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a fim de tarde estava esplendido, com urn ceu tao mesclado de azul e rosa, que nem precisaria olhar para os rostinhos exaustos e sorridentes das crianyas no banco de tnis para saber que 0 dia havia sido de sol e calor, e de uma felicidade intensa. Voltavamos den osso s itio, onde haviamos passado 0 f eriado p .rolongado, e minha esposa trazia a mesma expressao radiante e traquinas dos filhos, 0 que parecia faze-la quase igualar-se a eles em idade. Isso tudo me fazia exultar intimamente, como a exibir a mim mesmo urn trofeu imaginario, que me concedia 0 primeiro premio de venturosa realizayao. A despeito disso, pensei que nunca poderia deixar de sentir uma ponta de nostalgia toda vez que fizesse essa viagem. Diante dessa constatayao, meu pensamento pos-se em retroativa fuga, indo acomodar-se em tempos pregressos, em remota intancia. Como num filme, sempre me vinha antes a mente uma canyao de raiz que eu muito ouvira dos labios de vovo, como uma trilha sonora a compor a sonoplastia de uma epoca rica de ruidos e agitos. Moravamos na cidade grande, e meu pai sempre nos levava a passar parte das ferias escolares no sitio do vovo Ovidio, onde minha irrna e eu nos deslumbravamos a cada instante com coisas corriqueiras, mas que para nos consistiam urn grande acontecimento. Isso divertia muito 0 vovo, que nao se cansava de mostrar-nos, com orgulho, cada pedacinho de suas terras, nas quais investira toda a sua vida. As arvores em abundancia, de onde nos serviamos de frutas iguais aquelas que sempre recusavamos em casa, mas que tiradas do pe pareciam ter urn outro sabor. .. Igualmente, as hortaliyas, que colhiamos com gosto para 0 almoyo e 0 jantar. as ovos, nos os carregavamos pra la e pra ca como se fossem urn filhote, acomodados na blusa, urn de cada vez, com tanto cuidado para nao se quebrarem, que a vovo ria ate perder 0 folego. a leite saia da Dengosa quentinho, e, ao verificarmos que ninguem nos observava, davamos alguns goles no meio do caminho, chegando em casa com urn "bigode" branco acusador, que vovo fingia nao ver. A Dengosa era 0 xodo do vovo; ele a havia arrematado num leilao para livra-la da "explorayao e da morte infamante". Vovo tinha suas ideologias, que nem todos conseguiam entender. Eu tambem percebia algumas vezes que ele lanyava urn olhar suplicante a mamae antes que nos, crianyas, levassemos uma bronca pela nossa roupa enlameada e nossos joelhos esfolados e sangrentos. "A lama e cicatrizante", ele jurava a nora. Minha irma, Mariana, a sonolenta Mariana, tambem acordava as 5 horas so para ver 0 "grande Sol dourado", como se nao fosse 0 mesmo que todos os dias nos chamava para 0 colegio, fazendo-a resmungar tanto, que mamae tinha de ameaya-la com castigos para conseguir tira-la da cama. a banho no riacho, cuja agua gelada nos dava uma cor arroxeada e fazia tremer feito bambu fino de tanto frio, era 0 atrativo maior, principalmente para mim, que, alias, dos irmaos, era 0 que mais dava trabalho a mamae para entrar no chuveiro quentinho do nosso apartamento. a contato com os pequeninos insetos, as vezes passageiros do vento nos fins de tarde, os pes descalyos na terra umida, 0 cheiro born do mato, que se misturava com 0

a fim de tarde estava esplendido, com urn ceu tao mesclado ... · cada instante com coisas corriqueiras, mas que para nos consistiam urn grande acontecimento. Isso divertia muito

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a fim de tarde estava esplendido, com urn ceu tao mesclado de azul e rosa, quenem precisaria olhar para os rostinhos exaustos e sorridentes das crianyas no banco detnis para saber que 0 dia havia sido de sol e calor, e de uma felicidade intensa.

Voltavamos den osso s itio, onde haviamos passado 0 f eriado p .rolongado, eminha esposa trazia a mesma expressao radiante e traquinas dos filhos, 0 que pareciafaze-la quase igualar-se a eles em idade.

Isso tudo me fazia exultar intimamente, como a exibir a mim mesmo urn trofeuimaginario, que me concedia 0 primeiro premio de venturosa realizayao.

A despeito disso, pensei que nunca poderia deixar de sentir uma ponta denostalgia toda vez que fizesse essa viagem.

Diante dessa constatayao, meu pensamento pos-se em retroativa fuga, indoacomodar-se em tempos pregressos, em remota intancia.

Como num filme, sempre me vinha antes a mente uma canyao de raiz que eumuito ouvira dos labios de vovo, como uma trilha sonora a compor a sonoplastia deuma epoca rica de ruidos e agitos.

Moravamos na cidade grande, e meu pai sempre nos levava a passar parte dasferias escolares no sitio do vovo Ovidio, onde minha irrna e eu nos deslumbravamos acada instante com coisas corriqueiras, mas que para nos consistiam urn grandeacontecimento.

Isso divertia muito 0 vovo, que nao se cansava de mostrar-nos, com orgulho,cada pedacinho de suas terras, nas quais investira toda a sua vida.

As arvores em abundancia, de onde nos serviamos de frutas iguais aquelas quesempre recusavamos em casa, mas que tiradas do pe pareciam ter urn outro sabor. ..Igualmente, as hortaliyas, que colhiamos com gosto para 0 almoyo e 0 jantar. as ovos,nos os carregavamos pra la e pra ca como se fossem urn filhote, acomodados na blusa,urn de cada vez, com tanto cuidado para nao se quebrarem, que a vovo ria ate perder 0

folego.a leite saia da Dengosa quentinho, e, ao verificarmos que ninguem nos

observava, davamos alguns goles no meio do caminho, chegando em casa com urn"bigode" branco acusador, que vovo fingia nao ver.

A Dengosa era 0 xodo do vovo; ele a havia arrematado num leilao para livra-lada "explorayao e da morte infamante". Vovo tinha suas ideologias, que nem todosconseguiam entender.

Eu tambem percebia algumas vezes que ele lanyava urn olhar suplicante amamae antes que nos, crianyas, levassemos uma bronca pela nossa roupa enlameada enossos joelhos esfolados e sangrentos. "A lama e cicatrizante", ele jurava a nora.

Minha irma, Mariana, a sonolenta Mariana, tambem acordava as 5 horas so paraver 0 "grande Sol dourado", como se nao fosse 0 mesmo que todos os dias nos chamavapara 0 colegio, fazendo-a resmungar tanto, que mamae tinha de ameaya-la com castigospara conseguir tira-la da cama.

a banho no riacho, cuja agua gelada nos dava uma cor arroxeada e fazia tremerfeito bambu fino de tanto frio, era 0 atrativo maior, principalmente para mim, que, alias,dos irmaos, era 0 que mais dava trabalho a mamae para entrar no chuveiro quentinho donosso apartamento.

a contato com os pequeninos insetos, as vezes passageiros do vento nos fins detarde, os pes descalyos na terra umida, 0 cheiro born do mato, que se misturava com 0

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aroma dos biscoitos de polvilho da vovo Zuza, vinham-me a memoria com talintensidade, que agora eu tinha a impressao de sentir-Ihes ainda ate 0 sabor.

a ceu negro e estrelado era urn convite, e vovo pegava a viola, sentava-se navaranda e punha-se a cantar musicas cuja autoria ele atribuia aos cantores sertanejos,quando 0 instigavamos a dizer 0 nome da dupla, pois nunca as ouviamos nas paradas.

Vovo entao esfon;ava-se por esconder urn risinho orgulhoso, denunciando que 0

vovo as compunha so para ela.Aguardavamos ansiosamente 0 momenta de mamae nos mandar para a cama,

pois 0 vovo nos ia chamar e levava para andar no mato em meio a escuridao da noitealta, onde fazia entrar urn vagalume num dos potes de vidro bem lavados da vovo,fechando-o a seguir para que 0 vissemos brilhar, e soltando 0 bichinho logo em seguida.

Nao sei se riamos mais com essa travessura dele ou pela bronca que ele levavada vovo, que, conhecendo-o bern, 0 aguardava a porta da cozinha forjando umaexpressao furiosa, pois teria de lavar de novo 0 recipiente para colocar suas compotas. Evovo ficava bem quietinho, pois, se papai e mamae percebessem que ele nos tirara dacama, ele levaria outra reprimenda por nos haver "acordado".

as dias de despedida eram sempre tristes; minha Irma e eu traziamos nossabagagem para 0 porta-malas com tamanha ma vontade, que sempre derrubavamosalgumas per;:aspelo caminho, caidas das mochilas entreabertas, socadas de roupasdispostas com proposital desleixo; talvez assim alguem percebesse que nao queriamos irembora tao cedo... Mas so 0 que conseguiamos era levar alguns safanoes.

Papai, muito a contragosto de mamae, deixava para partir ao entardecer, quandoestavamos "mais exaustos e menos chorosos".

Mamae dizia temer 0 congestionamento, mas acMvamos que 0 que a apavoravamesmo eram as corujas, que muito nos divertiam com 0 seu grito, uh-uh, que enchia asnoites de misterio, pois nunca as conseguiamos divisar na escuridao. au sera que era 0medo da mamae que tinha tanta grar;:a?

Antes de entrarmos no carro, invariavelmente, como num ritual, nossos avos nosentregavam presentes. Papai recebia uma garrafa de licor, que depois daria para 0

porteiro do condominio no Natal, e mamae, urn vidro grande de compota de frutas ougeleia e urn farto pacote de biscoitos de polvilho. Para minha irma, era sempre umasurpresa, que a vovo mesma confeccionava, uma per;:ade croche para 0 enxoval, apesarde ela nao ter ainda dez anos, e uma bolsa ou uma blusinha... que a deixavam muitosatisfeita. Mas para mim era sempre a mesma coisa, uma semente embrulhadinha bemmiudo com jomal, como a frizar a diferenr;:aentre os pacotes.

Mariana entao me olhava com urn risinho de deboche, razao pela qual levava urntremendo cutucao de mamae; e ai dela se chorasse!

Papai lanr;:ava-Ihetambem urn olhar de reprovar;:ao,que a meu ver era impossivelnao ser percebido, mas vovo parecia nao notar.

Vovo, nessa altura, ja havia entrado para nao chorar na nossa frente.Vovo meneava a caber;:a num gesto ja conhecido de condescendente

desaprovar;:ao;ele tambem continha a custo as lagrimas, afinal, so voltariam aver-nosnas proximas ferias, e essa hipotese nem era tao certa; como dizia a velha canr;:ao:

A grande viagem se aproxima,e a passagem vem de cima;e dessa vida a unica certeza,minha cabocla Tereza" ...

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Vovo dizia suas ultimas palavras, "boa viagem, filho", depois de ter dito 0

mesmo a mamae e a nos, sempre nessa ordem, e nos seguiamos mudos, pelo menos ateo meio do caminho, quando come((avamos a pedir todas as guloseimas que osestabelecimentos daquela estrada ofereciam.

Quando mamae me via a olhar fixamente para 0 meu embrulhinho, sem te-Ioaberto por ja saber 0 que continha, imaginava que meu sentimento predominante fosse adecep((ao, e me dizia palavras de conforto, lembrando-me a idade avan((ada de vovo esua consequente "confusao mental".

Talvez eu devesse ter contado a ela que nao ficava assim tao desgostoso, mas nofundo tinha vergonha, pois nem eu mesmo entendia por que razao nutria pela atitude devovo uma certa venera((ao, como se eu houvesse sido privilegiado ate, com aquelepresente bizarro, mas que ninguem recebia, 0 que the acrescentava valor. Entao, quandomamae me aconselhava a jogar a semente pela janela do carro, "para que caisse na terrae afinal tivesse alguma utilidade", eu concordava e fingia obedece-Ia, jogando 0

pacotinho, mas antes retirava com cuidado a semente, que escondia no bolso da cal((a.Papai ouvia a tudo muito calado, e, quando mamae e Mariana iam ao toalete

numa das paradas que faziamos para "esticar as pemas", dava-me uma moeda, talvezpara compensar "0 aborrecimento pelo estranho presente do vovo".

Entao, ele me ouvia cantar baixinho:

- "Brota pra mim, lirio branco,porque lugar de dinheiro e no bancoe a terra e 0 lugar da semente;e como 0 cora((aoda gente."

Papai se ria todo, orgulhoso pela analogia que eu buscava, talvez ate de formainconsciente, nessa can((ao.

Chegavamos em Sao Paulo tao cansados, que eu so vencia a disputa pelochuveiro porque ja havia feito a fama de i nimigo do a sseio, e m amae m e dava aprioridade de banhar-me antes que eu usasse 0 sono como desculpa para fugir da agua.

Antes de sair do banheiro, eu tirava do bolso a semente e a moeda, que guardariajuntas no cofrinho, este, unico presente "real" de vovo Ovidio.

No dia seguinte, retomavamos a "vida normal", 0 colegio, as minhas aulas denata((ao e ingles, 0 curso de bale de Mariana... 0 que, alias, certa vez ate nosinterrompeu as ferias no sitio do vovo Ovidio, pois ela fora escolhida para apresentar-senum festival em Paraty.

A vida nos instigava com novos interesses conforme os anos passavam e iamoscrescendo, e as visitas ao sitio do vovo ficavam cada vez mais curtas. Aguardavam-nosos amigos, os primeiros namoros e, como ja nao davamos tanto trabalho nem exigiamostanta aten((ao, t ambem n ossos pais a dquiriam c ompromissos d iversos, j antares c omamigos, teatros ... de forma que visitavamos nossos avos agora mais esporadicamente.

A vida e sabia e talvez fossem premonitorias as nossas agendas lotadas, poisassim nos distanciamos urn pouco mais dos velhos, sofrendo, quem sabe, urn poucomenos a sua ausencia por ocasiao de sua morte subita, primeiro a vovo, e em seguida 0

vovo, quase tres meses depois.A ultima semente que recebi do vovo veio embrulhda num papel diferente dos

demais; percebi que nao era jomal.Eu estava com quase dezoito anos, e, ao chegar em casa, como fazia

ultimamente, dirigi-me ao quarto para guarda-la.

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Por estranho que fosse, associava as moedas as sementes, e nunca achei justogastar 0 dinheiro, como se fosse parte integrante delas, das quais nao poderia desfazer-me. Nutria uma vaga sensayao de que, separados, ambos nao subsistiriam.

Dessa vez, aguardaria que todos se recolhessem para desembrulhar a semente,pois mamae ja nao me mandava joga-la pela janela do carro, como fazia quando eu eracrianya. Mas eu ainda sentia aquela ponta de vergonha por guarda-la, ainda mais agoraque eu estava crescido.

o periodo que sucedeu a morte de nossos avos foi pesaroso.Concomitantemente, eu havia entrado para a faculdade de Agronomia, e

Mariana cursaria Medicina, 0 que encheu nossos pais de salutar orgulho, amenizandourn pouco a dor pela perda dos velhos, mas acrescendo-lhes preocupayao, pois naoteriam como pagar os dois cursos.

Ademais, com grande pesar, haviam decidido vender 0 sitio, pois nao poderiammanter nem urn caseiro e, agora que os antigos donos se tinham ido, custear asdespesas, que antes se cobriam com a venda de hortaliyas.

Essa ideia nos tocava fundo, 0 sitio era uma parte integrante de nossa vida quetambem se iria, uma parte feliz, talvez a melhor. Cada pedacinho daquele chao tinha 0

suor do vovo, cada petala daquelas flores tinha 0 cuidado da vovo, cada fruto tinha 0sabor da vida que e1es nos haviam deixado de forma perene, como a suprir a falta queeles sabiam que fariam.

De repente, percebemos que jamais haviamos poupado para 0 futuro.Minha Irma e eu eramos a terceira gerayao. Papai e mamae eram a segunda.

Somente quando a primeira gerayao se foi, e que ambos se conscientizaram de que 0

porvir nao e urn etemo amanha, mas se aproxima lentamente e, sem avisar, urn dia sefaz presente.

o ambiente estava tenso; papai dizia a mamae que no dia seguinte anunciaria nojomal a venda do sitio do vovo Ovidio. Achei melhor deixa-los a sos e recolher-me.

Ao passar pela porta do quarto de Mariana, ouvi que soluyava. Estanquei 0 passopor instantes, mas logo retomei meu andar indeciso, pois nao saberia consola-Ia, afinalnao se da aquilo que nao se tern, e eu me sentia completamente vazio diante da ideia devender, a meu ver, nao apenas urn sitio, mas a alma do vovo Ovidio, dispersa em cadagoticula do orvalho que caia naquele pedayo de terra.

A situayao me acabrunhava, confesso que nao sem uma ponta de culpa, poistambem usufruira dos prodigios do modo de vida perdulario de papal.

o leito parecia-me duro e desconfortavel a falta de sono que a situayaoprovocava.

Lembrei-me da ultima semente, cujo papel de embrulho nao precisara atirar pelajane1a para fingir obedecer mamae, e pensei emjunta-Ia as outras no cofrinho.

Ao desembrulha-la, reparei novamente no papel diferente, nao era jomal comodas outras vezes... ah! vovo... que saudade...

Subito, notei, pasmado, que a semente estava envolvida num extrato bancario!Sim, urn extrato bancario! Urn extrato bancario no meu nome... meu Deus! 0 valorindicava uma pequena fortuna!

De repente tudo se aclarava.Meu avo sempre me dera uma semente... uma so semente... Claro! se me

houvesse dado urn punhado delas, ou uma semente entre outros presentes, decerto elaseria jogada fora... mas, por ser 0 unico presente, ela fora guardada com valor, uma auma... ate que a ultima se fizera acompanhar do extrato bancario indicativo de que vovoplanejara tudo. E eu, desde tenra idade, havia-Ihe apreendido de certa forma toda asimbologia dessa atitude.

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Ele me ensinara a poupar, sem intervir com a educac;:ao que papai nos dava.Vovo nao desejara afrontar papai, contrariando sua forma de "viver 0 presente".

Mas tambem nao 0 deixara totalmente fora disso, pois seu gesto thera 0 filho dar-me asmoedas por do, e, associando as moedas as sementes, aquelas eu nao gastava e estas eunaojogava.

As sementes representavam cada deposito feito em meu nome, fazendo-merecebe-Ios todos justamente na epoca em que nos mais precisariamos.

So uma semente ...

"A semente se p6e na terra,volta, meu lirio branco,vem secar este meu pranto,que tern urn sabor de reza.

Tu es a alma puerilda minha (mica princes a,vida da vida que partiu,da minha caboc1a Tereza."

A primeira vez em que voltamos ao sitio depois da morte de vov6 e vovo foimuito sofrida. Distanciei-me dos demais, pensando em "plantar" todas aquelas velhassementes, mesmo imaginando que nao brotariam mais, e rega-Ias com as minhaslagrimas, num gesto simbolico muito apropriado a elas. Cavei urn buraco na terra,depositei-as, mas recolhi-as de volta, julgando que mereciam urn fim mais pertinente.

Sim, eu aprendera a poupar ... A poupar dinheiro, alegria, emoc;:6es... guardardentro de mim a riqueza de acontecimentos felizes como aqueles de minha infiincia, naodeixa-Ia esvair-se como areia entre os dedos.

Percebi que procuraria sempre conservar no intimo essa ventura, para superar osmomentos dificeis.

Entravamos em Sao Paulo, quando notei que minha esposa e as crianc;:as haviampermanecido por todo 0 trajeto em respeitoso silencio, diga-se de passagem, em rarosilencio, como se houvessem participado de todos esses meus pensamentos.

Por uma estranha razao, dessas que so 0 corac;:ao compreende natural men fe, ecomo se ela pudesse haver absorvido minha silenciosa emoc;:ao, minha esposa pareciater os olhos marejados.

Olhei para 0 banco de tras e encontrei os rostinhos complacentes de Rita e Davi.Tirei entao do bolso duas moedas, que dei a eles. Sentindo-me co-autor deste gesto,entreguei a cada urn deles tambem uma semente.

Imaginei agora que vov6 descansaria em paz; ele havia nos deixado mais do queo sitio, mas uma heranc;:a ainda mais preciosa, toda a construc;:ao de urn carater, de umadisposic;:ao d e e ntendimento q ue n os p roporcionaria d ar a nossa familia conforto eseguranc;:a. Por muitas gerac;:6es.

- "Espere por mim, lirio branco,porque lugar de dinheiro e no banco,e lugar de semente e na terra,sem ti minha vida aqui se encerra."