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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
ANA PAULA SCARPA PINTO DE CARVALHO
A FORMAO DAS PRIMEIRAS EKKLESIAI NO
MEDITERRNEO ANTIGO:
FRONTEIRAS E INTEGRAO
NAS EPSTOLAS DE PAULO DE TARSO
Mariana
2017
ANA PAULA SCARPA PINTO DE CARVALHO
A FORMAO DAS PRIMEIRAS EKKLESIAI NO
MEDITERRNEO ANTIGO:
FRONTEIRAS E INTEGRAO
NAS EPSTOLAS DE PAULO DE TARSO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria do Instituto de Cincias
Humanas e Sociais da Universidade Federal de
Ouro Preto, como requisito parcial obteno
do grau de Mestre em Histria.
rea de concentrao: Ideias, Linguagens e
Historiografia.
Orientador: Prof. Dr. Fbio Duarte Joly
Mariana - MG
Instituto de Cincias Humanas e Sociais
Universidade Federal de Ouro Preto
2017
Catalogao: www.sisbin.ufop.br
S286f Scarpa, Ana Paula. A Formao das Primeiras Ekklesiai no Mediterrneo Antigo [manuscrito]:Fronteiras e Integrao nas Epstolas de Paulo de Tarso / Ana Paula Scarpa. -2017. 145f.: il.: color; mapas.
Orientador: Prof. Dr. Fbio Duarte Joly.
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deCincias Humanas e Sociais. Departamento de Histria. Programa de Ps-Graduao em Historia. rea de Concentrao: Histria.
1. Bblia. N.T. Epstolas de Paulo. 2. Ekklesiai. 3. Fronteiras. 4. Mediterrneo,Mar, Regio. I. Joly, Fbio Duarte. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III.Titulo.
CDU: 27-248.3
A Evandro Carvalho, Snia Scarpa e Eliza Scarpa.
AGRADECIMENTOS
Expresso minha gratido ao Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello e ao Prof. Dr.
Fbio Faversani por aceitarem compor as bancas de Qualificao e Defesa de nossa
Dissertao, ao Prof. Dr. Fbio Duarte Joly pela orientao e incentivo constantes, ao
Prof. Dr. Alex Degan pela gentileza em ceder material bibliogrfico sobre Judasmos
antigos, e aos demais professores e membros do Laboratrio de Estudos sobre o Imprio
Romano (LEIR). Sou grata tambm CAPES, ao Programa de Ps-Graduao em
Histria (PPGHIS) e ao Instituto de Cincias Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade
Federal de Ouro Preto (UFOP) por disponibilizarem fomento e infraestrutura para o
desenvolvimento de nosso trabalho.
Com imenso carinho, agradeo quelas e queles que estiveram ao meu lado
nesses anos: Evandro Carvalho, Snia Scarpa, Danilo Barcelos, Daniela Carvalho, Nadir
Carvalho, Jos Carvalho, Selma Santos, Ellison Lopes, Patrcia Almeida, Flvio Reis,
Letcia Ferraz, Aline Machado, Marcos Sousa, Marcella Alves, Maria Fernanda Alves,
Trcio Veloso, Helena Azevedo, Clayton Ferreira, Pedro Henrique Oliveira, Vincius
Carvalho, Thiago Vieira, Otvio Augusto Marques, Lucas Cmara, e demais membros de
minha famlia marianense, Caroline Fernandes, Ygor Belchior, Ana Lcia Coelho, Joo
Victor Lanna e Willian Mancini.
Faz-se notrio, nas opinies dos antroplogos, historiadores
das culturas e das religies o consenso a respeito da natureza
dos resultados dos encontros, desencontros, trocas e interaes
entre as culturas, povos, fronteiras tnico-geogrficas e
identidades. So resultados no unvocos que produzem histria,
culturas, valores, significados, ressignificaes csmicas e
identidades, no obstante seu carter de violncia e tenso. So
contribuies histrico-antropolgicas que oferecem o suporte
terico para a elaborao ou construo dos fatores identitrios
que caracterizam os grupos socioculturais como fenmenos e
suas interpretaes no que concernem aos textos bblicos.
Torna-se um grande desafio abordar tais conceitos na
perspectiva da histria antiga dos cristianismos primitivos; onde
as categorias como identidades e culturas ainda so vistas e
compreendidas como um processo esttico, slido, uniforme e
impermevel.
Jos Luiz Izidoro
RESUMO
O presente trabalho tem por finalidade compreender a formao das
nas cidades do Leste mediterrnico em meados do sculo I EC luz das recentes
discusses sobre Fronteiras e Integrao no Mediterrneo antigo. Partimos da leitura do
corpus epistolar paulino para investigar a estruturao gradual de uma rede de contatos e
interconexo entre essas comunidades, constituda pelo trnsito constante de Paulo de
Tarso e seus colaboradores, pelo hbito de envio de cartas, e pelo suporte estrutural
fornecido por patronos locais. Por meio da anlise do contexto e do contedo das
epstolas, argumentamos que a negociao relacional das fronteiras tnicas, identitrias e
sociais envolvidas correspondeu ao intuito paulino de compor uma rede de integrao
socio-religiosa no Mediterrneo.
Palavras-chave: Fronteiras; Integrao, , Paulo de Tarso.
ABSTRACT
This research aims to understand the formation of the in the Eastern
Mediterranean cities in the middle of the first century. For doing this, it firstly takes into
account the recent discussions on Boundaries and Integration in the context of ancient
Mediterranean. Secondly, it considers the Pauline epistolary corpus to investigate the
gradual structuring of a network of contacts and interconnection between these
communities, constituted by the constant movement of Paul of Tarsus and his
collaborators, by means of sending letters, and by the structural support provided by local
patrons. Finally, the contex and the content of the epistles are analysed to argue that the
relational negociation of the ethnic, identity, and social boundaries corresponded to the
Pauline goal of forming a network of socioreligious integration in the Mediterranean.
Keywords: Boundaries; Integration; ; Paul of Tarsus.
LISTA DE ABREVIATURAS
1Corntios 1Cor
1Tessalonicenses 1Ts
2Corntios A 2Cor A
2Corntios B 2Cor B
2Corntios C 2Cor C
2Corntios D 2Cor D
2Corntios E 2Cor E
Atos dos Apstolos At
Filmon Fm
Filipenses A Fl A
Filipenses B Fl B
Filipenses C Fl C
Glatas Gl
Romanos Rm
LISTA DE MAPAS
MAPA 1. Imprio Romano sob Augusto ......................................................................XII
MAPA 2. Viagens de Paulo segundo as Epstolas Paulinas ........................................XIII
MAPA 3. Trnsito das Epstolas Paulinas ...................................................................XIV
MAPA 4. Principais estradas do Leste Mediterrnico ..................................................XV
SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................16
CAPTULO I
DE JERUSALM ESPANHA: A FORMAO DA REDE PAULINA DE
INTERCONEXO ENTRE AS NO MEDITERRNEO..................28
1.1 O MEDITERRNEO COMO REFERENCIAL ANALTICO: DEBATES EM
PAUTA.....................................................................................................................30
1.2 A REDE DE INTERCONEXO ENTRE AS : PAULO, OS
COLABORADORES E AS EPSTOLAS ...............................................................39
CAPTULO II
A JUDEUS E A GREGOS, A SBIOS E A IGNORANTES: FRONTEIRAS
TNICAS E IDENTITRIAS NAS PAULINAS...............................62
2.1 INTEGRAES CULTURAIS NO MEDITERRNEO: O CONTEXTO
HISTRICO E A FORMAO PAULINA............................................................64
2.2 ETNICIDADE, IDENTIDADE E CULTURA: O EVANGELHO PAULINO E
AS TRADIES TNICAS JUDAICAS................................................................75
2.3 CONTRA AS FRONTEIRAS SEGREGADORAS, EM FAVOR DAS
INTEGRADORAS: A PROPOSIO DA .................................................87
CAPTULO III
NO H JUDEU NEM GREGO, ESCRAVO NEM LIVRE, HOMEM NEM
MULHER: FRONTEIRAS SOCIAIS NAS PAULINAS....................95
3.1 A IMPORTNCIA DAS CIDADES E DAS ESTRADAS NA COMPOSIO
DA ORDEM IMPERIAL ROMANA: AS PRIMEIRAS REDES DE INTEGRAO
UTILIZADAS POR PAULO....................................................................................98
3.2 A FORMAO SOCIAL DAS EM AMBIENTE URBANO: AS
SINAGOGAS, AS CASAS E AS FAMLIAS........................................................106
3.3 O ESTMULO COESO INTRA E INTERCOMUNITRIA: FRONTEIRAS
INTERNAS E EXTERNAS....................................................................................125
CONSIDERAES FINAIS......................................................................................132
ANEXO.........................................................................................................................137
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................139
XII
MAPA 1
Imprio Romano sob Augusto
Fonte: GUARINELLO, Norberto Luiz. Histria Antiga, 2013.
XIII
MAPA 2
Viagens de Paulo segundo as Epstolas Paulinas
Fonte: DULING, Dennis. The New Testament: History, Literature and Social Context, 4 ed., 2003 (Modificado)
XIV
MAPA 3
Trnsito de Epstolas Paulinas
Fonte: DULING, Dennis. The New Testament: History, Literature and Social Context, 4 ed., 2003 (Modificado).
XV
MAPA 4
Principais Estradas do Leste Mediterrnico
Fonte: DULING, Dennis. The New Testament: History, Literature and Social Context, 4 ed., 2003 (Modificado)
INTRODUO
17
Alertava Thomas Kuhn, em The Structure of Scientific Revolutions (1962), ao
considerar os preceitos do pensamento cientfico moderno, que um dos alicerces da
Cincia Normal se encontra na construo de elaboraes tericas os Paradigmas
representantes das realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durante
algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de
praticantes de uma cincia (KUHN, 1998, p. 13). Por sua vez, esses constructos
explicativos refletem necessariamente o ambiente intelectual e a realidade social que os
produzem, sendo to suscetveis s modificaes em diferentes escalas quanto s
sociedades ao longo do tempo.
Para o fsico e filsofo da cincia, essas alteraes, as Revolues Cientficas,
assim como a transio sucessiva de um paradigma a outro, representam, em suas
palavras, o padro usual de desenvolvimento da cincia amadurecida (KUHN, 1998, p.
32). Dessa maneira, o avano ideal do pensamento cientfico moderno est calcado no
repensar constante de seus parmetros, sendo os momentos de Revoluo Cientfica os
complementos desintegradores da tradio qual a atividade da Cincia Normal est
ligada (KUHN, 1998, p. 25).
Ao realizar um balano das pesquisas atuais dedicadas anlise do Mundo Antigo,
Ian Morris, seguindo os preceitos kuhnianos, indicou a vigncia de um novo Paradigma
no campo da Histria e Arqueologia Clssicas. Como observou o autor, desde a dcada
de 1980, historiadores e arquelogos tm mudado o foco de suas interpretaes sobre a
realidade histrica, deixando de enfatizar as culturas delimitadas [bounded cultures]1
para dedicarem-se compreenso dos processos que acentuam a fluidez e a
conectividade das conjunturas sociais, polticas, religiosas, econmicas e culturais na
Antiguidade (MORRIS, 2003, p. 30).
Como exposto em Mediterranization (2013), artigo dedicado ao tema, at a
dcada de 1970 o modelo finleyniano de economia fechada, pouco suscetvel a trocas
comerciais em larga escala e, por isso, circunscrita a mercados locais, encontrava bastante
eco nos meios acadmicos2. Entretanto, tal abordagem da economia antiga, denominada
Primitivista, aos poucos passou a ser questionada e por vezes suplantada pela
elaborao de um novo paradigma durante a dcada de 1980. Este, por sua vez, como
reflexo das discusses contemporneas relativas conectividade e Globalizao, tem
buscado encontrar na Antiguidade contextos e discursos que caracterizem movimentos
de mobilidade, fluidez, integrao e interaes diversas.
1 Todas as tradues livres de lnguas modernas presentes neste trabalho so nossas. 2 Cf. FINLEY, 1980.
18
Para isso, testemunha-se paralelamente a crescente utilizao do conceito de
Fronteira, advindo das Cincias Sociais, como ferramenta analtica destinada tambm
aos estudos sobre Antiguidade. Conforme exps Norberto Guarinello em Ordem,
Integrao e Fronteira no Imprio Romano. Um ensaio (2010), a utilizao do termo tem
sido deslocada de seu sentido moderno tradicional relativo aos contextos dos fronts de
batalhas do sculo XV e, posteriormente, da separao geogrfica entre os Estados
Nacionais para abranger significaes mais amplas e que caracterizem as variveis
envolvidas em processos sociais. Nesse segundo sentido, as fronteiras passam a indicar
os processos relacionais de diferenciao social, tnica, cultural, etc, tanto como de
comunicao, intercmbios e assimilaes a partir das interaes sociais.
Em The Study of Boundaries in the Social Sciences (2002), Michele Lamont e
Vrag Molnar apontaram a relevncia cada vez maior que o conceito de fronteira tem
atingido em pesquisas destinadas a discutir, em diferentes reas do conhecimento, temas
como identidade coletiva, classe, etnia, gnero, sexualidade, limites espaciais,
conhecimento, comunidades, identidades nacionais, entre outros. Ressaltaram as autoras
que, se a noo de fronteira tem se tornado uma das ferramentas de pensamento mais
frteis, porque, em parte, ela captura um processo social fundamental, que o aspecto
relacional [relationality] (LAMONT; MOLNAR, 2002, p. 169).
Nesse sentido, Lamont e Molnar destacam a existncia de dois referenciais de
utilizao do conceito: as Fronteiras Simblicas e as Fronteiras Sociais. No caso das
primeiras, definem:
fronteiras simblicas so distines conceituais realizadas pelos atores sociais
para categorizar objetos, pessoas, prticas e at mesmo tempo e espao. Elas
so ferramentas pelas quais os indivduos e os grupos disputam e vm a
concordar acerca das definies sobre realidade. Examin-las permite-nos
capturar as dimenses dinmicas das relaes sociais, assim como a forma de
os grupos competirem na produo, difuso e institucionalizao de sistemas
alternativos e princpios de classificaes. As fronteiras simblicas tambm separam pessoas em grupos e geram sentimentos de similaridade e de pertena
grupal, elas so um meio essencial atravs do qual as pessoas adquirem status
e monopolizam recursos (LAMONT; MOLNAR, 2002, p. 168).
J as Fronteiras Sociais, como abordadas em sentido mais literal, so formas
objetificadas de diferenas sociais manifestas em acessos desiguais e na distribuio
desigual de recursos (materiais e no materiais) e oportunidades sociais (LAMONT;
MOLNAR, 2002, p. 168). Para as autoras, as abordagens analticas que mais tm a
contribuir com o desenvolvimento do conceito de fronteira, so aquelas que buscam
19
encontrar pontos de interseo, configuraes tpicas e similaridades entre as fronteiras
simblicas e as fronteiras sociais em um determinado contexto.
Dessa forma, como desdobramento possvel da aplicao desse novo prisma
analtico s pesquisas sobre o Mundo Antigo, especialmente s sociedades mediterrnicas
sob o domnio do Imprio Romano, observa-se que nenhuma comunidade ou identidade,
sobretudo as coletivas, tiveram suas fronteiras simblicas e sociais delineadas
isoladamente. Ao contrrio, foi a partir das relaes estabelecidas com os outros
helnicos, latinos, romanos, cidados, no cidados, estrangeiros, patronos, clientes,
amigos, familiares, brbaros, judeus, gentios, monotestas, politestas, etc que as
mesmas foram recorrentemente balizadas.
Conforme ressaltou Thomas Kuhn, as Revolues Cientficas so reflexos de
mudanas sociais e intelectuais de um perodo, mas tambm atuam na intensificao
dessas transformaes, fazendo com que explicaes tradicionais vinculadas a um
passado que j no comunica mais ao presente sejam reformuladas. Assim, para o autor,
quando mudam os paradigmas, muda com eles o prprio mundo. Guiados por
um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu
olhar em novas direes. E o que ainda mais importante: durante as
revolues, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando
instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos j examinados
anteriormente (KUHN, 1998, p. 145).
Como consequncia do aumento substancial e intensificao das interlocues
culturais estabelecidas em nossa temporalidade, Peter Burke afirmou em Cultural
Hybridity, Cultural Exchange, Cultural Translation: Reflections on History and Theory
(2003) que, em nosso mundo, nenhuma cultura uma ilha (BURKE, 2003, p. 102).
Desse modo, apontou que se a realidade em que vivemos marcada por encontros
culturais cada vez mais frequentes e intensos, a preocupao acadmica em enfatizar tais
interaes parece, em seu julgamento, natural. Assim como consequncia direta deste
quadro o fato de os historiadores dedicarem cada vez mais ateno aos processos de
encontro, contato, interao, troca e hibridizao cultural (BURKE, 2003, p. 14-16).
No campo das pesquisas em Histria Antiga, ressaltamos duas tendncias
significativas que se destacam nas ltimas dcadas. A primeira o processo identificado
por Norberto Guarinello em Histria Antiga (2013) como Culturalizao da Histria,
que diz respeito constatao do crescimento do campo dos Estudos Culturais em geral,
e que para a rea dos estudos histricos sobre Antiguidade tem aberto novas diretrizes
analticas (GUARINELLO, 2013, p. 43). Exemplo disso o fato de que se anteriormente
20
os estudos sobre os traos culturais de uma dada sociedade antiga, como sua religiosidade
e prticas ritualsticas, estavam a cargo da investigao de outros campos do
conhecimento e suas abordagens particulares como a Antropologia, a Sociologia das
Religies, a Teologia, etc , nas ltimas dcadas vm sendo tomados tambm como
objetos de estudo histrico, principalmente em relao ao seu contexto sociocultural.
Assim como afirmou Srgio da Mata em Histria e Religio (2010), a moderna
Histria das Religies, alm de afastada que est das pretenses apologticas quanto das
desmistificadoras tomou para si a tarefa de compreender e explicar geneticamente a
religio nas suas relaes com a cultura e a sociedade (MATA, 2010, p. 17). Da mesma
forma, no se sustentam mais interpretaes que tendam anlise isolada dos
movimentos religiosos ou rgida distino entre as esferas da poltica e da religio nas
sociedades antigas, uma vez que, conforme defendeu S. R. Price em Rituals and Power
(1997), uma e outra so maneiras de construir sistematicamente o poder (PRICE, 2004,
p. 76).
A segunda tendncia a ser mencionada a multiplicao das abordagens que
visam, na longa durao, matizar recortes cronolgicos e espaciais cristalizados pelo
campo dos Estudos Clssicos, a fim de construrem anlises que destaquem as interaes
culturais, econmicas, sociais e polticas dentro de uma referncia geogrfica mais
abrangente: o Mar Mediterrneo. o caso de obras como The Corrupting Sea: a Study of
Mediterranean History (2000), de Peregrine Horden e Nicholas Purcell; Rethinking the
Mediterranean (2005), organizado por William Harris; The Great Sea: a human history
of the Mediterranean (2011), de David Abulafia; Histria Antiga (2013), de Norberto
Guarinello; A Companion to Mediterranean History (2014), organizado por Peregrine
Horden e Sharon Kinoshita, entre outros.
Testemunha-se igualmente o crescimento e complexificao dos debates relativos
aos processos que tenderam a integrar cultural, econmica e politicamente as sociedades
assentadas em torno do Mar Mediterrneo no decorrer de sculos de histria. Tais
pesquisas, ligadas s discusses sobre Mediterranizao, tm ressaltado o espao do
Mediterrneo como um meio importante de mobilidade e intercmbios diversos na
Antiguidade. Assim, destacam-se as anlises voltadas ao entendimento da composio de
conjunturas que possibilitaram o desencadeamento de processos multicntricos de
integrao, correspondentes a graus diferentes de intensidade e abrangncia, ainda que
jamais tenham vindo a configurar uma unidade mediterrnica integrada em todos os
aspectos.
21
Como decorrncia desta reavaliao, compreendem-se helenizao, romanizao
e cristianizao no mais como etapas isoladas de um processo mais amplo de formao
cultural, mas como fenmenos que se interpenetraram e reforaram mutuamente. Do
mesmo modo, ganham destaque tambm os desdobramentos das convivncias,
resistncias ou assimilaes diversas das identidades coletivas locais em relao s
culturas helnicas, latinas ou crists.
Tendo em vista esse quadro geral, estudiosos da Antiguidade tm realizado o
exerccio de revisitao de temas e contextos h muito debatidos. Essas pesquisas so
destinadas em sua maioria elaborao de novas abordagens sobre um corpus
documental tradicional, recolha de novas fontes e/ou fontes de naturezas distintas sobre
um mesmo objeto de estudo, ou ainda composio de abordagens transdisciplinares de
anlise. O caso sobre o qual, em parte, dedicaremos especial ateno no presente trabalho
o de releitura de um dos movimentos componentes do perodo tradicionalmente
denominado como Cristianismo Primitivo.
Destacamos que tm sido colocados sob recentes questionamentos os conceitos
de Cristianismo Originrio, Perodo do Novo Testamento, Protocristianismo, Early
Christian Studies e Cristianismo Primitivo. Alm disso, tambm a dependncia da
caracterizao do contexto exclusivamente a partir das atividades apostlicas, assim
como a durao da conjuntura3. Ao observar a proposta de pesquisadores como Paulo
Nogueira em O cristianismo como objeto da histria cultural: delimitaes, conceitos de
anlise e roteiros de pesquisa (2015), compreendemos o panorama das tendncias
recentes dos estudos sobre o tema:
nossa proposta a de rejeio de critrios cannicos, de autoridade
supostamente apostlica e de cronologia estreita, uma vez que pretendemos
privilegiar processos de longa durao e a anlise de uma complexa e plural
rede textual, que permita entender a histria cultural dos estratos
intermedirios do Cristianismo Primitivo tal como articulados num sistema de
linguagem nas margens da sociedade mediterrnica (NOGUEIRA, 2015, p.
45).
Nessa perspectiva, tudo que caracterize o surgimento dos diferentes Cristianismos
como processos poltico-religiosos, e que os relacionem diretamente aos seus contextos
histricos, tem ganhado grande relevncia a partir do estudo de fontes cannicas,
3 Convencionou-se determinar o ano 100 EC como o fim do perodo denominado Cristianismo Primitivo,
o que tem gerado debates e questionamentos. Um exemplo por ser observado em O cristianismo como
objeto da histria cultural: delimitaes, conceitos de anlise e roteiros de pesquisa (2015), artigo no qual
Paulo Augusto de Souza Nogueira prope a extenso do marco cronolgico em questo para a data limite
de 313 EC, com o Edito de Milo. Cf. NOGUEIRA, 2015.
22
apcrifas, pseudogrficas e tambm relacionadas a outras referncias que no a religiosa.
Principalmente aps a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, a questo da
escolha do corpus documental vem sendo sistematicamente revisada.
De modo geral, o contexto do Cristianismo Primitivo contou com a produo de
inmeras composies textuais, que podem levar o pesquisador do tema a analis-lo a
partir de perspectivas variadas. Existem as chamadas fontes primrias de estudo, como
as Epstolas Paulinas, Deuteropaulinas, Pastorais e os Tratados Teolgicos, que
correspondem a escritos produzidos no contexto a que se remetem. Somadas a estas,
destacam-se as fontes secundrias, escritas e/ou compiladas nas dcadas posteriores,
mas que tambm narram os acontecimentos subsequentes morte de Jesus, como o caso
dos Evangelhos Cannicos e no Cannicos, os Atos dos Apstolos, os escritos dos
Padres Apostlicos, as Colees Gnsticas e Maniquestas, etc. Conforme destacou Jos
Luiz Izidoro,
as mltiplas obras literrias presentes no contexto do cristianismo primitivo
invocam, de certo modo, uma realidade consideravelmente plural e
diversificada no que se refere s culturas e suas fronteiras greogrfico-tnicas.
Sendo assim, torna-se pertinente considerar todos os matizes presentes no
processo relacional dos povos, naes e territrios (IZIDORO, 2008, p. 54).
Sob esta argumentao, salientada por Andr Chevitarese e Gabriele Cornelli em
estudos desenvolvidos sobre o tema, torna-se invivel (e um equvoco) compreendermos
estes movimentos em termos de unidades generalizantes. Como apontaram os autores em
Judasmo, Cristianismo e Helenismo. Ensaios acerca das interaes culturais no
Mediterrneo Antigo (2007), o judasmo, o cristianismo, o politesmo grego nunca
existiram, enquanto formas culturais autnomas e independentes, fora das simplificaes
manualsticas ou das identificaes ideolgicas posteriores (CHEVITARESE;
CORNELLI, 2007, p. 26). Na dinmica dos processos histricos, portanto, ressaltam-se
o dinamismo e o carter multifacetrio das diversas formaes discursivas, sociais,
religiosas, culturais e polticas que compuseram os cristianismos, os judasmos e os
politesmos gregos.
Abordagens dessa natureza desvinculam-se da viso teleolgica tradicional que
considerava o Cristianismo Primitivo como um movimento nico, ligado apenas esfera
religiosa e j constitudo como dogma desde meados do sculo I EC. Da mesma forma,
buscam na configurao dos diferentes Judasmos ps-Dispora, no cenrio cultural de
fortes influncias helensticas presente no Leste mediterrnico poca, e na estruturao
do poder imperial romano elementos importantes para se pensar as principais fronteiras
23
sociais, culturais e tnicas envolvidas na composio de cada discurso missionrio e/ou
evanglico, formadores do cnone oficial ou no.
Nesta dissertao, analisaremos um dos diversos movimentos que caracterizaram
o perodo conhecido como Cristianismo Primitivo. Trataremos em especfico, da
formao e propagao inicial do discurso de Paulo de Tarso, um fariseu educado em
padres helenistas que assumiu para si sob o epteto auto atribudo de Apstolo das
Naes [ ] (Rm 11,13) a misso de pregar a judeus e a gentios, por
diversas cidades do Leste mediterrnico, um evangelho4 baseado em preceitos
cristolgicos. Ao longo das dcadas de 40 e 50 EC, Paulo esteve em cidades na Sria,
sia Menor, Macednia, Acaia, etc, com o intuito de atuar na fomao e/ou consolidao
de comunidades socioreligiosas: as . Do perodo que compreendeu o Conclio
Apostlico, em 48 EC, at o fim da dcada de 50 EC, Paulo dedicou-se formao dessas
comunidades, assegurando-se da lealdade de seus membros e cuidando da resoluo de
contendas internas por meio do envio de epstolas e de missionrios colaboradores s
diversas cidades por onde passava.
Por muito tempo, os estudos sobre o movimento paulino estiveram subordinados
a rea da Teologia, ou ainda vinculados exclusivamente imagem fornecida pelos Atos
dos Apstolos sobre o contexto. Seu enfoque principal residia na construo do ideal de
que Paulo tivesse veiculado um discurso indito, assim como pudesse ser considerado o
grande pai fundador do Cristianismo (no singular). o caso, por exemplo, da obra clssica
So Paulo, escrita por Ernest Renan em 1869. De acordo com essa abordagem que
chamamos de tradicional , tanto os estudos das narrativas neotestamentrias, como
aqueles voltados especificamente s Epstolas Paulinas, centraram-se na emergncia do
Cristianismo como uma religio dogmtica e universal, ainda em seus primrdios. Nesse
sentido, as influncias externas envolvidas, ou mesmo o contexto imperial do sculo I
EC, foram mobilizados apenas tangencialmente, para ilustrar um pano de fundo
conjuntural relativo elaborao das origens crists.
4 Utilizamos a palavra evangelho de acordo com suas definies epistemolgicas. Proveniente de [euangelion], o termo pode ser empregado no sentido de boa mensagem, ou ainda de boa
notcia. Representa, ademais, uma forma discursiva que relata as passagens de vida e morte de Jesus de
Nazar na Palestina. Conforme consta no Lxico Grego-Portugus do Novo Testamento baseado em
domnios semnticos, Louw-Nida, 1 Ed., o vocbulo apontado como derivao de
, que significa anunciar a boa notcia. Por sua vez, em Greek-English Lexicon, Liddel & Scott,
9 Ed., encontram-se tambm as definies de : trazer boas notcias, anunci-las,
proclamar coisas boas; assim como de : a recompensa de boas notcias dada ao mensageiro,
fazer um agradecimento pela oferenda de boas novas, coroar algum com boa notcia, etc. Cf. LIDDEL
& SCOTT, 1996; LOUW & NIDA, 2013.
24
Em concordncia com os estudos recentes que visam problematizar tal
abordagem, em nossa pesquisa no atribumos a Paulo de Tarso a responsabilidade nica
pelo desenvolvimento incipiente das . Demonstraremos, assim, que a
consolidao da rede inicial de comunicao entre as primeiras comunidades sob
influncia e/ou em contato com Paulo foi tambm fruto da mobilidade constante dos
chamados [colaboradores] e, com ela, do trnsito de epstolas contendo
diretrizes particulares e gerais. Tampouco atribumos atividade do apstolo uma
racionalidade intencional de construo de uma religio dogmtica e indita em conceitos
teolgicos e prticas ritualsticas. Conforme afirmou Richard Horsley em Paul and
Empire Religion and Power in Roman Imperial Society (1997),
simplesmente um anacronismo julgar que Paulo estivesse fundando uma
religio chamada Cristianismo, que surgira como uma dissidncia de uma
religio chamada Judasmo. A misso e as comunidades de Paulo no teriam
parecido to distintivamente religiosas a seus contemporneos no Imprio
Romano (HORSLEY, 2004, p. 15).
Como tambm destacou Martin Hengel, em suas dcadas iniciais os cristianismos
contaram com diversas influncias, como o Gnosticismo, os mistrios gregos e orientais,
a magia, a astrologia, o politesmo pago, as histrias de homens divinos (theioi andres)
e seus milagres, a filosofia popular helnica e muito mais (HENGEL, 1999, 02). De
modo geral, a construo do que veio a ser entendido como Cristianismo (no singular)
posterior. Em meados do sculo I EC, para alm das epstolas paulinas escritas a partir de
ou endereadas com o propsito de tratar de temas especficos relacionados s ,
o que se pode atestar a existncia de abordagens mltiplas dos kerygmas, ditos e
percopes relativos vida e morte de Jesus na Palestina. Essas pequenas narrativas, em
formato oral ou escrito, eram frutos de lentes interpretativas distintas, assim como foram
veiculadas por diferentes agentes provenientes de e atuantes em diferentes regies do
Mediterrneo.
Dessa forma, abordar qualquer uma das variantes apostlicas ou evanglicas de
maneira deslocada de seu contexto mais abrangente no constitui alternativa profcua,
uma vez que o contexto sociopoltico em questo tem muito a dizer. Sobretudo aps a
dominao blica e poltica de Roma sobre o Mare Nostrum a partir do sculo I AEC5, o
fortalecimento do poder imperial forneceu a infraestrutura de deslocamento martimo e
terrestre, assim como a pacificao e vigilncia de rotas, que permitiram o incio do
5 Cf. ABULAFIA, 2014, p. 233.
25
perodo considerado como auge da integrao mediterrnica na Antiguidade ainda que,
conforme ressaltou Norberto Guarinello, a configurao do Imprio Romano apenas
[tenha sido] possvel sob a base dos sculos de integrao e consolidao de estruturas
que o antecederam (GUARINELLO, 2013, p. 139).
Sob o poder romano, o Mediterrneo foi palco da convivncia de diversos
pertencimentos identitrios, assim como de diferentes culturas e organizaes sociais
integradas e no integradas ordem imperial em nveis distintos. Tal multiplicidade de
interaes indicava no s a possibilidade de comunicao e interconexo (em diversos
graus de intensidade) entre os habitantes de regies distintas, mas tambm a existncia
concomitante de cdigos simblicos mais abrangentes, compartilhados via padres
educacionais, sistemas de trocas comerciais, prticas multilngues, etc sobretudo nos
ambientes urbanos do Imprio (WALLACE-HADRILL, 2008)6.
Uma vez definida a extenso mxima dos limites territoriais romanos, coube a
processos diversos de articulao das fronteiras internas e externas das comunidades as
redefinies constantes dos nveis de integrao e no integrao que caracterizaram as
sociedades mediterrnicas a partir do sculo I AEC. Assim, partimos deste panorama para
demonstrarmos como Paulo, em decorrncia das demandas locais de orientao, tanto
como em resposta a concorrncias missionrias externas, construiu gradativamente um
discurso que, conforme consideramos, props uma outra forma de integrao social com
bases religiosas, sobretudo a partir da articulao com fronteiras de sistemas simblicos,
culturais, religiosos, tnicos e sociais por ele j conhecidos.
Utilizaremos como fontes principais de nossa pesquisa principalmente as
Epstolas Paulinas classificadas pela crtica documental como autnticas7, seguindo as
divises internas propostas por alguns estudos exegticos8, especialmente o apresentado
por Helmut Koester em Introduction to the New Testament. History, Literature and Social
Context (2005b). So elas, em ordem cronolgica: 1Tessalonicenses (50 EC); Glatas
6 Entendemos que nenhum dos processos de integrao, seja cultural, econmico, poltico, lingustico, etc,
representou de fato uma integrao completa ou definitiva. Partimos do pressuposto de que o indivduo
totalmente integrado a um sistema cultural e/ou de valores mediterrnicos, assim como aquele
completamente alheio ao mesmo, representam tipificaes ideais. 7 Os debates sobre a autenticidade do corpus paulino suscitam, ainda em dias atuais, extensas discusses. Dessa maneira, optamos pela escolha das epstolas de referncia que costumam apresentar menos
controvrsias em relao s interpolaes e adaptaes sofridas ao longo dos processos de traduo,
reescrita e recepo das mesmas. So elas, conforme a diviso neotestamentria cannica:
1Tessalonicenses, Glatas, 1Corntios, 2Corntios, Filipenses, Filmon e Romanos. Cf. RENAN, 1927;
MEEKS, 1992; DULING, 2003; MURPHY-OCONNOR, 2004; KOESTER, 2005b. 8 Optamos por seguir as divises epistolares internas e as dataes propostas por Helmut Koester em
Introduction to the New Testament. History and Literature of the Early Christianity (1995). No entanto,
diversas variaes de datas, locais de escrita e compilaes epistolares endereadas a uma mesma
localidade so aventadas por diferentes estudiosos da exegese paulina. Cf. Anexo 1.
26
(52 EC); 1Corntios (53/54 EC); 2Corntios A (54 EC)9; 2 Corntios B (54 EC)10;
Filipenses A (54 EC)11; Filipenses B (54/55 EC)12; Filipenses C (54/55 EC)13; Filmon
(54/55 EC); 2Corntios C (55 EC)14; 2Corntios D (55 EC)15; 2Corntios E (55 EC)16;
Romanos (55/56 EC)17; e Romanos 16 (55/56 EC)18. Em determinadas ocasies, para fins
expositivos, mobilizaremos tambm algumas passagens do livro dos Atos dos Apstolos,
composto por volta da dcada de 90 do sculo I EC, apesar de no o abordarmos na
ntegra.
A fim de analisar essas fontes, apresentaremos nossa argumentao em trs
captulos. No primeiro, partiremos dos principais debates envolvidos na utilizao do Mar
Mediterrneo como parmetro analtico nos estudos sobre o Mundo Antigo. Discutiremos
diferentes pontos de vista sobre a unidade mediterrnica e o(s) processo(s) de
integrao(es) que caracterizaram as interaes polticas, econmicas, sociais,
religiosas, etc, ocorridas em seus territrios ao longo de sculos. Posteriormente,
abordaremos o deslocamento de Paulo de Tarso pelo Leste mediterrnico em meados do
sculo I EC como parte do processo de fundao e/ou consolidao das em
diferentes cidades. Ressaltaremos a atuao coordenada da mobilidade paulina e de seus
colaboradores, assim como do hbito de envio de epstolas, para demonstrarmos
cronologicamente a formao gradual do que chamaremos de uma rede de contatos e
interconexo entre essas .
O segundo captulo tem por finalidade discutir as delimitaes relacionais das
fronteiras identitrias dos convertidos ao evangelho paulino, sobretudo no que concerne
as relaes de etnicidade judaica. Para isso, partiremos de uma breve apresentao
contextual de alguns processos de helenizao que influenciaram social e culturalmente
o Leste mediterrnico a partir do sculo IV AEC, e indicaremos alguns desdobramentos
significativos da interao entre as culturas helnicas e judaicas. Em seguida,
analisaremos a composio do evangelho de Paulo em relao s tradies tnicas dos
9 Correspondente a 2Cor 2,4-6,13; 7,2-4 na diviso neotestamentria cannica. 10 Correspondente a 2Cor 10-13 na diviso neotestamentria cannica. 11 Correspondente a Fl 4,10-20 na diviso neotestamentria cannica. 12 Correspondente a Fl 1,1-3,1 na diviso neotestamentria cannica. 13 Correspondente a Fl 3,2-4,3 na diviso neotestamentria cannica. 14 Correspondente a 2Cor 1,1-2,3; 7,5-16 na diviso neotestamentria cannica. 15 Correspondente a 2Cor 8 na diviso neotestamentria cannica. 16 Correspondente a 2Cor 9 na diviso neotestamentria cannica. 17 Correspondente a Rm 1-15 na diviso neotestamentria cannica. 18 Conforme defendeu Helmut Koester, Rm 16 na verdade uma correspondncia que foi enviada a feso
com uma cpia da carta aos Romanos (Rm 1-15). Para o autor, isso explica no s porque essa breve
carta aos efsios acabou includa na coletnea posterior das cartas paulinas como parte da carta aos
romanos, mas tambm a familiaridade de Paulo com os membros da a que se dirigiu pelos anos
que passara em feso (KOESTER, 2005b, p. 152-153).
27
Judasmos, demonstrando as principais continuidades e rupturas presentes no mesmo. Por
fim, demonstraremos a proposio paulina de flexibilizao de algumas fronteiras tnicas
segregadoras em prol da adoo de um critrio nico e irrestrito de identificao mtua:
a [f]19.
No terceiro e ltimo captulo, partiremos das discusses sobre a importncia das
cidades na composio da ordem imperial romana e os principais sistemas
organizacionais que as compunham, para analisarmos as fronteiras sociais mobilizadas
na formao das paulinas nos ambientes urbanos. Com essa finalidade,
apontaremos as principais redes de integrao pr-existentes utilizadas por Paulo na
consolidao das , como as estradas mediterrnicas, os sistemas difusos
sinagogais, a referncia domstica de organizao social e, por fim, os sistemas patronais
difundidos por relaes verticais de poder. Em contrapartida hiptese apresentada por
Richard Horsley de que Paulo fundara uma sociedade alternativa imperial a partir da
proposio de uma lgica igualitria de reconhecimento coletivo, demonstraremos a
permanncia de hierarquias sociais na organizao comunitria das .
Pretendemos, desse modo, analisar a composio do evangelho paulino, bem
como a formao das sob sua influncia, luz das discusses sobre
Mediterranizao e negociao relacional de fronteiras identitrias, tnicas e sociais.
Visamos, com isso, compreender como, ao longo de quase uma dcada de composio, o
discurso paulino engendrou uma dinmica de integrao, seja no deslocamento fsico do
missionrio, no envio de epstolas e emissrios s , na proposio de novas
fronteiras sociais ou no incentivo constante consolidao de coeses intra e
intercomunitrias a partir da viabilizao do reconhecimento mtuo de traos identitrios,
sociais e religiosos comuns.
19 O termo designa aquilo que totalmente crvel, o estado de ser uma pessoa na qual se pode depositar total confiana, crer a ponto de ter confiana e segurana total, ou ainda, o ato de acreditar
em Jesus Cristo e tornar-se um seguidor. Dessa maneira, pode ser traduzido como confiana,
confiabilidade, garantia ou, mais tradicionalmente, como f. Cf. LIDDEL & SCOTT, 1996; LOUW
& NIDA, 2013. A fim de resguardar a polissemia do termo e evitar equvocos de traduo, optamos por
cit-lo em grego ao longo do texto.
CAPTULO I
DE JERUSALM ESPANHA:
A Formao da Rede Paulina de Interconexo
entre as E no Mediterrneo
29
[...] desde Jerusalm e arredores at a
Ilria, eu levei a termo o anncio do
Evangelho de Cristo, fazendo questo de
anunciar o evangelho onde o nome de
Cristo ainda no era conhecido [...].20
Rm 15,19-20
Ao fim da Epstola aos Romanos, aps duas dcadas de vida missionria
apostlica itinerante por diversos territrios do Leste mediterrnico, Paulo de Tarso
declarava aos seus leitores no possuir mais campo de trabalho naquelas regies (Rm
15,23). Pregando a aceitao de um deus que no faz acepo de pessoas (Rm 2,11) e
sentindo-se devedor a gregos e a brbaros, a sbios e a ignorantes (Rm 1,14) o apstolo
empreendeu ao longo de sua vida missionria o esforo de anunciar o evangelho onde o
nome de Cristo ainda no era conhecido (Rm 15,20). Foi, dessa maneira, um dos
principais agentes apesar de no ter sido o nico responsveis pela difuso inicial de
referncias cristolgicas para alm das regies da Sria e da Palestina, difundindo-as por
cidades na sia Menor, Macednia, Galcia e Acaia.
Aps afirmar ter percorrido em vida a extenso territorial que abrangeu dos
arredores de Jerusalm s regies da Ilria21 (Rm 15,18), expressou o desejo de, em um
futuro prximo, estender sua rea de atuao a Roma e, posteriormente, Espanha (Rm
15,23-24). Paulo almejava, assim, exercer seu apostolado por todo o mundo conhecido,
ou ao menos reconhecido por ele como passvel de ser percorrido.
Dessa forma, duas interpretaes do corpus epistolar paulino nos parecem
complementares: a que visa o conjunto de informaes que nos fornecem as rotas
percorridas pelo apstolo, e aquela preocupada em analisar seus planos de viagem futuros.
Conforme mostraremos, a primeira permite-nos reconhecer o deslocamento paulino por
territrios do Leste mediterrnico, como a sia Menor, a Frgia, a Galcia e, sobretudo,
as regies que circundavam o Egeu. A segunda, no entanto, nos demonstra as intenes
paulinas em percorrer toda a extenso Leste-Oeste do mar Mediterrneo, de Jerusalm
Espanha tendo o missionrio cumprido em vida ao menos quase metade do trajeto
almejado.
De forma geral, as discusses apresentadas neste captulo iro se centrar na busca
pela compreenso da atuao de Paulo de Tarso luz da abrangncia de seu deslocamento
e do exerccio de seu apostolado em meados do sculo I EC. Valendo-nos das recentes
20 [...]
, 20 [...] (Rm 15,19-20). 21 importante ressaltar, contudo, que as Epstolas Paulinas definidas como autnticas no contm
registros sobre a misso de Paulo na Ilria, mas apenas na Macednia.
30
discusses sobre a utilizao do Mar Mediterrneo como um referencial analtico,
realizaremos o exerccio de relacionar a formao progressiva de uma rede paulina de
contatos e colaborao s referncias espaciais em questo, entendendo que a
possibilidade de existncia daquela malha de mobilidade e interlocuo refletiu em si
desdobramentos importantes dos processos antecedentes de integraes mediterrnicas.
1.1 O Mediterrneo como referencial analtico: debates em pauta.
O movimento de repensar o fazer historiogrfico proposto pela escola dos Annales
no incio do sculo XX apresentou (e apresenta at os dias atuais) desdobramentos
significativos no campo da pesquisa histrica. A abertura de novas perspectivas
analticas, como a sociolgica, a antropolgica, a psicolgica, etc, como abordagens
complementares compreenso das organizaes sociais humanas, ou ainda, o
entendimento dos diferentes espectros de temporalidade componentes de uma
determinada conjuntura, trouxeram ao campo da Histria a superao da histoire
vnementielle em prol da construo de anlises mais complexas e que objetivavam
interpretar o desenvolvimento das civilizaes e suas mentalidades ao longo do tempo.
Dessa forma, a prtica historiogrfica desvinculava-se da necessidade em estar
atrelada somente ao registro dos acontecimentos realizado a partir da concepo de tempo
breve. Ao contrrio, construa-se a possibilidade de repens-los em relao a contextos
histricos mais abrangentes e a duraes temporais mais alargadas. Sobretudo aps a
publicao de La Mediterrane et le Monde Mditerranen lEpoque de Philippe II em
1949, Fernand Braudel apresentou aos historiadores a noo de longue dure como
prisma analtico possvel, e a viabilidade da utilizao do espao mediterrnico como uma
referncia espao-temporal s investigaes histricas.
Como alternativa ao modelo historiogrfico anterior voltado ao entendimento de
estruturas polticas e limites geogrficos mais rgidos e delimitadores dcadas depois
assistimos ao efervescente debate sobre as benesses, dificuldades e adversidades em se
utilizar o Mar Mediterrneo como parmetro de espao, de unidade abstrata ou de
ambiente propiciador de integraes socioculturais para se analisar o desenvolvimento
das sociedades antigas em seu entorno.
A perceptiva mudana de enfoque em conformidade com os processos de
interconexo cultural na Antiguidade onde antes se ressaltava enraizamento
[rootdeness], barreiras e tradio (MORRIS, 2003, p. 32), ganhou vulto principalmente
31
a partir do lanamento de trs obras de referncia: Black Athena: The Afroasiatic Roots
of Classical Civilization (1987), de Martin Bernal; Daidalos and the bases of Greek Art
(1992), de Sarah Morris, e The Corrupting Sea: a Study of the Mediterranean History
(2000), de Peregrine Horden e Nicholas Purcell.
Tais estudos foram os responsveis por proporem modelos analticos que atriburam
tambm ao Mundo Antigo a existncia de intercmbios mltiplos possibilitados pela
mobilidade de ideias, bens e pessoas. Concomitantemente, apresentaram pontos
importantes de ruptura com a tradio acadmica ao problematizarem limites territoriais,
culturais, sociais, lingusticos, ecolgicos e geogrficos cristalizados por pesquisas
precedentes, sugerindo novas possibilidades de abordagens e referenciais aos estudos.
Em The Corrupting Sea: a Study of Mediterranean History (2000), o Mediterrneo
foi apresentado a partir do imperativo da conectividade [connectivity] que, conforme
defendido, o constituiu como um contnuo de descontinuidades (HORDEN;
PURCELL, 2000, p. 53), ou seja, uma conjuno de diversas microrregies
representantes da diversidade ecolgica e climtica que compe seus biomas. Segundo
Peregrine Horden e Nicholas Purcell, devido a fatores ecolgicos e geogrficos, cada
microrregio estaria propensa a determinados cultivos, assim como sujeita a riscos e
incertezas concernentes ao ecossistema, ou a variaes no ecossistema, que a caracteriza.
O primeiro aspecto comum a estas microrregies, fragmentadas entre si, seria a
insuficincia autrquica e, em consequncia, a necessidade de abastecimento alimentcio
por produtos externos. Assim, a tendncia conexo seria algo intrnseco s
microrregies mediterrnicas, uma vez que a mobilidade e fluidez de bens e pessoas
representaria um movimento de retroalimentao deste mosaico, a priori, ecologicamente
determinado e que possua no espao do mar o principal meio de conectividade entre os
assentamentos [settlements] sociais mediterrnicos.
Na busca por consolidar um modelo analtico voltado fluidez, os autores
estabeleceram a tendncia conectividade como uma caracterstica inerente ao homem
mediterrnico. Ainda que tenham demonstrado momentos de pujana e esvaziamento de
concentraes populacionais em determinadas regies, resultantes da mobilidade
constante de pessoas em diferentes escalas, descreveram um ambiente conectado que, na
longa durao, parece natural, benfico e invarivel.
Horden e Purcell afirmaram que o disperso, o mutvel e o interno tm sido a
norma do Mediterrneo (HORDEN; PURCELL, 2000, p. 112). Entretanto, ao imputarem
conectividade o carter de padro aplicvel a um recorte temporal de longussima
32
durao, construram um modelo terico que, por fim, esttico ou, como denunciou
Willian Harris em The Mediterranean and Ancient History (2005), ahistrico.
Esta j era uma questo importante para a qual Fernand Braudel chamava ateno
em meados do sculo XX:
no ser tarefa fcil descobrir exatamente o que o carter histrico do
Mediterrneo tem sido. [...] o que o Mediterrneo para o historiador? No h
nenhuma falta de declaraes autorizadas sobre o que ele no . No um
mundo autnomo; nem a preservao do poder de ningum. Pobre do
historiador que pensa que seu interrogatrio preliminar no necessrio, que
o Mediterrneo, como uma entidade, no precisa de definio porque foi h
muito claramente definido, instantaneamente reconhecvel e pode ser
descrito pela diviso da histria geral ao longo da linha de seus contornos geogrficos (BRAUDEL, 1973, v.1, p. 29).
Conforme afirmou Michael Herzfeld em Practical Mediterraneanism: excuses for
everything, from epistemology to eating (2005), se a negao da existncia do referencial
mediterrnico to estpida quanto trat-lo como fato bvio que no precisa de mais
explicao, para o autor, essa mesma fatualidade sempre um ato constitutivo
(HERZFELD, 2005, p. 47-50). Dessa forma, qualquer tentativa de tomar a unidade
mediterrnica como um dado preliminar, ou de naturalizar processos de conectividade e
integrao como se fossem desdobramentos de uma condio inerente aos habitantes do
Mediterrneo, representa a supresso de uma metodologia histrica de anlise.
Como forma de esquivar-se de tal tendncia, William Harris, a partir do
reconhecimento da existncia constante de algum grau de conectividade mediterrnica,
sugeriu que a questo importante deve ser at onde o potencial [integrador] foi
concretizado de uma poca para outra. Dessa forma, segundo Harris, um pesquisador
conseguiria atingir a essncia de uma explicao histrica das conexes mediterrnicas
(HARRIS, 2005, p. 24).
Compreendemos, dessa forma, a contribuio da obra The Great Sea: a human
history of the Mediterranean (2011), de David Abulafia. Nela, o autor parte da crtica
endereada a Horden e Purcell de utilizao da noo braudeliana de longue dure para
abordar, em primeiro lugar, uma histria vertical do Mediterrneo, enfatizando a
mudana ao longo do tempo (ABULAFIA, 2014, p. 26) e, em segundo, uma narrativa
que, apesar de no desconsiderar a influncia de fatores ecolgicos na composio
poltica, econmica, social e religiosa mediterrnicas, pretendeu enfocar, sobretudo, as
aes humanas e, logo, polticas, que determinaram o espao do Mediterrneo ao longo
dos sculos.
33
Pela perspectiva de Abulafia, a conectividade mediterrnica no aparece como um
pressuposto, mas como um desdobramento do esforo das sociedades mediterrnicas em
interagirem umas com as outras por razes alimentares, econmicas e, por fim, polticas,
utilizando o mar como espao de deslocamento e via de interao. Tampouco foi
apresentada dentro de um pensamento linear, mas demarcada por perodos de tendncia
integrao e desintegrao. Relacionados diretamente configurao de conjunturas
de guerras, alianas polticas, trocas culturais, instabilidades e pujanas econmicas de
determinadas regies, esses perodos revelaram alternncias importantes de
intensificao e enfraquecimento de processos de integrao entre 22000 AEC a 2010
EC22.
Em The Corrupting Sea, a determinao de uma caracterstica mediterrnica
constante a conectividade baseada na diversidade e fragmentao internas que serviram
de fora motriz fluidez no permitiu que os autores demarcassem pontos de ruptura
significativos nessa grande permanncia, e que pudessem representar momentos de
transformaes estruturais. De acordo com esse modelo analtico, no parecem ter
relevncia as diferentes formaes sociais, econmicas, polticas e religiosas estruturadas
sob moldes distintos ao redor do Mediterrneo. Todas teriam obedecido ao mesmo
imperativo e, na perspectiva da longa durao, no representaram mudanas significativas
da ordem geral. Para os autores, historiadores e arquelogos do meio ambiente so
propensos a periodizar demais, procurando por fases de importncia essencial, geralmente
catastrficas, com as quais dividem o passado (HORDEN; PURCELL, 2000, p. 326)
o que consideram um erro. Assim, sugerem que
devemos estar preparados para enxergar os eventos que estudamos em uma escala suave que se estende at o passado distante. Podero haver eventos
proeminentes nesta escala, mas ns devemos ser relutantes em enfatiz-los
demasiadamente (HORDEN; PURCELL, 2000, p. 326).
Sugesto essa com a qual no concordamos. Em nossa viso, concordar seria
aceitar uma nova forma de afastamento em relao perspectiva histrica de anlise.
Segundo Ian Morris, em Mediterranization (2003), a concepo baseada na fluidez e
permanncia exposta como um fato, e no como um processo, gera um modelo terico
mais esttico do que o do paradigma que parece empenhado em suplantar. Sem a
22 Em The Great Sea: a human history of the Mediterranean (2011), David Abulafia apresentou a ampla
histria de integrao e desintegrao do Mediterrneo em cinco momentos: Primeiro Mediterrneo
(22000 AEC 1000 AEC), Segundo Mediterrneo (1000 AEC 600 EC), Terceiro Mediterrneo (600 EC
1350 EC), Quarto Mediterrneo (1350 EC 1830 EC) e, por fim, Quinto Mediterrneo (1830 EC 2010
EC).
34
admisso de mudanas, revolues e demais variaes no curso da histria humana,
aqueles que se dedicam consolidao deste prisma analtico limitam-se a compreender
a integrao mediterrnica como uma constante, um Mediterranismo.
Em contrapartida, o autor prope que nos dediquemos a pensar a histria no
Mediterrneo como um longo processo, que sofreu inflexes significativas e conheceu
permanncias importantes de acordo com o delineamento das organizaes humanas e as
relaes estabelecidas entre si e com o ambiente em diferentes contextos. Para Morris, ao
invs de uma condio de Mediterranismo [Mediterranism], a unificao mediterrnica
deve ser compreendida como um processo de Mediterranizao [Mediterranization].
Contudo, dois tpicos de intensa discusso continuam em pauta.
O primeiro refere-se concepo de que o processo integrador conferiu aos
territrios mediterrnicos uma condio de unidade. Para isso, faz-se necessria uma
exposio resumida do que os pesquisadores tm entendido como Mediterrneo e seus
limites.
A fim de sustentar o modelo terico de fluidez, Horden e Purcell no se
propuseram a traar qualquer definio de suas fronteiras geogrficas ou a extenso da
influncia da conectividade martima em seus territrios interioranos fato que gerou
muitas crticas concepo dos autores. Segundo Nicholas Purcell, em The Boundless
Sea of Unlikeness? On Definnig the Mediterranean (2003),
[...] tentativas de estabelecer caractersticas precisas para definir o que o
Mediterrneo tem consequncias indesejadas. A fluidez no esquema proposto
nos impede de olhar em direes mais abstratas para a definio, para desenhar
o Mediterrneo como uma ideia essencialmente debatvel (PURCELL, 2003, p. 10-11).
Outra justificativa apresentada por Purcell foi a de que as definies delimitadoras
do Mediterrneo tenderam a servir como justificativas histricas para dominaes
poltico-culturais modernas, o que representaria o propsito contrrio ao da obra The
Corrupting Sea (PURCELL, 2003, p. 14). Todavia, Ian Morris chamou ateno para o
fato de que ns no podemos responder a questes sobre unidade do Mediterrneo a
menos que ns saibamos o que queremos dizer com unidade e Mediterrneo
(MORRIS, 2003, p. 36), sendo qualquer tentativa de caracterizar ambos os termos sem
defini-los um ato de enfraquecimento do paradigma proposto, e no o contrrio.
Dessa forma, alguns autores se propuseram a demarcar os contornos dos territrios
mediterrnicos a partir de seus limites naturais. Para William Harris,
35
em um sentido escasso, existiu obviamente sempre um nvel de unidade. ,
afinal de contas, uma zona climtica com um limite climtico parcial ao leste
no formato do deserto Srio-rabe, assim como limites ao sul e norte (o que
no significa dizer que esses limites sejam fceis de serem definidos, ou que
as diferenas internas, na precipitao por exemplo, sejam negligenciveis).
Essa uma rea de temperaturas relativamente moderadas, exceto em altas altitudes, uma rea em que, apesar de a aridez ser um problema extremamente
comum, normalmente existe gua suficiente para sustentar a agricultura e as
cidades. Em um clima similar, e com fauna e flora similares, isso significa que
a sobrevivncia inevitavelmente demonstra similaridades e continuidades. E
desde que o homem aprendeu a percorrer distncias significativas em barcos,
na Idade do Bronze, uma rede de conexes martimas que cobriam quase todas
as regies martimas entre a Fencia e Cdiz passaram a existir virtualmente
(HARRIS, 2005, p. 21).
Para alguns autores, como David Abulafia, o Mediterrneo deve ser definido a
partir de sua extenso martima e pela potencialidade que apresenta em servir como meio
de conexo para suas regies costeiras, ou seja, em ser um Middle Sea23. Assim, suas
fronteiras foram fixadas no estreito de Gibraltar, no Dardanelos e no litoral que vai de
Alexandria a Gaza e Jaffa (ABULAFIA, 2014, p. 23-24). J para Norberto Guarinello,
em Histria Antiga (2013), o enfoque est direcionado s terras banhadas pelo mar. Para
o autor,
os estudos sobre o Mediterrneo no tm por objetivo, propriamente, o mar,
mas as terras influenciadas por ele. nas terras, no no mar, que vivem os mais
diferentes povos. O mar os separa e os distancia, o que aprofunda a
originalidade de cada comunidade ou populao, mas tambm os aproxima,
pois as comunicaes por mar so mais rpidas que as por terra (GUARINELLO, 2013, p. 50-51).
Ressaltamos que no nos proporemos a traar uma definio prpria de
Mediterrneo. No entanto, a julgar pelas principais regies paulinas de atuao, iremos
consider-lo sobretudo a partir de seus territrios circundantes, pois eram neles que
23 Para David Abulafia, a unidade mediterrnica conferida pelo espao martimo no apenas um pressuposto, mas aparece tambm como fator essencial na composio do conceito de Mediterrneo
como uma referncia geogrfica aplicvel a outros localidades e perodos. Em Mediterraneans (2010), o
autor prope a utilizao do conceito sob a perspectiva de Middle Sea em anlises comparativas de longa escala. Em suas palavras, a inteno trazer a nfase de volta ao papel dos espaos relativamente vazios
entre terras que rodeiam o mar, e olhar para as formas nas quais guas criam ligaes entre diversas
economias, culturas e religies. Contudo, a inteno ir mais a fundo, traando uma srie de comparaes
com outros Middle Seas em outras partes do mundo, to distantes quanto o mar do Japo ou o mar do
Caribe. Este no um exerccio vago em histria comparada. O argumento perseguido aqui que os
Mediterrneos tm desenvolvido um importante papel nas transformaes das sociedades por todo o mundo
ao permitir o contato com outras culturas diversas, que tem, elas mesmas, emergido em diversos ambientes.
O argumento tambm que esses Mediterrneos no so necessariamente mares no sentido em que ns
normalmente entendemos o termo. Espao [de integrao] tambm deve ser enxergado nas distncias
desrticas que funcionam como mares e que so atravessados por caravanas [...], trazendo no apenas bens,
mas ideias por reas inspitas e vazias de deserto (ABULAFIA, 2010, p. 65). Dessa forma, seguindo a
proposta apresentada, o campo semntico do termo Mediterrneo deve ser ampliado, passando a definir
quaisquer espaos de trocas e conexo entre fronteiras geogrficas distantes.
36
estavam assentadas as cidades, cenrios da atuao apostlica de Paulo. No
desconsideramos, entretanto, a importncia do mar, principalmente em relao
facilitao e agilidade de deslocamento. No resta dvidas de que o transporte martimo
foi tambm utilizado por Paulo em suas viagens, ainda que a falta de especificao das
rotas martimas escolhidas permita ao pesquisador traar apenas conjecturas lgicas.
Ademais, no pretendemos compreender o Mediterrneo como uma unidade indivisvel.
Conforme alertou Alain Bresson em Ecology and Beyond: the Mediterranean Paradigm
(2005),
a configurao fragmentada do Mar Mediterrneo tambm merece especial
ateno. Que o Mediterrneo altamente compartimentado, isso amplamente
conhecido: a existncia de duas bacias mediterrnicas, leste e oeste, nos
estreitos sicilianos, comumente observado na Antiguidade, por exemplo, por
Polbio e Estrabo. Mas vrias subzonas tambm tm sua prpria identidade,
como o Mar Tirreno, entre a Itlia, a Siclia, a Sardenha e Crsega, o Mar
Adritico, o Mar Egeu e, claro, o Mar Negro, para mencionar apenas os
principais (BRESSON, 2005, p. 95).
Bresson apresentou quatro nveis diferentes de integrao mediterrnica: o
primeiro, representado pelas microrregies; o segundo, que abrangeu subreas; o terceiro,
que correspondia s bacias Oriental e Ocidental; e, por fim, o quarto, que representaria
uma conectividade interna geral. Segundo o autor, a progresso desses nveis
acompanhou a solidificao gradual da integrao mediterrnica desde o terceiro milnio
AEC at o Imprio Romano. No entanto, conforme esclareceu, imaginar um Mediterrneo
completamente conectado em todas as suas localidades seria um anacronismo
(BRESSON, 2005, p. 100). Nesse sentido, o Mediterrneo pode ser concebido, em certa
medida, como uma unidade abstrata, sobretudo a partir do sculo I AEC. Entretanto, essa
viso s possui alguma veracidade se a considerarmos a partir dos diferentes graus de
integrao do espao interno do mar, que o compunham diretamente e apresentavam
oscilaes concernentes aos contextos polticos, econmicos e culturais das sociedades
que o utilizavam como alternativa de mobilidade.
Conforme mostraremos adiante, os deslocamentos fsicos paulinos estiveram
vinculados a diferentes referenciais regionais. Referenciais esses que foram sendo
gradualmente expandidos a medida que se ampliava a necessidade paulina em percorrer
diferentes territrios para difundir sua mensagem. Utilizando as denominaes de
Bresson, em resumo, Paulo atuou na subrea da Arbia, depois na da Sria,
aventurando-se posteriormente pelas regies da Galcia e sia Menor at concentrar
sua atuao nos territrios da subzona banhada pelo Mar Egeu, para, por fim, expressar
37
seu projeto de atuao para alm da bacia mediterrnica Oriental, chegando a Roma e
Espanha.
O segundo tpico a ser discutido diz respeito concepo de processo, no
singular. Em nosso entendimento, o que comumente chamado de processo progressivo
de integrao mediterrnica transcorrido desde tempos remotos formao do Imprio
Romano constituiu, na verdade, um conjunto de processos de contatos e interaes das
mais variadas ordens: poltica, cultural, econmica, lingustica, religiosa, etc. Como
consequncia das interlocues estabelecidas e sua constncia, por vezes tais processos
tenderam a integrar diferentes sociedades mediterrnicas. No decorrer de sculos,
representaram movimentos multicntricos, multirrelacionais e multicausais, dependentes,
sobretudo, das estruturaes sociais e atividades humanas em suas inter-relaes e nas
relaes estabelecidas com o meio.
Por esse ngulo, consideramos que os diferentes processos de interao geraram
movimentos de integrao e no integrao com abrangncias distintas, representando
maiores ou menores efeitos unificadores. Entretanto, nenhum deles resultou na integrao
completa de todos os habitantes do Mediterrneo a um sistema poltico, padro social,
cdigo simblico e lingustico comuns, ou ainda na homogeneizao cultural e religiosa
de seus territrios. Mesmo sob a dominao romana, perodo considerado pice das
integraes mediterrnicas territoriais, polticas, culturais e econmicas na Antiguidade,
as ordens locais subsistiram e estruturaram em grande medida a vida das diferentes
sociedades ao redor do mar.
Assim, parece-nos interessante o modelo analtico proposto por Norberto
Guarinello em Ordem, Integrao e Fronteiras no Imprio Romano. Um ensaio (2010) e
em Histria Antiga (2013), que visa a ideia central de que o processo [de integrao
mediterrnica] deve ser visto atravs da crescente articulao de fronteiras internas de
cada comunidade local com aquelas externas (GUARINELLO, 2013, p. 54), o que
modificava de tempos em tempos a ordem dessas comunidades. Para o autor, esta Ordem
pertence a um espao determinado e compe todas as dimenses da realidade que no
so efmeras, o que inclui as estruturas materiais, as instituies, as crenas, as relaes
estabelecidas, a tecnologia, o conhecimento, as prticas cotidianas. Em resumo, a Ordem
representada pelas fronteiras cotidianas da ao social (GUARINELLO, 2010, p. 119-
120). Por sua vez, as Fronteiras intercomunitrias
so fronteiras de trocas, de movimentos de bens, de informaes, de quadros
culturais e de homens. Interesses comuns so facilitadores de trocas, so pontos
de passagem, como podem ser tambm uma lngua comum, hbitos
38
semelhantes, memrias compartilhadas que se reforam com o tempo.
Interesses divergentes tornam as fronteiras zonas de guerra, de violncia, de
dominao, de destruio (GUARIANELLO, 2010, p. 121-122).
Uma comunidade, portanto, se define a partir das configuraes relacionais de
suas fronteiras internas e externas, que as diferencia das demais, assim como tambm, a
partir de suas articulaes, as colocam em contato e em condio de integrao com as
demais, uma vez que a fronteira , antes de tudo, um espao de negociao de fronteiras
(GUARINELLO, 2010, p. 122). Nesse sentido, a configurao da Ordem de uma
comunidade no inerte, mas remodela-se a partir das aes do homem no tempo. De
forma geral, para o autor,
a ordem a comunidade e a comunidade reproduz e modifica a ordem (ou seja,
a si mesma) atravs da negociao de suas fronteiras. Cada comunidade
representa, assim, uma fronteira poltica, econmica, social e cultural, um
esquema interno de comunicao, classificao, propriedade e explorao.
com esta fronteira de mltiplas densidades, que cada comunidade se defronta com as outras e com elas se integra, ou no (GUARINELLO, 2010, p. 121).
Ainda que o autor parta do pressuposto de que o espao do Mediterrneo e as
terras a seu redor podem ser vistos, na longa durao, como tendo sofrido um progressivo
processo de integrao de suas comunidades territoriais (GUARINELLO, 2013, p. 54),
os conceitos utilizados por Norberto Guarinello de Ordem e Fronteira propiciam a
compreenso dos processos de interao dos povos mediterrnicos a partir de sua
diversidade de possibilidades e consequncias e no por sua singularidade. O prprio
autor admite que o processo de integrao multicausal, depende tanto de determinantes
estruturais quanto de circunstncias histricas especficas (GUARINELLO, 2013, p.
54), e mais, esteve aberto tanto a possibilidades de integrao, como de no integrao.
Diante deste quadro geral, nosso trabalho analisa o movimento de formao e/ou
consolidao de pequenas comunidades urbanas em diferentes cidades do Leste
mediterrnico em meados do sculo I EC, coadunadas a partir do compartilhamento de
determinados preceitos cristolgicos difundidos por Paulo de Tarso e seus colaboradores
para alm das regies da Sria e da Palestina.
Para Paulo, essas deveriam seguir um evangelho formado por
concepes e narrativas baseadas em um deus nico e no sacrifcio e ressurreio de seu
descendente, Jesus Cristo [ ]. Apresentavam, como forma de diferenciao
de seus adeptos em relao aos demais membros da sociedade civil, a converso pelo
Batismo [] daqueles que aceitavam o novo compromisso com a , e que
passavam a integrar uma nova identidade de pertencimento e relaes de solidariedade
39
mtua. Assim, a iniciao proposta era entendida como o incio de um longo processo de
reeducao moral e de entendimento de que a comunidade de Cristo [ ]
deveria ser imaculada, sendo sua pureza definida tanto em termos morais, como
teolgicos no caso, monotesticos.
Buscaremos, a seguir, compreender a formao gradual de uma rede de
interconexo e solidariedade entre essas comunidades. Partiremos da hiptese central de
que, em linhas gerais, Paulo fomentou ao longo de sua vida apostlica um projeto que
entendemos como de integrao aos moldes de outros processos antecedentes de
integrao sociocultural mediterrnica , na medida em que atuou na flexibilizao de
fronteiras culturais, sociais e religiosas preexistentes a fim de propor uma outra ordem
comunitria, pretensiosamente alternativa imperial, polade helenstica e sinagogal
judaica.
Neste captulo, em especfico, abordaremos a formao gradual dessa rede a partir
de suas relaes de mobilidade apostlica e abrangncia por diferentes territrios do
Mediterrneo. Assim, pela leitura das epstolas paulinas, analisaremos o deslocamento
fsico e pretendido de Paulo de Tarso, sua prtica de envio de missionrios colaboradores
e epstolas s comunidades com as quais manteve contato e alguma relao de influncia
e, por fim, o esforo paulino constantemente voltado ao estabelecimento de uma coeso
intra e intercomunitria.
1.2 A rede de interconexo entre as : Paulo, os colaboradores e as epstolas
Os primeiros anos da atividade missionria de Paulo de Tarso so bastante
obscuros para o pesquisador que se prope a analis-los apenas a partir do corpus
epistolar paulino24. Pouca ou nenhuma informao foi fornecida em detalhes pelo autor.
A nica referncia encontra-se na Epstola aos Glatas, e vale ser destacada:
15Quando, porm, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou
por sua graa, houve por bem 16revelar em mim o seu Filho, para que eu o
evangelizasse entre os gentios, no consultei carne nem sangue, 17nem subi a Jerusalm aos que eram apstolos antes de mim, mas fui Arbia, e voltei
novamente a Damasco. 18Em seguida, aps trs anos, subi a Jerusalm para
avistar-me com Cefas e fiquei com ele quinze dias. 19No vi nenhum apstolo,
mas somente Tiago, o irmo do Senhor. 20Isto vos escrevo e vos asseguro
diante de Deus que no minto. 21Em seguida, fui s regies da Sria e da Cilcia. 22De modo que, pessoalmente, eu era desconhecido s Igrejas da Judia que
esto em Cristo. 23Apenas ouviam dizer: quem outrora nos perseguia agora
24 Todo o deslocamento fsico paulino citado neste subcaptulo pode ser visualizado no Mapa 2.
40
evangeliza a f que antes devastava, 24e por minha causa glorificavam a Deus.
[2] 1Em seguida, quatorze anos mais tarde, subi novamente a Jerusalm com
Barnab, tendo tomado comigo tambm Tito. 2Subi em virtude de uma
revelao e expus-lhes em forma reservada aos notveis o evangelho que
prego entre os gentios, a fim de no correr, nem ter corrido em vo (Gl 1,15-
2,2).
Na passagem supracitada, podemos visualizar, em primeiro lugar, a breve meno
paulina ao episdio de sua converso (Gl 1,15-16), fato relatado nos Atos dos Apstolos
em trs verses diferentes (At 9,39; 22,5-16; 26,9-18), mas que nas epstolas foi abordado
pontualmente por Paulo, sobretudo para legitimar seu lugar de apstolo [] e a
veracidade do evangelho de Deus [n ] que procurava difundir. Em
seguida, observamos a indicao dos primeiros deslocamentos paulinos como
missionrio: Arbia, Damasco (Gl 1,17) e, posteriormente, Sria e Cilcia (Gl 1,21), tendo
passado por Jerusalm em uma visita rpida a Pedro (Gl 1,18).
Sabe-se que a estadia na Sria, mais especificamente em Antioquia, representou
um perodo fundamental do apostolado paulino. Todavia, as epstolas no nos fornecem
muitos detalhes e, por isso, nos reportamos aos Atos. Assim, torna-se possvel extrair as
informaes de que foi em Antioquia que Paulo recebeu, de fato, sua preparao
missionria, assim como foi em oposio aos membros da comunidade antioquena que
enfrentou pela primeira vez a querela referente converso dos gentios (At 15,1-2)25.
Conhecido posteriormente como Controvrsia em Antioquia, o impasse teve
origem na alegao realizada por alguns membros da comunidade de que se no vos
circuncidardes segundo a norma de Moiss, no podereis salvar-vos (At 15,1). Conforme
podemos atestar na passagem em destaque, como Paulo havia assumido a misso de
evangelizar tambm os gentios, a imposio do ritual da circunciso levou-o a Jerusalm
pela segunda vez (Gl 2,1), onde discutiu a questo em forma reservada aos notveis (Gl
2,2) episdio que conhecemos como Conclio Apstlico.
No Conclio, segundo nos indica Paulo em Gl 2,6-10, depois da deliberao
protagonizada por Tiago, Pedro e Joo, os notveis tidos como colunas, estipulou-se
que ns [Paulo e seus colaboradores] pregaramos aos gentios e eles [Pedro e os
judaizantes] aos da Circunciso (Gl 2,9). Tal deciso, como descrito em Gl 2,1,
aconteceu quatorze anos aps a primeira visita documentada de Paulo a Jerusalm, o que
25 Passagem completa: 1Entretanto, haviam descido alguns da Judeia e comearam a ensinar aos irmos:
Se no vos circuncidardes segundo a norma de Moiss, no podereis salvar-vos. 2Surgindo da uma
agitao e tornando-se veemente a discusso de Paulo e Barnab com eles, decidiu-se que Paulo e Barnab
e alguns outros de seus subiriam a Jerusalm, aos apstolos e ancios, para tratar da questo (At 15,1-2).
Cf. SIMON; BENOIT, 1987, p. 112; HOLSTEIN, 1977, p. 35; MEEKS, 1992, p. 34; KOESTER, 2005b,
p. 172.
41
permitiu a Helmut Koester em Introduction to the New Testament: History and Literature
of the Early Christianity (1926) datar o Conclio Apostlico no ano de 48 EC e o episdio
da converso paulina por volta de 35 EC.
Passagens adiante, Paulo afirmou ter partido de Jerusalm, provavelmente ainda
em 48 EC, para regressar a Antioquia, onde desentendeu-se pessoalmente com o apstolo
Pedro por julg-lo digno de censura (Gl 2,11). Ao que nos indica o contedo de Glatas,
por considerar as atitudes de Pedro e demais membros da comunidade antioquena ainda
bastante atreladas a normas ritualsticas e tendncias segregadoras judaicas26, Paulo
separou-se de Barnab, deixou Antioquia e iniciou sua atividade missionria autnoma
acompanhado de Silvano e Timteo.
Seguindo as informaes epistolares, teramos cronologicamente a misso paulina
na Macednia e sua estadia em Filipos. Entretanto, a composio subsequente da Epstola
aos Glatas deixa uma lacuna no mapa do deslocamento paulino. Segundo os Atos dos
Apstolos, aps deixar Antioquia, Paulo dirigiu-se para a regio da Galcia (At 16,1-8)
fato que parece verdadeiro a julgar pela comunicao estabelecida com as
glatas e o indicativo da presena pregressa paulina nas primeiras passagens da epstola.
Como apontou Koester,
embora Atos mencione a Galcia apenas de passagem, melhor supor que
Paulo tenha a permanecido pelo menos alguns meses durante essa viagem.
Galcia designava a regio montanhosa central da Anatlia, com as cidades
de Ancira, Pessino e Grdio. De acordo com a hiptese da Galcia do Norte,
as igrejas glatas devem ser localizadas aqui, e no no sul da provncia romana
da Galcia, isto , nas cidades de Listra, Derbe e Icnio (a hiptese da Galcia
do sul), que Paulo havia visitado anteriormente quando ainda estava radicado
em Antioquia (At 14,6) (KOESTER, 2005b, p. 122-123).
Paulo teria ficado na Galcia at a primavera do ano de 50 EC. Posteriormente,
dirigiu-se para Trade, na regio da Msia, onde no parece ter atuado na fundao de
uma local. De Trade, seguiu para Filipos, na Macednia, onde, segundo At
16,9, foi chamado a pregar por meio de uma viso27. Conforme consta em
1Tessalonicenses, Paulo permaneceu em Filipos at sofrer perseguies: 2Sabeis que
26 Passagem completa que trata da querela entre Pedro e Paulo em Antioquia: 11Mas quando Cefas veio a
Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele tinha se tornado digno de censura.12Com efeito, antes de
chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando chegaram, ele se subtraa
e andava retrado, com medo dos circuncisos. 13Os outros judeus comearam tambm a fingir junto com
ele, a tal ponto que at Barnab se deixou levar pela sua hipocrisia. 14Mas quando vi que no andavam
retamente segundo a verdade do evangelho, eu disse a Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives
maneira dos gentios e no dos judeus, por que foras os gentios a viverem como judeus? (Gl 2,11-14). 27 Passagem completa: Ora, durante a noite, sobreveio a Paulo uma viso. Um macednio, de p diante
dele, fazia-lhe este pedido: Vem para a Macednia, e ajuda-nos! (At 16,9).
42
sofremos perseguies e fomos insultados em Filipos. Decidimos, contudo, confiados em
nosso Deus, anunciar-vos o Evangelho de Deus, no meio de grandes lutas (1Ts 2,2).
Dessa forma, ainda no ano de 50 EC, dirigiu-se para a cidade de Tessalnica,
capital da provncia romana da Macednia, onde tambm encontrou obstculos para se
fixar, conforme observamos em: 4Quando estvamos convosco j dizamos que
haveramos de passar tribulaes; foi o que aconteceu, como sabeis (1Ts 3,4). Assim,
Paulo deixou Tessalnica e seguiu rumo a Atenas:
1Por isso, no podemos mais suportar, resolvemos ficar sozinhos em Atenas, 2e enviamos Timteo, nosso irmo e ministro de Deus na pregao do
Evangelho de Cristo, com o fim de vos fortificar e exortar na f, 3para que
ningum desfalea nestas tribulaes. Pois bem sabeis que para isso que
fomos destinados (1Ts 3,1-3).
Conforme apontamos, enquanto Paulo manteve relaes de proximidade com a
comunidade antioquena, esteve acompanhado de Barnab, um dos primeiros missionrios
atuantes fora de Jerusalm do qual as Epstolas e os Atos nos do notcias. No episdio
do Conclio de Jerusalm, em 48 EC, Paulo afirmava estar com Barnab e Tito (Gl 2,1;3).
Contudo, aps desentender-se com Pedro, afastou-se tambm de Barnab, e quando
deixou Antioquia o fez acompanhado de Silvano e Timteo, permanecendo assim durante
todo o percurso pela Galcia, Trade, Filipos e Tessalnica (1Ts 1,1).
Com exceo dos primeiros anos de vida missionria (Gl 1,15-24), em que Paulo
no indicou estar acompanhado, nas misses posteriores no esteve s. Viajava ao lado
de missionrios de sua confiana, a quem chamava de [irmos] e/ou
[colaboradores]. Discutiremos, nos captulos seguintes, o significado de [irmo].
Contudo, vale ressaltar a utilizao do termo [colaborador] como indicativo de
que esses missionrios eram reconhecidos por Paulo como companheiros, ou melhor,
como colaboradores de Deus no evangelho de Cristo (1Ts 3,2)28. Alm da confiana
do apstolo, os carregavam consigo a responsabilidade de serem a extenso da
pregao do evangelho paulino, a presena diante da ausncia fsica de Paulo, os
mensageiros transportadores de notcias e epstolas e, por fim, os orientadores da vida
cotidiana das recm-formadas.
28 O termo pode ser traduzido por algum que trabalha na companhia de outra pessoa,
companheiro de trabalho, cooperador, ou ainda, ajudante, pessoa da mesma profisso que outra,
colega. A Bblia de Jerusalm (2014) traz ministro como traduo de em 1Ts 3,2. Entretanto,
assim como em Rm 16,21, entendemos que a opo mais apropriada seria a utilizao de colaborador
como traduo possvel de em 1Ts 3,2. Dessa maneira, propomos que se traduza
como nosso irmo e colaborador de Deus no
evangelho de Cristo. Cf. LIDDEL & SCOTT, 1996; LOUW & NIDA, 2013.
https://en.wiktionary.org/wiki/%CE%B1%CE%B4%CE%B5%CE%BB%CF%86%CE%BF%CE%AF#Greekhttps://en.wiktionary.org/w/index.php?title=%CF%83%CF%85%CE%BD%CE%B5%CF%81%CE%B3%CE%BF%CE%AF&action=edit&redlink=1https://en.wiktionary.org/w/index.php?title=%CF%83%CF%85%CE%BD%CE%B5%CF%81%CE%B3%CE%BF%CE%AF&action=edit&redlink=143
Nesse sentido, tudo indica que a mobilidade de pessoas necessria difso, de
fato, do evangelho paulino foi maior e mais complexa do que podemos aventar a partir
dos contedos epistolares. Por vezes, sua leitura descontextualizada induz construo
de uma viso quase hegemnica da autoridade paulina sobre as o que no
condiz com os fatos, principalmente se levarmos em conta que Paulo no atuou
isoladamente em seu contexto, assim como no obteve aceitao inquestionvel por parte
de seus pares ou de seus (pretensos) seguidores. preciso ressaltar que sem o trnsito
constante dos , a formao progressiva da rede de interconexo entre as
da qual tratamos seria muito mais difcil, se no impossvel.
Em 1Ts 3,1-3, testemunhamos o primeiro registro escrito do que viria a ser um
hbito paulino nos anos posteriores: o envio desses s cidades previamente
visitadas como forma de obter notcias das e fiscalizar a continuidade (ou no)
da fidelidade dos convertidos ao evangelho paulino. Percebe-se, portanto, que conforme
se estendiam o percurso, o nmero de cidades visitadas e, consequentemente, o nmero
de para com as quais Paulo julgava ter a responsabilidade de guarda e
orientao, mais difcil tornava-se a sustentao da comunicao unilateral entre o
apstolo e os membros das locais. Foi preciso pr em prtica outras estratgias
de interlocuo, e o envio de pessoas de confiana constituiu a primeira.
Paulo deixou Tessalnica e se dirigiu a Atenas, apesar de ter expressado o desejo
de voltar capital da Macednia: 17ns, porm, irmos, privados por um momento de
vossa companhia, no de corao, mas s de vista, desejamos muito rever-vos (1Ts
2,17). Contudo, diante da impossibilidade de deslocar-se Tessalnica, resolveu enviar
em seu lugar Timteo (1Ts 3,2). Por sua vez, ainda no ano de 50 EC, Paulo seguiu viagem
para Corinto, onde se estabeleceu por um perodo maior de tempo, de 50 a 52 EC e, com
isso, pde desenvolver com mais vigor o processo de fundao da corntia e,
possivelmente, de outras pela regio da Acaia29.
Em Corinto, ainda acompanhado de Silvano, recebeu a visita de Timteo, que
retornara de Tessalnica (1Ts 3,6). Conforme nos indica o contedo de 1Tessalonicenses,
Timteo parece ter transmitido ao apstolo informaes sobre uma fiel a seu
evangelho, porm ainda muito incipiente, que sofria oposies externas e apresentava
fragilidades em termos de coeso grupal e de observncia ao evangelho paulino. Dessa
29 Em diversas passagens Paulo se refere regio da , no geral, como um territrio conhecido, e no
apenas . Tal recorrncia permite ao pesquisador levantar a hiptese de que a abrangncia da
atuao paulina na possa ter sido maior do que se imaginava, resultando, inclusive, na fundao de
outras , para alm da corntia, em outras cidades da regio (como , por exemplo). Cf.
1Ts 1,7-8; 1Cor 16,15; 2Cor A 1,1; 2Cor B 11,10; 2 Cor E 9,2; Rm 15,12; 16,1-2.
https://en.wiktionary.org/w/index.php?title=%CF%83%CF%85%CE%BD%CE%B5%CF%81%CE%B3%CE%BF%CE%AF&action=edit&redlink=1https://en.wiktionary.org/w/index.php?title=%CF%83%CF%85%CE%BD%CE%B5%CF%81%CE%B3%CE%BF%CE%AF&action=edit&redlink=144
forma, mediante o risco da perda das conquistas obtidas, Paulo decidiu pela primeira
vez da qual temos notcia enviar aos tessalonicenses uma epstola sob a guarda de
Timteo.
Apresentado por Philipp Vielhauer e