A ficção borgiana em A boneca de Kokoshka de Afonso Cruz

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1SalesBruno SalesDr. Nicols LuceroSPAN 820017 de Dezembro de 2014A fico borgiana em A boneca de Kokoschka de Afonso CruzA influncia das criaes literrias de Jorge Lus Borges na literatura, na filosofia e na teoria literria so, provavelmente, to difceis de enumerar como a obra visvel de Pierre Menard. Muito disso se deve, talvez, capacidade excepcional do autor argentino de se propagar em tanta direces e com tamanha criatividade e de formas inditas. Recentemente, nasceu para a literatura portuguesa um novo autor que no s evidencia uma inegvel influncia borgiana, mas demonstra tambm uma capacidade de lhe dar um novo rumo: Afonso Cruz. Neste trabalho, patentearei esta assero, indicando em A boneca de Kokoschka (2010) estas convergncias e divergncias com as algumas das caractersticas fundamentais da criaes de Borges. Para tal efeito, concentrar-me-ei principalmente, mas no exclusivamente, no conto Tln, Uqbar, Orbis Tertius (1940). Ambas as obras partilham o mesmo contexto socio-histrico, a Segunda Guerra Mundial. No caso de do conto de Borges, este foi escrito em 1940, num momento da ascendncia Nazi, algo que veremos mais adiante tem uma influncia preponderante no desfecho da narrativa. No caso do romance Cruz, a trama inicia-se em Dresden, durante a guerra, e so os constantes bombardeamentos areos que propiciam o encontro de trs dos protagonistas: Isaac Dresner, Bonifaz Vogel e Tsilia Kacev. Em ambos os casos, o caos da guerra no s serve de exemplo concreto da desordem no mundo, mas pode ser entendido como um smbolo para o caos gera que os autores tentam ordenar atravs da literatura. Em termos de estrutura, ambas as obras esto coincidentemente dividas em trs partes. Em Tln, a primeira parte reconta a gnese do mistrio e da descoberta de Uqbar, algo que aconteceu numa conversa entre Borges e o seu amigo Bioy Casares. De relevo nesta passagem, a mistura entre referentes reais, referentes fictcios e ficcionalizao de personagens verdicos, como so o caso o prprio Borges-narrador e tambm Casares. Ademais, um dos artifcios preferidos de Borges a enciclopdia assume um papel preponderante, pois atravs de uma verso modificada da The Anglo-American Cyclopaedia (ela prpria uma iterao da Encyclopaedia Britannica) que a entrada enciclopdica sobre Uqbar descoberta. O motivo que suscita esta descoberta tambm importante, pois ele advm de uma citao atribuda a um hertico de Uqbar que Casares partilha com Borges sobre espelhos, em que este diz que, los espejos y la cpula son abominables, porque multiplican el nmero de los hombres (723). Algo cuja importncia se tornar mais clara quando atendemos que, como Clive Griffin refere no seu captulo da The Cambridge Companion to Jorge Luis Borges, intitulado "Philosophy and Fiction: The story begins with a mirror and an entry in a rogue copy of an encyclopedia, both idealist images: the mirror because what we see in mirrors has no substance but is a just a product of our perception, and the encyclopedia because, rather than a work which describes something real, this rogue encyclopedia invents a fictional region called Uqbar. (10-11)Visto que a postulao da filosofia idealista fundamental neste conto, a presena deste dois smbolos no incio da mesma, serve como premonio, algo que abordaremos detalhadamente mais adiante. A segunda parte do conto, datada de 1940, revela a descoberta por parte de Borges uma descrio de A First Encyclopaedia of Tln, timbrada com o carimbo Orbis Tertius, e que descreve detalhadamente o funcionamento do pensamento idealista tlniano e as ramificaes deste nas diversas disciplinas culturais. A terceira parte, sob o cabealho de posfcio e datada de 1947, revela acontecimentos subsequentes, onde se ressaltam a confirmao que Tln tinha sido o resultado de uma larga conspirao e, depois, a apario misteriosa e agoirenta de objectos tlniano no nosso mundo. No que diz respeito estrutura de A boneca de Kokoschka, a primeira parte descreve as condies que levaram ao encontro, primeiro de Isaac e Bonifaz e, mais tarde, destes dois com Tsilia. No primeiro caso, um encontro com os soldados nazis, em que o seu melhor amigo morto, leva Isaac a esconder-se no poro da loja de pssaros de Bonifaz. At a guerra terminar, Isaac permanece escondido e comunica com Bonifaz atravs do soalho, fazendo com que este pense que est a ouvir vozes: Foi nesse momento que comeou a ouvir vozes. O som entrava-lhe por entre as pernas e as calas e chegava-lhe aos ouvidos com um timbre de criana (Cruz 15). Ao longo desse perodo Isaac torna-se numa espcie de conselheiro divino para Bonifaz, ensinando-lhe, por exemplo, a rezar de uma nova forma: recitava o alfabeto, limitava-se a dizer as letras, umas a seguir s outras, e pedia ao Eterno que as organizasse da melhor maneira possvel Deus faria o resto. L em cima o que ele faz jogar scrabble (24-25). Nestas passagens, pode-se comear a descortinar uma das caractersticas fundamentais da esttica de Afonso Cruz: a ironia, o sentido de humor, a coincidncia e a construo narrativa que roa o fantstico. Fortuito foi tambm o encontro com Tsilia, pois estava andava meio perdida j no final da guerra e foi adoptada pelos companheiros. No final da primeira parte os trs deixam Dresden e vo para Paris. De referir ainda que a guerra tinha deixado trs sem famlia. A segunda parte do romance comea com as trgicas histria pessoais e familiares de Isaac e de Tsilia. Contudo, o auge desta parte e, porventura, do romance inteiro a incurso de Isaac na industria literria quando este monta uma editora, a qual apelida de Eurdice! Eurdice!, numa referncia explcita ao mito grego de Orfeu, outra das caractersticas de Cruz que o aproxima a Borges: a recorrente interpolao de referncias mitolgicas e filosficas, tanto na nomeao de personagens, como de lugares e objectos. Ademais, atravs da sua editora, Isaac conhece outro protagonista, Mathias Popa, um escritor falhado e marginal, cuja nica fonte de celebridade at quele momento fora de ter roubado um manuscrito pstumo de Thomas Mann O Livro do xodo com a esperana de que pudesse finalmente atingir o xito literrio que tanto desejava. Mas, nem com o manuscrito de um autor premiado com o prmio Nobel ele o conseguiu. Popa tentou derradeiramente a fama ao publicar um livro que contava a verdade sobre o que tinha feito com O Livro do xodo, mas este confessionrio literrio deu resultado. Isaac, intrigado, consegue entrar em contacto com Popa, que lhe conta sobre todas as suas publicaes (as quais fazem lembrar as obras experimentais de Herbert Quain) e decide contrat-lo. O resultado publicao de um novo livro intitulado, A boneca de Kokoschka. Este fenmeno, mise en abyme, leva-nos a outra aproximao entre Borges e Cruz. Mesmo em Tln, segundo Sarlo:La unin de un espejo con una enciclopedia multiplica, por otra parte, la fuerza de la construccin en abismo: la enciclopedia es un espejo conceptual del mundo, una clasificacin que, si pretende ser exhaustiva, tambin debe incluir la nocin de enciclopedia; la enciclopedia es un Aleph textual y alfabtico. (147)Segunda a mesma terica, esta estrutura em abismo sente-se tambm na relao entre Uqbar, Tln e Orbis Tertius, pois:Esta secuencia intrincada de regiones no existentes disimula una estructura en abismo. En ella se reconocen mltiples imgenes levemente desviadas, reflejos de espejos reflejados en espejos, donde (como en el barroco) la ilusin niega la supremaca de una realidad "primera". (146-147)Como sabido, Borges recorre frequentemente a este recurso literrio como uma forma de materializar na linguagem o conceito do infinito e de destabilizar o nosso conceito predominantemente racional do contnuo espcio-temporal. Com Afonso Cruz, a ideia semelhante, mas neste caso concreto parece-me que a utilidade principal da estrutura em abismo de tornar as fronteiras entre a realidade e a fico mais porosas, algo que tambm est presente no conto de Borges. Focalizando-nos, contudo, na romance de Cruz, estamos perante um romance intitulado A boneca de Kokoschka, atribudo a Afonso Cruz, que inclua a metade do romance uma leitura de um romance chamado A boneca de Kokoschka, atribudo a Mathias Popa, o qual relata, atravs da forma de romance policial, a atribulada histria da famlia Vargas. Ademais, o romance ficcionaliza no s os Vargas, mas incluis tambm verses ficcionais de Isaac e do prprio Mathias Popa. De referir ainda que este jogo espelhos extrai o seu nome de uma histria verdica sobre o pintor Oskar Kokoschka, o qual tentou substituir a perca da sua amada, Alma, por uma boneca que mandou construir como uma imitao minuciosa. Esta referncia ceve no s de inspirao, mas tambm de metfora para o que Afonso Cruz est a tentar comunicar neste romance: o poder da fabulao, da literatura, em dar vida aos personagens, de os transferir do papel para a vida real. Este jogo de espelhos distorcidos limiarmente exemplificado pelos paralelismos entre o romance de Popa e um dos captulos da terceira parte do romance de Afonso Cruz. Em ambos os casos, o objectivo a tentativa de Adele Vargas de encontrar o Mathias Popa, pois este tinha tido um encontro amoroso fugaz com a av de Adele, a Anasztzia Varga, encontro esse que tinha dado vida me de Adele. Contudo, no romance de Popa, Adele contrata um detective, Filip Marlov, para resolver o mistrio, o que resulta numa investigao repleta de tentativas falhadas, pistas perdidas e recuperadas, sucessos e desaires, enfim, todos elementos de um bom romance policial. Mas, no captulo do romance de Cruz, A Adele Varga da vida real, a prpria Adele vai ao encontro de Mathias Popa atravs do simples gesto de procurar o nome da editora que ela encontrou em um carto de visita e atinge a mesma soluo que Marlov ambos descobriram que Popa j tinha falecido mas, de uma forma muito mais rectilnea e econmica. Existem outras distines deste tipo, como a ficcionalizao de Popa e de Isaac, que no romance de Popa fora transformado num sujeito, Samuel Tth, de muito mistrio e solenidade. De qualquer forma, a agregao destes desvios ficcionais atravs da criao de dois planos distintos, ambos ficcionais, mas um pretendendo ser mais real que o outro, apontam para uma reflexo sobre as fronteiras que separam a realidade da fico e, tambm, para as diferenas que caracterizam os diferentes gneros literrios, neste caso, entre romance policial e o romance, ou at mesmo, entre o romance e o conto, pois em comparao ao romance de Popa, o captulo do romance Cruz poderia facilmente ser destacado como um conto. Esta comparao intratextual retorna-nos comparao intertextual a que a que este trabalho se props inicialmente, ou seja, devolve-nos a Tln, Uqbar, Orbis Tertius, e mais precisamente, a um dos elementos essenciais em aco que a postulao da filosofia na literatura, em particular, a posta em prtica, atravs da criao de um novo mundo, da radicalizao do Idealismo de Berkeley. Esta postulao assenta na premissa do funcionamento do mundo na probabilidade do como se. Isto aludido no texto atravs da referncia a Hans Vaihinger e sua obra Philosophie des Als Ob. Algo, alis, identificado por Beatriz Sarlo em Borges: un escritor en las orillas: El "como si" produce situaciones narrativas, a travs de la combinatoria de posibilidades abiertas por una estructura potencial El "como si" expande una invencin coherente dirigida por u n a imaginacin racional, para producir una forma lgica de lo fantstico. Los sabios de Tln inventan filosofas del "como si", no slo para interpretar el mundo sino, tambin para modificar el modo en que lo percibimos. (152)Esta abertura de novas posibilidades preenchida pelas ramificaes do hper-idealismo na linguagem e na cultura de Tln. A extrapolao geral desta filosofia o impacto desta em conceitos fundamentais como as conceptualizaes do tempo, da identidade e da substncia. Como indica Sarlo, se juzga el tiempo, el espacio, la sustancia y la identidad de acuerdo con las tendencias filosficas hiper-idealistas que, previamente, se han postulado como reflejos de la naturaleza de las cosas (153). Por consequente, a linguagem abdica da utilizao de substantivos, pois por definio este delineiam a existncia fixa de objectos no contnuo espcio-temporal, algo inexistente em Tln, pois, el mundo no es un concurso de objetos en el espacio; es una serie heterognea de actos independientes (Sarlo 153). Por extenso, visto que a linguagem a base para la religin, las letras, la metafsica (Borges 727), estas disciplinas evidenciam os efeitos do idealismo. A religio abdica de Deus. A literatura abdica do conceito de autoria: No existe el concepto del plagio: se ha establecido que todas las obras son obra de un solo autor, que es intemporal y es annimo (Borges 731). Ademais, os livros de fico, abarcan un solo argumento, con todas las permutaciones imaginables" (Borges 731). A metafsica, por si, considerada, una rama de la literatura fantstica (Borges 729). Ademais, um dos fenmenos mais interessantes advm do efeito do idealismo na realidade de Tln. Como Borges narra no conto, Siglos y siglos de idealismo no han dejado de influir en la realidad. No es infrecuente, en las regiones ms antiguas de Tln, la duplicacin de objetos perdidos Esos objetos secundarios se llaman hrnir y son, aunque de forma desairada, un poco ms largos (731-732). Sarlo explica a significncia destes objectos, declarando que:La existencia de los hrnir, a los que en Tln todos estn acostumbrados, es una demostracin prctica de la imposibilidad de lo idntico s(el principio de identidad sostiene, en cambio, a nuestra cultura). En un planeta idealista como Tln (un planeta construido ven el lenguaje) "perder" significa olvidar y "encontrar" significa recordar: ambas acciones producen hrnir. (157)Atravs desta passagem, portanto, podemo-nos aperceber o profundo enraizamento que o pensamento idealista de Tln produziu, a ponto de alterar a concepo do mundo material e da criao de objectos. Esta capacidade nica assume uma dimenso ainda maior quando associada ao fenmeno que domina a narrativa do posfcio, nomeadamente o surgimento de trs objectos de Tln no mundo real. Primeiro, uma bssola: La aguja azul anhelaba el norte magntico; la caja de metal era cncava; las letras de la esfera correspondan a uno de los alfabetos de Tln. Tal fue la primera intrusin del mundo fantstico en el mundo real (Borges734). Depois, un cono de metal reluciente, del dimetro de un dado Yo lo tuve en la palma de la mano algunos minutos: recuerdo que su peso era intolerable y que despus de retirado el cono, la opresin perdur (Borges 734-735). Sobre estes objectos misteriosos revelado ainda que, son imagen de la divinidad, en ciertas religiones de Tln (Borges 735). Finalmente, o ltimo objecto a ser descoberto foram, los cuarenta volmenes de la Primera Enciclopedia de Tln (Borges 735). Ironicamente, Algunos rasgos increbles del Onceno Tomo (verbigracia, la multiplicacin de los hrnir) han sido eliminados o atenuados en el ejemplar (Borges 735). A omisso de referncias aos hrnir parece consubstanciar o intuito secreto dos conspiradores. As consequncias das intruses so interpretadas nefastamente por Borges, pois ele declara que:Casi inmediatamente, la realidad cedi en ms de un punto. Lo cierto es que anhelaba ceder. Hace diez aos bastaba cualquier simetra con apariencia de orden el materialismo dialctico, el antisemitismo, el nazismo para embelesar a los hombres. Cmo no someterse a Tln, a la minuciosa y vasta evidencia de un planeta ordenado? (Borges 735)Este desabamento ontolgico explicado, da seguinte forma, por Clive Griffin:Borges published "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius" in May 1940, as Hitler began his western offensive. Borges's postscript predicts how the world would have changed by then: it is a terrifying place in which the imaginary planet of Tln, which seemed to have no existence outside the pages of an invented encyclopedia, invades reality: people die in agony, and all our languages, history, and methods of intellectual inquiry based on materialism disappear, as Tln with its one big idea takes over. (12)Parece, portanto, que a exposio neste conto de uma postulao hper-idealista e a consequente transgresso das barreiras entres dois mundos, o fictcio e o real, tm como um dos possveis efeitos a transmisso de uma advertncia premonitria sobre as perigosas mudanas que se registavam ento. Em suma, visto deste ponto de vista, na comparao entre Tln, Uqbar, Orbis Tertius e A boneca de Kokoschka, estes assumem papeis diferentes, independente das suas semelhanas estticas. Como referimos, o conto de Borges, publicado no comeo da Segunda Guerra Mundial, aparta-se do plano puramente real para emitir um aviso. J o romance de Afonso Cruz, publicado neste sculo, reflecte sobre os acontecimentos traumticos dessa guerra, das devastas e multiformes consequncias da sua destruio para depois demonstrar a ainda existente possibilidade de reconstruo de uma harmonia que muitos anularam depois desse episdio histrico. Para tal efeito, na obra de Afonso Cruz, a literatura, enfim, a fabulao oferecida como uma soluo vivel, pois atravs de vrios nveis de meta-referncia literria que no romance a vida restituda a vrios personagens. Ainda assim, independente desta diferena de contedos entre ambas as obras, evidentemente notvel a influncia de Borges na forma literria de Afonso Cruz. Apontando, para este efeito, as postulaes filosficas, as mescla de referentes reais e ficcionais, as relao porosa entre realidade e fico, a utilizao metafrica de espelhos e estruturas de abismo e, finalmente, formulao labirntica das narrativas. Neste ltimo ponto agrega-se, exemplarmente, as convergncias e as divergncias entres ambos os autores: em Borges o labirinto proposto o do estilo rectilneo, o que desenhado para proteger o centro e confundir o sujeito, aquele que ingls chamam de maze; em Afonso Cruz, deparamo-nos com o do estilo arredondado, o que feito para nos conduzir serpenteantemente ao centro, aquele que em ingls chamam de labyrinth.

BibliografiaBorges, J. L.Obras completas. Vol. 2. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. Impresso.Cruz, Afonso. A boneca de Kokoschka. Lisboa: Quetzal, 2010. Impresso. Griffin, Clive. "Philosophy and Fiction." The Cambridge Companion to Jorge Luis Borges. Ed. Edwin Williamson. 5-15. Impresso.Pauls, Alan. El factor Borges. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004. Impresso. Sarlo, Beatriz.Borges: un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1993. Impresso.