolgicas, no sentido usual do termo, ou porque seu entendimento da

    natureza falso. Com efeito, Marcuse jamais questiona o valor cognitivoda cincia e da tecnologia. Contrariamente, elas so conservadoras porqueso intrinsecamente ajustadas para servir uma ordem social que v o sercomo matria para dominao. Em suas palavras, a tecnologia tornou-seo grande veculo da reificao.

    Nesse sentido, o capitalismo mais do que um sistema econmico. Ele um mundo, no sentido fenomenolgico do termo. Este mundo um proje-to histrico, isto , ele somente um mundo possvel entre aqueles que sur-

    giram no decurso do tempo. Seus elementos tornam-se claros em sua espe-cificidade no contraste com outro mundo, o mundo grego antigo. Marcusefornece, no captulo 5, uma explicao para essa alternativa como pano defundo para sua discusso sobre a cincia, no captulo 6. Esta seo pode serpensada como a resposta de Marcuse discusso heideggeriana do pensa-mento de Aristteles e da revelao grega, na Questo da Tcnica.

    Para o a priori grego, as coisas no so unidades funcionais esperade transformao e recombinao, mas antes elas so substncias. Comotais, elas so mais do que a soma de suas partes relatadas mecanicamente.Elas tm um ncleo que resiste s mudanas. Este ncleo que as mantmsendo, combina logos e eros. Elas possuem tanto uma estrutura racionalquanto uma orientao em direo a um fim desejado, seu telos. A palavraintroduzida por Aristteles para falar desse ncleo essncia. Ela o cen-tro dinmico do ser da coisa, que a move em direo perfeio. Quandoele diz que o homem um ser racional, ele sabe perfeitamente que muitoshomens so irracionais na maior parte do tempo. O ponto que a essnciado homem, a mais elevada potencialidade da espcie, a racionalidade.

    Aqui, e deve, valor e fato, esto harmonizados. Como potencialidade, ovalor pertence ao mundo objetivo das coisas, em vez de ser reduzido a umafantasia interna, como na projeo moderna do ser.

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    Marcuse no vislumbra um retorno ao mundo grego. Isto no nempossvel, nem desejvel. Ele tenta, contudo, reconstruir nos tempos mo-dernos a ideia grega de potencialidade como a unidade entre valor e fato.A catstrofe do Esclarecimento, tal como Marcuse a compreende, somentepode ser superada atravs da emergncia de uma racionalidade alternativa,fundada sobre um modo diferente de ver no mundo da vida. Tanto o capi-talismo quanto esta alternativa partilham da destruio da forma natura-lizada de teleologia, exemplificada pelo mundo grego. Em lugar disso, elesprojetam o ser em uma forma histrica, no capitalismo, como o objeto dedominao, ou na alternativa, em termos da realizao de potencialidadesreveladas historicamente.

    O desenvolvimento desse argumento antecipado pelo prefcio a Ho-mem Unidimensional, escrito por Marcuse enquanto ele lecionava na Fran-a, no fim dos anos 1950. Uma vez mais, est contida nesse prefcio umasignificativa referncia a Heidegger, mas no ao Heidegger crtico da tc-nica. Contrariamente, Marcuse recorre a Ser e Tempo, em busca de umaconcepo existencial da tcnica. Ele escreve: A mquina, o instrumen-to, no existe fora de um conjunto, de uma totalidade tcnica; ela somen-te existe como um elemento da tecnicidade. Esta forma de tecnicidade

    uma estado do mundo, uma maneira de existir entre o homem e a natu-reza. Segundo Heidegger, esse estado do mundo depende de um projetotranscendental, o qual por sua vez depende das necessidades da sociedade.Marcuse conclui: De incio, o projeto tcnico contm os requisitos des-sas necessidades... Caso se considere o carter existencial da tecnicidade,pode-se falar de uma causa final tcnicae da represso dessa causa atravsdo desenvolvimento social da tcnica.

    Essa uma passagem peculiar. Ela transpe a anlise transcendentalheideggeriana da mundanidade como um sistema de instrumentalidadesfundado sobre um conceito generalizado de cuidado para o conceito histo-ricamente especfico de tecnicidade. Marcuse identifica a tecnicidade como sistema da tcnica moderna. O cuidado heideggeriano transformou-sena orientao para as necessidades humanas, que intrnseca ao ins-trumental enquanto tal, includa a tcnica moderna. Mas ele foi bloqueadopelo capitalismo, que est acima de tudo a servio da dominao. Assim,o que Heidegger concebeu como uma ontologia da ao instrumental, queunificaria ser humano e mundo sob os termos de um fim possvel no es-

    pecificado, transformou-se em uma explicao normativa da falncia datcnica para realizar um fim definido e apropriado! Marcuse contrasta uma prioritcnico truncado, voltado exclusivamente para a dominao, com

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    um a priorialternativo, que cumprisse o telosda tcnica. Buscando estetelos, o a priorialternativo criaria uma sociedade harmnica e reconciliadacom a natureza. Dessa forma, a tcnica no neutra, mas ambivalente, isto, disponvel para dois caminhos distintos de desenvolvimento.

    Resumido nessas poucas linhas est o movimento descrito por Marcu-se, no incio da dcada de 1930, de Heidegger para o marxismo, atravs deHegel e do Manuscrito Econmico-Filosficode 1844, de Marx. Nos Ma-nuscritos, Marx descreve a unidade ontolgica entre homem e natureza emtermos de necessidade e trabalho. Traduzido para termos heideggerianos,isso equivaleria ao ser-no-mundo, entendido como a condio ontolgicarealizada na ao instrumental cotidiana. Mas a noo marxiana tem um

    carter normativo que a heideggeriana no tem. A satisfao das necessida-des humanas complexas por meio da aplicao das capacidades e podereshumanos ao trabalho contrasta com o empobrecimento e a alienao do ca-pitalismo. Existe certamente, no caso de Heidegger, o que Marcuse chamade uma causa final tcnica, mas ela permanece completamente vaga, emrelao ao mundo contingente do ser-a. Por que, dadas essas diferenas,Marcuse manteve essa curiosa referncia a Heidegger? Sem dvida porqueele precisava do conceito de projeto transcendental para fundamentar a

    oposio entre capitalismo e socialismo em uma teoria historicizada dasprecondies da experincia.A alternativa progressiva, imaginada por Marcuse, teria um modo de

    experincia diferente do vigente. O salto a partir da racionalidade da do-minao para o reino da liberdade exige a transcendncia concreta paraalm dessa racionalidade, ele exige novos modos de ver, ouvir, sentir, tocarcoisas: um novo modo de experincia correspondente s necessidades dehomens e mulheres que podem e devem lutar por uma sociedade livre.Marcuse desenvolve esta ideia em Um Ensaio sobre a Liberao, com suateoria da nova sensibilidade. A nova sensibilidade projeta um mundo davida esttico, orientado para as necessidades em vez de para a dominao.Ela seria tcnica, mas de um modo diferente. Ela respeitaria as potenciali-dades de seus objetos, tanto humanos quanto naturais.

    Potencialidade, nesse sentido, remete ao essencialismo aristotlico, em-bora refratado por meio da concepo histrica do ser de Hegel. Assim, oque Marcuse chama de potencialidade no um atributo metafsico, masemerge de lutas efetivas dos seres humanos. estas lutas esto fundadas na

    capacidade imaginativa de projetar um futuro melhor e de compreender eapreciar as qualidades da natureza que aperfeioam a vida. A ideia de po-tencialidade de Marcuse um princpio dinmico orientado para o futuro,

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    mediao essencial necessria. Esta mediao o processo de design. Nodesign, quantificao e instrumentalizao podem ser realizadas concreta-mente na tcnica, conforme os interesses de um poder dominante.

    Entretanto, Marcuse no distinguiu claramente entre a emergncia sobo socialismo de novos conceitos e mtodos cientficos e outro processo so-cial que leve a novos designstecnolgicos. Isto deixa a impresso de que osocialismo est espera de um avano cognitivo inimaginvel uma novacincia em vez de mudanas tcnicas bem mais simples e j hoje ao nossoalcance.

    Apesar da possibilidade de confuso apontada por muitos crticos, Mar-cuse estava certamente ciente da diferena entre avano tecnolgico e a

    avano cientfico. Ele rejeita a regresso uma fsica qualitativa, mas ar-gumenta que a cincia e a tecnologia podem novamente incorporar umacausa final objetiva. A teleologia racional retorna, mas como um atributode artifatos e do mundo da vida ao invs de a natureza da cincia natural.Ele escreve, a maestria tcnica das causas finais construo, desenvolvi-mento e utilizao de recursos (material e intelectual) libertos de todos osinteresses particulares que impedem a satisfao de necessidades humanase a evoluo de faculdades humanas. Em outras palavras, a empresa ra-

    cional do homem como homem, da humanidade. Aqui o telos originrioda racionalidade recuperado. A leitura marxista de Heidegger feita porMarcuse anteriormente aparece sobremodo nessa passagem.

    No fcil resolver todas as implicaes dessa concluso no contexto doconceito de experincia de Marcuse. Lembrando da estrutura de sua an-lise: as prticas sociais do capitalismo moldam um mundo da vida ao qualcorreponde prticas bsicas quantificadoras e instrumentalizadoras da ci-ncia moderna. Desenvolvido em instituies sociais e tecnologia, aquelasprticas capitalistas tambm determinam o mundo da vida de todos osmembros da sociedade. O crculo da teoria e da prtica est fechado. Omesmo a priorireina sobre a experincia e racionalidade tcnico-cientfica.A esperana da Escola de Frankfurt que um a priori diferente de experi-ncia, compatvel com a cincia e tecnologia modernas, pode emergir, masno uma que fecha os seres humanos outras dimenses da realidade. Essaalternativa a priori teria que estimular a pesquisa sem identificar o ser simesmo com a coisa cambivel, mensurvel que ela projeta.

    Uma leitura cuidadosa da verso de Lukcs desse argumento em a His-

    tria e Conscincia de Classes (History and Class Consciousness) mostracomo ele alterna entre duas verses de tal a priori. Em uma verso, pareceque a revoluo iria des-reificar a sociedade ao abolir o capitalismo. Mas,

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    em outra verso o socialismo descrito como um processo de longo prazo.No curso de tal processo a forma reificada da objetividade das instituiessociais se torna a ocasio para atos particulares de des-reificao em umaesfera aps a outra. Nesta verso alternativa, a des-reificao responderiaa motivos especficos em cada caso surgindo do novo contexto social desociedade socialista, ao invs de aparecendo do nada como uma nova sus-penso. A primeira verso a que geralmente identificada com a teoria deLukcs e posta de lado como utpica; no entanto, muitas passagens apoiama segunda verso.

    Traduzindo nos termos de Marcuse, o equivalente da primeira versoseria a substituio da racionalidade tecnolgica capitalista e seu modo

    correspodente de experincia por uma nova racionalidade socialista e seuprprio modo de experincia. Marcuse parece estar dizendo algo assim emvrias passagens citadas acima. Mas, quando se examina cuidadosamenteo que ele espera dessa nova tecnologia, o argumento parece ser bem menosradical. Ele tambm parece ter uma segunda verso mais realista na qualo reconhecimento de potencialidade orienta e limita os designs tcnicosbaseados na conhecimento adquirido da natureza. Ele escreve, A crticada tecnologia no objetiva nem uma regresso romntica, nem uma res-

    taurao espiritual dos valores. As caractersticas opressivas da sociedadetecnolgica no so devido ao materialismo e ao tecnicismo excessivos. Aocontrrio, parece que as causas do problema esto na priso do materia-lismo e da racionalidade tecnolgica, ou seja, nas restries impostas pelamaterializao dos valores.

    Eu acredito que uma posio coerente est implicada na oscilao so-bremodo confusa de Marcuse entre um programa ambicioso e sugestesmais modestas. Ele est tentando dizer que a relao tcnica com a realida-de contm um potencial inerente de dominao. Porque a ligao entre ocapitalismo e a cincia primordialmente cincia metodolgica e pode serdita neutra em respeito a ideologias e valores circulando na sociedade. Noentanto, a sua prpria neutralidade cancela a considerao devido poten-cialidades dos seres humanos e coisas. conservador em suas implicaessociais na medida que designstecnolgicos ignoram essa potencialidadestambm. Mas o processo de designtecnolgico no predestinado a domi-nao. A tecnologia essencialmente composta por poderes que de certomodo a cincia no . O design controlado pelos interesses predominan-

    tes e responde diretamente queles interessses. A ligao importante entretecnologia e capitalismo no o puro mtodo, mas um tipo particular deaplicao do mtodo.

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    Opor-se tendncia em direo a dominao implcita na ao tcnicarequer o que Marcuse chama de materializao dos valores. Os designsque respondem a tais valores materializados so rotineiramente encontra-dos em sociedades pr-capitalistas. Mas que mediante tradies capitalis-tas so abandonados e a populao no tem acesso ao processo de design.O capitalismo revoluciona a produo e subordina toda a sociedade ao po-der tcnico que se torna a nova fonte de legitimidade. Logo, a tecnologiacapitalista plenamente desdobra seu potencial por dominao no apenasno nvel dos seus objetos particulares, mas tambm no nvel geral, social.Essa situao pode ser revertida atravs de um processo de mudana dedesign que leva em considerao as potencialidades humanas projetadas

    por um socialista a priori.O design a mediao atravs da qual o potencial por dominao conti-

    do na racionalidade tcnico-cientfica entra no mundo social enquanto umprojeto civilizacional. O capitalismo realiza tal potencial ao estend-lo semlimites a todos os aspectos da natureza e dos seres humanos: Quando atcnica se torna a forma universal de produo material, ela circunscrevetoda a cultura; ela projeta a totalidade histrica- um mundo. O rompi-mento com esse mundo no transforma imediatamente a cincia, apesar de

    a longo prazo poder ter consequncias para a concepo cientfica de rea-lidade. No entanto, o rompimento requer um engajamento imediato com atecnologia em interesse dos seres humanos e da natureza.