4

Click here to load reader

A FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN · PDF fileA FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN Giselle de Athayde Massi (1995) Com o objetivo de avaliar

  • Upload
    hadien

  • View
    213

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN · PDF fileA FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN Giselle de Athayde Massi (1995) Com o objetivo de avaliar

A FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN

Giselle de Athayde Massi (1995)

Com o objetivo de avaliar e viabilizar o tratamento de crianças e/ou adultos com

“distúrbios de linguagem” é que a fonoaudiologia surgiu no Brasil, durante a década de 50,

apoiada em bases científicas da medicina e de outras áreas afins. Porém, os procedimentos

metodológicos e terapêuticos dessas bases apresentam-se de maneira insuficiente para o

que realmente pretende-se desenvolver no trabalho fonoaudiológico.

Ao basear-se em sinais e sintomas apresentados por pacientes, bem como em

exames físicos e complementares, a medicina rastreia os indícios da doença para chegar a

um diagnóstico. Feito isso, o médico propõe uma solução farmacológica e/ou cirúrgica e

encerra seu trabalho. Assim, quando um indivíduo apresenta “problemas lingüísticos”, a

linguagem é encarada pela área médica como um objeto de diagnóstico, ou seja, um sinal

indicando que existe algum dano orgânico relacionado com centros cerebrais e/ou com

órgãos fono-articulatórios.

O fonoaudiólogo precisa conscientizar-se de que só poderá dar conta de seu objetivo

no momento em que deixar de perceber a linguagem como um sintoma, tal qual o médico,

passando a entendê-la a partir de bases teóricas voltadas para a própria linguagem. Algumas

abordagens lingüísticas já têm influenciado o trabalho desse profissional que, por vezes, ao

fazer leituras ingênuas e apressadas, acaba obtendo resultados desastrosos ao querer

transportar para sua prática parte dessa ou daquela teoria sem, contudo, analisar

objetivamente a relação existente entre a metodologia utilizada e a linha teórica adotada.

A leitura de MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM de Bakhtin/Volochinov

nos faz perceber que a concepção de linguagem proposta pelo autor á bastante ampla e, por

isso, apesar de não estabelecer relação direta com a fonoaudiologia é capaz de situá-la,

modificando o panorama em que se encontra.

Percebemos de início que enquadrar a linguagem num complexo físico-psiquico-

fisiológico – entendendo que o som é produzido através de um mecanismo fisiológico do

locutor para ser percebido pelo ouvinte – não é suficiente para explicar o fato lingüístico

em sua totalidade. Nem mesmo se levarmos em consideração a atividade mental de ambos

– emissor e receptor – chegaremos ao nosso objetivo. Para atingi-lo, devemos relacioná-lo

com o meio social organizado.

Assim, acompanharemos a análise rigorosa que Bakhtin faz das duas correntes que

fundamentam o pensamento lingüístico atual para, em seguida, apresentarmos o

encaminhamento do trabalho fonoaudiológico a partir dessas bases teóricas. Bakhtin

chamou a primeira de subjetivismo idealista e a segunda de objetivismo abstrato.

A primeira orientação, representada especialmente por Humboldt, entende a língua

como uma atividade criativa e individual que se materializa no ato de fala. Portanto, as leis

da criação lingüística, nessa visão, estão subordinadas às leis da psicologia individual,

cabendo ao lingüista descrever e classificar o fato lingüístico proveniente da atividade

mental. Apresentando-se como um depósito, a língua torna-se viva à medida que serve de

instrumento para ser usado no memento de exteriorização dos aspectos interiores.

Nessa ótica, restará ao fonoaudiólogo que se encontra diante de um indivíduo com

“distúrbios de linguagem” aguardar passivamente, esperar a reorganização da vida interior

desse indivíduo, desejando que ele atinja um determinado estágio de desenvolvimento

mental. Alcançada essa etapa, sem saber como nem por quê, o fonoaudiólogo talvez deva

Page 2: A FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN · PDF fileA FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN Giselle de Athayde Massi (1995) Com o objetivo de avaliar

intervir “ensinando ao paciente” determinadas estruturas gramaticais para dar-lhe melhores

condições de expressar seu conteúdo interno. Em outras palavras, se a fonoaudiologia

adotar esse tipo de concepção ficará, automaticamente, sob o jugo da psicologia individual,

sem poder desempenhar o papel que lhe compete.

A segunda grande corrente é representada pela obra de Saussure. Na perspectiva do

objetivismo abstrato, a fala não é objeto de estudo. Ao dicotomizar língua (social) e fala

(individual), somente as leis independentes e autônomas da língua são consideradas, pois

essa é entendida como um produto estável e acabado, transmitido através das gerações. Ao

indivíduo resta apenas registrá-la passivamente.

É óbvio que, nesse sentido, o sistema lingüístico não está sujeito aos atos de criação

individual, ao contrário, é um fenômeno de cunho coletivo, assumindo, portanto, um caráter

social. Porém, a língua é entendida como um conjunto imóvel de signos coordenados entre

si. O objetivismo abstrato não se interessa pela relação que o signo estabelece com a

realidade ou com o indivíduo que o engendra, abstraindo, de saída, um objeto ideal.

Essa perspectiva tem sido assumida por vários profissionais envolvidos com

patologias de linguagem. Ao adotar esse ponto de vista, caberá ao fonoaudiólogo destacar o

aspecto lingüístico (fonético, morfológico, etc.) que se apresenta comprometido em seus

pacientes. Feita essa prévia avaliação, deverá “ensiná-los”, por meio de práticas

mecanicistas, um objeto-língua homogêneo. A palavra, digna de sistematização em

dicionário, poderá ser transmitida sem levar em consideração qualquer necessidade de

contextualização. Assim, esses indivíduos registrarão um código estagnado sem, contudo,

conseguir utilizá-lo num momento real de fala. Dito de outra forma, o trabalho

fonoaudiológico não encontrará bons resultados e perderá sua validade.

Nesse ponto, visto que não encontramos respostas satisfatórias em nenhuma das

orientações discutidas, seguiremos com Bakhtin, que vai além. Ao manifestar uma recusa a

ambas as abordagens, ele afirma:

Queremos, agora, chamar a atenção para o seguinte: ao considerar que só o sistema lingüístico pode

dar conta dos fatos da língua , o objetivismo abstrato rejeita a enunciação, o ato de fala, como sendo

individual ..., é esse seu proton pseudos, a “primeira mentira” , do objetivismo abstrato. O subjetivismo

individualista, ao contrário, só leva em consideração a fala. Mas ele também considera o ato de fala como

individual e é por isso que tenta explicá-lo a partir das condições da vida psíquica individual do sujeito

falante. E esse é o seu proton pseudos. (BAKHTIN, 1992:109).

Como vimos, para o subjetivismo idealista, o ato de fala é percebido como a face

exteriorizada da consciência. O aspecto relevante é a vida interior, a expressão só presta-se

a traduzir o conteúdo subjetivo. Porém, Bakhtin nos mostra que não existe atividade mental

sem expressão semiótica. É essa expressão que organiza e determina o psiquismo. Assim, o

ato de fala, ou mais especificamente, a enunciação é de natureza social e não pode ser

entendida a partir das condições psicofisiológicas do sujeito.

Por outro lado, ao priorizar a língua, analisando-a como um sistema acabado,

separando-a de seu conteúdo ideológico e vivencial, o objetivismo abstrato não tem

condições de explicar como a linguagem realmente funciona. Locutor e ouvinte, na prática

viva da língua, não se relacionam com um sistema abstrato de formas normativas, mas

apenas com a linguagem no sentido de uso concreto, nas mais diversas situações. De fato,

para Bakhtin, a forma lingüística sempre se apresenta aos locutores no contexto de

enunciações precisas. Nesse ponto, vale citar as palavras do próprio autor: “A verdadeira

substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem

Page 3: A FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN · PDF fileA FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN Giselle de Athayde Massi (1995) Com o objetivo de avaliar

pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas

pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das

enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”

(BAKHTIN, 1992:123).

Assim, após fazer uma explanação minuciosa, reproduzindo fielmente o pensamento

que se encontra subjacente em cada uma das correntes que orientam a lingüística

contemporânea, Bakhtin as submete a críticas rigorosas e, partindo disso, propõe sua

própria tese.

A concepção de linguagem proposta por Bakhtin está fundamentada na interação

verbal, ou seja, na atividade dialógica, atividade esta que não se esgota jamais, visto que

todo enunciado carrega historicamente a réplica daqueles já pronunciados antes, como

também determina os próximos que o sucederão.

Assim, o enunciado elabora-se em função do outro. Desse modo, o papel do outro

assume grande relevância na relação dialógica. Cada enunciado espera uma resposta, uma

reação por parte do outro – ouvinte real ou imaginário. Os outros para os quais a palavra é

dirigida, não são meros espectadores, mas, ao contrário, são participantes ativos no curso da

comunicação verbal viva e real.

Por isso, da mesma forma, a compreensão é um processo ativo, pois quem

compreende participa do diálogo, interferindo na enunciação a partir de suas significações

anteriores.

Nesse sentido, a enunciação é considerada por Bakhtin o real objeto da lingüística,

pois é ela que se realiza no curso da comunicação e não elementos fonológicos,

morfológicos, etc. A enunciação – produto da interação de dois indivíduos socialmente

organizados – é delimitada pela situação imediata, sem perder de vista a estrutura social

mais ampla em que se insere, refletindo seu caráter ideológico.

A consciência individual, para Bakhtin, é fruto dessa interação. Portanto, se

deixarmos de perceber o signo enquanto um sinal inerte, encerrado no interior de um

sistema abstrato, estaremos livres para encará-lo como uma categoria dialética e dinâmica.

Esse signo vivo nasce na experiência exterior para compor a atividade mental. Disso

podemos concluir que a consciência não se organiza no interior do indivíduo, mas fora dele,

a partir da própria interação verbal. Para explicitar melhor essa questão, vamos nos remeter

à colocação de Bakhtin:

O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto autor dos seus

pensamentos, enquanto personalidade responsável por seus pensamentos e por seus desejos, apresenta-se

como um fenômeno puramente sócio-ideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individual”

é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o indivíduo se

conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica e inteiramente

condicionada por fatores sociológicos. (BAKHTIN , 1992:58).

Embora o pensamento dialético de Bakhtin esteja aqui suscintamente colocado,

esperamos tenha sido suficiente para indicar que sua teoria pode apontar um caminho

promissor à fonoaudiologia.

Inicialmente, é preciso deixar de perceber a linguagem como um meio de

comunicação estanque que serve para transmitir mensagens. Só no momento em que essa

linguagem for entendida como um processo de interação ativa é que a fonoaudiologia

achará seu lugar.

Page 4: A FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN · PDF fileA FONOAUDIOLOGIA NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DE BAKHTIN Giselle de Athayde Massi (1995) Com o objetivo de avaliar

De acordo com Bakhtin, na prática da língua, os indivíduos não se relacionam com

um código abstrato, no qual emissor e receptor codificam e decodificam estruturas

lingüísticas acabadas. Ao contrário, esses indivíduos se influenciam mutuamente, a partir

de enunciações que acontecem em situações reais. Dessa maneira, o fonoaudiólogo não é

aquele que deve ensinar certas formas normativas a seus pacientes que, por sua vez,

registrarão e reconhecerão tudo passivamente. Ora, esses indivíduos têm uma história de

vida, situada num meio social e, por isso, não podem ser considerados espectadores

passivos.

Se a consciência é determinada pela interação verbal será, então, na própria

interação que o fonoaudiólogo conseguirá desenvolver sua função.

A essa altura, o leitor poderá levantar um questionamento relevante, relacionado ao

fator biológico do indivíduo, haja vista que a maioria dos sujeitos portadores de “patologias

de linguagem” apresentam problemas orgânicos, como é o caso, por exemplo, de crianças

com lesões cerebrais.

Realmente, essas crianças apresentam manifestações tardias de linguagem. As

dificuldades são muitas e os “distúrbios” visíveis. Porém, conforme já apontado, de nada

adiantará ao fonoaudiólogo buscar apoio na medicina organicista que o levará apenas a um

diagnóstico.

Nesse caso, é preciso recorrer a um estudo que perceba a estrutura ativa do cérebro

tal como faz Luria, quando assume que os sistemas funcionais no cérebro são organizados a

partir de fatores sociais e históricos, ao longo do desenvolvimento da criança. Em sua

proposta, esse autor enfatiza que a constituição dos aspectos cognitivos, dentre eles a

linguagem, dá-se pela relação do organismo com o meio social. Relação essa mediada pela

própria linguagem.

Assim, ao colocar-se radicalmente contra a medicina determinista, Luria toma o

cérebro como um órgão dinâmico. Por isso, torna viável um processo de recuperação e/ou

de compensação dos aspectos lingüísticos em crianças portadoras de paralisia cerebral.

Ainda com relação a essa questão, vale ressaltar que o próprio Bakhtin percebe o

organismo humano como parte integrante de um meio social específico. Nesse sentido, não

será abstraindo esse organismo de suas significações ideológicas que a fonoaudiologia

poderá atuar, mas somente ao situá-lo historicamente em uma sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M.M.; VOLOSHINOV,V.N.(1929). Marxismo e filosofia da

linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da

linguagem. 6 ED., São Paulo: Hucitec, 1992.

LURIA, A.R.(1947). Cerebro y Lenguage. La afasia traumática: síndrome,

exploracion y tratamiento. Barcelona: Fontanella, 1978.