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A FORMAÇÃO DOS GOSTOS: SOCIOLOGIA DOS JUÍZOS ESTÉTICOS Ronaldo de Noronha O PROBLEMA DOS GREGOS Nos Grundrisse, Marx (1973, p. 110-111) enunciou seu famoso problema dos gregos: "A dificuldade não reside no entendimento de que a arte e a épica gregas estão atadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que elas ainda nos proporcionam prazer artístico e que, de certo modo, ainda contam como uma norma e um modelo inatingível." Repare-se que ele não achava difícil explicar o "fato bem conhecido de que certos períodos de florescimento das artes estão fora de proporção com o desenvolvimento da sociedade, logo também com a fundação material da sua organização", acreditando que, uma vez formuladas e especificadas certas "contradições" a saber, "a relação entre diferentes formas de arte dentro do domínio das artes", assim como "a relação de todo o domínio ao desenvolvimento geral da sociedade" , tal desproporção seria esclarecida. O marxismo deu a atenção que se sabe a esta classe de problemas as relações entre o que chamou de infra e superestruturas , obrigatória no entendimento dos fenômenos artísticos, entre outros. Galvano della Volpe (s/ data, p. 31), por exemplo, citando Engels, referiu-se a uma lei, chamada dos "longos períodos", pela qual "quanto mais a particular esfera [cultural] (...) está longe da

A FORMAÇÃO DOS GOSTOS: SOCIOLOGIA DOS JUÍZOS … - Noronha 2.pdf · de julgar), assim como sobre a determinação da arte como atividade livre e desinteressada (“emasculação

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A FORMAÇÃO DOS GOSTOS: SOCIOLOGIA DOS JUÍZOS

ESTÉTICOS

Ronaldo de Noronha

O PROBLEMA DOS GREGOS

Nos Grundrisse, Marx (1973, p. 110-111) enunciou seu famoso problema dos

gregos: "A dificuldade não reside no entendimento de que a arte e a épica gregas

estão atadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade é que elas

ainda nos proporcionam prazer artístico e que, de certo modo, ainda contam como

uma norma e um modelo inatingível."

Repare-se que ele não achava difícil explicar o "fato bem conhecido de que

certos períodos de florescimento das artes estão fora de proporção com o

desenvolvimento da sociedade, logo também com a fundação material da sua

organização", acreditando que, uma vez formuladas e especificadas certas

"contradições" – a saber, "a relação entre diferentes formas de arte dentro do

domínio das artes", assim como "a relação de todo o domínio ao desenvolvimento

geral da sociedade" –, tal desproporção seria esclarecida.

O marxismo deu a atenção que se sabe a esta classe de problemas – as

relações entre o que chamou de infra e superestruturas –, obrigatória no

entendimento dos fenômenos artísticos, entre outros. Galvano della Volpe (s/ data,

p. 31), por exemplo, citando Engels, referiu-se a uma lei, chamada dos "longos

períodos", pela qual "quanto mais a particular esfera [cultural] (...) está longe da

esfera econômica (...) e se aproxima da pura e abstracta ideologia, e tanto mais ela a

mostrará no seu desenvolvimento das acidentalidades [e também peculiaridades] e

a sua curva correrá em zig-zag"; mas, "se vós traçardes o eixo médio dessa curva,

verificareis que esse eixo correrá tanto mais aproximativamente paralelo ao eixo da

curva do desenvolvimento econômico quanto mais longo for o período [histórico]

considerado e mais amplo o campo [ideológico] tratado".1

Marx atribuiu à imaginação do povo grego, fecundada pela sua mitologia, a

razão desse improvável e extraordinário florescimento. A mitologia teria

desempenhado, em relação àquela imaginação, como se vê, por exemplo, em

Homero, em Hesíodo e nos autores trágicos, o duplo papel de horizonte ético e

cognitivo e de material para a criação e a reflexão artísticas. Dela se serviram

inesgotavelmente, do modo que sabemos e admiramos, os artistas gregos.

Naturalmente, tal mitologia é impensável numa sociedade "desenvolvida",

como a européia do século XIX. Citando Marx, della Volpe (s/ data, p. 31) diz que

nem Antígona nem Aquiles nem Vulcano, etc. teriam sido possíveis com Roberts

and Co. ou o Crédit Immobilier ou a pólvora para disparar e o chumbo, porque

cada uma destas criações míticas "pressupõe e contém na sua estrutura de

organismo poeticamente significativo, condições e razões históricas

completamente diferentes (destas modernas), isto é, (...) muito diferentes condições

ideológicas ou culturais (morais, religiosas, científicas, etc.) e, implicitamente,

econômicas ou materiais".

Mas não eram estas questões de metodologia e explicação histórica que

incomodavam Karl Marx. Sua dificuldade era entender como as artes gregas ainda

hoje conseguem nos encantar, quando a sociedade e a cultura já se desenvolveram

1 A obscuridade desta "lei" é um belo exemplo do que Stanislaw Andrewski chamou de

"ciências sociais como bruxaria". Cf. Andrewski, 1973.

e são tão diversas daquelas da Grécia clássica. Este é o problema da persistência do

valor artístico, como o define Janet Wolff (1982, p. 87): é um problema do campo da

recepção e da apreciação e não da criação da arte.2

Os marxistas justapõem e misturam freqüentemente as noções de progresso

histórico e de desenvolvimento orgânico, comprazendo-se tanto em metáforas

organicistas e evolucionistas como em súbitas analogias entre as dimensões onto e

filogenéticas do homem, apresentadas como argumentos – em que formigam

conceitos como "estágio", "amadurecimento", "desenvolvimento", "etapas", etc. –

explicativos de certos processos e estruturas. O exemplo vem do próprio Marx,

como se vê na explicação que, nos Grundrisse, deu ao problema dos gregos:

"Um homem não pode voltar a ser criança ou se torna infantil. Mas não

encontra alegria na ingenuidade da criança, e não deve esforçar-se para reproduzir

sua verdade num estágio mais alto? O verdadeiro caráter de cada época não vem à

vida na natureza das suas crianças? Por que não deveria a infância histórica da

humanidade, seu mais belo desdobramento, como estágio que nunca retornará,

exercer um eterno encanto? Há crianças sem regras e crianças precoces. Muitos dos

velhos povos pertencem a essa categoria. Os gregos eram crianças normais. O

encanto de sua arte para nós não está em contradição com o estágio

subdesenvolvido da sociedade em que ela cresceu. É, antes, o resultado, e está

inextricavelmente ligado ao fato de que as condições sociais não-amadurecidas sob

as quais surgiu, e só ali podia surgir, não retornarão jamais" (Marx, 1973, p. 111).

É notável como ele pôde contentar-se com explicação tão frágil do valor que

se dá às artes gregas: elas representariam para nós um ideal porque os gregos

2 Embora não se possa separar as instâncias da criação e da recepção artísticas, pois elas

se supõem mutuamente, podemos distingui-las, como o fazemos aqui, para efeitos de análise e

delimitação dos problemas que são próprios a cada uma.

foram a mais bela flor da infância da humanidade. Mas nossos espanto e

deslumbramento diante das tragédias de Ésquilo e Sófocles, dos poemas de

Homero e Hesíodo, dos templos severos e nítidos que se erguem contra o céu claro

da Grécia e das impressionantes estátuas de deuses que neles moravam não são

uma indulgência ou um carinho de adultos surpresos, uma nostalgia sorridente

induzida pela distância e pela antigüidade – uma espécie de desvelo reminiscente

pela infância perdida que nos daria prazer reviver, em seu pathos e suas verdades

ingênuas. Como ele mesmo disse, o que se passa é que as artes gregas continuam a

ser para nós "uma norma e um modelo inatingível", isto é, um valor. É o que temos

que explicar: por que, ao invés de crianças, os gregos nos parecem gigantes.

A INVENÇÃO DA ARTE 3

A opinião de Marx sobre o valor da arte e da épica gregas é um juízo

estético, ou de gosto.4 Juízos pertencem à classe das afirmações "mundanas" e seu

componente subjetivo, sua relatividade histórica e cultural e dependência das

contingências e determinações sociais são evidentes; portanto, eles podem e devem

ser objeto de investigação de disciplinas empíricas como a Sociologia, a

Antropologia, a Psicologia, etc.

3 A seguir, falamos de arte em geral. Em alguns exemplos e citações, nos referimos a

certas artes particulares – pintura, poesia, literatura, principalmente –, supondo que o que se

afirma sobre cada uma é válido em geral para as demais.

4 Usa-se o termo "juízo" para designar a afirmação ou a negação de algo (um predicado)

acerca de algo (um sujeito); sua forma geral, que ele compartilha com a proposição, é "S é P" (ou

"S não é P"); juízos diferem de proposições na medida em que estas são os conteúdos dos atos

mentais de julgar.

Dizemos que um juízo é "de gosto" quando ele declara o prazer ou

desprazer que S produz no autor do juízo. Ele diz mais sobre esse autor do que

sobre o objeto (não é uma descrição do objeto) e depende da vontade e das

estruturas de preferências daquele que julga. Ele é fonte de distribuição de valores,

estabelece hierarquias, faz comparações e determina precedências e escolhas entre

distintos objetos e estados de coisas.

A modalidade de juízo de gosto que estamos examinando, o juízo estético,

distribui valor segundo o critério da beleza. Não importa como determinar este

critério (por exemplo, segundo os atributos de medida, de proporção, de ordem e

de harmonia, como fizeram os filósofos e estetas gregos), nem estabelecer seus

fundamentos (como tentou fazer Kant, postulando uma "faculdade de julgar").

Basta saber que, empiricamente, os homens podem e, muitas vezes, acham

importante ou desejável diferenciar, classificar e hierarquizar objetos e fenômenos

segundo o prazer que as formas destes lhes proporcionam (seja o que for que

chamem de "prazer" e de "forma").

Qualquer fenômeno ou coisa pode ser objeto de juízos estéticos.

Determinadas coisas e ações humanas, porém, já trazem a intenção de serem belos,

isto é, de serem apreciados como tais. Entre estes estão as obras de arte, que

ocupam lugar especial nesta classe de objetos e ações, pois, como lembra Hannah

Arendt (1972, p. 269), se todos os objetos têm uma forma, "através da qual

aparecem, só as obras de arte são feitas com o único fito de aparecer. O critério

próprio para julgar o aparecer é a beleza".

Mas, seriam arbitrários os juízos de gosto, entre eles os estéticos? Seriam

casuais e indeterminados, não se devendo, em sua variabilidade e incidência,

senão a puras idiossincrasias e imprevisível veleitarismo? A antiga máxima do

senso comum, de gustibus non disputandum est, a fórmula "bonito é se lhe parece" e

outras semelhantes, insinuam a crença na impossibilidade e na correspondente

inutilidade de tentar fundar intersubjetivamente o fenômeno do gosto.

É conhecida a aversão de Kant a tal crença. Na Crítica do Juízo, ele fez a

faculdade de julgar descansar sobre um acordo potencial entre os homens, sobre a

capacidade de pensar pondo-se no lugar do outro: "poderia-se atribuir o nome de

sensus communis ao gosto, mais justamente que ao bom senso e, mais do que a

faculdade de julgar intelectual, é a faculdade de julgar estética que poderia levar o

nome de senso comum a todos". O gosto tem a propriedade de tornar

universalmente comunicável "o sentimento que nos propicia uma dada

representação" (Kant, 1985, p. 244-247).

Para ele, o belo é o que é representado, sem conceitos, como objeto de

satisfação universal, já que a satisfação que dele se tira é livre e desinteressada, logo

não fundada numa condição de ordem pessoal e privada. Decorre, disse Kant, que

se falará do belo "como se a beleza fosse uma propriedade do objeto e o juízo fosse

lógico (...), embora ele seja somente estético e só tenha por conteúdo uma relação

de representação do objeto no sujeito" (Kant, 1985, p. 139).

Sabe-se que chuva de sarcasmos ("niaiserie allemande") Nietzsche (1992, p. 17-

19 e 33, por exemplo), para quem a arte era "excitante do querer", fez desabar sobre

as descobertas kantianas de "faculdades" (a dos juízos sintéticos a priori, a moral, a

de julgar), assim como sobre a determinação da arte como atividade livre e

desinteressada (“emasculação da arte”). De fato, a vontade de arte e o critério de

gosto dificilmente podem aceitar a determinação do "desinteresse" (já que criam

seus próprios empenhos e interesses), assim como a de "liberdade" (já que

produzem e expressam relações de dependência e de domínio), seja empírica, seja

transcendentalmente.

Também se sabe quão escasso era o trato de Kant com as artes, na sua

distante e provinciana Königsberg. Ele nunca teve interesse verdadeiro nem

convívio familiar com as artes do seu tempo e estava longe de ser um connaisseur

digno de nota. De fato, só veio a se ocupar com os juízos de gosto, já no fim de uma

longa vida filosófica, para fazer certas passagens teóricas que rematavam seu

edifício crítico.

Mas o instinto de psicólogo não lhe faltou ao afirmar que os juízos de gosto

devem ser submetidos à discussão, pois de fato cada um de nós espera que o

prazer que nos proporcionam o esplendor de uma paisagem, o lirismo de uma

música ou a graça de um gesto seja partilhado por outros – e esta expectativa não é

sem fundamento. Arendt (1972, p. 283-288), d’après Kant, defendeu a "atividade do

gosto", lembrando que quem aprecia pode apenas tentar persuadir o outro, cortejar

seu consentimento (caráter que as opiniões estéticas compartilham com as

políticas), não sendo possível forçá-lo à concordância pela evidência lógica de uma

demonstração ou, muito menos, por imposição de autoridade ou força.

"Sabemos bem com que rapidez as pessoas se reconhecem, como podem se

sentir sem equívoco em comunhão, quando descobrem um parentesco em matéria

de gostos e desgostos. Do ponto de vista desta experiência corrente, tudo se passa

como se o gosto decidisse não só como ver o mundo, mas quem se pertence neste

mundo. Se pensamos este senso de pertencimento em termos políticos, somos

tentados a ver o gosto como um princípio de organização essencialmente

aristocrático". (Esta é a modalidade das relações humanas que Goethe chamou de

"afinidades eletivas".)

O gosto distingue os espíritos cultivados dos que não o são. Ele supõe a

cultura animi de Cícero, o que equivale a dizer que uma civilização lhe é

indispensável, com seu cortejo de auto-restrições éticas, de cuidados de si, de

atenções com as coisas do mundo, de cortesias entre iguais, de estratégias de

distinção e domínio simbólicos. "O gosto desbarbariza o mundo do belo não se

deixando submergir por ele; ele toma conta do belo na sua própria e 'pessoal'

maneira e assim produz uma 'cultura'". Uma pessoa de gosto sabe escolher seus

companheiros entre os homens, as coisas e os pensamentos.

O retórico e filósofo romano Marco Túlio Cícero é personagem importante

dessa história e está na origem do "problema dos gregos". Segundo Arendt, ao que

parece, ele foi o primeiro a usar, nas Tusculanas, a palavra "cultura" para as coisas

do espírito. Cultura deriva do verbo colere, que significa cuidar, cultivar, entreter,

preservar, sendo usada para o comércio dos homens com a natureza: daí,

"agricultura". Cícero a usou no sentido de cultivar e curar o espírito (excolere

animum), provavelmente para traduzir o grego paideia.5

O instrumento excelente da cura-e-cultivo receitada por Cícero aos romanos

era a filosofia. Quem aspirasse à grandeza nessa vida – virtude, distinção, fama –

devia adquirir saber, apropriando-se da herança grega pela leitura e pelo estudo

com os gregos cultos contemporâneos. A cultura animi se formaria assumindo na

própria personalidade um patrimônio de saber tradicional. Assim, o cidadão

romano evitaria a barbárie que aprisionava os ignorantes, pois não eram bárbaros

apenas os que viviam fora dos limites da cidade de Roma (a patria), mas também os

romanos que não participavam da cultura. Neste particular, a cultura promovia não

só a coesão dos estratos elevados (o patriciado), como a segregação e o afastamento

dos estratos com hábitos de vida e práticas culturais diversos (cf. Thurn, 1979).

Os romanos reverenciavam os ancestrais, os "pais fundadores", em tudo,

sentindo-se ligados por laços sagrados à autoridade do passado, ao exemplo de

grandeza que os maiores ofereciam a cada geração sucessiva. "Pensaram ter

necessidade também de pais fundadores e de exemplos autoritários nas coisas do

pensamento e nas idéias, e admitiram os grandes 'ancestrais' gregos como

5 A paideia, originalmente, designava para os gregos a educação das crianças, para delas

fazer homens, usando a ginástica e a poesia para plasmar uma "mente sã num corpo são"; a partir

dos sofistas e, sobretudo, Platão, assumiu cada vez mais a feição de "formação espiritual", sendo a

filosofia seu principal instrumento. Cf. Jaeger, s/ data.

autoridades para a teoria, a filosofia e a poesia" (Arendt, 1972, p. 163).

Este papel civilizador e educativo foi desempenhado também pelas artes, tal

como as inventaram e aprimoraram os gregos. Ao conquistar os reinos helênicos,

os romanos, além da filosofia, converteram as artes gregas em seus monumentos,

seu patrimônio – preservando-as, copiando-as e salvando-as da destruição e do

esquecimento a que estavam prometidas pela decadência e descuido dos próprios

gregos. "Era típico dos romanos aproveitarem da arquitetura grega tudo que lhes

agradava, aplicando-o às próprias necessidades. Fizeram o mesmo em todos os

campos", disse E. H. Gombrich (1993, p. 82).

No período helenístico (mais ou menos do século IV A.C. ao I D.C.), em que

viveu Cícero, quando a arte começava a perder os antigos vínculos com a religião e

a magia em cuja sombra havia nascido, a maioria dos artistas que trabalhavam em

Roma era grega, e os nobres e os ricos começaram a colecionar as obras dos

grandes mestres gregos ou cópias delas. Os artistas adquiriam nesse tempo uma

estima e uma importância que não tinham antes e os problemas propriamente

ditos de arte – por exemplo, nas artes plásticas: como representar uma cena

comovente, ou uma impressão de sofrimento ou de prazer, como obter efeitos de

movimento ou de relevo, quais meios usar para reproduzir o caráter peculiar de

uma fisionomia, etc. – começaram a ganhar autonomia em relação ao o quê da

representação.6

Formou-se, primeiro na Grécia, depois em Roma, um público de arte, de

colecionadores e entendidos que mandavam fazer cópias de esculturas e pinturas

para exibi-las nas suas casas e jardins. Esta foi, para Gombrich, a mais

6 Primeiro os pintores e, em seguida, os escultores passaram cada vez mais a "figurar

como personalidades superiores e protegidas dos deuses; a acreditar em Plínio, a pintura contará

expressamente entre as artes liberais (o que significa dignas de um homem nascido livre)"

(Panofsky, 1994, p. 17).

surpreendente conseqüência da revolução grega nas artes plásticas7, porque uma

indústria de reproduções para a venda implicava uma nova função para as

imagens, ignorada anteriormente à invenção grega da arte. "A imagem é retirada

do contexto prático para o qual foi concebida e passa a ser admirada e apreciada

por sua beleza e fama, isto é, no contexto da arte. (...) Os nomes dos artistas que

descobriram novos efeitos para aumentar a ilusão e o 'realismo' na representação –

os nomes de Míron e Fídias, de Zêuxis e Apeles – permanecem vivos na história e

conservaram seu prestígio apesar do fato de não conhecermos uma única obra de

autoria deles" (Gombrich, 1986, p.123-125).

À valorização e ao aprofundamento da sensibilidade em relação à arte

correspondeu, pouco a pouco, nos filósofos e eruditos da época, uma inversão das

concepções platônicas, que criticavam na arte a condição de mera imitação do

mundo sensível – o qual, por sua vez, era apenas cópia imperfeita do mundo das

Idéias. Segundo Panofsky, Cícero, em o Orador, cunhou a fórmula segundo a qual o

artista não copia uma realidade, mesmo que encantadora, mas sim um modelo

prestigioso de beleza que só o espírito pode vislumbrar, dando a este modelo de

beleza o mesmo estatuto superior de coisa espiritual, eterna e divina que tinham as

Idéias para Platão.8

Para Cícero, não havia em parte alguma algo de tão belo cujo original não

7 Revolução nas maneiras de representar convincentemente coisas e movimentos,

produção da ilusão de estar diante da própria coisa representada, crescente ênfase no "como" em

detrimento do "o quê" da representação, individualização em lugar do esquematismo da arte

egípcia. Ver Gombrich, 1986, p. 103-128.

8 Para gregos e romanos e, ainda durante muito tempo na tradição ocidental, os

problemas artísticos, seja técnicos, seja filosóficos, submeteram-se à noção de mimese: na arte,

tudo se dava, para o artista, o apreciador ou o crítico, em relação ao eixo que liga a cópia ao

original, seja este sensível ou supra-sensível.

fosse ainda mais belo: um original inapreensível pelos sentidos e que apenas em

espírito podia ser conhecido. Ele disse que "[quando o artista trabalhava], não

considerava um homem qualquer, isto é, realmente existente, que teria podido

imitar, mas em seu espírito é que residia a representação sublime da beleza; é ela

que ele olhava, é nela que mergulhava, e tomando-a por modelo dirigia sua arte".

Só no espírito há algo perfeito, de que "existe uma forma puramente pensada, e a

esta forma estão ligados, pela reprodução que deles nos oferece a arte, os objetos

inacessíveis como tais à percepção sensível (ou seja, os seres divinos que devemos

representar)" (cf. Panofsky, 1994, p. 15-16).

Os Antigos não concebiam a arte como mera cópia da natureza, tal como

esta se mostra aos sentidos. Um artista se media por sua capacidade de dar às

aparências uma beleza mais verdadeira do que o natural. Por exemplo, ao esculpir a

imagem de um herói ou de um deus, como o Zeus de Fídias, em Olímpia,

observavam-se as partes mais belas de diferentes homens para selecioná-las e

combiná-las numa só efígie. Procedimento que Aristóteles resumiu assim: "os

grandes homens mantêm para com os homens comuns a mesma diferença que

separa os homens belos dos que não o são, e o que é artisticamente pintado da

simples realidade; essa diferença deve-se a que, nesse caso, reúne-se num único e

mesmo objeto o que se achava disperso em vários" (citado em Panofsky, 1994, p.

20).

A reflexão e a apreciação artísticas do período helenístico foram

filosoficamente legitimadas pela crítica aristotélica ao dualismo platônico, que

opunha ao mundo sensível e imperfeito, submetido à corrupção do tempo sobre a

matéria, o mundo inteligível da Idéias, das Formas perfeitas e eternas. Para

Aristóteles, a forma (isto é, a natureza ou essência íntima das coisas) não se opõe à

matéria, mas funde-se nela, informa-a. E assim como todas as coisas concretas são

compostos (sinolos) de forma e matéria, onde uma forma determinada penetra

numa matéria determinada, também o são as obras de arte, com a diferença que,

na arte, antes de penetrar na matéria, a forma mora na alma humana: "é um

produto da arte tudo aquilo cuja forma reside na alma humana".9

Aristóteles (1973, p. 451) reconhecia às artes uma dignidade e um valor que

Platão lhes negava, dizendo que "a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do

que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular"

(pois a poesia pode atribuir aos indivíduos pensamentos e ações que convêm às

suas naturezas "por liame de necessidade e verossimilhança"). Assim, Cícero pôde

conceder à arte o mérito de ser, como a filosofia, uma atividade nobre do espírito,

sem ter de "sair do mundo" por ser mimese dos seres e acontecimentos sensíveis:

pois ela o era daquilo que, neles, era sublime. Podia, portanto, participar da cultura

e cultivar os espíritos, refinando-os e aprimorando-os; também, nesse sentido, ser

desfrutada pelos homens livres e de condição superior.

A PEDAGOGIA DO GOSTO

Contudo, não é nada trivial o encantamento dos romanos pelas artes gregas,

assim como, mais de mil anos depois, o dos homens do Renascimento europeu

pela arte clássica greco-romana, que fizeram dela o ponto de apoio da reconstrução

cultural do Ocidente. Este encantamento nada tem de necessário e é preciso

examiná-lo de perto e determinar suas condições de ocorrência e continuidade.

Panofsky (1991, p. 37), por exemplo, afirmou que "o observador ingênuo da Idade

Média tinha muito que aprender e algo a esquecer, até que pudesse apreciar a

9 Aristóteles, Metafísica, VII, 8 (1034 a). Citado em Panofsky, 1994, p. 22. Observe-se

que o termo "arte", aqui, refere-se também às diversas técnicas, como a medicina ou a

militar, por exemplo, e não só às belas-artes.

estatuária e a arquitetura clássicas".

A relação do observador com a obra de arte nunca é ingênua, no sentido de

pura e espontânea, pois a "bagagem cultural" do observador, seja qual for,

contribui para o objeto de sua experiência. A obra de arte, como todo artefato de

comunicação humana, depende da interpretação do observador para existir como

fenômeno cultural e sua história é a história das suas interpretações. Como o já

referido observador "ingênuo" da Idade Média, que tinha que "esquecer e

aprender" para poder apreciar, "o observador 'ingênuo' do período pós-

renacentista tinha muito a esquecer e algo a aprender até que pudesse apreciar a

arte medieval, para não falar da primitiva" (Panofsky, 1991, p.37).

Apreciar não é igual, mas é inseparável de interpretar, que é uma atividade

que produz sentido. Gombrich (1986, p. 255) chamou-a de "o poder da

interpretação". Ao ver um quadro, disse, o observador colabora com o artista,

transformando a tela pintada numa semelhança com o mundo visível. A

semelhança que acreditamos estar na obra existe apenas na nossa imaginação, não

só em virtude da nossa capacidade de reconhecer semelhanças através de

diferenças, como também porque fomos treinados a vê-las, entre as coisas do

mundo real e as imagens na tela.

Por outro lado, para apreciar as artes gregas, é preciso reconhecer e

identificar o caráter abrangente, completo, do estilo grego, a unidade e a coerência

das suas qualidades e princípios, presentes nas diversas formas de arte e de

cultura, que mostram ser ele uma criação coletiva, duradoura, transmitida por

vários séculos através de sucessivas gerações. É preciso possuir, portanto, a

capacidade geral de isolar e determinar estilos, quaisquer que sejam, o que também não

é trivial.

Estilo (definido por Meyer Schapiro como "a forma constante – e algumas

vezes os elementos, qualidade e expressão constantes – na arte de um indivíduo ou

grupo”)10 é talvez a mais característica e mais usada das noções próprias aos

mundos artísticos. É uma noção pesadamente investida de valor: dizer que um

artista, ou conjunto de artistas, tem um estilo é reconhecer uma virtude, conceder-

lhe um trunfo no mercado das avaliações, pois o estilo é uma marca de identidade.

Ele é o sinal, o traço da singularidade artística, a maneira única e sistemática

encontrada ou inventada pelo artista para unir forma e conteúdo, a maneira

peculiar e própria de pôr e resolver problemas formais, técnicos, expressivos, etc.

A análise teórica e/ou histórica não determina e conceitua, de maneira

lógica e unívoca, um determinado estilo observável empiricamente, dando-lhe

uma definição exaustiva, traço por traço. Antes, diz-se que duas ou mais obras têm

um mesmo estilo por apresentarem o mesmo "ar de família", pela percepção não-

conceitual de semelhanças entre elas e de contrastes e diferenças com obras de

outros estilos. Abstrações e generalizações são pouco úteis na demarcação e

classificação dos diversos estilos; ao invés, eles pedem a tática dos paradigmas e

das exemplificações para sua melhor e mais exata aprendizagem e conhecimento,

jogando o “jogo de linguagem” (artístico) em que este e outros termos são usados:

pois o significado das palavras, como o das formas artísticas, aprende-se no seu

uso.11

Os estilos pertencem à esfera das qualidades, motivos e relações formais.

Seu caráter “fisionômico” favorece as abordagens sintomatológicas, permitindo

aos entendidos (críticos, apreciadores, historiadores, colecionadores, arqueólogos,

restauradores, estudantes, etc.) localizar e datar obras, fazer aproximações e

oposições estéticas, culturais, afetivas, etc., entre elas, diagnosticar motivos

10 Schapiro, 1994, pg. 51. Ver todo o capítulo, "Style", pgs. 51-101, para as diferentes

maneiras de conceber e usar o conceito de estilo.

11 Sobre "jogos de linguagem" e "semelhanças de família", cf. Wittgenstein, 1979,

parágrafos 64-81, p. 34-45.

psicológicos e sociológicos ocultos, estabelecer filiações de obras e autores;

sobretudo, desenvolver e testar hipóteses interpretativas, encontrar ou propor

significações plausíveis, ou justas, ou heurísticas para as obras.

Estar apto a perceber, classificar e apreciar as obras e os estilos que as

definem e identificam exige conhecimentos, aprendizagem, uma socialização à arte.

David Hume, que sabia que o gosto se forma e que é preciso treinar a percepção e a

imaginação para aprimorá-lo, propôs num dos Ensaios Morais, Políticos e Literários,

chamado Do Padrão de Gosto, um programa para desenvolver nas pessoas a

"capacidade de avaliar a católica e universal beleza" (Hume, 1973, p. 315-325).

Ele sentia a mesma dificuldade encontrada por outros contemporâneos de

encontrar ordem e coerência num tempo em que predominava "a extrema

variedade de gostos que há no mundo, assim como de opiniões". Na Europa em

mudança do seu tempo (século XVIII), uma intensa mobilidade social e geográfica

misturava povos, classes e culturas e os antigos padrões de gosto, de moral e de

verdade tornavam-se crescentemente problemáticos e incertos.

Como Kant, Hume também desacreditava do provérbio que diz que gosto

não se discute: "embora seja inegável que a beleza e a deformidade, mais do que a

doçura e o amargor, não são qualidades dos objetos, e pertencem inteiramente ao

sentimento, interno e externo, é preciso reconhecer que há nos objetos certas

qualidades que estão por natureza destinadas a produzir esses peculiares

sentimentos".

Ele não duvidava da existência e da validade de regras gerais da arte,

"certos princípios gerais de aprovação e censura, cuja influência um olhar

cuidadoso pode verificar em todas as operações do espírito." Tais regras,

descobertas por observação e experiência, são universais e atemporais e já eram

conhecidas por Homero, Virgílio, Ovídio e outros monumentos literários da

Antigüidade – que, por isso mesmo, "são ainda admirados em Paris e em Londres".

Numa época de transição de paradigmas de pensamento e de valores, ele

acreditava em princípios artísticos reconhecidos, oriundos daquela Tradição,

prestes a decair, inventada pelos romanos que, junto com ela, firmaram a noção de

autoridade dos maiores (seja em religião, seja em filosofia ou em artes).

Seu problema não era enunciar as belezas enumeráveis e classificáveis ou as

regras da sua construção, questões que acreditava resolvidas. Tratava-se de criar as

condições objetivas e subjetivas para a devida apreciação das obras de arte,

segundo o propósito de formar homens de gosto, pessoas que aprendessem que,

"para apreciar a força de qualquer beleza ou deformidade, precisam escolher o

momento e o lugar adequados, e colocar a fantasia na situação e disposição

devidas", para garantir "aquela delicadeza da imaginação" através da qual é

possível chegar ao juízo mais exato e correto.

Ele esboçou, segundo estes objetivos, os princípios de uma pedagogia

artística, em que o bom gosto seria o fruto da educação da sensibilidade, o

coroamento de uma atenciosa construção de si, tendo como coluna mestra o

convívio com "aquelas obras que sobreviveram a todos os caprichos da moda, a

todos os erros da ignorância e da inveja", que, "sempre, enquanto o mundo durar,

conservarão sua autoridade sobre os espíritos humanos".

Suas receitas e recomendações para formar e aprimorar o gosto

manifestavam o desejo e a dificuldade da pequena aristocracia rural e das camadas

médias burguesas, em ascensão social e econômica, de adquirir uma cultura –

artística, literária, filosófica – que não dominavam, ao contrário das velhas classes

aristocráticas com as quais viriam, doravante, se misturar no topo da pirâmide

social. Até certo ponto (mas só até certo ponto), o ensaio de Hume pertence à

família dos tratados e manuais do saber-viver, que proliferaram nesse período em

que as antigas maneiras de sentir e de se comportar mudavam profundamente, em

direção a um crescente controle dos indivíduos sobre si mesmos, sobretudo no que

diz respeito às relações interpessoais e às formas de apresentação de si e de

tratamento dos outros no convívio social.

As sociedades européias, à frente França e Inglaterra, passavam pelo

processo de civilização estudado por Norbert Elias (1973, principalmente caps. III, IV

e V, p. 77-245), vasto movimento de domesticação dos costumes, atitudes e

sentimentos (como, por exemplo, as maneiras corretas de se comportar à mesa, de

satisfazer as necessidades naturais, de vestir-se, etc.: enfim, o que se chamou então

de "etiqueta"), cuja mecânica era, em geral, o transplante de modelos de uma

unidade social para outra: seja a partir do centro para as posições periféricas (como

da corte de Paris para as outras cortes principescas), seja das camadas superiores

para baixo. Os modelos de comportamento, assim como os critérios de gosto,

criados e praticados pelas camadas dirigentes, eram adotados pelas inferiores,

espalhando-se por toda a sociedade.

A linguagem – seus usos e normas, inicialmente elaborados em círculos

fechados – ilustra esse movimento. As diferenças de linguagem, em qualquer

tempo e sociedade, traduzem e indicam infalivelmente as diferenças sociais; assim,

por exemplo, a corte francesa praticava uma linguagem que se distinguia da usada

pela burguesia, esta procurando copiar aquela, e aquela se distinguindo desta por

meio de uma estratégia de deliberada fuga para a frente: quando um termo ou

expressão "elegante" disseminava-se e se vulgarizava, era abandonado pela "boa

sociedade", caía de moda e era substituído por outro, cujas medidas de valor eram

a raridade e a exclusividade.

As noções capitais que fundavam as estratégias de distinção eram (e ainda

são) as de gosto, sensibilidade e delicadeza. Elias (1973, p. 161) comenta um tratado

francês de 1694, sobre o bom e o mau uso das maneiras de se exprimir,

diferenciando os modos de falar burgueses dos usados na corte: "'Só um pequeno

número de pessoas (...) conhece a delicadeza da língua': sua maneira de falar é,

pois, a única correta. O que os outros dizem não tem o menor interesse. São juízos

apodícticos. Apoiam-se sempre na mesma motivação: nós, homens da corte, que

pertencemos à elite, somos dotados de uma sensibilidade que nos permite

determinar a boa linguagem".

O gosto, em especial o gosto artístico, expressa e traduz as diferenças de

classe, ao mesmo tempo que serve como arma nas lutas entre elas, como disse

Pierre Bourdieu (1983, p. 82-90). A disposição estética que resulta do cultivo do

espírito pela frequentação do mundo artístico é, ao lado da competência

correspondente, a condição da apropriação legítima da obra de arte, sendo "uma

dimensão do estilo de vida no qual se exprimem, sob uma forma irreconhecível, as

características específicas de uma condição".12

A pedagogia humeana do gosto artístico, estratégia para a produção da

competência e da disposição estéticas requeridas de uma "pessoa cultivada", "de

gosto", desdobrava-se em três preceitos estreitamente interligados:

a. O treinamento da percepção. "Quando se trata de aperfeiçoar [a delicadeza

do gosto], nada é mais importante do que a prática de uma das artes e o freqüente

exame e contemplação de uma espécie determinada de beleza." Com a prática, o

"órgão [por exemplo, o olho] adquire maior perfeição em suas operações e torna-se

capaz de pronunciar-se, sem perigo de erros, sobre os méritos de qualquer

produção".

12

Não é necessário, para nosso argumento, que as características da condição social se

exprimam nas disposições estéticas de "forma irreconhecível". Bourdieu supõe sempre que o

poder simbólico – manifesto na aquisição e na determinação dos gostos – implica

"desconhecimento" (méconnaissance) por parte dos dominados. Como Thompson (1995),

pensamos que o poder simbólico, do qual as hierarquizações artísticas são um aspecto ou

momento, freqüentemente se apoia em crenças e valores compartilhados e cumplicidade ativa

entre os dominantes e dominados (em suma, nem toda legitimidade é um logro).

b. A comparação das excelências. Porém, "é impossível prosseguir na prática da

contemplação [da] beleza sem freqüentemente ser-se obrigado a comparações entre

os diversos tipos ou graus de excelência, calculando a proporção entre eles". Disso

resulta que "só quem está habituado a ver, examinar e ponderar as diversas

produções que foram admiradas em diferentes épocas e nações é capaz de avaliar

os méritos de uma obra submetida à sua apreciação, apontando o seu devido lugar

entre as obras de gênio".

c. O ponto de vista da obra. Enfim, não se pode ter preconceitos, porque "toda

obra de arte, a fim de produzir sobre o espírito o devido efeito, deve ser encarada

de um determinado ponto de vista, e não pode ser apreciada por pessoas cuja

situação, real ou imaginária, não seja conforme à que é exigida pela obra". Há

sempre um ponto de vista suposto pela obra, já que "toda obra de arte tem também

um certo objetivo ou finalidade para que é calculada, e deve ser considerada mais

ou menos perfeita conforme seja capaz de atingir essa finalidade".

Concluindo, "só o bom senso, ligado à delicadeza do sentimento, melhorado

pela prática, aperfeiçoado pela comparação, e liberto de todo preconceito, é capaz

de conferir aos críticos esta valiosa personalidade, e o veredicto conjunto dos que a

possuem, seja onde for que se encontrem, é o verdadeiro padrão de gosto e da

beleza".

MUNDOS DA ARTE

É necessária ao ponto de vista que estamos desdobrando e ao argumento

que visa responder à dúvida manifestada por Karl Marx a suposição de que só há

arte, desde gregos e romanos, porque há mundos da arte e que estes são realidades sócio-

históricas. A atividade de criação artística e a capacidade de apreciar obras de arte

não preexistem à invenção da arte, não são faculdades a priori do espírito, nem

necessidades, aptidões ou funções universais, dadas em toda cultura e sociedade.

Para haver arte, é preciso produzir, sustentar e justificar o interesse na sua

existência e a crença de que vale a pena fazê-la. A noção sociológica de "mundo"

supõe sentidos compartilhados, experiências comuns aos seus habitantes e

cooperação para produzir e manter funcionando alguma coisa em que acreditam.

Howard S. Becker (1982, p. 34) disse que os mundos da arte consistem em

todas as pessoas "cujas atividades são necessárias à produção das obras

características que aquele mundo, e talvez igualmente outros, definem como arte.

Os membros dos mundos da arte coordenam as atividades pelas quais o trabalho é

feito referindo-se a um corpo de entendimentos convencionais incorporados à

prática comum e em artefatos usados freqüentemente".

No ótimo Art Worlds, ele estudou a arte como conjunto de atividades: de

quem tem a idéia da obra e da forma que ela terá, de quem a executa, de quem

confecciona e distribui materiais e equipamentos, de quem levanta e aloca os

recursos requeridos, de quem trabalha nas atividades de apoio, etc. Atividades que

requerem treino, exigindo a aprendizagem de certas técnicas, nas ordens da criação

e da execução. Pela natureza dessas atividades, as variadas especializações

profissionais que lhes são próprias pedem expertise e inventividade, atributos

obrigatórios da competência técnica artesanal (corpo de conhecimentos e

capacidades) que está na origem da palavra "arte".

Cada um dos preceitos humeanos é essencial ao funcionamento dos

mundos da arte e à socialização a que submetem seus membros e os destinatários

presumidos das obras que produz. A começar pelo treinamento da percepção, que

é inseparável da formação da capacidade de distinguir e comparar, tanto no

sentido empírico quanto no lógico. Apreciar arte e determinar o que cada obra tem

de singular e de original depende da sensibilidade ao estilo, de ser capaz de

identificar, reconhecer, classificar e relacionar as obras e seus gêneros, de opor, de

aproximar, de relacionar.

O gosto, nesse sentido, é um tipo de conhecimento: o poder de observação é

indispensável à formação do gosto e vice-versa. O gosto interpreta, posto que o juízo

que o estabelece é, por um lado, um reconhecimento das qualidades formais de um

determinado objeto; por outro, é um interesse e uma perspectiva, um ponto de

vista sobre as coisas do mundo e da cultura, que as ordena segundo a prioridade

da forma sobre os demais aspectos.

Lévi-Strauss (1955, p. 82), comentando uma passagem do Pantagruel de

Rabelais, observou que faltava "à consciência do século XVI" uma qualidade

indispensável à reflexão científica: eles não eram sensíveis ao estilo do universo.

Pois a falta de gosto, segundo ele argumenta, conduz a erros de observação,

característicos das pessoas rústicas, que são, por exemplo, incapazes de distinguir

uma contrafação dum autêntico Botticelli.13

Mas, se é exato que a acuidade na observação favorece o gosto, não é certo

que faltasse à "consciência do século XVI" – afinal, o que denota esta expressão? –

sensibilidade ao estilo do universo. Naquele século, pintores e escultores, por

exemplo, aprimoraram em alto grau os meios de observação e de registro da

natureza, mirando o exemplo dos mestres da pintura e da escultura da

Antigüidade, cujos feitos, dotes e recursos emulavam. Compraziam-se em "estudos

do natural", estimulados pela recepção entusiasmada e cultivada – sobretudo nas

cidades do Renascimento italiano – dos aristocratas e dos burgueses enriquecidos

que reviviam, mais de mil anos depois, os públicos de arte gregos e romanos.

Tendência iniciada bem antes: nos séculos XIV e XV, observou Gombrich

13

À pg. 60 desta obra, ele enumera as qualidades "de finesse" indispensáveis ao

pesquisador de fenômenos aparentemente impenetráveis: "sensibilidade, faro e gosto".

(1993, p. 165; ver todos os caps. 11 a 14, p. 155-216), as idéias sobre as finalidades

da pintura já eram muito diferentes das idéias dos artistas do início da Idade

Média. "O interesse deslocara-se gradualmente da melhor maneira de contar uma

história sagrada, tão clara e vividamente quanto possível, para os métodos de

representação da natureza da maneira mais fiel possível". Leonardo da Vinci

resumiu esta orientação, frontalmente contrária ao sentido medieval da arte,

dizendo que "a pintura mais digna de elogio é a que apresenta maior semelhança

com a coisa que quer pintar", ponto de vista que predominaria na arte ocidental

durante os próximos quatro séculos.14

A atenção e o desvelo por "como as coisas realmente eram" constituíram o

estilo daquele século. Havia um compromisso com a verossimilhança, com o

respeito às aparências e ao modo de ser "verdadeiro" das coisas e dos

acontecimentos, que obrigou artistas e público ao exercício da objetividade na

percepção do mundo exterior. Assim como ao desenvolvimento dos instrumentos

técnicos que a possibilitassem (como a técnica da perspectiva, a pintura a óleo, a

câmara escura, etc.). Tal como os cientistas e os filósofos, os artistas procuravam,

com outros meios e intenções, espelhar a Natureza.

Do Renascimento em diante, tanto para os artistas quanto para o público,

identificar formas e estilos – das coisas do mundo e das obras de arte –,

estabelecer-lhes as genealogias e as ramificações, as semelhanças e os contrastes

tornou-se tão indispensável e revestiu-se tão exigentemente de obrigações de rigor

e de objetividade quanto, depois, na observação etnográfica dos grupos humanos

(aproximando os pesquisadores das ciências humanas mais dos connaisseurs

artísticos do que dos pesquisadores das ciências naturais e exatas, em geral).

A compreensão sem preconceitos do ponto de vista da obra e da intenção do

14

Citado por Panofsky, 1994, p. 46.

autor, outro preceito humeano, supõe o conhecimento, pelos receptores, dos

códigos e dos contextos dos usos lingüísticos inscritos na obra; supõe, portanto, os

processos de socialização que os diversos mundos da arte provêm, destinados a

criar nesses receptores as disposições, os interesses e as competências específicas

que favoreçam a desejada correspondência entre a obra e seu público potencial.

Esta correspondência exige o que a lingüística chama de possibilidades

preconcebidas. Numa comunicação eficiente, emissor e receptor compartilham um

vocabulário, um repertório de signos e significações e um ou mais códigos,

entendendo-se estes como sistemas de classificação de possibilidades pré-

fabricadas. Mutatis mutandis, no caso das obras de arte, autores e receptores devem

compartilhar, até onde for possível, códigos, vocabulários e repertórios.

Ora, é transparente que, como diz Eco (1979, p. 158), “um código, como um

idioma, com todas as suas possibilidades de dar lugar a mensagens decifráveis por

parte de receptores, pressupõe uma comunidade de que fazem parte, pelo menos

no momento em que a mensagem é emitida, tanto quem emite como quem recebe.

O recurso a convenções comunicativas se baseia na existência de uma koiné."15

Em conseqüência, o receptor já está previsto na obra de arte: esta deve ser

entendida como um dispositivo construído para produzir seu receptor-modelo,

aquela pessoa que a recebe e aprecia (lê, interpreta "sem preconceitos", "conforme o

que exige a obra", como diria Hume) tal como foi concebida para ser recebida e

apreciada (Eco, 1995, cap. 1, especialmente p. 11-19).16 É tarefa fundamental dos

mundos da arte dotar os receptores com as competências de decifração,

15

A koiné era o dialeto comum às várias polis gregas.

16 Estudando somente a interpretação de discursos verbais, Eco usa neste livro os

conceitos de "texto" e de "leitor-modelo". Estamos, obviamente, estendendo estas noções a todo

tipo de obra e de relação de fruição artística.

entendimento e apreciação que as obras requerem.

As artes são, como disse Gerhart Wiebe (1963, p. 38), edifícios estético-

intelectuais construídos ao longo do tempo. "A cada geração, os homens de talento

se formam pelo estudo e pela contemplação das obras realizadas, nos tempos

precedentes, por aqueles que se reconhece como mestres. Nutrido numa tradição,

um artista não deseja mais nada além de ganhar um lugar entre os mestres cujas

obras constituem essa tradição. A tarefa a que ele se vota é a de adicionar uma

contribuição nova, original e de valor a esta corrente grandiosa".

Acredita-se em geral que a criação artística exige dons e talentos raros, que

alguns possuem mais do que outros, cabendo aos receptores descobrir e

reconhecer tais virtudes, para melhor saborearem as obras que as expressam e

incorporam: só inspecionando as obras de arte pode-se saber se foram, ou não,

feitas por alguém "incomum". Decorre dessa crença o postulado da essencialidade

da atividade do criador de obras de arte e da exclusividade do seu direito ao título

de artista. Um atributo essencial de todo artista é ter um estilo próprio, que é como

que o signo da sua identidade e uma medida da sua capacidade e do alcance de

sua realização.

A candidatura de vários aspirantes à qualificação de artista leva a

competições motivadas pelas recompensas associadas; disputa-se nessa arena o

reconhecimento concedido pelo público relevante. Esse público relevante é variável:

depende, em cada sociedade, dos graus e tipos de prestígio da arte em questão,

assim como da autonomia desfrutada pelo mundo artístico em consideração17 – ou

seja, da capacidade de seus integrantes estabelecerem as próprias normas e

17 Os diferentes mundos da arte são, numa mesma sociedade e tempo histórico,

diversamente autônomos, ou independentes: o grau de autonomia de cada um depende de vários

fatores, sobretudo da capacidade dos seus integrantes promoverem e legitimarem os valores

estéticos e a tradição específica da arte que praticam.

critérios de classificação e avaliação estéticas. 18 Quanto maiores a autonomia e o

prestígio cultural de um mundo da arte, mais o público relevante tende a ser

formado apenas pelos pares e concorrentes do artista (isto é, outros artistas), além

de um grupo limitado de connaisseurs, críticos, etc.

Artistas buscam o que Bourdieu (1982, p. 111) chamou de “distinções

culturalmente pertinentes”, ou seja, temas, técnicas e estilos dotados de valor na

economia específica da sua arte. A dialética do refinamento é “o princípio do esforço

que os artistas desenvolvem a fim de explorar e esgotar todas as possibilidades

técnicas e estéticas de sua arte, em meio a uma pesquisa semi-experimental de

renovação”, que está no âmago da dinâmica dos mundos da arte. É, aliás, o que

torna possível a história da arte como pesquisa de uma tradição e das rupturas que

se dão dentro dela.19

Mundos da arte criam e compartilham convenções que dão sentido às

práticas dos seus membros e coordenam as ações entre eles. Em torno das

convenções dão-se as tensões fundamentais que atravessam esses mundos, lutas de

definições quanto a valores e a hierarquias (de autores, de estilos, de técnicas, de

obras) e suas legitimações, inseparáveis dos esforços de cada artista para obter o

próprio reconhecimento. Lutas mais sobre maneiras de fazer, sobre a forma do

objeto artístico do que sobre "as coisas ditas" e "o quê da representação". Através

18

Não podemos desenvolver este tópico aqui, mas deve-se lembrar que as reivindicações

de autonomia da arte apoiam-se, sobretudo, na crença de que a arte só exprime ela mesma e não

alguma coisa que lhe é exterior. A obra de arte não é um veículo para um outro discurso, que ela

traduziria; ela reclama, portanto, uma auto-suficiência semântica. Cf., a respeito, o que dizia

Ludwig Wittgenstein no Caderno Azul (citado em Chauviré, 1991, p. 71), assim como Francastel,

1982, Introdução, p. 1-18.

19 Cf. também Gombrich, 1986, sobretudo a Introdução, p. 3-24, sobre as condições para

uma história da arte.

dessas lutas de definições se faz a história das obras como história das suas

interpretações.

As convenções em vigor, em cada mundo da arte e a cada tempo,

determinam padrões de desempenho profissional, relativos à forma artística, ao

uso dos equipamentos, aos modos institucionais de comunicação, etc., cujo efeito é

regular a cooperação no trabalho. Elas abreviam tomadas de decisão, provêm

signos codificados para a transmissão de idéias e pontos de vista, estabelecem "leis

de gênero", enfim, resumem um saber comum que é, ao mesmo tempo, memória de

alternativas de soluções de problemas e repertório de vocabulários compartilhados

e de esquemas de formação de objetos artísticos – esse saber é a tradição

conservada em códigos, narrativas e rotinas.

Convenções tendem a se desdobrar em justificações do mérito e do sentido

das obras, sob a forma de argumentações estéticas que fornecem, tanto aos

participantes quanto ao público externo, razões para o que se faz. Princípios,

argumentos e juízos estéticos integram o corpo de convenções através dos quais os

membros dos mundos da arte agem em conjunto. Elaborá-los é tarefa de críticos e

estetas: eles constróem sistemas "com os quais se fazem classificações ["belo",

"artístico", "ruim", "incorreto", etc.] e as instâncias específicas das suas aplicações.

Esses juízos produzem reputações para obras e artistas".20

Um dos usos da sistematização estética explícita é ligar as atividades dos

integrantes de um mundo da arte à tradição desta arte, justificando demandas por

20

Becker, 1982, p. 131. Não só estetas fazem avaliações estéticas: a maioria dos membros

dos mundos da arte as faz correntemente em seu trabalho, por exemplo, ao escolher quais

recursos formais ou técnicos usar em cada circunstância e como fazê-lo. Tais pequenas escolhas,

em geral coerentes entre si (uma coerência previamente dada, semiconsciente), raramente

referem-se a teorias estéticas sistemáticas e abstratas, derivando antes do saber prático da

profissão, sob a forma de regras-em-uso.

recursos e vantagens, materiais ou políticos, institucionalmente disponíveis e

distribuídos por agências de governos, empresas e mecenas. Outro uso é guiar

pequenas decisões cumulativas na prática dos ofícios artísticos, principalmente

quando elas assumem caráter polêmico e anti-convencional. Por outro lado, uma

estética coerente fornece uma base para a avaliação de obras e procedimentos,

viabilizando ideologicamente o sempre problemático processo de conversão do

valor estético em valor econômico, um clássico dilema associado, sobretudo, ao

mito do gênio artístico.21

Assim, o valor estético emerge do consenso entre os participantes do mundo da arte.

Não havendo consenso, não há valor: uma obra é entendida como boa e valiosa

quando, nas avaliações dos juízes autorizados (pares, críticos, entendidos, etc.),

satisfaz os princípios estéticos dominantes, em cujas bases deve ser julgada. A falta

de consenso dá lugar a discussões teóricas e disputas pela alocação de recursos

escassos. Havendo competição, críticos e estetas devem prover teorias e

interpretações para o reconhecimento de escolas e estilos particulares e para

convencer outros participantes que uma dada obra merece ser incluída nas

categorias que concernem este mundo (cf. Becker, 1982, p. 134-135).

Ao estudar um mundo social, diz Becker (1982, p. 36), é capital ver "quando,

onde e como os participantes traçam as linhas que distinguem o que querem que

seja tomado como característico [deste mundo] daquilo que não deve [sê-lo].

Mundos da arte devotam atenção considerável às tentativas de decidir o que é e o

que não é arte e quem é e quem não é um artista. Observar como um mundo da

arte faz isso nos permite entender muito do que acontece [nele]".

21 Estando acima do mundo das convenções e necessidades materiais "ordinárias",

movido apenas pelo impulso incontrolável de criar, dotado de dons e qualidades

extraordinárias, o "gênio" tem dificuldades notórias para justificar a valorização econômica

do seu trabalho.

As interações entre os membros de um mundo da arte produzem um senso

compartilhado do valor do que fazem coletivamente. "A apreciação mútua das

convenções compartilhadas e o apoio que se dão uns aos outros os convencem de

que o que fazem vale a pena. Se eles agem segundo a definição de „arte‟, suas

interações os convencem de que o que fazem são obras de arte válidas"(Becker,

1982, p. 39).

Os mundos da arte, em resumo, criam e mantêm a efetividade dos

interesses, pontos de vista, valores, convenções e práticas que caracterizam e

tornam possíveis esses mundos produzindo a crença de que vale a pena fazer e

apreciar arte. A causalidade é circular: esta crença, por sua vez, só se sustenta e se

torna evidente através das práticas de apreciar e de fazer arte, práticas que,

justamente, pressupõem a existência e a efetividade dos mundos da arte.

A TRADIÇÃO DO OCIDENTE

O "problema dos gregos" não é para ser resolvido, mas dissolvido. O prazer

artístico, as emoções sutis e o enriquecimento espiritual experimentados por Marx

com a arte e a épica gregas eram as do homem cultivado que, além de economia,

filosofia e história, estudou o seu tanto de estética e história da arte. Este produto

refinado da universidade alemã e da erudição rabínica podia desfrutar a leitura de

Sófocles, Homero e Aristófanes da "maneira certa" por haver herdado da sua

família e da sua classe o capital cultural comum aos homens da sua condição e do

seu tempo.

O refinamento do gosto estético, ao qual, no Ocidente, sempre foi

indispensável a familiaridade com os gregos, resulta de uma aprendizagem

prolongada e difícil, mas prestigiosa. A satisfação de penetrar nos segredos e

belezas dos clássicos, hoje tão remotos para nós, está associada às recompensas

simbólicas que isto proporciona. Lemos e contemplamos obras de arte clássicas

porque elas nos aparecem consagradas pela autoridade e pela tradição, pelo

reconhecimento universal do seu valor e excelência: pois elas são o fundamento do

Cânone Ocidental. O prazer e a sabedoria que nos propiciam só advêm mais tarde,

como um prêmio diferido, depois de desenvolvermos as competências e a

sensibilidade que elas ao mesmo tempo pressupõem e criam em nós.

Se a Tradição erudita permite às pessoas cultas do Ocidente serem o que são

e assim, "desbarbarizando-se", se distinguirem, as atividades deles são as

condições materiais e espirituais da continuidade e da reprodução desta Tradição e

da autoridade que ainda hoje ela desfruta. Destas atividades – os trabalhos dos

artistas, as pesquisas e as restaurações dos historiadores e dos peritos, o ensino nas

escolas de música, belas artes, letras, etc., a preservação e as exposições em

museus, a frequentação dos amantes da arte, as publicações especializadas, os

patrocínios dos mecenas, governos, fundações e empresas, etc. – resultaram, desde

o Renascimento italiano, a retomada, a continuação e o aprofundamento da

herança dos Antigos.

Esse é, hoje e nos tempos de Marx, Kant e Hume, o mundo do "homem de

gosto", feito de um presente de pessoas, eventos, objetos e instituições e de um

passado de obras, interpretações e saberes preservados. Ser "cultivado" é o mesmo

que conhecer esse passado na conexão com o presente e saber achar os caminhos e

as passagens no vasto edifício da arte, ser capaz de distinguir com critério o melhor

do pior, de identificar com justeza o belo e disto tirar saber e prazer, ditos estéticos

– o que equivale a dominar o "código dos códigos", como diz Bourdieu.

O interessante, então, não é perguntar por que os gregos ainda são um

modelo para nós, nem como e por que eles foram possíveis no seu tempo. O

interessante é perguntar como se pôde, na aurora grega da cultura, fazer da beleza

um princípio de avaliação e de conhecimento das coisas, das pessoas e dos

acontecimentos, como o desejo de arte pôde ocorrer e criar para si um mundo, como

a crença de que é importante e valioso fazer e apreciar arte pôde apoderar-se de

algumas pessoas, ser transmitida a outras e criar para si uma Tradição.

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WOLFF, Janet. A Produção Social da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

1982.

RESUMO

Como se formam os gostos artísticos? Como se justificam os juízos estéticos?

Partindo do "problema dos gregos", de Marx, examinamos os processos histórico-

sociais que levaram à constituição dos mundos da arte e as condições sociais que

tornam possíveis e legítimos os prazeres e as valorizações artísticas.

ABSTRACT

How are artistic tastes shaped? How are esthetical judgements justified?

Beginning with Marx's "problem of the Greeks", the socio-historical processes that

gave birth to the art worlds and the social conditions of possibility and legitimacy

of artistic pleasures and valorizations are examined.

Ronaldo de Noronha é Professor Adjunto do Departamento de Sociologia e

Antropologia da Fafich/UFMG.