51
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI JULIANA BROCK A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO SÃO JOSÉ 2007

A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

  • Upload
    ledang

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI

JULIANA BROCK

A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

SÃO JOSÉ

2007

Page 2: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

JULIANA BROCK

A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Professor Geyson José Gonçalves da Silva

SÃO JOSÉ

2007

Page 3: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

JULIANA BROCK

A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela aluna Juliana Brock, sob o título A Filiação

Sócioafetiva no Ordenamento Jurídico Brasileiro, foi submetida em __ de _________ de 2007 à avaliação pelo Professor Orientador e pela Banca Examinadora, e

aprovada com a nota_____

Área de Concentração: Direito

São José, ________ de 2007

Professor MSc.

Orientador Geyson José Gonçalves da Silva

Professor

Membro 1 da Banca

Professor

Membro 2 da Banca

Page 4: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito e o Orientador de toda e qualquer

responsabilidade acerca do mesmo.

São José, _________ de 2007

Juliana Brock

Aluna

Page 5: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

RESUMO

A presente monografia teve por finalidade analisar, por meio do método dedutivo, a filiação sócioafetiva como nova modalidade ao lado da filiação biológica, contanto, sem adentrar nas conseqüências trazidas pelo seu reconhecimento, apenas abrangendo a peculiaridade de alguns casos que vêm sendo admitidos doutrinária e jurisprudencialmente. A hipótese da pesquisa é a possibilidade da equiparação entre os filhos havidos pelos laços consangüíneos e os que se estabelecem através do vínculo afetivo. Para uma melhor compreensão do tema, buscou-se apresentar no primeiro capítulo uma visão histórica do instituto da família, desde as civilizações antigas, tais como no Direito Romano até uma análise no direito brasileiro, com as principais mudanças trazidas pela Carta Magna de 1988 e pelo atual Código Civil, dando-se, ainda, enfoque à importância do afeto nas relações familiares. No segundo capítulo, por sua vez, realizou-se uma análise da filiação no âmbito do direito de família, além de uma abordagem dos diversos tipos de filiação existentes em nosso ordenamento, além de uma breve análise da filiação sócioafetiva. Por fim, no terceiro capítulo, foi abordado o dever de observância do princípio do melhor interesse da criança pelos operadores do direito, além do instituto da posse de estado de filho e uma análise jurisprudencial do assunto, onde foram colacionados vários julgados referentes à filiação sócioafetiva. Da pesquisa realizada, conclui-se que a filiação sócioafetiva deve ser analisada sempre na busca do melhor interesse da criança, para que haja uma decisão justa e menos dolorosa para as partes.

Palavras-chaves: filiação. sócioafetiva. afeto.

Page 6: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 06

2 A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA ............................................................................. 08

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA .......................................................... 08

2.2 A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO ......................... 12

2.3 FAMÍLIA E AFETO ......................................................................................... 16

3 A FILIAÇÃO ...................................................................................................... 20

3.1 A FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO ........................................................ 20

3.2 TIPOS DE FILIAÇÃO ...................................................................................... 23

3.2.1 Biológica .................................................................................................... 24

3.2.2 Inseminação Artificial Heteróloga ............................................................ 25

3.2.3 Adoção ....................................................................................................... 26

3.2.3.1 Processo de Adoção ................................................................................. 28

3.2.3.2 Adoção à Brasileira ................................................................................... 30

3.3 A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO ........................................................................................................ 31

4 A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO ATUAL .......................................................................................... 34

4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE

DA CRIANÇA PELOS OPERADORES DO DIREITO........................................... 34

4.2 A POSSE DO ESTADO DE FILHO ................................................................ 35

4.3 POSICIONAMENTO DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DAS QUESTÕES

QUE ENVOLVEM A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA ................................................. 37

5 CONCLUSÃO ................................................................................................... 45

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 47

Page 7: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

6

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho, denominado A Filiação Sócioafetiva no ordenamento

jurídico brasileiro, tem como finalidade analisar a filiação sócioafetiva como nova

modalidade ao lado da filiação biológica, sem adentrar nas conseqüências trazidas

pelo seu reconhecimento, visando apenas abranger as peculiaridades dos casos

que vêm sendo admitidos doutrinária e jurisprudencialmente, além de demonstrar a

real existência de arcabouço constitucional a fundamentar a sua aplicação. A

hipótese da pesquisa é que de que seja possível a equiparação dos filhos havidos

pelos laços de sangue àqueles que estabeleceram a relação de filiação com base no

vínculo afetivo.

As relações de afeto existentes entre pais e filhos apresentam incontáveis

problemas para o ordenamento atual, mormente por estarem inseridas no campo

sentimental, fato este que, embora já exista desde os primórdios do instituto familiar,

somente agora vem sendo analisado e admitido pelo Direito de Família.

O instituto familiar, no decorrer da sua evolução, sofreu profundas mudanças

jurídicas, sociais e científicas. Nos dias atuais a família possui valores diferentes. A

conquista da mulher pela sua independência acabou por gerar um maior número de

divórcios, bem como que a existência de exames técnicos para verificar a

paternidade real acabou por revelar situações que sempre existiram, como aquelas

em que crianças são concebidas pela infidelidade do marido ou da esposa com uma

terceira pessoa, ou, por exemplo, os casos em que um indivíduo registra filho alheio

como seu.

Para uma compreensão melhor do tema, será visualizada, no primeiro

capítulo, a evolução histórica da família, desde as civilizações antigas, inclusive no

Direito Romano, até uma análise mais profunda no direito brasileiro, com as

mudanças que foram trazidas pela Carta Magna de 1988 e pelo atual Diploma Legal,

dando-se enfoque, ainda, à importância do afeto nas relações familiares vistas sob o

prisma jurídico.

No segundo capítulo, será analisada a filiação no âmbito do direito de família,

desde o tratamento dado pelo Código de 1916, bem como as importantes mudanças

advindas na Carta Magna de 1988 e no atual Diploma, abordando ainda os diversos

Page 8: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

7

tipos de filiação existentes em nosso ordenamento e uma breve análise da filiação

sócioafetiva em nosso ordenamento.

Enfim, no terceiro capítulo, será abordado o dever de observância do princípio

do melhor interesse da criança pelos operadores do direito, o instituto da posse de

estado de filho e uma análise jurisprudencial do assunto, colacionando-se julgados

referentes a filiação socioafetiva, a fim de possibilitar acertada percepção acerca do

tratamento jurisprudencial dado nos dias atuais a tais questões.

Utilizar-se-á, no presente trabalho, o método explicativo. A técnica de

pesquisa é bibliográfica. As citações serão efetuadas a partir do sistema autor/data.

Page 9: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

8

2 A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA

A família vem sofrendo inúmeras transformações em nossa sociedade com o

passar dos tempos. Em cada civilização ela passa por grandes mudanças,

moldando-se aos costumes e desenvolvendo-se junto aos povos. Os homens

acostumaram, há muito tempo, a reunirem-se em torno de algo ou alguém, para

constituir uma família, o instituto social mais antigo já reconhecido. Entre as teses

existentes, algumas falam que nas civilizações antigas não havia regras para as

uniões, sendo utilizada a poligamia pois inexistiam vínculos de exclusividade; e a

poliandria, onde uma só mulher possuía vários homens. Outros estudiosos,

entretanto, defendem a monogamia do homem. O que pode-se afirmar é que o

instituto familiar está em sempre constante evolução, o que ocasiona tantas

controvérsias entre doutrinadores. (GUIMARÃES, 2001, p. 08; RIBEIRO, 2002, p.

03).

Entre os povos orientais e selvagens da Austrália e América, estudos

concluíram a teoria de que nas sociedades organizadas em tribos havia a poliandria

e o matriarcado, onde o fator determinante da família era a figura materna, não se

conhecendo os pais das crianças. O homem exercia apenas a função de pai e

marido, sendo subordinado ao poder da mulher (GUIMARÃES, 2001, p. 08).

Coulanges (2004, p. 36-37) leciona que no direito romano a união dos

membros da família antiga era estabelecida pela religião. Mais do que uma

associação natural, era considerada uma associação religiosa. Não era levado em

conta como alicerces da família a geração familiar, tampouco o afeto. Não que tais

sentimentos não existissem, porém, frente ao direito, de nada valiam. O poder

paterno era considerado algo primordial, sendo considerado por historiadores como

o principal fundamento da família romana.

O pater famílias era tão respeitado e temido como chefe absoluto daquelas

pessoas que chegava ao ponto de ficar com todas as finanças auferidas pelos

membros de sua família. Ele exercia poderes absolutos sobre sua mulher e filhos,

Page 10: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

9

inclusive direitos de vida e morte. Já sua mulher, “era considerada inabilitada para

os negócios da vida forense” (GUIMARÃES, 2001, p. 11-12).

O conceito de família era independente do vínculo consangüíneo, pois o pater

famílias exercia sua autoridade sobre todos os membros da família, inclusive sobre

mulheres que se casassem com seus descendentes. Nesta época, existiam em

Roma duas espécies de parentesco: a agnação, que vinculava os que fossem

subordinados ao mesmo pater, independente de vínculo consangüíneo; e a gens,

considerada como um “agregado das famílias oriundas de um tronco comum”. Esta

última tinha uma função importante na política e quanto à sucessão (WALD, 2002, p.

09-10).

Conforme foi evoluindo, a família romana passou a dar maiores poderes à

mulher e aos filhos, acabando com o direito de vida e morte antes dado ao pai

(WALD, 2002, p. 10).

O casamento foi a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica. A

mulher, em seu papel de filha, participava dos atos religiosos de seu pai, porém

depois de casada, só participaria da vida de seu marido, cortando todos os laços de

nascimento e ligações religiosas que possuía com sua família consangüínea. Isto se

deve ao fato de que, nas famílias antigas, cada qual possuía seu próprio Deus,

orando e invocando em todos os momentos por ele. Era um ato muito sério para a

mulher, pois a partir daquele momento, ela iria viver sob o teto de uma nova família,

que teria seu próprio Deus, então não poderia invocar pelos dois, vindo assim a

extinguirem-se os laços anteriores. Também o era para o homem, que colocava em

sua casa uma estranha que iria conhecer todos os ritos religiosos de sua família, tão

preciosos naquela época (COULANGES, 2004, p. 38).

A cerimônia do casamento era realizada em casa, pois seria o “deus

doméstico” da família que comandava o ato. Para os gregos, dividia-se a cerimônia

em três etapas, sendo a primeira chamada de èggúesis (era realizada na casa do

pai da moça, onde este pronunciava palavras sacramentais que fariam com que ela

se desligasse completamente de sua antiga família); a segunda, pompé (simbolizava

a passagem de uma casa para a outra, sendo realizada no caminho. A moça seguia

de carro, com o rosto coberto por um véu e uma coroa na cabeça. Suas vestimentas

eram brancas, como a de todos atos religiosos. Então seu marido a carregava no

colo na entrada da casa, pois ela não podia entrar com seus próprios pés naquele

momento); e o último ato era o télos, que acontecia no lar do marido, onde o casal

Page 11: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

10

orava e após dividia seus alimentos. Parecido com este, era o casamento romano,

que dividia-se em traditio, deductio in domum e confarreatio, e os atos eram quase

idênticos, mudando apenas alguns detalhes (COULANGES, 2004, p. 40- 41).

O casamento era visto como um segundo nascimento, pois conforme os

relatos de Coulanges (2004, p. 42), a mulher casada já não poderia mais prestar

homenagens aos seus antepassados, mas sim aos de seu marido, pois aqueles

passavam a fazer parte de sua vida, como se fossem seus verdadeiros parentes.

O homem, após a sua morte, “se reputava um ser feliz e divino, mas havendo

a condição de que os vivos lhe oferecerem sempre a refeição fúnebre”. Todavia,

caso as oferendas fossem interrompidas, “o morto cairia em infelicidade”, passando

à categoria de demônio (COULANGES, 2004, p. 44).

Daí a necessidade de se conceber um filho, a fim de garantir uma eternidade

feliz e em paz. Em Atenas, os próprios magistrados deveriam zelar pelas famílias

para que não se extinguissem. Havia uma grande preocupação com estes rituais

fúnebres, pois acreditavam que sua felicidade durasse tanto quanto a de seus

antepassados. Justamente por isso, segundo as “leis de Manu”, o filho primogênito

era gerado para o estrito cumprimento de seu dever de perpetuação. E,

consequentemente, o “grande interesse da vida humana está em continuar a

descendência para com esta se continuar o culto” (COULANGES, 2004, p. 45).

O celibato era considerado inaceitável, pois seria uma maldição não apenas

para os familiares, como também para o próprio homem que não se casava, pois

como não teria filhos, então ninguém cuidaria de suas ofertas fúnebres, sendo

infelizes eternamente (COULANGES, 2004, p. 46).

Importante salientar que naquela época não bastava ser gerado um

descendente. Havia necessidade de que esse filho fosse fruto de um casamento

religioso, pois se não fosse, era tratado como bastardo, e não poderia desempenhar

o papel de filho legítimo que a religião exigia. Além do fato de que devia ser um

homem, pois a mulher, ao se casar, passaria a pertencer à família e religião de seu

marido, extinguindo-se todos os laços com sua família anterior, e

consequentemente, não podendo dar continuidade aos cultos (COULANGES, 2004,

p. 47-48).

Por ser o casamento uma obrigação com o único fim de procriação, não do

prazer, se a mulher fosse estéril facultava-se o divórcio, podendo o casamento ser

anulado. E este direito era considerado pelos antigos quase uma ordem superior,

Page 12: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

11

não faculdade. Tanto que alguns sacrificavam todo amor e afeto que sentiam por

suas mulheres para seguirem esta regra imposta àquela época. Se fosse o marido

estéril, este era substituído por um irmão ou parente, que apenas servia para

conceber a criança, pois quando esta nascia, era considerada filha do marido e

continuava a vida daquela família (COULANGES, 2004, p. 47-48).

Saliente-se, também, que o direito de propriedade desempenhou papel de

suma importância para a família antiga. Conforme sustenta Coulanges (2004, p. 66-

67), o direito de propriedade, naquela época, foi muito mais completo e absoluto em

seus efeitos do que nas sociedades atuais, que se baseiam em princípios diversos.

Não eram as leis, mas a própria religião que criou o direito de propriedade entre

eles. Cada família possuía seu próprio lar, com seus deuses únicos, que eram

adorados e protegiam somente aos que estavam naquele lar, tornando-se a

propriedade tão inerente à religião doméstica, que a família não poderia perder nem

abandonar a sua posse.

Com o passar dos tempos, já no Império, os poderes do pater familias foram

amenizados, sendo que a mãe poderia, sob autorização, ter a guarda dos filhos.

Também passou a ter direito sucessórios na herança do filho. E este na sua. Os

vínculos de sangue passaram a ser aceitos pela grande maioria. A mulher torna-se

independente ao ponto de participar da vida social e política. Por tais motivos, esta

fase ficou conhecida como a da dissolução da família romana, devido aos grandes

divórcios ocorridos (WALD, 2002, p. 11).

Leciona Guimarães (2001, p. 12) que a autoridade tão indiscutível do pater

famílias começou a diminuir por influência da própria Igreja Católica, que começou

instituindo uma “concepção de igualdade absoluta de direitos e deveres entre os

cônjuges”. Na questão patrimonial, influenciou ao criar a comunhão de bens,

contrariando a idéia até então absoluta da independência econômica da mulher para

com seu marido.

No período correspondente à Idade Média, o casamento era considerado

indissolúvel, e para validar o casamento, bastava o consenso do casal e que as

relações sexuais fossem voluntárias, não sendo necessário o consentimento dos

pais. Com a separação, não dissolviam-se os vínculos entre o casal, porém não

seria mais necessário que coabitassem (WALD, 2002, p. 13-15).

No fim da Idade Média, principalmente após a Reforma, Houve um conflito

contra a Igreja. Os protestantes não aceitavam mais que a matéria correspondente

Page 13: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

12

ao direito familiar fizesse parte da Igreja, e sim do Estado, pois consideravam o

casamento um simples ato da vida civil, não um acontecimento sagrado. Em

respostas aos protestos, a Igreja realizou o Concílio de Trento, reafirmando o caráter

sagrado do matrimônio, dando competência exclusiva à Igreja, e exigindo a

publicidade do casamento, por ser este um ato solene (WALD, 2002, p. 15).

No Renascimento, o Estado voltou a exigir o direito de legislar a respeito da

questão. Acabaram por elaborar uma legislação própria sobre o direito de família,

que muito influenciou países católicos. Um acordo entre ambos decidiu que os

casamentos deveriam ser públicos e na presença de testemunhas, atos que são

necessários até hoje. Aos poucos, também passou a ser aceito o casamento civil,

que é o mais utilizado ainda hoje (WALD, 2002, p. 16-17).

2.2 A FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

Analisando-se a evolução da família brasileira, verifica-se que esta viveu

grande período sob a forma patriarcal herdada do direito romano, que priorizava a

família, a religião e a propriedade, tendo tal modelo perdido força em razão do

cristianismo, que regulava o instituto familiar, restringindo a sua formação apenas

aos pais e filhos.

No Brasil, em 20/10/1.823, passou a ser utilizada as Ordenações Filipinas

enquanto não se organizasse um Código. Somente em meados do século XIX,

surgiu uma legislação especial sobre família aos não católicos. A Lei n. 1.144 de

11/09/1.861 dava efeitos civis ao casamento religioso, desde que registrados, entre

os não católicos. Com o Decreto n. 181 de 24/01/1890, passou a considerar-se pré-

requisito para a validade do casamento, a realização deste perante autoridades

civis. Além de permitir a separação de corpos quando houvesse justa causa (WALD,

2002, p. 19-21).

Desde que deixou de ser uma colônia para tornar-se independente, havia no

Brasil um anseio de se editar um código civil, para dar ares de “nação civilizada a

então recém liberta colônia”. Eis que, em 1º de janeiro de 1.916, foi criada a Lei nº.

3.071, o primeiro Código Civil Brasileiro, influenciado pelo Código Francês de 1.804,

que entrou em vigor em 1917, e que tinha como 1º artigo, o intuito de regular “os

Page 14: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

13

direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às

suas relações” (FREITAS, 2004, p. 15-16).

Segundo Boeira (1999, p. 19-20), “família é o conjunto de pessoas que

descendem de tronco ancestral comum, ou seja, unidos por laços de sangue”. Na

época da vigência do Código de 1.916, a família era vista como uma unidade de

produção, havia a necessidade de muitos filhos, para aumentar a força do trabalho,

quase rural. Esta era comandada pelo homem, que detinha o poder e autoridade,

enquanto a mulher e os filhos ocupavam uma posição de subordinação.

Entretanto, o legislador deste Código praticamente ignorou a família ilegítima,

e quando a citava, era apenas com o propósito de proteger a legítima. Havia uma

grande hostilidade na relação entre homem e mulher extraconjugalmente. Os filhos

concebidos fora da relação conjugal não poderiam ser reconhecidos. Houve um

retrocesso em relação à antiga legislação vigente neste aspecto. Havia distinção

entre filho legítimos e ilegítimos. O casamento civil, conhecido por ser a única

maneira legítima de constituir família, durou de 1890 a 1937. Então, neste ano de

1937, a Constituição promulgada nesta época, declarou que teriam efeitos civis o

casamento religioso, norma esta que se manteve na Constituição de 1946 (BOEIRA,

1999, p. 19-20).

Na Constituição de 1.937, o filho natural foi o mais beneficiado, sendo que

após, a Lei n. 883, de 21/10/1949, passou a permitir o reconhecimento de filhos

adulterinos somente após dissolvido o vínculo matrimonial (WALD, 2002, p. 22).

Porém, com as constantes mudanças sociais ocorridas na sociedade

brasileira no século XX, havia a necessidade de uma mudança no Código vigente

àquela época. Então, em 31 de março de 1.963, foi entregue pelo professor Orlando

Gomes ao então Ministro da Justiça, o projeto de reforma do Código Civil, que tinha

como principais finalidades tornar o Código mais técnico e adequado à sociedade

daquela época, entretanto tal mudança não foi efetuada logo em seguida, nem por

este professor (FREITAS, 2004, p. 21-22; BOSCARO, 2002, p. 62).

Com esta mudança proposta por Orlando Gomes, o casamento religioso

passaria a ter o reconhecimento de sua eficácia civil facilitado, bastando ao casal

apresentar os documentos necessários para obter o registro civil. Foi criada uma

diferença entre incapazes e sem legitimidade para casar. Eram incapazes as

mulheres menores de quatorze anos e homens menores de 16 anos, além de

insanos mentais. Já os que não possuíam legitimidade eram os ascendentes e

Page 15: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

14

descendentes, sogro/sogra com genro/nora, padrasto e enteada, irmãos, adotantes

com cônjuges do adotado ou o inverso, e entre adotado e filhos do adotante

(FREITAS, 2004, p. 24-25).

Outro aspecto importante foi quanto à igualdade dos cônjuges. Houve uma

emancipação da mulher, que começou a contribuir com o sustento de sua família ao

poder trabalhar fora. Destacou que o pátrio poder agora seria dividido, sendo

exercido conjuntamente, e gerando direitos e obrigações à ambos os lados.

Também que a administração dos bens dos filhos menores e o domicílio conjugal

seriam decididos através de acordo, cada cônjuge administraria livremente seus

bens particulares e ambos seriam responsáveis pelo sustento da casa e da

educação dos filhos. A família ilegítima passou a ser protegida pela legislação civil

(FREITAS, 2004, p. 26-28).

Em relação à adoção, somente os menores de 07 anos e com pais falecidos

ou desconhecidos poderiam ser adotados. Os adotantes não poderiam ter filhos e ao

adotado eram conferidos todos os direitos e deveres que o filho legítimo possuía.

Além do que, a legitimação não poderia ser revogada. Foi afastado o que dizia no

antigo Código, de que o filho adotivo só receberia metade da herança cabível aos

legítimos (FREITAS, 2004, p. 28-29).

A Lei n.6.515, de 26/12/1977 (BRASIL, 1977) é considerada como uma das

mais importantes, pois regulou casos de dissolução do casamento e da sociedade

conjugal, que antes eram considerados indissolúveis. O desquite foi substituído pela

expressão separação judicial, o regime da comunhão universal foi substituído pelo

da comunhão parcial de bens, os filhos de qualquer origem passaram a ter direitos

iguais na herança. Resumindo-se, foi uma grande mudança nos valores da

sociedade (WALD, 2002, p. 23-24).

Até o advento da Carta Magna de 1988 muitas mudanças já haviam ocorrido

no tratamento da filiação, no entanto, a mais importante foi aquela advinda com esta

Constituição (1988), a qual alargou o conceito de família e passou a proteger

igualmente todos os seus membros, que antes eram tratados de uma forma um

tanto quanto desigual. Após isto, todas as legislações com ditames contrários ao

texto constitucional, ou seja, todas as normas que determinavam privilégios e

discriminações entre os filhos foram revogadas, pois afrontavam o princípio da

igualdade.

Page 16: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

15

Esta Constituição passou a abranger outras instituições além daquela advinda

do casamento civil ou religioso com tais efeitos. Ela passou a proteger

igualitariamente todos os membros da família, inclusive os descendentes de cada

vértice da união (OLIVEIRA, 2000, p. 23, 24).

Os pontos mais importantes estão dispostos no art. 226 da Constituição de 88

(BRASIL, 1988), elencados abaixo:

Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

O ordenamento constitucional ampliou a conceituação da família em seu

artigo 226, aceitando-a independente de sua instituição. Assim, deixou o casamento

de ser imprescindível para a legitimação da família, passando o Estado a se

preocupar com a importância da família, independente de haver um casamento ou

não, garantindo-lhe proteção e direitos (RIBEIRO, 2002, p. 10; OLIVEIRA, 2000, p.

29).

Num país, existem duas leis consideradas fundamentais: a Constituição, que

“prossegue, estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser

humano e da sociedade civil”; e o Código Civil, que deve cuidar, preferencialmente,

das normas já existentes e de suma importância, como também de novas regras que

nascem junto às inovações trazidas com as mudanças sociais (FREITAS, 2004, p.

31).

Adveio, então, o novo Código Civil de 2002, que incluiu disposições acerca de

leis especiais (tais como separação e divórcio, união estável e reconhecimento de

Page 17: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

16

filhos havidos fora do casamento entre outras), entretanto não abordou certos temas

polêmicos e pendentes de regulamentação.

O pátrio poder deixou de ser relativo somente a direitos e passou a ter

também deveres. A expressão pátrio poder foi substituída por poder familiar, mais

condizente com a realidade. Quanto à igualdade entre cônjuges, o homem que antes

era considerado o responsável pela família, sustendo e protegendo, passou a dividir

esta tarefa com sua mulher, que também tem que sustentar e educar seus filhos,

independente de qual for o regime patrimonial do casal. E sobre o regime de bens,

criou-se o regime parcial de bens com participação final nos aquestos, mudando

completamente a situação quanto aos direitos sucessórios (FREITAS, 2004, p. 36).

2.3 FAMÍLIA E AFETO

Segundo Boeira (1999, p. 21-22), a sociedade classificava as uniões em

legítimas e ilegítimas. As primeiras eram as matrimonializadas, onde as relações

sexuais eram legalizadas. As segundas (ilegítimas) eram desconhecidas pela lei e

reprovadas pela Igreja. Os filhos advindos destas uniões eram distintos, sendo

discriminados os que nasciam de relações ilegítimas.

Porém, aquele modelo de família que possuía caráter patriarcal, onde o pai

que era a autoridade superior, e seu modo de constituição advinha do casamento,

começou a ruir. Devido a grandes mudanças na sociedade, política, economia e

principalmente mudanças culturais, como a inserção da mulher no mercado de

trabalho, começa a deixar de existir a família antes patriarcal e em seu lugar surge a

família moderna. Esta possui como núcleo principal o afeto, solidariedade e

compreensão, invés de subordinação e trabalho forçado (BOEIRA, 1999, p. 21-22).

Leciona Venosa (2004, p. 20) a respeito da família moderna que atualmente a

tendência é a mãe ficar cada vez menos com seus filhos. Devido ao trabalho e as

atribuições que são exigidas, estes passam a maior parte de seu tempo em creches

e sendo educados por professores. Não há mais a questão da religião da maneira

como era anteriormente. A assistência aos menores é dada na maior parte pelo

Estado. Eis aí algumas das grandes mudanças da trazidas para a família pela vida

moderna.

Page 18: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

17

Diz o princípio do respeito da dignidade da pessoa humana, que está em

nossa Constituição, no artigo 1º, III; que a base da comunidade familiar tem por

parâmetro o afeto, desenvolvimento e realização de seus membros. A tendência é a

organização familiar perder o aspecto de organização e hierarquia, para fundar-se

nas relações de afeto entre estes. Há uma mudança nos conceitos ultrapassados,

que atende às exigências da sociedade, que está sempre em constante mudança

(DINIZ, 2006, p. 22-23).

A respeito da importância da família, leciona Oliveira (2000, p. 26):

Por ela se reúnem o homem e a mulher, movidos por atração física e laços de afetividade. Frutifica-se o amor com o nascimento dos filhos. Não importam as mudanças na ciência, no comércio ou na indústria humana, a família continua sendo o refúgio certo para onde acorrem as pessoas na busca de proteção, o lugar seguro para a realização de seus projetos de felicidade pessoal (a casa, o lar, a prosperidade e a imortalidade na descendência).

O papel da família, atualmente, tem como alicerces o afeto e o apoio

emocional aos seus membros. Aquele modelo que vinha dos gregos e romanos, deu

espaço para esta nova família, fundada em novos valores e princípios. A partir do

momento que acabou a discriminação entre os filhos e aceitou-se a igualdade entre

os cônjuges, estes obtiveram novos deveres e obrigações mútuas em seus lares. A

família passou a ser o “conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio, da

união estável, ou ainda, da comunidade formada por qualquer dos pais e

descendentes, ligados pelo vínculo do afeto, independente de existir casamento”.

Passa então a afetividade a ter considerável valor jurídico, e onde houver afeto

poderá existir uma família (FREITAS, 2004, p. 46-47).

A respeito da família no novo Código Civil e da importância dada às relações

de afeto, diminuindo assim a necessidade de formalidades, leciona Fachin (2003, p.

01), em sua obra Elementos Críticos à luz do Novo Código Civil brasileiro:

A vigência do novo Código Civil e o principiar do século XXI testemunham tempos frutíferos de inquietude, denunciam dilemas expostos na fratura social, arrostam a exclusão econômica e jurídica e apontam para novas situações sociais. Eis o nó em debate pela contemporaneidade, cujos elos se projetam da sociedade para o ninho familiar. Afastando-se dos laços formais, são valorizadas as relações de mútua ajuda e afeto, com índices cada vez maiores de uniões não matrimonializadas.

Mais adiante, explica o autor que existe uma distância muito grande entre

tornar-se conceitualmente família e realizar-se como tal. O desfecho do conceito de

família-poder para a família-cidadã trata também de um programa que deve ser

Page 19: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

18

construído com atenção especial ao valor jurídico do afeto, tema este que ganha

cada vez mais espaço na doutrina e na jurisprudência (FACHIN, 2003, p. 06).

Observa-se que o Direito Brasileiro contemporâneo tem apontado novos

elementos para legitimar a família, casamento e filho. Aqueles abordados

anteriormente quando do Código Civil de 1.916 dão lugar aos atuais, como a

igualdade e o afeto. Assume-se uma realidade familiar na qual os vínculos de afeto

se sobrepõem à verdade biológica, sendo insuficiente somente os vínculos formais

de sangue. A igualdade se impõe como “elemento decorrente do respeito à

dignidade da pessoa humana”. O vínculo biológico cede espaço ao afetivo, onde a

paternidade é reconhecida pelo amor dedicado à criança (FACHIN, 2003, p. 17-18).

Colhe-se das lições de Diniz (2006, p. 13):

Deve-se, portanto, vislumbrar na família uma possibilidade uma possibilidade de convivência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na monoparentalidade. É ela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano.

A legislação que trata das relações familiares emprega o termo família em

vista dos seguintes critérios: efeitos sucessórios e alimentares, princípio da

autoridade, implicações fiscais e previdenciárias (DINIZ, 2006, p. 11).

Pelo critério sucessório a família compõe-se dos indivíduos chamados por lei

a herdar um dos outros. Compreende todos os parentes em linha reta (ascendentes

e descendentes), os cônjuges, os companheiros e colaterais até o quarto grau.

Quanto aos efeitos alimentares, consideram-se família os ascendentes, os

descendentes e os irmãos (DINIZ, 2006, p. 11).

Segundo o critério da autoridade, a família fica restrita aos pais e filhos, eis

que nela se manifesta o poder familiar (DINIZ, 2006, p. 11).

No que tange ao critério fiscal, para efeito de imposto de renda, a família

compreende os cônjuges, filhos menores, maiores inválidos ou que cursam

universidade às custas dos pais, até a idade de 24 anos, “filhas solteiras e

ascendentes inválidos que vivam sob a dependência do contribuinte, filho que não

more com o contribuinte, se pensionado em razão de condenação judicial” (DINIZ,

2006, p. 11).

Referente aos efeitos previdenciários, a família incorpora o casal, os filhos até

21 anos (desde que não emancipados) ou inválidos, enteados e menores sob tutela

Page 20: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

19

(sem bens suficientes para seu sustento e educação), abrangendo convivente do

trabalhador, inclusive em concorrência com os descendentes (DINIZ, 2006, p. 12).

O legislador deve estar atento às necessidades de alterações legislativas que

precisam ser efetuadas com o passar do tempo. Não pode o Estado deixar de

cumprir sua obrigatória função social de proteção à família, sob pena dele mesmo

desaparecer, “cedendo lugar ao caos”. Isto porque sua intervenção na família é

indispensável, embora deva observar os direitos e garantias fundamentais,

considerando-se que é proibida a invasão na vida privada do cidadão (VENOSA,

2004, p. 24).

O Direito de Família é matéria delicada, que exige o máximo de cuidado e

dedicação por parte dos seus operadores, que devem estar atentos à evolução

social de seu tempo, e necessitam de uma mente aguçada para absorver

prontamente as “modificações e pulsações sociais que os rodeiam”, a fim de

oferecer solução apropriada e justa aos anseios da sociedade (VENOSA, 2004, p.

27).

Para dirimir conflitos do âmbito familiar acertadamente, é essencial o

conhecimento da sociedade e do meio no qual litigam as partes. No nosso país não

há como solucionar de uma só maneira problemas familiares de mesma natureza

ocorridos no meio rural e no meio urbano, ou na região norte e na região sul, etc

(VENOSA, 2004, p. 27).

Assim, nota-se que esta nova família é estruturada nas “relações de

autenticidade, afeto, amor, diálogo e igualdade”, sobrepondo-se a verdade

sociológica acima da biológica como base principal, e a família sendo construída

todos os dias “através dos vínculos de afetividade entre seus membros”. A noção do

afeto neste novo sentido da família “é a principal razão para a sua constituição,

desenvolvimento e sobrevivência” (BOEIRA, 1999, p. 27-28).

Page 21: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

20

3 A FILIAÇÃO

3.1 A FILIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO

O termo filiação deriva do latim “filiatio” e é empregado juridicamente para

definir a relação de parentesco que se estabelece entre pais e filhos, designada

como maternidade e paternidade. É um fenômeno bastante complexo, sendo

considerado por cientistas “uma forma de perpetuação da espécie”, porém é muito

maior que isso, compreendendo também uma relação de direito (ALBUQUERQUE,

2004, p. 35-36; AMIN, 2004, p. 181).

Segundo Venosa (2004, p. 275), “a filiação compreende todas as relações, e

respectivamente sua constituição, modificação e extinção, que têm como sujeitos os

pais com relação aos filhos”.

Ainda, Garcez (2003, p. 229-230), “filiação é a relação que o fato da

procriação estabelece entre duas pessoas”. Em relação ao filho, chama-se filiação;

ao pai, paternidade, e à mãe, maternidade. A maternidade verifica-se de uma

maneira mais simples, pelo parto e outros sinais mais óbvios, todavia, a paternidade

presume-se pelo fato do casamento, por ser o marido de sua mãe.

No Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916) adotava-se o termo família legítima,

no sentido daquela formada pelo casamento, sendo que a família não provinda

desta maneira sofria um grande preconceito, não havendo direito algum aos filhos

que proviessem destas relações extra-matrimoniais. Classificava-se a família, além

da legítima, em ilegítima e adotiva (VENOSA, 2004, p. 276).

Eram considerados legítimos os filhos havidos na constância do casamento,

ainda que anulado, ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé. O casamento dos pais

subseqüente ao nascimento dos filhos também possuía o condão de legitimá-los

(BRASIL, 1916).

Os rebentos designados ilegítimos originavam-se da união de duas pessoas

sem o vínculo do matrimônio, classificando-se em naturais e espúrios. Os filhos

naturais eram aqueles nascidos do casal que, à época da concepção, não portavam

qualquer impedimento pra contrair matrimônio (VENOSA, 2004, p. 269-270).

Page 22: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

21

De outra parte, os espúrios eram oriundos da união de pessoas que estavam

absolutamente impedidas para casar. A filiação espúria subdividia-se em adulterina

(quando o casal estava impedido pelo fato de um ou ambos estarem casados) e

incestuosa (impedimento em face de parentesco). A filiação adotiva, por sua vez,

estabelecia o vínculo jurídico através do ato de vontade do adotante (VENOSA,

2004, p. 270-279).

A adoção “visava proeminentemente à pessoa dos adotantes, ficando o

adotado em segundo plano”, eis que era destinada a dar prole àqueles que não

podiam ter filhos. Tal instituto realizava-se por escritura pública, sem interferência do

Poder Judiciário. O parentesco resultante da adoção limitava-se ao adotante e ao

adotado, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais (BRASIL, 1916). Tal relação

não envolvia a sucessão hereditária quando o adotante tivesse filhos legítimos,

legitimados ou reconhecidos (BRASIL, 1916).

Por ter sido elaborado em uma época de valores essencialmente patriarcais e

individualistas, o Diploma Legal de 1916 “centrava suas normas e dava

proeminência à família legítima”. O legislador do início do século passado

marginalizou a família não constituída pelo casamento, bem como que ignorou

direitos dos filhos havidos dessas relações, “fechando os olhos a uma situação

social que sempre existiu” (VENOSA, 2004, p. 276).

Referido Diploma era centrado no modelo romano patriarcal e classificava a

filiação conforme a sua origem, de maneira discriminatória, inclusive obstando

direitos aos filhos ilegítimos e adotados, aplicando, ainda, o sistema de presunção

de paternidade, a fim de proteger e manter incólume o instituto familiar. O Código

antigo empregava, então, o essencial princípio segundo o qual pai é quem assim

demonstrar as justas núpcias (pater is est quem nuptiae demonstrant) (VENOSA,

2004, p. 280).

O Diploma Legal de 1916 prescrevia a proteção ao patrimônio familiar. Os

filhos ilegítimos somente passaram a ter seus direitos reconhecidos a partir de 1949,

com a edição da Lei n. 883/1949, que permitiu o reconhecimento voluntário dos

filhos por qualquer um dos cônjuges, concedendo também aos descendentes o

direito de pleitear alimentos do suposto pai, bem como requerer o reconhecimento

da paternidade. Todavia, tal reconhecimento era condicionado ao ajuizamento da

ação de dissolução da sociedade conjugal do genitor casado (WELTER, 2003, p.

66).

Page 23: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

22

Na Lei 6.515 de 1977 (Lei do Divórcio) (BRASIL, 1977), passou a ser

considerado legítimo o filho que proviesse de casamento nulo ou anulável, ainda que

este fosse realizado de má-fé. (VENOSA, 2004, p. 279).

Todavia, a igualdade entre os filhos havidos ou não na constância do

casamento, só foi obtida com a Constituição Federal de 1988, pondo fim às

denominações preconceituosas antes existentes. (BOSCARO, 2002, p. 68).

Preconiza em seu artigo 227º, §6º “Os filhos, havidos ou não da relação do

casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas

quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1977).

A partir daí, foram editadas várias leis, entre as quais a Lei 8.560/92, que, ao

permitir o reconhecimento do filho, dentro ou fora do casamento ou união estável,

por meio de documento particular reconhecido em cartório, ou por manifestação

expressa perante qualquer Juiz de Direito, acabou por subverter o princípio do pater

is est. (WELTER, 2003, p. 69).

Entretanto, havia ainda designações discriminatórias no Código Civil anterior,

e somente no Código de 2002 acatou-se o princípio constitucional da plena isonomia

entre os filhos. Nele não há nenhuma citação que discrimine filhos que não sejam

biológicos. (MONTEIRO, 2004, p. 307).

Cabe destacar o artigo 1.609 (BRASIL, 2002), que diz:

Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I - no registro do nascimento; II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.

Assim por diante, todas as legislações com ditames contrários ao texto

constitucional, ou seja, todas as normas que determinavam privilégios e

discriminações entre os filhos foram revogadas, pois afrontam o princípio da

igualdade.

Veremos, na seção seguinte, que a filiação pode se dar através da concepção

natural, de inseminação artificial ou, ainda, por meio da adoção, gerando, qualquer

que seja sua forma originária, direitos e obrigações entre os sujeitos dessa relação.

Page 24: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

23

3.2 TIPOS DE FILIAÇÃO

No nosso atual Código, o princípio do pater is est, ainda que ultrapassado, é

admitido como regra geral (VENOSA, 2004, p. 280).

O filho nascido até seis meses após o casamento, presume-se legítimo.

Entende-se que este é o período mínimo de gestação viável, não operando-se a

presunção caso ocorra nascimentos fora dele (BRASIL, 2002).

No caso de dissolução da sociedade conjugal pela morte, separação judicial,

anulação ou decretação de nulidade do casamento, presume-se a paternidade dos

rebentos nascidos nos trezentos dias subseqüentes ao ato que dissolveu a

sociedade conjugal. (BRASIL, 2002).

Salvo prova em contrário, se a mulher, antes do período de 10 meses, vier a

estabelecer novo vínculo conjugal, “pois está viúva ou seu primeiro casamento foi

invalidado”, e nascer algum filho, presume-se que este seja do primeiro marido, se

nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do óbito deste, “e do segundo se

o nascimento se der após esse período e já decorrido o prazo de 180 dias depois de

estabelecida a convivência conjugal” (BRASIL, 2002).

O Código enfoca, ainda, a presunção da filiação de descendentes nascidos

após a morte do pai ou da mãe, no caso de fecundação homóloga e de embriões

excedentários e, por fim, da filiação havida por inseminação heteróloga, desde que a

esposa tenha autorização do marido (BRASIL, 2002). Entretanto, não determina a

forma pela qual deve ser feita a autorização do cônjuge, apenas se refere à

“autorização prévia”, dando a entender que o ato não pode ser aceito ou ratificado

posteriormente pelo marido (VENOSA, 2004, p. 280-291).

Independente de como se realizou, a procriação terá sempre como

conseqüência seus efeitos jurídicos. Não mais importando se são biológicos ou não,

terá status de filho consangüíneo, inclusive para a sucessão (WALD, 2005, p. 241).

Dentre os vários tipos de filiação, serão abordados os seguintes:

Page 25: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

24

3.2.1 Biológica

Primeiramente, cabe explicar que a filiação biológica mais conhecida é aquela

realizada através da conjunção carnal, em que há a fecundação do óvulo na mulher.

Por tal motivo, antigamente, a paternidade era presumida em consideração ao

princípio pater is est, bastando estar casado com a mãe, considerava-se então o pai.

Entretanto, com a descoberta do DNA, modificou-se a presunção da paternidade,

sendo a partir daí, buscada a verdade real da filiação. Com a popularização destes

exames, facilitou-se a identificação da paternidade, que antes era baseada na

verossimilhança de fatos, o que foi motivo de conflito de opiniões, uma vez que esta

presunção era praticamente absoluta e nem sempre os pais juridicamente

estabelecidos queriam negar sua paternidade. Porém, em face de avanços

científicos como este, a verdade da filiação genética deixou de ser subordinada a

prazo, vindo à tona rapidamente (VENOSA, 2004, p. 281-282).

Cabe ressaltar que a não propositura de ação de negatória de paternidade

pelo marido não obsta que o filho proponha a ação de investigação de paternidade,

ou seja, embora caiba ao pai negar a paternidade, a investigação desta pode ser

proposta mesmo quando o pai presumido não negue a filiação.

Entre as formas de filiação biológica, temos a inseminação artificial homóloga,

prevista no inciso III, do artigo 1.597, do CC, que é a introdução do esperma do

marido dentro do aparelho genital da mulher através de mecanismos que não a

relação sexual, por questões alheias à vontade deles. Porém, não resta dúvida

alguma que, mesmo se o marido vier a falecer após a inseminação, há uma

presunção legal, pois neste caso coincide a paternidade biológica e a legal, afinal a

inseminação foi realizada com o próprio esperma do marido (AMIN, 2004, p. 189).

Outra modalidade de filiação biológica por meio artificial é a fertilização in

vitro, “técnica mediante a qual se reúnem gametas masculinos e femininos, em meio

artificial adequado, propiciando a fecundação e formação do ovo, o qual, já iniciada

a reprodução celular, será implantado no útero materno” (AMIN, 2004, p. 189).

Mesmo caso que a inseminação, se for feito um exame mais aprofundado

como o DNA, não restam dúvidas quanto aos pais biológicos (AMIN, 2004, p. 189).

Page 26: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

25

3.2.2 Inseminação Artificial Heteróloga

Entende-se por inseminação artificial heteróloga aquela realizada na mulher

casada com sêmen de terceiro que não do marido. Há a necessidade de autorização

prévia do marido, e a identidade do doador deve ser mantida em absoluto sigilo.

Consta na Resolução 1.358 de 19 de novembro de 1.992, do Conselho Federal de

Medicina, que dispõe sobre as normas para a realização de técnicas de reprodução

assistida:

O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil (AMIN, 2004, p. 194).

Entretanto, o Código Civil atual não aborda a possibilidade de revogação do

termo de consentimento do marido enquanto não sobrevier a gravidez. Também não

há nenhum artigo que regulamente casos de reprodução assistida entre conviventes,

pois no caput do artigo 1.597 apenas cita “na constância do casamento”,

esquecendo os casos de união estável, tão comum nos dias atuais (AMIN, 2004, p.

195).

Um dos problemas que podem vir a ocorrer na inseminação artificial

heteróloga diz respeito à identidade real do doador, que pode vir a ser questionada

pelo filho gerado daquela maneira, futuramente (AMIN, 2004, p. 196).

Apesar dos inconvenientes, este tipo de filiação seria um dos primeiros

passos do legislador no que tange ao reconhecimento da filiação socioafetiva, eis

que nada mais há entre pais e filhos gerados através deste tipo de inseminação do

que o próprio desejo de concebê-los e os laços de afeto que se formam com a

convivência entre eles (AMIN, 2004, p. 191-192).

Sobre o assunto, discorre Amin (2004, p. 195):

É de se ponderar que essa nova modalidade de filiação também se aproxima da adoção, pois se fundamenta nos conceitos de paternidade socioafetiva, uma vez que o pai jurídico – o marido da mãe -, ao dar o seu consentimento, admite como filho o ente gerado com material genético de outrem (doador do sêmen). A paternidade não poderia mais ser negada sob o argumento da não existência da relação biológica, ficando o filho amparado pela presunção estabelecida neste artigo.

Page 27: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

26

No tocante a esta técnica, sabe-se que num possível exame de DNA, a carga

genética do rebento não será compatível com a de seu pai civil, e talvez nem mesmo

com a da mãe, o que não será utilizável como argumento para uma negatória da

paternidade ou maternidade, pois já havia sido autorizado previamente. Esta é uma

hipótese de certeza da parentalidade, pois já foi manifestada a vontade durante o

procedimento de inseminação (FARIAS, 2004, p. 356).

A seguir, abordar-se-á o instituto da adoção.

3.2.3 Adoção

O conceito de adoção, segundo Venosa (2004, p. 327), “é a modalidade

artificial de filiação que busca imitar a filiação natural”. Também pode ser

denominada de filiação civil, por resultar da manifestação da vontade, não de uma

relação biológica. Enquanto a filiação biológica provém de laços consangüíneos,

esta é principalmente uma relação jurídica, pois pressupõe o afeto do adotante para

o adotado. A partir do momento que se adota uma pessoa, esta terá os mesmos

direitos que tem o filho não adotivo.

Pode-se afirmar que a finalidade da adoção seria proporcionar um ambiente

familiar agradável e que seja favorável ao desenvolvimento de uma criança que

venha a ter ficado sem sua família biológica. Além do dever de “atender às reais

necessidades da criança, dando-lhe uma família, onde ela se sinta acolhida, segura,

protegida e amada”. (GRANATO, 2006, p. 26).

Porém, antigamente, a adoção tinha fins religiosos, pois eles acreditavam,

conforme já exposto no 1º capítulo do presente trabalho, que havia a necessidade

de descendentes para encomendarem a alma dos mortos. Os que não tivessem

filhos, ao morrer, vagariam pela terra, pois não haviam sido realizados os ritos

fúnebres. Dessa forma, a solução encontrada era a adoção, o que garantiria a

imortalidade de sua família (GRANATO, 2006, p. 31-32).

Assim, “a adoção não tinha por finalidade o bem-estar do adotando, mas

visava servir aos interesses do adotante”, não havendo preocupação com os laços

afetivos da criança (GRANATO, 2006, p. 32).

Page 28: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

27

Na Idade Média, a adoção no sentido abordado acima caiu em desuso. Quem

praticava a adoção eram os guerreiros, como os germanos, que a realizavam com o

intuito de perpetuar o chefe da família, para dar continuidade aos seus feitos na

guerra. A adoção transferia o nome, as armas e o poder público do adotante. O

adotado não tinha direitos sucessórios (GRANATO, 2006, p. 40).

No Brasil, a adoção foi abordada de um modo mais aprofundado no Código

Civil de 1.916. Estabelecia que somente os maiores de 50 anos, sem prole legítima

ou legitimada, poderiam adotar (BRASIL, 1916). Ainda havia uma regra de que

deveria existir uma diferença de 18 anos entre adotante e adotado (BRASIL, 1916).

Cabe frisar que a adoção era revogável por parte do adotando, quando este

atingisse a maioridade, e ainda, nos mesmos casos de deserdação, os quais sejam:

ofensas físicas ou injúria grave contra o adotante; desonestidade da filha que

vivesse na casa do pai adotivo e desamparo deste em alienação mental ou grave

enfermidade (GRANATO, 2006, p. 44).

Como forma de incentivar a adoção, foi instituída a Lei 3.133 de 08 de março

de 1.957. Entre as principais mudanças advindas, houve a diminuição da idade

mínima de 50 para 30 anos de idade, sendo que agora casais jovens poderiam

adotar, mas somente após 05 anos de casados, evitando adoções precipitadas. Foi

eliminada a exigência da ausência de prole legítima ou legitimada; e a alteração de

18 para 16 anos de idade de diferença entre adotante e adotado (GRANATO, 2006,

p. 44-45).

Com a Lei 4.655 de 02 de junho de 1.965, houve a criação da legitimação

adotiva, ou seja, só poderia ser deferida quando o menor até 07 anos fosse

abandonado, órfão sem parentes com interesse de criá-lo, ou que tivessem pais

destituídos do pátrio poder. Também, a exigência de 03 anos de guarda do menor

pelos requerentes, para só daí então deferir a legitimação, entre outros (GRANATO,

2006, p. 45-46).

Com a promulgação da Constituição Federativa de 1.988, igualou-se os

direitos entre os filhos. Estabelecendo no artigo 227, § 6º: “os filhos, havidos ou não

da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,

proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (GRANATO,

2006, p. 49).

Atualmente, a adoção é disciplinada pelos artigos 39 a 52 do Estatuto da

Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), fundando-se no conceito que foi

Page 29: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

28

explanado anteriormente, pois visa justamente o bem-estar da criança adotada

(BOSCARO, 2002, p. 86).

Uma das mudanças deste estatuto está no estado civil do adotante. Antes a

adoção era deferida somente para casais, agora se permite a adoção unilateral.

Exigi-se a prolação de uma sentença judicial, inscrita no registro civil com o nome

dos adotantes, para que se constitua a adoção; e esta se tornou irrevogável. A

adoção será sempre submetida a um processo judicial, conforme exposto no artigo

1.623 do CC de 2002. (BOSCARO, 2002, p. 86; GRANATO, 2006, p. 109).

Ainda, é vedada a adoção por ascendentes e irmãos do adotando, sendo os

pedidos de avós, na grande maioria, convertidos em tutela (VENOSA, 2004, p. 347).

No que diz respeito ao procedimento para a adoção e suas peculiaridades,

será abordado no tópico seguinte.

3.2.3.1 Processo de Adoção

Atualmente, temos no direito brasileiro duas formas de adoção: a adoção de

criança e adolescente até os 18 anos de idade, prevista no Estatuto da Criança e do

Adolescente, Lei 8.069/90 de 13 de 07 de 1990; e, ainda, a adoção aplicável aos

indivíduos maiores de 18 anos, regulada pelo Código Civil de 2002, art. 368 e

seguintes, que é a adoção judicial. Aperfeiçoa-se com a lavratura de escritura,

averbada no registro civil de nascimento do adotado. (MONTEIRO, 2004, p. 336).

Entre os requisitos temos que o adotando deve contar com no máximo 18

anos para se requerer a sua adoção (BRASIL, 1990). Ao completar 18 anos e 1 dia,

já não se utiliza mais o Estatuto da Criança e do Adolescente, e sim o procedimento

exposto no Código Civil. Todavia, se o adotando já estava sob a tutela ou a guarda

do adotante, é evidente que este pedido deve ser realizado antes de completar 21

anos. Deve haver no mínimo uma diferença de 16 anos de idade entre adotante e

adotado (GRANATO, 2006, p. 73-79). Sobre esta diferença, leciona Granato (2006,

p. 80):

O fundamento dessa determinação pode ser encontrado no propósito de tornar a adoção em tudo semelhante à paternidade natural. Dessa forma, se a nossa lei autoriza a mulher a se casar com dezesseis anos de idade e, consequentemente, ser mãe, a mesma diferença pode ser considerada adequada na adoção.

Page 30: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

29

Ao adotar, ao menos um dos adotantes deve contar com no mínimo 18 anos,

e devem comprovar a estabilidade da família. Os separados, antigos conviventes ou

divorciados também podem adotar, desde que acordem sobre horário de visitas e a

guarda, e que o estágio de convivência pelo qual tem que passar tenha sido iniciado

enquanto estavam juntos (WALD, 2005, p. 277).

É necessária a aprovação dos pais ou representantes legais do adotado, se

conhecidos ou não destituídos do poder familiar. No caso de crianças maiores de 12

anos, estas também deverão declarar sua vontade (BRASIL, 2002). Poderá ser

dispensado o consentimento no caso de infante exposto, órfão não reclamado por

parente em até um ano ou, ainda, de pais desaparecidos. (WALD, 2005, p. 278).

Ainda, é necessário, no processo de adoção, um estágio de convivência,

conforme consta no artigo 46 do ECA. Este estágio é fixado pelo juiz, podendo

divergir em cada caso, e ainda ser dispensado quando a criança for menor que um

ano de idade, ou, se o adotando já convivia com os adotantes por certo tempo que

seja suficiente (GRANATO, 2006, p. 81).

Discorre Venosa (2004, p. 352) sobre o estágio de convivência:

Esse estágio tem por finalidade adaptar a convivência do adotando ao novo lar. O estágio é um período em que se consolida a vontade de adotar e de ser adotado. Nesse estágio, terão o juiz e seus auxiliares condições de avaliar a conveniência da adoção. [...] Ao deferir o estágio de convivência, o juiz estará, na verdade, como apontamos, deferindo a guarda do menor ao interessado na adoção.

Sobre os efeitos da sentença que confere a adoção, um dos principais “é o

desligamento do vínculo de parentesco do adotado com a sua família biológica, e,

ao mesmo tempo, a constituição de novo vínculo de filiação com os pais adotivos e

de parentesco com sua família”, que ocorre com o trânsito em julgado da sentença

de adoção (GRANATO, 2006, p. 89).

O juízo competente para julgar ações referentes à adoção é o Juiz da Infância

e Juventude ou o juiz que exerça essa função, em acordo com o artigo 148, III, do

ECA. O processo corre em segredo de Justiça e é isento de custas processuais. A

competência é a do domicílio dos pais ou responsável de onde se encontre a

criança, ou onde esta mesma se encontra, na falta daqueles (GRANATO, 2006, p.

96).

Na petição inicial, além dos requisitos necessários de qualquer ação, será

necessário juntar: atestado de saúde física e mental, atestado de idoneidade moral,

Page 31: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

30

comprovação da situação financeira, comprovação da residência ou domicílio,

documento comprobatório de estabilidade familiar (GRANATO, 2006, p. 98).

Abordamos até aqui a adoção comum, e em seguida será abordado outro tipo

de adoção, a conhecida por “adoção à brasileira”.

3.2.3.2 Adoção à Brasileira

Segundo Granato (2006, p. 130), “a adoção à brasileira funda-se no registro

de filho alheio como próprio”.

Para Farias (2004, p. 328), é quando se dá uma declaração falsa de que

aquela criança registrada é sua filha verdadeira, “sem observância das exigências

legais para a adoção”.

Nessa modalidade de adoção, a criança é registrada no Cartório de Registro

Civil das Pessoas Naturais, bastando declarar o nascimento da criança, conforme o

disposto no artigo 54 da Lei de Registros Públicos (BRASIL, 1973).

Este método é mais comum do que se imagina, chegando a igualar o número

de adoções regulares a esta irregular. Isto se deve, principalmente, à burocracia que

gira em torno dos processos de adoção, que acaba por tornar o processo lento e

oneroso, correndo ainda o risco de ter sua adoção negada ao final da questão

(GRANATO, 2006, p. 131).

Ademais, é comum a mãe biológica, por ser impossibilitada de criar a criança,

entregá-la para uma família de melhores condições, e que deseja ter um filho, mas

não pode por fatores alheios à vontade deles. Normalmente, essa mãe nem tem

mais contato com a família após a entrega da criança, contribuindo para esse tipo de

adoção ser bem sucedida (GRANATO, 2006, p. 131).

Anteriormente, era aplicável uma pena rígida, de um a cinco anos de

reclusão, e ainda, multa, de acordo com o artigo 299 do Código Penal, aos que

registrassem como seu filho de outrem. Porém, passou a tipificar-se tal crime pelo

artigo 242 do Código Penal:

Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: Pena - reclusão, de dois a seis anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:

Page 32: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

31

Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

Importante frisar o parágrafo único, que aborda os casos de reconhecida

nobreza, os quais têm, por exemplo, um acontecimento inesperado, tal qual uma

criança ser abandonada numa casa; ou ainda quem cria o filho de uma pessoa que

conheceu, mas que não possuía condições de criá-lo e deixou com esta pessoa,

entre outros casos.

Todavia, um dos principais riscos desse tipo de adoção é o fato de que, ao

descobrir-se o registro falso, este será declarado nulo, causando uma enorme

preocupação para aquela família (GRANATO, 2006, p. 133).

Leciona Farias (2004, p. 329-330) sobre o assunto:

Outrossim, a invalidade do registro assim obtido não pode ser considerada quando atingir o estado de filiação, por longos anos estabilizado na convivência familiar. [...] Na Constituição se colheriam o compromisso da República Federativa do Brasil com a solidariedade, a fraternidade, o bem-estar, a segurança, a liberdade, etc., estando essas opções axiológicas muito mais para uma idéia da paternidade fundada no amor e no serviço do que para a sua submissão aos determinismos biológicos.

O mais importante, entretanto, é levar em conta o estado psicológico dos

envolvidos, principalmente da criança envolvida, que já passou tanto tempo com a

família e criou laços afetivos com eles. A respeito deste assunto, que tanger à

sócioafetividade, será tratado no tópico seguinte.

3.3 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Ao abordarmos a questão do afeto nas relações familiares, pode-se perceber

que muitas vezes este é mais importante que o próprio laço consangüíneo. A

afetividade, que antes era adotada somente por psicólogos e os chamados

“cientistas sociais”, passou a fazer parte da realidade dos juristas, ao tentarem

entender a família contemporânea (FARIAS, 2004, p. 330).

O conceito da socioafetividade tem como pilares duas questões: uma, que diz

respeito à integração definitiva da pessoa em uma nova família; e a outra, que fala

da relação afetiva construída no tempo entre quem assume o papel de pai e quem

assume o papel de filho (LOBO, 2006).

Page 33: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

32

A questão principal é que a realidade jurídica da filiação não se mostra

vinculada apenas ao elo biológico, mas também ao afeto que une os genitores e

seus descendentes, laço este que é de suma importância e merece ser priorizado,

tendo em vista que muitas vezes não coincide ou depende de imposição da natureza

(origem biológica) ou da lei, mas sim das relações de afeto entre eles, que faz com

que esses laços socioafetivos tornem-se válidos juridicamente, tal qual na filiação

biológica (LOBO, 2006).

Leciona Boscaro (2002, p. 76):

Atualmente, após ampla consagração legislativa das hipóteses de dissolução do casamento e da disciplinação das uniões livres, deve-se reconhecer que o direito de família, que sempre foi calcado em normas consideradas de ordem pública [...], passou a considerar os interesses pessoais dos membros dessa família, numa crescente privatização do tema, pois a felicidade e o bem-estar destes passaram a superar o interesse estatal na preservação da família calcada exclusivamente no matrimônio.

O aspecto biológico não é mais suficiente, pois a certeza absoluta da origem

genética não pode ser vista como único valor dentro do campo do estabelecimento

da paternidade.

Segundo Farias (2004, p. 330), “os laços de afeto e solidariedade derivam da

convivência familiar e não do sangue”.

A afetividade foi convertida em princípio jurídico, com força normativa, e que tem por conseqüência a imposição de deveres e obrigações aos membros da família, ainda que não haja mais o afeto entre eles. Assim, independente de o pai possuir uma relação amigável com seu filho, ele terá que cumprir com suas obrigações, ainda que não seja o pai biológico.

Analisando a Carta Magna, a partir do artigo 226 e seguintes, podemos

perceber que não há prioridade a qualquer tipo de filiação. O Código Civil, ainda,

reproduziu a regra que se refere à igualdade dos filhos (art. 227, caput e § 6º da

CF/88), superando o paradigma da legitimidade. As normas dos arts. 1.593 e 1.597,

inciso V, abrangem a filiação afetiva quando se referem ao parentesco natural ou “de

outra origem”1 e à inseminação heteróloga2.

O atual Código Civil, ao referir-se de maneira aberta ao parentesco civil, como

aquele que resulta de outra origem que não seja a consangüinidade, possibilita

outras interpretações. Sobre a questão, leciona Farias (2004, p. 344-345):

A origem biológica presume o estado de filiação, ainda não constituído, independentemente de comprovação de convivência familiar. Neste sentido,

1 “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem” (ABREU FILHO, 2004)

2 “Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido” (ABREU FILHO, 2004).

Page 34: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

33

a investigação da origem biológica exerce papel fundamental para atribuição da paternidade ou maternidade e, a fortiori, do estado de filiação, quando ainda não constituído. Todavia, na hipótese de estado de filiação não-biológica já constituído na convivência familiar duradoura, comprovado no caso concreto, a origem biológica, não prevalecerá. Em outras palavras, a origem biológica não poderá se contrapor ao estado de filiação já constituído por outras causas e consolidado na convivência familiar.

Por derradeiro, convém afirmar que, do ponto de vista jurídico atual, a

socioafetividade não somente vem sendo aceita, como também está sendo aplicada,

levando em conta principalmente o interesse da criança, assunto que será debatido

no próximo capítulo.

Page 35: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

34

4 A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO ATUAL

4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA

CRIANÇA PELOS OPERADORES DO DIREITO

Analisando-se a questão da filiação, temos como princípio constitucional o

exposto no artigo 227 da nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988), que diz:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Tal princípio, conhecido como o do melhor interesse da criança, inverte a

ordem de prioridade entre os tipos de filiação, pois anteriormente o direito dava

maior importância ao interesse dos pais biológicos, dificilmente contemplando o filho.

Entretanto, no ordenamento atual, impõe-se a predominância do interesse da

criança, devendo o julgador, ante o caso concreto, verificar se a realização pessoal

do menor estará assegurada entre os “pais biológicos ou não biológicos” (LOBO,

2004).

Ser pai ou mãe, nos dias de hoje, não é apenas ser a pessoa que gera ou a

que tem vínculo genético com a criança. É, antes disso, a pessoa que cria, que

ampara, que dá amor, carinho, educação, dignidade, ou seja, aquele que realmente

exerce as funções relativas ao atendimento do melhor interesse da criança, princípio

primordial quando do estabelecimento da filiação.

Extrai-se dos ensinamentos de Lobo (2004):

O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações da criança e do adolescente com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado. A aplicação da lei deve sempre realizar o princípio, consagrado, segundo Luiz Edson Fachin como ‘critério significativo na decisão e na aplicação da lei’, tutelando-se os filhos como seres prioritários. [...] O princípio é um reflexo do caráter integral da doutrina dos direitos da criança e da estreita relação com a doutrina dos direitos humanos em geral. Assim, segundo a natureza dos princípios, não há supremacia de um sobre outro ou outros, devendo a eventual colisão resolver-se pelo balanceamento dos interesses, no caso concreto.

Page 36: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

35

Assim, o melhor interesse da criança deverá sempre ser colocado em

primeiro plano, qualquer que seja a hipótese em exame.

4.2 A POSSE DO ESTADO DE FILHO

Contrapondo-se a verdade biológica e a socioafetiva, surge o instituto da

posse do estado de filho, que valoriza as relações de afeto na convivência entre os

pais e seus rebentos, caracterizando-se a paternidade afetiva. (ANDERLE, 2002).

A importância do referido instituto se revela quando ocorrem conflitos de

paternidade, principalmente na filiação extramatrimonial, “como, por exemplo, nos

casos em que as relações de afeto entre pai e filho não condizem com a paternidade

jurídica, ou ainda quando comprovada a paternidade biológica”, mas a existência da

posse do estado de filho se estabelece com um terceiro, que não possui vínculo

genético (ANDERLE, 2002).

Segundo Nogueira (2001, p. 103), pode-se conceituar a posse de estado de

filho como sendo “o exercício de fato representado pela aparência de um estado,

donde se presume sua existência, de tal forma que ela permite provar a filiação de

afeto”.

O estado de filho pode decorrer de um fato, como do nascimento biológico,

quanto de um ato jurídico, tal qual a adoção. A posse de estado de filho acontece ao

verificar-se a importância do valor do afeto nas relações paterno-filiais. O afeto

existente na vida diária, esta relação cotidiana, onde são exercitados os direitos e

deveres dentre pais e filhos, é que irá constituir a paternidade sócioafetiva

(NOGUEIRA, 2001, p. 106-112).

Sobre o tema, colhe-se da obra de Boeira (1999, p. 54):

A posse de estado de filho revela a constância social da relação paternofilial, caracterizando uma paternidade que existe, não pelo simples fator biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes, frutos de uma convivência afetiva. Cresce, pois, a relevância da noção de posse de estado de filho em todas as legislações modernas, o que demonstra a inviabilidade de uma absorção total, pelo princípio da verdade biológica.

Em casos de conflito de paternidade, deveria sempre prevalecer a posse de

estado de filho, que trata-se da base sociológica da filiação. Quando não basta a

Page 37: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

36

presunção biológica na resolução de conflitos jurídicos, deve ser utilizado os

fundamentos sociológicos, os laços de afeto existente entre as partes. Sobre o

assunto, discorre Nogueira (2001, p. 114-115):

Não são os laços de sangue nem as presunções jurídicas que estabelecem um vínculo entre uma criança e seua pais, mas com o tratamento diário de cuidados, alimentação, educação, proteção e amor, que cresce e se fortifica com o passar dos dias.

Nogueira (2001, p. 115-116) diz que são três elementos capazes de

caracterizar a posse do estado de filho, quais sejam: a tractatus (maneira que os

pais tratam os filhos), a fama (o fato de a criança ter sempre sido vista como filho

dos que o criaram, a consideração dada a este fato) e a nomen (a utilização do

nome do “suposto” pai pelo filho). O primeiro reside no fato de o rebento ser tratado

pelo pai ou mãe como tal, sendo visíveis os esforços no sentido de educá-lo e

protegê-lo. O requisito da fama reside no fato deste filho ter sido criado perante a

sociedade e à própria família como se legítimo fosse. Por fim, a nomen identifica-se

quando o filho possui em seu registro o sobrenome do perfilhador.

Todavia, mesmo o filho nunca tendo usado o sobrenome do pai não faz com

que as chances de reconhecimento desta paternidade serem diminuídas, sendo os

outros dois elementos suficientes. Por isso, importante frisar que cada caso deve ser

analisado em separado (NOGUEIRA, 2001, p. 117).

Entende-se, portanto, a posse do estado de filho como sendo uma “relação

afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se

filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o

chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai” (BOEIRA, 1999, p. 60).

Nesse contexto, observa-se que tal instituto oferece amparo para a

regularização da filiação socioafetiva, buscando comprovar a existência desta

através das evidências que se manifestam com a convivência havida entre os

sujeitos da relação.

Serão analisadas, a seguir, as situações em que a filiação socioafetiva pode

ser questionada, colacionando julgados a respeito do assunto, a fim de visualizar

claramente tais questões.

Page 38: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

37

4.3 POSICIONAMENTO DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DAS QUESTÕES QUE

ENVOLVEM A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA

Neste tópico, serão analisados alguns julgados acerca do tema deste

trabalho, abordando-se casos de diversos tipos de filiação socioafetiva.

No primeiro caso, colho do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO C/C GUARDA - MENOR ENTREGUE PELA MÃE BIOLÓGICA A SUPOSTO PAI - REGISTRO EM NOME DE AMBOS - AUTOR QUE AVOCA PARA SI A PATERNIDADE - EXAME DE DNA CONCLUSIVO ACERCA DE SUA PATERNIDADE - CASO PECULIAR - MENOR QUE JÁ CONTA COM MAIS DE TRÊS ANOS - INÉRCIA DO PAI BIOLÓGICO NA TOMADA DE MEDIDAS DE URGÊNCIA PARA TOMADA DA CRIANÇA - CONTRIBUIÇÃO DECISIVA PARA CONSOLIDAÇÃO DOS LAÇOS AFETIVOS - ESTUDO SOCIAL INDICANDO AS DIFICULDADES QUE A MODIFICAÇÃO DA SITUAÇÃO ACARRETARÁ À MENOR - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA - PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE - MANTENÇA DA GUARDA COM O CASAL QUE VEM CRIANDO A MENOR - ARTIGOS 6º E 33 DO ECA - PEDIDO INICIAL PARCIALMENTE PROCEDENTE - ÔNUS SUCUMBENCIAIS MODIFICADOS - RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível n. 2005.042066-1, Des. Subst. Sérgio Izidoro Heil julgado em 01/06/2006). (BRASIL, 2006a)

Este caso trata de um registro errôneo. A mãe entregou o filho para um casal

cria-lo, afirmando que aquele seria o pai da criança. O casal o criou, dedicando todo

o amor e carinho, eis que anos depois o pai biológico manifesta-se requerendo a

guarda e a anulação do registro.

Colhe-se do referido acórdão:

A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas da descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade (COMENTÁRIOS, 2004, p. 24-25).

Ainda:

a quaestio não merece ser vista somente sob o prisma daqueles que litigam pela guarda da criança, sendo imprescindível analisar, com orientação do princípio da proporcionalidade, qual conduta trará maiores danos e quem será mais prejudicado.Em outras palavras, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos (COMENTÁRIOS, 2004, p. 24-25).

Page 39: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

38

Percebe-se que o princípio do melhor interesse da criança é levado em conta

na resolução da quaestio.

Caso semelhante ocorreu no Tribunal do Rio Grande do Sul:

APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há aproximadamente 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retirá-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica, demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois arrependendo-se. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida, encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste Colegiado, a paternidade sócio-afetiva sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse na criança. Negaram provimento (Apelação Cível nº 70001790039, 7ª Câmara Cível do TJRS, Rio Grande, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos. j. 02.05.2001). (BRASIL, 2001)

Abaixo, será exposto um caso em que o autor reconheceu o filho de sua

“atual” esposa como seu, e com o fim do relacionamento decidiu por anular o

registro:

DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - DEMANDA MOVIDA POR TERCEIRO - ILEGITIMIDADE - EXAME DE DNA QUE EXCLUI O ESTADO DE FILIAÇÃO - IRRELEVÂNCIA NA HIPÓTESE - RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO, VOLUNTÁRIO E IRRESPONSÁVEL DA PATERNIDADE - ATITUDE QUE EM PRINCÍPIO APARENTA GESTO DE NOBREZA E QUE POSTERIORMENTE, ANTE A FRUSTRAÇÃO DO RELACIONAMENTO MANTIDO COM A GENITORA DO MENOR, TRANSFORMA-SE EM DESASTRE PARA O INFANTE - COMPORTAMENTO QUE DEVE SER DESESTIMULADO EM HOMENAGEM AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL ESTATUÍDOS NO ART. 226, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO - IRREVOGABILIDADE DO ATO - INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1º DA LEI 8.560/92 E 1.609 E 1.610 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 - RECURSO PROVIDO (Apelação Cível nº 2005.014014-1, Santa Catarina, Rel. Des. Marcus Tulio Sartorato. j. 16/12/2005). (BRASIL, 2005a)

Colhe-se das palavras do Desembargador Túlio Sartorato em referido

acórdão:

A prudência recomenda que, em casos como este retratado nos autos, ao se estabelecer o confronto de tais interesses, mais precisamente o do terceiro que promoveu falsa auto-atribuição de paternidade, e do menor, deva prevalecer o segundo, eis que inserido numa realidade sócio-afetiva, sem ter o direito sequer de opinar.Por isso, sem embargo da força dos argumentos em contrário, entendo que nem mesmo sob o manto da decantada ‘busca da verdade real’ se justifica a prática de qualquer violência contra um menor. (BRASIL, 2005a)

Ainda, acórdão proferido em nosso Egrégio Tribunal de Justiça pela

Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Rita:

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO E AÇÃO DE ALIMENTOS. JULGAMENTO CONJUNTO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DEMONSTRAÇÃO DE QUE O

Page 40: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

39

APELANTE AGIU DE FORMA CONSCIENTE E VOLUNTÁRIA AO REGISTRAR COMO SUA UMA FILIAÇÃO QUE SABIA NÃO SER. ANULAÇÃO, IN CASU, INADMISSÍVEL. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.604 DO CC. SENTENÇA MANTIDA. AÇÃO DE ALIMENTOS. PRETENDIDA EXONERAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. VÍNCULO PATERNAL NÃO DESFEITO. DEVER DE SUSTENTO. INOPORTUNA, DA MESMA FORMA, A MINORAÇÃO DA VERBA ANTE A AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE ARCAR COM A OBRIGAÇÃO. NECESSIDADE DOS ALIMENTOS PRESUMIDA ANTE A TENRA IDADE DO ALIMENTANDO. POR OUTRO LADO, FIXAÇÃO PELO JUÍZO A QUO QUE ATENDEU AO BINÔMIO NECESSIDADE-POSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO Ministro Sálvio de Figueiredo, REsp. 4.987-RJ).' (Ap. Cível n. 02.015445-3, de Chapecó, Rel. Des. José Volpato de Souza). (BRASIL, 2003).

E colhe-se do corpo do acórdão acima:

APELAÇÃO CÍVEL - NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO ATRAVÉS DO REGISTRO CIVIL DO INFANTE - ANULAÇÃO - ATO JURÍDICO IRREVOGÁVEL - EXEGESE DO ART. 1º DA LEI Nº 8.560/92 - EXTINÇÃO DO FEITO - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - SENTENÇA REFORMADA. O pedido formulado na inicial encontra óbice intransponível no art. 1º da Lei nº 8.560/92 que veda a revogação do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento. Tal dispositivo tem como finalidade assegurar a estabilidade das relações entre pais e filhos, voltado ao bem-estar destes. Afinal de contas, não se pode olvidar o abalo anímico e psíquico que poderia advir da revogação do reconhecimento da paternidade, sabendo-se que 'na aplicação da lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado' (Ministro Sálvio de Figueiredo, REsp. 4.987-RJ).' (Ap. Cível n. 02.015445-3, de Chapecó, Rel. Des. José Volpato de Souza). (BRASIL, 2003)

Denota-se que, independentemente da prova de que o filho registrado não

era do pai que o registrou, nosso Tribunal não acolhe os pedidos de anulação do

registro, sempre levando em conta o princípio do melhor interesse da criança e

reconhecendo assim a paternidade sócioafetiva. Além disso, é uma forma de tentar

diminuir os casos de registro falsos, pois antes de registrar um filho de outro como

seu, deve-se pensar nas obrigações que terão para com esta criança futuramente.

Entretanto, existem os casos em que o pai “em ocasião” pode sim desfazer

um registro em que houve vício, ou erro formal. Quando uma ação visando

desconstituir paternidade que este declarou induzido a erro, entende-se que, assim

como o filho possui a faculdade de ter reconhecida sua origem biológica, da mesma

forma ao pai declarante deve ser possibilitada, em via de regra, a desconstituição

dessa paternidade que reconheceu erroneamente. Até porque o desejo de

desconstituir tais laços demonstra que o afeto não lhe era tão importante, tornando-

se a manutenção do vínculo ofensiva aos próprios interesses da criança.

Page 41: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

40

Discute-se na jurisprudência se o reconhecimento voluntário ou judicial da

paternidade e maternidade é revogável ou não. Vejamos alguns julgados:

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO. CARACTERIZAÇÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Entre a data do nascimento da criança e o ajuizamento da ação transcorreu mais de seis anos. 2. Narrativa da petição inicial demonstra a existência de relação parental. 3. Sendo a filiação um estado social, comprovada a posse do estado de filho, não se justifica a anulação de registro de nascimento por nele não constar o nome do pai biológico e sim o do pai afetivo. 4. Reconhecimento da paternidade que se deu de forma regular, livre e consciente, mostrando-se a revogação juridicamente impossível. 5. Hipótese do que a doutrina e jurisprudência nomeiam de adoção à brasileira. NEGADO PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Cível n. 70012250528, Sétima Câmara Cível, TJRS, rel. Maria Berenice Dias, j. em 14/09/2005). (BRASIL, 2005b). APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. ALEGAÇÃO DO APELANTE DE QUE NÃO PARTICIPOU DO REGISTRO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Tendo o apelante alegado que estava separado de fato da representante legal da apelada há mais de três anos, quando do nascimento da menor, e que esta fora registrada como sua filha, sem que estivesse presente no ato do registro, deve ser reaberta a instrução para que seja realizada prova da filiação socioafetiva, já que excluída a paternidade biológica pelo exame de DNA. Desconstituíram a sentença, prejudicada a apelação. Unânime. (Apelação Cível n. 70010667855, de Três de Maio, Sétima Câmara Cível, TJRS, Relator: Walda Maria Melo Pierro, julgado em 14/09/2005). (BRASIL, 2005c). NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. COISA JULGADA MATERIAL. CABIMENTO DE NOVA AÇÃO PARA COLHER EXAME DE DNA. PROVA DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. A filiação socioafetiva se sobrepõe à verdade presumida e à verdade biológica. Tratando-se de direito indisponível, que diz com o estado de filiação, os preceitos da Constituição Federal devem se sobrepor ao instituto da coisa julgada. Impositiva a desconstituição da sentença para que seja reaberta a instrução, para realização da prova da filiação socioafetiva e do exame de DNA. Sentença desconstituída, por maioria. (Apelação Cível n. 70011437662, de Nova Prata, Sétima Câmara Cível, TJRS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 01/06/2005). (BRASIL, 2005d). APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. A verdade biológica não se sobrepõe à relação paterno-filial havida por 28 anos, entre o investigante e seu pai registral. A paternidade deve ser vista como um ato de amor e desapego material, e não simplesmente como um fato biológico. Reconhecimento da filiação socioafetiva. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível n. 70008792087, de Porto Alegre, Oitava Câmara Cível, TJRS, Relator: Catarina Rita Krieger Martins, Julgado em 23/09/2004). (BRASIL, 2004a).

É lamentável, em face do princípio do melhor interesse da criança, que o filho

que sempre conheceu o marido de sua mãe como sendo seu pai e com ele manteve

uma harmoniosa relação paterno-filial, obtendo dele amor, carinho, educação e

demais tratos que mereça um filho, se veja, inesperadamente, mediante verificação

ou impugnação de existência do vínculo biológico pelo seu pai afetivo.

Page 42: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

41

A paternidade socioafetiva pode ser adotada pelo magistrado, a fim de

proteger a criança e evitar-lhe traumas maiores relativamente às questões

financeiras, de sobrevivência. Assim, o liame da filiação afetiva, uma vez constituído,

não mais poderá ser contestado ou repudiado e prevalecerá sobre as demais formas

de filiação, salvo se, futuramente, o filho quiser reconhecer sua paternidade

biológica (SANTOS et al, 2005).

Ressalte-se que essa paternidade socioafetiva não é e nem pode servir de

regra, dadas as peculiaridades de cada caso, devendo o juiz analisá-lo e observar a

relação afetiva existente entre pai e filho e os elementos necessários para que a

posse de estado de filho seja configurada. “Presentes os requisitos e prevendo o

relacionamento futuro que irá surgir entre pai e filho após a descoberta da

inexistência de paternidade biológica, o juiz poderá ou não optar pela permanência

do vínculo no âmbito afetivo” (SANTOS et al, 2005).

Todavia, verificando o julgador a inexistência dos elementos necessários e

percebendo a ausência de qualquer prejuízo no desenvolvimento futuro da criança,

“poderá perfeitamente admitir o desligamento da filiação mediante o reconhecimento

da inexistência do vínculo biológico e, consequentemente, reconhecendo a falsidade

ideológica do registro de nascimento” (SANTOS et al, 2005).

O fato é que o melhor interesse da criança encontra-se exatamente onde ela

possa encontrar amor, afeto e uma relação verdadeira com seus pais. Sendo assim,

é mais apropriado que se garanta o direito de desconstituir esse vínculo indesejado,

a fim de impedir o seu desprezo e discriminação em relação ao suposto filho, desde

que não haja para este maiores prejuízos e possibilite, talvez, o início de uma

relação de afetividade com o pai biológico.

Agora, será exposto um caso do chamado “filho de criação”. Neste caso, a

filiação afetiva é identificada quando os pais criam uma criança por mera opção, sem

estabelecer com o mesmo qualquer vínculo biológico, adotivo ou registrário. Com

relação a esta modalidade de filiação, colhe-se da jurisprudência de nosso Tribunal

de Justiça:

DIREITO DE FAMÍLIA - ECA - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE MENOR PROPOSTA PELA AVÓ PATERNA - LIMINAR DEFERIDA - GENITOR FALECIDO - GENITORA SEGREGADA EM CUMPRIMENTO DE PENA POR TRÁFICO DE DROGAS - CRIANÇA ENTREGUE PELA MÃE À AUTORA QUANDO TINHA APENAS QUARENTA E DOIS DIAS DE VIDA - AVÓ QUE AO ARGUMENTO DE NÃO TER CONDIÇÕES DE CRIÁ-LA A ENTREGA A TERCEIRO QUE, POR SUA VEZ, DEIXA-A SOB OS CUIDADOS DOS RÉUS/AGRAVANTES - AÇÃO DE ADOÇÃO AJUIZADA

Page 43: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

42

POSTERIORMENTE - ESTUDO SOCIAL FAVORÁVEL AO CASAL QUE TEM EXERCIDO A GUARDA HÁ MAIS DE ANO - EVIDÊNCIAS DE QUE A CRIANÇA TEM SE BENEFICIADO DE AMPARO MATERIAL, EDUCACIONAL, MORAL E PSICOLÓGICO - CONVIVÊNCIA CONSOLIDADA COM LAÇOS DE AFETIVIDADE E AFINIDADE - PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DO MENOR - INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO ART. 6º DO ECA - MANUTENÇÃO DA GUARDA PROVISÓRIA COM A FAMÍLIA SUBSTITUTA - DECISÃO REVOGADA - RECURSO PROVIDO Em interpretação teológica do Estatuto da Criança e do Adolescente (v.g., art. 6º), evidencia-se como desaconselhável sob todos os aspectos a retirada de um menor do ambiente familiar onde se encontra por mais de um ano para devolvê-lo à avó paterna, que por sua vez não mostrou interesse em cuidá-lo em seus primórdios dias de vida, entregando-o para terceiro. Em tal circunstância, é imprescindível ao juiz sopesar qual o melhor ambiente para resguardar o pleno desenvolvimento físico e mental e o bem-estar do infante, sem descurar que os laços afetivos devem se sobrepor aos sangüíneos (Agravo de Instrumento 2006.011954-1, Des. Marcus Tulio Sartorato, j. em 22/08/2006). (BRASIL, 2006b)

Colhe-se do corpo do acórdão:

Destarte, à vista do parecer do estudo social realizado, conclui-se que os agravantes vêm provendo, desde quando a criança tinha apenas quarenta e cinco dias de vida até os dias de hoje, todas as necessidades da menor sob sua guarda, isto é, toda gama de obrigações que se impõe aos pais, sendo-lhe conferidos carinho familiar, educação, alimentação e lazer.Desta forma, a modificação, neste momento, do ambiente familiar de A. R., agora com um ano e quatro meses, seria medida brutal e desarrazoada em razão do tempo de convívio harmonioso com os agravantes. (BRASIL, 2006b).

Assim, observa-se que o relator se situou no sentido de que os pais de

criação são partes legítimas para requerer a regularização da situação vivenciada,

ainda que pretenda fazer prova somente dos laços estabelecidos pela convivência e

cuidado que foram prestados como se possuíssem laços consangüíneos com o

rebento.

Sobre o mesmo assunto, extrai-se dos julgados de nosso egrégio Tribunal de

Justiça mais um caso:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE GUARDA COM PEDIDO LIMINAR – DETENÇÃO DE GUARDA PROVISÓRIA PELOS APELANTES – IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO ANTE AS IRREGULARIDADES PRESENTES NO PROCESSO DE GUARDA – INSURGÊNCIA – PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO QUE SE SOBREPÕEM À CONDUTA DOS APELANTES – CRIANÇA QUE DESDE SEU NASCIMENTO, HÁ DOIS ANOS, ENCONTRA-SE COM O CASAL APELANTE – INEGÁVEL EXISTÊNCIA DE FORTE VÍNCULO AFETIVO – OBSERVÂNCIA AO DISPOSTO NO ART. 6º DO ECA – PRIMAZIA DOS INTERESSES DA CRIANÇA – CONCORDÂNCIA DA MÃE BIOLÓGICA E DO REPRESENTANTE DO PARQUET – ESTUDO SOCIAL FAVORÁVEL – ATENDIMENTO AO QUE PRECEITUA O ART. 33 DO ECA – SENTENÇA REFORMADA – CONCESSÃO DA GUARDA DEFINITIVA – RECURSO PROVIDO. É certo que a lista de adoção, mantida neste Estado pela Comissão Estadual Judiciária de Adoção, deve sempre ser prestigiada, considerando-se reprováveis quaisquer atos que objetivem seu desrespeito, sob pena de aceitação da máxima maquiavélica ‘os fins justificam os meios’.

Page 44: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

43

Entretanto, direito é bom senso e, tendo a menor encontrado no casal apelante abrigo fraterno, espiritual e familiar, sua retirada do núcleo familiar formado, como exemplo pedagógico à sociedade, viria de encontro aos interesses mais basilares da infante, bem como aos princípios esposados no Estatuto da Criança e do Adolescente. [...] Por outro vértice, por ter em suas mãos valores e sentimentos tão nobres quanto aqueles que se estabelecem entre pais e filhos, é essencial ressaltar que ‘[...] só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos’ (Antoine de Saint-Exupéry, em ‘O pequeno príncipe’ (Apelação cível n. 2005.019145-4, j. em 02/09/05, publicada no Diário da Justiça n. 11.766, em 30.09.05, p. 23). (BRASIL, 2005e).

Verifica-se, ainda em pesquisa jurisprudencial no site do Tribunal de Justiça

de Santa Catarina, a existência de decisões no sentido de se possibilitar a “adoção

plena” pelo pai ou mãe de criação que comprovam possuir a posse do estado de

filho da criança mediante a perda do poder familiar dos pais biológicos.

Neste sentido:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ADOÇÃO - FAMÍLIA BIOLÓGICA DESESTRUTURADA - MÃE QUE SE PROSTITUÍA PARA SUSTENTAR 6 (SEIS) FILHOS MENORES - ENTREGA VOLUNTÁRIA DA CRIANÇA EM TENRA IDADE À FAMÍLIA SUBSTITUTA - POSTERIOR ARREPENDIMENTO POR INSISTÊNCIA DO PAI BIOLÓGICO CASADO E COM QUATRO FILHOS - ESTUDO SOCIAL FAVORÁVEL AO CASAL POSTULANTE - PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DA MENOR - PERDA DO PODER FAMILIAR PELO DESLEIXO DOS PAIS BIOLÓGICOS INDEPENDENTE DE SUAS CONDIÇÕES FINANCEIRAS - ADOÇÃO DEFERIDA NÃO COMO PENALIDADE AOS PAIS MAS COMO PRIORIDADE DO BEM ESTAR DA CRIANÇA QUE JÁ SE ENCONTRA PLENAMENTE INTEGRADA AO NOVO LAR - RECURSO DESPROVIDO. Se a criança foi entregue ao casal adotante por deliberação da própria mãe, desde o início da sua vida, em decorrência da ausência de condições materiais para a sua criação e abandono pelo pai biológico, e já se encontra integrada ao lar substituto, nele deve permanecer, regularizando-se a adoção e destituindo-se por conseqüência os pais biológicos do poder familiar. Não se aplica in casu o art. 45 do ECA, que prevê a necessidade do consentimento dos pais para o pedido de adoção, quando houve a entrega espontânea da criança, ficando claro que nunca houve o exercício fático dos deveres do poder familiar. Não pode nessas condições, o mero arrependimento dos pais biológicos prevalecer, mormente quando o infante já se encontra integrado à outra família, com afeto e estrutura familiar que jamais teve. Faz-se necessária a intervenção do Poder Judiciário para assegurar o bem estar de menores, vítimas da negligência de seus pais, a fim de salvaguardar direitos indisponíveis garantidos pela Carta Política de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Ap. Cível n. 2003.011330-4, Desª Salete Silva Sommariva, j. em 17/08/2004). (BRASIL, 2004a).

Ainda, mais uma jurisprudência acerca do assunto do presente trabalho:

DIREITO DE FAMÍLIA - AÇÃO DE GUARDA PROPOSTA PELOS AVÓS PATERNOS - CRIANÇA ENTREGUE PELA MÃE BIOLÓGICA A PRETENDENTE A ADOÇÃO - PROCESSO EM TRÂMITE - PERÍODO DE CONVIVÊNCIA CONSOLIDADO COM LAÇOS DE AFETIVIDADE E AFINIDADE - INTERESSE DO MENOR - INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO ART. 6º DO ECA - NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE ESTUDO SOCIAL - DECISÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO

Page 45: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

44

Em interpretação teológica do Estatuto da Criança e do Adolescente (v.g., art. 6º), não se mostra aconselhável a retirada do infante, sem motivos proeminentes, de um ambiente familiar provisório salutar para colocá-lo temporariamente em outra família, ainda que esta com ele mantenha laços sangüíneos. Em tal circunstância é imprescindível ao juiz sopesar, sobretudo, qual o melhor ambiente para resguardar o pleno desenvolvimento físico e mental e o bem-estar da criança (Agravo de Instrumento 2005.031450-2, Santa Catarina, Des. Marcus Tulio Sartorato, j. em 20/04/2006). (BRASIL, 2006c)

Tais decisões reafirmam a importância e a possibilidade de apenas os laços

de afeto ampararem a adoção de crianças pelas pessoas às quais foram entregues

pelos seus genitores e que, desde então, estavam exercendo as funções de pai,

mãe ou ambos.

Desta forma, entende-se acertado o entendimento segundo o qual os filhos

de criação devem ser amparados pelo sistema legal, através dos princípios

constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, bem como que da

efetiva demonstração da existência de posse do estado de filho na situação

analisada.

Page 46: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

45

5 CONCLUSÃO

A família brasileira sofreu profundas transformações nos seus valores após a

superação do modelo romano patriarcal e do cristianismo. O primeiro centrava os

poderes nas mãos do chefe de família, dando prioridade à propriedade e à religião.

O segundo estabelecia a regulamentação do instituto familiar, buscando proteger,

acima de tudo, o matrimônio.

Revela-se de grande complexidade a regulamentação jurídica de tal instituto,

pois esta deve ser elaborada com especial atenção a fenômenos sociais e humanos,

que estão constantemente sujeitos a alteração, mormente no que diz respeito às

relações existentes entre pais e filhos.

Sabe-se que a filiação, independentemente da sua origem, gera direitos e

obrigações entre os envolvidos, devendo os filhos ser considerados iguais perante a

lei e a sociedade, em atendimento ao princípio constitucional da igualdade, também

abraçado pelo Código Civil vigente.

Destarte, manifestam-se antiquados os dispositivos do atual Diploma

baseados na presunção da paternidade: a uma porque o próprio Código possibilita

aos filhos e aos pais a contestação de tal conjetura, a duas porque o avanço

científico permite a averiguação da filiação com ínfima margem de erro.

Com a possibilidade de realização do exame de DNA e as suas conseqüentes

problemáticas no âmbito familiar, os laços biológicos perderam lugar para o elo de

afeto estabelecido na filiação, assunto que está inserido nas discussões atuais do

Direito de Família, tratando-se de questão essencial para o devido atendimento dos

princípios do melhor interesse da criança, da dignidade da pessoa humana e da

igualdade.

A questão da sócioafetividade não trata apenas de tendência jurisprudencial e

doutrinária, pois possui amparo em princípios constitucionalmente garantidos

(dignidade da pessoa humana e igualdade), bem como no Código Civil, através dos

arts. 1.597, V e 1.593, uma vez que aquele admite a inseminação heteróloga e este

dispõe a respeito do parentesco, dizendo que o mesmo pode resultar de laços

consangüíneos ou “de outra origem”, expressão esta que pode ser interpretada de

forma genérica, abrangendo a filiação sócioafetiva.

Page 47: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

46

Para a regularização da filiação sócioafetiva é indispensável a demonstração

da posse do estado de filho no caso a ser examinado, revelando-se a relação

sentimental existente entre os sujeitos da relação, caracterizada pela convivência

contínua e o tratamento dado pelos pais e também pela sociedade ao rebento como

se efetivamente possuísse elo biológico com aqueles.

Sendo assim, ainda que o julgador atual tenha a seu dispor a possibilidade de

determinar o reconhecimento da filiação afetiva, cada caso deve ser apreciado

minuciosamente, eis que nem sempre a melhor decisão a ser tomada seja coagir o

pai não biológico a assumir um filho que, por exemplo, tenha sido fruto da

infidelidade da sua esposa.

Embora tais fatos sejam lamentáveis, a melhor medida a ser tomada é aquela

que se situa no sentido de priorizar os interesses da criança. O assunto é de grande

complexidade, pois todo cidadão possui o direito de ter reconhecida a sua

paternidade biológica (art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente), sendo este

um direito imprescritível. Por outro lado, ainda que o rebento decida manter os laços

afetivos, há possibilidade de seu pai impugná-los, gerando-lhe prejuízos de ordem

sentimental.

A filiação sócioafetiva, portanto, deve ser analisada de maneira geral, na

busca por uma solução justa e menos dolorosa para as partes, sempre em atenção

ao melhor interesse da criança. Por se tratarem de questões subjetivas e de difícil

exame, deve o juiz de família empenhar-se na instrução do processo a fim de obter

elementos robustos que possam, ao final da lide, servir de base para uma decisão

apropriada.

Page 48: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

47

REFERÊNCIAS

ABREU FILHO, Nilson Paim de (Org.). Constituição Federal, Código Civil e Código de Processo Civil. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004. ALBUQUERQUE, J. B. Torres de. Investigação de paternidade. 8. ed. São Paulo: Albuquerque, 2004. AMIN, Andréa Rodrigues; et al. O Novo Código Civil: livro IV do direito de família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,2004. BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade: posse de estado de filho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação. 14. ed. São Paulo: LRT, 2002. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Lex: ABREU FILHO, Nilson Paim de (Org.). Constituição Federal, Código Civil e Código de Processo Civil. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004. __________. Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/jur/legis.htm>. Acesso em: 10 set. 2007. __________. Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/jur/legis.htm>. Acesso em: 10 set. 2007. __________. Lei n. 6.615, de 31 de dezembro de 1973. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/jur/legis.htm>. Acesso em: 10 set. 2007. __________. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/jur/legis.htm>. Acesso em: 10 set. 2007. __________. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Lex: ABREU FILHO, Nilson Paim de (Org.). Constituição Federal, Código Civil e Código de Processo Civil. 5. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004.

Page 49: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

48

__________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento 2006.011954-1, Desembargador Marcus Tulio Sartorato, julg. 22 ago. 2006b. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento 2005.031450-2, Desembargador Marcus Tulio Sartorato, julg. 20 abr. 2006c. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ap. Cível n. 02.015445-3, Chapecó, Relator Desembargador José Volpato de Souza, Decisão 04 abr. 2003. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ap. Cível n. 2003.011330-4, Desembargadora Salete Silva Sommariva, julg. 17 ago. 2004b. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível 2005.021276-5 Desembargador Maria do Rocio Luz Santa Ritta, Decisão 29 ago. 2006. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2005.042066-1, Relator Desembargador Substituto Sérgio Izidoro Heil, julg. 01 jun. 2006a. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2005.014014-1, Relator Desembargador Marcus Tulio Sartorato, julg. 16 dez. 2005a. Disponível em: <www.tj.sc.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70001790039, 7. Câmara Cível, Rio Grande, Relator Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos. julg. 02 maio 2001. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70012250528, 7. Câmara Cível, Relator Maria Berenice Dias, julg. 14 set. 2005b. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70010667855, Três de Maio, 7. Câmara Cível, Relator Walda Maria Melo Pierro, julg. 14 set. 2005c. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007.

Page 50: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

49

__________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70011437662, Nova Prata, 7. Câmara Cível, Relator Maria Berenice Dias, Julg. 01 jun. 2005d. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 01 out. 2007. __________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70008792087, Porto Alegre, 8. Câmara Cível, Relatora Catarina Rita Krieger Martins, Julg. 23 set. 2004a. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2007. __________. Tribunal de Justiça. Apelação cível n. 2005.019145-4, julg. 02 set 2005, Diário da Justiça n. 11.766, 30 set. 2005e, p. 23. COMENTÁRIOS ao novo Código civil: do direito de família, do direito pessoal, das relações de parentesco. Rio de Janeiro: Forense, 2004. COULANGES, Fustel de. A Cidade antiga. São Paulo: Martin Claret, 2004. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. FARIAS, Cristiano Chaves de. Temas atuais de direito e processo de família: primeira série. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. FREITAS, Douglas Phillips (Coord.). Curso de direito de família. Florianópolis: Vox Legem, 2004. GARCEZ, Martinho. Do direito de família: segundo o projeto de Código Civil Brasileiro. Campinas: LZN, 2003. GRANATO, Eunice Ferreira Rodrigues. Adoção: doutrina e prática. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2006. GUIMARÃES, Paulo Cotrim. A Paternidade presumida no direito brasileiro e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

Page 51: A FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO …siaibib01.univali.br/pdf/Juliana Brock.pdf · 4.1 O DEVER DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE ... paterno era

50

LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Jus Navigandi, Teresina, ano 08, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4752>. Acesso em: 02 out. 2007. __________. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da Súmula 301-STJ(1). Jus Vigilantibus, Vitória, ano 03, jan. 2006. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/19605>. Acesso em: 08 set. 2007. NOGUEIRA, Jaqueline Filgueras. A Filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001. OLIVEIRA, Euclides Benedito de. O Direito de família após a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Celso Bastos: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000. RIBEIRO, Simone Clós Cesar. As Inovações constitucionais no direito de família. Jus Navigandi, Teresina, ano 06, n. 58, 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3192>. Acesso em: 18 jun. 2007. SANTOS, Silas Silva; et al. Paternidade x paternidade socioafetiva. 2004. Disponível em: <http://www.direitodafamilia.net/listaartigo_Detalhado.asp?idartigo=132>. Acesso em: 03 out. 2007. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. WALD, Arnoldo. O Novo direito de família. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2002 __________. O Novo direito de família. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.