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Coleção Aventuras Grandiosas Rudyard Kipling Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez 2 a edição A FOCA BRANCA

A Foca Branca

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A Foca Branca

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Coleção Aventuras Grandiosas

Rudyard Kipling

Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez

2a edição

A FOCA BRANCA

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Capítulo 1

UM LUGAR AO SOL

Tudo isso aconteceu muitos e muitos anos atrás, em um lugar chamado

Novastoshnah, na ilha de Saint Paul, no Mar de Bering, no Norte do Oceano

Pacífico. Eu viajava de VAPOR para o Japão, quando, no deque do navio,

avistei um animalzinho caído.

— O que é aquilo? — disse a mim mesmo, correndo para o local.

Era um pássaro da espécie uirapuru, que havia sido sugado pelas

fornalhas do vapor. Com muito custo, conseguira voar para fora da chaminé,

mas desmaiara logo em seguida. Sua asa direita tinha ferimentos e na cabeça

faltavam-lhe algumas penas, deixando sua pele em carne viva.

— Venha, vou levá-lo para minha cabine e cuidar de você — eu disse

a Limmershin (este era o seu nome).

Em retribuição, o pobre bichinho piscou os olhos e soltou um piado

de alívio. Eu garanti:

— Em alguns dias você vai estar recuperado, pronto para voltar voando

à ilha de Saint Paul.

Limmershin era um passarinho muito simpático e, durante os dias que pas-

sou na cabine comigo, contou-me uma história. Vou tentar recontá-la a vocês:

•Bem, para começar, ninguém visita Novastoshnah senão para realizar

algum tipo de negócio, e os seres mais interessados em obter alguma vantagem

do lugar são as focas. Na primavera, elas nadam até lá, milhares delas saem do

mar gelado e cinzento e se instalam sobre as rochas para passar pelo menos

um mês aproveitando o calorzinho. As praias de Novastoshnah são o melhor

lugar do mundo para as focas, superior a qualquer outro.

2 VAPOR: tipo de navio que funciona com motor a vapor

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2 BRAMIDOS: gritos, rugidos de um animal

2 COLINA: monte, pequena montanha

Sedutor do Mar sabia disso, por isso, nos meses quentes, saía de onde

quer que estivesse e rumava para Novastoshnah como uma flecha. Nadava a

toda velocidade para chegar à praia e disputar com seus colegas um lugar

confortável sobre as rochas aquecidas pelo sol. Ele queria sempre ficar pertinho

da praia, assim podia se banhar quando quisesse.

Sedutor do Mar tinha quinze anos. Era uma foca de pele cinza, dentes

longos e muito pontudos. Quando ele se erguia nas nadadeiras de trás, ficava

com mais de um metro de altura! E o peso, ah, se alguém no mundo tivesse a

coragem de pesá-lo, veria que ele tinha mais de trezentos quilos!

Seu rosto e corpo tinham cicatrizes das inúmeras brigas em que Sedutor

do Mar havia se metido, mas pensam que ele estava cansado de brigar? De

jeito nenhum! Era uma foca lutadora, sempre disposta a desafiar alguém para

uma briga. Ele disfarçava e se aproximava de seu oponente com a cabeça de

lado, como se evitasse encará-lo de frente. Mas, ao menor descuido do outro,

ele enfiava seus dentes afiados na garganta da outra foca. Às vezes algum deles

conseguia escapar, mas Sedutor do Mar nunca facilitava a fuga.

Apesar de ser encrenqueiro, ele nunca perseguia uma foca machucada.

Isso era contra as regras da praia. Na verdade, tudo o que Sedutor do Mar

queria era um lugar confortável para seus filhotes, mas, como todas as outras

quarenta ou cinquenta mil focas queriam a mesma coisa, às vezes ele tinha que

brigar. Nessa época do ano Novastoshnah era inundada de assobios, gritos,

uivos, BRAMIDOS e socos. Era um barulho assustador!

Do alto de uma COLINA chamada Hutchinson podia-se enxergar mais de

cinco quilômetros de focas brigando entre si; e a arrebentação estava lotada

de outras chegando para se instalar, não sem antes tomar parte nas lutas. Era o

único meio de se conseguir um lugar ao sol.

Essas focas briguentas eram todas do sexo masculino. Lutavam no

meio das ondas, na areia da praia e até sobre as rochas desgastadas e lisas

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2 LEGIÕES: grupos grandes

dos chamados “berçários”. As fêmeas só chegavam lá pelo final do mês de

maio ou início de junho, já que não tinham nenhum interesse em ser feridas e

despedaçadas.

E as focas mais novas, de dois, três ou quatro anos, que ainda não ti nham

começado a formar uma nova família, conseguiam ultrapassar os “lu tadores”

ao chegar à praia e iam brincar nas dunas em grupos enormes, verdadeiras

LEGIÕES de foquinhas jovens. Elas também gostavam de se esfregar em

qualquer plantinha verde que encontravam pela frente. Havia talvez cerca de

duzentas ou trezentas mil das chamadas focas “solteiras” em Novastoshnah.

Sedutor do Mar estava terminando sua quadragésima quinta luta daquela

primavera quando Matkah, sua esposa de pele macia, brilhante e olhos amáveis

chegou nadando. Ele a pegou pelo cangote e a levou até o lugarzinho que ele havia

reservado para sua família sobre as rochas. Depois de vê-la instalada, reclamou:

— Atrasada como sempre! Onde você estava?

Sedutor do Mar em geral não comia nada durante o tempo que passava

lutando com as outras focas macho em Novastoshnah, por isso ficava de

péssimo humor. Matkah sabia que era melhor não revidar no mesmo tom áspero

do marido. Em vez disso, ela olhava em volta e dizia:

— Que maravilha, o mesmo lugar do ano anterior! Como você é atencioso,

meu amor.

— É claro que consegui o mesmo lugar de sempre. Olhe para mim!

— respondia ele, ainda mal-humorado.

Ele tinha cortes e marcas de sangue em vinte lugares, um dos olhos

estava tão saltado que quase saía do rosto e as laterais do corpo pareciam

fitas penduradas.

— Ah, vocês homens! — dizia Matkah, abanando-se com uma das

nadadeiras. — Por que não podem ser sensatos o suficiente para definir os

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locais de suas famílias sem brigar? Você parece que andou lutando contra a

Baleia Assassina...

— Não faço outra coisa a não ser brigar desde o início de maio. A praia

está terrivelmente lotada este ano. Encontrei pelo menos umas cem focas da

Praia de Lukannon querendo se instalar. Por que as focas não ficam no lugar

onde nasceram?

— Sempre achei melhor que ficássemos na Ilha das Lontras em vez dessas

praias lotadas — argumentou Matkah.

— Não, não, só as foquinhas solteiras vão para a Ilha das Lontras.

Se fôssemos para lá diriam que estamos com medo. É preciso manter as

aparências, querida.

Sedutor do Mar meteu a cabeça entre os ombros gordos para tirar uma

soneca, mas estava sempre alerta a qualquer perigo, afinal, poderia ter que

lutar por seu território a qualquer momento. Agora que todas as focas macho

e suas esposas estavam em terra firme, o barulho aumentara em Novastoshnah.

Ouviam-se bramidos a quilômetros de distância, e tão altos que superavam

os ventos mais ruidosos.

Em uma contagem por baixo, deveria haver cerca de um milhão de fo cas

na praia — focas velhinhas, focas mãe, bebês recém-nascidos, jovens soltei ros,

focas macho; alguns brigando, outros chorando, engatinhando, tumultuando e

brincando juntos —, entrando e saindo do mar em gangues e REGIMENTOS,

estendendo-se sobre cada centímetro de terra que se enxergava e travando

lutas em meio à neblina.

Novastoshnah é um lugar quase sempre nebuloso, a não ser quando

o sol aparece e deixa tudo PEROLADO e colorido como o arco-íris por um

tempinho. Essas cores todas não duram muito, pois a noite logo volta a cair,

mas são muito bonitas.

2 REGIMENTOS: tropas, multidões

2 PEROLADO: com tons de pérola

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Capítulo 2

O BEBÊ FOCA

Kotick, o bebê de Matkah, nasceu no meio daquela confusão. Era uma

foquinha bebê linda, perfeita e com belos olhos azuis, mas havia alguma coisa

diferente em sua pele. A mãe observou o filhote com muita atenção e, por

fim, disse:

— Veja, Sedutor do Mar, nosso bebê será branco.

— Pelas conchas vazias e algas secas! — exclamou o pai. — Não existem

focas brancas neste mundo! Somos todos escuros, cinza escuro, pretos. Nunca

vi uma foca branca!

— Não posso fazer nada, ele será branco — declarou Matkah, que

lambeu cuidadosamente o bebê para limpá-lo e em seguida cantou a canção

de ninar que todas as mamães foca cantam para seus filhos.

Não me lembro direito da letra, mas era algo assim:

“Você só deve nadar quanto tiver seis semanas,

ou pode se afogar.

E de ventos de verão e de Baleias Assassinas

focas bebê não devem se aproximar não.

Mas cresça, minha criança, cresça forte e mergulhe no mar.

Isso não tem erro e você vai se ESBALDAR.”

É claro que a criaturinha não entendeu nada, mas gostou de escutar a mãe

cantando. Além disso, mesmo que fosse cor-de-rosa ou amarelo-limão, ele era

um bebê foca e se mexia e sentia o mundo como um bebê foca. Conseguiu

se movimentar até chegar bem pertinho de Matkah e também aprendeu a se

2 ESBALDAR: aproveitar bastante, divertir

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esconder atrás dela quando seu pai começava uma briga com alguma outra foca

macho. Quando ouvia rugidos e via os dois rolando pelas pedras escorregadias,

sabia: era hora de se agarrar a Matkah e ficar bem protegido.

Matkah precisava ir mergulhar em busca de comida. Kotick só comia

a cada dois dias, mas, quando o alimento chegava, ele se FARTAVA até ficar

com o estômago lotado! Enquanto sua mãe ia procurar comida, ele aprendeu

a engatinhar até a praia. Lá conheceu dezenas de milhares de outras foquinhas

da sua idade. Eles brincavam como filhotes, depois dormiam na areia limpa

da praia e, quando despertavam, voltavam a brincar. As focas mais velhas e as

solteiras não incomodavam os filhotes, que se divertiam a valer!

Quando Matkah voltava da pescaria, tudo o que ela precisava fazer era

chamar Kotick, assim como as ovelhas chamam seus carneirinhos. Ela então

esperava escutar um berro do filho como resposta e caminhava, abrindo

caminho na multidão de bebês, em direção a ele. Havia sempre centenas de

mães em busca de seus filhotes no chamado “parquinho” das crianças, e as

foquinhas ficavam todas agitadas com a presença delas.

Matkah explicou a Kotick logo da primeira vez que saiu para pescar:

— Aqui é seguro, nada de mal pode lhe acontecer, contanto que você

não se meta na lama e pegue SARNA, nem esfregue areia em algum machucado

ou mergulhe no mar agitado.

As foquinhas filhotes, assim como os bebês humanos, não sabem

nadar, mas elas têm uma vontade enorme de experimentar e não descansam

até aprender. Da primeira vez que Kotick entrou no mar, mesmo contrariando

as ordens de sua mãe, uma onda o levou para longe, onde não dava pé. Sua

cabeça afundou, ele ficou com as nadadeiras para o alto, tentando voltar. Por

sorte uma segunda onda o carregou de volta até a praia. Se não fosse isso, ele

teria se afogado.

2 FARTAVA: enchia, saciava

2 SARNA: escabiose, doença de pele que causa coceira

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Depois disso ele aprendeu a se deitar em uma pequena piscina natural,

formada por areia e rochas na beira da praia. Ele então deixava as ondas o

cobrirem e o levantarem um pouco enquanto batia as nadadei ras. Estava

sempre de olho nas ondas grandes e fugia correndo quando via uma delas.

Fazia duas semanas que Kotick estava aprendendo a usar as nadadeiras.

Eram cenas engraçadas! Ele se atrapalhava todo, entrava e saía da água,

resmungava, então ia tirar uma soneca na areia e voltava para a piscina de pois.

Por fim, Kotick aprendeu a nadar.

Então imaginem como ele aproveitava os dias com seus amigos

mergulhando sob as ondas ou deixando a água arrastá-los até a praia. Todos

no meio da espuma, felizes da vida. De vez em quando ele avistava uma

barbatana, como uma barbatana de tubarão, dando voltas por perto. Então

ele se lembrava de sua mãe dizendo:

— É preciso tomar muito cuidado com as Baleias Assassinas, que

comem foquinhas quando conseguem pegá-las.

Kotick, nessas horas, nadava para a praia como uma flecha, e a barbatana

desaparecia depois de um tempo, como se estivesse insatisfeita por não ter

achado nada.

No final de outubro as focas começavam a deixar a ilha de Saint Paul e

partir, em grupos, famílias e tribos para alto-mar. Nessa época acabavam as

brigas pelos berçários e as focas “solteiras” podiam brincar onde quisessem.

— No ano que vem você vai estar junto com os “solteiros”, mas agora

precisa aprender a pescar — disse Sedutor do Mar ao seu filho Kotick.

Então a família partiu pelo Oceano Pacífico adentro. Matkah ensinou

Kotick a dormir de barriga para cima, boiando com as nadadeiras bem firme

ao corpo, nas laterais, e o nariz para fora da água. Não existe berço mais

confortável do que o longo e suave balanço do Pacífico. Certo dia, Kotick

disse a sua mãe:

— Minha pele está formigando!

A paciente Matkah explicou:

— Você está aprendendo a “sensação da água”.

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— E o que quer dizer isso? — perguntou ele, assustado.

— Formigamento na pele significa que uma tempestade está a caminho.

— E o que vamos fazer?

— Nadar bem depressa para fugir dela — tranquilizou-o a mãe.

— Para onde? — insistiu ele.

— Logo, logo você saberá para onde nadar, mas por enquanto siga o

Boto, pois ele é muito esperto.

Uma escola de botos estava cruzando as ondas naquela hora, então

Kotick os seguiu o mais depressa que conseguiu.

— Como vocês sabem para onde ir? — perguntou Kotick a um dos

botos, aquele que parecia o líder.

Ele virou seus grandes olhos e mergulhou, dizendo:

— Minha cauda está formigando, rapazinho. Isso significa que tem

um TEMPORAL atrás de mim. Venha, venha junto conosco! A água está ruim

por aqui.

Essa foi uma das coisas que Kotick aprendeu, e ele era um ótimo

aluno. Matkah o ensinou a perseguir os peixes dentro das tocas marinhas e

também como procurar alimento nos navios afundados. Com ela ele também

aprendeu a dançar sobre a espuma das ondas quando o sol cintilava forte

no céu e a abanar suas nadadeiras para os lindos albatrozes e falcões que

voavam com o vento.

Uma das coisas que Kotick mais gostou de aprender foi pular, tirando

o corpo inteiro fora da água como os golfinhos, as nadadeiras bem perto

do corpo e a cauda dobrada. Outra coisa muito importante que Matkah lhe

disse foi:

— Nunca se aproxime de um navio ou barco, principalmente se for um

barco a remo.

2 TEMPORAL: tempestade, chuvarada, vendaval

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Seis meses no mar e Kotick sabia tudo sobre pesca em alto-mar. E

durante esse tempo todo ele não colocou os pés, ou melhor, as nadadeiras,

em terra firme.

Capítulo 3

CRUELDADE EM NOVASTOSHNAH

Certo dia, enquanto Kotick dormitava nas águas quentes próximas da

Ilha Juan Fernandez, ele sentiu uma moleza, uma preguiça boa, como a que

os humanos sentem quando a primavera está chegando. Então ele se lembrou

da areia firme e branca de Novastoshnah a mais de dez mil quilômetros de

distância, das brincadeiras no “parquinho” das focas, do cheiro das algas, dos

rugidos e das brigas.

Na mesma hora, ele virou para o norte e começou a nadar com toda a

sua força para Novastoshnah. No caminho, encontrou muitos e muitos amigos,

todos indo na mesma direção.

— Olá, Kotick! — disseram. — Este ano faremos parte da turma dos

“solteiros”! Vamos nadar nas ondas espumantes, dançar a Dança do Fogo e

nos divertir muito!

— É isso aí! — comemorou Kotick.

— Mas, diga uma coisa, onde foi que arrumou esse pelo? — perguntavam

os amigos.

A pelagem de Kotick estava quase totalmente branca agora, e, embora

ele tivesse muito orgulho dela, disse apenas:

— Vamos nadar depressa! Meus ossos estão cansados, loucos para pisar

em terra firme.

Assim todos chegaram à praia onde tinham nascido. Lá viram as focas mais

velhas e também seus pais brigando por um lugar para seus irmãozinhos que

iriam nascer, tudo sob a atmosfera nebulosa característica daquele lugar mágico.

Naquela noite Kotick e as outras jovens focas dançaram a Dança do

Fogo. O mar parece repleto de “fogo” nas noites de verão, desde Lukannon

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até Novastoshnah. Cada foca, quando pula na água, deixa para trás um rastro

de luz parecido a uma chama acesa, e as ondas quebram em redemoinhos e

faixas FOSFORESCENTES.

Depois disso, eles foram em grupos para a área reservada aos solteiros,

rolaram sobre a grama molhada e contaram histórias de quando estavam em

alto-mar. Falaram sobre o Pacífico como meninos falariam de uma floresta

onde estiveram acampando e colhendo frutas silvestres. E se algum humano

pudesse compreendê-los, teria condições de traçar um mapa tão detalhado

do oceano, que seria algo INÉDITO.

Os solteiros de três ou quatro anos desceram correndo a colina

Hutchinson gritando:

— Crianças! Vocês não sabem nada do mar ainda. Esperem até cruzarem

o cabo Horn. O mar é mais profundo do que imaginam — GABAVAM-SE.

Depois olharam para Kotick e perguntaram:

— Ei, pirralho, onde arrumou essa capa branca?

— Não arrumei, ela cresceu — disse Kotick.

E bem na hora em que iam continuar a conversa sobre os pelos brancos

da jovem foca, dois homens de cabelos negros e rostos vermelhos saíram de

trás das dunas. Kotick, que nunca tinha visto um homem antes, parou de falar

e ficou olhando para eles, depois tossiu e baixou a cabeça. As focas solteiras

se juntaram em um canto e observaram os dois com olhar inocente, sem se

afastar muito.

Os sujeitos eram nada menos do que Kerick Booterin, o chefe dos

caçadores de foca na ilha, e Patalamon, seu filho. Eles saíram do pequeno

vilarejo que havia a cerca de um quilômetro de distância, e estavam ali para

escolher que focas iriam levar para se transformar em casacos de pele.

2 FOSFORESCENTES: que brilham no escuro

2 INÉDITO: sem precedentes, original, novo, nunca visto antes

2 GABAVAM-SE: orgulhavam-se

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— Uau! — disse Patalamon. — Veja, pai, uma foca branca!

Kerick Booterin, que era ESQUIMÓ, começou a murmurar uma espécie

de reza, e alertou o filho:

— Não toque nele, Patalamon. Desde que eu nasci não aparece uma foca

branca na ilha. Talvez seja o fantasma do velho Zaharrof. Ele sumiu na grande

tempestade do ano passado.

— Não vou me aproximar dele — garantiu o rapaz. — Deve trazer má

sorte. O senhor acha mesmo que é o velho Zaharrof que voltou? Eu devo

dinheiro a ele.

— Nem olhe para ele! — alertou o pai. — Vamos em direção às focas

de quatro anos. Precisamos levar umas cem hoje. Rápido, vamos!

Patalamon chacoalhou um guizo perto de um grupo de focas solteiras,

que começaram a bufar e respirar alto, sentindo-se completamente paralisadas.

Então ele se aproximou e as focas começaram a se movimentar. Kerick e

Patalamon, usando o guizo e gritando, conduziram o grupo de focas para

dentro da ilha. Elas não olharam para trás e não tentaram voltar para junto de

seus companheiros.

Centenas e centenas de milhares de focas as assistiram ser levadas, mas

continuaram a brincar da mesma forma. Só Kotick fazia perguntas:

— O que está acontecendo? Por que elas foram embora com aqueles

homens?

Nenhum de seus amigos conseguiu dar uma explicação satisfatória, mas

os mais velhos disseram que todo ano, durante dois meses, aqueles sujeitos

conduziam grupos de focas para dentro da ilha e elas nunca voltavam.

— Vou segui-los! — anunciou Kotick, esgueirando-se colina acima em

direção ao grupo e aos homens.

2 ESQUIMÓ: povo originário da Groenlândia, do norte do continente

americano e de algumas ilhas do mar Ártico. Muitas vezes outras tribos

que habitam o Ártico são chamadas genericamente de esquimós

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— Pai, a foca branca está nos seguindo! — alertou Patalamon. — É a

primeira vez que um animal destes vem sozinho para o MATADOURO.

— Não olhe para ela! Tenho certeza de que é o fantasma do velho

Zaharrof — disse o pai. — Preciso conversar sobre isso com o padre.

O matadouro ficava a menos de um quilômetro de distância, mas Kerick

conduziu as focas bem devagar, por isso levaram quase uma hora até lá. O

experiente caçador sabia que, se elas andassem depressa, seus corpos ficariam

aquecidos e os pelos se desprenderiam em pedaços na hora em que tivessem

suas peles arrancadas.

Kotick seguiu as colegas de perto. Ele achava que tinha caminhado

demais, que estava quase no fim do mundo, e, embora não pudesse mais

enxergar as focas na praia, conseguia escutar seus rugidos como se estivessem

ao seu lado.

Então Kerick e seu filho pararam, sentaram-se no chão úmido e cheio

de limo e deixaram o grupo de focas descansar para baixar a temperatura do

corpo. Kotick sentia gotas de suor pingar de seu pelo.

Em seguida chegaram uns dez ou doze homens MUNIDOS de

PORRETES compridos e começaram a golpear as focas na cabeça com toda

força. Dez minutos depois, Kotick já não reconhecia seus companheiros.

Suas peles tinham sido arrancadas da ponta do nariz até a nadadeira de trás

e atiradas sobre uma pilha enorme. Centenas de litros de sangue manchavam

o chão do matadouro.

— Basta! Não quero mais assistir a isso! — disse Kotick a si mesmo.

Ele então deu meia-volta e correu em direção ao mar (“correu” é modo

de dizer, mas ele caminhou bem depressa, como as focas conseguem fazer

2 MATADOURO: local onde animais são mortos por seres humanos,

que fazem uso da pele e da carne desses animais

2 MUNIDOS: providos, abastecidos

2 PORRETES: pedaços de pau com a ponta arredondada

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por um período curto de tempo). Seus bigodes chegavam a estar ERIÇADOS

de tanto pavor!

No trajeto de volta à praia, Kotick encontrou o Leão Marinho, refrescando-se

em uma piscina natural de rochas e água do mar. Ele aproveitou e entrou

na piscina também, molhando o rosto e fazendo um barulho estranhíssimo

com a boca.

— O que houve? — perguntou o Leão Marinho.

— Estou perdido! Estão matando todas as focas solteiras da praia!

— gritou.

O Leão Marinho olhou para os lados, suspirou e disse:

— Não faz sentido. Seus colegas estão fazendo o mesmo barulho de

sempre lá na praia.

— Eu vi! Não na praia, mas lá no alto, longe do mar.

— Você deve ter visto o velho Kerick EXTERMINANDO um REBANHO.

Ele faz isso há trinta anos.

— Mas... mas... isso é terrível! — exclamou Kotick, indignado com a

naturalidade com que seu INTERLOCUTOR tratava do assunto.

— Benfeito pra vocês.

— O quê? — surpreendeu-se ainda mais a jovem foca.

— Todo ano, há décadas, vocês focas vêm para cá. É claro que os

homens se dão conta disso. A menos que encontrem uma ilha onde não

existem homens, vocês serão mortos todos os anos.

— E existe uma ilha assim?

— Faz vinte anos que persigo os peixes de água salgada e nunca encontrei

uma ilha sem homens, mas você me parece um garoto que tem jeito para

2 ERIÇADOS: arrepiados

2 EXTERMINANDO: matando, destruindo, acabando com, banindo

2 REBANHO: um grupo de animais conduzidos por uma pessoa

2 INTERLOCUTOR: aquele com quem se está conversando

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2 NATO: de nascença, natural

2 MORSAS: animais marinhos que chegam a pesar uma tonelada

2 APORTOU: chegou

2 PRESAS: dentes

conversar com seus superiores. Parece que estou olhando para um líder NATO.

Por isso tenho uma sugestão a fazer — disse o Leão Marinho.

— Que sugestão? — perguntou Kotick, desanimado.

— Por que não mergulha e vai atrás do velho Porco do Mar? Ele fica na

ilhota das MORSAS e deve saber alguma coisa.

Kotick respirou fundo, impaciente.

— Vamos, não fique assim, são só uns nove ou dez quilômetros de

distância. Se eu fosse você, tiraria uma soneca para descansar um pouco e

depois me atiraria ao mar.

A jovem foca pensou, pensou e resolveu seguir o conselho do Leão

Marinho. Ele desceu até sua própria praia, deitou-se em um cantinho apertado

entre seus companheiros e dormiu por uma hora e meia. Depois levantou,

esticou as nadadeiras e disse:

— Grande mar, aí vou eu!

Capítulo 4

EM BUSCA DE UMA SAÍDA

A ilhota das Morsas era um apanhado de rochas baixas a nordeste de

Novastoshnah. De longe já era possível avistar os recifes e os ninhos de gaivotas,

onde as morsas se reuniam por conta própria.

Kotick APORTOU na ilha e foi direto falar com o Porco do Mar, uma enor -

me morsa muito feiosa, fedorenta, com o pescoço gordo e uma das maiores

PRESAS do Pacífico Norte. O bicho não era lá muito educado, a não ser quando

estava dormindo. Kotick saiu da arrebentação das ondas e chacoalhou-o:

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— Ei, acorde! — gritou para a grande morsa, pois as gaivotas faziam um

barulho incrível.

— Ãh? O quê? O que foi? — disse o Porco do Mar, despertando meio

estabanado.

Acabou batendo com os dentes gigantes na morsa ao seu lado, que

também despertou e por sua vez esbarrou na outra morsa ao seu lado, que fez

a mesma coisa com outra morsa. Em pouco tempo, estavam todas as morsas

acordadas, sem saber para onde olhar e o que pensar.

— Ei, sou eu, aqui! — disse Kotick, chamando a atenção com batidas

das nadadeiras na água.

Todos olharam espantados para aquela criatura branca como se fossem

um bando de senhores sonolentos sendo acordados por uma criança. A jovem

foca não perdeu tempo e saiu logo perguntando:

— Existe alguma ilha por aqui onde não existam homens? Um lugar onde

as focas possam ir e ficar em segurança?

— Descubra sozinho! Estamos ocupados demais por aqui! — esbravejou

o Porco do Mar.

Kotick deu um pulo como os dos golfinhos dentro da água e gritou:

— Seu comedor de MARISCOS!

Ele sabia que o Porco do Mar era um folgado. Nunca pescava para comer,

apenas se arrastava pelas rochas arrancando mariscos e algas.

As gaivotas e os outros pássaros da ilha ficaram empolgados com a

atitude da foca branca, pois ninguém tinha coragem de enfrentar aquela criatura

fedida e mal-educada. Em pouco tempo, eles se uniram a Kotick e por quase

cinco minutos não seria possível escutar nem um disparo de arma na ilha das

Morsas. Todos os pássaros gritavam em UNÍSSONO:

— Comedor de mariscos! Comedor de mariscos!

2 MARISCOS: animais invertebrados, como moluscos e crustáceos

2 UNÍSSONO: de uma só vez, em conjunto

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O Porco do Mar virava o corpo gigante de um lado para o outro,

grunhindo, tossindo e reclamando. Kotick aproveitou quando o som agudo

dos pássaros diminuiu e perguntou de novo:

— Será que agora você pode dizer?

— Vá perguntar para a VACA MARINHA. Se ela estiver viva, vai saber lhe

responder — replicou a morsa.

— E como vou saber reconhecer a Vaca Marinha?

— Ela é a única criatura mais feia do que o Porco do Mar! Mais feia e mais

mal-educada! — gritou uma gaivota que passou voando pertinho do nariz da

morsa fedorenta.

Kotick foi embora para Novastoshnah, deixando as gaivotas mais

ALVOROÇADAS do que nunca. Lá chegando, para sua surpresa, descobriu

que nenhum de seus companheiros apoiava seus esforços para descobrir um

novo lugar para as focas.

— Os homens sempre levaram os solteiros para o interior da ilha

— argumentaram.

— Mas eles levam as focas para matar! — explicou Kotick.

— Se você não gosta de ver crueldade, então não vá atrás dos homens

até o matadouro — disseram.

A diferença estava toda aí. Nenhum de seus amigos tinha visto a matança

e Kotick tinha! Além disso, ele era uma foca branca!

— O que você deve fazer é crescer e virar uma foca adulta como eu

— disse Sedutor do Mar, quando ficou sabendo das aventuras de seu filho.

— Depois arrume uma esposa e um cantinho para que ela tenha seus filhotes

aqui na praia. Pare de sonhar, rapaz, e trate de viver. Você quer mudar o

mundo, mas primeiro tem que cuidar de você mesmo. Aprenda a pescar,

a se defender e lutar pelo seu território e ninguém vai incomodá-lo. Dentro

2 VACA MARINHA: manati, animal semelhante ao peixe-boi

2 ALVOROÇADAS: agitadas, animadas, empolgadas

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de uns cinco anos você já deve conseguir lutar sozinho. De nada adianta

lutar pelos outros.

Até mesmo a doce e gentil Matka falou para o filho:

— Você nunca vai conseguir acabar com a matança, querido.

— Mas, mãe... — ele tentou falar.

— Vá brincar com seus amigos e dançar a Dança do Fogo — recomen-

dou ela.

Kotick obedeceu e se entregou à Dança do Fogo, mas sentia um peso

enorme em seu coração.

Naquele outono, Kotick deixou Novastoshnah o mais depressa possível.

E foi sozinho, pois tinha uma ideia fixa na cabeça: achar uma ilha onde homem

nenhum iria pisar. Antes de partir, disse a si mesmo:

— Vou descobrir essa tal de Vaca Marinha, se é que essa criatura existe.

Ela há de me ajudar, apontando um lugar seguro para as focas, uma ilhota

tranquila, com praias boas e águas calmas.

Capítulo 5

UM PARAÍSO SUBMERSO

Kotick então passou a explorar o mar sozinho, do norte ao sul do Pacífico,

passando por aventuras incríveis. Nunca se esqueceria das vezes em que

escapou POR UM TRIZ do Tubarão Martelo, do Tubarão dos Mares do Norte, do

Tubarão Pintado e das ocasiões em que se deparou com perigos terríveis, como

quando quase foi mordido por uma cobra marinha. Mas ele também conheceu

peixes muito amigos e fez amizade com as vieiras, conchas avermelhadas e

manchadas onde cresce uma espécie de molusco durante centenas de anos.

No entanto, Kotick nunca encontrou a Vaca Marinha nem viu nenhuma

ilha considerada boa para as focas. Se a praia tinha areia firme e rochas bem

2 POR UM TRIZ: por pouco, por um fio

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formadas para as focas brincarem, havia sempre uma fumaça saindo do interior

da ilha. Isso ele sabia o que significava: seres humanos. E mesmo que não

houvesse fumaça alguma, às vezes ele observava destroços de embarcações

jogados na arrebentação. Nessas horas, Kotick dizia:

— Os homens estiveram por aqui, e onde vieram uma vez, com certeza

podem voltar.

Certa manhã, Kotick conheceu um velho albatroz. Ele estava pousado

sobre um banco de areia e os dois começaram uma boa conversa. O pássaro,

que já tinha voado para muitos lugares, disse à jovem foca:

— A ilha de Kerguelen é muito tranquila. Acredito que aquele seja o

local que você procura.

Kotick nadou até lá e quase foi esmagado contra os penhascos e rochas

da ilha por causa de uma tempestade, mas, assim que conseguiu subir nas

pedras, percebeu: aquele lugar já havia servido de berçário para focas. Seus

antepassados já tinham passado por lá. Ele pensou, refletiu e disse:

— As focas devem ter sido mortas. Mais uma vez, se os homens estiveram

por aqui, voltarão.

Com a experiência, Kotick notou que muitas outras ilhas que ele

visitava já tinham sido berçário de focas. Limmershin me deu uma enorme

lista de todos os lugares, pois me explicou que Kotick passou cinco anos

explorando o oceano, sempre com um intervalo de quatro meses por ano

em Novastoshnah, quando seus colegas riam e duvidavam de suas aventuras,

dizendo:

— Kotick tem uma boa imaginação. Adora inventar ilhas desconhecidas!

Mas ele realmente visitou muitos e muitos lugares. Foi até as ilhas Galápagos,

perto do Equador, um local tão seco que ele quase morreu assado. Conheceu

também as ilhas Geórgia, as Orkneys, a Ilha Esmeralda, chegou até o Cabo da

Boa Esperança, mas em toda parte a população marinha dizia a mesma coisa:

— As focas já passaram por aqui, mas os homens acabaram com elas.

Em um lugar muito distante chamado Cabo Corrientes, Kotick encontrou

algumas focas doentes, com a pele sarnenta. Elas também disseram que os

homens já tinham passado por lá.

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Aquela cena deixou-o arrasado. Pobres focas. Ele então deu meia-

-volta e seguiu para o norte de novo, em direção às suas praias. No caminho,

deparou-se com uma ilha cheia de árvores e folhagens onde havia uma foca

muito, muito velha. Ela estava morrendo, por isso Kotick pescou para ela e a

alimentou, depois lhe contou sobre os sofrimentos que andava encontrando

pelos mares.

— Agora vou voltar a Novastoshnah — disse ele. — E se os homens

quiserem me levar para o matadouro, não haverá nada que eu possa fazer.

— Tente mais uma vez — pediu a velha foca. — Na época em que

éramos mortas aos milhares, escutávamos uma história que, um dia, chegaria

uma foca branca do Norte para levar toda a população de focas até um lugar

calmo e seguro.

Ela ainda disse:

— Sou muito velha e não viverei para testemunhar este dia, mas outras

viverão. Tente mais uma vez!

Kotick mexeu nos bigodes, que eram uma beleza, e falou:

— Sou a única foca branca que já nasceu nas praias do Norte. E também

a única que se interessou em procurar uma ilha sossegada.

Animado, voltou a Novastoshnah. Sua mãe, Matkah, implorou ao filho:

— Case-se, Kotick, você não está mais em idade de ser solteiro. Chega

de procurar ilhas que não existem.

— Preciso só de mais um ano — explicou ele. — Lembre-se, mãe, é

sempre a sétima onda que avança mais longe na areia!

O curioso é que havia uma linda foquinha que decidira:

— Só vou me casar no ano que vem.

Kotick dançou a Dança do Fogo com ela na noite que antecedeu sua

partida para mais um ano de exploração dos mares. Dessa vez ele foi em direção

a oeste, já que seguira um enorme CARDUME. Ele precisava de vários quilos

2 CARDUME: conjunto de peixes

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de peixe por dia para se alimentar e ficar com boa disposição. Ele seguiu os

peixes até cansar, depois foi tirar uma soneca nas rochas da Ilha Copper.

Ele conhecia bem aquela região, por isso, perto da meia-noite, enquanto

se aconchegava em uma caminha fofa de mato sobre as rochas, virou de lado

e disse, espreguiçando-se:

— A maré vai subir hoje à noite.

Ele abriu os olhos ligeiramente e pulou para trás como um gato. Havia

alguma coisa se mexendo em volta da rocha onde ele estava, alguma coisa

mordiscando o mato e ESPREITANDO.

— Pelas Ondas Gigantes! Pelos Mares Profundos! — exclamou. — Quem

são estas criaturas?

Não se pareciam com morsas, nem com leões marinhos, focas, baleias,

tubarões, peixes, com nada que Kotick já tinha encontrado na vida. Mediam

entre cinco e dez metros e não tinham nadadeiras traseiras, mas sim umas

caudas que pareciam pás, como se tivessem sido esculpidas, de tão perfeitas.

Elas tinham a cabeça mais esquisita que pode existir e estavam sempre

mordiscando algum mato ou alga. Às vezes balançavam a cabeça para a

frente, como se estivessem se cumprimentando solenemente e acenando as

nadadeiras da frente como um homem gordo acena com o braço.

— E aí, pessoal? — cumprimentou Kotick.

Elas responderam balançando a cabeça e acenando com as nadadeiras.

Quando voltaram a se alimentar, Kotick notou que tinham uma boca enorme, que

abria e fechava, conseguindo abocanhar grandes quantidades de alga por vez.

— Que jeito estranho de comer — comentou a jovem foca.

Elas inclinaram a cabeça para a frente de novo em resposta.

— Muito bem — disse Kotick, perdendo a paciência. — Se vocês têm

uma JUNTA a mais nas nadadeiras, não precisam ficar se exibindo. Já vi que

2 ESPREITANDO: espiando, investigando, observando, estudando

2 JUNTA: articulação

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sabem fazer uma REVERÊNCIA como ninguém. O que quero é saber o nome

de vocês.

Elas mexeram a enorme boca e fixaram os olhos APÁTICOS, parecendo

de vidro, na jovem foca, mas não disseram nada.

— Bem, vocês são as únicas criaturas que já vi mais feias do que o Porco

do Mar. Mais feias e mais mal-educadas! — exclamou Kotick. — Só podem

ser as Vacas Marinhas!

As Vacas Marinhas continuaram a nadar e a devorar as algas perto das

rochas, enquanto Kotick aproveitou para fazer perguntas em todas as línguas que

já tinha escutado em suas viagens. O povo do mar fala quase tantas lín guas

diferentes quanto os seres humanos... Mas elas não respondiam, pois as Vacas

do Mar não falam. Elas têm apenas seis ossos na garganta, onde deveriam ter

sete, e corria um boato pelos mares que isso as impedia de falar até mesmo

entre elas. A comunicação é toda feita com movimentações da cabeça e da

junta a mais que elas têm nas nadadeiras. Parece um código telegráfico meio

desajeitado.

De manhã, as Vacas Marinhas deixaram o rochedo e começaram a nadar

em direção ao Norte. De vez em quando paravam para realizar verdadeiras

reuniões usando reverências e acenos. Kotick as seguiu e, no caminho, pensou:

“Criaturas estúpidas como estas já teriam sido mortas pelos humanos se não

tivessem encontrado uma ilha segura. O que é bom para as Vacas do Mar deve

ser bom para as focas também. Vou continuar a segui-las, mas como seria bom

se elas fossem um pouco mais depressa”.

Aquela viagem era uma verdadeira tortura para Kotick. As Vacas Marinhas

nadavam muito devagar e percorriam uma distância mínima por dia, parando

sempre perto de rochedos à noite para se alimentar. Ele nadava em volta delas,

tentava animá-las, mas não conseguia fazê-las ir mais depressa. À medida que

2 REVERÊNCIA: saudação na qual se inclina o corpo para a frente

2 APÁTICOS: indiferentes, impassíveis

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foram chegando mais para o Norte, elas paravam ainda mais para suas reuniões

usando sinais de cabeça e acenos. Kotick já estava quase arrancando seus

bigodes, quando percebeu que as Vacas estavam seguindo uma corrente de

água mais quente. Daí sim ele passou a respeitá-las.

Certa noite, elas mergulharam — fundo como pedras — e começaram

a nadar bem rápido. Kotick as seguiu espantado, pois nunca imaginou que as

Vacas Marinhas pudessem ser tão boas nadadoras. Elas foram até um enorme

rochedo perto da costa, que submergia até um buraco escuro perto da sua

base, muitos metros para baixo da água. Kotick as acompanhou na descida

profunda, uma distância e tanto, e quase ficou sem ar, quando finalmente

atravessou um túnel e subiu à tona, respirando com alívio.

— Uau! — admirou-se a foca branca. — Foi um mergulho longo, mas

valeu a pena! — disse.

As Vacas Marinhas haviam se espalhado pela melhor praia que Kotick

já tinha visto. Havia metros de rochas gastas pelo mar, por isso bem lisas,

ideais para os berçários das focas e também muitas áreas de areia firme,

com pequenas ladeiras para as focas brincarem, ondas suaves para as focas

dançarem, muita grama para rolar e também DUNAS para subir e descer. O

melhor de tudo era que, pela temperatura da água, que nunca enganava uma

foca já experiente nos mares como Kotick, ele sabia que os homens nunca

tinham pisado ali.

A primeira coisa que ele fez foi verificar se ali era possível pescar para

se alimentar. Era! Depois percorreu e contou, animado, as inúmeras praias

escondidas naquela ilha submersa que também tinha muita névoa no ar. Na

superfície do mar havia rochedos e banco de areias tão compridos, que seria

impossível para um navio atracar por perto sem encalhar ou ser destruídos nas

pedras. Além disso, a boca do túnel que levava às praias submersas era muito

funda. Nenhum homem teria a capacidade de mergulhar até lá.

2 DUNAS: montes de areia que se formam pela movimentação

dos ventos

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— Isso é Novastoshnah centenas de vezes melhor! As Vacas Marinhas

devem ser mais inteligentes do que imaginei! — disse ele. — Se existe algum

lugar seguro no mundo, estou nele.

Kotick investigou bem o local, pois, quando voltasse a Novastoshnah,

precisaria responder perguntas de todos, depois resolveu partir o mais depressa

possível. Passou pelo túnel e chegou À TONA. Quando olhou para o rochedo

antes de sair nadando, pensou: “Quem diria que existe um paraíso lá embaixo?

Eu mesmo não acredito que estive lá!”

Capítulo 6

A MUDANÇA

Seis dias depois, Kotick chegou a Novastoshnah. Assim que aportou,

encontrou a jovem foca que o esperava para se casar. Ela viu em seus olhos

que ele tinha encontrado um local seguro para as focas.

No entanto, seu pai, o Sedutor do Mar, e a outras focas, riram quando

ele disse que havia descoberto uma ilha submersa ideal para PERPETUAR sua

espécie. Uma foca da sua idade disse:

— Tudo bem, Kotick, vamos supor que seja verdade sua descoberta.

De qualquer maneira você não pode chegar e dizer que temos que sair daqui

para um lugar onde ninguém conhece. Estamos lutando por um lugar nesta

praia para que nossas esposas tenham seus bebês, coisa que você nunca fez.

Preferiu passar a vida perambulando pelos mares.

Todos riram muito. Kotick disse:

— Não tenho por que lutar. Só quero mostrar a todos vocês um lugar

seguro para que suas esposas tenham os bebês. Não será mais preciso brigar.

Há espaço para todos!

2 À TONA: à superfície

2 PERPETUAR: tornar eterno

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2 DESPREZANDO: rejeitando, recusando

— Você está fugindo da briga! — desafiou o primeiro.

— Muito bem — falou Kotick. — Se eu vencer a luta, você vem

comigo?

— Combinado. Se você vencer, eu o acompanho até esse lugar miste-

rio so — concordou o desafiante.

Não houve tempo para pensar duas vezes, pois a briga começou na

hora. Os dois rolaram pela areia, um tentando morder o pescoço do outro.

Limmershin me disse que nunca assistira a uma briga de focas tão feia — e

ele já viu muitas. Segundo ele, Kotick, que tinha um excelente preparo físico

em função do longo tempo que passava no mar, atacou seu companheiro de

modo certeiro, derrubando-o e mordendo-o com toda força até que ele pediu:

— Pare, por favor. Está bem, você venceu!

— Passei cinco anos da minha vida procurando uma ilha segura para

vocês! — gritou Kotick. — E agora vocês estão DESPREZANDO isso. Quem é

o próximo a me desafiar? — perguntou.

Então várias focas se candidataram e Kotick foi acabando com cada uma

delas. Sedutor do Mar, surpreso em ver a atuação do filho, gritou:

— Ele pode falar bobagens, mas é o melhor lutador que já existiu nesta

praia. Não me ataque, filho, pois estou do seu lado!

Kotick soltou um grande rugido em resposta e então pai e filho passaram

a lutar do mesmo lado, atacando e destruindo cada foca que ousou desafiá-los.

Quando nenhuma outra foca quis lutar, eles ficaram lado a lado, triunfantes.

Matkah e a jovem foquinha que ia se casar com Kotick estavam orgulhosas.

Olhando para as focas machucadas, quase mortas, Kotick falou:

— Receberam uma lição!

— Nem a Baleia Assassina teria feito algo assim! — exclamou Sedutor

do Mar. — E eu digo mais, filho: vou com você até a praia submersa que

você diz existir.

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— Escutaram? — perguntou Kotick a toda a praia. — O Grande Sedutor

do Mar vai comigo até o Túnel das Vacas Marinhas! Mais alguém está disposto

a vir conosco? Respondam!

— Vamos com Kotick! — disseram milhares de vozes exaustas. —

Seguiremos Kotick, a Foca Branca.

Ele olhou para baixo e respirou, aliviado. Não era mais uma foca branca,

mas sim vermelha de sangue. De qualquer maneira, não sentia mais dor nos

ferimentos, pois tinha conseguido seu objetivo.

Na manhã seguinte, um verdadeiro exército de focas — mais ou menos

umas dez mil — saiu em direção ao grande Túnel das Vacas Marinhas liderado

por Kotick. As que ficaram em Novastoshnah os chamaram de idiotas, mas eles

não se importaram.

Na primavera seguinte, tudo o que se escutava nos rochedos do Pací-

fico eram rumores sobre uma praia submersa descoberta por Kotick, a Foca

Branca. Naquele ano, mais e mais focas deixaram Novastoshnah e seguiram

para o Túnel.

É claro que a mudança não ocorreu toda de uma só vez, já que as focas

demoram demais para mudar de ideia. No entanto, ano após ano as focas

foram se transferindo para as areias firmes e tranquilas onde Kotick passa os

verões engordando, crescendo e se fortalecendo, enquanto as focas solteiras

brincam ao redor, na praia onde homem nenhum aparece.

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Roteiro de leitura

Onde se passa a história?

Quem narra a história?

Quem era Limmershin?

Como Sedutor do Mar e as outras focas macho faziam para conseguir um

lugar na ilha?

Que sugestão a esposa de Sedutor do Mar deu a ele, para que não se

ferisse para conseguir um local?

Em sua vida você já teve que brigar fisicamente por algo? Como foi? O

diálogo poderia ter resolvido a questão sem o uso da violência?

Por que Kotick era diferente?

Como foi a infância de Kotick?

Compare as coisas que Kotick gostava de fazer quando estava crescendo

com as que você gosta ou gostava. Quais são as semelhanças e as

diferenças?

Por que Matkah ensinou Kotick a não se aproximar de nenhum barco?

O que era a Dança do Fogo? Se quiser, tente desenhá-la ou pintá-la.

Por que os humanos matavam as focas?

Por que os dois caçadores humanos não pegaram Kotick?

Quando souberam que o filho queria salvar as focas solteiras, o que Sedutor

do Mar e Matka falaram para o jovem?

Com auxílio de um atlas ou de um mapa-múndi e papel vegetal, tente traçar

a rota que Kotick percorreu pelos oceanos do mundo em busca de um

local seguro para seu povo.

Em sua opinião, Kotick foi discriminado pelas outras focas por ser diferente?

E em relação às Vacas Marinhas, Kotick foi preconceituoso? Por quê?

Atualmente existem casacos de nylon e de outros materiais sintéticos

que são obtidos sem a morte de animais. Mesmo assim, no Canadá

e em outros países os humanos continuam matando focas, raposas,

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chinchilas e outros animais para se vestir. Diga com suas palavras o que

você pensa disso.

Caso você e sua turma sejam contra o uso de casacos de peles, escrevam

uma carta para o jornal de sua cidade ou de sua escola, alertando as

pessoas para que não comprem mais essa peça de roupa desnecessária

e cruel.

De que cena do livro você mais gostou? Por quê?

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A FOCA BRANCA

Rudyard Kipling

Biografia do autor

Rudyard Kipling, o autor das histórias de Mowgli, nasceu em Bombaim

(também chamada de Mumbai), capital do estado de Maharashtra, na Índia,

em 1865. Quando ainda era criança, Kipling foi mandado por seu pai à

Inglaterra, para estudar. Logo no início, o garoto conviveu com parentes que

não entendiam as diferenças culturais entre um menino vindo da Índia e o estilo

de vida inglês. Foi um período difícil para Kipling.

Em 1882, ele voltou para a Índia; tinha então dezessete anos. Trabalhou

como jornalista para jornais publicados em inglês. Naquele tempo, a Índia era

uma colônia dos britânicos e havia muitos ingleses negociando e trabalhando na

Índia. Além de escrever para jornais, Kipling começou a publicar suas histórias

e, aos poucos, foi ficando famoso na Índia.

Em 1887, um livro seu foi publicado na Inglaterra e acabou sendo muito

bem recebido pelos leitores. Rudyard Kipling tinha uma visão diferente do

mundo e seus textos davam importância para os personagens pobres, às

pessoas miseráveis da Índia e para os soldados ingleses que também viviam

momentos difíceis na Ásia.

Em 1899, ele lançou Stalky e Cia., um livro sobre a vida de estudantes

na Inglaterra, que foi detestado pela crítica. Em 1901, publicou Kim, contando

as aventuras de um garoto inglês na Índia. Kipling também publicou livros de

poesia. Seus poemas eram muito musicais, embora fossem escritos com uma

linguagem facilmente compreendida pelas pessoas menos favorecidas.

As histórias de Mowgli foram publicadas em 1894, em um volume

chamado O Livro da Selva (do qual o texto A Foca Branca também faz parte),

e foi um enorme sucesso entre leitores de todas as idades. Um outro título

desse volume, Tigre, Tigre, que também faz parte da Coleção Aventuras

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Grandiosas da Editora Rideel, foi inspirado no poema O Tigre, de 1794, do

poeta inglês William Blake.

Rudyard Kipling morreu em 1936, em sua bela casa na cidade de Sussex

na Inglaterra. Seu corpo está enterrado na ABADIA Westminster, em Londres,

perto de outros escritores e poetas importantes.

2 ABADIA: residência de um abade, mosteiro

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