A Filha Do Silêncio - Morris West

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Em filha do Silenciio o autor se utiliza com maestria do drama de um processo judicial para as fraquezas morais e os conflitos dos seus personagens.

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A FILHA DO SILNCIO

A FILHA DO SILNCIO

MORRIS WEST

As muitas edies deste livro de Morris West so uma prova irrefutvel do seu valor e da receptividade que encontra por parte dos leitores antigos e novos deste escritor que j nos deu outros romances maravilhosos como As Sandlias do Pescador, O Embaixador, O Advogado do Diabo e, mais recentemente, O Vero do Lobo Vermelho e A Salamandra. Em A FILHA DO SILNCIO o autor se utiliza com maestria do drama de

um processo judicial para expor as fraquezas morais e os conflitos de seus personagens.

O prefeito de uma aldeia da Toscana assassinado a tiros, em pleno dia, por uma jovem de 24 anos, que presa, processada e julgada por homicdio premeditado. O julgamento se converte na denncia de um morto e das pessoas vivas que, h muito, se haviam unido numa conspirao de silncio. o ponto de partida para uma srie de intrigas, conflitos e revelaes comprometedoras.

Uma histria que emociona, onde o amor se mistura com a violncia das vendettas primitivas.

A FILHA DO SILNCIO no apenas um bom livro: , acima de tudo, uma obra edificante.

OBRAS DO AUTOR

MORRIS WEST

O ADVOGADO DO DIABO ARLEQUIM

A CONCUBINA

O EMBAIXADOR

A ESTRADA SINUOSA

A FILHA DO SILNCIO

FILHOS DAS TREVAS

FORCA NA AREIA

O HEREGE KUNDU

O NAVEGANTE

PROTEU

A SALAMANDRA

AS SANDLIAS DO PESCADOR

A SEGUNDA VITRIA

TERRA NUA

A TORRE DE BABEL

O VERO DO LOBO VERMELHO

OS FANTOCHES DE DEUS

A FILHA DO SILNCIO

M EDIO

Traduo de BREFINO SILVEIRA

EDITORA RECORD

Ttulo original norte-americano

DAUGHTER OF SILENCE

Copyright (C) 1961 by Morris L. West

Publicado mediante acordo com Paul R. Reynolds, Inc., NewYork, USA.

Alia vendetta dalto silenzio figlia. (A nobre vingana filha de profundo silncio.) ALFIEM: La Congiura de Pazzi, Ato I, Cena 1

Direitos de publicao exclusiva em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S. A. Rua Argentina 171 - 20 921 Rio de Janeiro, RJ

que se reserva a propriedade literria desta traduo

IMPRESSO POR TAVARES & TRISTO - GRFICA E EDITORA DE LIVROS LTDA., RUA 20 DE ABRIL, 28, SALA 1.108, RIO DE JANEIRO, R.J.

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ERA UM MEIO-DIA resplendente, em pleno vero, nos vales do altiplano da Toscana: uma hora letrgica, uma estao de p e langor, de linho esbrugado e de andorinhas nos restolhais de trigo, de vinhos novos a sazonar no pas dos deuses mais antigos. Era uma hora de toques de sinos ondulantes no ar seco, tranqilos sobre os tmulos de santos j mortos e os feudos de rnercenrios esquecidos. Havia em tudo um convite obscuridade e s venezianas cerradas - pois quem, seno os ces e os americanos, exporia sua cabea insensata ao meio-dia, a um sol de agosto?

Na aldeia de San Stefano ecoavam pela praa as primeiras badaladas do angelus. O sineiro era velho, e dbil a msica de seus toques. A aldeia estava sonolenta e saciada, devido boa colheita, de modo que os ltimos momentos de sua vida matinal eram tambm silenciosos.

Um velho deteve-se, persignou-se e permaneceu de cabea baixa, enquanto as trplices badaladas soavam no branco campanrio. Um sujeito atarracado, de avental branco, tendo dobrado no brao um guardanapo axadrezado, achava-se porta do restaurante, a esgravatar os dentes com um palito de fsforo. Um policial com cara de mula deu um passo para fora de sua porta, lanou um olhar de esguelha, preguiosamente, pela praa, cuspiu, coou-se e tornou a voltar para o seu vinho e o seu queijo.

A gua caa, indolentemente, das bocas de fatigados golfinhos e espalhava-se pela rasa bacia da fonte, enquanto um menino escanifrado brincava com um barquinho de papel. Um carvoeiro empurrava o seu carrinho de mo por sobre os paraleleppedos. O carro estava cheio de pequenos feixes de gravetos e de sacos marrons contendo carvo. Uma garotinha achava-se empoleirada sobre eles, os cabelos desgrenhados, ar srio, como um diabrete dos bosques. Uma mulher descala, com um beb sobre o quadril, saiu da casa de vinhos e dirigiu-se a um beco situado na outra extremidade da piazza. Cinco milhas alm, as torres e os velhos telhados do casario de Siena erguiam-se, brumosos e mgicos, contra um cu cor de cobre.

Era um quadro plcido, curiosamente antigo, esparsamente povoado, com sua animao ligada ao lento pulsar da vida campestre. Ali, o tempo flua preguiosamente como a fonte, e a nica mudana que se processava era a mutao cclica dos sculos e das estaes. Aquilo, compreendia-se, era um enclave tribal, onde a tradio era mais importante do que o progresso, onde os costumes constituam nove dcimos da lei e onde os amores antigos eram alimentados to persistentemente quanto os antigos dios e as emaranhadas lealdades de sangue e servido.

Havia um caminho de acesso e outro de sada, um conduzindo a Arezzo, o outro a Siena, mas seu trfego era pequeno e circunscrito em certas estaes do ano. As estradas de turismo e de comrcio haviam sempre passado ao largo de San Stefano. As granjas do vale eram pequenas e ciosamente reservadas para seus proprietrios camponeses, de modo que os imigrantes no eram bem acolhidos. Os que se iam eram os irrequietos, os desarraigados ou os ambiciosos, e a aldeia sentia-se feliz de ver-se livre deles.

Antes que se extinguissem os ltimos ecos dos sinos, a praa j estava vazia. Fecharam-se postigos, correram-se cortinas. O p tornou a assentar nas fendas do empedrado irregular, o barquinho de papel flutuava sem leme em torno da fonte, e o canto das cigarras erguia-se, estrepitoso e montono, dos campos adjacentes. Terminara o primeiro perodo do dia. A paz - ou o que passava por paz desceu sobre a aldeia.

*Decorridos, talvez, dez minutos, o sineiro saiu da igreja - um frade idoso, vestindo um hbito empoeirado de So Francisco, uma tonsura branca na cabea e um rosto corado, sulcado de rugas, como uma ma de inverno. Deteve-se um momento sombra do prtico, a enxugar a testa com um leno vermelho; depois, lanou o capuz sobre a cabea e atravessou a praa, as sandlias a bater nas pedras crestadas.

Mal havia dado uma dzia de passos, uma cena pouco comum f-lo parar. Um txi com chapa de Sena entrou na piazza e deteve-se diante do restaurante. Uma mulher desceu, pagou ao chofer e ficou a observar o automvel que se afastava, at perd-lo de vista.

Era jovem; no teria mais de vinte e cinco anos. Seu trajo, distinguia-a como criatura citadina: tailleur, blusa branca, sapatos. elegantes, uma bolsa dependurada do ombro por uma ala de couro. Tinha o rosto plido, calmo e singularmente belo, como o de uma

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madona de cera. Na praa deserta, ensolarada, parecia indecisa e vagamente solitria.

Permaneceu um momento parada, a olhar a praa, como se procurasse orientar-se num territrio que lhe fora antes familiar; depois, com passos firmes, confiantes, dirigiu-se a uma casa situada entre a adega e a padaria, e tocou a sineta. Abriu-lhe a porta uma matrona trajada de bombazina preta, com um avental branco atado cintura. Trocaram algumas palavras e a robusta mulher fez um gesto, convidando-a a entrar. Ela declinou do convite e a matrona afastou-se, deixando a porta aberta. A moa ficou espera, procurando algo na bolsa, enquanto o frade a observava, curioso como qualquer campons diante de um estranho.

No tardou talvez trinta segundos para que o homem surgisse a porta - um sujeito alto, Corpulento, em mangas de camisa, cabelo grisalhos, rosto plido e enrugado, um guardanapo enfiado no peitilho da camisa. Mastigava ainda um bocado de alimento e, luz clara do sol, o frade pde ver um ligeiro fio de molho a escorrer-lhe pelo canto da boca. Olhou a jovem sem qualquer sinal de que a houvesse reconhecido, e fez-lhe uma pergunta.

Foi ento que ela o baleou no peito.

O impacto f-lo girar sobre si mesmo e apoiar-se ombreira da porta - e, num momento horrvel de perplexidade, o frade viu a jovem dar mais quatro vezes ao gatilho e, depois, afastar-se, caminhando, sem pressa, em direo pidos ecoavam ainda pela piazza delegacia de Polcia. Os estamcambaleante, a tropear nas pedras quando o frade se Ps a correr, a fim de ministrar a absolvio final a um homem que j havia entregue sua alma ao Senhor.

Cinco milhas alm, em Siena, o Dr. Alberto Ascolni posava para um retrato - um exerccio frvolo, uma iluso de imortalidade a que se submetia com ironia.

Era um homem alto, de sessenta e cinco anos, de rosto rosado e enrgico, e uma juba de cabelos alvos corno neve a cair-lhe, em intencional desordem, sobre o colarinho. Trajava um costume e uma gravata de seda, presa por um alfinete de brilhantes. Tanto a roupa como a gravata eram impecavelmente talhadas, mas deliberadamente fora de moda, como se a velhice e uma animao incongruente constituissem Os seus nicos cabedais. Parecia um ator - um ator muito bem sucedido - mas era, na realidade, advogado, um dos mais brilhantes advogados de Roma,

A pintora era uma jovem esguia, morena, & Pouco menos de trinta anos, olhos cor de avel, sorriso franco e expressivo, mos

Isso no so segredos, dottore. Ns somos aquilo que fazemos. Est escrito em nossos rostos para que o mundo o leia. Quanto ao que se refere a mim? Sou, aqui, uma estrangeira. Vim da Frana como os velhos soldados aventurosos, a fim de saquear as riquezas do sul. Vendo meus quadros ... e aguardo algum a quem possa entregar-me com confiana. Sei o que a gente procurar amor e estreitar nos braos apenas uma iluso. O senhor tem sido bondoso para comigo, revelando-me mais de sua pessoa do que imagina. No raro, pergunto a mim mesma a razo disso.

- simplssimo! - exclamou ele, tendo em sua rica voz de ator uma inflexo dissonante. - Se eu fosse vinte anos mais moo, Ninette, pedia-lhe que casasse comigo.

- Se eu fosse vinte anos mais velha, dottore - respondeu-lhe ela, docemente - talvez aceitasse o seu pedido. . . e o senhor depois me odiaria por isso.

- Eu jamais poderia odi-la, minha cara.

- O senhor odeia tudo aquilo que possui, dottore. Ama somente aquilo que no pode obter.

- Voc hoje est brutal, Ninette.

- Existem coisas que devem ser enfrentadas, no acha?

- Suponho que sim.

Ele soltou-lhe a mo e dirigiu-se janela, onde ficou a observar o sol derramar-se sobre o topo dos telhados da velha cidade. Sua alta estatura parecia curvada e diminuda, e o seu rosto, imponente, tornou-se angustiado, macilento, como se a idade o houvesse apanhado desprevenido. A jovem observava-o, tomada de sbita piedade pelos seus dilemas. Decorrido um momento, indagou, em voz baixa:

- Trata-se de Valria, pois no?

- E de Carlo.

- Fale-me de Valria.

- No faz ainda dois dias que chegamos de Roma e ela j comeou um caso amoroso com Baslio Lazzaro.

Houve outros casos, dottore. O senhor os encorajava. Por que razo deveria este preocup-lo?

Porque para mim a vida j vai bastante adiantada, Ninette! Porque quero netos em minha casa e uma promessa de continuidade, e porque esse tal Lazzaro um patife que acabar por destru-la.

- Eu sei - disse, baixinho, Ninette Lachaise. - Se sei!

- J sabem disso em Siena?

- Duvido. Mas, certa vez, eu mesma estive apaixonada por Lazzaro; ele foi a minha grande iluso.

- Lamento-o, filha.

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- No deve lament-lo por mim... mas pelo senhor e por Valria. E por Carlo tambm, claro. Ele j sabe?

No o creio.

Mas soube a respeito dos outros?

Penso que sim. Fez at um gracejo acerca de sua filha enganar um marido tolo. Disse que ela seguia os passos do pai ... Sentia-se orgulhoso de suas conquistas e de sua esperteza.

O senhor ria daquilo, lembro-me bem, dottore.

- Ele um idiota - disse, com amargura, Ascolini. - Um jovem idiota e sentimental que nem sabia a quantas andava. Merecia uma lio.

E agora?

Agora, fala em deixar-me e em abrir o seu prprio escritrio de advocacia.

- E o senhor no est de acordo?

- Claro que no! Ele demasiado jovem, demasiado inexperiente. Destruir sua carreira, antes que ela esteja sequer comeada. . - O senhor destruiu o casamento dele, dottore; por que deveria, agora, preocupar-se com a sua carreira?

- No me preocupo, mas que isso envolve o futuro de minha filha, e o futuro de seus filhos, se tiverem filhos.

- O senhor est mentindo, dottore - disse, com tristeza, Ninette Lachaise. - Est mentindo para mim. Est mentindo para si prprio. Surpreendentemente, o velho advogado riu e abriu os braos num gesto de desespero quase cmico:

Claro que estou mentindo! Sei da verdade melhor do que voc, filha. Criei um mundo minha prpria maneira, e j no gosto mais de seu aspecto, de modo que preciso de algum que o destrua sobre a minha prpria cabea e me faa comer os pedaos.

- E no ser, talvez, o que Carlo est procurando fazer agora? o

- Carlo? - explodiu Ascolini, desdenhoso. - Ele tem muito de menino para poder controlar sua prpria esposa. Como pode ele Competir com um touro velho e manhoso como eu? Nada me agradaria mais do que se ele me fizesse engolir minhas prprias asneiras, mas ele demasiado cavalheiro para faz-lo ... Vamos! - ajuntou, afastando o assunto com um alar de ombros e aproximando-se dela, para tomar-lhe as mos nas suas. - Esquea tudo isto e volte para a sua pintura, minha querida. No somos dignos de ajuda ... nenhum de ns! Mas h uma coisa...

- O que, doitore?

- Voc vai hoje jantar conosco, na villa.

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A impelia a novos e mais ardentes encontros, um vago temor e, s vezes, um pungente pesar. Houve tempo em que a conspirao existente entre ela e o pai lhe asseguravam absolvio mesmo para as suas maiores loucuras. Agora, porm, j no havia absolvio, mas algo assim como uma perversa tolerncia, como se ele se sentisse menos desapontado por ela do que por si prprio.

Agora, o pai j no ocultava o desejo de que ela assentasse e tivesse filhos. O problema, porm, que ele no tinha respeito algum por Carlo, no sabendo, por outro lado, ensinar-lhe, a ela, sua filha, uma maneira de restaurar o respeito por si prpria. O que ele, agora, exigia, era uma nova conspirao: uma unio sem amor, que trouxesse amor a um velho epicurista que, durante toda a vida fingira desprezar o amor. Era pedir demais em troca de to pouco. Pouqussimo para ela, muitssimo para ele - e, para Carlo, uma decepo a mais.

Houve*um. tempo em que Carlo lhe suplicara amor - que lhe pedira filhos. Trocaria, ento, os ltimos fiapos de seu orgulho por um beijo, por um momento de intimidade. Mas agora, no. Tornara-se, naqueles ltimos meses, mais adulto, mais frio, menos dependente, mais absorto no planejamento de sua prpria vida.

Contara-lhe uma parte de seus planos. Estava resolvido a deixar o escritrio de Ascolini e abrir sua prpria banca de advocacia. Feito isso, dar-lhe-ia um lar prprio, uma casa separada da do pai. E depois? Era esse depois que a preocupava, quando ela tivesse de ficar s, sem apoio, sem absolvio, sujeita ao veredicto de um marido enganado e determinao de seus prprios desejos turbulentos.

A que estava o n do problema. Que que a gente buscava tanto, a ponto de essa busca constituir um sofrimento para a carne? De que que se tinha tanta necessidade, a ponto de se estar disposto a renunciar a tudo o mais para alcan-lo? Vinte e quatro horas antes, ela ouvira a mesma pergunta dos lbios pouco prometedores de Baslio Lazzaro.

Estava de p, completamente vestida, com as luvas e a bolsa na mo, porta do quarto de Baslio, a observ-lo, enquanto ele abotoava a camisa sobre o peito forte e trigueiro. Notara a tranqilidade susfeita de seus movimentos, a vivaz indiferena pela sua presena, e indagara, queixosamente:

- Mas, Basilio. . . por que ter de ser sempre assim?

- Assim como? - perguntou Lazzaro, irritadamente, enquanto apanhava a gravata.

- Quando nos encontramos, como se fosse a ouverture de uma pera. Quando nos amamos, tudo drama e msica. Quando partimos ... como se estivssemos pegando um txi.

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O rosto belo e moreno de Lazzaro contraiu-se, com ar de espanto.

- Que que voce esperava, cara? A coisa assim mesmo. Depois que se toma o vinho, a garrafa se esvazia. Terminada a pera, no se fica espera de que venham limpar o teatro. A gente j se divertiu. E vai para casa e espera que haja outra representao.

- E isso tudo?

- Que mais poder haver, cara? Pergunto-lhe: que mais? Aquilo era um perfeito enigma, a que ela jamais encontrara uma resposta adequada. Meditava ainda sobre isso, quando o relgio de bronze dourado marcou meio-dia e quinze; dispunha ainda de tempo para banhar-se e vestir-se para o almoo.

A praa de San Stefano formigava de gente. Toda a aldeia sara rua, crianas e velhos, aglomerando-se porta do morto, papagueando ao redor da fonte, interrogando o policial apalermado que montava guarda porta da delegacia. Nada havia de turbulento na maneira pela qual o povo se conduzia; nada havia de hostil em sua atitude. Eram apenas espectadores, metidos por curiosidade num melodrama de tteres.

Da janela de seu escritrio, o sargento Fiorello observava-os com olhos sagazes, profissionais. At ali, tudo bem. Estavam excitados, mas ordeiros, movendo-se pela praa como carneiros num redil. No havia perigo de violncia imediata. Dentro de uma hora, os detetives de Siena chegariam e tomariam conta do caso, A famlia do homem assassinado achava-se mergulhada em sua dor. Ele podia ficar tranqilo e cuidar de sua prisioneira.

Esta estava afundada numa cadeira, a cabea pendida, o corpo sacudido por tremores convulsivos. Abrandou-se, ao fit-la, o rosto magro, coriceo, de Fiorello, que, decorrido um instante, despejou um pouco de conhaque numa xcara de barro e a levou aos lbios da moa. No primeiro gole, ela engasgou; depois, sorveu-o lentamente. Decorrido um momento, os tremores cessaram, e Fiorello ofereceu-lhe um cigarro. Ela recusou, agradecendo com voz morta, sem inflexo:

- No, obrigada. Estou melhor, agora.

- Tenho de fazer-lhe umas perguntas. Sabe disso?

Para um homem to rude, o tom com que lhe falou era estranhamente delicado. A moa fez um aceno com a cabea, indiferente.

- Sei.

- Como se chama?

- O senhor j o sabe: Anna Albertini. Chamava-me antes Anna Moschetti.

- A quem pertence esta arma?

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Apanhou a arma e estendeu-lha na palma da mo. Ela no titubeou nem desviou o olhar; respondeu simplesmente:

A meu marido.

Precisamos comunicar-nos com ele. Onde se encontra ele? Em Florena, Vicolo degli Angelotti, nmero dezesseis. Tem telefone?

No. Ele sabe onde voc se encontra? No.

Tinha os olhos vtreos; estava sentada erecta na cadeira, plida e rgida como uma catalptica. Sua voz tinha algo de metlico, de cerimonioso, como a de uma criatura que se achasse sob narcose. Fiorello, hesitou um momento; depois, fez-lhe outra pergunta:

- Por que fez isso, Anna?

Pela primeira vez, um leve sinal de vida assomou aos olhos e voz da moa:

O senhor sabe o porqu. No importa a maneira pela qual eu diga, ou o senhor o escreva. O senhor sabe o porqu.

- Diga-me uma outra coisa, Anna. Por que razo escolheu esta ocasio? Por que no fez isso um ms atrs, ou cinco anos antes? Por que no esperou mais tempo?

- E isso importa?

Fiorello manuseava distraidamente a pistola que matara Gianbattista Belloni. Sua voz tambm adquiriu um tom meditativo, reflexivo como se tambm ele estivesse a reviver acontecimentos distantes daquele lugar e daquele momento.

- No, no importa. Dentro em pouco, voc ser levada daqui. Ser julgada, condenada e mandada, por vinte anos, para uma priso, por haver assassinado um homem a sangue-frio. apenas uma pergunta para encher o tempo.

- O tempo. . . - repetiu ela, apoderando-se dessa palavra como se fosse um talism, uma chave para os mistrios de toda uma existncia. - No foi a mesma coisa que olhar para os ponteiros de um relgio ou arrancar as folhas de um calendrio. Foi como ... como caminhar por uma estrada ... sempre a mesma estrada ... sempre na mesma direo. De repente, a estrada terminou. . . aqui em San Stefano, porta da casa de Belloni. O senhor compreende, no verdade?

- Compreendo.

Mas a compreenso chegara tarde demais - e ele o sabia. com dezesseis anos de atraso. A estrada completara um crculo perfeito e, agora, como a sua prisioneira, ele deparava com marcos que julgara

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j transpostos e esquecidos. Deps a arma sobre a mesa e apanhou um cigarro. Ao acend-lo, viu que suas mos tremiam. Envergonhado, levantou-se e ps-se a preparar um prato de po, queijo e azeitonas; depois, encheu um copo de vinho e colocou a modesta refeio diante de Anna Albertini. E disse, spero:

- Quando a levarem para Siena, voc ser de novo interrogada, talvez durante muitas horas. Por isso, deveria procurar comer.

- No tenho fome, obrigada.

Sabia que ela estava num estado de choque, mas sua passividade no deixava, desarrazoadamente, de irrit-lo.

- Santa Me de Deus! - explodiu. - Ento no compreende? H um homem morto logo a ao lado. Voc o matou. Ele o prefeito desta cidade, e h a fora uma multido que a faria em pedaos, se algum proferisse uma nica palavra. Quando os rapazes de roupa preta chegarem de Siena, iro frit-la como um peixe numa panela. Estou procurando ajud-la, mas no posso obrig-la a comer.

- Por que razo est procurando ajudar~me?

No havia malcia na pergunta, mas apenas a vaga e plcida curiosidade dos enfermos. Fiorello conhecia demasiado bem a resposta, mas de modo algum poderia d-la. Voltou-se e dirigiu-se janela, enquanto a moa petiscava o alimento, vaga e pattica, como um pssaro que se v engaiolado pela primeira vez.

Houve, ento, uma agitao na rua. O pequeno frade deixara a casa do morto e caminhava, apressado, na direo da delegacia.

O povo comprimia-se em torno dele, puxava-lhe o hbito, assediava-o com perguntas, mas ele afastava a todos com um gesto, dirigindo-se, trpego, sem flego, para o escritrio de Fiorello.

Ao deparar com a moa, deteve-se, de sbito, e seus olhos se encheram de impotentes lgrimas de velho. Fiorello perguntou-lhe, sem meias palavras:

- O senhor a conhece, pois no?

Frei Bonifcio respondeu com um aceno fatigado de cabea:

- Creio que o imaginei desde o primeiro momento, quando a vi na praa. Eu deveria ter esperado que tudo isto acontecesse. Mas j faz tanto tempo! ...

- Dezesseis anos. E agora a bomba explode!

- Ela precisa de ajuda.

Fiorello deu de ombros e estendeu os braos, num gesto de desespero:

- Mas que ajuda pode haver? um caso j liquidado. Vendetta. Assassnio premeditado. A pena de vinte anos.

- Ela precisa de assistncia Jurdica.

- O Estado a fornece aos rus sem recursos.

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- Isso no basta. Ela precisa do melhor defensor que possamos ,encontrar.

- E quem pagar, mesmo que se descubra algum que queira aceitar uma causa perdida?

- A famlia Ascolini est passando o vero na villa. O velho um dos grandes advogados criminais. Posso, ao menos, pedir-lhe que se interesse pelo caso. Seno ele, talvez o genro.

- Por que deveriam interessar-se pelo caso?

- Ascolini nasceu aqui na regio. Deve sentir alguma . dedicao pelos seus compatrcios.

- Dedicao! - exclamou Fiorello, acentuando a palavra com um riso gutural. - At mesmo entre ns existe hoje to pouca dedicao... Por que deveramos esperar dedicao por parte dos signori?

Durante um momento, dir-se-ia que o modesto sacerdote aceitaria aquela proposio familiar. Sua face descaiu, os ombros encurvaram-se-lhe. De repente, porm, uma idia o assaltou e, quando se voltou de novo para Fiorello, seu olhar era duro.

- Desejo fazer-lhe uma pergunta, meu amigo - disse tranqilamente. - Quando Anna for levada a julgamento, o senhor prestar depoimento?

- De acordo com as provas - respondeu, seco, Fiorello. Que mais poderia fazer?

- E quanto ao passado? E quanto ao comeo deste caso monstruoso?

No tomarei conhecimento, padre. Sou pago para manter a paz e no para reescrever histria antiga.

- essa a sua ltima palavra?

- Tem de ser - disse Fiorello, mal-humorado. - No posso esconder-me num claustro, como o senhor, padre. No posso dar-me ao luxo de ficar a bater no peito e fazer novenas a Santa Catarina, quando as coisas no saem como desejo. Este o meu mundo. Essa gente que est l fora a minha gente. Tenho de viver no meio dela, da melhor maneira possvel. - Esta aqui. . . - ajuntou, fazendo um gesto brusco em direo da moa - uma causa perdida, por mais que procuremos fazer. De qualquer modo, creio que agora compete Igreja ajud-la.

Escoavam-se os segundos, enquanto os dois homens se achavam frente a frente, o sacerdote e o policial, cada qual entregue ao seu Prprio caminho, cada qual envolvido nas conseqncias de uma histria comum, enquanto Anna Albertini, sentada a um passo de distncia, lambiscava em seu prato, indiferente e distante como uma habitante da lua. Sbito, sem proferir qualquer outra palavra, o velho

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frade afastou-se uns passos, apanhou o telefone e pediu uma ligao para a Villa Ascolini.

Na quietude do meio-dia, no salone, Carlo Rienzi tocava Chopin para o visitante, Peter Landon. Formavam, ambos, um par curioso: o corpulento australiano com seu rosto arguto, sardento, o punho vigoroso em torno do fornilho do cachimbo; o italiano, esguio, plido, incongruentemente belo, lbios sensitivos e olhos de sonhador, com um toque de mistrio e insatisfao.

A composio era um dos primeiros noturnos, terno, lmpido, plangente, e Rienzi interpretava-o com simplicidade e fidelidade. As notas caam puras como gotas de gua; as frases eram plasmadas com amor e compreenso - e no com intencional brilhantismo ou falso sentimento. Aquela era a verdadeira disciplina da arte: a submisso do executante ao talento do compositor, a subordinao da emoo pessoal quilo que o mestre, morto havia muito, registrara.

Landon observava-o, com olho clnico, astuto, e pensava em quo jovem era ele, quo vulnervel, e quo estranhamente se achava ligado sua fria e civilizada esposa e ao velho e brilhante advogado que era o seu mestre em direito.

Contudo, no era inteiramente jovem nem completamente livre de cicatrizes. Suas mos eram fortes, mas continham-se sobre os teclados. Havia rugas em sua testa e incipientes ps-de-galinha no canto de seus olhos. Tinha pouco mais de trinta anos. Era casado. Devia j ter sofrido o seu quinho nas exaes da vida. Tocava Chopin como algum que compreendesse as frustraes do amor.

Quanto ao prprio Landon, a msica despertava-lhe ecos de uma insatisfao ntima. Homem do Novo Mundo, adotara sem esforo as maneiras urbanas do Velho Continente. Ambicioso, abandonara a promissora profisso, em seu prprio pas, a fim de escalar as arriscadas encostas da reputao em Londres. Rebelde por natureza, disciplinara sua lngua e seu temperamento, acomodando-se aos estratagemas da profisso mais invejosa do mundo, na cidade mais invejosa do planeta. Conseguira, habilmente, chegar aos coquetis de pessoas preeminentes e, agora, mediante diligncia, talento e diplomacia, estava j estabelecido corno consultor em psiquiatria e em psicopatologia criminal.

Era j muito para um homem de pouco menos de quarenta anos, mas achava-se ainda a dois passos do permetro privativo dos

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grandes. Dois passos, mas, no obstante, aquele era o salto mais difcil de todos. Fazia-se mister um trampolim para execut-lo; um

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caso oportuno, um afortunado encontro com algum que necessitasse de seus conselhos, um momento de inspirao em suas pesquisas.

At ento, fugira-lhe tal oportunidade, e ele mergulhara, a pouco e pouco, na frustrao e na acerba insatisfao daqueles que so sempre desafiados dentro dos limites de seu talento. Aquilo era uma espcie de crise, e ele era bastante atilado para reconhec-lo. Havia um perodo crtico em todas as carreiras- uma fase de ressentimento, indeciso e perigo. Muitos polticos desafortunados haviam perdido um assento no Gabinete por lhes ter faltado pacincia ou discrio. Muitos eruditos brilhantes eram preteridos em suas profisses por terem-se mostrado um tanto bruscos com seus superiores. Na hermtica fraternidade da Associao Mdica Britnica, um homem precisava engolir seu orgulho e cultivar a benevolncia de seus amigos. E quando algum se aventurava na nova cincia do esprito, precisava ser diligentemente condescendente com os seus colegas de bisturi e do estetoscpio. E se esse algum era um estrangeiro, precisava ser duplamente cuidadoso, duplamente dependente das qualidades de sua prpria atuao e da validez de suas prprias pesquisas.

De modo que ele preferira para si prprio uma estratgia: a retirada. Preferira passar aquele ano de licena entre os especialistas da Europa; trs meses com Dahlin, em Estocolmo, praticando em instituies dedicadas aos criminalmente insanos; uma temporada com Gutmann, em Viena, estudando a natureza da responsabilidade e, agora, umas breves frias em companhia de Ascolini, famoso pelo seu emprego do testemunho mdico-legal.

E depois? Tambm ele tinha aquele problema do depois, pois que enfrentava agora um novo aspecto da crise: o tdio da meiaidade. Quanto deveria um homem pagar pela realizao de sua ambio? E, uma vez que houvesse pago, quando poderia desfrut-la... e com quem? A msica triste, antiga, zombava dele, com suas descries de esperanas perdidas, amores mortos e o clamor de triunfos esquecidos.

Houve um momento longo, sincopado, enquanto as ltimas notas se extinguiam; depois, Rienzi girou sobre o assento e fitou-o de frente:

- Bem, a est, Peter! Voc teve a sua msica! Agora, dinheiro sobre a mesa! Chegou o momento de pagar o msico.

Landon tirou o cachimbo da boca e sorriu:

- Qual o preo?

- Um conselho. Um conselho profissional.

- Acerca de qu?

- Acerca de mim. Faz j uma semana que voc est aqui. Agrada-me pensar que nos tornamos amigos. Voc conhece alguns

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de meus problemas. E bastante perspicaz para imaginar o resto. Abriu os braos, num gesto sbito de suplica: - Estou num beco sem sada, Peter! Sou casado, num pas em que no existe divrcio. Amo minha mulher, que no me ama. Trabalho para um homem a quem admiro grandemente ... e que no tem por mim o mnimo respeito, como se eu fosse o mais modesto empregado de seu escritrio. Que que devo fazer? Que que se passa comigo? Voc o psiquiatra! Voc o sujeito que sonda os coraes de seus pacientes. Leia o que se passa em minha vida e na de Ascolini.

Landon franziu o sobrolho e tornou a enfiar o cachimbo na boca. O instinto profissional advertia-o contra intimidades assim to intempestivas. Dispunha de uma dzia de evasivas para desencorajar tais confidncias. Mas o sofrimento do homem era patente, e sua solido, em sua prpria casa, estranhamente comovente. Ademais, Landon passara ali, em casa de seu sogro, mais tempo do que o justificava a cortesia - e sentia-se tocado de desconhecida gratido. Hesitou um momento e, depois, disse, pensando as palavras:

- Voc no pode ter ambas as coisas ao mesmo tempo, Carlo. Se deseja um psiquiatra - embora eu no creia que voc o deseje - deve consultar um de seus prprios compatriotas. Pelo menos, tero urna linguagem e um conjunto de smbolos em comum. Se quer desabafar com um amigo, isso diferente. - Riu, secamente, entredentes. - Ademais, isso constitui, em geral, uma receita melhor. Mas, se voc o disser aos meus pacientes, estarei falido dentro de uma semana.

- Chame a isto um desabafo, se quiser - respondeu Rienzi, com seu ar meditativo, melanclico. - Mas no v que estou metido numa armadilha, como um esquilo encerrado numa gaiola?

- Pelo casamento?

- No. Por Ascolini.

- No gosta dele?

Rienzi hesitou um momento e, ao responder, havia um mundo de cansao em sua voz:

- Admiro-o muitssimo. Ele possui talento singularmente multiforme e excelente advogado.

- Mas?

- Mas creio que o vejo demais. Trabalho em seu escritrio. Minha mulher e eu moramos em sua casa. E sinto-me oprimido por sua eterna juventude.

Era uma frase esquisita, mas Landon a compreendeu. Recordou rapidamente o primeiro coquetel a que comparecera no apartamento de Ascolini, em Roma, quando pai e filha tocaram para o seu pequeno mas seleto grupo de convidados, enquanto Carlo Rienzi andava

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de um lado para outro, no terrao banhado de luar. Sentia-se favoravelmente inclinado para aquele jovem-velho, de boca demasiado sensitiva e mos controladas de artista. Perguntou-lhe, em voz baixa:

- E voc precisa morar com ele?

- Dizem-me que sim - respondeu Rienzi com suave amargura. - Dizem-me que lhe devo obrigaes. Que lhe devo a minha carreira. Hoje, na Itlia a advocacia uma profisso em que h gente demais, e o patrocnio de um grande homem uma coisa rara de se encontrar. Sou-lhe devedor tambm por minha esposa. E ela, por sua vez, est em dbito para com ele, sendo filha nica de um pai que lhe deu amor, segurana e a promessa de uma rica herana.

- E Ascolini exige pagamento?

- De ns ambos

- respondeu Carlo, encolhendo de leve os ombros num gesto de derrota. - De mim, exige lealdade e submisso a seus planos quanto minha carreira. De minha esposa, uma. . . uma espcie de conspirao, em que a juventude dela dedicada mais a ele do que a mim.

- E que que sua esposa pensa disso?

- Valria uma mulher singulr - disse, sem hesitao, Renzi. - Compreende o que dever, a devoo filial e opagamento de dvidas. Alm disso, gosta muitssimo do pai e encontra grande prazer em sua companhia.

- Mais do que na sua?

Carlo sorriu, ao ouvir tal - aquele seu sorriso vago, infantil, que constitua muito de seu charme.

Ele tem a oferecer muito mais do que eu, Peter

- respondeu, em voz baixa. - Eu no sei interpretar o mundo com a segurana com que ele o, faz. No sou ousado nem bem sucedido, embora gostasse de s-lo. Amo minha esposa, mas receio que ela necessite menos de mim do que eu dela.

- O tempo poder modificar isso.

- Duvido - disse, peremptrio, Rienzi. - H outras pessoas envolvidas nesta conspirao.

- Outros homens?

- Vrios. Mas eles me preocupam menos do que a minha prpria deficincia como marido. - Levantou-se e dirigiu-se porta envidraada que dava para o terrao. - Que tal se caminhssemos um Pouco? mais ntimo l fora.

Permaneceram algum tempo em silncio, a caminhar por uma alameda de ciprestes, atravs de cujos troncos, verdes, viam o cu e os campos que se estendiam numa policromia de oliveiras escuras, vinhedos verdes, terras de Pousio trigueiras e milharais sacudidos pelo vento. Cinicamente, Landon pensava que o tempo operava suas trans-

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formaes de modo demasiado lento e que, para Cario Rienzi, havia necessidade de remdios mais rpidos. Receitou-os, sem meias palavras:

Se sua esposa lhe pe cornos, no h necessidade de que voc os use. Devolva-a ao pai e arranje uma separao judicial. Se no gosta de seu emprego ou de seu patro, mude de vida. V cavar fossos, se for preciso, mas liberte-se j!

- Pergunto a mim mesmo - respondeu, com desolado humor, Rienzi - por que ser que so sempre os sentimentalistas os que tm as respostas engatilhadas? Eu esperava outra coisa de voc, Peter. Voc um profissional. Deveria compreender melhor do que os outros as aberraes do amor e da posse... por que razo a esperana ainda constitui, no raro, um lao mais forte do que a conquista compartilhada.

Landon enrubesceu e deu-lhe uma resposta mordaz:

Se algum gosta de coar-se, no nos agradecer se curarmos a sua comicho.

- Mas, para cur-lo, ser preciso dilacerar-lhe o corao? Decepar-lhe a cabea, para que aprenda a raciocinar?

- De modo algum. Procura-se ajud-lo a atingir maturidade suficiente para que possa escolher o seu prprio remdio. Ou, ento, se no houver remdio, a suportar sua aflio com dignidade.

Mal as proferiu, arrependeu-se de suas palavras, orgulhando-se de uma tolerncia que no possua, envergonhando-se de uma rispidez adquirida no exerccio de sua profisso. Aquele era o castigo da ambio: no poder um homem revelar simpatia por algum sem que se sentisse humilhado. Aquela, a ironia do amor-prprio: no poder sentir piedade pelo que no sofrera em sua prpria carne

o beijo dado mas no retribudo, a paixo liberalizada mas no correspondida. A resposta pacfica de Rienzi foi a mais amarga das censuras.

Se me falta dignidade, Peter, no deve censurar-me demasiado. Mesmo o ator mais medocre pode fazer o papel de rei. Mas preciso um grande ator para, mesmo usando cornos, fazer a platia chorar. Se no me rebelei at hoje, e porque me faltou oportunidade, e no coragem. No to fcil como voc pensa, resolver os dilemas da lealdade e do amor. Mas estou planejando uma revoluo, creia-me! Sei, melhor do que voc, que a minha nica esperana, quanto a Valria, derrotar Ascolini em seu prprio terreno ... destruir a lenda que ele criou para ela, e que constitui a fonte de seu poder sobre Valria. Estranho, no mesmo? Para impor-me como amante, preciso firmar-me antes como advogado. Preciso de uma causa, Peter;

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apenas de uma boa causa. Mas onde com os diabos! encontr-la?

Antes que Landon tivesse tempo de articular uma resposta ou uma desculpa, um criado veio chamar Rienzi ao telefone e o mdico de almas ficou a meditar sobre os problemas do amor numa velha terra em que as paixes seguem por canais tortuosos e a juventude carrega sobre as costas cinco mil anos de histria violenta.

Landon alegrou-se de ficar s. Homem devotado mecnica do xito, achava demasiado molesto o excesso de companhia, sendo que um nmero demasiado grande de impresses novas lhe parecia um fardo para a imaginao. Precisava restaurar um tanto as foras, antes de entregar-se, naquela tarde, aos seus inteligentssimos mas exigentes anfitries.

Carlo Rienzi era um sujeito atraente, e no se podia encarar sem simpatia os seus dilemas e indecises mas o problema de todas as amizades, na Itlia, era esperarem os outros que a gente se envolvesse nos assuntos alheios, que se tomasse este ou aquele partido, mesmo nas questes mais triviais ou importantes, que se interessasse por todas as tristezas e se corasse diante de todas as indiscries. Se no se tivesse cuidado, a gente se esgotava como uma bolsa liberalmente aberta, esvaziada e deixada de lado, enquanto os amigos se entregavam tumultuosamente ao amor ou piedade.

Era um alvio, pois poder-se ficar sozinho e desfrutar de um simples prazer de turista, qual fosse o de, ali do jardim, apreciar .a paisagem.

O primeiro impacto era de tirar o flego: um ar vivo e palpitante, que superava os transportes do corao e do esprito; colinas ao nvel dos olhos, hirtas, tendo por fundo o cu, empeflachadas de pinheiros e castanheiros, escabrosas de velhos rochedos e de runas de castelos de guelfos e gibelinos; um falco a pairar muito alto, no cu azul; escuros pinheiros a galgar as encostas, como lanceiros em marcha.

Apesar de toda a sua crosta de ambio e egoismo, Landon no era um homem vulgar. No se pode palmilhar os secretos caminhos do esprito humano sem que se possua um certo talento que nos permita maravilhar-nos diante de certas coisas, uma graa mnima que nos permiti sentir compaixo por nossos semelhantes, e um pequeno vu de lgrimas para um homem que se encontra nas garras do terror da descontinuidade. Lgrimas assomavam-lhe aos olhos, naquele momento, ante o sbito prodgio daquela velha terra, povoada, em pleno meio-dia, de fantasmas.

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Aquele era o verdadeiro clima do misticismo, selvagem, mas, no obstante, terno; suave no amanho da terra, mas, no obstante, spero nos vestgios de antigos e sangrentos conflitos.

Ali, o pequeno Irmo Francisco, num enlace maravilhoso, uniuse Senhora Pobreza. Ali chegaram os mercenrios de Barbarroxa: lanceiros da Inglaterra, arqueiros de Florena, bandidos da Albnia, heterogneos mas terrveis no massacre de Montalcino. O rei-poeta de Luxemburgo, Henrique, o das canes de amor, morrera ali, sob aqueles ciprestes. No monte de Malmarenda, onde se erguiam quatro rvores, teve lugar aquela monstruosa festa das festas, que terminou na carnificina dos Tolomei e dos Salimbeni. E, debaixo dos velhos telhados de Siena, Madona Catarina revelou a doce substncia de seu esprito: A Caridade no se busca por si mesma... mas por Deus. As almas deveriam unir-se e transformar-se pela Caridade. Devemos encontrar, entre espinhos, perfume de rosas prestes a desabrochar.

Aquela era uma terra de paradoxos, um campo de fuso, de contradies histricas: beleza e terror, xtase espiritual e grosseira crueldade, ignorncia medieval e o frio iluminismo da era do irracionalismo. Seu povo, tambm, era um complexo de muitas raas: antigos etruscos, germano-lombardos e mercenrios, vindos s Deus sabe de onde. Santos medievais, humanistas florentinos, astrlogos rabes, todos contriburam para a sua herana. Seus mercados negociavam desde a Provena at o Bltico, e estudantes de todas as partes do mundo vinham ouvir as prelees de Aldo Brandini sobre a anatomia do corpo humano.

Para Landon, aquela era uma estranha viso processional - em parte, paisagem e, em parte, escavao de antigas lembranas; mas, depois daquele desfile, sentia-se um pouquinho mais compreensivo, um pouquinho mais tolerante para com aquela gente ardente e complicada, de cuja mesa participara. No havia necessidade de que participasse da maldio que eles impunham a si prprios. Podia perdolos ... contanto que no precisasse viver entre eles.

Sentiu o perpassar de um perfume e um rudo de passos e, passado um momento, Valria Rienzi estava ao seu lado, na alameda. Trajava elegante vestido de vero. Tinha os ps nus metidos em sandlias de couro dourado e os cabelos atados nuca com uma fita de seda. Parecia plida, pensou ele. Havia sombras em torno de seus olhos e um vago sinal de cansao em seus lbios; mas sua pele era clara como mbar - e ela o saudou com um sorriso.

- a primeira vez, Peter, que o vejo assim-

- Assim como?

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- Desprevenido, descuidado. Quase como um menino a assistir, na praa, a uma Pulcinffia.

Landon sentiu-se enrubescer, mas sorriu e procurou afastar, com um alar de ombros casual, o comentrio:

- Desculpe-me. No percebi que parecia... descuidado. No pretendo s-lo, asseguro-lhe. Devo parecer-lhe um sujeito muito caturra.

- Tudo, menos caturra, Peter - respondeu ela e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, enlaou a mo na dele e ps-se a caminhar a seu lado. - Pelo contrrio, voc um homem bastante provocador. Provocador e, talvez, tambm um tanto assustador.

Ele j se divertira, em sua vida, com demasiadas mulheres, para que no reconhecesse aquele simples lance; mas sua vaidade se sentiu lisonjeada, e ele resolveu ir um pouco mais alm. Indagou, com ar de inocncia:

- Assustador? No compreendo.

- Voc to realizado. . . to controlado. Vive de voc para voc. Assemelha-se, sob muitos aspectos, a meu pai. Compreende to bem as coisas que, dir-se-ia, os outros nada tm a oferecer-lhe. Vocs ambos encaram a vida como se ela fosse um banquete. Sentam-se, comem e, depois, levantam-se satisfeitos, e seguem adiante. Oxal eu pudesse ser assim!

- Pois eu diria que voc o tem sido com bastante xito. Lanou o golpe de leve, como um esgrimista que iniciasse uma competio esportiva. Para sua surpresa, ela franziu o sobrolho e respondeu, sria:

- Eu sei. Fao-o muito bem. Mas a coisa no real, percebeu? Ajo como uma aluna que recita uma lio que j sabe de cor. Meu pai um bom professor. E Basilio tambm.

- Baslio?

- Um homem com quem venho me encontrando ultimamente. Ele faz da irresponsabilidade uma arte.

O terreno, afinal de contas, no era assim to conhecido. Landon achou que talvez fosse sensato abandonar aquele jogo, antes que o mesmo fosse levado a srio. Disse canhestramente:

- Fala-se demais acerca da arte de viver. Segundo minha experincia, consiste ela, principalmente, em artifcio: ps, cosmticos e mscaras de carnaval.

- E o que est por baixo disso?

- Homens e mulheres.

- De que espcie?

- De todas as espcies... quase todos eles solitrios.

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Mal disse isso, percebeu que cometera um erro. Aquilo era o comeo de todos os casos amorosos: a primeira intimidade, a fenda na cota de malha que desnudava o corao, deixando-o exposto lmina. E, a lmina surgiu, tateante, mais rpida do que ele imaginara.

- Foi isso que li em seu rosto, no foi, Peter? Voc se sentia solitrio. Voc como aquela ave l no alto ... livre, com o mundo todo sob as asas... e, no obstante, se sentia solitrio.

Apertou os dedos na palma da mo de Landon; ele sentiu-lhe o calor do corpo ao mesmo tempo que o envolvia o perfume de Valria.

- Eu tambm me sinto s - ajuntou ela.

Ele era mdico e compreendia os empregos da dor.

- com tudo o que possui, Valria? - indagou friamente. com seu pai, com Carlo ... e com Baslio, lanado de contrapeso? Estava, preparado para enfrentar-lhe a ira e at mesmo uma bofetada na boca; mas ela apenas desvencilhou-se dele e respondeu com glido desdm:

- Eu esperava outra coisa de voc, Peter. S porque lhe seguro a mo e, lhe digo uma pequena verdade a meu respeito, voc me encara como se eu fosse uma prostituta? No fao segredo de meus atos nem das pessoas de quem gosto. Mas voc... voc deve sentir grande desprezo por si prprio. Tenho pena da mulher que procure am-lo.

Depois, como se sua vergonha no bastasse, Carlo surgiu no meio do caminho, dizendo-lhes com glacial polidez:

- Vocs tero de desculpar-me por eu no estar presente hora do almoo. Houve alguma complicao na aldeia. Pediram minha ajuda. No sei a que horas estarei de volta.

No esperou resposta, deixando-os rapidamente, atores hostis num palco vazio, sem script, ponto ou qualquer soluo previsvel para seus conflitos. Desajeitado como um colegial, Landon gaguejou uma desculpa.

No sei o que possa dizer-lhe para pedir que me perdoe. Posso. . . posso apenas procurar explicar. Em meu trabalho, a gente adquire maus hbitos. Fica-se sentado como um padre confessor a ouvir misrias alheias. As vezes, a gente se sente assim um pouco como Deus num tribunal supremo. Eis a o problema. O outro problema que o paciente sempre procura converter o seu psiquiatra em algo diferente: num pai, numa me, num amante. um sintoma de enfermidade. Chamamos a isso transferncia. Adotamos certas defesas contra isso... uma espcie de brutalidade clnica. O diabo que, s vezes, empregamos essa mesma arma contra pessoas que no so, de modo algum, nossos pacientes. uma espcie de covardia.

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E voc tem razo, ao dizer que me desprezo por isso. Sinto muito, Valria.

Ela ficou um momento sem responder, recostada a uma urna de pedra, a arrancar as ptalas de uma glicnia e a esParram-las junto de seus ps. Tinha o rosto voltado para o outro lado, de modo que ele no podia ver-lhe os olhos; mas, ao virar-se para ele, sua voz era intencionalmente cinzenta:

- Somos todos covardes, no somos, Peter? Somos todos brutais, quando algum toca na pequena pstula de medo que temos em nosso ntimo. Sou brutal com Carlo, sei disso. Mas ele, sua prpria maneira, tambm brutal comigo. Mesmo meu pai, que esplndido como um velho leo, cria um purgatrio para aqueles a quem ama. No obstante, somos necessrios uns aos outros. Sem ningum a quem possamos ferir, s poderemos ferir a ns prprios

- e eis a o derradeiro terror. Mas at quando poderemos viver assim, sem que nos destruamos mutuamente?

- No sei - respondeu, sombrio, Peter Landon, perguntando a si prprio, naquele mesmo momento, at que ponto um homem poderia suportar os aguilhes da ambio, at onde poderia subir sozinho, antes de mergulhar no desencanto e no desespero.

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2

A DELEGACIA, em San Stefano, estava abafada de fumaa de cigarros e de cheiro de azedo de vinho e queijo aldeo. O sargento Fiorello achava-se ostensivamente sentado parte, copiando um depoimento. Frei Bonifcio permanecia de p, a mexer em seu cinto, enquanto Carlo Rienzi explicava algo a Anna Albertini:

Frei Bonifcio contou-me por alto sua histria, Anna. Estou ansioso por ajud-la. Mas, primeiro, h certas coisas que voc precisa compreender. - Sua voz tinha o tom expositivo e paciente de um mestre-escola a ensinar um aluno obtuso. - Voc deve compreender, por exemplo, que um advogado no um mgico. Ele no pode provar que o preto branco. No pode agitar uma varinha e fazer com que desapaream as coisas que aconteceram. No pode ressuscitar gente que morreu. S o que pode fazer contribuir com o seu conhecimento da lei e com a voz, a fim de defend-la no tribunal. Alm disso, um advogado tem de ser aceito pelo seu cliente. ] preciso que este concorde em contratar seus servios. Estou sendo claro?

Talvez fosse apenas uma iluso, mas dir-se-ia que, por um momento, o fantasma de um sorriso contraiu os lbios plidos da moa.

- No tive muita educao - respondeu ela, gravemente -

mas sei alguma coisa acerca de advogados. O senhor no precisa tratar-me como se eu fosse uma criana.

Rienzi enrubesceu e mordeu o lbio. Sentia-se demasiado jovem e excessivamente canhestro. Mas recomps-se e prosseguiu, com mais firmeza:

Ento deve compreender o que fez... e saber quais so as conseqncias.

Anna Albertini, em sua atitude plcida, indiferente, fez com a cabea um sinal afirmativo:

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- Oh, certamente! Sempre soube o que iria acontecer. Isso no me preocupa. .

- No a preocupa agora, mas ir preocup-la depois quando estiver no tribunal a ouvir a sentena. Quando eles a levarem embora e voc se vir com roupa de presidiria, fechada atrs das grades.

-- No me importa onde eles me ponham... no me importa. Agora estou livre... compreende?... e f eliz.

Pela primeira vez, o velho frade entrou na discusso.

- Anna, minha filha - disse ele, com brandura - hoje foi um dia estranho e terrvel. Voc no poder saber como se sentir amanh. De qualquer modo, quer voc o queira ou no, o tribunal far com que tenha um advogado. Acho melhor que tenha a seu lado algum que se interesse um pouco por voc, como aqui o Dr. Rienzi...

- No tenho dinheiro algum com que pag-lo.

- O dinheiro ser providenciado.

- Ento creio que est bem.

Rienzi, chocado ante aquela indiferena, disse irritado:

- Precisamos de algo mais formal do que isso. Quer fazer o favor de dizer ao sargento Fiorello que me aceita como seu representante legal?

- Digo, se assim o deseja.

- J ouvi - disse Morello, sorrindo, entredentes. - Anotarei aqui. Mas acho que o senhor est perdendo tempo.

- Isso que no compreendo - comentou Anna, com estranha simplicidade. - Sei que nada podem fazer por mim. Por que razo, pois, o senhor e Frei Bonifcio esto tendo todo esse trabalho?

- Estou procurando saldar uma dvida - respondeu, em voz baixa, o frade.

Carlo Rienzi juntou suas anotaes, meteu-as no bolso e levantou-se.

-- Voc ser levada para Siena, onde ser instaurado o processo, Anna - disse, rpido. - Depois, ficar na cadeia da cidade, ou talvez a mandem para a casa correcional de mulheres, em San Gimignano. Onde quer que voc se encontre, irei v-la amanh. Procure no ficar muito assustada.

No estou assustada - afirmou Anna Albertini. - Creio que esta noite dormirei sem pesadelos.

- Deus a guarde, filha - disse Frei Bonifcio ao retirar-se, fazendo o sinal da cruz sobre a cabea da jovem.

Rienzi j estava junto porta, falando com Fiorello.

- Quando comear a preparar a defesa, gostaria de vir aqui falar com o senhor, sargento.

- Sinto muito, mas no ser possvel - respondeu Fiorello, com frio ar profissional. - Serei convocado pela Promotoria Pblica.

- Ento falaremos no Tribunal - concluiu, lacnico, Rienzi, saindo, seguido pelo frade, para a praa ensolarada, cheia de murmrios.

A multido abria alas passagem de ambos. Todos os fitavam, apontavam-nos e sussurravam entre si, Como se fossem monstro, de circo, at que desapareceram nas frias sombras confessionais da Igreja de San Stefano.

O almoo, na Villa Ascolini, foi um torneio de trs participantes, dominado pelo rutilante esprito do velho advogado. A ausncia de Carlo foi aceita com indiferena e, sups Landon, com certo alvio. A desgraa ocorrida na aldeia no mereceu seno um gesto de desaprovao. Nem Ascolini, nem Valria perguntaram de que se tratava, mas quando Landon insistiu com eles a respeito, Ascelini fez-lhe uma preleo irnica acerca dos vestgios do sistema feudal ainda existentes.

- Vivemos a maior parte do ano em Roma, mas a propriedade da vila nos converte por definio na famlia Patronal. Quando voltamos para c, pagamos uma espcie de tributo pelo nosso domnio. As vezes, um pedido de novas contribuies para a igreja ou para o convento. Outras vezes, patrocinamos os estudos de algum estudante mais ou menos brilhante. Ocasionalmente, somos convidados a servir de rbitro em alguma disputa local ... que , provavelmente, o que aconteceu hoje. Mas, quaisquer que sejam as circunstncias, o princpio o mesmo: os senhores pagam um tributo ao populacho pelo privilgio de sobreviver; os humildes servem-se dos senhores, para que estes os defendam de uma democracia na qual no confiam e de uma burocracia que desprezam. um ajuste razOvel. - Sorveu delicadamente o seu vinho e acrescentou, aps breve reflexo: - Alegra-me que Carlo comece a assumir a sua parte nesse tributo.

Valria sorriu, com ar de tolerncia, e deu umas palmadinhas no brao do hspede:

- No lhe d ateno, Peter. Ele um velho malicioso. Landon sorriu e ps-se a descascar um pssego. O rosto rosado de Ascolini tinha uma expresso de perfeita inocncia.

- ] privilgio dos velhos testar a tmpera dos jovens. A&inais, alimento grandes esperanas quanto ao futuro de meu genro, Lmi

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era nenhum mendigo a cavalo. Talvez tivesse sido forjado de matra tosca, mas era duro como o granito e polido pelas disciplinas do um mundo superpovoado. Sua carreira se baseava nas loucuras de outros homens - e paixes demasiado ignbeis t-lo-iam destruido havia muito. Landon sentiu que o Dr. Ascolini possua muito maior estatura do que Carlo ou Valria seriam capazes de admitir. Podia imaginar o velho entregue a um forte amor, ao dio, ou a uma perverso desses sentimentos, mas no lhe era possvel julg-lo mesquinho.

E Valria? Tambm ela lhe causara uma impresso diferente da que Carlo lhe transmitira. Via-a como uma espcie de princesa intransigente, meio desperta para o amor, mas no obstante, ainda acorrentada tirnica magia da infncia. Para Carlo, havia ainda uma certa inocncia em Valria, apesar de seus casos , amorosos. Mas Landon lembrou-se das jovens que Lippo Lippi usava para pintar suas virgens e seus anjos - jovens de rostos suaves, olhos lmpidos e a recordao de mil e uma noites em seus lbios. Era um pensamento desagradvel, mas no podia livrar-se dele. Quando a profisso de um homem o obrigava a sentar-se junto de um div de confisses e a encarar as mulheres calculadamente, aprendia, s vezes penosamente, que a inocncia era coisa rara e possua muitos disfarces. Valria talvez no fosse depravada, mas era inclinada, sem dvida, a outras satisfaes que no as que lhe eram proporcionadas por um marido jovem e incerto. Landon via-a maternal, mas sem filhos; fria, mas no insensvel; no dominada pelo pai, mas apoiada, como ele, em reservas ntimas, de modo que precisava menos dos outros que outras mulheres, mas que poderia dar muito mais, se o estado de esprito e o momento fossem propcios.

Ps-se a pensar, languidamente, quais poderiam ser esse estado de esprito, esse momento - e viu-se a fitar o poo de seu prprio vazio.

Tudo o que via naquela gente, ele o havia evitado em sua prpria vida- marido enganado, crueldade, o prurido da carne, o medo de perder aquilo que se podia apenas fingir possuir, a tirania vampiresca da velhice, a pervertida rendio da juventude. Estabelecera para si um objetivo limitado, e estava agora quase a ponto de alcanlo. Divertira-se com mulheres, mas jamais se entregara a elas. Preser-vara a tica de uma arte de curar, ao usar essa arte para o seu prprio progresso. Tinha dinheiro, posio, lazer. No estava sujeito nem a uma esposa, nem a uma amante. Era livre, disciplinado e vazio do vinho da vida que aqueles outros dissipavam com to ardente indiscrio.

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De repente, sentiu-se como se eles fossem os ricos, e ele apenas o mendigo parado em seu porto - e perguntou a si mesmo, como os mendigos decerto fazem, se seu estmago teria capacidade para suportar um banquete, mesmo que um banquete lhe fosse oferecido.

Quando o calor da tarde escorria como lava sobre a terra numa hora em que camponeses e burgueses se ocultavam como toupeiras, fugindo ao sol - Ninette Lachaise meteu tintas e telas em seu velho automvel e rumou para o campo.

clodoaldo

Era uma peregrinao de artista, quase to penosa como a que era empreendida pelas irmandades religiosas de outros tempos. A terra estava quente como um rescaldo; as estradas eram um inferno de poeira; os montes, calcinados, concentravam o calor e difundiamno em ondas abrasadoras pelas baixadas onde as vinhas definhavam, os crregos secavam e os ramos das oliveiras pendiam, lnguidos, no ar parado. 0 gado desistira de pastar e achava-se reunido sob esparsas sombras, os olhos vtreos, as lnguas sedentas pendentes da boca. As raras criaturas humanas, apanhadas de surpresa pelos caininhos ou no amanho da terra, pareciam encolhidas e ressecadas como gnomos que palmilhassem uma paisagem lunar.

Por sobre tudo isso se estendia o penetrante milagre da luz: o deslumbramento do cu para as bandas do sul, o alvo cintilar de estuques e dos afloramentos de tufos, sombras bronzeadas nas fendas das montanhas, reluzir de lagos, ocre de todos os telhados, lampejar de jias em asas de pssaros e no vo de acrdios. E a estava a justificao daquela peregrinao: a spera novidade do aspecto das coisas, a sbita dilatao do espao, a separao entre massa e contomo, de modo que a gente via atravs dos ossos da criao e tinha um vislumbre da macia articulao de suas partes.

Para Ninette Lachaise havia ainda outras justificativas. Cada peregrinao era, por definio, uma disciplina para o esprito, uma tentao do desconhecido e um passo em direo do inatingvel.

Chegara quatro anos antes, em fuga, quela cidade, chamada, por seus devotos, 0 Lar das Almas. Fugira de uma casa, em Paris, dominada por uma me doente e por um pai idoso, cuja recreao era lamentar as glrias extintas da vida militar. Fugira da esterilidade dos ateliers de pos-guerra e de uma juventude que era um prenncio de velhice. Duas coisas tinham acontecido subitamente: sua pintura explodira em surpreendente maturidade e, uma semana aps sua primeira exposio, mergulhara de ponta cabea num caso amoroso com Basilio Lazzaro.

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Indiferente como um touro, Baslio Lazzaro era dado a aventuras desse gnero, e a ligao entre ambos durou seis tempestuosos meses. Separaram-se sem pesar - e ela, magoada mas desperta, ficou sabendo que era capaz de paixo, embora duvidasse que viesse a entregar-se de novo de maneira to completa. Aprendera, ainda, outra coisa: que aquela era uma terra de homens, e que no havia- salvao para uma mulher em amores promiscuos ou irrefletidos. De modo que fez das disciplinas da arte uma disciplina tambm para a carne, embora aguardasse, quase sempre cautelosamente, o momento de um encontro afortunado.

Mas no bastava esperar inconscientemente a promessa de amor dos contos de fadas, o Prncipe Encantado e o viveram felizes para sempre. Em sua natureza e em sua situao, havia elementos que ela ainda no percebia bem. At onde seu talento poderia conduziIa? Quando poderia ela desafiar a lenda da incapacidade da mulher para as grandes criaes da arte? De que grau de igualdade necessitaria ela para sobreviver, aps os primeiros estmulos do galanteio e da intimidade sexual? Por que motivo se sentia atrada por homens como Ascolini - os cnicos e os experientes - e por que razo desconfiava dos jovens que eram todo ardor, mas que se mostravam to mal dotados de compreenso? Qual a vantagem de fixar vises de beleza para deleite dos outros, enquanto que os verdes anos se dissipavam na solido do outono?

Desde a visita de Ascolini, todas essas indagaes e dezenas de outras haviam adquirido perfeita nitidez, como os penhascos e as fortificaes ameadas dos montes toscanos. Era um sinal de sua inquietude o haver ela aceito o convite para jantar na villa... em companhia de Valria, que desempenhava agora o papel de amante de Baslio Lazzaro, e de um estrangeiro desconhecido, que lhe estava sendo apresentado como simples objeto de exame.

De repente, porm, a comicidade da situao apoderou-se dela, e ps-se a rir - um riso claro, livre, que ressoou pelo vale, espantando as cabras e fazendo com que uma cotovia alasse vo, fendendo o ar tremeluzente.

Na biblioteca da villa, Alberto Ascolini, advogado e ator, representava uma reconciliao com a filha. Era uma cena que representara muitas vezes e seu papel tinha a ptina de uma longa prtica. Estava recostado ao consolo da lareira, elegante, impertigado, impressionante, tendo na mo uma taa de conhaque e um leve sorriso de conspirao a contrair-lhe os cantos da boca. Valria achava-

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se enrodilhada em sua poltrona, o queixo apoiado na mo, sentada sobre os Ps, como uma menina. Ascolini encolheu eloqentemente os ombros e disse:

- Filha, voc no deve mostrar-se demasiado ressentida. Sou um velho bode perverso, que ri de seus prprios gracejos. Mas eu a amo ternamente. No fcil para um homem ser, ao mesmo tempo, pai e me de uma menina. Conheo meus malogros melhor do que voc. Mas isso de eu vender o meu amor... novo para mim. E penoso, tambm. Acho que voc deveria explicar-se um pouco melhor. Valria Rienzi abanou a cabea:

- Voc no est no tribunal, papai. No ocuparei o lugar das testemunhas.

- Talvez no, minha filha - respondeu ele, sereno, revelando apenas um leve ar de tristeza. - Mas voc me ps no banco dos rus. No acha que tenho o direito de ouvir a acusao? De que modo fao com que voc pague o amor que lhe dedico?

- Voc recebe uma parte de tudo o que fao.

- Recebo? Recebo? - exclamou o velho, franzindo, perplexo, a nobre testa e passando a mo pela cabeleira branca. - Voc ... faz com que eu parea um cobrador de impostos. Cuido de voc ... claro! Interessa-me a sua felicidade ... Mas isso constitui, acaso, U.ma exigncia? Acaso j lhe neguei alguma coisa, mesmo o direito de ser jovem e tola?

Pela primeira vez, ela inclinou a cabea para fit-lo meio hostil, meio splice:

Mas ento no v que a metade de tudo isso foi sempre em seu benefcio? Carlo? Ele foi, primeiro, criao sua. Voc o preParou e entregou-mo como um pnei de estimao, mas conservou sempre uma mo na rdea. Os outros? Foram, tambm, criao sua... divertimentos para a noiva infeliz, cavalicri sirventi proporcionados pelo pai indulgente. Eram romances destinados a relembrar sua prpria mocidade.

- Mas voc os aceitou, minha querida. E mostrou-se grata, como bem recordo.

- Voc tambm me ensinou isso - respondeu ela, num assomo de amargura. - Agradea os doces, como uma boa menina. . . Mas quando eu mesma quis tomar algo ... como Basilio ... ah, ento, a coisa foi diferente!

Pela primeira vez,.,o rosto rosado, brilhante, de Ascolini, reve~ IOU sinais de clera:

- Lazzaro um patife! No companhia para uma mulher de estirpe!

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- Estirpe, papai? Qual a sua estirpe? Voc era filho de ,ampons. Casou pobre e lamentou t-1o feito, quando adquiriu reputao. Voc desprezava minha me e ficou contente quando ela morreu. E eu? Sabe o que eu deveria ser? 0 modelo da mulher que voc quis, mas jamais conseguiu. Sabe por que razo voc^ jamais tornou a casar? Para que ningum jamais pudesse rivalizar com voc. Para que pudesse sempre desdenhar daquilo de que tinha necessidade e possuir o que amava! rio desdm. - Fale-me

- Amor? - repetiu Ascolin, com f Cario? Ou Sebastian? acerca de amor, Valria. Ser que voc amou o lhe saa Ou aquele sul-americano, ou o filho do grego cujo dinheir

at pelas orelhas? Ou ser que o encontrou, no cio, num apartamento de terceiro andar, com esse tal Lazzaro? ele julgou Ela agora chorava, a cabea enterrada nas mos, e

que ganhara a partida. disse doce-

- Voc e eu no devemos ferir-nos, minha filha - entre ns mente. - Devemos ser honestos e dizer que o que temos

o que de melhor conhecemos do amor. Para mim, , dentre todas as coisas que conheo, a mais valiosa. Para voc, haver mais, muito mais, pois que o mundo ainda novo para voc. Mesmo com Carlo poder haver algo, mas preciso que voc d, ao menos, a metade dos passos nesse sentido. Ele um rapaz, e voc uma mulher, rica de experincia. Mas voc, como mulher, deve comear a preparar-se para ter um lar e filhos. Dentro de um ou dois anos, eu talvez me aposente, e Carlo, naturalmente, ficar com o meu escritrio de advocacia. Vocs tero, ento9 uma situao segura. E deve haver filhos, com quem vocs possam desfrutar dela. 0 tempo dos gafanhotos chegar tambm para voc, minha querida, como j chegou para mim. ] ento que voc necessitar dos pequenos.

Lentamente, ela se ergueu na poltrona e lanou-lhe ao rosto a pergunta brutal:

- E a quem pertencero eles, papai? A Carlo9 A mini9 Ou a voc?

Dito isto, afastou-se rapidamente, deixando-o sozinho na biblioteca abobadada, com dois mil anos de sabedoria nas estantes e sem remdio algum contra o inverno e a desiluso.

Havia uma lenda, em San Stefano, segundo a qual o Irmozinho Francisco construra l, com suas prprias mos, a primeira capela. Os afrescos da igreja celebravam o acontecimento e, nos claustros dos frades, havia um jardim, com um relicrio em que se via o poverello de braos estendidos, a dar as boas-vindas s aves que

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vinham banhar-se no aqurio que tinha a seus p3. 0 ar fresco, a luz tnue, os nicos rudos que ouyiam eram os da gua no tanque e os ps com sandlias a caminhar ao longo das colunatas. Ali, sentado num banco de pedra, Carlo Renzi ouviu a confisso de Frei Bonifco.

Era, aquela, uma experincia purificadora, como a de observarse um homem a ler sua primeira acusao num tribunal ou a ouvir um mdico fazer o diagnstico de seu prprio mal incurvel. 0 velho tinha o rosto macilento, encovado, e os ombros cados, como se carregasse pesado fardo. Enquanto fazia sua penosa exposio, seus dedos, nodosos, atavam e desatavam a corda que lho servia de cinto.

- Eu j lhe disse antes, meu filho, que o que aconteceu hoje foi o ltimo captulo de uma histria muito longa. H muita gente envolvida nela. Eu sou uma delas. Cada um de ns tem uma parte da culpa do que hoje ocorreu.

Rienzi ergueu a mo, num gesto de advertncia.

- Detenhamo-nos aqui um instante, padre. Permita-me que lhe fale um pouco acerca da lei. Cometeu-se aqui, hoje, um assassnio. A primeira vista, foi um ato de vingana premeditado, motivado por uma injustia praticada, h muitos anos, contra Anna Albertini. No h dvida quanto ao ato, as circunstftncias ou o motivo. A acusao tem em mos um caso nitidamente definido. A defesa possui apenas dois argumentos: insanidade mental ou atenuao da pena. S dissermos que a acusada insana, teremos de prov-lo mediante testemunho psiquitrico, e o caso da moa dificilmente ser melhor do que se ela sofrer a pena normal por assassnio. Se pedirmos diminuio da pena, temos de escolher entre duas razes: provocio ou enfermidade mental parciaL Um tribunal no um confessionrio. A lei aceita de maneira limitada a culpa moral de um ato. Interessase pela responsabilidade, mas na ordem social, no na ordem moral.

- Sorriu e estendeu as mos, num gesto de splica. - Li suas conferncias, padre. Perdoe-me mas desta vez nossos papis esto trocados. Pelo bem de minha cliente, o senhor no deve conduzir-me a coisas irrelevantes.

0 velho digeriu lentamente o sentido de tais palavras; depois, fez com a cabea um gesto de aquiescncia.

- Todo ato de violncia, meu filho, uma espcie de loucura, mas duvido que o senhor encontre em Anna Albertini uma criatdra, legalmente insana. Quanto diminuio da pena, acho que posso ajud-lo, embora no saiba de que modo o senhor poderia usar o que eu lhe disser, - Deteve-se um momento e prosseguiu, lentamente: - H duas verses dessa histria. A primeira a que ser apresentada no tribunal, pois que fiz parte do registro oficial. A se-

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Rienzi ficou a fitar longamente a inscrio; depois indagou, vivamente:

- Algum mais viu isto?

- Quem poder sab-lo? - respondeu o velho, encolhendo os ombros, num gesto impotente. - Est a h tantos anos!

- Se isto for apresentado ao tribunal - disse Rienzi, em voz baixa - estaremos liquidados mesmo antes de comear. Arranje-me um racete e um cinzel... depressa!

As trs e meia da tarde, Landon despertou de uma inquieta modorra e encontrou Carlo Rienzi sentado em sua poltrona, a fumar um cigarro e a folhear uma revista com soturno desinteresse. Tinha os sapatos empoeirados e a camisa amarfanhada. Seu rosto parecia contrado e fatigado. Exps a Landon, com telegrfica brevidade, o que ocorrera em San Stefano e terminou, olhando-o de esguelha, com as seguintes palavras:

- A tem voc o que ocorreu, Peter. 0 dado- est lanado. Aceitei a causa.. Encontrei um par de associados dispostos a agir comigo e a apoiar-me nos tribunais de Siena. Eis a, pois, a minha primeira causa.

- Voc j falou com sua esposa ou com Ascolini?

- Ainda no - respondeu, com um sorrisinho enviesado. J tive muitas emoes, por ora. Deixarei essa comunicao para depois do jantar. Ademais, queria primeiro falar com voc. Poderia fazer-me um favor?

- Que espcie de favor?

- Profissional. Gostaria de t-lo, de maneira informal, como conselheiro psiquitrico. Gostaria que voc visse a moa, fizesse seu diagnstico e, depois, indicasse um possvel emprego de um testemunho mdico.

- Isso no fcil - respondeu Landon, franzindo, com ar de dvida, o sobrolho. - Suscita questes de tica, de polidez profissional e, mesmo, de minha prpria situao perante a lei.

- E se lhe assegurassem que uma consulta informal no consttura nenhuma transgresso?

- Ento eu pensaria no caso. Mas, de qualquer maneira, ficaria ainda devendo a seu sogro uma explicao. Afinal de contas, sou seu hspede.

- Podia esperar at que eu falasse com ele?

- Certamente. Mas h algo que eu gostaria de perguntar-lhe, Carlo. . . - Hesitou um momento e depois fez-lhe a pergunta nua e crua: - Por que este caso? Ao que parece, as desvantagens esto

todas contra voc. a sua primeira causa e h Pouqussimas probabildades de que voc a ganhe.

0 rosto de Rienzi afi:ouxou, abrindo-se num sorriso esplndido, infantil; depois, ele se tornou novamente srio.

. uma pergunta justa, Peter, e procurarei respond-la, com

. o j o fiz para mim. uma ingenuidade pensar-se que, na advocacia, a preeminncia se baseie somente em vitrias. A causa perdida , no raro, mais vantajosa do que a causa segura. Nova luz sobre antiiiomias clssicas, aplicaes controversas de princpios aceitos, uma estratgia que se aproveita do perene paradoxo existente entre legalidade e injustia - eis a os fundamentos da reputao em advocacia. Como v, o mesmo que ocorre na medicina. Quem adquire maior nomeada. . ..o sujeito que cura uma clica causada por mas verdes ou aquele que, numa massagem de dez segundos, faz reviver um corao que entrou em colapso? No existe cura para a morte, meu caro Peter, mas h uma grande arte em seu adiamento. Em direito, h uma arte correlata, quanto inspirao, e nisso se baseiam as grandes carreiras..A de Ascolini, por exemplo. E, assim o espero, a minha.

Landon sentu-se chocado p,lo frio cinismo da exposio. No podia acreditar que aquele fosse o nostlgico poeta que tocara Chopiu, o amante magoado cujo mundo explodira diante de seu rosto. Seus lbios pareciam jovens demais para que pudessem ter articulado aquele argumento; seu corao demasiado jovem para que pudesse ter-se rendido a uma to glida ambio. No obstante, com toda juftia, Landon teve de concordar com ele. Carlo estava disposto a vencer Ascolini, em seu prprio terreno, aquele estreito campo de luta onde o direito se define por contradio como um instrumento de preceitos ou um instrumento de justia. Carlo Rienzi s podia combater dentro dos termos tradicionais, despojando-se do sentimento corno se despojara das vestes comuns, envolvendo-se no hbito negro e desumano do inquisidor.

sabe Landon, porm, estava comprometido pela amizade, e precisava r at que ponto Rienzi compreendia a sua situao. De modo que o enfrentou de novo, asperamente, com uma nova pergunta:

- Voc compreende o que est dizendo, Carlo? Voc se comprorneteu com uma cliente... baseado apenas na esperana. No uma grande esperana, talvez, mas, de qualquer modo, uma esperana. P, uma relao pessoal que vai muito alm do formalismo. seia - No, Peter! - exclamou Rienzi, rpido e enftico. - BajIz-se nica e exclusivamente no formalismo, No posso formar um

0 moral quanto ao estado da alma de minha cliente. No posso

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entregar-me simpatia ou ao sentimentalismo, quanto ao que ela se refere. Minha funo despertar tal simpatia nos outros, conseguir julgamento favorvel por parte dos outros, inclinar todos os dispositivos legais a favor dela. Eis o que se pode exigir de mim. No posso admitir quaisquer outras exigncias. No sou sacerdote, nem mdico, nem guardio de mentes enfermas.

Se ele fosse assim to preciso e eloqente no prprio tribunal, talvez se pudesse esperar muito dele. Mas Landon perguntava a si prprio quantas dessas palavras pertenceriam ao discpulo, e quantas ao mestre. Indagava, tambm, de si mesmo, at que ponto Rienzi compreendia que a iseno de nimo do grande advogado ou do grande mdico era fruto de amarga experincia, de uma madura convico da inutilidade final de tudo. No estaria Rienzi cometendo, aofltregar-se assim to cedo iseno de nimo dos mais idosos, um erro to grande como o de render-se demasiado prontamente aos sentimentos compassivos da juventude? Mas ele era o espectador, e Rienzi o ator, de modo que deu de ombros e disse, em tom despreocupado:

- Eu, em seu lugar, no iria alm das botas. Contudo, se sua cliente for to bela quanto o diz, vocs formaro, sem-dvida, um par impressionante no tribunal.

0 rosto de Rienzi anuviou-se - e ele respondeu, pensativo:

- Ela como uma criana, Peter. Tem vinte e quatro anos, mas fala e raciocina como uma criana... de modo simples e imprevisvel. Duvido que ela venha a constituir uma grande ajuda para si prpria ou para mim.

- Voc vai alegar insanidade mental? Rienzi franziu o sobrolho:

- No sou especialista, mas duvido que possa faz-lo. Por isso que necessito de sua opinio, como profissional. Confesso que estou confiando, mais do que tudo, em circunstncias atenuantes, que espero descobrir em San Stefano.

- Tais investigaes podem ser dispendiosas.

- Frei Bonifcio encarregou-se de levantar os fundos necessrios para a defesa. Mas no me surpreenderia nada se eu tivesse de tirar de meu bolso uma parte das despesas.

- Voc est se entregando a um grande jogo, no lhe parece?

- 0 maior jogo de todos Valria - disse, com ar grave, Rienzi. - Mas estou resignado a isso, de modo que o resto no passa de bagatela. - Estendeu a mo: - Deseje-me boa sorte, Peter.

- Desejo-lhe toda a felicidade do mundo, Carlo. Que Deus o acompanhe.

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Rienzi lanou-lhe um olhar rpido, perquiridor:

- Acho que voc o diz de corao.

- De todo o corao. No sou um grande exemplo de dedicao, mas sei que, por maior que seja a sua queda, voc jamais cair das mos de Deus. Talvez voc precise lembrar-se disso algum dia.

- Eu sei - respondeu, pensativo, Rienzi. - Talvez precise lembrar-me disso, sobretudo esta noite.

Dito isto, afastou-se, e Landon sentiu por ele um pesar estranhamente pungente. Havia, atrs de si, palavras e, sua frente, uma batalha que se avolumava, mas Landon no conseguia afastar de sua mente a desagradvel convico de que estava lutando, com armas erradas, por uma causa errada - e que a vitria de Carlo Rienzi bem poderia constituir, afinal de contas, a mais sutil de todas as derrotas.

0 jantar de Ascolini comeou, de maneira sumamente cordial, com coquCtis na biblioteca. 0 velho estava afvel e eloqente; Valria afetuosa para com ele e atenciosa para com os hspedes, embora um tanto mais reservada do que a ocasio parecia exigir. Para Landon, a outra convidada foi uma agradvel surpresa. Achou-o decorativa, divertida e agradavelmente feminina. Ela nada-tinha da estudada languidez de suas primas italianas - nem nada sua frvola coqueteria, que prometia muito, mas que era, no raro, sovina, no momento de cumprir o prometido. Falava bem e ouvia com lisonjeiro interesse - e estava mais do que altura da irnica malcia do advogado.

Ascolini estava fazendo uma evidente comdia de seu papel de casamenteiro.

- Precisamos proporcionar-lhe alguma distrao, Landon disse, cordialmente. uma pena que voc no esteja no mercado f

dos casamentos ... Voc faria furor aqui na aldeia.

- O senhor proporciona aventuras aos solteires, em Siena? Ascolini riu e lanou a pergunta a Ninette Lachaise:

- Como que voce responderia a isso, Ninette?

- Diria que os solteires, em geral, sabem cuidar de si prprios.

- Isso uma lenda - respondeu, com um sorriso, Landon.

- Quase todos os solteires obtm o que procuram e acabam por descobrir que no era isso que queriam.

- Ns tambm temos as nossas lendas - comentou Ascolini com custico humor. - Nossas virgens so virtuosas, nossas esposas, satisfeitas, e nossas vivas, discretas. Mas o amor sempre uma loteria. Compra-se o bilhete e espera-se que no saia branco.

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No seja vulgar, papai - disse, calmamente, Valria.

0 amor um negcio muito vulgar - volveu o Dr. Ascolini. Ninette Lachaise ergueu sua taa, num brinde:

- s suas conquistas em Siena, Dr. Landon.

Ele bebeu com cautela. No havia coqueteria em seus olhos francos e castanhos, mas um leve sorriso se apegava aos cantos de sua boca. Mulheres bem-humoradas eram bastante raras em sua vida, e as inteligentes ou eram enfadonhas ou destitudas de beleza. Pensou que, com aquela, ele seria capaz de arriscar mais do que jamais ousara, quanto a confiana, intimidade e, talvez, amor, Viu que Ascolini o observava com um sorriso levemente divertido, e perguntou a si prprio se o velho no teria percebido os seus pensamentos. Foi ento que, de repente, Carlo entrou, impecavelmente trajado e, ao que parecia, de excelente humor. Preparou um drink para si mesmo e juntou-se conversa.

A mudana que se operou no ambiente foi imediata, surpreendente e, no entanto, curiosamente difcil de definir-se. Era como se a metade das luzes tivessem sido apagadas e eles se vissem, sbito, em rneio de um rsco claro de afabilidade. Ascolini tornou-se subitamente suave, e Valria adquiriu uma aura de prosaica ternura. A conversa pereleu sua agudeza e converteu-se em confortvel digresso. Era a espcie de conspirao que se pratica com os enfermos - a vaga euforia imposta aqueles a quem o impacto do mundo resultou deniosiado spero.

0 prprio Carlo parecia no o perceber, e Landon estava bastante disposto a admitir que sua percepffo talvez tivesse sido aguada pela fadiga e por aquela cautelosa desconfiana com que a gente encara unia situao nova, A verdade era que, desde o ltimo coquetel at a primeira xcara de caf, ele no conseguia lembrar-se de uma nica frase ou gesto significativos. Mas, depois de haver sido s,,,i,vi(lo o conhaque e de o criado ter-se retirado, Carlo Rienzi tornou conta do palco e as luzes tornaram a brilhar com todo o seu fulgor,

- Corti a permisso de nossos convidados, eu gostaria de fazer uma comunicao famlia.

Valria e o pai trocaram um olhar rpido e inquiridor - e Vatria revelou, com um alar de ombros, sua ignorncia do que se pass41v.l.

- -- No discuti isto com nenhum de vocs porque achei que se iratava de uma deciso particular - prosseguiu, calmamente. Mas, agora, que j a tomei, espero que a aceitem. Chamaram-me hoje aldeia, corno sabem. 0 prefeito foi assassinado por uma moa

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que morava antigamente aqui, Afina Albertini. uma longa histria, e eu no os molestarei, contando-a agora. 0 fim da coisa que Frei ]30nifcio me pediu para assumir a defesa da moa. E eu aceitei.

Ascolini e Valria fitavam-no, perplexos. Ele aguardou um momento e, em seguida voltou-se para Ascolini com um cumprimento que no deixava de ser elegante:

- Tive um longo aprendizado, sob a orientao de um grande mestre. Agora, tempo de que eu siga o meu prprio caminho. Estou renunciando ao mestre, a fim de cuidar de minhas prprias causas. - Meteu a mo no bolso e tirou um pequeno pacote, entregando-o ao velho. - Do estudante ao mestre, em sinal de agradecimento. Deseje-me felicidade, dottore.

Landon sentiu por ele, naquele momento, singular respeito, e rezou para que eles fossem amveis para com as deficincias de Carlo. Qualquer que fosse a base da tcita unio de ambos contra ele, a verdade que Carlo se portara como um homem.

Rienzi aguardou de p num poo de silncio, enquanto sua esposa e seu sogro permaneciam sentados, cabisbaixos, os olhos fixos na mesa. Ento, tambm ele se sentou, e Ascolini ps-se a abrir o pacotinho com diligente deliberao.

Finalmente, surgiu o presente: um relgio de ouro, de bolso, de delicado acabamento florentino, preso a uma corrente de fino lavor. Ascolini no revelou sinal algum de satisfao ou pesar; ficou apenas com o relgio na mo, enquanto vertia para o italiano o latim clssico da inscrio: Ao meu ilustre mestre, a quem esta lembrana e a minha primeira causa so dedicadas, de seu reconhecido discpulo.

Ascolini deixou o relgio cair, de modo que este ficou a oscilar COMO um pndulo, preso de sua corrente. Ainda tinha os olhos contrados e, ao falar, sua voz revelou seco desdm:

- Guarde-o, rapaz... ou mande-o a uma casa de penhor. Talvez precise dele mais cedo do que imagina.

Deps cuidadosamente o relgio sobre a mesa, afastou a cadeira e retirou-se da sala. Carlo esperou que ele sasse, depois voltou-se para Valria e disse, com toda a calma:

- E voc, cara? Que que tem a dizer?

Lentamnte, ela ergueu a cabea e fitou-o com olhos cheios de condenao.

Sou sua esposa, Carlo - respondeu, em voz baixa. - Aonde quer que voc v, eu tambm devo ir, Mas voc fez, esta noite, uma coisa terrvel. No sei se jamais poderei perdo-lo.

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Dito isto, tambm ela se retirou da sala, e Landon, Ninette e Rienzi ficaram a olhar uns para os ~ros, sobre os destroos do jantar. Carlo envolveu com a mo a clida e bojuda taa de conhaque e levou-a aos lbios. Depois, esboou um sorriso malicioso:

- Lamento que vocs tivessem de presenciar isso, mas era a nica maneira pela qual eu poderia assegurar a minha prpria coragem.

Depois, fez uma pausa e proferiu as palavras mais tristes que jamais tinham ouvido: e medo de

- estranho, sabem... Durante toda a vida, tiv

estar s, e, durante toda a vida, estive s sem que jamais o soubesse. Estranho!

a vida - comentou Landon, Densa-

- Durante toda a minh

tivo - lidei com mentes enfermas. Mas no creio que jamais haja me sentido to chocado.

Ninette Lachaise pousou-lhe sobre o pulso a mo fria e respondeu, calmamente: , Peter. Essa gente no

- A que est o seu erro, creio eu

doente; apenas egosta. A vida deles todos uma batalha, uns contra os outros. Cada um deles deseja demasiado em troca de muito pouco. Esto entrincheirados, como inimigos, em seu prprio egosmo.

- Voc uma mulher sensata, Ninette.

- Demasiado sensata, talvez, para que lucre com isso. Estavam, agora, no automvel dela, a meia milha dos portes da villa, onde trs luzes brilhavam, amarelas, e separadas urnas das outras, nas paredes claras, e o luar cintilava, frio; sobre as agudas pontas dos ciprestes. Quando Carlo saiu da sala de jantar, Landon se sentira, subitamente, sufocar pela atmosfera de hostilidade e, com desacostumada humildade, pedira a Ninette que lhe fizesse ainda companhia, durante um momento, antes da hora de recolher-se. Ela acedera calmamente e conduzira-o em seu carro, por uma estrada serpenteante, at um lugar em que a terra descia em precipitosa escarpa e os montes se alteavam, ao longe, em ngremes encostas, em direo das bruxuleantes e tardias estrelas.

No sentia necessidade de cautela em companhia daquela mulher, que no fazia nenhum drama daquele primeiro e intimo passeio noturno. Era-lhe grato, percebendo na maneira tranqila de sua conversa uma retribuio daquela gratido dos solitrios. Sentiu prazer em revelar-lhe um pensamento que o intrigara durante longo tempo: -5,

- abe qual a coisa mais rara do mundo, Ninette? Um hoMem ou uma mulher bastante sensatos, que saibam encarar o

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mundo frente a frente e aceit-lo, bom ou mal, tal qual ele se apresenta no momento. Quando as pessoas me procuram, ou sou chamado para v-Ias em prises ou hospitais, porque sou o ltimo marco em sua longa fuga da realidade. Essa fuga um sintoma de enferrnidade - e a doena, a mais sutil de todas: medo! Tm medo de perder o que possuem, tm medo da dor, da solido, de suas prprias naturezas, as obrigaes que qualquer vida normal acarreta.

- E qual a sua cura, Peter?

- s vezes, no h cura. s vezes, os mecanismos da mente recusam-se a funcionar, exceto dentro de uma trilha psictica. Quanto aos demais, procuro dar-lhes a mo e conduzi-los de volta, passo a passo, ao momento do terror primacial. Enquanto o estou fazendo, esforo-me por restituir-lhes a coragern, para que enfrentem esse terror. Se sou bem sucedido, eles comeam a sentir-se de novo bem. Se falho. . . - Hesitou um momento e ficou a fitar o escuro vale, onde um aglomerado esparso de luzes assinalava a aldeia de San Stefano. - Se falho, ento, a fuga recomea.

- E onde termina ela?

- Em coisa alguma. Na derradeira negao do ser, quando o mundo se contrai e adquire as dimenses do prpiio umbigo do indivduo; quando no h mais esplendor, nem profuso e quando at mesmo a capacidade de amor destruda. H ocasies em que

- ajuntou, em voz baixa - pergunto a mim mesmo se no estou destruindo em mim aquilo que procuro construir nos outros.

- No, Peter! - exclamou ela, e o calor de sua voz o surpreendeu. - Estive a observ-lo esta noite, junto de Carlo. Ele estava lhe despertando cuidados. Voc teve a delicadeza de mostrar-se gentil. Enquanto voc se conservar assim, no precisar ter receio.

- Mas de que modo renovar na gente aquilo que dispendemos com os outros?

Se eu pudesse estar certa de uma resposta a isso - disse, em voz baixa, Ninette - sentir-me-ia mais segura do que me sinto agora. Mas penso... no, acredito, mesmo, que esse dispndio tambm desenvolvimento ... que as flores caem para que o fruto nasa, e que tudo foi feito para ser assim desde o comeo. * Riu ligeiramente e retirou a mo. - J tarde e estou ficando sentimental. V para a cama, Peter, Voc um homem perturbador.

- Posso tornar a v-Ia?

- Em qualquer momento. Encontrar o meu nome na lista telenica.

- Acho que you deixar a villa amanh.

- E ir para onde?

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- Se no fosse por Carlo, voltaria para Roma. Mas prometi ajud-lo nesse seu caso, e no posso, agora, recuar. Talvez arranje acomodaes em Siena.

- Isso me alegra - comentou, simplesmente, Ninette Lachaise.

- D-me, tambm, um pouco de esperana.

Acercou-se dele e beijou-lhe, de leve, os lbios; mas quando Landon quis apert-la de encontro a si, afastou-o delicadamente:

- Volte para casa, Peter. E bons sonhos!

Ele ficou a observar, longamente, enquanto o velho automvel de Ninette descia, ruidosamente, a colina; depois, voltou-se e caminhou em direo dos portes da vilia, onde um porteiro sonolento lhe desejou um truculento Boa noite.

Dormiu mal aquela noite, despertando, no dia seguinte, cansado o mal-humorado, em meio ao pleno vero da Toscana. DeDOiS, porm, de barbear-se e tomar um banho, sentiu-se mais refrescao, mas no conseguia afastar de si o fardo de ser hspede de unia casa hostil. Desejaria ardentemente no ter-se comprometido nem com Ascolini, nem com Rienzi; mas o mal j estava feito, restando-lhe ao menos o consolo de um afastamento parcial. Fez as malas, com a inteno de partir logo aps a refeio matinal, e saiu para o terrao, a fim de gozar da fresca da manh.

Para sua surpresa, l encontrou Valria Rienzi. Houve mais do que um simples embarao na maneira pela qual ela o saudou:

- Levantou-se cedo, Peter.

- No dormi bem esta noite. E a manh est bonita.

Ela contraiu a boca, numa expresso de pesar e disse, em voz baixa:

- Alegra-me encontr-lo aqui. Quero que me desculpe pelo que a