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CAPÍTULO X A fenomenologia do redondo I Quando os metafísicos falam pouco, podem atingir a verdade imediata, uma verdade que seria consumida pelas provas. Podemos então comparar os metafí- sicos aos poetas, associá-los aos poetas, já que estes nos revelam, num verso?uma verdade do homem íntimo. Assim, do enorme livro de Jaspers: Von der Wahrheit, extraio este julgamento lacônico: "Jedes Dasein scheint in sich rund" (pág. 50). "Todo ser parece em si redondo." Como sustentáculo dessa verdade sem prova de um metafísico, vamos trazer alguns textos formulados em orientações diferentes do pensamento metafísico. Assim, sem comentário, Van Gogh escreveu: "A vida é provavelmente redonda ". E Joê Bousquet, sem conhecer a frase de Van Gogh, escreve: "Disseram-lhe que a vida era bela. Não ! A vida é redonda". 203 Enfim, eu gostaria de saber em que parte da sua obra La Fontaine disse: "Uma noz me faz redondinha". . Com esses quatro textos de origem tão diferente (Jaspers, Van Gogh, Bous- quet, La Fontaine) fica o problema fenomenológico claramente colocado. Deve- mos resolvê-lo enriquecendo-o com outros exemplos, reunindo outros dados, tendo o cuidado de reservar a esses "dados" sua característica de dados íntimos, independentes dos conhecimentos do mundo exterior. Tais dados só podem rece- ber ilustrações do mundo exterior. É preciso mesmo tomar cuidado para que as cores muito vivas da ilustração não façam que se perca a luz primeira do ser da imagem. O simples psicólogo tem que se abster nesse caso, pois é preciso destruir as perspectivas da pesquisa psicológica. Não é a percepção que pode justificar tais imagens. Também não se pode tomá-las como metáforas como quando se diz de um homem franco e simples que é "bem redondo". Essa redondeza do ser, ou essa redondeza de ser que Jaspers evoca, só pode aparecer em sua verdade direta na meditação mais puramente fenomenológica. Também não podemos levar tais imagens a qualquer tipo de consciência. Haverá sem dúvida as que desejarão "compreender", quando é preciso inicial- mente que se tome a imagem no seu ponto de partida. Haverá os que declararão, com ostentação, que não compreendem; a vida, vão objetar, não é certamente 203 Joê Bousquet, Le Meneur deLunê, pág. 174.

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C A P Í T U L O X

A fenomenologia do redondo

I

Quando os metafísicos falam pouco, podem atingir a verdade imediata, umaverdade que seria consumida pelas provas. Podemos então comparar os metafí-sicos aos poetas, associá-los aos poetas, já que estes nos revelam, num verso?umaverdade do homem íntimo. Assim, do enorme livro de Jaspers: Von der Wahrheit,extraio este julgamento lacônico: "Jedes Dasein scheint in sich rund" (pág. 50)."Todo ser parece em si redondo." Como sustentáculo dessa verdade sem prova deum metafísico, vamos trazer alguns textos formulados em orientações diferentesdo pensamento metafísico.

Assim, sem comentário, Van Gogh escreveu: "A vida é provavelmenteredonda ".

E Joê Bousquet, sem conhecer a frase de Van Gogh, escreve: "Disseram-lheque a vida era bela. Não ! A vida é redonda".203

Enfim, eu gostaria de saber em que parte da sua obra La Fontaine disse:"Uma noz me faz redondinha".

. Com esses quatro textos de origem tão diferente (Jaspers, Van Gogh, Bous-quet, La Fontaine) fica o problema fenomenológico claramente colocado. Deve-mos resolvê-lo enriquecendo-o com outros exemplos, reunindo outros dados,tendo o cuidado de reservar a esses "dados" sua característica de dados íntimos,independentes dos conhecimentos do mundo exterior. Tais dados só podem rece-ber ilustrações do mundo exterior. É preciso mesmo tomar cuidado para que ascores muito vivas da ilustração não façam que se perca a luz primeira do ser daimagem. O simples psicólogo tem que se abster nesse caso, pois é preciso destruiras perspectivas da pesquisa psicológica. Não é a percepção que pode justificartais imagens. Também não se pode tomá-las como metáforas como quando se dizde um homem franco e simples que é "bem redondo". Essa redondeza do ser, ouessa redondeza de ser que Jaspers evoca, só pode aparecer em sua verdade diretana meditação mais puramente fenomenológica.

Também não podemos levar tais imagens a qualquer tipo de consciência.Haverá sem dúvida as que desejarão "compreender", quando é preciso inicial-mente que se tome a imagem no seu ponto de partida. Haverá os que declararão,com ostentação, que não compreendem; a vida, vão objetar, não é certamente

2 0 3 Joê Bousquet, Le Meneur deLunê, pág. 174.

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esférica. Ficarão espantados que esse ser que queremos caracterizar em sua ver-dade íntima, entregamo-lo ingenuamente ao geômetra, esse pensador do exterior.De todos os lados, as objeções se acumulam para sustar imediatamente o debate.

E, entretanto, as expressões que acabamos de anotar permanecem. E estãonuma posição de relevo sobre a linguagem comum, implicando uma significaçãoprópria. Não advêm de uma intemperança de linguagem, nem de uma inabilidadede linguagem. Não nasceram de uma vontade de espantar. Por mais extraordi-nárias que sejam, trazem a marca de uma primitividade. Nascem de chofre e ei-las acabadas. É essa a razão por que, a meu ver, essas expressões são maravilhasde fenomenologia. Obrigam-nos a tomar, para julgá-las, para amá-las, para tor-ná-las nossas, a atitude fenomenológica.

Essas imagens apagam o mundo e não têm passado. Não derivam de nenhu-ma experiência anterior. Estamos certos de que são metapsicológicas. Dão-nosumaJição de solidão. Convém, por um instante, tomá-las por si só. Se as tomar-mos em sua instantaneidade, sentimos que só pensamos nisso, que estamos intei-ramente no ser dessa expressão. Se nos submetermos à força hipnótica de taisexpressões, mantemo-nos de corpo inteiro na redondeza do ser, vivemos naredondeza da vida como a noz que se arredonda em sua concha. O filósofo, o pin-tor, o poeta e o fabulista nos deram um documento de fenomenologia pura.Cabe-nos agora servirmo-nos dele para apreender a reunião do ser em seu centro;cabe-nos também tornar sensível o documento multiplicando suas variações.

II

Antes de trazer exemplos suplementares, convém, acreditamos, reduzir umtermo da fórmula para torná-la mais pura fenomenologicamente. Diríamos então:das Dasein ist rund, o ser é redondo. Pois, acrescentar que parece redondo, éguardar a dicotomia do ser e da aparência; enquanto que se quer dizer todo o serem sua redondeza. Não se trata de contemplar, mas de viver o ser em seu imedia-tismo. A contemplação se desdobraria em ser contemplante e ser contemplado. Afenomenologia, no domínio restrito em que trabalhamos, deve suprimir qualquerintermediário, qualquer função superposta. Para se ter a pureza fenomenológicamáxima, é preciso tirar da fórmula jaspersiana tudo o que mascararia o valorontológico, tudo o que complicaria a significação radical. É sob essa condiçãoque a fórmula: "O ser é redondo" se tornará para nós um instrumento que nospermita reconhecer a primitividade de algumas imagens do ser. As imagens daredondeza plena nos ajudam a nos congregar em nós mesmos, a nos dar a nósmesmos uma primeira constituição, a afirmar nosso ser intimamente, pelo inte-rior. Porque vivido a partir do interior, sem exterioridade, o ser não poderia dei-xar de ser redondo.

É oportuno evocar aqui a filosofia pré-socrática, referir-se ao ser parmeni-diano, à "esfera" de Parmênides? De uma maneira mais geral, a cultura filosóficapode ser uma propedêutica para a fenomenologia? Não nos parece. A filosofianos põe diante de idéias excessivamente coordenadas para que, de detalhe em

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detalhe, nos ponhamos em situação de ponto de partida, como deve fazer todofenomenólogo. Se uma fenomenologia do encadeamento das idéias é possível, épreciso reconhecer que ela não poderia ser uma fenomenologia elementar. Sãojustamente os benefícios do elementar que encontramos numa fenomenologia daimaginação. Uma imagem trabalhada perde suas virtudes primeiras. Assim a "es-fera" de Parmênides conheceu um destino grande demais para que sua imagempermaneça na primitividade e que seja assim o instrumento adequado para anossa pesquisa sobre a primitividade das imagens do ser. Como haveríamos deresistir ao desejo de enriquecer a imagem do ser parmenidiano pelas perfeições doser geométrico da esfera?

Mas por que falamos em enriquecer uma imagem, quando a cristalizamos naperfeição geométrica? Poderíamos dar exemplos onde o valor de perfeição atri-buído à esfera é inteiramente verbal. Vejamos um que nos deve servir de contra-exemplo, em que se manifesta um desconhecimento de todos os valores de. ima-gens. Um personagem de Alfred de Vigny, um jovem conselheiro, instruiu-selendo as Méditations de Descartes.20 4 "Às vezes", diz Vigny, "ele apanhava umaesfera que colocava perto de si, girando-a.por muito tempo com seus dedos, emergulhava nos mais profundos devaneios da ciência." Gostaríamos de saber quedevaneios. O escritor não diz. Será que pensa que a leitura das Méditations é aju-dada pelo simples fato de o leitor girar por muito tempo uma bilha com os dedos?Os pensamentos científicos se desenvolvem em outro horizonte e a filosofia deDescartes não se aprende sobre um objeto, mesmo sendo a esfera. Na pena de Al-fred Vigny, a palavra profundo, como é freqüentemente o caso, é uma negação daprofundidade.

Aliás quem não vê que, falando de volumes, o geômetra trata apenas dassuperfícies que os limitam? A esfera do geômetra é a esfera vazia, essencialmentevazia. Não pode ser um bom símbolo para nossos estudos fenomenológicos daredondeza plena.

III

Essas observações preliminares estão, sem dúvida, cheias de filosofia implí-cita. Devíamos entretanto indicá-las brevemente já que nos foram úteis pessoal-mente e já que um fenomenólogo deve dizer tudo. Elas nos ajudaram a nos "desfi-losofar", a afastar todos os impasses da cultura, a nos pôr à margem dasconvicções adquiridas num longo exame filosófico do pensamento científico. Afilosofia amadureceu-nos muito depressa e nos cristaliza num estado de maturi-dade. Como então, sem se "desfilosofar", esperar viver as comoções que o ser re-cebe das imagens novas, das imagens que são sempre fenômenos da juventude doser? Quando se está na idade de imaginar, não se sabe dizer como e por que seimaginai Quando já poderíamos dizer como se imagina, não se imagina mais.Seria preciso então se desmaturizar.

2° 4 Alfred de Vigny, Cinq-Mars, capí XVI.

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Mas já que caímos— por acidente — num acesso de neologismo, queremosdizer ainda, à guisa de preâmbulo ao exame fenomenológico das imagens daredondeza plena, que sentimos, aqui como em muitas outras ocasiões, a necessi-dade de nos "despsicanalisar".

Com efeito, há um lustro ou dois, num exame psicológico das imagens daredondeza e sobretudo das imagens da redondeza plena, ter-nos-íamos demoradoem explicações psicanalíticas e teríamos reunido um enorme documentário, poistudo o que é redondo lembra o carinho. Tais explicações psicanalíticas têm segu-ramente um extenso campo de validade. Mas será que dizem tudo, e sobretudoserá que podem colocar-se na linha das determinações ontologicas? Quando nosdiz que o ser é redondo, o metafísico remove de uma só vez todas as determina-ções psicológicas. Livra-nos de um passado de sonhos e de pensamentos. Convi-da-nos a uma atualidade do ser. O psicanalista não pode prender-se a essa atuali-dade»restrita no próprio ser de uma expressão. Julga tal expressão humanamenteinsignificante por ser extremamente rara. Mas é essa raridade que desperta a aten-ção do fenomenologo e que o convida a olhar de maneira nova na perspectiva doser assinalada pelos metafísicos e poetas.

IV

Damos um exemplo de uma imagem fora de qualquer significação realista,psicológica ou psicanalítica.

Michelet, sem preparação, precisamente no absoluto da imagem, diz que "opássaro (é) quase inteiramente esférico". Cortemos esse "quase" que moderainutilmente a fórmula, que é uma concessão feita a uma vista que julgasse pelaforma, e temos então uma participação evidente do princípio jaspersiano do "serredorido". O pássaro, para Michelet, é de uma redondeza plena, é a vida redonda.O comentário de Michelet dá ao pássaro, em algumas linhas, sua significação demodelo de ser.206 "O pássaro, quase totalmente esférico, é certamente o ápice,sublime e divino, da concentração viva. Não se pode ver, nem mesmo imaginar,um grau mais alto de unidade. Excesso de concentração que faz a grande forçapessoal do pássaro, mas que implica sua extrema individualidade, seu isolamento,sua fraqueza social."

Essas' linhas também aparecem no texto do livro num isolamento total. Sen-te-se que o próprio escritor obedeceu à imagem da "concentração" e que abordouum plano de meditação de que conhece as "moradas" da vida. Ele está, porém,acima de qualquer propósito de descrição. O geômetra, nesse ponto, haveria de seespantar, tanto mais que o pássaro é meditado em seu vôo, no ar, e que,conseqüentemente, as figuras de flechas poderiam vir trabalhar de acordo com aimaginação da dinâmica. Mas Michelet compreendeu o ser do pássaro em suasituação cósmica, como uma centralização da vida guardada em toda parte,fechada numa bola viva, no máximo portanto de sua unidade. Todas as outras

2 0 5 Jules Michelet,L'Oíseau, pág. 291.

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imagens, quer venham das formas, das cores, dos movimentos, são assentadas derelativismo diante do que se pode chamar de pássaro absoluto, o ser da vidaredonda.

A imagem do ser — pois é uma imagem do ser — que acaba de aparecer napágina de Michelet é extraordinária. E, por isso mesmo, será tida como insignifi-cante. O crítico literário não deu a ela mais importância que o psicanalista. E,entretanto, foi escrita e existe num grande livro. Tomaria um interesse e um senti-do se uma filosofia da imaginação cósmica que fosse capaz de procurar os cen-tros de cosmicidade pudesse ser instituída.

Compreendida em seu centro, em sua brevidade, como é completa umaúnica indicação dessa redondeza! Os poetas que a evocam, sem se conhecer, serespondem. Assim Rilke, que sem dúvida não pensou na página de Michelet,escreve:20 6

. . .Esse trinado redondo de pássaroRepousa no instante que o engendraGrande como um céu sobre a floresta secaTudo vem documente se acomodar nesse trinadoToda a paisagem parece aí repousar.

A quem se abre a cosmicidade das imagens, parece que a imagem essencial-mente central do pássaro é no poema de Rilke a mesma imagem que na página deMichelet. Só que ela é expressa noutro registro. O trinado redondo do ser redondoarredonda o céu em cúpula. E na paisagem arredondada tudo parece repousar. Oser redondo propaga sua redondeza, propaga a calma de toda redondeza.

E para um sonhador de palavras, que calma na palavra redondo! Como elaarredonda calmamente a boca, os lábios, o ser do fôlego! O mesmo deve ser ditopor um filósofo que crê na substância poética da palavra. E que alegria de mestre,que alegria sonora começar uma aula de metafísica, rompendo com todos os ser-lá dizendo: Das Dasein ist rund. O ser é redondo. E depois esperar que o barulhodo trovão dogmático se acalme sobre os discípulos extasiados.

Mas voltemos a redondezas mais modestas e menos intangíveis.

Às vezes existe uma forma que guia e que enfeixa os primeiros sonhos. Paraum pintor, a árvore se compõe em sua redondeza. Mas o poeta retoma o sonhomais alto. Sabe que o que se isola se arredonda, toma a figura do ser que se con-centra em si. Nos Poemas Franceses de Rilke, isso acontece. Em torno de uma ár-vore sozinha, meio de um mundo, a cúpula do céu vai arredondar-se seguindo aregra da poesia cósmica. Na página 169, lê-se:

2 0 6 Rilke, Poésie, trad. fr. Betz, sob o'título: Inquietude, pág. 95.

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Arvore, sempre no meioDe tudo o que a cercaÁrvores que saboreiaA abóbada dos céus.

É certo que o poeta só tem sob os olhos uma árvore da planície; ele nãopensa em nenhuma árvore lendária que fosse só para ele todo o cosmos unindo aterra e o céu. Mas a imaginação do ser redondo segue sua lei: já que a nogueiraé, como diz o poeta, "orgulhosamente arredondada", ele pode saborear "a abó-bada dos céus". O mundo é redondo em torno do ser redondo.

E de verso em verso, o poema vai crescendo, aumenta seu ser. A árvore estáviva, pensando, voltada para Deus.

Deus vai-lhe aparecer* Ora, para que ela esteja certa

Ele revela redondo seu serE lhe estende os braços maduros.Árvore que talvezPense no interior.Árvore que se dominaDando-se lentamenteA forma que eliminaOs acasos do vento!

Encontrarei melhor documento para uma fenomenologia do ser que aomesmo' tempo se estabeleça e se revele em sua redondeza? A árvore de Rilke pro-paga, em orbes de verdura, uma redondeza conquistada nos acidentes da forma enos acontecimentos caprichosos da mobilidade. Aqui, o devir tem mil formas, milfolhas, mas o ser não suporta nenhuma dispersão: se eu jamais pudesse numavasta coleção reunir todas as imagens do ser, todas as imagens múltiplas, cam-biantes que, da mesma forma, ilustram a permanência do ser, a árvore rilkianaabriria um grande capítulo em meu álbum de metafísica concreta.