A FESTA DE SÃO BENEDITO ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE …
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i UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SILBENE CORRÊA PERASSOLO DA SILVA A FESTA DE SÃO BENEDITO ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE UMA TRADIÇÃO CUIABANA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso na área de concentração de “Territórios e Fronteiras” - “Ensino de História, Memória e Patrimônio”, sob a orientação do Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro. Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação de Mestrado defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em 30/05/2014. BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro (UFMT – Orientador) Prof. Dr. Mairon Escorsi Valério (UFFS - Examinador Externo) Prof.ª Dr.ª Cristiane Thais do Amaral Cerzósimo Gomes (UFMT - Examinador Interno) Profª. Drª. Alexandra Lima da Silva (UFMT – Suplente) Cuiabá/MT – Abril de 2014.
A FESTA DE SÃO BENEDITO ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE …
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
SILBENE CORRÊA PERASSOLO DA SILVA
A FESTA DE SÃO BENEDITO
ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE UMA
TRADIÇÃO CUIABANA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-graduação
em História da Universidade Federal de Mato Grosso na área de
concentração de “Territórios e Fronteiras” - “Ensino de
História,
Memória e Patrimônio”, sob a orientação do Prof. Dr. Renilson
Rosa
Ribeiro.
Dissertação de Mestrado defendida e aprovada
pela Comissão Julgadora em 30/05/2014.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Mairon Escorsi Valério (UFFS - Examinador Externo)
Prof.ª Dr.ª Cristiane Thais do Amaral Cerzósimo Gomes (UFMT -
Examinador Interno)
Profª. Drª. Alexandra Lima da Silva (UFMT – Suplente)
Cuiabá/MT – Abril de 2014.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UFMT
Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Etrúria: Laboratório de
Estudos de Memória,
Patrimônio e Ensino de História, vinculado ao Departamento de
História/ICHS/UFMT.
iii
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
A FESTA DE SÃO BENEDITO
ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE UMA
TRADIÇÃO CUIABANA
iv
RESUMO
A devoção a São Benedito em Mato Grosso surgiu no mesmo tempo que a
cidade de Cuiabá,
no século XVIII, com a vinda dos portugueses e escravos africanos,
que encontraram nesta
Vila toda a sorte de dificuldades e se “uniram” para promover
momentos de religiosidade e
festa em honra ao santo negro. Os primeiros construtores dessa
devoção encontraram, em
Mato Grosso, condições favoráveis para a sua disseminação, e a
festa, durante toda a sua
trajetória, provocou mudanças na paisagem urbana. Este estudo tem
como objetivo apresentar
uma parte do “fazer religioso” em Cuiabá, capital de Mato Grosso,
por meio da festa de São
Benedito, refletindo acerca do seu papel no cenário de
manifestações culturais da cidade,
oferecendo, assim, algumas contribuições para a historiografia da
Igreja Católica e da festa de
São Benedito no Mato Grosso, com um novo olhar sobre o papel da
história, cultura e
religião. Considerado pelos cuiabanos – de confissão católica –
como um santo forte e que faz
milagres, São Benedito é hoje o santo da comunidade, sendo sua
festa é realizada no mês de
julho de cada ano. Essa comemoração é dividida em duas partes – a
celebração religiosa e a
festa, participando a Igreja na sua organização, mas são os devotos
que mantêm a tradição de
cultuar São Benedito.
Cultura Cuiabana.
v
ABSTRACT
Devotion to St. Benedict in Mato Grosso came while the city of
Cuiabá in the eighteenth
century with the arrival of the Portuguese and African slaves, who
found this village all sorts
of difficulties and " joined " to promote moments of religiosity
and party in honor of the black
saint. The first builders of this devotion found in Mato Grosso,
favorable conditions for its
spread, and throughout its history the party participated in the
changes that have occurred in
the urban life. This study aims to present a part of the "religious
do" in Cuiaba, capital of
Mato Grosso, through the feast of St. Benedict, reflecting on the
role of this feast of cultural
events in the city scenario, thus providing some contributions on
the historiography of the
Catholic Church and the feast of St. Benedict in Mato Grosso with a
new look at the role of
history, culture and religion . Considered by cuiabanos – Catholic
confession – as a holy
strong and doing miracles, St. Benedict is now the holy community,
a party is held in July
each year and is divided into two parts – the religious ceremony
and the party , and Church
participates in the organization, but are the devotees who keep the
tradition of worshiping St.
Benedict.
Keywords: 1) Religion - Religious Festivities. 2) Cuiabá - Mato
Grosso, nineteenth and
twentieth centuries 3) History and Historiography of Mato Grosso.
4) Cultural History. 5)
Cuiabana Culture.
vi
RÉSUMÉ
La dévotion à São Benedito dans létat de Mato Grosso est apparue en
même temps que la
ville de Cuia dans le VIII siècle, à l'arrivée des Portugais et des
esclaves africains qui ont
trouvé dans ce village toute sorte de difficultés et «ils se sont
joints» pour promouvoir des
moments de religiosité et de fête à lhonneur du saint noir. Les
premiers constructeurs de cette
dévotion ont trouvé dans cet état des conditions favorables pour sa
dissémination et, pendant
toute sa trajectoire, la fête a participé des changements qui se
sont produits grâce à l'évolution
urbaine. Cette étude a pour objectif de présenter une partie du
“faire réligieux” à Cuia -Mato
Grosso au moyen de la Fête de São Benedito, reflétant sur le rôle
de cette fête dans le scénario
de manifestations culturelles de la ville, offrant ainsi quelques
contributions sur
lhistoriografie de léglise catholique de Cuia et de la Fête de São
Benedito, un nouveau
regard sur le rôle de l'histoire, culture et réligion, pour les
habitants de Cuiabá. Considéré par
les cuiabanos - de confession catholique - comme un saint fort et
qui fait des miracles, São
Benedito est aujourd'hui le saint de la communauté, sa fête est
célébrée au mois de juillet de
chaque année, et est divisée en deux parties, la célé ration
religieuse et la fête, lÉglise
participe de l'organisation, mais ce sont les fidèles qui gardent
la tradition du culte à São
Benedito.
Mots-clés: 1) Religion - Festivités religieuses. 2) Cuiabá - Mato
Grosso, XIXe et XXe siècles.
3) Histoire et historiographie du Mato Grosso du XXe siècle. 4)
l'histoire culturelle. 5)
Culture Cuiabana.
vii
Para minha avó Pequena; ao companheiro de todos os tempos, Donato,
e amadas
minhas filhas, Letícia e Gabriela.
viii
N. A.
ix
AGRADECIMENTOS
O estudo aqui apresentado deve muito ao apoio de algumas pessoas e
instituições
às quais, por diferentes razões, agradeço especialmente:
Ao meu orientador, Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro, pela
generosidade e
paciência durante todo o processo de reflexão. Por sua amizade,
principalmente pela
compreensão silenciosa nos momentos difíceis que passei, sempre
respeitando meus limites.
Obrigada pelas valiosas contribuições.
Às Profª Drª Cristiane Thais do Amaral Cerzósimo Gomes e à Profª
Drª Alexandra
Lima da Silva, que ofereceram muitas sugestões e críticas
fundamentais durante o exame de
qualificação, auxiliando-me na reelaboração de todo o
trabalho.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT,
Otávio
Canavarros, Pio Penna Filho, Fernando Tadeu de Miranda Borges,
Leonice Aparecida de
Fátima Alves, Marcus Silva da Cruz, Pablo Dienner, Ana Maria
Marques, Leandro Duarte
Rust e Oswaldo Machado Filho, pelas reflexões e discussões
importantes para a concepção e
norteamento das abordagens de meu objeto de estudo.
Aos meus amigos, Anderson Domingos, pela ajuda e motivação no
processo de
seleção para o Programa, e Viviane Gonçalves, pelas trocas de
saberes e conselhos históricos
importantes. Mas, principalmente, pela amizade de vocês.
À secretária do Programa de Pós-Graduação em História, Valdomira
Ribeiro, e
sua filha Amanda, pelas longas conversas e também pelo auxílio nas
pesquisas na Biblioteca
do Programa.
À Vanessa Gonçalves, Zullu Zaira Figueiredo, Gabriel Kolling de
Oliveira,
Danielle Batista, Gabriela Santos, pelo carinho, compreensão,
paciência durante o processo
inicial da pesquisa, digitalização e digitação dos materiais
encontrados, entre 2010 e 2012.
À Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), por me apresentar
caminhos
outrora nunca imaginados. Ali, fui aluna da Escolinha de Música,
fiz graduação,
especialização, cursei o mestrado e hoje sou servidora da
instituição.
Ao padre Felisberto Samoel da Cruz, por ter sido merecedora de sua
confiança e
do seu companheirismo. Grata por compartilhar comigo seus
conhecimentos e acesso ao
Arquivo da Cúria.
Ao Padre José de Moura Silva, por disponibilizar seu conhecimento e
amor pela
história de Cuiabá e pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito.
x
Às equipes do Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá, Arquivo
Público de
Mato Grosso, Núcleo de Documentação e Informação História Regional,
Instituto Memória
do Poder Legislativo de Mato Grosso, Biblioteca do Programa de
Pós-Graduação em História,
Biblioteca Central da Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso e Biblioteca Nacional, pela eficiência e
disponibilização de informações,
mas, também, pelas sugestões bibliográficas.
À Márcia Vialogo, minha eterna professora, Beto Seror, Dorit
Kolling, Clovis
Gonçalves de Oliveira, Márcia Dias, Clevis, Bruna, Andréa e
Jussara, por me oferecerem
amizade incondicional, manancial de amor para toda a vida.
À equipe da Multigráfica Digital, na pessoa da Sra. Elizabete e Sr.
Marcos, pelo
suporte técnico na produção do material desta pesquisa.
À toda minha família, em especial: meu pai, José Viturino Corrêa
(motorista,
assistente e historiador nato), e minha mãe, Terezinha de Oliveira,
meus sogros, Donato da
Silva e Maria Neusa Perassolo da Silva, meus irmãos, Carlei,
Melissa, Josemar, Carbene e
Cláudio, aos meus cunhados, Adriana, Pedro, Rossana, Welington e
Melissa, aos meus
sobrinhos, Ana Luisa, Alessandra, Milena, Jonatan, Pedro, Paulo e
Leonardo.
Ao esposo Donato e minhas filhas Leticia e Gabriela, por todo
amor,
compreensão, apoio, suporte emocional nos momentos mais difíceis –
para vocês, dedico este
trabalho.
E, finalmente, ofereço tudo o que sou para o autor da minha
fé.
xi
SUMÁRIO
Introdução
Primeiro Capítulo –
História, Historiografia e Fontes, p. 17
Segundo Capítulo –
A invenção de uma tradição da cultura cuiabana, p. 50
Terceiro Capítulo –
Análise das festividades no entorno da capital, p. 80
Quarto Capítulo –
As festas de São Benedito na Igreja de Nossa Senhora
Novas fontes, outras histórias, p. 139
Considerações Finais –
Referências
Bibliografia, p. 219
Anexos, p. 225
CUIABÁ NAS F(R)ESTAS
Este trabalho é resultado de uma pesquisa que pretendeu, por meio
da festa de São
Benedito na cidade de Cuiabá, descortinar referências importantes
na construção da tradição
desse evento religioso na capital mato-grossense, que, atualmente é
considerada a maior festa
religiosa cuiabana. São abordados seus elementos constitutivos e
ligações com a história da
cidade de Cuiabá, mas, principalmente, analisado o processo
evolutivo, de uma festa realizada
por negros, para uma festa que privilegia a diversidade étnica e
cultural.
A pesquisa está inserida na Linha de Pesquisa III: Ensino de
História, Memória e
Patrimônio, do Programa de Pós-Graduação em História, a partir do
entendimento que a festa
de São Benedito em Cuiabá proporciona espaço de reflexão entre
passado e presente, onde as
memórias são fundamentais na preservação desse patrimônio imaterial
cuiabano.
O contato com a festa de São Benedito deu-se na infância, nos
passeios aos
domingos. Lembro-me que num deles, diante da procissão do santo
negro, meu pai, disse-me:
“olhe, a festa dos pobres, a festa do santo negro” 1 . Assim, a
partir dessa afirmação, passei a
vida a admirar essa reunião de pessoas diferentes num mesmo lugar,
à medida em que fui
amadurecendo.
A vida cotidiana da cidade influenciou-me na escolha do objeto de
pesquisa. O
interesse primeiro pela festa foi gastronômico, pois a paçoca de
pilão 2 , oferecida nas festas de
São Benedito em Cuiabá, era famosa, mas nunca consegui chegar a
tempo para consumi-la e
foi assim ano após ano.
1 José Vitorino Corrêa, conhecido como Juquinha dos Fogões,
entrevista concedida a autora em 23 de março de
2014. 2 A paçoca de pilão é uma comida tradicional da gastronomia
cuiabana, uma herança dos primeiros nordestinos
que aqui chegaram. A paçoca é a mistura de carne seca, farinha de
mandioca e temperos, que são mistura e
batidos em um pilão. Ingredientes: 500 g de carne seca, 500 g de
farinha de mandioca ou de milho, 1 cebola
picada, 1 fio de óleo, 2 dentes de alho picados, 1 colher (sopa) de
salsa seca. Modo de Preparo: Dessalgue a
carne certa e corte em cubos. Refogue a cebola e alho, acrescente a
carne e deixe fritar. Retire a carne com uma
escumadeira e coloque no pilão de madeira, socando até ficar
totalmente desfiada. Após, acrescente a carne
desfiada na mesma panela dos temperos, coloque farinha a gosto e
deixe esquentar. (Recita tradicional de
Cuiabá).
2
Durante a década de 1990, passamos a fazer parte da comissão
ecumênica, como
representante da Igreja Metodista do Brasil, sendo que as reuniões
eram realizadas na Igreja
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Nesse espaço
percorria-se o templo ouvindo as
palavras do padre José de Moura, seu amor pela história, passando a
conhecer e respeitar,
ainda mais, a festa de São Benedito, enquanto festa de fé e
alegria.
Na academia, no final de 2006, ao concorrer à vaga, como aluna
especial, no
Mestrado em História da Universidade Federal de Mato Grosso, a
festa de São Benedito
passou a ser objeto de reflexão. E o caminho percorrido foi longo,
até a materialização deste
estudo.
Em 2011, ingressamos como aluna regular no citado Programa, que
oportunizou, a
partir das leituras de cada disciplina, ampliarmos os conhecimentos
adquiridos com os
conteúdos que foram fundamentais no processo de formulação do tema
estudado. Neste
trabalho buscamos investigar a festa de São Benedito, tentando
reconstituir alguns dos
aspectos históricos da festividade para refletir-se sobre os
elementos de suas origens,
transformações e/ou atualizações que, ao longo do tempo,
fortaleceram as festividades em
honra ao santo negro.
Para tanto, num primeiro momento empreendemos a busca pelos
vestígios deixados
pela festa junto às bibliotecas e acervos da Capital de Mato
Grosso, e, na medida do possível,
levantar os autores mato-grossenses que registraram a festa de São
Benedito. Num segundo
momento, utilizando a ferramenta de busca on-line, realizamos uma
pesquisa em acervos e
bibliotecas virtuais na busca dos jornais que circularam em Cuiabá
no século XIX até a
primeira metade do século XX; após a análise inicial de todo o
material pesquisado,
percebemos que diversas lacunas não haviam sido preenchidas. Assim,
acessamos o acervo
físico da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e da Cúria
Metropolitana de Cuiabá, de
extrema importância para a elaboração deste trabalho. Utilizando da
ferramenta das imagens
fotográficas do celular, digitalizamos muitas páginas de
documentos, entre Provisões,
Compromissos, jornais, cartas, entre outros.
Desta forma, o corpus documental foi se ampliando a partir de
documentos
encontrados nos acervos da Cúria Metropolitana de Cuiabá, do
Arquivo Público de Mato
Grosso, do Núcleo de Documentação e Informação História Regional,
do Instituto Memória
da Assembleia Legislativa, da Biblioteca do Programa de
Pós-Graduação em História e da
Biblioteca Central da Universidade Federal de Mato Grosso, no
Arquivo da Casa Barão de
Melgaço e na Biblioteca Digital do Brasil.
No acervo da Cúria Metropolitana tivemos acesso aos documentos
oficiais
eclesiásticos, ocasião em que foram privilegiadas as Provisões
autorizando a realização das
3
festividades de São Benedito no estado de Mato Grosso, e também os
artigos do jornal A
Cruz, compilados pelo padre Pedro Cometti, contendo informações
sobre a festa e devoção a
São Benedito. No Arquivo Público de Mato Grosso, especialmente no
jornal A Gazeta
Official, do final do século XIX, foram localizados anúncios
evidenciando a manutenção da
tradição na realização da festa. No Acervo do Núcleo de
Documentação e Informação
História Regional, consultou-se o arquivo microfilmado da revista A
Violeta, contemplando
aspectos cotidianos de Cuiabá na visão da mulher. No acervo
Instituto Memória do Poder
Legislativo (Assembleia Legislativa) foram acessados as Leis e
Decretos Provinciais e os
Códigos de Posturas de Cuiabá. Na Biblioteca do Programa de
Pós-Graduação em História
privilegiamos o banco de dissertações referentes ao tema no período
em questão. Na
Biblioteca Central da Universidade Federal de Mato Grosso
procuramos os autores que
narraram a história da cidade de Cuiabá. Na Casa Barão de Melgaço
privilegiamos a
documentação concernente às diversas festividades religiosas de
Mato Grosso. Na Biblioteca
Digital do Brasil examinamos os jornais: A Província de
Matto-Grosso, A Imprensa de
Cuyabá, O Pharol, O Povo, O Republicano, O Pequeno Mensageiro, Echo
Cuiabano, A
Reacção e a Revista Mato Grosso, e também os Relatórios de
Presidentes da Província, de
1892 a 1930.
As balizas temporais do presente estudo se constituíram num grande
feixe que
tentamos desenrolar durante toda a pesquisa. Incialmente,
delimitamos a pesquisa da década
de 1830, com a chegada da tipografia em Mato Grosso, até a década
de 1930, considerando
que, provavelmente, foi nesse período que os divertimentos profanos
da festa de São Benedito
foram proibidos pela Igreja Católica, e a festa “em ranqueceu”.
Mas, à medida que
prosseguíamos, aventamos para a necessidade de expandir tais
balizas. Assim, embora nossa
pesquisa estivesse situada na primeira metade do século XX, se
tornou necessário recorrer à
longa duração para explicar de que forma a festa perdurou ao longo
do tempo. Uma provável
justificativa pode ser encontrada na própria história do festejar o
santo negro em Cuiabá, que
não seguia um calendário rígido, ora mudando de dia e mês, sem
qualquer explicação. Cabe
aqui esclarecer que resolvemos seguir as balizar imposta pelo
próprio santo, recuando ou
avançando, para tentar oferecermos uma maior compreensão da
importância desta festa para
Cuiabá.
De posse de toda a documentação utilizada na construção deste
trabalho, tornou-se
necessário e essencial a análise do material e separação das fontes
impressas e virtuais, assim
como das orais, que possibilitaram a construção da narrativa
historiográfica, permitindo uma
abordagem fundamentada dos meandros da festa.
4
O recorte temático, tendo como pano de fundo a festa de São
Benedito, se deu na
tentativa de analisar as vivências do povo cuiabano, permeadas de
crenças e tradições, visto
que um povo que “mantém” a religiosidade e a devoção ao santo negro
na última metade do
século XIX até a primeira metade do século XX – visível nos
“discursos” divulgados pela
imprensa de Mato Grosso – permite repensar toda a história da
festa, principalmente no
quesito do sagrado e do profano. Esperamos, com a presente
dissertação, sinalizar uma nova
possibilidade de reflexão sobre a festa de São Benedito em Cuiabá,
sem a pretensão de
esgotar o assunto, mas indicar um novo olhar sobre essa
festa.
Nosso objetivo é o de apresentar uma parte do fazer religioso
cuiabano por meio da
festa de São Benedito, refletindo acerca do papel do evento no
cenário das manifestações
culturais da cidade, oferecendo algumas contribuições para a
historiografia da Igreja Católica
da Capital e da mesma festa: um novo olhar sobre o lugar da
história, cultura e religião para
os habitantes de Cuiabá.
Algumas questões nortearam a pesquisa: a festa de São Benedito é a
festa religiosa
mais tradicional de Cuiabá? Quais fatores motivaram os fiéis, ano a
ano, cultuar o santo negro
na Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito? Como a festa se
consolidou como
tradição cuiabana? Essa festa guarda realmente antigas tradições em
louvar ao santo negro?
Quais caminhos percorreram os festeiros na organização e manutenção
das festividades na
atualidade, como “sím olo” de fé do povo cuiabano?
A historiografia acerca da festa cuiabana de São Benedito procurou
dar conta dos
momentos mais marcantes de seu processo de transformação, mas, em
sua maioria, buscou
oferecer o percurso da festa tradicional, numa concepção estanque
sobre alguns pontos
relevantes dessa devoção, incorrendo, em pelo menos, dois pontos
discutíveis: primeiro, que a
festa de São Benedito em Cuiabá era realizada logo após as
festividades do Divino Espírito
Santo, e que foi no século XX que a festa embranqueceu,
transformando, de uma festa de
pobres e negros, comemorada por toda a sociedade cuiabana,
incluindo o segmento branco e
letrado.
Dessa forma, objetivando reconstituir historicamente a festa de São
Benedito e sua
herança cultural na atualidade, buscamos apresentar seu percurso
intimamente ligado à cidade
de Cuiabá, como a maior festa religiosa, não só da Capital, mas de
todo o estado de Mato
Grosso, numa perspectiva teórico-metodológica, centrada na produção
jornalística e apoiada
em novos documentos.
A partir desse apontamento, foram redefinidos os objetivos e, em
seguida, realizamos
os procedimentos investigatórios no âmbito da produção
historiográfica referente a Cuiabá e
de São Benedito, acrescida da documentação que foi encontrada em
acervos físicos e virtuais.
5
O tratamento desse conjunto de fontes, adicionado aos relatórios de
Presidentes da Província,
como provisões eclesiásticas, legislação do Estado e do município,
foram insuficientes para
dar conta da compreensão do papel da festa para o município de
Cuiabá. Por isso foram
acrescentados os artigos de jornais da época, através dos quais
conseguimos ampliar os
conhecimentos adquiridos ao longo da pesquisa, oferecendo um
panorama da força da
devoção a São Benedito no estado de Mato Grosso.
Realizou-se a atualização bibliográfica do tema abordado com a
produção
historiográfica recente e aproximou-se de outras disciplinas sempre
que foi necessária a
elucidação de questões pertinente ao tema. As reflexões oferecidas
pelo conjunto dos autores
foi de fundamental importância para a construção da narrativa deste
trabalho e, neste sentido,
os diálogos da História Cultural, com a Sociologia, Geografia,
entre outros, permitiram
observar aspectos intrínsecos à pesquisa, como religião,
patrimônio, cidade, festa, tradição e
costume, não sendo possível abordar com profundidade a relação
público/privado nos espaços
da festa, foram utilizados como base para os referenciais teóricos
da pesquisa.
Sobre o papel do historiador, Jean Boutier apresenta
primordialmente na
compreensão da história como uma ciência que, assim como outras,
fundamenta-se na
aplicação rigorosa das regras da profissão. Para Boutier, cabe ao
historiador retirar seu objeto
de estudo a partir de origens diversas dos fenômenos intrínsecos da
vida humana. Assim, todo
documento passa a ter utilidade nas tentativas de se ampliar a
história de uma sociedade ou de
uma época. De acordo com o mesmo autor, “não pode haver história
senão erudita: a coleta
metódica dos dados repousa sobre o recurso frequente, ainda que
variável segundo a época e
os lugares, às técnicas “auxiliares” – ou “ancilares” – cuja longa
lista não cessa de se
enriquecer”. 3 Nessa perspectiva, o historiador, influenciado pela
teoria positivista, passou a
recolher fontes escritas, para atestar a “verdade” que estava nos
documentos. O pro lema é
que somente os documentos escritos podiam ser utilizados para
conduzir o historiador rumo a
uma “verdadeira” reconstituição dos momentos históricos. 4
A partir dessas indagações sobre a aplicação das regras da
profissão de historiador,
foi possível fazer uma reflexão do fazer história. Assim,
reformulamos o problema e o objeto,
culminando no diálogo com as outras ciências sociais e humanas,
expandindo o campo de
pesquisa do historiador, privilegiando-se, além dos documentos
escritos, fontes das mais
diversas facetas, tais como: a vida privada, o medo da morte e,
assim, oferecendo ao
3 BOUTIER, Jean; DOMINIQUE, Julia (Org.). Em que pensavam os
historiadores? In: Passados Recompostos:
campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: EdUFRJ; EdFGV,
1981, p. 36-38. 4 Idem, p. 21-24.
6
historiador, a tarefa mergulhar na crítica dos novos documentos
para escolhê-los ou descartá-
los. 5
A definição da noção de lugares da memória, de Pierre Nora, definiu
o caminho das
reformulações dos espaços sociais como guardiões da memória.
Segundo este autor, são antes
de tudo, os “restos” do passado: “Nesse sentido, o lugar da memória
é um lugar duplo; um
lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua
identidade; e recolhido sobre
seu nome, mas constantemente a erto so re a extensão de suas
significações”. 6
De acordo com Nora, na defesa dos lugares da memória cabe ao
historiador a
reconstrução da história vivida, sendo que o desenvolvimento desse
conceito se deu na
convicção que os grupos sociais mudaram suas relações com o
passado, pois, “se
ha it ssemos ainda nossa memória não teríamos necessidade de lhe
consagrar lugares”. 7
Assim, por esse prisma, os pressupostos de Nora foram importantes
na reconstrução do
percurso das festividades em Cuiabá, entre os séculos XIX e XX,
principalmente o da festa de
São Benedito, que se mostrou como um dos símbolos de resistência
frente à globalização e
modernização da cidade, tornando-se um lugar da memória
cuiabana.
Na perspectiva dos lugares da memória, promoveu-se novo
redimensionamento do
campo empírico da História, com o advento da História Nova,
passando, o cotidiano, a
alimentação, os costumes, valores, os modos de vida, as tradições,
crenças etc., a fazer parte
do laissez faire do historiador. Afinal, tudo pode ser o campo de
pesquisa para o historiador.
No ensaio Operação historiográfica, Michel de Certeau traz uma
explicação das
ligações da história com a operação histórica, onde se observa a
combinação de um lugar
social, de práticas científicas e de uma escrita. Concluiu que a
operação histórica tem efeito
duplo: por um lado, historiciza o atual e, por outro, a imagem do
passado mantém o valor de
primeiro representar aquilo que falta. Por essa configuração,
Certeau levantou as questões que
hoje envolvem a história, oferecendo suas reflexões sobre história
e escrita, seu alerta sobre
como essas questões contribuíram para o entendimento de que o papel
do historiador nesse
processo é de fundamental importância, visto que, pelo seu gesto,
liga as "ideias" aos lugares,
dando voz ao não dito. 8
Tendo por base o referencial teórico dos autores supracitados, e de
acordo com as
reflexões apresentadas, nova fase foi iniciada: a investigação
priorizando a documentação
como suporte ensejou o recurso do recorte cronológico condizente
com a festa de São
5 Ibidem, p. 23-24. 6 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a
problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10,
dez.
1993, p. 12; 28. 7 Idem, p. 13. 8 CERTEAU, Michel de. A operação
historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro:
Forense
Universitária, 1982, p. 88.
7
Benedito, visando apresentar um novo olhar para o evento que
pudesse contribuindo com a
historiografia cultural da cidade de Cuiabá.
O viajante que chegava a Cuiabá, no século XIX, necessariamente
passava pela
Igreja de Nossa Senhora do Rosário para chegar ao centro da cidade.
Essa igreja presenciou
toda a história cuiabana, dos seus primórdios até hoje, e é a única
igreja ereta que guarda seus
contornos coloniais. O espaço do Rosário acompanhou a evolução
urbana da cidade, de vila a
metrópole, e a cada ano se reinventa para acompanhar as
transformações da urbe. Espaço de
muitas histórias, este patrimônio (i)material de Cuiabá abriga duas
festas de santos, São
Benedito, foco central do presente estudo, e a de Nossa Senhora do
Rosário.
Assim, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário encontra na festa de
São Benedito o
irmão de fé, para auxiliá-la na manutenção das tradições culturais
cuiabanas, transformando-
se num ambiente de resistência às transformações que, ao mesmo
tempo, mudam transformam
separam, mas que também atualizam as práticas de devoção aos santos
dessa Igreja.
A festa de São Benedito de 2013 guardou diversos aspectos da
“tradição” de cultuar
São Benedito, da peregrinação das imagens de São Benedito e Nossa
Senhora do Rosário, à
visita da bandeira de São Benedito, às missas nas alvoradas,
levantamento de mastro e à
grande procissão pelas ruas da cidade, enfim, o lado sagrado da
festa. O costume do chá com
bolo após as missas foi preservado. O lado profano da festa foi
diversificado com muitas
programações culturais, jantar com comidas típicas e Baile
Oficial.
Os meios de comunicação social oferecem nova proposta de análise
teórico-
metodológica para o estudo da festa de São Benedito, veiculados
pelos modernos meios de
comunicação, como televisão e rádio, bem como as novas mídias
sociais e também com a
distribuição de panfletos nas ruas do centro, dando visibilidade
aos festeiros sem precedentes
na história dessa festa, imprimindo nos devotos a dedicação para a
preparação da festa – que
se baseia na renovação da tradição de se cultuar o santo
negro.
Eric Hobsbawm, no livro A invenção das tradições 9 , utiliza o
termo “tradição
inventada” em sentido amplo, porém nunca indefinido. Argumenta que
essas tradições, que
podem ter sido inventadas ou institucionalizadas, conseguiram se
estabelecer com muita
rapidez. 10
9 “Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou
simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica automaticamente:
uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se esta elecer continuidade com
um passado histórico apropriado”.
HOBSBAWM, Eric; TERENCE, Ranger (Org.). A invenção das tradições.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
(Pensamento Crítico; v. 55), p. 9. 10 Idem, ibidem.
8
As muitas escolhas que fazemos podem funcionar ora como reação a
coisas novas,
ora como referência com relação ao passado, por meio da repetição
quase obrigatória,
caracterizando-se por estabelecer com este passado, uma
continuidade muito artificial.
Hobsbawm propõe o debate com a divisão entre a tradição e o que se
pode chamar de
costumes. Elucida ainda a diferença entre tradição e convenção, mas
afirma que a convenção
não possui função simbólica, nem ritualística, embora admita que,
em alguns casos, possa ser
adquirida eventualmente. Para efeito deste estudo, deixaremos de
lado, as convenções e nos
concentraremos, na tradição e o costume. 11
A “tradição” neste sentido deve se nitidamente diferenciada do
“costume”,
vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O o jetivo e a
característica das
“tradições”, inclusive das inventadas, é a invaria ilidade. O
passado real ou
forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente
formalizadas), tais como repetição. O “costume”, nas
sociedades
tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede
as
inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja
tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico
ao procedente.
12
Ele reconhece que o conceito “tradições inventadas” corresponde a
uma questão
interdisciplinar que pode referendar não só os estudos
historiográficos, mas que é também
comum estudos antropológicos e de outras áreas das ciências
humanas. Podemos, então,
considerar a invenção das tradições como um processo que une
formalização e ritualização,
referindo sempre ao passado, mesmo que seja somente imposta uma
contínua a repetição.
Algumas vezes, esse processo é documentado desde sua criação,
facilitando ou dificultando
sua investigação.
Outra variação proposta pelo autor aponta que elas podem se
manifestar em situações
onde as tradições são parcialmente inventadas e desenvolvidas por
um determinado grupo
fechado, ou mesmo as que são realizadas de maneira informal, em
ambientes aberto e que,
mesmo assim, se perpetuaram: “Em suma, inventam-se novas tradições
quando ocorrem
transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da
demanda quanto da
oferta”. 13
Segundo Hobsbawm, houve momentos importantes de adaptação pensando
em
conservar os antigos costumes, mas em novo cenário; ou utilizar
velhos modelos com objetivo
de se criar novos fins. Ele prossegue cintando o exemplo da Igreja
Católica, uma instituição
antiga, que precisou se adaptar ao novo cenário político e
ideológico, com as mudanças
ocorridas na nova composição dos fiéis, devido ao aumento do número
de mulheres leigas, as
11 Idem, p. 10 12 Idem, ibidem. 13 Idem, p. 12.
9
devotas, coexistindo para conservar velhos costumes em condições
novas, ou mesmo para
usar modelos antigos para novos fins: 14
Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um
amplo
repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada,
composta de práticas e comunicações simbólicas. Ás vezes, as
novas
tradições podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos para
depósitos
bem supridos do ritual, simbolismo e princípios Morais oficiais
[...] Por outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições
genuínas não deve ser
confundida com a “invenção de tradições”. Não é necess rio
recuperar nem
inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam.
15
Assim, o mesmo autor identifica quais são os espaços cedidos pela
decadência das
velhas tradições e antigos costumes, que, apesar de abundantes, não
foram preenchidos pelas
invenções. Por fim, ele explora os aspectos dos indícios e
vestígios encontrados na tradição
“inventada”, que podem ser um problema para os historiadores e
pesquisadores, pela
dificuldade de serem encontrados no tempo, salientando que as
“tradições inventadas” têm
funções políticas e sociais importantes, e não poderiam ter
nascido, nem se firmado se não se
pudessem ser adquiridas.
Outro historiador, Edward P. Thompson, em Costumes em Comum:
estudos sobre a
cultura popular tradicional 16
, apresenta uma pesquisa histórica a partir das teias de
costumes,
da cultura e das tradições populares do século XVIII inglês,
dialogando com outras
disciplinas, como antropologia, direito e economia. Sua fonte foram
os dados recolhidos na
esfera das anedotas ou da vitimização, analisando-as como uma
defesa dos direitos,
estratégias de manipulação das leis da sociedade que começava a
viver as imposições surgidas
pelas imposições do capitalismo.
Por outro lado, o costume – nas palavras de Thompson – constituía a
retórica de
legitimar todas as práticas ou um direito que fora reclamado. O
“costume” era visto com ons
olhos, uma “ oa palavra” que incorporava muitos sentidos atri uídos
à “cultura” do outro,
diretamente ligados ao direito do costume, dos usos habituais de um
determinado lugar,
muitas vezes, reduzidos às regras que “em certa circunstância eram
codificados e podiam ter
força de lei”. 17
Para o autor,
No século XVIII, o costume constituía a retórica de legitimação de
quase
todo o uso, pratica ou direito reclamado. Por isso, o costume não
codificado - e até mesmo o codificado - estava em fluxo continuo.
longe de exibir a
14 Idem, p.13. 15 Idem, p.14 e 16. 16 Cf. THOMPSON, Edward P.
Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo:
Companhia das Letras, 1998. 17 Idem, p. 16.
10
permanência sugerida pela palavra "tradição", o costume era um
campo para
a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos
apresentavam
reinvindicações conflitantes [...], mas uma cultura é também um
conjunto de diferentes recursos, em que ha sempre uma troca entre o
escrito e o oral, o
dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena
de
elementos conflitivos que somente sob uma pressão imperiosa [...]
assume a forma de um „sistema.
18
Thompson alerta historiadores e pesquisadores dos perigos da
utilização dos termos
cultura e costume com suas invocações confortáveis de “consenso”
que “pode distrair nossa
atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e
oposições existentes dentro do
conjunto. Nesse ponto, as generalizações dos universais da "cultura
popular" se esvaziam, a
não ser que sejam colocadas firmemente dentro de contextos
históricos específicos”. Assim
os estudiosos do assunto possam desfazer o “feixe” que im ricam no
uso dos voc ulos,
“examinando com olhar crítico os componentes que constituem os
ritos, os modos sim ólicos,
os atri utos culturais dominantes, a “transmissão do costume de
geração para geração como
forma de desenvolvimento das relações tanto sociais como de tra
alho”. 19
O historiador pode e deve descobri-los para entender porquê essas
sociedades
sentiram necessidades de continuar com a tradição, e as implicações
surgidas nessa
flexibilização e espontaneidade que inclui a repetição e ao mesmo
tempo inclui
transformações, visando um maior alcance social. Com isso, traz uma
experiência que
perpassa o cotidiano das pessoas, e com isso, há uma contínua
familiaridade com objeto,
tornando-o a expressão da cultura do povo de um lugar a partir de
elementos próprios.
A relevância deste estudo justifica-se pela sua contribuição à
historiografia de Mato
Grosso, especialmente no que fiz respeito ao espaço da memória
cuiabana, revestindo a festa
de São Benedito de um significado relevante na construção do
processo de identificação da
população cuiabana. A localização da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito
constitui-se em um dos locais mais antigos da formação do núcleo
urbano colonial, que, após
a descoberta do ouro, oportunizou um significativo aumento da
população, alavancando o
crescimento da vila. Com a chegada dos padres e dos bandeirantes,
passou por
transformações, consolidando duas instituições importantes na
manutenção do poder local, o
Senado da Câmara e as irmandades e confrarias. 20
18 Idem, p. 16 e 17. 19 Idem, p. 22. 20 Cf. ROSA, Carlos Alberto. O
urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto;
JESUS, Nauk
Maria (Org.). A terra da conquista: história de Mato Grosso
colonial. Cuiabá: Adriana, 2003.
11
A cidade, então, passa a se desenvolver da Igreja de Nossa Senhora
do Rosário em
direção ao centro e, em seguida, ao porto, local onde as famílias
estabeleciam residência ou
instalavam pensões e hotéis para acolher os viajantes cansados da
longa viagem até Cuiabá. 21
O Porto marcou a vida da população, quebrando a monotonia do
dia-a-dia. A
chegada do vapor era marcada pela organização dos habitantes para
receber e se fazer
presente neste momento de alegria, assim como pelas novidades que
aportariam junto com os
passageiros que, em certas ocasiões, eram recebidos ou por uma
banda ou por uma
orquestra. 22
Assim, a cidade aos poucos foi formando seu traçado urbano rumo ao
progresso e
desenvolvimento, num longo e gradativo processo de transformações
urbanas que objetivaram
remodelar Cuiabá, como uma cidade civilizada, palco de lutas e
dificuldades, mas de grande
interação social, mediadas pelas muitas festividades que aconteciam
nesta cidade.
A leitura da obra As Cidade Invisíveis, de Ítalo Calvino,
oportunizou-nos
compreender as articulações e movimentos dinâmicos das cidades, que
deixaram de ser
apenas um conceito geográfico para se tornar o símbolo complexo e
inesgotável da vida
humana. Por esta razão, as narrativas da visita do veneziano Marco
Polo ao Extremo Oriente,
tornou-se a proposta ideal para se refletir sobre o fenômeno urbano
a partir das relações
sociais, pois a “cidade não é feita disso, mas das relações entre
as medidas de seu espaço e os
acontecimentos do passado”. 23
A proposta de Michel de Certeau, em Andando na Cidade, de conceber
a vida no
ambiente urbano enquanto recôndito de muitas histórias, está presa
ao projeto urbanístico,
tradução do poder, que é em si mesma “ur anizante” pelos movimentos
contraditórios, ora
contrabalançando, ora combinando, o que permite ao observador
analisá-la em seus vários
momentos “fora do alcance do poder panóptico”. 24
Segundo Certeau, a “vida ur ana permite cada vez mais a
re-emergência do elemento
que o projeto urbanístico excluía", e para tanto, pretendeu-se
outra forma de olhar a cidade e
sua realidade: de pé no seu ponto mais alto para ficar fora do
alcance dela pois quando se sobe
ali “deixa-se para trás a massa que carrega e mistura em si própria
toda a identidade de
autores e espectadores”. O distanciamento na visão de Certeau
transforma-se em necessidade
21 O Porto recebeu muitos visitantes e foi lá que algumas famílias
tradicionais cuia anas se fixaram: “[...] foram erguidas
residências de honradas famílias cuiabanas, a exemplo da Família
Rodrigues – Bento José Rodrigues e
sua esposa Benedicta Alves Rodrigues, continuada por seus filhos,
sendo um deles o emérito professor militar
Firmo José Rodrigues, casado com Maria Rita Deschamps Rodrigues e
pais da inesquecível Dunga, Estela,
Helena, Olga, Newton e Francisco. [...]”.SIQUEIRA, Eliza eth
Madureira et al (Org.). Cuiabá: de vila a
metrópole nascente. Cuiabá: Entrelinhas, 2006, p. 155. 22O
MATTO-GROSSO n. 1074, anno XXIII, Cuiabá, 26 de março de 1905. 23
CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. São Paulo, Companhia das
Letras. 1990, p. 14. 24 Panóptico foi o termo idealizado pelo
filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham, a partir de um projeto
de
escola militar onde era possível observar os alunos exercendo um
papel de controle social sobre os indivíduos.
Disponível em : http//www.educ.fc.ul.pt. Acesso:17 de setembro de
2013.
12
para a manutenção do olhar objetivo do historiador evidenciando-se
na busca da construção
de uma narrativa abrangendo-se da totalidade da história das
cidades, a história dentro de
outras histórias. 25
Na abordagem do passado da história da festa de São Benedito
optou-se pelo
percurso proposto pela história cultural de Peter Burke, respaldo
necessário para se chegar ao
produto final. Para o mesmo autor, a história cultural não é o
único caminho, mas é parte
necessária para a compreensão do empreendimento histórico coletivo,
contando-se, sempre
que for necessário, com o auxílio de outras disciplinas,
oportunizando-se o diálogo com o
passado histórico, contribuição indispensável à visão da história
como um todo, uma “história
total”. 26
Nos pressupostos sobre patrimônio cultural, de Néstor Canclini,
encontramos uma
importante reflexão sobre as questões levantadas no tratamento dos
espaços culturais dos
patrimônios e as “ameaças” presentes no cenário atual onde eles se
encontram. Seu estudo
contribuiu na reflexão do redimensionamento sobre patrimônio
histórico e identidade
nacional, no caso, a cuiabana. Levantou-se a necessidade do olhar
do historiador para a
manutenção e recuperação dos espaços públicos já tombados, que são
e foram projetados
tanto pela comunidade como pelo poder público e privado local. À
luz de sua compreensão de
patrimônio cultural, identificou-se no espaço onde foram erguidos
esses bens históricos, o
cenário envolto numa teia que expressa a solidariedade que une os
que compartilham desse
conjunto de bens e práticas, local que oferece condições para
tornar-se um lugar de
cumplicidade social. 27
Canclini aponta a necessidade de reflexão sobre a participação dos
historiadores nos
debates atuais sobre patrimônio histórico, que “costuma-se ver como
inimigos dos atuais
processos de mudança o desenvolvimento urbano, a mercantilização,
as indústrias culturais e
o turismo”. 28
As contribuições de João José Reis, em A morte é uma festa: ritos
fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX, revelou, em riqueza de detalhes as
atitudes de nossos
antepassados com relação à morte e às práticas de enterramento no
século XIX. Tornou-se
essencial seus referenciais acerca do catolicismo barroco, as
devoções aos santos e o papel das
irmandades e confrarias, consideradas como propulsores do processo
de sedimentação da
Igreja Católica no Brasil.
25 CERTEAU, Michel de. Andando na Cidade. Revista do Patrimônio
Histórico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23,
1994, p. 21-31. 26 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 163. 27 CANCLINI, Néstor García. O
patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista
do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23,
1994, p. 95. 28 Idem, p. 97.
13
Nesse sentido, Reis propõe e amplia a historiografia das devoções e
da força dos
santos, sem, contudo reduzir os acontecimentos somente na oposição
entre livres e não livres.
Segundo este autor, a aglutinação de pessoas de diferentes origens
e classes nos festejos aos
santos católicos se deu pela explicação da necessidade do santo de
não se contentar somente
com uma prece individual, j que sua intercessão “ser tão mais
eficaz quanto maior for a
capacidade dos indivíduos de se unirem para homenageá-lo de maneira
espetacular. Para
receber força do santo, deve o devoto fortalecê-lo com as festas em
seu louvor, festas que
representem exatamente um ritual de intercâm io de energias entre
homens e divindades”. 29
Os apontamentos de Mary Del Priore, em Festas e utopias no Brasil
colonial,
primam pela compreensão do “tempo” da festa, enquanto tempo de
utopia, onde toda sorte de
atores sociais demonstram suas indignações, revoltas e valores,
numa troca de conhecimentos
e experiências, projetando-se nessas festas seus anseios e
aflições, utilizando-a como uma
válvula de escape ou como uma fuga da realidade vivida. 30
As reflexões de Felisberto Samoel da Cruz, em Arquidiocese de
Cuiabá: História e
vida-1910-2010, permitem uma aproximação com a história da Igreja
Católica em Mato
Grosso, atualizando-se a compreensão do modus operandi das suas
realizações para a
evolução de Mato Grosso, elucidando lacunas sobre as atividades
iniciais de evangelização e
sua organização desde o primeiro arcebispo de Cuiabá.
Dos principais memorialistas mato-grossenses, privilegiamos os
escritores que
contri uíram para a “invenção” de uma tradição “cuia ana”, a partir
do século XX. De modo
geral, os memorialistas produziram textos que traduziram as suas
experiências de vida e os
conhecimentos do senso comum do povo cuiabano. A narrativa muitas
vezes é recheada de
exaltações a Cuiabá e ao povo cuiabano, um povo que respeita as
suas tradições e devoções,
criando, no imaginário popular, uma versão oficial de nossa
história.
A análise das fontes e dos documentos foi ancorada em Jacques Le
Goff, que aponta
o papel do historiador no processo de escolha do “documento,
extraindo-o do conjunto dos
dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de
testemunho que, pelo
menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua
época e da sua
organização mental”. Outro ponto importante, alerta de Le Goff,
sobre a função do
documento para a construção da narrativa histórica, entendendo-se
como o resultado de um
esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, uma imagem
de si própria, devendo o
historiador não fazer o papel de ingênuo na critica dos documentos.
31
29 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 61. 30 DEL PRIORE, Mary. Festas e
utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. 31 Le
GOFF, Jacques. Histórias e memória. 5 ed. Campinas: EdUNICAMP,
2003, p. 537-538.
14
A pesquisa em jornais que circularam em Mato Grosso entre o século
XIX e XX, foi
uma tarefa árdua que empreendemos em acervos físicos e virtuais.
Dos vários jornais e
revistas, poucos exemplares foram encontrados, mesmo assim,
reunimos aproximadamente
700 páginas, todas priorizando as narrativas da festa de São
Benedito e sua relação com a
evolução do estado.
A imprensa em Mato Grosso surgiu no início do século XIX e foi um
instrumento
fundamental de comunicação entre os habitantes das cidades da
província com o país e o
mundo, mas também atuou na propagação das ideias da elite política
de cada época, uma vez
que os periódicos estavam quase sempre atrelados aos grupos
oligárquicos.
Na pesquisa utilizou-se o recurso da fotografia para registrar os
documentos mais
antigos, num total aproximado de 500, principalmente do século XIX.
Quando não possível
fotografar, pelo receio de estragar ainda mais alguns documentos,
realizamos uma cópia
manuscrita do mesmo que, após o término deste estudo serão doados
ao acervo da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário. Na formatação final, realizamos o
tratamento das fotos que serão
apreciadas no decorrer dos textos, para melhorar a nitidez das
mesmas, nenhuma das
utilizadas sofreu alteração quanto ao seu conteúdo, como se pode
observar a seguir:
Original digitalizado
Após tratamento
Por último, ressaltamos as contribuições das tecnologias de
comunicação mediadas
pelo computador que facilitaram a formação do acervo da pesquisa,
utilizados todas as vezes
que se fizeram necessários.
15
Este trabalho foi organizado em quatro capítulos. No Capítulo I –
As narrativas da
festa de São Benedito em Cuiabá: fontes, histórias, historiografia,
reflete e informa
minuciosamente aspectos relevantes da vida de São Benedito e sua
devoção no Brasil e em
Cuiabá, por meio de pesquisa bibliográfica que incluiu diversos
autores mato-grossenses.
Objetivou-se oferecer um panorama da festividade, tratando de
alguns aspectos importantes
do culto ao santo negro, como o processo de embranquecimento da
festa de São Benedito e a
proibição do divertimento do Congo, enquanto forte expressão de
africanidade.
O Capítulo II - A Festa de São Benedito: a invenção de uma tradição
da cultura
cuiabana trata de uma breve reflexão sobre festas de santo e a
“invenção” da tradição, tendo
como pano de fundo a festa de São Benedito, a partir dos
apontamentos de diversos autores.
O Capítulo III – As festas de São Benedito na baixada cuiabana -
análise das
festividades no entorno da capital oferece um panorama da
religiosidade da população das
cidades no entorno da capital, localidades estas que também
realizavam as festividades em
devoção a São Benedito, e foi possível verificar que elas
aconteciam, com certa regularidade,
nas cidades de Poconé, Rosário Oeste, Livramento, Diamantino,
Brotas, assim como no 2º
distrito, São Gonçalo de Pedro 2º, e também no Coxipó do Ouro e
Guia, considerados fora do
eixo da capital.
No último capítulo - A festa de São Benedito na Igreja de Nossa
Senhora do
Rosário: novas fontes, outras histórias, promoveu-se a
contextualização espacial e
cronológica da festividade, tendo por base empírica o livro de
“Termo da Irmandade de São
Benedito”, datado de 1822, que registrou a atividades dessa
congregação até 1854, mas
também os jornais locais que circularam desde a década de 1830 até
a primeira metade do
século XX. Buscou-se analisar seu papel na formação do “espírito”
do povo cuia ano; dar a
conhecer alguns aspectos importantes de sua formação, tais como,
quem era o público que
participava das festividades, sua periodicidade e a programação
dessas festas, entre outros
fatores.
Nas Considerações Finais confrontaram-se as várias fases das
representações da
Festa de São Benedito, do século XIX até a primeira metade do
século XX, promovendo um
enfrentamento entre essas festas e a ocorrida em 2013, em busca da
preservação e memória
desse patrimônio imaterial de Mato Grosso.
Este trabalho também surgiu da necessidade de ampliar a discussão
sobre a história
cultural mato-grossense, propondo, por meio da festa de São
Benedito, em Cuiabá, fazer
fulgurar os paradigmas que permearam e ainda permeiam essa festa,
presentes na memória do
povo cuiabano, e com isso, segundo Thompson, se possa “iluminar o
processo de formação
dos costumes e a complexidade do seu funcionamento”.
16
Caetano Veloso, músico e escritor brasileiro, escreveu uma canção
que parece nos
dizer como realmente tudo acontece dia-a-dia, no cotidiano, com
elementos que se repetem,
mas que são tam ém renovados: “Todo o dia, o sol levanta, e a gente
canta ao sol de todo
dia. Finda a tarde a terra cora, e a gente chora porque finda a
tarde. Quando a noite a lua
mansa, e a gente dança venerando a noite”.
Afinal, todo dia o sol se levanta.
17
CUIABÁ: HISTÓRIAS, HISTORIOGRAFIA E FONTES
Benedito santo negro
Aumentai nosso fervor. 32
Neste capítulo serão abordadas as diversas narrativas sobre a festa
de São Benedito
de Cuiabá, produzida por diferentes autores e levantada por meio de
uma minuciosa pesquisa
bibliográfica que, de alguma forma, contribuíram para a manutenção
da festa. Este será o
nosso ponto de partida para compreender os caminhos da “invenção”
dessa festa que é, sem
dúvida, um dos maiores festejos religiosos da Igreja Católica em
Mato Grosso. Pretende-se
mostrar aqui, também, como cada autor, em seu tempo e espaço,
participou desta construção
que transformou a festa de São Benedito, numa festividade celebrada
pela sociedade cuiabana
“letrada” e “elitizada”.
Percebe-se nas leituras dessas narrativas a evidente intenção de se
propagar a
“invenção” da tradição repassada de geração em geração, ora
construindo ou reconstruindo.
Propomos, então, perscrutar e apresentar o panorama da festa de São
Benedito elaborado por
estes autores para verificar não só do ponto de vista da longa
duração, mas também para
avaliar os “conflitos” dentre os que abordaram a religiosidade do
povo cuiabano,
generalizando a origem da festa ao âmbito da festa em honra santo
negro, na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário, de Cuiabá.
Após a reunião das fontes e a leitura sequenciada, percebemos que
há ainda muito
que se fazer, pois, lamentavelmente, muitas lacunas não foram
preenchidas na descrição da
formação das festividades de São Benedito em Cuiabá. Percebemos
também que, na maioria
32 Canto final da festa de São Benedito, sábado, 2 de julho de 2011
– Setor Centro. Folheto da missa que faz
parte do acervo da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário,
gentilmente cedido pelo pesquisador e historiador Pe.
José de Moura e Silva.
18
das vezes, eles se remetem uns aos outros, reproduzindo a mesma
informação em seus textos,
porém, sem oferecer as fontes privilegiadas, salvo raras
exceções.
Para efeito de compreensão, apresenta-se uma contextualização sobre
a origem do
culto ao santo negro no Brasil, seu “legado” cultural e religioso,
e também, forte ligação com
Nossa Senhora do Rosário. De outro, procurou-se evidencias as
contribuições historiográficas
sobre a festa de São Benedito de Cuiabá que permeiam a memória do
povo cuiabano.
As leituras que serão utilizadas ao longo desse capítulo, para
falar da historiografia
de Mato Grosso, Cuiabá e São Benedito da Igreja do Rosário, podem
ser assim distribuídas:
na primeira fase, as informações sobre origens do estado tiveram
como base os relatos dos
primeiros cronistas que registraram os acontecimentos na Vila Real
do Senhor Bom Jesus de
Cuiabá, bastante utilizados pela maioria dos autores
mato-grossenses. Na segunda fase estão
as publicações dos membros do Instituto Histórico e Geográfico de
Mato Grosso, oferecendo
uma narrativa que objetivou não perder a memória da cultura
cuiabana, propagando valores
culturais da cuiabania. Na terceira fase é discutida a
historiografia de Mato Grosso e de São
Benedito publicadas e divulgadas graças à produção acadêmica de
alunos, pesquisadores e
professores do Departamento de História, e também pela produção
oriunda do Programa de
Pós-Graduação “Mestrado em História”, da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT).
Cabe aqui ressaltar que tais textos serão utilizados
aleatoriamente, no sentido
cronológico do texto desta dissertação, perseguindo os fatos
ocorridos ou a data de
publicação, sempre visando melhorar a compreensão das reflexões
apresentadas ao longo
deste capítulo.
1.1 – A influência católica e o papel dos negros na formação do
festejar São Benedito
Os estudos dos sistemas religiosos que foram trazidos pelos
africanos para América
portuguesa, é algo bem recente, considerando que a reflexão aqui
proposta inclui-se numa
abordagem histórica da religião das comunidades de origem africanas
e seus descendentes, os
afro-brasileiros, englobando os negros que nasceram no Brasil no
interior de um longo
processo de reorganização social entre negros e brancos, resultado
da grande miscigenação
que timbrou o chamado o “ rasileiro”. 33
33 Para ilustrar os termos utilizados pela historiografia sobre a
origem no Brasil, Reginaldo Prandi, em De
africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião, oferece
algumas explicações sobre a origem dos negros
escravos que vieram da África, tentando mostrar como surgiu o
chamado afro-brasileiro, termo muito utilizado
em diversas áreas do conhecimento. Segundo ele, conhecer a
procedência desses escravos é caminho ainda a ser
trilhado, pois os escravos proviam de lugares onde fosse fácil
capturá-los e de onde fosse rendoso embarcá-los
para os mais diversos locais do mundo. Ele afirma que a África já
tinha essa prática de importar antes da
19
Não é possível precisar a quantidade de africanos trazida para o
Brasil, porém,
estima-se que, entre 1525 e 1851, chegaram às capitanias e
províncias brasileiras, cerca de
cinco milhões de africanos, na condição de escravos, mas os
estudiosos do assunto concordam
que a vinda dos negros mudou os rumos da formação racial e cultural
do Mundo Novo:
Não se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias,
nações,
línguas, culturais. No Brasil foram sendo introduzidos nas
diferentes
capitanias e províncias, num fluxo que corresponde ponto a ponto à
própria
história da economia brasileira. A prosperidade econômica estava
relacionada a uma intensificação da demanda de mão-de-obra escrava:
não
havia a possibilidade do progresso material sem que mais negros
fossem
importados, pois o trabalho era essencialmente africano e
afro-descendente. 34
De fato, os africanos que vieram para o Brasil trouxeram suas
práticas e culturas e
encontraram em solo brasileiro situações tão adversas que foi
preciso se adaptar ao meio
hostil, como forma de sobreviver aos duros trabalhos a que foram
submetidos. Assim, durante
mais de três séculos, devido à convivência entre portugueses e
africanos, cada qual com suas
características, surgiram algumas novas e outras foram, ao longo
dos anos, apagadas, mas
outras tantas reforçadas:
Inicialmente, no Brasil, os escravos urbanos e os negros livres
eram
divididos em nações e o governo colonial permitia e incentivava que
eles
tivessem seus próprios reis e seus governadores, política que
visava evitar a união generalizada dos negros e a possibilidade da
sublevação, [...]
Especialmente entre os artesões e outros trabalhadores urbanos, os
negos
reuniam-se em associações de compatriotas com o fim de
celebrar
festivamente suas tradições, dissimulando, sob máscara católica,
suas crenças religiosas.
35
Mas, nem mesmo esses ajustes aliviaram a vida dura dos escravos
africanos e a
cultura deles foi aos poucos se entreamando na formação cultural
brasileira: “As organizações
de nação tinham um caráter mais religioso e de ajuda mútua,
sobretudo tratando-se do negro
livre, abandonado à própria sorte, não contando, em caso de doença
e morte nem mesmo com
o amparo do senhor”. 36
A procura pelos vestígios das práticas culturais dos africanos e
afro-brasileiros,
buscando reconstruir seu passado histórico, encontra na
religiosidade, principalmente, na
prática de cultuar os santos católicos, um vasto campo de estudo.
Não pretende-se esgotar ou
descoberta do Novo Mundo. Mas foi somente após o tráfico para o
lado do Atlântico que essa atividade se
tornou rentável para o próprio africano. Cf. PRANDI, 2000, p.
52-65. 34 Idem, p. 52. 35 Idem, p. 58. 36 Idem, ibidem.
20
encerrar as diversas possiblidades, mas propor uma discussão sobre
o papel da Igreja Católica
na religiosidade dos negros africanos, e vice-versa.
O culto aos santos negros trazidos pelos portugueses no período
colonial foi parte de
uma estratégia da Igreja Católica no sentido de tornar cristãos os
escravos africanos e seus
descendentes, reforçando a política de evangelização por meio de
devoções aos santos que
eram representações de pessoas comuns. Foram também grandes aliados
para atrair novos
devotos com os mais diversos objetivos, como proteção e segurança,
além de ser o santo que
protegia o povo e o lugar onde viviam. Em alguns espaços, muitas
vezes, a imagem do santo
negro chegava antes dos padres, nas localidades mais
distantes.
Contando e estimulando o conhecimento sobre a vida dos santos, a
Igreja transmitia
aos fiéis os ensinamentos que julgava corretos e que deveriam ser
imitados pelos escravos
que, em geral, traziam consigo crenças oriundas de suas terras de
origem, práticas de fé
distintas do que era preconizado pelo catolicismo. Acreditando
cumprir uma função
legitimadora da ordem social, a Igreja não descuidou das pessoas de
origem africana,
apresentando santos de cor negra, numa tentativa de representação
de sua etnia, com modelos
de santidade que exemplificassem o cultivo das virtudes cristãs e
obediência ao poder.
No livro Império do Divino, Martha Abreu considera que o século XIX
recebeu uma
herança de cunho religioso, a que ela chamou de “religiosidade
colonial”, marcante na vida
nas cidades onde o clero exercia pouco poder sobre as festas,
limitando-se às celebrações de
alguns sacramentos. Nessa medida, as ordens religiosas,
consideradas como meio de
catequização mais preparadas para levar o catolicismo, também não
conseguiram atingir a
todos os fiéis. Aparece, então, a figura do leigo, da pessoa comum,
que se tornou o maior
agente do catolicismo, conseguindo atrair a comunidade negra.
37
Surgiram as confrarias e irmandades, organizadas graças aos
serviços de voluntários
civis. O papel dessas instituições era o de incentivar a devoção ao
um santo protetor, oferecer
benefícios e segurança aos irmãos que se comprometiam a trabalhar
efetivamente nas
atividades dessas congregações. O ponto alto das atividades eram as
festas organizadas para o
santo protetor, que incluíam a parte sagrada e a profana, que,
muitas vezes, desagradavam
autoridades civis e religiosas. Realizavam missas, sermões,
novenas, procissões, mas também
produziam músicas e danças profanas: “Implantado juntamente com a
colonização
portuguesa, graça ao direito de padroado, este catolicismo formava
um sistema único de poder
37 Cf. ABREU, Martha O Império do Divino: festa religiosa e cultura
popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, São Paulo: FAPESP, 1999.
21
e legitimação, associando, numa interpenetração estreita, o Estado
e a Igreja, o profano e o
sagrado”. 38
Ao repensarmos a festa de São Benedito como uma das “heranças”,
culturais e
religiosas do período colonial, arraigada em Cuiabá do século XXI,
percebe-se uma mistura
entre sagrado e profano, mas que uniu várias gerações de cuiabanos
que deram continuidade a
essa tradição. Ao estudar o império do divino no Rio de Janeiro,
Marta Abreu buscou, além
dos aspectos de continuísmo, mostrar a renovação dessa prática no
período barroco, o que
serviu de inspiração para se analisar a devoção ao santo negro no
entorno da Praça do Rosário
em Cuiabá.
Mas, afinal, quem foi São Benedito?
Apresentaremos agora um levantamento sobre a vida de São Benedito,
sua origem e
seu legado para devotos e irmãos da fé católica, informações estas
que resistiram ao tempo,
chegando ao século XXI praticamente inalteradas. A intenção é
situar este ícone emblemático
da Igreja Católica, uma figura comum transformada em santo católico
milagroso há 400 anos.
Benedito 39
nasceu na Sicília, num lugar chamado San Filadelfo, hoje San
Fratello,
em 1526. Era filho Cristóvão Manasseri e Diana Larcan, escravos
etíopes em uma
propriedade próxima de Messina. Foi libertado ainda muito jovem por
seu senhor. Era pastor
de rebanhos e tinha uma pronunciada tendência para a penitência e
para a solidão. Sofria
maus tratos de seus companheiros, mas isso o fazia ainda mais firme
na fé em Jesus Cristo.
Aos 18 anos já se mantinha e ainda ajudava os pobres com o dinheiro
que recebia. Aos 21
anos foi insultado publicamente por sua cor, mas sofreu a
humilhação com atitude digna e
paciente, chamando a atenção do líder de um grupo franciscano que o
convidou para fazer
parte daquela comunidade. Ele aceitou e, com o tempo, passou a ser
o novo líder. 40
Pelos idos de 1564, essa comunidade se dispersou e Benedito foi
aceito como leigo
na ordem franciscana de Palermo, indo exercer suas atividades na
cozinha. Em 1578, ele se
tornou, apesar de leigo e analfabeto, em novo guardião da ordem.
Lá, ele foi um bom
administrador, adotando uma interpretação rigorosa das regras
franciscanas. Foi respeitoso e
respeitado pelos padres e muito carinhoso com os leigos, sempre
recomendando ao porteiro
do mosteiro jamais recusar esmolas aos pobres que ali se
apresentassem. Segundo seus
biógrafos, era exemplo de virtude, visitando os doentes, auxiliando
nos exercícios da
comunidade e era sempre o primeiro no coro da igreja e no trabalho
manual. Mesmo sem ler e
38 Idem, p. 34 e 35. 39 Apresentamos o resultado da pesquisa sobre
a vida de São Benedito realizada a partir dos sites oficiais
de
Paróquias, dos Devotos e do livro de Leila Borges de Lacerda e Nauk
Maria de Jesus (2008). 40 Idem, p. 52.
22
escrever, era um guia no estudo das Escrituras e muitos mestres em
Teologia, que o vinham
consultar, recebiam respostas surpreendentes, fato que o tornou
muito conhecido.
Na direção do noviciado, demonstrou uma grande doçura e consumada
prudência: os
noviços tiveram nele um guia, um pai e um excelente mestre da
Escritura, cujas leituras do
Ofício lhes explicava com muita facilidade. Em seu processo de
canonização, foi aceito que a
única explicação para a sua sabedoria era que ele possuía o dom da
ciência infusa, ou seja,
iluminado pelo Espírito Santo; por isso esclarecia aos doutores e
letrados de seu tempo a
respeito de vários assuntos. Como resultado de uma vida de
exercício contínuo de todas as
virtudes, recebeu o dom de operar milagres e, mesmo após o término
de seu tempo no cargo
de líder da ordem, retornou novamente ao oficio de cozinheiro, pois
gostava de permanecer
no anonimato.
Em 1589 ficou muito doente e recebeu a revelação de que seu fim
estava próximo, o
que aconteceu em 4 de abril daquele ano. Foi canonizado em 1807 e
sua representação em
imagens traz o menino Jesus nos braços, que lhe foi colocado por
Maria Santíssima, por sua
grande devoção. Foi enterrado em vala comum, sem distinção e poucas
pessoas
compareceram ao seu enterro, pois havia uma festa popular no dia. É
conhecido como o santo
dos po res, o santo dos pretos e o “santo mouro”, devido a sua cor
negra. No calendário
litúrgico, sua festa é celebrada no dia 5 de outubro, e ainda hoje
podemos ver o seu corpo
intato na Igreja de Santa Maria de Jesus, em Palermo, na Itália, há
mais de 420 anos.
Muitos feitos extraordinários marcaram a vida do santo, como, por
exemplo, receber
em seus braços o menino Jesus. Por isso, em muitas representações
de São Benedito, ele
aparece com menino em suas mãos. Contudo, a história mais conhecida
pelos seus biógrafos
e devotos é a que ilustra a vida de serviço ao próximo de São
Benedito. Era preocupado com
os mais pobres e nunca lhes negavam alimentos diários e quem dele
precisava sabia que podia
pedir sua ajuda, que ele sempre ajudava, retirando alguns
mantimentos do Convento,
escondendo-os dentro de suas vestes e levando para os famintos que
ficavam nas ruas da
cidade.
Conta a tradição que, em uma dessas saídas, o novo Superior do
Convento o
surpreendeu e perguntou: Que escondes aí, embaixo de teu manto,
irmão Benedito? E o santo
humildemente respondeu: “Rosas, meu senhor!” e, abrindo o manto, de
fato apareceram rosas
de grande beleza e não os alimentos, de que suspeitava o
Superior.
Pesquisando sobre a festa de São Benedito em outros estados,
encontramos a
dissertação de mestrado de Dário Benedito Rodrigues Nonato da
Silva, que discute as
imagens, representações e as lutas pelo controle da cultura na
literatura de São Benedito, na
cidade de Bragança, estado do Pará. Esse autor analisou vasta
bibliografia sobre os temas
23
relacionados à festividade a partir da década de 1930, tentando
explicar como se construíram
as relações sociais entre os sujeitos históricos da Igreja Católica
pela Prelazia do Guamá e da
Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança. Assim como em Mato
Grosso, Bragança
sentiu as mudanças implantadas pela Igreja Católica, ainda que
tardiamente, devido à falta de
sacerdotes. Lá em Bragança, observa Silva:
É verdade amplamente aceita em Bragança que a Marujada e sua
festividade são as máximes contribuições da história, do folclore e
da cultura bragantina,
e que esses rituais são lugares onde essa cultura envolve
sentimento de
pertença do povo mais humilde. Em especial, devoto de São Benedito.
41
Também em Bragança ocorreram conflitos entre a Igreja Católica e a
Irmandade de
São Benedito, pelo poder eclesiástico sobre as festividades, que
tinha o controle financeiro
das festas populares, onde as lideranças eram formadas por leigos.
O exemplo de Bragança
traduziu resistência frente ao poder da Igreja Católica e, ainda
hoje, o evento é realizado em
honra ao santo negro.
1.2 – A origem do culto a São Benedito no Brasil
A devoção a São Benedito foi trazida pelos portugueses nos tempos
coloniais e que
se mantém atualmente, é um dos santos mais populares no Brasil, com
inúmeras paróquias e
capelas que o elegeram como padroeiro, inspiradas em seu modelo
admirável de caridade e
humildade.
Marina de Mello e Souza, ao estudar o catolicismo negro no Brasil
42
, confirma que a
vinda dos escravos africanos para o Brasil teve forte influência na
formação das festas
religiosas dos centros urbanos. A partir das festas de Reis de
Congo no Brasil, a autora
percebeu que, de um lado, as manifestações eram vivenciadas de
diferentes formas para os
que a realizavam e, por outro lado, pela sociedade colonial
lusitana, que mantinha uma
atitude, ora condescendente, ora repressora. Nesse sentido, Mello e
Souza narra dois
momentos controversos das atividades exercidas pelas comunidades
negra no Brasil, ou eram
41 NONATO DA SILVA, Dário Benedito Rodrigues Os donos de São
Benedito: convenções e rebeldias na luta
entre o catolicismo tradicional e devocional na cultura de
Bragança, século XX. 2006. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006, p.
155-157. 42 Marina de Mello e Souza apresentou este texto em novem
ro de 2002, em Gorée, Senegal, num Colóquio “A
construção transatlântica das noções de „raça, cultura negra,
negritude e anti-racismo”. Cf. mais em MELLO E
SOUZA, Marina Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma
reflexão sobre miscigenação cultural.
Revista Afro-Ásia. Salvador