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INCONΦIDENTIA: Revista Eletrônica de Filosofia Mariana-MG, Volume 2, Número 2, janeiro-julho de 2014 Faculdade Arquidiocesana de Mariana - Curso de Filosofia A IDEIA HUSSERLIANA DE FENOMENOLOGIA Rafael Basso Barbosa Resumo O presente artigo visa apresentar em linhas gerais o pensamento husserliano tomando como referência metodológica o seu desenvolvimento intelectual como docente, incluindo o período de sua aposentadoria. Em um segundo tópico abordamos alguns temas e problemas pertinentes de sua fenomenologia com o intuito de iniciar o leitor nos estudos em Edmund Husserl. Trata-se de um artigo introdutório à gênese da fenomenologia como corrente filosófica do final do século XIX e início do século XX. Palavras-Chave: Fenomenologia; Husserl; Consciência; Mundo; Ciência. Résumé L’objectif premier de cet article est de présenter les grandes lignes de la pensée d’Edmund Husserl . Notre point de référence méthodologique sera le parcours intellectuel du philosophe tout au long de sa carrière dans l’enseignement et pendant sa retraite. Nous introduirons ensuite quelques sujets et problèmes typiques de sa phénoménologie dans le but d’aider le lecteur à aborder les études husserliennes. Ce travail est une introduction à la genèse de la phénoménologie en tant que courant important de la philosophie contemporaine de la fin du XIX e siècle et du début du XX e siècle. Mots-Clés: Phénoménologie ; Husserl ; Conscience ; Monde ; Science. A ideia husserliana de Fenomenologia Husserl foi um dos filósofos mais férteis e difíceis do século XX e sua obra extremamente árida e caracterizada por uma argumentação cerrada e incessantemente retomada e modificada se tornou um verdadeiro desafio para os seus leitores. Diante de obstáculos tão grandes vamos, em primeiro lugar, dar algumas indicações sumárias do desenvolvimento intelectual do filósofo alemão para, num segundo momento, ressaltar alguns tópicos essenciais de sua filosofia. Nosso intuito é apresentar sumariamente o pensamento husserliano como horizonte dos demais textos em fenomenologia presentes nesta revista, bem como oferecer ao leitor uma bibliografia introdutória ao pensamento husserliano. Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teoologia; Professor de Filosofia na Faculdade Arquidiocesana de Mariana Dom Luciano Mendes de Almeida. [email protected].

A Ideia Husserliana de Fenomenologia

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Rafael Basso Barbosa

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  • INCONIDENTIA: Revista Eletrnica de Filosofia Mariana-MG, Volume 2, Nmero 2, janeiro-julho de 2014

    Faculdade Arquidiocesana de Mariana - Curso de Filosofia

    A IDEIA HUSSERLIANA DE FENOMENOLOGIA

    Rafael Basso Barbosa

    Resumo

    O presente artigo visa apresentar em linhas gerais o pensamento husserliano tomando como referncia

    metodolgica o seu desenvolvimento intelectual como docente, incluindo o perodo de sua aposentadoria. Em

    um segundo tpico abordamos alguns temas e problemas pertinentes de sua fenomenologia com o intuito de

    iniciar o leitor nos estudos em Edmund Husserl. Trata-se de um artigo introdutrio gnese da fenomenologia

    como corrente filosfica do final do sculo XIX e incio do sculo XX.

    Palavras-Chave: Fenomenologia; Husserl; Conscincia; Mundo; Cincia.

    Rsum

    Lobjectif premier de cet article est de prsenter les grandes lignes de la pense dEdmund Husserl . Notre point de rfrence mthodologique sera le parcours intellectuel du philosophe tout au long de sa carrire dans

    lenseignement et pendant sa retraite. Nous introduirons ensuite quelques sujets et problmes typiques de sa phnomnologie dans le but daider le lecteur aborder les tudes husserliennes. Ce travail est une introduction la gense de la phnomnologie en tant que courant important de la philosophie contemporaine de la fin du

    XIXe sicle et du dbut du XX

    e sicle.

    Mots-Cls: Phnomnologie ; Husserl ; Conscience ; Monde ; Science.

    A ideia husserliana de Fenomenologia

    Husserl foi um dos filsofos mais frteis e difceis do sculo XX e sua obra extremamente

    rida e caracterizada por uma argumentao cerrada e incessantemente retomada e modificada

    se tornou um verdadeiro desafio para os seus leitores. Diante de obstculos to grandes

    vamos, em primeiro lugar, dar algumas indicaes sumrias do desenvolvimento intelectual

    do filsofo alemo para, num segundo momento, ressaltar alguns tpicos essenciais de sua

    filosofia. Nosso intuito apresentar sumariamente o pensamento husserliano como horizonte

    dos demais textos em fenomenologia presentes nesta revista, bem como oferecer ao leitor uma

    bibliografia introdutria ao pensamento husserliano.

    Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuta de Filosofia e Teoologia; Professor de Filosofia na Faculdade

    Arquidiocesana de Mariana Dom Luciano Mendes de Almeida. [email protected].

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    1. O desenvolvimento do pensamento husserliano.1

    Sabemos que antes de Husserl alguns j haviam utilizado a terminologia Fenomenologia. Este

    termo foi usado pelo matemtico e filsofo Jean Henri Lambert pela primeira vez. Usou no

    quarto captulo de sua obra Nova Lgica ao colocar o nome de Fenomenologia ou Teoria da

    aparncia em 1763-1764. Kant tambm utilizou o termo em sua obra Primeiros princpios

    metafsicos da cincia da natureza (PIRES, 1979). Outro filsofo que tornou clebre o termo

    fenomenologia foi Hegel em sua Fenomenologia do Esprito, obra a qual utilizava o

    conceito como uma inspeo ampla de todas as variaes da experincia humana (RICOEUR,

    2009) e entendeu que a Fenomenologia do Esprito era a histria das fases sucessivas pelas

    quais o esprito se eleva da sensao individual razo universal. Qual o contexto em que se

    deu essa profunda transformao da ideia de fenomenologia na filosofia de Husserl?

    Merleau-Ponty nos d uma chave de leitura para adentrarmos no contexto das obras

    husserlianas ao dizer que a fenomenologia nasceu de uma crise. De qual crise se trata? Ora,

    sabemos que E. Husserl se insere no contexto do final do sculo XIX e incio do XX, ou seja,

    no perodo em que a psicologia tinha grande prestgio e tendia a ocupar o lugar da cincia

    mais importante na tentativa de estabelecer uma nova teoria do conhecimento capaz de fundar

    as cincias em geral. Por que recorrer a uma cincia como a psicologia para fundamentar as

    outras cincias quando esta sempre foi uma tarefa atribuda filosofia?

    Porque a segunda metade do sculo XIX foi marcado pelo desmoronamento dos grandes

    sistemas do pensamento filosfico que prevaleceram na primeira metade do sculo na grande

    torrente criativa que foi designada como Idealismo alemo e na qual se destacava por sua

    abrangncia e influncia o sistema hegeliano. O descrdito dessas grandes construes

    conceptuais em contraposio com o progresso das cincias positivas levou ao programa

    positivista de superao da filosofia. Assim, a cincia passou a ocupar o espao que outrora

    1 Como se trata de uma exposio genrica que no tem outra finalidade seno delinear a problemtica da

    fenomenologia husserliana vamos fazer neste e no prximo tpico uma sntese recorrendo a diversos estudiosos

    e comentadores, porm sem cit-los a cada passo uma vez que no estamos nos dedicando ao estudo especfico

    do texto husserliano. Estudamos e/ou consultamos as seguintes obras, que sero citadas por extenso na

    bibliografia: a) Histrias da filosofia: COLOMER, Eusebi. El pensamiento alemn de Kant a Heidegger. T. III

    (1990); RD, Wolfgang. O caminho da filosofia (V.II (2008); ROVIGHI, Sofia . Histria da filosofia

    contempornea (1999); URDANOZ, Tefilo. Historia de la filosofia. V. VI (1978) ; b) Obras introdutrias:

    CERBONE, David. Fenomenologia (2012); DARTIGUES, Andr. O que a fenomenologia? (1973); DEPRAZ,

    Natalie. Compreender Husserl (2007); KOLAKOWSKI, Leszek. Husserl y la bsqueda de la certeza (1983);

    LYOTARD, KELKEL, Arion e SCHRER, Ren. Husserl (1982); RICOEUR, Na escola da fenomenologia

    (2009); SALANSKIS, Jean-Michel. Husserl (2006); SAN MARTIN, Javier. La fenomenologa de Husserl como

    utopia de la razn (1987); SZILASI. Introduccin a la fenomenologia de Husserl (1973)

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    fora da filosofia e nessa perspectiva que podemos denominar genericamente como positivista

    parece vivel assegurar a fundamentao da cincia na rejeio dos pressupostos metafsicos e

    das construes subjetivas. A psicologia tem destaque dentre as cincias do final do sculo,

    como uma disciplina cientfica que se consolidava na adoo do mesmo mtodo experimental

    que teria se mostrado to fecundo no campo das outras cincias da natureza. A psicologia se

    anunciava como uma nova fsica do esprito. Essa ascenso da psicologia se mostrava muito

    importante porque na poca muitos estudiosos j colocavam em questo o fundamento da

    cincia: problema da universalidade das leis e a ameaa do convencionalismo ideia de

    objetividade so alguns pontos a serem destacados. Afinal, o que asseguraria a objetividade

    cientfica? Este universo de crena e interrogaes acerca do positivismo circunda o

    pensamento husserliano e ser solo frtil para o desenvolvimento de suas obras.

    Husserl endossa inicialmente o projeto psicologista, mas foi vital para ele o encontro com

    renomado estudioso da psicologia Franz Brentano que desenvolvia uma nova teoria sobre o

    conhecimento do psiquismo. A tarefa a que se props Brentano foi distinguir

    fundamentalmente os fenmenos psquicos - que implicam uma intencionalidade, porque

    sempre se dirigem aos objetos - e os fenmenos fsicos que no so dotados de

    intencionalidade. Em seguida Brentano quer mostrar como os fenmenos podem ser

    percebidos e que, o modo original de percepo que deles temos constitui o conhecimento

    fundamental dos mesmos e possibilita a sua classificao (DARTIGUES, 1972).

    Os cursos ministrados por Franz Brentano colocar Husserl em um movimento reflexivo

    diferenciado de seu tempo, ou seja, buscar uma via alternativa ao positivismo e ao

    psicologismo ingnuo. Husserl inicia, ento, uma longa investigao visando desenvolver um

    mtodo que leva em conta as exigncias do positivismo de uma lgica precisa a partir da

    experincia sem, por outro lado, cair em seu reducionismo empirista.

    Husserl nas aulas de Franz Brentano descobre uma via de aproximao da psicologia

    descritiva com o programa da fundamentao cientfica evitando quer os preconceitos

    cientificistas, quer a pretenso metafsica da fenomenologia hegeliana do esprito de Hegel

    que procurava ultrapassar os limites da experincia transgredindo a interdio epistemolgica

    posta pela filosofia crtica. De um lado, a totalidade do real, de acordo com o pressuposto

    hegeliano, pode ser absorvido pela razo e considerado como inteligvel; por outro lado, o

    empirismo pretensamente cientfico mutila a experincia humana atravs da distino entre

    qualidades primrias e secundrias. Na perspectiva dessa distino a vivncia humana

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    concreta desqualificada na experincia cientfica e de seu rigor metodolgico. Essa dupla

    crise epistemolgica leva a outra crise ainda mais grave e mais ampla: a crise da civilizao

    ocidental. Essa crise da cultura pode ser tomada como o horizonte do pensamento husserliano

    como se pode ver na preocupao que anima a sua obra tardia.

    Embora, no tenha sido Husserl o filsofo responsvel por cunhar o termo fenomenologia

    sabemos que foi ele que se esforou com muito rigor para estabelecer o seu significado e fazer

    da fenomenologia um mtodo filosfico fecundo e torn-la uma das matrizes do pensamento

    filosfico contemporneo. certo tambm que as variaes deste termo devem a ele, pois

    como afirma Paul Ricoeur no livro Na Escola da fenomenologia: ainda que a fenomenologia

    em sentido lato seja a soma da obra husserliana e das heresias que nasceram de Husserl, tambm a

    soma das variaes do prprio Husserl (RICOEUR, 2009).

    A questo acerca do que vem a ser a fenomenologia aparecer em vrios autores que

    propuseram trabalh-la a partir da obra fundacional de Husserl, mas as interpretaes de

    Heidegger, Paul Ricoeur, E. Lvinas e Merleau-Ponty, dentre outros contemporneos, diverge

    em muitos aspectos fundamentais. Por ora, no queremos desenvolver uma investigao que

    responda pergunta genrica acerca do significado da fenomenologia, mas apenas mostrar

    seus traos importantes e mais marcantes.

    Podemos dividir a evoluo do pensamento de Husserl em trs etapas correspondentes sua

    carreira docente incluindo como ltima etapa o tempo de sua aposentadoria.

    - Perodo de Halle (1887-1901)

    - Perodo de Gttingen (1901-1916)

    - Perodo de Freiburg (1916-1928)

    - Perodo da aposentadoria em Freiburg (1928-1938)

    1) Perodo de Halle (1887-1901)

    No seu perodo de Halle h uma etapa pr-fenomenolgica em que ainda est prximo do

    psicologismo, ou seja, buscando fundamentar as cincias matemticas na psicologia e

    procurando explicar os conceitos matemticos a partir da psicologia associacionista. Assim, o

    conceito de multiplicidade que est na base da noo de nmero provm do ato de ligar e

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    reunir, que um ato psquico e as noes de um e de algo que esto na base do conceito de

    mltiplo se reduzem a noes de contedos de representaes e nascem da reflexo sobre o

    ato psquico de representar. Em 1887 apresentou sua tese de habilitao docente

    (Habilitationschrift) intitulada Sobre o conceito de nmero (ber den Begriff der Zahl) na

    Universidade de Halle que foi orientada pelo filsofo e psiclogo Carl Stumpf. Nela buscou

    apreender o conceito fundamental da matemtica, o conceito de nmero, a partir das

    operaes psquicas que subjazem a este conceito.

    A nica obra publicada nesse perodo pr-fenomenolgico foi a Filosofia da aritmtica

    (1891), que incorporou os resultados de sua tese de habilitao e cujo subttulo justamente

    Iinvestigaes lgicas e psicolgicas. Assistiu a partir de 1884 s aulas de Franz Brentano

    (1838-1917) e se apropriou do conceito de intencionalidade ainda no contexto da

    problemtica da fundamentao da matemtica. Com este objetivo investigou as operaes

    que so subjacentes aos resultados matemticos.

    No entanto, com a crtica de Frege e a leitura de Bolzano,25 Husserl mudou o seu modo de

    pensar e desenvolveu as longas investigaes que culminaram na publicao de uma obra

    fundamental: as Investigaes lgicas (1900-1901).

    Essa obra constituda por lies de Husserl em Halle no vero e outono de 1896 e se divide

    em duas partes: uma longa introduo intitulada Prolegmenos lgica pura e um

    conjunto de seis investigaes. A primeira parte contm uma teoria da cincia e uma refutao

    do ceticismo e do relativismo, sobretudo na forma do psicologismo que sustentava que os

    fundamentos essenciais da lgica residem na psicologia. Husserl mostra que sob o

    psicologismo h um empirismo nominalista que considera as leis lgicas como simples

    generalizaes empricas e indutivas. As concepes empiristas e antropolgicas

    (historicismo, sociologismo) na lgica, que afirmam a sua dependncia em relao a leis

    causais naturais, levam a contradies insuperveis, pois negam a ideia de verdade e no

    fundamentam a sua universalidade e necessidade. O psicologismo no d conta do carter

    necessrio e apriorstico da lgica, pois as leis psicolgicas so probabilistas e empricas. Da

    a impossibilidade de se reduzir as leis lgicas s leis psicolgicas: o princpio de contradio,

    por exemplo, no regulado pela vida psicolgica. O psiquismo pode formular dois juzos

    contraditrios, mas esses se referem uma ordem ideal que independe da existncia dos fatos

    empricos. H uma diferena irredutvel entre a regulao normativa da lgica e a regulao

    causal emprica da psicologia. A universalidade pretendida pelo conhecimento no pode se

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    fundar na contingncia das condies de fato. Essa a ideia que Husserl tambm apresenta

    como uma tese programtica em A filosofia como cincia estrita (1911) em que critica o

    naturalismo em sua pretenso de naturalizar a conscincia inclusive em seus objetos ideais: os

    nmeros, as essncias geomtricas, as verdades universais da lgica e pretende inserir tanto o

    sujeito quanto o objeto no mundo da natureza. Essa concepo condiciona o conhecimento s

    suas circunstncias naturais desconhecendo o apriorismo, a necessidade e a universalidade da

    lgica. Nesse primeiro momento a fenomenologia se apresenta como uma lgica pura. Dentre

    o conjunto das investigaes da segunda parte devemos destacar a quinta investigao na qual

    aparece o conceito fundamental de intencionalidade.

    2) Perodo de Gttingen (1901-1916)

    Na fase de Halle ainda no foi introduzido o conceito de reduo (epoch). O conceito de

    reduo foi introduzido nas cinco lies de Gttingen publicadas com o nome de A ideia da

    fenomenologia (1907) e foi o resultado de uma profunda crise intelectual. A partir dessas

    lies Husserl em seu desenvolvimento filosfico adota uma orientao idealista que

    encontrou a sua primeira expresso sistemtica em Ideias para uma fenomenologia pura e

    para uma filosofia fenomenolgica obra tambm conhecida como Ideias I (Ideen I)

    (1913). A fenomenologia apresenta-se como fundamentao universal da cincia e da

    filosofia atravs do mtodo da reduo (epoch).

    Nas Investigaes lgicas j havia sido preparada a teoria da intuio das essncias, mas,

    como j foi aludido, o seu acabamento se apresenta pela primeira vez em A filosofia como

    cincia estrita (1911). A intuio eidtica se define como intuio da essncia

    (Wesensschau) e as essncias so todas as naturezas captveis por essa intuio como, por

    exemplo, a essncia som ou a essncia juzo, etc.. Assim, Husserl caracteriza a

    fenomenologia pura distinguindo-a de outras fenomenologias identificadas com o pensamento

    natural que aborda fenmenos psquicos, fenmenos histricos etc. A fenomenologia pura no

    uma cincia de fatos, mas de essncias. As cincias empricas so cincias de fatos, pois seu

    conhecimento se dirige ao ser individual existente no espao e no tempo e, portanto

    contingente. Ao contrrio, a fenomenologia pura uma cincia apriorstica e eidtica, pois

    todo indivduo possui uma essncia (Eidos, Wesen) que lhe garante a predicabilidade e

    universalidade. Porm, na cincia da essncia h tambm a intuio, a apreenso direta pela

    simples presena da essncia conscincia e um verdadeiro objeto, a essncia pura. Assim, a

    intuio da essncia (Wesensschau) conscincia de algo, como mostra a sua estrutura

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    intencional, isto , a intuio conscincia de um algo, um quid que dado em si mesmo

    antes de todo pensar predicativo. Tal intuio distingue-se da intuio emprica, porque as

    verdades essenciais no contm qualquer afirmao sobre fatos. A intuio da essncia pode

    se referir, por exemplo, a dados da fantasia.

    3) Perodo de Freiburg (1916-1928)

    No perodo de Freiburg, aps o estabelecimento da fenomenologia atravs do procedimento

    da reduo (epoch) Husserl ir evoluindo cada vez mais para um idealismo fenomenolgico

    ou fenomenologia transcendental. Nela o resduo da reduo ser o eu puro transcendental,

    ou a dimenso notica da relao intencional. Ou seja, aparece a conscincia pura como

    conscincia atual ou como sistema de ser fechado em si, no qual nada pode penetrar e do

    qual nada pode sair (KELKEL; SCHRER, 1982, p.45). A obra mais caracterstica desse

    perodo, que expe o seu desenvolvimento idealista Meditaes cartesianas. Embora ela

    seja constituda por duas conferncias dadas em Paris em 1929 e tenha sido publicada apenas

    em 1931. Husserl parece evoluir da concepo da fenomenologia como uma psicologia

    descritiva para a fenomenologia transcendental em que a subjetividade se apresenta como

    fonte de toda objetividade e introduz a concepo do Ego transcendental puro como fonte

    de toda realidade. Essa transformao da fenomenologia numa filosofia transcendental

    suscitou muita resistncia por parte dos primeiros discpulos do filsofo, pois muitos

    intrpretes consideraram a sua nova concepo como uma guinada idealista inaceitvel em

    seu itinerrio filosfico.

    4) Perodo da aposentadoria (1928-1935)

    Poder-se-ia falar ainda de um ltimo desenvolvimento de Husserl aps a sua retirada da

    carreira docente caracterizado pela mitigao do idealismo e a sada do absoluto da

    conscincia e de sua posio anistrica pelo aparecimento da concepo de mundo da vida

    (Lebenswelt), como solo pr- reflexivo de toda teoria e toda prtica. Pode-se dizer que nesse

    perodo aparece certa tendncia existencial. No obstante essa concepo que remete uma

    experincia irredutvel minha conscincia j est de certa forma presente nas Meditaes

    cartesianas. Como observam Kelkel e Schrer: (...) o ser transcendente, para o qual as

    minhas intencionalidades me remetem, se verdade que constitudo a partir de mim mesmo,

    que encontra em mim a sua origem, no nem um modo e nem uma parte de mim

    (KELKEL; SCHRER, 1982, p. 54).

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    Aqui se pe uma questo crucial para o pensamento do sculo contemporneo: o da a relao

    da fenomenologia enquanto filosofia da conscincia com o mundo e com a histria. Uma

    questo que na obra husserliana s ser elucidada em ltimos escritos: A crise das cincias

    europias e Origem da geometria. Na verdade, como observa Kolakowski, Husserl

    esteve durante toda sua vida escrevendo o mesmo livro, pois ele prprio encarnava a sua

    definio de filsofo como um permanente iniciante.

    Essa exposio muito breve e esquemtica da evoluo filosfica de Husserl no tem outro

    objetivo seno demarcar alguns parmetros de contextualizao de uma obra sumamente

    complexa e deixar lanada uma interrogao que aqui no pode ser abordada, mas deve ser

    formulada se quisermos fazer justia ao grande pensador que ele foi: teria o filsofo renegado

    ou, ao menos, se distanciado irreversivelmente de sua orientao inicial em benefcio de um

    retorno ao idealismo moderno de procedncia cartesiana e kantiana? Essa evoluo, a partir

    das Investigaes lgicas, seria antes uma involuo? Uma perda das conquistas obtidas

    atravs do conceito de intencionalidade que apontava numa direo oposta ao idealismo?

    Como entender, ento, a redescoberta do mundo e da histria no seu ltimo perodo? Seria

    apenas consequncia das crticas de seus discpulos e, sobretudo, da crtica heideggeriana?

    So perguntas muito difceis e que s poderiam ser abordadas por um estudioso da filosofia

    husserliana, o que no o caso aqui. No entanto, a sua colocao importante porque

    preciso distinguir preliminarmente a lgica interna da filosofia husserliana e o modo com que

    os seus discpulos e leitores a interpretaram. De um lado, parece que Husserl foi

    extremamente fiel lgica interna de seu pensamento e que as aparentes guinadas foram na

    verdade desdobramentos necessrios de um pensar rigoroso. Por outro lado, em se tratando de

    obra muito complexa e que s foi sendo aos poucos conhecida, justifica-se com base nos

    prprios textos do filsofo as crticas de seus intrpretes sua orientao para o idealismo

    transcendental.

    Assim, faremos uma apresentao sinttica das ideias de Husserl sem levar em conta as etapas

    de seu pensamento que foram acima caracterizadas. Vamos nos limitar, no que se segue, a

    ressaltar umas poucas ideias fundamentais.

  • 29

    2. Ideias fundamentais da fenomenologia husserliana

    Logo nos primeiros pargrafos de uma das obras fundamentais de Husserl, as Investigaes

    Lgicas, vemos o autor discutir os princpios que fundamentam a Cincia, seja ela qual for,

    at mesmo a matemtica como a mais perfeita e exata das cincias. Nesse sentido, logo no

    incio do pargrafo escreve sobre o artista que aprende a maestria de sua arte na experincia

    cotidiana e no em uma justificao explcita e rigorosa de sua atividade. Compara essa

    experincia artstica com a experincia dos cientistas passando ento a assegurar que as

    cincias no possuem uma investigao ltima de seus princpios. Desse modo observa que:

    O matemtico, o fsico, o astrnomo, eles mesmos no precisam, para manusear bem

    seus trabalhos cientficos importantes, de chegar a evidncia intelectual dos ltimos

    fundamentos de sua atividade e, bem que os resultados obtidos possuem, por eles e

    por outros, a fora de uma convico racional, eles no podem todavia, elevar a

    pretenso de ter provas, por todos os casos, as ltimas premissas de suas concluses,

    nem investiga os princpios sobre os quais repousa a validade de seus mtodos(

    HUSSERL, 1969, p. 10).

    Como vimos ao propor a justificao da lgica e da matemtica Husserl combateu o

    psicologismo, mostrando que o princpio do conhecimento no poderia ser o resultado de leis

    biolgicas, psicolgicas ou sociolgicas. Para ele a pretenso objetivante do naturalismo, isto

    , a tentativa de dar um fundamento pretensamente objetivo ao conhecimento com base na

    investigao dos fenmenos naturais no se sustenta, porque leva a contradies insuperveis

    (DARTIGUES, 1973).

    A mera descrio do comportamento e sua explicao a partir de processos qumicos,

    biolgicos e psicolgicos no pode dar conta de seu aspecto normativo ou, como ele diz, no

    pode dar conta de sua idealidade. Em outras palavras, os processos que ocorrem efetivamente

    no psiquismo no justificam o contedo mental, as ideias que dependem fisicamente de tais

    processos, mas que so deles independentes. Ao contrrios, as explicaes biolgicas e

    psicolgicas dependem dos princpios e dos conceitos do pensamento e, portanto, se

    quisermos evitar um crculo vicioso, no podem explic-los (HUSSERL, 1980, p.6). Assim, a

    pretensa objetividade do naturalismo ilusria, porque nada mais do que a reafirmao de

    preconceitos cientificistas que no acolhem os fenmenos como eles se do nossa

    conscincia, por isso afirma que: O fenmeno a conscincia enquanto fluxo temporal de

    vivncias e cuja peculiaridade a imanncia e a capacidade de outorgar significado s coisas

    exteriores (HUSSERL, 1969, p. 7) ou ainda poder-se-ia dizer, todo o fenmeno nada

    mais que o fenmeno" (DARTIGUES, 1973, p. 19). No obstante, o fenmeno no um fato,

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    mas portador de um logos. H uma racionalidade intrnseca ao prprio fenmeno e o logos

    se mostra no prprio fenmeno, pois, unicamente com esta condio possvel uma

    fenmeno-logia" (DARTIGUES, 1973, p. 19)2.

    Husserl faz surgir uma cincia intermediria que no se deixa arrastar nem pelo tipo de

    fundamentao proposta pela metafsica idealista e nem pelo reducionismo derivado do

    positivismo e do psicologismo. As Investigaes Lgicas em sua crtica ao psicologismo se

    prope, com imenso esforo metdico, a se alcanar como cincia rigorosa do fenmeno:

    A possibilidade e a legitimidade de uma semelhante disciplina como disciplina normativa e prtica universal ideia de cincia poderia ser fundamentada pela reflexo seguinte:

    Como seu nome indica, a Cincia tem em vista o saber. No apenas o saber como

    soma dele mesmo ou uma juno orgnica dos atos do conhecimento. A Cincia

    existe apenas objetivamente em sua literatura, esta tem uma existncia prpria

    apenas sob as formas das obras escritas, embora mantenha numerosas relaes com

    o homem e suas atividades intelectuais; sob esta forma que ela se perpetua e

    atravessa os milnios e sobrevive aos indivduos, as geraes e as naes. Ela

    representa tambm a soma de dispositivos internos externos que, tais quais resultam

    dos atos do conhecimento de numerosos indivduos, eles podem passar novamente

    dos atos idnticos inumerveis aos outros indivduos, segundo um modo que fcil

    de compreender mas no de descrever exatamente sem longos e minuciosos

    desenvolvimentos. O que nos suficiente dizer aqui que a cincia estabelece, ou

    deveria estabelecer, para a produo dos atos do conhecimento, certas condies

    preliminares precisas, de possibilidades reais de conhecimento cuja realizao pode

    ser observada pelo homem normal, ou dada normalmente nas condies normais

    conhecidas, como um objetivo acessvel proposto pela sua vontade. neste sentido

    que a cincia tem como objetivo o saber (HUSSERL, 1969, p. 6).

    O problema do rigor cientfico da fenomenologia tratado na quinta e na sexta parte das

    Investigaes lgicas na qual nos apresentada como uma filosofia que emerge das coisas

    ordinrias do mundo da vida, como um retorno s coisas mesmas que a filosofia positivista e

    a cincia natural parecem negligenciar.

    Como vimos, na fenomenologia, o fenmeno est tomado pelo logos e o logos se mostra no

    fenmeno que nem se reduz ao fenmeno concebido nos moldes das cincias da natureza e,

    tampouco, abandonado na busca de uma inteligibilidade em si. A fenomenologia parece

    fundir essncia e existncia que outrora foram colocadas separadamente pela tradio

    racionalista: Se a essncia permite identificar o fenmeno, porque sempre idntica a si

    mesma no importando as circunstncias contingentes de sua realizao3 Andr Dartigues

    (1973, p. 21) ainda afirma que a identidade da essncia consigo mesma, portanto, essa

    2A cette seule condition est possible une phnomno-logie. 3Si lessence permet didenfier un phenomena cest elle est toujour identifique elle-mme, quoi quil en soit des circustnces contigentes de sa realisation

  • 31

    impossibilidade de ser outra coisa que o que , se traduz por seu carter de necessidade que se

    ope facticidade, isto , ao carter de fato, aleatrio, de sua manifestao(DARTIGUES,

    1973, p. 21).

    Husserl mostra-nos a essncia que, embora ela seja manifestada na coisa, a coisa, no se

    limite a ela, pois a essncia seria esse logos, ou essa racionalidade assegurada na estrutura do

    real e que pertence a uma estrutura a priori. Seria tarefa primeira da fenomenologia apresentar

    essa estrutura, esse mundo das essncias em seus diversos domnios (DARTIGUES, 1973, p.

    22).

    As coisas no mundo so mltiplas havendo uma infinidade de variaes seja na matria,

    quanto na forma ou no tamanho e, at mesmo, no tempo de vida ou durabilidade. Diante de

    tamanha diversidade como falar em essncia? A essncia seria o invariante dessa diversidade

    de possibilidades do objeto. Ela est intrinsecamente ligada com a noo de forma e de

    estrutura do objeto analisado. A forma, entendemos como aquilo que assegura no objeto

    mesmo as caractersticas que possibilitam a conscincia apreender a essncia. Se a essncia

    o invariante do objeto na conscincia a forma seria o invariante no prprio objeto, ou seja,

    atravs da forma a conscincia capta a essncia saindo da vivncia temporal na qual o objeto

    intrnseco. A essncia seria como que o sentido ideal do objeto produzido pela conscincia.

    Outra caracterstica do objeto seria a estrutura. Embora, extremamente semelhante a essncia

    e a forma a estrutura garante uma noo de todo do objeto, isto , assegura um todo formado

    por fenmenos solidrios que cada qual depende dos demais e no poderia ser seno em

    relao a eles (DARTIGUES, 1973, p. 41-44).

    Como j vimos, para Husserl a essncia constitui o reino do ser ideal, inespacial e intemporal

    que se d, no entanto, originariamente em sua presena conscincia e to fundamental

    quanto a percepo sensvel. O carter intuitivo desse ser ideal distancia Husserl da posio

    platnica. Essa apreenso das essncias constitui o fundamento do juzo eidtico cujas

    proposies so universais e necessrias e que distinguem as cincias eidticas, que tm como

    objeto as essncias, das cincias empricas que tm como objeto os fatos. As primeiras

    investigam possibilidades ideais, relaes essenciais originadas da intuio das essncias.

    Constituem-se, assim, diversas regies ontolgicas ou ontologias eidticas segundo

    distintos objetos, propriedades e relaes essenciais a que do lugar: h regies formais

    (categorias lgicas, matemtica pura, etc.) e regies materiais (natureza fsica, etc.).

  • 32

    A fenomenologia pura entendida como cincia eidtica e no como fenomenologia emprica

    exige a absteno de toda posio existencial da natureza. Na atitude natural (natrliche

    Eingestellt) o homem se dirige ao mundo considerando-o como existente e as coisas se

    apresentam como uma realidade espao-temporal objetiva, como o conjunto de entes que

    est-a (Dasein). A reflexo filosfica deve abandonar essa atitude por meio de um ato de

    liberdade que suspenda todo juzo de existncia com relao ao mundo. Trata-se de um

    instrumento metdico, da atitude espiritual filosfica que se parece com a dvida metdica

    cartesiana, mas que dela difere por ser um ato de vontade e no decorrente das dvidas que

    emergem do conhecimento sensvel e, sobretudo, por no visar uma esfera indubitvel de ser

    (o cogito), mas que visa evidenciar a prpria conscincia em seus diversos aspectos. Ao visar

    a conscincia o que se descobre como sendo a sua essncia a intencionalidade, isto , a

    conscincia no um ser uma substncia, mas aponta sempre para fora de si mesma, para

    algo. Essa foi a grande descoberta de Brentano, a referncia intencional como trao

    essencial dos fenmenos psquicos e que Husserl assumiu como algumas ressalvas como se

    pode ver no 10 de sua Quinta Investigao. As vivncias da conscincia sempre se

    caracterizam como sendo conscincia de algo, mas esse algo no uma coisa que existe

    realmente no mundo natural, mas algo que se pe para uma conscincia. Por isso, a

    intencionalidade no pode de modo algum dar lugar a um realismo ingnuo e, por isso,

    Husserl sentiu como uma necessidade de explicitao de seu pensamento desenvolver o

    conceito de reduo.

    A reduo fenomenolgica ou epoch (termo tomado dos cticos gregos e que significa

    reteno ou suspenso) tem por finalidade dirigir o olhar ao mundo da conscincia. A reduo

    se desdobra, como observa Urdanoz (1978, p. 386-388) em trs nveis:

    1) Primeiro nvel da reduo filosfica: estgio prvio que consiste em abster-se do juzo de

    toda filosofia anterior, isto , pe entre parnteses todo preconceito e toda teoria anterior para

    dirigir-se s coisas mesmas.

    2) Segundo nvel da reduo eidtica: trata-se da prtica exigida para se chegar a uma

    fenomenologia pura como intuio das essncias. O fenmeno reduzido sua estrutura

    essencial pondo entre parnteses todos os seus elementos contingentes pela mediao da

    variao imaginria.

  • 33

    3) Terceiro nvel da reduo transcendental: colocao entre parnteses da existncia

    (Dasein) das coisas. Este o ncleo da epoch fenomenolgica propriamente dita.

    Normalmente distinguem-se diversos graus dessa reduo para se chegar ao Ego

    Transcendental Puro, o que implica na colocao entre parnteses inclusive de minha

    posio existencial como um sujeito psico-fsico determinado.

    O resultado das redues a conscincia pura em sua essncia como conscincia

    transcendental que o que Husserl chama de resduo fenomenolgico. A conscincia

    entendida como um cogito, mas que sempre est unida, enquanto conscincia intencional, a

    cogitationes. A percepo da conscincia uma percepo imanente que no se caracteriza

    pela dualidade entre o que se revela e o que aparece como no caso da percepo externa do

    objeto transcendente.

    Husserl busca fundar a filosofia, como Descartes, numa evidncia absoluta. o que se

    anuncia como ponto de partida metdico em A filosofia como cincia rigorosa que atribui a

    no cientificidade da filosofia gnoseologia proveniente da atitude naturalista. Aps a

    epoch o que fica como resduo uma conscincia para a qual aparece o mundo e que

    uma evidncia apodtica. a intuio originria: o ser da conscincia. Husserl tende para uma

    fenomenologia transcendental baseada na afirmao do primado e da imanncia da

    conscincia como posio absoluta. O domnio das vivncias da conscincia, enquanto

    entidade absoluta o domnio do ser absoluto. Realidade e mundo so rtulos para certas

    unidades de sentido referidas a certos complexos da conscincia pura ou absoluta.

    Na segunda metade das Ideias I Husserl aborda a anlise das estruturas universais da

    conscincia pura transcendental. Comea uma investigao sobre a conscincia absoluta e o

    seu mundo de vivncias imanentes desconectado da natureza exterior. Abandona-se, ento, o

    conhecimento atravs da intuio das essncias objetivas e adota-se o mtodo da reflexo ou

    da experincia imanente. O ponto de partida continua sendo a intencionalidade, inseparvel de

    todas as vivncias da conscincia, de todo ato do cogito no sentido da cogitatio: a corrente das

    vivncias se rene e se constri na unidade de conscincia, mas nela se distinguem a hyl

    sensvel (os contedos da sensao que formam a matria da percepo) e a morph

    intencional (a forma da vivncia ou seu contedo eidtico). a distino que se retoma

    como noesis, correspondendo nas Investigaes Lgicas inteno significativa e

    noema correspondendo nas Investigaes Lgicas ao objeto intudo ou conceito.

    Noesis a vivncia enquanto ato de percepo e noema o correlato intencional da vivncia,

  • 34

    o objeto intencional. Correspondem ao ato de dar sentido (ato notico) e ao puro sentido

    objetivo como correlato noemtico. Mas ambos so formas imanentes da concincia reduzidas

    de toda natureza fsica e psicolgica. Em todo espectro dos fenmenos da conscincia Husserl

    encontrar tais estruturas notico-noemticas: percepo, imaginao, memria, juzo, etc4

    Husserl permanece sempre, entretanto, no plano da imanncia da conscincia. Orienta-se,

    pois, para uma fenomenologia transcendental de carter idealista que se acentua na terceira

    etapa de suas investigaes.

    Com o descobrimento do Ego Transcendental como fonte da realidade Husserl chega,

    ento, terceira etapa de seu desenvolvimento e considerada como a mais idealista de seu

    pensamento. As investigaes desse perodo resultam na obra Lgica formal e

    transcendental (1929), mas exposta de modo exemplar em suas Meditaes cartesianas

    (1931). Nessa primeira obra Husserl procura estabelecer uma lgica puramente formal e a

    priori como teoria pura do conhecimento que estabelece a priori as leis do pensamento e do

    ser: o fundamento da lgica tambm o fundamento da ontologia. Nas Meditaes

    cartesianas obra que tem como ponto de partida as conferncias parisienses assistidas por

    Merleau-Ponty e que expressa de maneira acabada o seu idealismo aparecem ideias e

    problemas que influenciaram o filsofo francs. Podemos expor esquematicamente esses

    pontos fundamentais por meio do elucidativo resumo das Meditaes que nos oferecido

    por Urdanoz (1978, p. 394-403)

    Na primeira meditao Husserl parte do Eu transcendental como princpio universal. No

    obstante ele procura diferenciar a sua posio filosfica da que foi desenvolvida por Descartes

    que, segundo ele, confundiu o Ego transcendental com o Eu real que forma parte do mundo

    espacial (res, substantia cogitans) e deduziu o resto do mundo a partir dele. Ele no viu que

    toda exterioridade tem o seu fundamento na interioridade pura do ego enquanto plo

    intencional da experincia e por isso sua filosofia deve ser corrigida em sua concepo de

    substantia cogitans. Ao contrrio, o cogito entendido como cogito sum cogitans, como Eu

    puro e suas cogitationes que a base da evidncia apodtica. Esse Eu transcendental no ,

    portanto, objeto de experincia natural ou emprica, mas obtm-se somente pela reduo

    universal da epoch que invalida ou elimina toda crena no mundo natural. Assim, na

    segunda meditao Husserl pode propor a frmula do seu transcendentalismo: trata-se de

    explorar o campo da experincia transcendental em busca de suas estruturas universais. O Ego

    4Cf. Ideias I. 3 Seo, c. III.IV.

  • 35

    transcendental apresenta-se, pois, como fonte de fundamentao das cincias, da surgindo

    uma cincia fundamental: a cincia da subjetividade transcendental concreta. Tal

    investigao se estende universalidade dos objetos da experincia mas sempre segundo a

    frmula: cogito cogitatum qua cogitatum, ou seja, o Eu penso no uma coisa , mas s se

    pe intencionalmente, voltado para suas vivncias intencionais e os objetos se do enquanto

    correlatos intencionais de meus modos de conscincia. Husserl esboa as estruturas notico-

    noemticas da vida infinita da conscincia que se apresenta como um sistema de todos os

    objetos possveis. Nesse ponto de sua reflexo Husserl chega no mago de seu idealismo. Em

    sua terceira meditao ele aborda o problema da unidade e da realidade que se referem

    razo enquanto estrutura da subjetividade transcendental. Ora, a razo remete possibilidade

    de verificao e esta evidncia, por conseguinte, o conhecimento em todo o seu espectro

    desde os fatos empricos at as essncias universais possui um carter intuitivo. Assim, o ser

    verdadeiro das coisas remete aos simples aparecer dos objetos na conscincia enquanto

    existentes, ou seja, a sua existncia o que se manifesta na evidncia de acordo com certas

    snteses de experincias que nos do a aparncia de um ser estvel e permanente. Portanto, a

    realidade o que se d na intuio, dentro de determinadas condies, como correlato da

    vivncia intencional da conscincia. Sob determinadas condies uma vez que nem todas as

    vivncias da conscincia nos do a experincia da realidade.

    Esse problema, a das constituio da objetividade, ir absorver Husserl em suas duas ltimas

    meditaes e o levaria a dificuldades cruciais. A discusso intrincada e envolve outras obras

    de Husserl. O primeiro ponto se refere constituio dos objetos e pode ser esclarecido do Eu

    ftico da conscincia emprica. Como os objetos so apreendidos? Eles no nos so dados na

    percepo sensvel enquanto objetos unitrios, mas nos so dados por meio de uma corrente

    incessante de silhuetas (Abschattungen) e a coisa material, o objeto unitrio uma unidade

    captada atravs da multiplicidade dos modos de apario. Essa unidade obtida por meio de

    uma sntese que feita no tempo, isto , trata-se de uma sntese das mltiplas vivncias da

    conscincia, dos mltiplos modos de apario. O tempo, portanto, a forma universal de

    todas as vivncias concretas que vo fluindo e constituindo como uma unidade um passado,

    um presente e um futuro. No h portanto uma realidade transcendente ao Eu. No ltimo

    pargrafo da quarta meditao5 encontramos a formulao nuclear do idealismo

    husserliano:

    5Cf. 41: A autntica exposio fenomenolgica do ego cogito como idealismo transcendental

  • 36

    A transcendncia de todo modo um sentido de realidade que se constitui dentro do

    ego. Todo sentido imaginvel, toda realidade imaginvel, seja imanente ou

    transcendente, cai dentro da esfera da subjetividade transcendental enquanto

    constituinte de todo sentido e realidade. Querer tomar o universo da verdadeira

    realidade como algo que esteja fora do universo da conscincia possvel, do

    conhecimento possvel, da evidncia possvel, ambos universos relacionados entre si

    meramente de um modo extrnseco, por meio de uma lei rgida, algo sem sentido.

    Ambos esto em essencial conexo e o que est em conexo essencial tambm

    concretamente uma coisa; uma coisa na concreo nica e absoluta da subjetividade

    transcendental.. Se est o universo do sentido possvel , algo fora dela justamente

    algo sem sentido (HUSSERL, 1985, p. 141)

    Essa inequvoca afirmao do idealismo transcendental que leva Husserl a desenvolver uma

    teoria do Ego, uma egologia, remete a um problema que j havia sido apresentado no 33

    da mesma obra:

    Como o ego mondico concreto contm o conjunto da vida consciente, real e

    potencial, est claro que a explicao fenomenolgica desse ego mondico o problema da sua constituio por si mesmo deve abranger todos os problemas constitutivos em geral. E afinal, a fenomenologia dessa constituio de si por si

    mesmo vai coincidir com a fenomenologia em geral (HUSSERL, 1985 aput

    RICOEUR, 2009, p. 213)

    Ou seja, como afirma Ricoeur (2009, p. 213),

    se toda realidade transcendental a vida do Eu, o problema de sua constituio vai

    coincidir com a auto constituio do Ego, e a fenomenologia vem a ser uma

    Selbsauslegung (uma explicao do Si mesmo), mesmo quando constituio da

    coisa, do corpo, do psiquismo, da cultura.

    Essas citaes mostram que a fenomenologia husserliana tem o ncleo de sua investigao na

    constituio do ego e que sem essa elucidao no se pode compreender a constituio do

    mundo em geral. Essa posio idealista de Husserl no pode ser simplesmente descartada

    porque ela traz consigo uma aquisio importante: o abandono de toda concepo

    substancialista, seja em relao s coisas (res extensa), seja em relao ao Eu (res cogitans).

    Embora descartando o idealismo husserliano podemos dizer que aqui se encontra o ponto de

    partida de Merleau-Ponty como conquista incontornvel da fenomenologia: a fidelidade ao

    mundo tal como ele se d originariamente conscincia em detrimento das doutrinas

    filosficas tradicionais. Essa fidelidade ao fenmeno est na base do projeto filosfico da

    Fenomenologia da percepo.

    No entanto essa mesma fidelidade exigiu que Merleau-Ponty se distanciasse do caminho

    transcendental seguido pela fenomenologia husserliana. Este o segundo ponto a que

    aludimos acima e que pode ser apresentado como se segue. O Eu ftico que apreende os

    objetos da percepo sensvel por meio de uma sntese no tempo a partir do fluxo contnuo

  • 37

    das vivncias no seria ele tambm um objeto? No seria necessrio investigar tambm a

    gnese do Eu ftico? Ora, a lgica da posio idealista exige a distino entre o Eu ftico

    como sujeito da concreo das vivncias atuais do mundo circundante e o Eu transcendental

    como sujeito de todas as intuies eidticas e de todas as possibilidades essenciais. Nesse

    sentido o Eu ftico aparece como um correlato intencional do Eu transcendental mas, por

    outro lado, no pode ser considerado como um objeto qualquer, mesmo porque o problema da

    constituio do Eu se desdobra no problema da constituio do outro Eu.

    Esse problema da pluralidade dos outros Eus, que j havia surgido em Lgica formal e

    transcendental precisava ser enfrentado para que a fenomenologia husserliana no casse sob

    a acusao de solipsismo, o que seria desastroso para um projeto filosfico que se props,

    desde o incio, como uma fundamentao da lgica e da cincia contra o empirismo e o

    relativismo. Ser esse o desafio gigantesco que Husserl enfrentar na sua quinta meditao

    e que acabar encontrando um desenvolvimento aparentemente surpreendente em suas

    ltimas obras como a clebre A crise das cincias europias e a fenomenologia

    transcendental. Paul Ricoeur formula de maneira exemplar o que est em jogo nesse

    problema da auto constituio do Ego que no sendo um objeto qualquer entre outros impe a

    considerao da pluralidade dos outros Egos:

    A V Meditao cartesiana de Husserl constitui um universo de pensamentos. Ela

    quase to longa, sozinha, quanto as quatro primeiras reunidas. Esta desproporo

    no apenas o resultado acidental das revises e correes introduzidas no texto da

    V Meditao. Ela atesta a importncia verdadeira do problema do outro na

    fenomenologia de Husserl. Este problema vai infinitamente alm da questo

    simplesmente psicolgica da maneira como conhecemos os outros seres humanos.

    a pedra de toque da fenomenologia transcendental. Trata-se de saber como que

    uma filosofia, que tem como princpio e fundamento o ego do ego cogito cogitatum,

    explica o outro diferente de mim e tudo aquilo que depende desta alteridade

    fundamental: a saber, por um lado a objetividade do mundo como a presena de uma

    pluralidade de sujeitos e, pelo outro, a realidade das comunidades histricas

    edificadas sobre a rede das trocas entre os seres humanos reais. Nesta perspectiva, o

    problema do outro desempenha o mesmo papel que, em descartes, a veracidade

    divina enquanto fundamento de toda verdade e de toda realidade que ultrapassa a

    simples reflexo do sujeito sobre si mesmo (RICOEUR, 2009, p. 215).

    Essa citao de Ricoeur mostra que o problema da alteridade possui imensa relevncia no s

    no desenvolvimento interno da fenomenologia husserliana, mas tambm na compreenso dos

    desafios que teve que enfrentar a fenomenologia posterior a Husserl. Ora, se a alteridade

    tomada enquanto tal e no como um mero simulacro, ento poder-se-ia ainda manter a ideia

    de uma constituio da alteridade a partir do Ego transcendental puro? Ou teramos que levar

  • 38

    a srio a alteridade como um dado originrio irredutvel? Tais questes devero ser

    enfrentadas por filsofos posteriores a Husserl.

    Em suma, para Husserl a dvida metdica cartesiana possibilitou o estabelecimento de um

    ponto de partida incontornvel para toda filosofia que se quer rigorosa: afastar as concepes

    dogmticas acerca da natureza da realidade para chegar conscincia pura como princpio

    constitutivo de nossa experincia do mundo. No entanto, essa imensa conquista do

    pensamento cartesiano cobrou o alto preo da separao entre conscincia e mundo e nessa

    ciso reside o seu impasse. Ora, Husserl contorna desde o incio esse problema mediante a

    ideia de intencionalidade (SILVA, 2009). A conscincia no est voltada para si mesma, mas

    aponta para fora, um direcionamento constitudo por dois polos: o notico que a prpria

    visada da conscincia e o noemtico que aquilo que visado. Esse duplo movimento

    notico-noemtico resgata, em princpio, tanto o aprisionamento mondico da conscincia,

    quanto a postulao de uma realidade em si mesma, pois o objeto sempre ser dado

    conscincia e definido como um objeto para um sujeito (RICOEUR, 2009, p. 08).

    Esse esforo constante de eliminar todo dogmatismo, essa contnua retomada do ponto de

    partida que, para Husserl, torna o filsofo um permanente iniciante ser a nota mais

    caracterstica de seu projeto filosfico:

    A fenomenologia procura solucionar as evidentes dificuldades do empreendimento

    atravs de sucessivas purificaes do seu ponto de partida, mas sem abandon-lo jamais. Reduo eidtica para superar o psicologismo lgico, reduo transcendental para superar o psicologismo sob sua forma mais essencial, mas sem nunca renunciar, efetivamente, ao domnio dos fenmenos psquicos dos quais se partira. So eles que permanecem na cena filosfica husserliana como a regio da

    notica, a camada de realidade interposta entre as realidades. Era o seu ponto de

    partida que condenava a fenomenologia a trabalhar com uma subjetividade que, na

    verdade, segundo seus prprios critrios, s poderia ser um duplo mundano-transcendental, e por isso mesmo j era o seu ponto de partida que a destinava a

    desdobrar-se em uma explicao infindvel sobre a identidade e a diferena entre o psicolgico e o transcendental (MOURA, 2006).

    No entanto o esforo mesmo de purificao e retomada do ponto de partida que faz da

    fenomenologia uma cincia alternativa diante da crise instaurada pela cincia galileana em

    sua explicao abstrata da realidade - que direciona Husserl para o idealismo. Ela se mostra

    como uma alternativa ao objetivismo positivista e ao subjetivismo extremo do ego cartesiano,

    uma vez que, noema e nosis encontram se fundidos e so concebidos um em funo do outro

    e como afirma Paul Ricoeur (2009, p. 08),

  • 39

    cabe a fenomenologia transcendental radicalizar a descoberta cartesiana e reatar

    vitoriosamente a luta contra o objetivismo. A cura que a fenomenologia prope ao

    homem moderno tem que fazer a travessia desse paradoxo: garantir a pureza, o rigor

    do ponto de partida e ao mesmo tempo mostrar que o homem est umbilicalmente

    ligado ao mundo.

    Assim, Husserl instalou o horror e o encanto nas coisas, conforme afirma Sartre (2005, p.

    57), ao fazer da fenomenologia uma cincia que entrelaa a conscincia e o mundo na noo

    de intencionalidade. Ele nos liberta das analises do empiriocriticismo, do neokantismo,

    contra todo o psicologismo (SARTRE, 2005, p. 57) e ainda no cansa de afirmar que no

    pode dissolver as coisas na conscincia (SARTRE, 2005, p. 57). Sem dvida a grande

    contribuio de Husserl est no desenvolvimento da noo de intencionalidade, pois agora,

    no podemos mais fazer filosofia sem considerar a radical insero do homem no mundo.

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