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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ANA PAULA SCARPA PINTO DE CARVALHO A FORMAÇÃO DAS PRIMEIRAS EKKLESIAI NO MEDITERRÂNEO ANTIGO: FRONTEIRAS E INTEGRAÇÃO NAS EPÍSTOLAS DE PAULO DE TARSO Mariana 2017

A FORMAÇÃO DAS PRIMEIRAS EKKLESIAI NO …‡ÃO... · ana paula scarpa pinto de carvalho a formaÇÃo das primeiras ekklesiai no mediterrÂneo antigo: fronteiras e integraÇÃo

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    ANA PAULA SCARPA PINTO DE CARVALHO

    A FORMAO DAS PRIMEIRAS EKKLESIAI NO

    MEDITERRNEO ANTIGO:

    FRONTEIRAS E INTEGRAO

    NAS EPSTOLAS DE PAULO DE TARSO

    Mariana

    2017

  • ANA PAULA SCARPA PINTO DE CARVALHO

    A FORMAO DAS PRIMEIRAS EKKLESIAI NO

    MEDITERRNEO ANTIGO:

    FRONTEIRAS E INTEGRAO

    NAS EPSTOLAS DE PAULO DE TARSO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria do Instituto de Cincias

    Humanas e Sociais da Universidade Federal de

    Ouro Preto, como requisito parcial obteno

    do grau de Mestre em Histria.

    rea de concentrao: Ideias, Linguagens e

    Historiografia.

    Orientador: Prof. Dr. Fbio Duarte Joly

    Mariana - MG

    Instituto de Cincias Humanas e Sociais

    Universidade Federal de Ouro Preto

    2017

  • Catalogao: www.sisbin.ufop.br

    S286f Scarpa, Ana Paula. A Formao das Primeiras Ekklesiai no Mediterrneo Antigo [manuscrito]:Fronteiras e Integrao nas Epstolas de Paulo de Tarso / Ana Paula Scarpa. -2017. 145f.: il.: color; mapas.

    Orientador: Prof. Dr. Fbio Duarte Joly.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deCincias Humanas e Sociais. Departamento de Histria. Programa de Ps-Graduao em Historia. rea de Concentrao: Histria.

    1. Bblia. N.T. Epstolas de Paulo. 2. Ekklesiai. 3. Fronteiras. 4. Mediterrneo,Mar, Regio. I. Joly, Fbio Duarte. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III.Titulo.

    CDU: 27-248.3

  • A Evandro Carvalho, Snia Scarpa e Eliza Scarpa.

  • AGRADECIMENTOS

    Expresso minha gratido ao Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello e ao Prof. Dr.

    Fbio Faversani por aceitarem compor as bancas de Qualificao e Defesa de nossa

    Dissertao, ao Prof. Dr. Fbio Duarte Joly pela orientao e incentivo constantes, ao

    Prof. Dr. Alex Degan pela gentileza em ceder material bibliogrfico sobre Judasmos

    antigos, e aos demais professores e membros do Laboratrio de Estudos sobre o Imprio

    Romano (LEIR). Sou grata tambm CAPES, ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria (PPGHIS) e ao Instituto de Cincias Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade

    Federal de Ouro Preto (UFOP) por disponibilizarem fomento e infraestrutura para o

    desenvolvimento de nosso trabalho.

    Com imenso carinho, agradeo quelas e queles que estiveram ao meu lado

    nesses anos: Evandro Carvalho, Snia Scarpa, Danilo Barcelos, Daniela Carvalho, Nadir

    Carvalho, Jos Carvalho, Selma Santos, Ellison Lopes, Patrcia Almeida, Flvio Reis,

    Letcia Ferraz, Aline Machado, Marcos Sousa, Marcella Alves, Maria Fernanda Alves,

    Trcio Veloso, Helena Azevedo, Clayton Ferreira, Pedro Henrique Oliveira, Vincius

    Carvalho, Thiago Vieira, Otvio Augusto Marques, Lucas Cmara, e demais membros de

    minha famlia marianense, Caroline Fernandes, Ygor Belchior, Ana Lcia Coelho, Joo

    Victor Lanna e Willian Mancini.

  • Faz-se notrio, nas opinies dos antroplogos, historiadores

    das culturas e das religies o consenso a respeito da natureza

    dos resultados dos encontros, desencontros, trocas e interaes

    entre as culturas, povos, fronteiras tnico-geogrficas e

    identidades. So resultados no unvocos que produzem histria,

    culturas, valores, significados, ressignificaes csmicas e

    identidades, no obstante seu carter de violncia e tenso. So

    contribuies histrico-antropolgicas que oferecem o suporte

    terico para a elaborao ou construo dos fatores identitrios

    que caracterizam os grupos socioculturais como fenmenos e

    suas interpretaes no que concernem aos textos bblicos.

    Torna-se um grande desafio abordar tais conceitos na

    perspectiva da histria antiga dos cristianismos primitivos; onde

    as categorias como identidades e culturas ainda so vistas e

    compreendidas como um processo esttico, slido, uniforme e

    impermevel.

    Jos Luiz Izidoro

  • RESUMO

    O presente trabalho tem por finalidade compreender a formao das

    nas cidades do Leste mediterrnico em meados do sculo I EC luz das recentes

    discusses sobre Fronteiras e Integrao no Mediterrneo antigo. Partimos da leitura do

    corpus epistolar paulino para investigar a estruturao gradual de uma rede de contatos e

    interconexo entre essas comunidades, constituda pelo trnsito constante de Paulo de

    Tarso e seus colaboradores, pelo hbito de envio de cartas, e pelo suporte estrutural

    fornecido por patronos locais. Por meio da anlise do contexto e do contedo das

    epstolas, argumentamos que a negociao relacional das fronteiras tnicas, identitrias e

    sociais envolvidas correspondeu ao intuito paulino de compor uma rede de integrao

    socio-religiosa no Mediterrneo.

    Palavras-chave: Fronteiras; Integrao, , Paulo de Tarso.

  • ABSTRACT

    This research aims to understand the formation of the in the Eastern

    Mediterranean cities in the middle of the first century. For doing this, it firstly takes into

    account the recent discussions on Boundaries and Integration in the context of ancient

    Mediterranean. Secondly, it considers the Pauline epistolary corpus to investigate the

    gradual structuring of a network of contacts and interconnection between these

    communities, constituted by the constant movement of Paul of Tarsus and his

    collaborators, by means of sending letters, and by the structural support provided by local

    patrons. Finally, the contex and the content of the epistles are analysed to argue that the

    relational negociation of the ethnic, identity, and social boundaries corresponded to the

    Pauline goal of forming a network of socioreligious integration in the Mediterranean.

    Keywords: Boundaries; Integration; ; Paul of Tarsus.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    1Corntios 1Cor

    1Tessalonicenses 1Ts

    2Corntios A 2Cor A

    2Corntios B 2Cor B

    2Corntios C 2Cor C

    2Corntios D 2Cor D

    2Corntios E 2Cor E

    Atos dos Apstolos At

    Filmon Fm

    Filipenses A Fl A

    Filipenses B Fl B

    Filipenses C Fl C

    Glatas Gl

    Romanos Rm

  • LISTA DE MAPAS

    MAPA 1. Imprio Romano sob Augusto ......................................................................XII

    MAPA 2. Viagens de Paulo segundo as Epstolas Paulinas ........................................XIII

    MAPA 3. Trnsito das Epstolas Paulinas ...................................................................XIV

    MAPA 4. Principais estradas do Leste Mediterrnico ..................................................XV

  • SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................16

    CAPTULO I

    DE JERUSALM ESPANHA: A FORMAO DA REDE PAULINA DE

    INTERCONEXO ENTRE AS NO MEDITERRNEO..................28

    1.1 O MEDITERRNEO COMO REFERENCIAL ANALTICO: DEBATES EM

    PAUTA.....................................................................................................................30

    1.2 A REDE DE INTERCONEXO ENTRE AS : PAULO, OS

    COLABORADORES E AS EPSTOLAS ...............................................................39

    CAPTULO II

    A JUDEUS E A GREGOS, A SBIOS E A IGNORANTES: FRONTEIRAS

    TNICAS E IDENTITRIAS NAS PAULINAS...............................62

    2.1 INTEGRAES CULTURAIS NO MEDITERRNEO: O CONTEXTO

    HISTRICO E A FORMAO PAULINA............................................................64

    2.2 ETNICIDADE, IDENTIDADE E CULTURA: O EVANGELHO PAULINO E

    AS TRADIES TNICAS JUDAICAS................................................................75

    2.3 CONTRA AS FRONTEIRAS SEGREGADORAS, EM FAVOR DAS

    INTEGRADORAS: A PROPOSIO DA .................................................87

    CAPTULO III

    NO H JUDEU NEM GREGO, ESCRAVO NEM LIVRE, HOMEM NEM

    MULHER: FRONTEIRAS SOCIAIS NAS PAULINAS....................95

    3.1 A IMPORTNCIA DAS CIDADES E DAS ESTRADAS NA COMPOSIO

    DA ORDEM IMPERIAL ROMANA: AS PRIMEIRAS REDES DE INTEGRAO

    UTILIZADAS POR PAULO....................................................................................98

    3.2 A FORMAO SOCIAL DAS EM AMBIENTE URBANO: AS

    SINAGOGAS, AS CASAS E AS FAMLIAS........................................................106

    3.3 O ESTMULO COESO INTRA E INTERCOMUNITRIA: FRONTEIRAS

    INTERNAS E EXTERNAS....................................................................................125

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................132

    ANEXO.........................................................................................................................137

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................139

  • XII

    MAPA 1

    Imprio Romano sob Augusto

    Fonte: GUARINELLO, Norberto Luiz. Histria Antiga, 2013.

  • XIII

    MAPA 2

    Viagens de Paulo segundo as Epstolas Paulinas

    Fonte: DULING, Dennis. The New Testament: History, Literature and Social Context, 4 ed., 2003 (Modificado)

  • XIV

    MAPA 3

    Trnsito de Epstolas Paulinas

    Fonte: DULING, Dennis. The New Testament: History, Literature and Social Context, 4 ed., 2003 (Modificado).

  • XV

    MAPA 4

    Principais Estradas do Leste Mediterrnico

    Fonte: DULING, Dennis. The New Testament: History, Literature and Social Context, 4 ed., 2003 (Modificado)

  • INTRODUO

  • 17

    Alertava Thomas Kuhn, em The Structure of Scientific Revolutions (1962), ao

    considerar os preceitos do pensamento cientfico moderno, que um dos alicerces da

    Cincia Normal se encontra na construo de elaboraes tericas os Paradigmas

    representantes das realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durante

    algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de

    praticantes de uma cincia (KUHN, 1998, p. 13). Por sua vez, esses constructos

    explicativos refletem necessariamente o ambiente intelectual e a realidade social que os

    produzem, sendo to suscetveis s modificaes em diferentes escalas quanto s

    sociedades ao longo do tempo.

    Para o fsico e filsofo da cincia, essas alteraes, as Revolues Cientficas,

    assim como a transio sucessiva de um paradigma a outro, representam, em suas

    palavras, o padro usual de desenvolvimento da cincia amadurecida (KUHN, 1998, p.

    32). Dessa maneira, o avano ideal do pensamento cientfico moderno est calcado no

    repensar constante de seus parmetros, sendo os momentos de Revoluo Cientfica os

    complementos desintegradores da tradio qual a atividade da Cincia Normal est

    ligada (KUHN, 1998, p. 25).

    Ao realizar um balano das pesquisas atuais dedicadas anlise do Mundo Antigo,

    Ian Morris, seguindo os preceitos kuhnianos, indicou a vigncia de um novo Paradigma

    no campo da Histria e Arqueologia Clssicas. Como observou o autor, desde a dcada

    de 1980, historiadores e arquelogos tm mudado o foco de suas interpretaes sobre a

    realidade histrica, deixando de enfatizar as culturas delimitadas [bounded cultures]1

    para dedicarem-se compreenso dos processos que acentuam a fluidez e a

    conectividade das conjunturas sociais, polticas, religiosas, econmicas e culturais na

    Antiguidade (MORRIS, 2003, p. 30).

    Como exposto em Mediterranization (2013), artigo dedicado ao tema, at a

    dcada de 1970 o modelo finleyniano de economia fechada, pouco suscetvel a trocas

    comerciais em larga escala e, por isso, circunscrita a mercados locais, encontrava bastante

    eco nos meios acadmicos2. Entretanto, tal abordagem da economia antiga, denominada

    Primitivista, aos poucos passou a ser questionada e por vezes suplantada pela

    elaborao de um novo paradigma durante a dcada de 1980. Este, por sua vez, como

    reflexo das discusses contemporneas relativas conectividade e Globalizao, tem

    buscado encontrar na Antiguidade contextos e discursos que caracterizem movimentos

    de mobilidade, fluidez, integrao e interaes diversas.

    1 Todas as tradues livres de lnguas modernas presentes neste trabalho so nossas. 2 Cf. FINLEY, 1980.

  • 18

    Para isso, testemunha-se paralelamente a crescente utilizao do conceito de

    Fronteira, advindo das Cincias Sociais, como ferramenta analtica destinada tambm

    aos estudos sobre Antiguidade. Conforme exps Norberto Guarinello em Ordem,

    Integrao e Fronteira no Imprio Romano. Um ensaio (2010), a utilizao do termo tem

    sido deslocada de seu sentido moderno tradicional relativo aos contextos dos fronts de

    batalhas do sculo XV e, posteriormente, da separao geogrfica entre os Estados

    Nacionais para abranger significaes mais amplas e que caracterizem as variveis

    envolvidas em processos sociais. Nesse segundo sentido, as fronteiras passam a indicar

    os processos relacionais de diferenciao social, tnica, cultural, etc, tanto como de

    comunicao, intercmbios e assimilaes a partir das interaes sociais.

    Em The Study of Boundaries in the Social Sciences (2002), Michele Lamont e

    Vrag Molnar apontaram a relevncia cada vez maior que o conceito de fronteira tem

    atingido em pesquisas destinadas a discutir, em diferentes reas do conhecimento, temas

    como identidade coletiva, classe, etnia, gnero, sexualidade, limites espaciais,

    conhecimento, comunidades, identidades nacionais, entre outros. Ressaltaram as autoras

    que, se a noo de fronteira tem se tornado uma das ferramentas de pensamento mais

    frteis, porque, em parte, ela captura um processo social fundamental, que o aspecto

    relacional [relationality] (LAMONT; MOLNAR, 2002, p. 169).

    Nesse sentido, Lamont e Molnar destacam a existncia de dois referenciais de

    utilizao do conceito: as Fronteiras Simblicas e as Fronteiras Sociais. No caso das

    primeiras, definem:

    fronteiras simblicas so distines conceituais realizadas pelos atores sociais

    para categorizar objetos, pessoas, prticas e at mesmo tempo e espao. Elas

    so ferramentas pelas quais os indivduos e os grupos disputam e vm a

    concordar acerca das definies sobre realidade. Examin-las permite-nos

    capturar as dimenses dinmicas das relaes sociais, assim como a forma de

    os grupos competirem na produo, difuso e institucionalizao de sistemas

    alternativos e princpios de classificaes. As fronteiras simblicas tambm separam pessoas em grupos e geram sentimentos de similaridade e de pertena

    grupal, elas so um meio essencial atravs do qual as pessoas adquirem status

    e monopolizam recursos (LAMONT; MOLNAR, 2002, p. 168).

    J as Fronteiras Sociais, como abordadas em sentido mais literal, so formas

    objetificadas de diferenas sociais manifestas em acessos desiguais e na distribuio

    desigual de recursos (materiais e no materiais) e oportunidades sociais (LAMONT;

    MOLNAR, 2002, p. 168). Para as autoras, as abordagens analticas que mais tm a

    contribuir com o desenvolvimento do conceito de fronteira, so aquelas que buscam

  • 19

    encontrar pontos de interseo, configuraes tpicas e similaridades entre as fronteiras

    simblicas e as fronteiras sociais em um determinado contexto.

    Dessa forma, como desdobramento possvel da aplicao desse novo prisma

    analtico s pesquisas sobre o Mundo Antigo, especialmente s sociedades mediterrnicas

    sob o domnio do Imprio Romano, observa-se que nenhuma comunidade ou identidade,

    sobretudo as coletivas, tiveram suas fronteiras simblicas e sociais delineadas

    isoladamente. Ao contrrio, foi a partir das relaes estabelecidas com os outros

    helnicos, latinos, romanos, cidados, no cidados, estrangeiros, patronos, clientes,

    amigos, familiares, brbaros, judeus, gentios, monotestas, politestas, etc que as

    mesmas foram recorrentemente balizadas.

    Conforme ressaltou Thomas Kuhn, as Revolues Cientficas so reflexos de

    mudanas sociais e intelectuais de um perodo, mas tambm atuam na intensificao

    dessas transformaes, fazendo com que explicaes tradicionais vinculadas a um

    passado que j no comunica mais ao presente sejam reformuladas. Assim, para o autor,

    quando mudam os paradigmas, muda com eles o prprio mundo. Guiados por

    um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu

    olhar em novas direes. E o que ainda mais importante: durante as

    revolues, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando

    instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos j examinados

    anteriormente (KUHN, 1998, p. 145).

    Como consequncia do aumento substancial e intensificao das interlocues

    culturais estabelecidas em nossa temporalidade, Peter Burke afirmou em Cultural

    Hybridity, Cultural Exchange, Cultural Translation: Reflections on History and Theory

    (2003) que, em nosso mundo, nenhuma cultura uma ilha (BURKE, 2003, p. 102).

    Desse modo, apontou que se a realidade em que vivemos marcada por encontros

    culturais cada vez mais frequentes e intensos, a preocupao acadmica em enfatizar tais

    interaes parece, em seu julgamento, natural. Assim como consequncia direta deste

    quadro o fato de os historiadores dedicarem cada vez mais ateno aos processos de

    encontro, contato, interao, troca e hibridizao cultural (BURKE, 2003, p. 14-16).

    No campo das pesquisas em Histria Antiga, ressaltamos duas tendncias

    significativas que se destacam nas ltimas dcadas. A primeira o processo identificado

    por Norberto Guarinello em Histria Antiga (2013) como Culturalizao da Histria,

    que diz respeito constatao do crescimento do campo dos Estudos Culturais em geral,

    e que para a rea dos estudos histricos sobre Antiguidade tem aberto novas diretrizes

    analticas (GUARINELLO, 2013, p. 43). Exemplo disso o fato de que se anteriormente

  • 20

    os estudos sobre os traos culturais de uma dada sociedade antiga, como sua religiosidade

    e prticas ritualsticas, estavam a cargo da investigao de outros campos do

    conhecimento e suas abordagens particulares como a Antropologia, a Sociologia das

    Religies, a Teologia, etc , nas ltimas dcadas vm sendo tomados tambm como

    objetos de estudo histrico, principalmente em relao ao seu contexto sociocultural.

    Assim como afirmou Srgio da Mata em Histria e Religio (2010), a moderna

    Histria das Religies, alm de afastada que est das pretenses apologticas quanto das

    desmistificadoras tomou para si a tarefa de compreender e explicar geneticamente a

    religio nas suas relaes com a cultura e a sociedade (MATA, 2010, p. 17). Da mesma

    forma, no se sustentam mais interpretaes que tendam anlise isolada dos

    movimentos religiosos ou rgida distino entre as esferas da poltica e da religio nas

    sociedades antigas, uma vez que, conforme defendeu S. R. Price em Rituals and Power

    (1997), uma e outra so maneiras de construir sistematicamente o poder (PRICE, 2004,

    p. 76).

    A segunda tendncia a ser mencionada a multiplicao das abordagens que

    visam, na longa durao, matizar recortes cronolgicos e espaciais cristalizados pelo

    campo dos Estudos Clssicos, a fim de construrem anlises que destaquem as interaes

    culturais, econmicas, sociais e polticas dentro de uma referncia geogrfica mais

    abrangente: o Mar Mediterrneo. o caso de obras como The Corrupting Sea: a Study of

    Mediterranean History (2000), de Peregrine Horden e Nicholas Purcell; Rethinking the

    Mediterranean (2005), organizado por William Harris; The Great Sea: a human history

    of the Mediterranean (2011), de David Abulafia; Histria Antiga (2013), de Norberto

    Guarinello; A Companion to Mediterranean History (2014), organizado por Peregrine

    Horden e Sharon Kinoshita, entre outros.

    Testemunha-se igualmente o crescimento e complexificao dos debates relativos

    aos processos que tenderam a integrar cultural, econmica e politicamente as sociedades

    assentadas em torno do Mar Mediterrneo no decorrer de sculos de histria. Tais

    pesquisas, ligadas s discusses sobre Mediterranizao, tm ressaltado o espao do

    Mediterrneo como um meio importante de mobilidade e intercmbios diversos na

    Antiguidade. Assim, destacam-se as anlises voltadas ao entendimento da composio de

    conjunturas que possibilitaram o desencadeamento de processos multicntricos de

    integrao, correspondentes a graus diferentes de intensidade e abrangncia, ainda que

    jamais tenham vindo a configurar uma unidade mediterrnica integrada em todos os

    aspectos.

  • 21

    Como decorrncia desta reavaliao, compreendem-se helenizao, romanizao

    e cristianizao no mais como etapas isoladas de um processo mais amplo de formao

    cultural, mas como fenmenos que se interpenetraram e reforaram mutuamente. Do

    mesmo modo, ganham destaque tambm os desdobramentos das convivncias,

    resistncias ou assimilaes diversas das identidades coletivas locais em relao s

    culturas helnicas, latinas ou crists.

    Tendo em vista esse quadro geral, estudiosos da Antiguidade tm realizado o

    exerccio de revisitao de temas e contextos h muito debatidos. Essas pesquisas so

    destinadas em sua maioria elaborao de novas abordagens sobre um corpus

    documental tradicional, recolha de novas fontes e/ou fontes de naturezas distintas sobre

    um mesmo objeto de estudo, ou ainda composio de abordagens transdisciplinares de

    anlise. O caso sobre o qual, em parte, dedicaremos especial ateno no presente trabalho

    o de releitura de um dos movimentos componentes do perodo tradicionalmente

    denominado como Cristianismo Primitivo.

    Destacamos que tm sido colocados sob recentes questionamentos os conceitos

    de Cristianismo Originrio, Perodo do Novo Testamento, Protocristianismo, Early

    Christian Studies e Cristianismo Primitivo. Alm disso, tambm a dependncia da

    caracterizao do contexto exclusivamente a partir das atividades apostlicas, assim

    como a durao da conjuntura3. Ao observar a proposta de pesquisadores como Paulo

    Nogueira em O cristianismo como objeto da histria cultural: delimitaes, conceitos de

    anlise e roteiros de pesquisa (2015), compreendemos o panorama das tendncias

    recentes dos estudos sobre o tema:

    nossa proposta a de rejeio de critrios cannicos, de autoridade

    supostamente apostlica e de cronologia estreita, uma vez que pretendemos

    privilegiar processos de longa durao e a anlise de uma complexa e plural

    rede textual, que permita entender a histria cultural dos estratos

    intermedirios do Cristianismo Primitivo tal como articulados num sistema de

    linguagem nas margens da sociedade mediterrnica (NOGUEIRA, 2015, p.

    45).

    Nessa perspectiva, tudo que caracterize o surgimento dos diferentes Cristianismos

    como processos poltico-religiosos, e que os relacionem diretamente aos seus contextos

    histricos, tem ganhado grande relevncia a partir do estudo de fontes cannicas,

    3 Convencionou-se determinar o ano 100 EC como o fim do perodo denominado Cristianismo Primitivo,

    o que tem gerado debates e questionamentos. Um exemplo por ser observado em O cristianismo como

    objeto da histria cultural: delimitaes, conceitos de anlise e roteiros de pesquisa (2015), artigo no qual

    Paulo Augusto de Souza Nogueira prope a extenso do marco cronolgico em questo para a data limite

    de 313 EC, com o Edito de Milo. Cf. NOGUEIRA, 2015.

  • 22

    apcrifas, pseudogrficas e tambm relacionadas a outras referncias que no a religiosa.

    Principalmente aps a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, a questo da

    escolha do corpus documental vem sendo sistematicamente revisada.

    De modo geral, o contexto do Cristianismo Primitivo contou com a produo de

    inmeras composies textuais, que podem levar o pesquisador do tema a analis-lo a

    partir de perspectivas variadas. Existem as chamadas fontes primrias de estudo, como

    as Epstolas Paulinas, Deuteropaulinas, Pastorais e os Tratados Teolgicos, que

    correspondem a escritos produzidos no contexto a que se remetem. Somadas a estas,

    destacam-se as fontes secundrias, escritas e/ou compiladas nas dcadas posteriores,

    mas que tambm narram os acontecimentos subsequentes morte de Jesus, como o caso

    dos Evangelhos Cannicos e no Cannicos, os Atos dos Apstolos, os escritos dos

    Padres Apostlicos, as Colees Gnsticas e Maniquestas, etc. Conforme destacou Jos

    Luiz Izidoro,

    as mltiplas obras literrias presentes no contexto do cristianismo primitivo

    invocam, de certo modo, uma realidade consideravelmente plural e

    diversificada no que se refere s culturas e suas fronteiras greogrfico-tnicas.

    Sendo assim, torna-se pertinente considerar todos os matizes presentes no

    processo relacional dos povos, naes e territrios (IZIDORO, 2008, p. 54).

    Sob esta argumentao, salientada por Andr Chevitarese e Gabriele Cornelli em

    estudos desenvolvidos sobre o tema, torna-se invivel (e um equvoco) compreendermos

    estes movimentos em termos de unidades generalizantes. Como apontaram os autores em

    Judasmo, Cristianismo e Helenismo. Ensaios acerca das interaes culturais no

    Mediterrneo Antigo (2007), o judasmo, o cristianismo, o politesmo grego nunca

    existiram, enquanto formas culturais autnomas e independentes, fora das simplificaes

    manualsticas ou das identificaes ideolgicas posteriores (CHEVITARESE;

    CORNELLI, 2007, p. 26). Na dinmica dos processos histricos, portanto, ressaltam-se

    o dinamismo e o carter multifacetrio das diversas formaes discursivas, sociais,

    religiosas, culturais e polticas que compuseram os cristianismos, os judasmos e os

    politesmos gregos.

    Abordagens dessa natureza desvinculam-se da viso teleolgica tradicional que

    considerava o Cristianismo Primitivo como um movimento nico, ligado apenas esfera

    religiosa e j constitudo como dogma desde meados do sculo I EC. Da mesma forma,

    buscam na configurao dos diferentes Judasmos ps-Dispora, no cenrio cultural de

    fortes influncias helensticas presente no Leste mediterrnico poca, e na estruturao

    do poder imperial romano elementos importantes para se pensar as principais fronteiras

  • 23

    sociais, culturais e tnicas envolvidas na composio de cada discurso missionrio e/ou

    evanglico, formadores do cnone oficial ou no.

    Nesta dissertao, analisaremos um dos diversos movimentos que caracterizaram

    o perodo conhecido como Cristianismo Primitivo. Trataremos em especfico, da

    formao e propagao inicial do discurso de Paulo de Tarso, um fariseu educado em

    padres helenistas que assumiu para si sob o epteto auto atribudo de Apstolo das

    Naes [ ] (Rm 11,13) a misso de pregar a judeus e a gentios, por

    diversas cidades do Leste mediterrnico, um evangelho4 baseado em preceitos

    cristolgicos. Ao longo das dcadas de 40 e 50 EC, Paulo esteve em cidades na Sria,

    sia Menor, Macednia, Acaia, etc, com o intuito de atuar na fomao e/ou consolidao

    de comunidades socioreligiosas: as . Do perodo que compreendeu o Conclio

    Apostlico, em 48 EC, at o fim da dcada de 50 EC, Paulo dedicou-se formao dessas

    comunidades, assegurando-se da lealdade de seus membros e cuidando da resoluo de

    contendas internas por meio do envio de epstolas e de missionrios colaboradores s

    diversas cidades por onde passava.

    Por muito tempo, os estudos sobre o movimento paulino estiveram subordinados

    a rea da Teologia, ou ainda vinculados exclusivamente imagem fornecida pelos Atos

    dos Apstolos sobre o contexto. Seu enfoque principal residia na construo do ideal de

    que Paulo tivesse veiculado um discurso indito, assim como pudesse ser considerado o

    grande pai fundador do Cristianismo (no singular). o caso, por exemplo, da obra clssica

    So Paulo, escrita por Ernest Renan em 1869. De acordo com essa abordagem que

    chamamos de tradicional , tanto os estudos das narrativas neotestamentrias, como

    aqueles voltados especificamente s Epstolas Paulinas, centraram-se na emergncia do

    Cristianismo como uma religio dogmtica e universal, ainda em seus primrdios. Nesse

    sentido, as influncias externas envolvidas, ou mesmo o contexto imperial do sculo I

    EC, foram mobilizados apenas tangencialmente, para ilustrar um pano de fundo

    conjuntural relativo elaborao das origens crists.

    4 Utilizamos a palavra evangelho de acordo com suas definies epistemolgicas. Proveniente de [euangelion], o termo pode ser empregado no sentido de boa mensagem, ou ainda de boa

    notcia. Representa, ademais, uma forma discursiva que relata as passagens de vida e morte de Jesus de

    Nazar na Palestina. Conforme consta no Lxico Grego-Portugus do Novo Testamento baseado em

    domnios semnticos, Louw-Nida, 1 Ed., o vocbulo apontado como derivao de

    , que significa anunciar a boa notcia. Por sua vez, em Greek-English Lexicon, Liddel & Scott,

    9 Ed., encontram-se tambm as definies de : trazer boas notcias, anunci-las,

    proclamar coisas boas; assim como de : a recompensa de boas notcias dada ao mensageiro,

    fazer um agradecimento pela oferenda de boas novas, coroar algum com boa notcia, etc. Cf. LIDDEL

    & SCOTT, 1996; LOUW & NIDA, 2013.

  • 24

    Em concordncia com os estudos recentes que visam problematizar tal

    abordagem, em nossa pesquisa no atribumos a Paulo de Tarso a responsabilidade nica

    pelo desenvolvimento incipiente das . Demonstraremos, assim, que a

    consolidao da rede inicial de comunicao entre as primeiras comunidades sob

    influncia e/ou em contato com Paulo foi tambm fruto da mobilidade constante dos

    chamados [colaboradores] e, com ela, do trnsito de epstolas contendo

    diretrizes particulares e gerais. Tampouco atribumos atividade do apstolo uma

    racionalidade intencional de construo de uma religio dogmtica e indita em conceitos

    teolgicos e prticas ritualsticas. Conforme afirmou Richard Horsley em Paul and

    Empire Religion and Power in Roman Imperial Society (1997),

    simplesmente um anacronismo julgar que Paulo estivesse fundando uma

    religio chamada Cristianismo, que surgira como uma dissidncia de uma

    religio chamada Judasmo. A misso e as comunidades de Paulo no teriam

    parecido to distintivamente religiosas a seus contemporneos no Imprio

    Romano (HORSLEY, 2004, p. 15).

    Como tambm destacou Martin Hengel, em suas dcadas iniciais os cristianismos

    contaram com diversas influncias, como o Gnosticismo, os mistrios gregos e orientais,

    a magia, a astrologia, o politesmo pago, as histrias de homens divinos (theioi andres)

    e seus milagres, a filosofia popular helnica e muito mais (HENGEL, 1999, 02). De

    modo geral, a construo do que veio a ser entendido como Cristianismo (no singular)

    posterior. Em meados do sculo I EC, para alm das epstolas paulinas escritas a partir de

    ou endereadas com o propsito de tratar de temas especficos relacionados s ,

    o que se pode atestar a existncia de abordagens mltiplas dos kerygmas, ditos e

    percopes relativos vida e morte de Jesus na Palestina. Essas pequenas narrativas, em

    formato oral ou escrito, eram frutos de lentes interpretativas distintas, assim como foram

    veiculadas por diferentes agentes provenientes de e atuantes em diferentes regies do

    Mediterrneo.

    Dessa forma, abordar qualquer uma das variantes apostlicas ou evanglicas de

    maneira deslocada de seu contexto mais abrangente no constitui alternativa profcua,

    uma vez que o contexto sociopoltico em questo tem muito a dizer. Sobretudo aps a

    dominao blica e poltica de Roma sobre o Mare Nostrum a partir do sculo I AEC5, o

    fortalecimento do poder imperial forneceu a infraestrutura de deslocamento martimo e

    terrestre, assim como a pacificao e vigilncia de rotas, que permitiram o incio do

    5 Cf. ABULAFIA, 2014, p. 233.

  • 25

    perodo considerado como auge da integrao mediterrnica na Antiguidade ainda que,

    conforme ressaltou Norberto Guarinello, a configurao do Imprio Romano apenas

    [tenha sido] possvel sob a base dos sculos de integrao e consolidao de estruturas

    que o antecederam (GUARINELLO, 2013, p. 139).

    Sob o poder romano, o Mediterrneo foi palco da convivncia de diversos

    pertencimentos identitrios, assim como de diferentes culturas e organizaes sociais

    integradas e no integradas ordem imperial em nveis distintos. Tal multiplicidade de

    interaes indicava no s a possibilidade de comunicao e interconexo (em diversos

    graus de intensidade) entre os habitantes de regies distintas, mas tambm a existncia

    concomitante de cdigos simblicos mais abrangentes, compartilhados via padres

    educacionais, sistemas de trocas comerciais, prticas multilngues, etc sobretudo nos

    ambientes urbanos do Imprio (WALLACE-HADRILL, 2008)6.

    Uma vez definida a extenso mxima dos limites territoriais romanos, coube a

    processos diversos de articulao das fronteiras internas e externas das comunidades as

    redefinies constantes dos nveis de integrao e no integrao que caracterizaram as

    sociedades mediterrnicas a partir do sculo I AEC. Assim, partimos deste panorama para

    demonstrarmos como Paulo, em decorrncia das demandas locais de orientao, tanto

    como em resposta a concorrncias missionrias externas, construiu gradativamente um

    discurso que, conforme consideramos, props uma outra forma de integrao social com

    bases religiosas, sobretudo a partir da articulao com fronteiras de sistemas simblicos,

    culturais, religiosos, tnicos e sociais por ele j conhecidos.

    Utilizaremos como fontes principais de nossa pesquisa principalmente as

    Epstolas Paulinas classificadas pela crtica documental como autnticas7, seguindo as

    divises internas propostas por alguns estudos exegticos8, especialmente o apresentado

    por Helmut Koester em Introduction to the New Testament. History, Literature and Social

    Context (2005b). So elas, em ordem cronolgica: 1Tessalonicenses (50 EC); Glatas

    6 Entendemos que nenhum dos processos de integrao, seja cultural, econmico, poltico, lingustico, etc,

    representou de fato uma integrao completa ou definitiva. Partimos do pressuposto de que o indivduo

    totalmente integrado a um sistema cultural e/ou de valores mediterrnicos, assim como aquele

    completamente alheio ao mesmo, representam tipificaes ideais. 7 Os debates sobre a autenticidade do corpus paulino suscitam, ainda em dias atuais, extensas discusses. Dessa maneira, optamos pela escolha das epstolas de referncia que costumam apresentar menos

    controvrsias em relao s interpolaes e adaptaes sofridas ao longo dos processos de traduo,

    reescrita e recepo das mesmas. So elas, conforme a diviso neotestamentria cannica:

    1Tessalonicenses, Glatas, 1Corntios, 2Corntios, Filipenses, Filmon e Romanos. Cf. RENAN, 1927;

    MEEKS, 1992; DULING, 2003; MURPHY-OCONNOR, 2004; KOESTER, 2005b. 8 Optamos por seguir as divises epistolares internas e as dataes propostas por Helmut Koester em

    Introduction to the New Testament. History and Literature of the Early Christianity (1995). No entanto,

    diversas variaes de datas, locais de escrita e compilaes epistolares endereadas a uma mesma

    localidade so aventadas por diferentes estudiosos da exegese paulina. Cf. Anexo 1.

  • 26

    (52 EC); 1Corntios (53/54 EC); 2Corntios A (54 EC)9; 2 Corntios B (54 EC)10;

    Filipenses A (54 EC)11; Filipenses B (54/55 EC)12; Filipenses C (54/55 EC)13; Filmon

    (54/55 EC); 2Corntios C (55 EC)14; 2Corntios D (55 EC)15; 2Corntios E (55 EC)16;

    Romanos (55/56 EC)17; e Romanos 16 (55/56 EC)18. Em determinadas ocasies, para fins

    expositivos, mobilizaremos tambm algumas passagens do livro dos Atos dos Apstolos,

    composto por volta da dcada de 90 do sculo I EC, apesar de no o abordarmos na

    ntegra.

    A fim de analisar essas fontes, apresentaremos nossa argumentao em trs

    captulos. No primeiro, partiremos dos principais debates envolvidos na utilizao do Mar

    Mediterrneo como parmetro analtico nos estudos sobre o Mundo Antigo. Discutiremos

    diferentes pontos de vista sobre a unidade mediterrnica e o(s) processo(s) de

    integrao(es) que caracterizaram as interaes polticas, econmicas, sociais,

    religiosas, etc, ocorridas em seus territrios ao longo de sculos. Posteriormente,

    abordaremos o deslocamento de Paulo de Tarso pelo Leste mediterrnico em meados do

    sculo I EC como parte do processo de fundao e/ou consolidao das em

    diferentes cidades. Ressaltaremos a atuao coordenada da mobilidade paulina e de seus

    colaboradores, assim como do hbito de envio de epstolas, para demonstrarmos

    cronologicamente a formao gradual do que chamaremos de uma rede de contatos e

    interconexo entre essas .

    O segundo captulo tem por finalidade discutir as delimitaes relacionais das

    fronteiras identitrias dos convertidos ao evangelho paulino, sobretudo no que concerne

    as relaes de etnicidade judaica. Para isso, partiremos de uma breve apresentao

    contextual de alguns processos de helenizao que influenciaram social e culturalmente

    o Leste mediterrnico a partir do sculo IV AEC, e indicaremos alguns desdobramentos

    significativos da interao entre as culturas helnicas e judaicas. Em seguida,

    analisaremos a composio do evangelho de Paulo em relao s tradies tnicas dos

    9 Correspondente a 2Cor 2,4-6,13; 7,2-4 na diviso neotestamentria cannica. 10 Correspondente a 2Cor 10-13 na diviso neotestamentria cannica. 11 Correspondente a Fl 4,10-20 na diviso neotestamentria cannica. 12 Correspondente a Fl 1,1-3,1 na diviso neotestamentria cannica. 13 Correspondente a Fl 3,2-4,3 na diviso neotestamentria cannica. 14 Correspondente a 2Cor 1,1-2,3; 7,5-16 na diviso neotestamentria cannica. 15 Correspondente a 2Cor 8 na diviso neotestamentria cannica. 16 Correspondente a 2Cor 9 na diviso neotestamentria cannica. 17 Correspondente a Rm 1-15 na diviso neotestamentria cannica. 18 Conforme defendeu Helmut Koester, Rm 16 na verdade uma correspondncia que foi enviada a feso

    com uma cpia da carta aos Romanos (Rm 1-15). Para o autor, isso explica no s porque essa breve

    carta aos efsios acabou includa na coletnea posterior das cartas paulinas como parte da carta aos

    romanos, mas tambm a familiaridade de Paulo com os membros da a que se dirigiu pelos anos

    que passara em feso (KOESTER, 2005b, p. 152-153).

  • 27

    Judasmos, demonstrando as principais continuidades e rupturas presentes no mesmo. Por

    fim, demonstraremos a proposio paulina de flexibilizao de algumas fronteiras tnicas

    segregadoras em prol da adoo de um critrio nico e irrestrito de identificao mtua:

    a [f]19.

    No terceiro e ltimo captulo, partiremos das discusses sobre a importncia das

    cidades na composio da ordem imperial romana e os principais sistemas

    organizacionais que as compunham, para analisarmos as fronteiras sociais mobilizadas

    na formao das paulinas nos ambientes urbanos. Com essa finalidade,

    apontaremos as principais redes de integrao pr-existentes utilizadas por Paulo na

    consolidao das , como as estradas mediterrnicas, os sistemas difusos

    sinagogais, a referncia domstica de organizao social e, por fim, os sistemas patronais

    difundidos por relaes verticais de poder. Em contrapartida hiptese apresentada por

    Richard Horsley de que Paulo fundara uma sociedade alternativa imperial a partir da

    proposio de uma lgica igualitria de reconhecimento coletivo, demonstraremos a

    permanncia de hierarquias sociais na organizao comunitria das .

    Pretendemos, desse modo, analisar a composio do evangelho paulino, bem

    como a formao das sob sua influncia, luz das discusses sobre

    Mediterranizao e negociao relacional de fronteiras identitrias, tnicas e sociais.

    Visamos, com isso, compreender como, ao longo de quase uma dcada de composio, o

    discurso paulino engendrou uma dinmica de integrao, seja no deslocamento fsico do

    missionrio, no envio de epstolas e emissrios s , na proposio de novas

    fronteiras sociais ou no incentivo constante consolidao de coeses intra e

    intercomunitrias a partir da viabilizao do reconhecimento mtuo de traos identitrios,

    sociais e religiosos comuns.

    19 O termo designa aquilo que totalmente crvel, o estado de ser uma pessoa na qual se pode depositar total confiana, crer a ponto de ter confiana e segurana total, ou ainda, o ato de acreditar

    em Jesus Cristo e tornar-se um seguidor. Dessa maneira, pode ser traduzido como confiana,

    confiabilidade, garantia ou, mais tradicionalmente, como f. Cf. LIDDEL & SCOTT, 1996; LOUW

    & NIDA, 2013. A fim de resguardar a polissemia do termo e evitar equvocos de traduo, optamos por

    cit-lo em grego ao longo do texto.

  • CAPTULO I

    DE JERUSALM ESPANHA:

    A Formao da Rede Paulina de Interconexo

    entre as E no Mediterrneo

  • 29

    [...] desde Jerusalm e arredores at a

    Ilria, eu levei a termo o anncio do

    Evangelho de Cristo, fazendo questo de

    anunciar o evangelho onde o nome de

    Cristo ainda no era conhecido [...].20

    Rm 15,19-20

    Ao fim da Epstola aos Romanos, aps duas dcadas de vida missionria

    apostlica itinerante por diversos territrios do Leste mediterrnico, Paulo de Tarso

    declarava aos seus leitores no possuir mais campo de trabalho naquelas regies (Rm

    15,23). Pregando a aceitao de um deus que no faz acepo de pessoas (Rm 2,11) e

    sentindo-se devedor a gregos e a brbaros, a sbios e a ignorantes (Rm 1,14) o apstolo

    empreendeu ao longo de sua vida missionria o esforo de anunciar o evangelho onde o

    nome de Cristo ainda no era conhecido (Rm 15,20). Foi, dessa maneira, um dos

    principais agentes apesar de no ter sido o nico responsveis pela difuso inicial de

    referncias cristolgicas para alm das regies da Sria e da Palestina, difundindo-as por

    cidades na sia Menor, Macednia, Galcia e Acaia.

    Aps afirmar ter percorrido em vida a extenso territorial que abrangeu dos

    arredores de Jerusalm s regies da Ilria21 (Rm 15,18), expressou o desejo de, em um

    futuro prximo, estender sua rea de atuao a Roma e, posteriormente, Espanha (Rm

    15,23-24). Paulo almejava, assim, exercer seu apostolado por todo o mundo conhecido,

    ou ao menos reconhecido por ele como passvel de ser percorrido.

    Dessa forma, duas interpretaes do corpus epistolar paulino nos parecem

    complementares: a que visa o conjunto de informaes que nos fornecem as rotas

    percorridas pelo apstolo, e aquela preocupada em analisar seus planos de viagem futuros.

    Conforme mostraremos, a primeira permite-nos reconhecer o deslocamento paulino por

    territrios do Leste mediterrnico, como a sia Menor, a Frgia, a Galcia e, sobretudo,

    as regies que circundavam o Egeu. A segunda, no entanto, nos demonstra as intenes

    paulinas em percorrer toda a extenso Leste-Oeste do mar Mediterrneo, de Jerusalm

    Espanha tendo o missionrio cumprido em vida ao menos quase metade do trajeto

    almejado.

    De forma geral, as discusses apresentadas neste captulo iro se centrar na busca

    pela compreenso da atuao de Paulo de Tarso luz da abrangncia de seu deslocamento

    e do exerccio de seu apostolado em meados do sculo I EC. Valendo-nos das recentes

    20 [...]

    , 20 [...] (Rm 15,19-20). 21 importante ressaltar, contudo, que as Epstolas Paulinas definidas como autnticas no contm

    registros sobre a misso de Paulo na Ilria, mas apenas na Macednia.

  • 30

    discusses sobre a utilizao do Mar Mediterrneo como um referencial analtico,

    realizaremos o exerccio de relacionar a formao progressiva de uma rede paulina de

    contatos e colaborao s referncias espaciais em questo, entendendo que a

    possibilidade de existncia daquela malha de mobilidade e interlocuo refletiu em si

    desdobramentos importantes dos processos antecedentes de integraes mediterrnicas.

    1.1 O Mediterrneo como referencial analtico: debates em pauta.

    O movimento de repensar o fazer historiogrfico proposto pela escola dos Annales

    no incio do sculo XX apresentou (e apresenta at os dias atuais) desdobramentos

    significativos no campo da pesquisa histrica. A abertura de novas perspectivas

    analticas, como a sociolgica, a antropolgica, a psicolgica, etc, como abordagens

    complementares compreenso das organizaes sociais humanas, ou ainda, o

    entendimento dos diferentes espectros de temporalidade componentes de uma

    determinada conjuntura, trouxeram ao campo da Histria a superao da histoire

    vnementielle em prol da construo de anlises mais complexas e que objetivavam

    interpretar o desenvolvimento das civilizaes e suas mentalidades ao longo do tempo.

    Dessa forma, a prtica historiogrfica desvinculava-se da necessidade em estar

    atrelada somente ao registro dos acontecimentos realizado a partir da concepo de tempo

    breve. Ao contrrio, construa-se a possibilidade de repens-los em relao a contextos

    histricos mais abrangentes e a duraes temporais mais alargadas. Sobretudo aps a

    publicao de La Mediterrane et le Monde Mditerranen lEpoque de Philippe II em

    1949, Fernand Braudel apresentou aos historiadores a noo de longue dure como

    prisma analtico possvel, e a viabilidade da utilizao do espao mediterrnico como uma

    referncia espao-temporal s investigaes histricas.

    Como alternativa ao modelo historiogrfico anterior voltado ao entendimento de

    estruturas polticas e limites geogrficos mais rgidos e delimitadores dcadas depois

    assistimos ao efervescente debate sobre as benesses, dificuldades e adversidades em se

    utilizar o Mar Mediterrneo como parmetro de espao, de unidade abstrata ou de

    ambiente propiciador de integraes socioculturais para se analisar o desenvolvimento

    das sociedades antigas em seu entorno.

    A perceptiva mudana de enfoque em conformidade com os processos de

    interconexo cultural na Antiguidade onde antes se ressaltava enraizamento

    [rootdeness], barreiras e tradio (MORRIS, 2003, p. 32), ganhou vulto principalmente

  • 31

    a partir do lanamento de trs obras de referncia: Black Athena: The Afroasiatic Roots

    of Classical Civilization (1987), de Martin Bernal; Daidalos and the bases of Greek Art

    (1992), de Sarah Morris, e The Corrupting Sea: a Study of the Mediterranean History

    (2000), de Peregrine Horden e Nicholas Purcell.

    Tais estudos foram os responsveis por proporem modelos analticos que atriburam

    tambm ao Mundo Antigo a existncia de intercmbios mltiplos possibilitados pela

    mobilidade de ideias, bens e pessoas. Concomitantemente, apresentaram pontos

    importantes de ruptura com a tradio acadmica ao problematizarem limites territoriais,

    culturais, sociais, lingusticos, ecolgicos e geogrficos cristalizados por pesquisas

    precedentes, sugerindo novas possibilidades de abordagens e referenciais aos estudos.

    Em The Corrupting Sea: a Study of Mediterranean History (2000), o Mediterrneo

    foi apresentado a partir do imperativo da conectividade [connectivity] que, conforme

    defendido, o constituiu como um contnuo de descontinuidades (HORDEN;

    PURCELL, 2000, p. 53), ou seja, uma conjuno de diversas microrregies

    representantes da diversidade ecolgica e climtica que compe seus biomas. Segundo

    Peregrine Horden e Nicholas Purcell, devido a fatores ecolgicos e geogrficos, cada

    microrregio estaria propensa a determinados cultivos, assim como sujeita a riscos e

    incertezas concernentes ao ecossistema, ou a variaes no ecossistema, que a caracteriza.

    O primeiro aspecto comum a estas microrregies, fragmentadas entre si, seria a

    insuficincia autrquica e, em consequncia, a necessidade de abastecimento alimentcio

    por produtos externos. Assim, a tendncia conexo seria algo intrnseco s

    microrregies mediterrnicas, uma vez que a mobilidade e fluidez de bens e pessoas

    representaria um movimento de retroalimentao deste mosaico, a priori, ecologicamente

    determinado e que possua no espao do mar o principal meio de conectividade entre os

    assentamentos [settlements] sociais mediterrnicos.

    Na busca por consolidar um modelo analtico voltado fluidez, os autores

    estabeleceram a tendncia conectividade como uma caracterstica inerente ao homem

    mediterrnico. Ainda que tenham demonstrado momentos de pujana e esvaziamento de

    concentraes populacionais em determinadas regies, resultantes da mobilidade

    constante de pessoas em diferentes escalas, descreveram um ambiente conectado que, na

    longa durao, parece natural, benfico e invarivel.

    Horden e Purcell afirmaram que o disperso, o mutvel e o interno tm sido a

    norma do Mediterrneo (HORDEN; PURCELL, 2000, p. 112). Entretanto, ao imputarem

    conectividade o carter de padro aplicvel a um recorte temporal de longussima

  • 32

    durao, construram um modelo terico que, por fim, esttico ou, como denunciou

    Willian Harris em The Mediterranean and Ancient History (2005), ahistrico.

    Esta j era uma questo importante para a qual Fernand Braudel chamava ateno

    em meados do sculo XX:

    no ser tarefa fcil descobrir exatamente o que o carter histrico do

    Mediterrneo tem sido. [...] o que o Mediterrneo para o historiador? No h

    nenhuma falta de declaraes autorizadas sobre o que ele no . No um

    mundo autnomo; nem a preservao do poder de ningum. Pobre do

    historiador que pensa que seu interrogatrio preliminar no necessrio, que

    o Mediterrneo, como uma entidade, no precisa de definio porque foi h

    muito claramente definido, instantaneamente reconhecvel e pode ser

    descrito pela diviso da histria geral ao longo da linha de seus contornos geogrficos (BRAUDEL, 1973, v.1, p. 29).

    Conforme afirmou Michael Herzfeld em Practical Mediterraneanism: excuses for

    everything, from epistemology to eating (2005), se a negao da existncia do referencial

    mediterrnico to estpida quanto trat-lo como fato bvio que no precisa de mais

    explicao, para o autor, essa mesma fatualidade sempre um ato constitutivo

    (HERZFELD, 2005, p. 47-50). Dessa forma, qualquer tentativa de tomar a unidade

    mediterrnica como um dado preliminar, ou de naturalizar processos de conectividade e

    integrao como se fossem desdobramentos de uma condio inerente aos habitantes do

    Mediterrneo, representa a supresso de uma metodologia histrica de anlise.

    Como forma de esquivar-se de tal tendncia, William Harris, a partir do

    reconhecimento da existncia constante de algum grau de conectividade mediterrnica,

    sugeriu que a questo importante deve ser at onde o potencial [integrador] foi

    concretizado de uma poca para outra. Dessa forma, segundo Harris, um pesquisador

    conseguiria atingir a essncia de uma explicao histrica das conexes mediterrnicas

    (HARRIS, 2005, p. 24).

    Compreendemos, dessa forma, a contribuio da obra The Great Sea: a human

    history of the Mediterranean (2011), de David Abulafia. Nela, o autor parte da crtica

    endereada a Horden e Purcell de utilizao da noo braudeliana de longue dure para

    abordar, em primeiro lugar, uma histria vertical do Mediterrneo, enfatizando a

    mudana ao longo do tempo (ABULAFIA, 2014, p. 26) e, em segundo, uma narrativa

    que, apesar de no desconsiderar a influncia de fatores ecolgicos na composio

    poltica, econmica, social e religiosa mediterrnicas, pretendeu enfocar, sobretudo, as

    aes humanas e, logo, polticas, que determinaram o espao do Mediterrneo ao longo

    dos sculos.

  • 33

    Pela perspectiva de Abulafia, a conectividade mediterrnica no aparece como um

    pressuposto, mas como um desdobramento do esforo das sociedades mediterrnicas em

    interagirem umas com as outras por razes alimentares, econmicas e, por fim, polticas,

    utilizando o mar como espao de deslocamento e via de interao. Tampouco foi

    apresentada dentro de um pensamento linear, mas demarcada por perodos de tendncia

    integrao e desintegrao. Relacionados diretamente configurao de conjunturas

    de guerras, alianas polticas, trocas culturais, instabilidades e pujanas econmicas de

    determinadas regies, esses perodos revelaram alternncias importantes de

    intensificao e enfraquecimento de processos de integrao entre 22000 AEC a 2010

    EC22.

    Em The Corrupting Sea, a determinao de uma caracterstica mediterrnica

    constante a conectividade baseada na diversidade e fragmentao internas que serviram

    de fora motriz fluidez no permitiu que os autores demarcassem pontos de ruptura

    significativos nessa grande permanncia, e que pudessem representar momentos de

    transformaes estruturais. De acordo com esse modelo analtico, no parecem ter

    relevncia as diferentes formaes sociais, econmicas, polticas e religiosas estruturadas

    sob moldes distintos ao redor do Mediterrneo. Todas teriam obedecido ao mesmo

    imperativo e, na perspectiva da longa durao, no representaram mudanas significativas

    da ordem geral. Para os autores, historiadores e arquelogos do meio ambiente so

    propensos a periodizar demais, procurando por fases de importncia essencial, geralmente

    catastrficas, com as quais dividem o passado (HORDEN; PURCELL, 2000, p. 326)

    o que consideram um erro. Assim, sugerem que

    devemos estar preparados para enxergar os eventos que estudamos em uma escala suave que se estende at o passado distante. Podero haver eventos

    proeminentes nesta escala, mas ns devemos ser relutantes em enfatiz-los

    demasiadamente (HORDEN; PURCELL, 2000, p. 326).

    Sugesto essa com a qual no concordamos. Em nossa viso, concordar seria

    aceitar uma nova forma de afastamento em relao perspectiva histrica de anlise.

    Segundo Ian Morris, em Mediterranization (2003), a concepo baseada na fluidez e

    permanncia exposta como um fato, e no como um processo, gera um modelo terico

    mais esttico do que o do paradigma que parece empenhado em suplantar. Sem a

    22 Em The Great Sea: a human history of the Mediterranean (2011), David Abulafia apresentou a ampla

    histria de integrao e desintegrao do Mediterrneo em cinco momentos: Primeiro Mediterrneo

    (22000 AEC 1000 AEC), Segundo Mediterrneo (1000 AEC 600 EC), Terceiro Mediterrneo (600 EC

    1350 EC), Quarto Mediterrneo (1350 EC 1830 EC) e, por fim, Quinto Mediterrneo (1830 EC 2010

    EC).

  • 34

    admisso de mudanas, revolues e demais variaes no curso da histria humana,

    aqueles que se dedicam consolidao deste prisma analtico limitam-se a compreender

    a integrao mediterrnica como uma constante, um Mediterranismo.

    Em contrapartida, o autor prope que nos dediquemos a pensar a histria no

    Mediterrneo como um longo processo, que sofreu inflexes significativas e conheceu

    permanncias importantes de acordo com o delineamento das organizaes humanas e as

    relaes estabelecidas entre si e com o ambiente em diferentes contextos. Para Morris, ao

    invs de uma condio de Mediterranismo [Mediterranism], a unificao mediterrnica

    deve ser compreendida como um processo de Mediterranizao [Mediterranization].

    Contudo, dois tpicos de intensa discusso continuam em pauta.

    O primeiro refere-se concepo de que o processo integrador conferiu aos

    territrios mediterrnicos uma condio de unidade. Para isso, faz-se necessria uma

    exposio resumida do que os pesquisadores tm entendido como Mediterrneo e seus

    limites.

    A fim de sustentar o modelo terico de fluidez, Horden e Purcell no se

    propuseram a traar qualquer definio de suas fronteiras geogrficas ou a extenso da

    influncia da conectividade martima em seus territrios interioranos fato que gerou

    muitas crticas concepo dos autores. Segundo Nicholas Purcell, em The Boundless

    Sea of Unlikeness? On Definnig the Mediterranean (2003),

    [...] tentativas de estabelecer caractersticas precisas para definir o que o

    Mediterrneo tem consequncias indesejadas. A fluidez no esquema proposto

    nos impede de olhar em direes mais abstratas para a definio, para desenhar

    o Mediterrneo como uma ideia essencialmente debatvel (PURCELL, 2003, p. 10-11).

    Outra justificativa apresentada por Purcell foi a de que as definies delimitadoras

    do Mediterrneo tenderam a servir como justificativas histricas para dominaes

    poltico-culturais modernas, o que representaria o propsito contrrio ao da obra The

    Corrupting Sea (PURCELL, 2003, p. 14). Todavia, Ian Morris chamou ateno para o

    fato de que ns no podemos responder a questes sobre unidade do Mediterrneo a

    menos que ns saibamos o que queremos dizer com unidade e Mediterrneo

    (MORRIS, 2003, p. 36), sendo qualquer tentativa de caracterizar ambos os termos sem

    defini-los um ato de enfraquecimento do paradigma proposto, e no o contrrio.

    Dessa forma, alguns autores se propuseram a demarcar os contornos dos territrios

    mediterrnicos a partir de seus limites naturais. Para William Harris,

  • 35

    em um sentido escasso, existiu obviamente sempre um nvel de unidade. ,

    afinal de contas, uma zona climtica com um limite climtico parcial ao leste

    no formato do deserto Srio-rabe, assim como limites ao sul e norte (o que

    no significa dizer que esses limites sejam fceis de serem definidos, ou que

    as diferenas internas, na precipitao por exemplo, sejam negligenciveis).

    Essa uma rea de temperaturas relativamente moderadas, exceto em altas altitudes, uma rea em que, apesar de a aridez ser um problema extremamente

    comum, normalmente existe gua suficiente para sustentar a agricultura e as

    cidades. Em um clima similar, e com fauna e flora similares, isso significa que

    a sobrevivncia inevitavelmente demonstra similaridades e continuidades. E

    desde que o homem aprendeu a percorrer distncias significativas em barcos,

    na Idade do Bronze, uma rede de conexes martimas que cobriam quase todas

    as regies martimas entre a Fencia e Cdiz passaram a existir virtualmente

    (HARRIS, 2005, p. 21).

    Para alguns autores, como David Abulafia, o Mediterrneo deve ser definido a

    partir de sua extenso martima e pela potencialidade que apresenta em servir como meio

    de conexo para suas regies costeiras, ou seja, em ser um Middle Sea23. Assim, suas

    fronteiras foram fixadas no estreito de Gibraltar, no Dardanelos e no litoral que vai de

    Alexandria a Gaza e Jaffa (ABULAFIA, 2014, p. 23-24). J para Norberto Guarinello,

    em Histria Antiga (2013), o enfoque est direcionado s terras banhadas pelo mar. Para

    o autor,

    os estudos sobre o Mediterrneo no tm por objetivo, propriamente, o mar,

    mas as terras influenciadas por ele. nas terras, no no mar, que vivem os mais

    diferentes povos. O mar os separa e os distancia, o que aprofunda a

    originalidade de cada comunidade ou populao, mas tambm os aproxima,

    pois as comunicaes por mar so mais rpidas que as por terra (GUARINELLO, 2013, p. 50-51).

    Ressaltamos que no nos proporemos a traar uma definio prpria de

    Mediterrneo. No entanto, a julgar pelas principais regies paulinas de atuao, iremos

    consider-lo sobretudo a partir de seus territrios circundantes, pois eram neles que

    23 Para David Abulafia, a unidade mediterrnica conferida pelo espao martimo no apenas um pressuposto, mas aparece tambm como fator essencial na composio do conceito de Mediterrneo

    como uma referncia geogrfica aplicvel a outros localidades e perodos. Em Mediterraneans (2010), o

    autor prope a utilizao do conceito sob a perspectiva de Middle Sea em anlises comparativas de longa escala. Em suas palavras, a inteno trazer a nfase de volta ao papel dos espaos relativamente vazios

    entre terras que rodeiam o mar, e olhar para as formas nas quais guas criam ligaes entre diversas

    economias, culturas e religies. Contudo, a inteno ir mais a fundo, traando uma srie de comparaes

    com outros Middle Seas em outras partes do mundo, to distantes quanto o mar do Japo ou o mar do

    Caribe. Este no um exerccio vago em histria comparada. O argumento perseguido aqui que os

    Mediterrneos tm desenvolvido um importante papel nas transformaes das sociedades por todo o mundo

    ao permitir o contato com outras culturas diversas, que tem, elas mesmas, emergido em diversos ambientes.

    O argumento tambm que esses Mediterrneos no so necessariamente mares no sentido em que ns

    normalmente entendemos o termo. Espao [de integrao] tambm deve ser enxergado nas distncias

    desrticas que funcionam como mares e que so atravessados por caravanas [...], trazendo no apenas bens,

    mas ideias por reas inspitas e vazias de deserto (ABULAFIA, 2010, p. 65). Dessa forma, seguindo a

    proposta apresentada, o campo semntico do termo Mediterrneo deve ser ampliado, passando a definir

    quaisquer espaos de trocas e conexo entre fronteiras geogrficas distantes.

  • 36

    estavam assentadas as cidades, cenrios da atuao apostlica de Paulo. No

    desconsideramos, entretanto, a importncia do mar, principalmente em relao

    facilitao e agilidade de deslocamento. No resta dvidas de que o transporte martimo

    foi tambm utilizado por Paulo em suas viagens, ainda que a falta de especificao das

    rotas martimas escolhidas permita ao pesquisador traar apenas conjecturas lgicas.

    Ademais, no pretendemos compreender o Mediterrneo como uma unidade indivisvel.

    Conforme alertou Alain Bresson em Ecology and Beyond: the Mediterranean Paradigm

    (2005),

    a configurao fragmentada do Mar Mediterrneo tambm merece especial

    ateno. Que o Mediterrneo altamente compartimentado, isso amplamente

    conhecido: a existncia de duas bacias mediterrnicas, leste e oeste, nos

    estreitos sicilianos, comumente observado na Antiguidade, por exemplo, por

    Polbio e Estrabo. Mas vrias subzonas tambm tm sua prpria identidade,

    como o Mar Tirreno, entre a Itlia, a Siclia, a Sardenha e Crsega, o Mar

    Adritico, o Mar Egeu e, claro, o Mar Negro, para mencionar apenas os

    principais (BRESSON, 2005, p. 95).

    Bresson apresentou quatro nveis diferentes de integrao mediterrnica: o

    primeiro, representado pelas microrregies; o segundo, que abrangeu subreas; o terceiro,

    que correspondia s bacias Oriental e Ocidental; e, por fim, o quarto, que representaria

    uma conectividade interna geral. Segundo o autor, a progresso desses nveis

    acompanhou a solidificao gradual da integrao mediterrnica desde o terceiro milnio

    AEC at o Imprio Romano. No entanto, conforme esclareceu, imaginar um Mediterrneo

    completamente conectado em todas as suas localidades seria um anacronismo

    (BRESSON, 2005, p. 100). Nesse sentido, o Mediterrneo pode ser concebido, em certa

    medida, como uma unidade abstrata, sobretudo a partir do sculo I AEC. Entretanto, essa

    viso s possui alguma veracidade se a considerarmos a partir dos diferentes graus de

    integrao do espao interno do mar, que o compunham diretamente e apresentavam

    oscilaes concernentes aos contextos polticos, econmicos e culturais das sociedades

    que o utilizavam como alternativa de mobilidade.

    Conforme mostraremos adiante, os deslocamentos fsicos paulinos estiveram

    vinculados a diferentes referenciais regionais. Referenciais esses que foram sendo

    gradualmente expandidos a medida que se ampliava a necessidade paulina em percorrer

    diferentes territrios para difundir sua mensagem. Utilizando as denominaes de

    Bresson, em resumo, Paulo atuou na subrea da Arbia, depois na da Sria,

    aventurando-se posteriormente pelas regies da Galcia e sia Menor at concentrar

    sua atuao nos territrios da subzona banhada pelo Mar Egeu, para, por fim, expressar

  • 37

    seu projeto de atuao para alm da bacia mediterrnica Oriental, chegando a Roma e

    Espanha.

    O segundo tpico a ser discutido diz respeito concepo de processo, no

    singular. Em nosso entendimento, o que comumente chamado de processo progressivo

    de integrao mediterrnica transcorrido desde tempos remotos formao do Imprio

    Romano constituiu, na verdade, um conjunto de processos de contatos e interaes das

    mais variadas ordens: poltica, cultural, econmica, lingustica, religiosa, etc. Como

    consequncia das interlocues estabelecidas e sua constncia, por vezes tais processos

    tenderam a integrar diferentes sociedades mediterrnicas. No decorrer de sculos,

    representaram movimentos multicntricos, multirrelacionais e multicausais, dependentes,

    sobretudo, das estruturaes sociais e atividades humanas em suas inter-relaes e nas

    relaes estabelecidas com o meio.

    Por esse ngulo, consideramos que os diferentes processos de interao geraram

    movimentos de integrao e no integrao com abrangncias distintas, representando

    maiores ou menores efeitos unificadores. Entretanto, nenhum deles resultou na integrao

    completa de todos os habitantes do Mediterrneo a um sistema poltico, padro social,

    cdigo simblico e lingustico comuns, ou ainda na homogeneizao cultural e religiosa

    de seus territrios. Mesmo sob a dominao romana, perodo considerado pice das

    integraes mediterrnicas territoriais, polticas, culturais e econmicas na Antiguidade,

    as ordens locais subsistiram e estruturaram em grande medida a vida das diferentes

    sociedades ao redor do mar.

    Assim, parece-nos interessante o modelo analtico proposto por Norberto

    Guarinello em Ordem, Integrao e Fronteiras no Imprio Romano. Um ensaio (2010) e

    em Histria Antiga (2013), que visa a ideia central de que o processo [de integrao

    mediterrnica] deve ser visto atravs da crescente articulao de fronteiras internas de

    cada comunidade local com aquelas externas (GUARINELLO, 2013, p. 54), o que

    modificava de tempos em tempos a ordem dessas comunidades. Para o autor, esta Ordem

    pertence a um espao determinado e compe todas as dimenses da realidade que no

    so efmeras, o que inclui as estruturas materiais, as instituies, as crenas, as relaes

    estabelecidas, a tecnologia, o conhecimento, as prticas cotidianas. Em resumo, a Ordem

    representada pelas fronteiras cotidianas da ao social (GUARINELLO, 2010, p. 119-

    120). Por sua vez, as Fronteiras intercomunitrias

    so fronteiras de trocas, de movimentos de bens, de informaes, de quadros

    culturais e de homens. Interesses comuns so facilitadores de trocas, so pontos

    de passagem, como podem ser tambm uma lngua comum, hbitos

  • 38

    semelhantes, memrias compartilhadas que se reforam com o tempo.

    Interesses divergentes tornam as fronteiras zonas de guerra, de violncia, de

    dominao, de destruio (GUARIANELLO, 2010, p. 121-122).

    Uma comunidade, portanto, se define a partir das configuraes relacionais de

    suas fronteiras internas e externas, que as diferencia das demais, assim como tambm, a

    partir de suas articulaes, as colocam em contato e em condio de integrao com as

    demais, uma vez que a fronteira , antes de tudo, um espao de negociao de fronteiras

    (GUARINELLO, 2010, p. 122). Nesse sentido, a configurao da Ordem de uma

    comunidade no inerte, mas remodela-se a partir das aes do homem no tempo. De

    forma geral, para o autor,

    a ordem a comunidade e a comunidade reproduz e modifica a ordem (ou seja,

    a si mesma) atravs da negociao de suas fronteiras. Cada comunidade

    representa, assim, uma fronteira poltica, econmica, social e cultural, um

    esquema interno de comunicao, classificao, propriedade e explorao.

    com esta fronteira de mltiplas densidades, que cada comunidade se defronta com as outras e com elas se integra, ou no (GUARINELLO, 2010, p. 121).

    Ainda que o autor parta do pressuposto de que o espao do Mediterrneo e as

    terras a seu redor podem ser vistos, na longa durao, como tendo sofrido um progressivo

    processo de integrao de suas comunidades territoriais (GUARINELLO, 2013, p. 54),

    os conceitos utilizados por Norberto Guarinello de Ordem e Fronteira propiciam a

    compreenso dos processos de interao dos povos mediterrnicos a partir de sua

    diversidade de possibilidades e consequncias e no por sua singularidade. O prprio

    autor admite que o processo de integrao multicausal, depende tanto de determinantes

    estruturais quanto de circunstncias histricas especficas (GUARINELLO, 2013, p.

    54), e mais, esteve aberto tanto a possibilidades de integrao, como de no integrao.

    Diante deste quadro geral, nosso trabalho analisa o movimento de formao e/ou

    consolidao de pequenas comunidades urbanas em diferentes cidades do Leste

    mediterrnico em meados do sculo I EC, coadunadas a partir do compartilhamento de

    determinados preceitos cristolgicos difundidos por Paulo de Tarso e seus colaboradores

    para alm das regies da Sria e da Palestina.

    Para Paulo, essas deveriam seguir um evangelho formado por

    concepes e narrativas baseadas em um deus nico e no sacrifcio e ressurreio de seu

    descendente, Jesus Cristo [ ]. Apresentavam, como forma de diferenciao

    de seus adeptos em relao aos demais membros da sociedade civil, a converso pelo

    Batismo [] daqueles que aceitavam o novo compromisso com a , e que

    passavam a integrar uma nova identidade de pertencimento e relaes de solidariedade

  • 39

    mtua. Assim, a iniciao proposta era entendida como o incio de um longo processo de

    reeducao moral e de entendimento de que a comunidade de Cristo [ ]

    deveria ser imaculada, sendo sua pureza definida tanto em termos morais, como

    teolgicos no caso, monotesticos.

    Buscaremos, a seguir, compreender a formao gradual de uma rede de

    interconexo e solidariedade entre essas comunidades. Partiremos da hiptese central de

    que, em linhas gerais, Paulo fomentou ao longo de sua vida apostlica um projeto que

    entendemos como de integrao aos moldes de outros processos antecedentes de

    integrao sociocultural mediterrnica , na medida em que atuou na flexibilizao de

    fronteiras culturais, sociais e religiosas preexistentes a fim de propor uma outra ordem

    comunitria, pretensiosamente alternativa imperial, polade helenstica e sinagogal

    judaica.

    Neste captulo, em especfico, abordaremos a formao gradual dessa rede a partir

    de suas relaes de mobilidade apostlica e abrangncia por diferentes territrios do

    Mediterrneo. Assim, pela leitura das epstolas paulinas, analisaremos o deslocamento

    fsico e pretendido de Paulo de Tarso, sua prtica de envio de missionrios colaboradores

    e epstolas s comunidades com as quais manteve contato e alguma relao de influncia

    e, por fim, o esforo paulino constantemente voltado ao estabelecimento de uma coeso

    intra e intercomunitria.

    1.2 A rede de interconexo entre as : Paulo, os colaboradores e as epstolas

    Os primeiros anos da atividade missionria de Paulo de Tarso so bastante

    obscuros para o pesquisador que se prope a analis-los apenas a partir do corpus

    epistolar paulino24. Pouca ou nenhuma informao foi fornecida em detalhes pelo autor.

    A nica referncia encontra-se na Epstola aos Glatas, e vale ser destacada:

    15Quando, porm, aquele que me separou desde o seio materno e me chamou

    por sua graa, houve por bem 16revelar em mim o seu Filho, para que eu o

    evangelizasse entre os gentios, no consultei carne nem sangue, 17nem subi a Jerusalm aos que eram apstolos antes de mim, mas fui Arbia, e voltei

    novamente a Damasco. 18Em seguida, aps trs anos, subi a Jerusalm para

    avistar-me com Cefas e fiquei com ele quinze dias. 19No vi nenhum apstolo,

    mas somente Tiago, o irmo do Senhor. 20Isto vos escrevo e vos asseguro

    diante de Deus que no minto. 21Em seguida, fui s regies da Sria e da Cilcia. 22De modo que, pessoalmente, eu era desconhecido s Igrejas da Judia que

    esto em Cristo. 23Apenas ouviam dizer: quem outrora nos perseguia agora

    24 Todo o deslocamento fsico paulino citado neste subcaptulo pode ser visualizado no Mapa 2.

  • 40

    evangeliza a f que antes devastava, 24e por minha causa glorificavam a Deus.

    [2] 1Em seguida, quatorze anos mais tarde, subi novamente a Jerusalm com

    Barnab, tendo tomado comigo tambm Tito. 2Subi em virtude de uma

    revelao e expus-lhes em forma reservada aos notveis o evangelho que

    prego entre os gentios, a fim de no correr, nem ter corrido em vo (Gl 1,15-

    2,2).

    Na passagem supracitada, podemos visualizar, em primeiro lugar, a breve meno

    paulina ao episdio de sua converso (Gl 1,15-16), fato relatado nos Atos dos Apstolos

    em trs verses diferentes (At 9,39; 22,5-16; 26,9-18), mas que nas epstolas foi abordado

    pontualmente por Paulo, sobretudo para legitimar seu lugar de apstolo [] e a

    veracidade do evangelho de Deus [n ] que procurava difundir. Em

    seguida, observamos a indicao dos primeiros deslocamentos paulinos como

    missionrio: Arbia, Damasco (Gl 1,17) e, posteriormente, Sria e Cilcia (Gl 1,21), tendo

    passado por Jerusalm em uma visita rpida a Pedro (Gl 1,18).

    Sabe-se que a estadia na Sria, mais especificamente em Antioquia, representou

    um perodo fundamental do apostolado paulino. Todavia, as epstolas no nos fornecem

    muitos detalhes e, por isso, nos reportamos aos Atos. Assim, torna-se possvel extrair as

    informaes de que foi em Antioquia que Paulo recebeu, de fato, sua preparao

    missionria, assim como foi em oposio aos membros da comunidade antioquena que

    enfrentou pela primeira vez a querela referente converso dos gentios (At 15,1-2)25.

    Conhecido posteriormente como Controvrsia em Antioquia, o impasse teve

    origem na alegao realizada por alguns membros da comunidade de que se no vos

    circuncidardes segundo a norma de Moiss, no podereis salvar-vos (At 15,1). Conforme

    podemos atestar na passagem em destaque, como Paulo havia assumido a misso de

    evangelizar tambm os gentios, a imposio do ritual da circunciso levou-o a Jerusalm

    pela segunda vez (Gl 2,1), onde discutiu a questo em forma reservada aos notveis (Gl

    2,2) episdio que conhecemos como Conclio Apstlico.

    No Conclio, segundo nos indica Paulo em Gl 2,6-10, depois da deliberao

    protagonizada por Tiago, Pedro e Joo, os notveis tidos como colunas, estipulou-se

    que ns [Paulo e seus colaboradores] pregaramos aos gentios e eles [Pedro e os

    judaizantes] aos da Circunciso (Gl 2,9). Tal deciso, como descrito em Gl 2,1,

    aconteceu quatorze anos aps a primeira visita documentada de Paulo a Jerusalm, o que

    25 Passagem completa: 1Entretanto, haviam descido alguns da Judeia e comearam a ensinar aos irmos:

    Se no vos circuncidardes segundo a norma de Moiss, no podereis salvar-vos. 2Surgindo da uma

    agitao e tornando-se veemente a discusso de Paulo e Barnab com eles, decidiu-se que Paulo e Barnab

    e alguns outros de seus subiriam a Jerusalm, aos apstolos e ancios, para tratar da questo (At 15,1-2).

    Cf. SIMON; BENOIT, 1987, p. 112; HOLSTEIN, 1977, p. 35; MEEKS, 1992, p. 34; KOESTER, 2005b,

    p. 172.

  • 41

    permitiu a Helmut Koester em Introduction to the New Testament: History and Literature

    of the Early Christianity (1926) datar o Conclio Apostlico no ano de 48 EC e o episdio

    da converso paulina por volta de 35 EC.

    Passagens adiante, Paulo afirmou ter partido de Jerusalm, provavelmente ainda

    em 48 EC, para regressar a Antioquia, onde desentendeu-se pessoalmente com o apstolo

    Pedro por julg-lo digno de censura (Gl 2,11). Ao que nos indica o contedo de Glatas,

    por considerar as atitudes de Pedro e demais membros da comunidade antioquena ainda

    bastante atreladas a normas ritualsticas e tendncias segregadoras judaicas26, Paulo

    separou-se de Barnab, deixou Antioquia e iniciou sua atividade missionria autnoma

    acompanhado de Silvano e Timteo.

    Seguindo as informaes epistolares, teramos cronologicamente a misso paulina

    na Macednia e sua estadia em Filipos. Entretanto, a composio subsequente da Epstola

    aos Glatas deixa uma lacuna no mapa do deslocamento paulino. Segundo os Atos dos

    Apstolos, aps deixar Antioquia, Paulo dirigiu-se para a regio da Galcia (At 16,1-8)

    fato que parece verdadeiro a julgar pela comunicao estabelecida com as

    glatas e o indicativo da presena pregressa paulina nas primeiras passagens da epstola.

    Como apontou Koester,

    embora Atos mencione a Galcia apenas de passagem, melhor supor que

    Paulo tenha a permanecido pelo menos alguns meses durante essa viagem.

    Galcia designava a regio montanhosa central da Anatlia, com as cidades

    de Ancira, Pessino e Grdio. De acordo com a hiptese da Galcia do Norte,

    as igrejas glatas devem ser localizadas aqui, e no no sul da provncia romana

    da Galcia, isto , nas cidades de Listra, Derbe e Icnio (a hiptese da Galcia

    do sul), que Paulo havia visitado anteriormente quando ainda estava radicado

    em Antioquia (At 14,6) (KOESTER, 2005b, p. 122-123).

    Paulo teria ficado na Galcia at a primavera do ano de 50 EC. Posteriormente,

    dirigiu-se para Trade, na regio da Msia, onde no parece ter atuado na fundao de

    uma local. De Trade, seguiu para Filipos, na Macednia, onde, segundo At

    16,9, foi chamado a pregar por meio de uma viso27. Conforme consta em

    1Tessalonicenses, Paulo permaneceu em Filipos at sofrer perseguies: 2Sabeis que

    26 Passagem completa que trata da querela entre Pedro e Paulo em Antioquia: 11Mas quando Cefas veio a

    Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele tinha se tornado digno de censura.12Com efeito, antes de

    chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando chegaram, ele se subtraa

    e andava retrado, com medo dos circuncisos. 13Os outros judeus comearam tambm a fingir junto com

    ele, a tal ponto que at Barnab se deixou levar pela sua hipocrisia. 14Mas quando vi que no andavam

    retamente segundo a verdade do evangelho, eu disse a Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives

    maneira dos gentios e no dos judeus, por que foras os gentios a viverem como judeus? (Gl 2,11-14). 27 Passagem completa: Ora, durante a noite, sobreveio a Paulo uma viso. Um macednio, de p diante

    dele, fazia-lhe este pedido: Vem para a Macednia, e ajuda-nos! (At 16,9).

  • 42

    sofremos perseguies e fomos insultados em Filipos. Decidimos, contudo, confiados em

    nosso Deus, anunciar-vos o Evangelho de Deus, no meio de grandes lutas (1Ts 2,2).

    Dessa forma, ainda no ano de 50 EC, dirigiu-se para a cidade de Tessalnica,

    capital da provncia romana da Macednia, onde tambm encontrou obstculos para se

    fixar, conforme observamos em: 4Quando estvamos convosco j dizamos que

    haveramos de passar tribulaes; foi o que aconteceu, como sabeis (1Ts 3,4). Assim,

    Paulo deixou Tessalnica e seguiu rumo a Atenas:

    1Por isso, no podemos mais suportar, resolvemos ficar sozinhos em Atenas, 2e enviamos Timteo, nosso irmo e ministro de Deus na pregao do

    Evangelho de Cristo, com o fim de vos fortificar e exortar na f, 3para que

    ningum desfalea nestas tribulaes. Pois bem sabeis que para isso que

    fomos destinados (1Ts 3,1-3).

    Conforme apontamos, enquanto Paulo manteve relaes de proximidade com a

    comunidade antioquena, esteve acompanhado de Barnab, um dos primeiros missionrios

    atuantes fora de Jerusalm do qual as Epstolas e os Atos nos do notcias. No episdio

    do Conclio de Jerusalm, em 48 EC, Paulo afirmava estar com Barnab e Tito (Gl 2,1;3).

    Contudo, aps desentender-se com Pedro, afastou-se tambm de Barnab, e quando

    deixou Antioquia o fez acompanhado de Silvano e Timteo, permanecendo assim durante

    todo o percurso pela Galcia, Trade, Filipos e Tessalnica (1Ts 1,1).

    Com exceo dos primeiros anos de vida missionria (Gl 1,15-24), em que Paulo

    no indicou estar acompanhado, nas misses posteriores no esteve s. Viajava ao lado

    de missionrios de sua confiana, a quem chamava de [irmos] e/ou

    [colaboradores]. Discutiremos, nos captulos seguintes, o significado de [irmo].

    Contudo, vale ressaltar a utilizao do termo [colaborador] como indicativo de

    que esses missionrios eram reconhecidos por Paulo como companheiros, ou melhor,

    como colaboradores de Deus no evangelho de Cristo (1Ts 3,2)28. Alm da confiana

    do apstolo, os carregavam consigo a responsabilidade de serem a extenso da

    pregao do evangelho paulino, a presena diante da ausncia fsica de Paulo, os

    mensageiros transportadores de notcias e epstolas e, por fim, os orientadores da vida

    cotidiana das recm-formadas.

    28 O termo pode ser traduzido por algum que trabalha na companhia de outra pessoa,

    companheiro de trabalho, cooperador, ou ainda, ajudante, pessoa da mesma profisso que outra,

    colega. A Bblia de Jerusalm (2014) traz ministro como traduo de em 1Ts 3,2. Entretanto,

    assim como em Rm 16,21, entendemos que a opo mais apropriada seria a utilizao de colaborador

    como traduo possvel de em 1Ts 3,2. Dessa maneira, propomos que se traduza

    como nosso irmo e colaborador de Deus no

    evangelho de Cristo. Cf. LIDDEL & SCOTT, 1996; LOUW & NIDA, 2013.

    https://en.wiktionary.org/wiki/%CE%B1%CE%B4%CE%B5%CE%BB%CF%86%CE%BF%CE%AF#Greekhttps://en.wiktionary.org/w/index.php?title=%CF%83%CF%85%CE%BD%CE%B5%CF%81%CE%B3%CE%BF%CE%AF&action=edit&redlink=1https://en.wiktionary.org/w/index.php?title=%CF%83%CF%85%CE%BD%CE%B5%CF%81%CE%B3%CE%BF%CE%AF&action=edit&redlink=1
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    Nesse sentido, tudo indica que a mobilidade de pessoas necessria difso, de

    fato, do evangelho paulino foi maior e mais complexa do que podemos aventar a partir

    dos contedos epistolares. Por vezes, sua leitura descontextualizada induz construo

    de uma viso quase hegemnica da autoridade paulina sobre as o que no

    condiz com os fatos, principalmente se levarmos em conta que Paulo no atuou

    isoladamente em seu contexto, assim como no obteve aceitao inquestionvel por parte

    de seus pares ou de seus (pretensos) seguidores. preciso ressaltar que sem o trnsito

    constante dos , a formao progressiva da rede de interconexo entre as

    da qual tratamos seria muito mais difcil, se no impossvel.

    Em 1Ts 3,1-3, testemunhamos o primeiro registro escrito do que viria a ser um

    hbito paulino nos anos posteriores: o envio desses s cidades previamente

    visitadas como forma de obter notcias das e fiscalizar a continuidade (ou no)

    da fidelidade dos convertidos ao evangelho paulino. Percebe-se, portanto, que conforme

    se estendiam o percurso, o nmero de cidades visitadas e, consequentemente, o nmero

    de para com as quais Paulo julgava ter a responsabilidade de guarda e

    orientao, mais difcil tornava-se a sustentao da comunicao unilateral entre o

    apstolo e os membros das locais. Foi preciso pr em prtica outras estratgias

    de interlocuo, e o envio de pessoas de confiana constituiu a primeira.

    Paulo deixou Tessalnica e se dirigiu a Atenas, apesar de ter expressado o desejo

    de voltar capital da Macednia: 17ns, porm, irmos, privados por um momento de

    vossa companhia, no de corao, mas s de vista, desejamos muito rever-vos (1Ts

    2,17). Contudo, diante da impossibilidade de deslocar-se Tessalnica, resolveu enviar

    em seu lugar Timteo (1Ts 3,2). Por sua vez, ainda no ano de 50 EC, Paulo seguiu viagem

    para Corinto, onde se estabeleceu por um perodo maior de tempo, de 50 a 52 EC e, com

    isso, pde desenvolver com mais vigor o processo de fundao da corntia e,

    possivelmente, de outras pela regio da Acaia29.

    Em Corinto, ainda acompanhado de Silvano, recebeu a visita de Timteo, que

    retornara de Tessalnica (1Ts 3,6). Conforme nos indica o contedo de 1Tessalonicenses,

    Timteo parece ter transmitido ao apstolo informaes sobre uma fiel a seu

    evangelho, porm ainda muito incipiente, que sofria oposies externas e apresentava

    fragilidades em termos de coeso grupal e de observncia ao evangelho paulino. Dessa

    29 Em diversas passagens Paulo se refere regio da , no geral, como um territrio conhecido, e no

    apenas . Tal recorrncia permite ao pesquisador levantar a hiptese de que a abrangncia da

    atuao paulina na possa ter sido maior do que se imaginava, resultando, inclusive, na fundao de

    outras , para alm da corntia, em outras cidades da regio (como , por exemplo). Cf.

    1Ts 1,7-8; 1Cor 16,15; 2Cor A 1,1; 2Cor B 11,10; 2 Cor E 9,2; Rm 15,12; 16,1-2.

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    forma, mediante o risco da perda das conquistas obtidas, Paulo decidiu pela primeira

    vez da qual temos notcia enviar aos tessalonicenses uma epstola sob a guarda de

    Timteo.

    Apresentado por Philipp Vielhauer e