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A FORMAÇÃO SOCIAL DO BRASIL E SUAS “CEGUEIRAS” DE GÊNERO
Lidiany Alexandre Azevedo1
RESUMO A mulher costuma aparecer, dentro da historiografia clássica, na “condição de não-sujeito”, destacando-se sua condição de inferioridade e submissão. Esses traços relevam a construção de uma sociedade e um Estado patriarcal em nosso país. Este artigo objetiva refletir sobre as condições de origem, permanência e atualização do patriarcado, destacando a esfera da representação política. A partir de dados de fontes oficiais, legislações e normatização de politicas públicas, visualizamos que a dominação e exploração sobre as mulheres têm conseguido se atualizar ao longo da história de nosso país, mesmo com os avanços que alcançamos nos direitos das mulheres. Palavras-Chave: Gênero; Formação Social do Brasil; Participação Política
Abstract The woman usually appears, within the classic historiography, in the "condition of non-subject", emphasizing its condition of inferiority and submission. These traits reflect the construction of a patriarchal society and state in our country. This article aims to reflect on the conditions of origin, permanence and updating of patriarchy, highlighting the sphere of political representation. Based on data from official sources, laws and normatization of public policies, we have seen that the domination and exploitation of women have been able to update throughout the history of our country, even with the progress that we have achieved in women's rights. Keywords: Genre; Social Formation of Brazil; Political Participation
1 Psicóloga. Mestranda em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará
– UFC. [email protected].
I. INTRODUÇÃO
A historiagrafia clássica, assim como as obras sobre a formação do Brasil,
majoritariamente, “negam” as mulheres. Quando essa aparece é colocada na “condição de
não-sujeito”, devido a naturalização de sua inferioridade e submissão. E assim, temos a
forte presença do patriarcado representado nessas obras.
Observamos que o patriarcado, aqui entendido como sistema de dominação
masculina, prevaleceu nas estruturas societais. Esse patriarcado também se apresenta no
Estado, permanecendo ao longo de nossa história, pois tem tido a capacidade de se
reinventar e se adequar as transformações sociais, políticas e econômicas das sociedades.
As tentativas de mudança dessa realidade - os traços patriarcais de nossa
sociedade e Estado - por meio do reconhecimento e da busca do fim das desigualdades
entre homens e mulheres também têm feito parte de nossa história, principalmente do Brasil
Contemporâneo, encampada pelos movimentos de mulheres e feministas, e materializadas
na construção de políticas públicas para as mulheres. Assim, não só passamos a enxergar
como nomeamos o que até então era invisível, inserindo esse problema nos debates
públicos e na esfera política. Veremos que alcançamos algumas conquistas, mas até que
ponto buscamos e conseguimos verdadeiramente promover a autonomia e cidadania das
mulheres?
A partir dessas questões, este artigo tem o objetivo de refletir sobre as
condições de origem e permanência, enquanto herança que se arrasta desde o período
colonial, bem como a atualização do patriarcado por meio de suas manifestações
contemporâneas, destacando a esfera da representação política.
Para isso, faremos uma breve discussão sobre o processo de formação social,
econômica e política do Brasil, enfatizando as raízes das desigualdades de gênero. Em
seguida analisaremos os governos de cunho progressistas e as conquistas e os obstáculos
desse período. Por fim, pontuaremos a atual conjuntura e as possibilidades de desmonte e
retrocessos já sinalizadas.
II. O PROCESSO DE FORMAÇÃO SOCIAL, ECONÔMICA E POLÍTICA DO BRASIL: AS
MULHERES E AS RAÍZES DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO
A história do Brasil foi construída por diversos atores e sob distintas influências,
mesmo que muitos desses personagens sejam “esquecidos” pela historiografia tradicional,
como é o caso das mulheres. Para compreendermos o porquê desse “esquecimento” e a
construção de luta das mulheres por seus direitos, precisamos resgatar nossa história e
buscar reconstruir a gênese e manutenção da articulação que aqui se deu entre o
patriarcado, o Estado e alguns aspectos de nossa herança colonial.
Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Gilberto Freyre
caracterizam a estrutura da sociedade colonial: uma sociedade rural, patriarcal,
monocultora, escravocrata e com o poder centrado nas mãos dos senhores de engenho. O
engenho era uma estrutura completa, funcionando como uma micro sociedade, na qual o
patriarca dominava tudo e todos que ali existissem. Nesse contexto, a mulher era vista como
“propriedade” dos homens e, por consequência, também submetida “as suas leis”. A
exigência de submissão, recato e maleabilidade era colocada, de forma incontestável, às
mulheres que, por consequência, tinham um estereótipo ligado ao âmbito do doméstico,
espaço privado, sendo suas tarefas o cuidado com a casa, filhos e marido.
É evidente que numa sociedade que se inicia com um modo de trabalho
escravocrata e com a concentração de terras nas mãos de poucos, tem-se a formação de
uma estrutura de desigualdades sociais. Portanto, havia exceções para esse modelo de
mulher tão perpetuado na historiografia tradicional, que precisava trabalhar e, desta forma,
adentrava o espaço público, destinado aos homens (NADER, 2005). No entanto, no período
colonial, mesmo essas mulheres que adentraram ao espaço público como uma forma de
sobrevivência econômica não tinham a possibilidade de expressar suas ideias. O controle
dos homens era irrestrito, ou seja, atingia todos os aspectos da vida das mulheres: em casa,
desde a infância pelo pai; o ideológico que era perpetuado pelo ideal de recato e pela
ausência de instrução; e a escolha do marido, a qual estaria submissa pelo resto de sua
vida, ou seja, a mulher saia do controle do pai para se submeter ao controle do marido.
Alcançamos a independência de nosso país (1822), criando um Estado; mais a
frente abolimos a escravidão (1888), mexendo com uma das bases do sistema colonial, e
estabelecemos uma república (1889), uma “democracia”, formada sem o povo e marcada
por uma forma de governar que promovia a exclusão social. No entanto, o que tivemos,
como afirma Coutinho (2008), foram revoluções pelo alto, em que a aristocracia rural tomou
o poder e o Estado. Portanto, apesar das transformações na organização do Estado,
mantivemos a estrutura sociopolítica e econômica brasileira, ainda definida por meio de
nossas bases coloniais. De acordo com Molyneux (2008) “na passagem do „patriarcado
colonial para o contratualismo liberal, a autoridade e o privilégio masculinos seguiram
predominando nas esferas pública e doméstica” (p. 30).
Como consequência de um estado que anteveio a uma nação, tem-se a
Revolução de 1930. De acordo com Coutinho (2008) foi a partir de 1930 que adentramos na
modernidade, mais especificamente a consolidação da entrada do Brasil no modelo
capitalista. Todavia, nossos “velhos” setores e atores não foram destruídos nem se
transformaram para a geração dos “novos”. Assim, mesmo com a entrada do Brasil no
capitalismo e sua nascente industrialização as mudanças de ordem econômica, social e
política não se configuraram em verdadeiras transformações. As mulheres continuaram sem
direitos civis e políticos, surgindo daí um dos primeiros movimentos de mulheres, o
movimento sufragista.
Observa-se um abrandamento do “enclausuramento” doméstico das mulheres
com o surgimento das cidades, a urbanização e industrialização do país, e sua entrada no
mundo do trabalho “formal”. No entanto, permanecem fortemente a ideologia de submissão
da mulher e seu vínculo com as atividades ligadas ao cuidado. Assim, as mulheres são
“presenteadas” com uma jornada cumulativa dos afazeres domésticos com o serviço nas
fábricas precisam lutar para poderem participar dos sindicatos e fazer com que eles
englobassem suas demandas por salários iguais e direitos políticos. Compreende-se assim
que o desenvolvimento, com a consequente distinção entre os eixos urbano e rural,
configura-se em uma das primeiras transformações do patriarcado.
O golpe militar de 1964 põe fim a nossa embrionária democracia e exclui
progressivamente as camadas populares de qualquer tipo de participação ou representação
política. Todavia os anos de repressão acabaram por gerar a composição e o fortalecimento
de diversos movimentos sociais, os quais se uniam na luta pela democracia e pelos direitos
políticos e sociais, dentre esses, os movimentos de mulheres e feministas. Com a definição
de que o pessoal é político:
[...] as feministas procuraram desvendar a multiplicidade de relações de poder presentes em todos os aspectos da vida social e isto as levou a tentar agir nas mais diversas esferas. Em termos teóricos, elas trabalharam com a ideia global e unitária de poder, o patriarcado, numa perspectiva em que cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como uma relação política (PISCITELLI, 2004, p. 47).
Esse movimento de redemocratização impulsionou o movimento feminista a
fazer crítica em relação ao Estado e nessa arena que se constituiu entre o Estado e esses
movimentos, temos uma conquista, que se configura como um divisor de águas nas lutas
feministas: a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, que
se configura na primeira experiência de institucionalização das demandas dos movimentos
de mulheres.
No ano que antecedeu a Assembleia Nacional Constituinte, 1987, os
movimentos de mulheres, movimentos feministas e o CNDM, em articulação, realizaram
uma grande mobilização com o objetivo de garantir que as reivindicações das mulheres
fossem incorporadas à Constituinte. Durante todo o processo da Constituinte, esse
movimento atuou diretamente no convencimento dos parlamentares acerca de suas
demandas, contando com o apoio da bancada feminina, ação que ficou conhecida como
“lobby do batom” e que conseguiu aprovar em torno de 80% de suas solicitações, sendo a
esfera organizada da sociedade civil que conseguiu mais conquistas.
Apesar dessa forte presença das mulheres nos movimentos sociais, não
havíamos conseguido conquistar uma legitimidade política. Algo que pode ser visualizado
pela presença das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte, com apenas 26
parlamentares do total de 520, cabendo destacar ainda dois fatores: 1) as parlamentares
tinham uma melhor representação, em termos proporcionais, nos partidos de menor força e
2) muitas das eleitas adentraram nesse espaço a partir do prestígio político dos homens de
sua família. Realidade similar encontramos nas centrais sindicais2 (COSTA, 2005).
No entanto, os anos 1990 vêm na contramão do Estado democrático e na
construção ampliada de cidadania, incluindo aqui as políticas sociais de perspectiva
universal e redistributiva, que vinha se realizando. O Estado brasileiro passa a adotar os
princípios neoliberais, assumindo a perspectiva de um Estado Mínimo, com a oferta de
políticas focalizadas e compensatórias, atingindo em cheio as conquistas expressas na
Carta Magna de 1988 dos movimentos organizados da sociedade civil. Para as mulheres,
que iniciavam um processo de ganho de espaço na agenda política, o modelo de Estado
adotado foi ainda mais devastador, com o desmonte do CNDM no governo Sarney e a perda
de sua autonomia administrativa e financeira no governo de Collor. Apenas em 2002, em
decorrência da pressão das redes nacionais dos movimentos feministas e de mulheres,
conseguimos um pequeno avanço, com a criação, no segundo governo de Fernando
Henrique Cardoso, da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (2002), subordinada ao
Ministério da Justiça, porém sem atribuições e estrutura bem delimitadas.
III. NOVOS ESPAÇOS, NOVAS ARTICULAÇÕES?
Em 2003 tem início o governo de Luís Inácio Lula da Silva, que se apresenta
durante a campanha como um governo de esquerda e progressista. No entanto, a política
econômica adotada não muda, mantendo-se obediente aos credores internacionais e aos
ditames da política neoliberal (PAULANI, 2012). Num modelo de “crescimento com
inclusão”, visualizamos uma pequena parcela do fundo público sendo investida em políticas
sociais, das quais destacaremos aqui as políticas direcionadas as mulheres.
No primeiro dia do governo do presidente Lula foi criada a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres (SPM), subordinada ao gabinete da presidência, tendo status de
Ministério e as funções de assessorar o Presidente da República na formulação,
2 No ano de 1988, mais de 25% dos filiados eram mulheres, porém, nem 10% conseguiam ser eleitas
para a Direção Nacional e somente uma alcançou a Executiva nacional.
coordenação e articulação de políticas para as mulheres e na elaboração de ações que
busquem à promoção da igualdade (BRASIL, 2003). O CNDM passa a fazer parte da SPM,
como um órgão de caráter consultivo e contando com representantes da sociedade civil, que
foram indicadas pelos movimentos feministas e de mulheres, e do governo.
Compreende-se que com a criação da SPM, pela segunda vez na história do
país, o governo assume a postura de construir políticas públicas específicas para mulheres,
dando igual relevância a transversalidade de gênero por meio do incentivo de ações para
mulheres nos distintos órgãos governamentais e na elaboração de um planejamento para
programar a transversalidade em todas as políticas do governo. Assim, a SPM representa
um avanço, pois funcionaria como uma impulsionadora e articuladora dessa nova
institucionalização.
A partir daí temos uma série de ações que buscam garantir e efetivar os direitos
das mulheres, destacando-se: as Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres
(2004, 2007, 2011); os Planos Nacionais de Política para as Mulheres (2004, 2008 e 2013);
a Lei 11.340/2006 - Lei Maria da Penha; o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres (2007); a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres (2011); e recentemente, a lei do Feminicídio (13.104/2015).
Também tivemos ganhos com outras políticas do governo que passaram a
privilegiar as mulheres como beneficiárias, tendo-as como público prioritário, como o Bolsa
Família; o Minha Casa Minha Vida; o PRONATEC; o Programa de Aceleração do
Crescimento, que inclui no conjunto de investimentos a construção de novas creches, e a
minirreforma eleitoral3, que exigiu que os partidos políticos ocupassem um mínimo de 30%
das vagas com candidaturas de mulheres e que um mínimo de 5% do Fundo Partidário seja
direcionado a programas que busquem à participação política das mulheres. Outro
progresso foi o crescimento do número de secretarias e diretorias para as mulheres nos
estados e municípios, ainda que de forma desordenada.
Reconhecemos que esses governos avançaram bastante na garantia de alguns
direitos para as mulheres, reconhecendo o papel fundamental do Estado nesse processo,
por meio de ações e políticas públicas. Entretanto, apesar da criação da SPM e da
construção de políticas específicas para as mulheres podemos identificar que o Estado não
superou a cultura política patriarcal e neoliberal. Assim, visualizamos na gestão pública
distintas formas de relação do Estado com as mulheres, perpetuando atuações
contraditórias. A ordem jurídica, por exemplo. Até 2002, quando temos a aprovação do Novo
Código Civil (Lei 10.406/2002), tínhamos de um lado os parâmetros igualitários da
Constituição de 1988, bem como os tratados internacionais de que o Brasil era signatário, e
3 Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015.
de outro um Código de 1916, que privilegiava o ramo paterno, autorizando o lugar de
subalternidade da mulher dentro do casamento civil. O Código Penal vigente no referido
período, que foi modificado apenas pela Lei nº 11.106/2005, extinguia a punição do
estuprador caso esse se casasse com a vítima ou essa se casasse com outra pessoa e não
afirmasse o desejo de prosseguir com um processo penal, além de usar o conceito de
mulher honesta e criminalizar o adultério, que culturalmente foi usado contra as mulheres na
justificativa dos mais diversos crimes direcionados a elas.
Esses anacronismos e contradições do Estado brasileiro também estão
presentes nas políticas públicas. Vejamos, por exemplo, a Política de Assistência Social. A
PNAS/2004 reconhece os diferentes arranjos familiares, não existindo a legitimação de
nenhum modelo familiar, no entanto constrói suas ações com atenuada preocupação com “a
produção e reprodução das relações familiares”. Visualiza-se o reforço a determinadas
funções de família associadas predominantemente às mulheres, que são inclusive sugeridas
como ocupantes prioritárias da função de Responsável Familiar para o Cadastro Único.
Dessa forma, permanece fortemente a ideia da divisão sexual do trabalho. Mesmo com
todos os avanços e a presença cada vez maior das mulheres nos mais diversos espaços,
essa é a ideia ainda presente, mesmo que de forma sutil e camuflada, nas intervenções
estatais, sendo, por isso, as políticas de família enfocadas preferencialmente nas mulheres.
Porém, essa posição não é exclusiva da política de assistência social, fazendo parte de
outras políticas sociais brasileiras, como a saúde e a educação.
A política de mulheres por meio da “transversalidade de gênero” tem como
objetivo a modificação das condições de vida da mulher de uma forma global, portanto, deve
ser assimilada por todas as políticas públicas, que ao planejar suas ações, devem se
questionar se elas são capazes de melhor a condição de empoderamento das mulheres. No
entanto, o que visualizamos é que tem se usado expressão “políticas para mulheres” para
subsidiar uma variedade de práticas políticas que são orientadas por distintas concepções
de Estado e de políticas públicas. Assim, por trás dos significados dados a expressão temos
uma disputa, a qual o movimento de mulheres e feministas tem que participar a fim de que
não seja desqualificada sua proposta.
IV. PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES
A partir das reflexões trazidas até aqui, damos destaque neste artigo ao campo
da política (entendido aqui como ocupação de espaços de poder e decisão), devido ao
pouco avanço que se teve nele, mesmo com a criação da SPM.
Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, divulgada pelo
IBGE em 2013, indicam que viviam no Brasil 103,5 milhões de mulheres (51,4% da
população). De acordo com dados da edição de junho da pesquisa Estatísticas de
Eleitorado, publicada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as mulheres representam 53%
do total de 146.470.880 eleitores do país. No entanto, essa pequena superioridade não se
mantém, nem mesmo se alcança a igualdade, quando fazemos o recorte de ocupação dos
espaços de representação política.
Levantamento realizado por Luna (2016) demonstra que nos últimos 16 anos, o
Congresso teve, em média, apenas 10% de mulheres ocupando suas cadeiras, com cerca
de 8% na Câmara e 12% no Senado. Atualmente, são 54 deputadas federais (10,53%) de
um total de 513 e 13 senadoras (16%) entre as 81 cadeiras do senado federal. Olhando os
números e comparando com os de outros países da América Latina, veremos que nesse
ranking regional, o Brasil só fica a frente, em representação feminina no parlamento, do
Haiti, país que desde 2015 não tem representatividade feminina nenhuma na câmara
federal.
Mesmo com uma baixa representatividade no Legislativo desde a
redemocratização do país, as mulheres estão à frente de 35% dos projetos de leis, projetos
de leis complementares e propostas de emenda à Constituição que buscam promover os
direitos femininos desde a Constituição de 1988. Já os projetos vistos como retrocesso aos
direitos das mulheres contam, todos, com a autoria de homens (LIBÓRIO, 2016).
Em 2016, tivemos a segunda disputa em nível municipal depois da vigência da
Lei das Eleições, que determinou uma cota de ao menos 30% para candidaturas de cada
sexo. Pesquisa realizada pela Revista Gênero e Número (2016), ao fazer um recorte de
candidatos por gênero sem voto nas eleições de 2008, 2012 e 2016, mostra-nos que houve
um aumento de candidaturas femininas, mas isso não alterou o cargo de eleitas.
Observamos que os partidos políticos criaram a estratégia de lançar candidatas fantasmas,
ou seja, que entram em chapas eleitorais, porém não disputam, pois não fazem campanha,
não tem apoio e nem sequer votam em si.
Esses dados nos mostram que mesmo com a lei de cotas não alcançamos
avanços significativos na representação feminina no legislativo, fato que tem relação com a
histórica minoria feminina nas estruturas dos partidos políticos e sindicatos, principalmente
nos diretórios e executivas nacionais (dados que não podemos trazer devido a
desatualização dos mesmos na base do TSE). Além disso, o que pudemos observar é que
os partidos têm encontrado meios para burlar a legislação por meio da falta de critérios e
transparência no convite a candidaturas.
No Executivo – no que se refere aos Ministérios – o primeiro mandato de Dilma
Rousseff, foi o melhor momento para as mulheres quando foi mantido um percentual acima
de 20%, nos 38 Ministérios havia dez Ministras (MAZOTTE, 2016). No entanto, essas
mulheres conduziam os ministérios de menores recursos financeiros4 e pessoais5, mesmo
que alguns tivessem uma forte influência política, como a Casa Civil, a Secretaria de
Relações Institucionais e o Ministério do Planejamento. Adentrando um pouco mais na
estrutura dos ministérios, veremos que essa “boa” realidade não se mantém: dos 38
secretários executivos apenas sete eram mulheres; somente 30% dos cargos de alta chefia
dos ministérios eram ocupados por mulheres (de um total de 2400, 1700 eram ocupados por
homens); tão somente 3 das 120 empresas estatais eram chefiadas por mulheres e nas
agências reguladoras, de um total de 10, apenas uma tinha uma mulher a sua frente
(GUIMARÃES, 2012).
Podemos perceber que nos ministérios também temos a maciça liderança
masculina. Excetuando-se Dilma, todos os nossos outros presidentes foram homens que
indicaram outros homens com perspectivas político, econômicas e sociais semelhantes,
inclusive quanto a “cegueira” de gênero nas políticas públicas, principalmente as que
permitem um maior poder e representatividade às mulheres. Além disso, sabemos da
importância de criar e manter a diversidade de pontos de vistas em espaços de tomada de
decisão, garantindo um saudável conflito a fim de garantir a construção de políticas públicas
que atendam as necessidades da população.
Dentre os três poderes, é no Judiciário que encontramos uma menor
discrepância na participação feminina, apesar da pouca representatividade das mulheres
nos Tribunais Superiores (18% das vagas nas cinco mais altas cortes).
Todo o resgate histórico da luta por direito das mulheres e suas conquistas, bem
como os dados abordados neste texto nos revelam que mesmo em contexto mais
favoráveis, em governos que investiram um pouco mais em políticas sociais o que ainda se
sobressai é a execução de políticas para mulheres confinada a uma secretaria ou conselho,
que não consegue influenciar o governo de uma forma global.
Nos últimos treze anos, tivemos muitos avanços, como os Planos Nacionais de
Políticas para Mulheres, os quais detinham muitos programas e ações, bem como
buscavam uma agenda intersetorial, por meio de ações orçamentárias com vários
ministérios, além de determinar transferência de recursos para estados e munícipios. No
4 Em 2012, os orçamentos dos Ministérios que tinham homens a sua frente tinham em seu conjunto
R$ 629 bilhões, em compensação os que eram chefiados por mulheres giravam em torno de R$ 11 bilhões (GUIMARÃES, 2012). 5 Os ministérios chefiados por homens contam um total de 535 mil, já os que são comandados por
mulheres tem em suas estruturas apenas cerca de 40 mil funcionários (GUIMARÃES, 2012).
entanto, há uma dificuldade do desenvolvimento dessas ações, devido a falta de orçamento
e autonomia da SPM, o que nos faz refletir sobre o quanto ainda temos do patriarcalismo,
mesmo que mais velado, em nossa sociedade e até que ponto houve de fato um
compromisso político com a promoção da igualdade de gênero, pois apenas a criação de
uma estrutura, por mais representativa que seja, não é capaz de desenvolver os avanços
historicamente requeridos num território tão amplo e diverso quanto o de nosso país.
Além disso, o que temos visto na atual conjuntura é o desmonte de ações
direcionadas aos direitos das mulheres: a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, vinculando a nova Secretaria de Mulheres ao
Ministério da Justiça e Cidadania (Medida Provisória nº 726 de 12/05/2016); nomeação da
socióloga e “ex-feminista” Fátima Peales (PMDB-AP) para a Secretaria de Políticas para
Mulheres; o governo extremamente masculino de Michel Temer; a apresentação da primeira
dama nos meios de comunicação de massa como um modelo de mulher por ter as
qualificações de “bela, recatada e do lar” e sua indicação para direção do Programa
“Criança Feliz” coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) e
um corte de 40% no orçamento de 2017 para políticas para mulheres. Enxergamos um
retorno do “primeiro damismo” e de políticas assistencialistas, destinadas a mulheres
“carentes”, ou seja, por trás da atual concepção de Estado, do modelo econômico adotado e
das ações executadas temos a desconstrução da ideia de que enquanto cidadãs temos
direitos, num retorno escancarado ao patrimonialismo, acompanhado da reinvenção e
perpetuação ideológica do patriarcalismo, ambos oriundos da sociedade colonial.
A repetição histórica de causar alterações nos indicadores e comportamentos de
desigualdades sociais sem mexer em sua estrutura, por meio das mudanças nas legislações
e as ações dos governos petistas na fraca e frágil tentativa de buscar a equidade de gênero,
não consolidaram a cidadania das mulheres e deixaram o espaço em aberto para que o
desmonte viesse a reboque de um governo com um modelo de Estado conservador e
distante das minorias.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura referente à formação da sociedade brasileira contribui,
incontestavelmente, nas inúmeras tentativas de explicação da constituição de nossos
aspectos sociais, políticos e econômico, permitindo a compreensão de traços tão marcantes
de nosso comportamento, enquanto indivíduos e sociedade, e sua origem temporal tão
longínqua. Dentre esses traços, destacamos neste artigo, o caráter patriarcal da sociedade
e do Estado brasileiro, o qual, apesar das “revoluções” e das mudanças de perspectivas
impostas pelas mudanças globais, existiu por toda nossa história e mantem-se ainda hoje.
Apesar da maior aproximação entre as esferas pública e privada, não houve
uma maior participação política das mulheres “pela própria origem patriarcal do estamento
burocrático no contexto de um patrimonialismo patriarcal” (AGUIAR, 2000, p. 303). A
persistência de uma dicotomia entre as esferas pública e privada também pode ser vista na
escassa presença de mulheres nos espaços de decisão. E vale enfatizar que mesmo
galgando alguns espaços na vida pública, essa democratização, como já foi apontada, ainda
não chegou para a mulher na esfera privada, sendo ainda um dos seus grandes desafios e
“cabendo ponderar que ela é imprescindível para a própria democratização do espaço
público” (PIOVESAN, 2006, p. 51).
Visualizamos assim que, apesar da construção de políticas públicas para as
mulheres numa perspectiva de combate as desigualdades de gênero, a dominação e
exploração sobre as mulheres têm conseguido se atualizar ao longo da história de nosso
país, por meio de novos arranjos e de atuações mais sutis e simbólicas. Concordamos,
portanto, com Saffioti (2004), que a base do patriarcado não foi destruída, pois
[...] não basta que uma parte das mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas etc., tradicionalmente reservadas aos homens. [...] qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a natureza do patriarcado continua a mesma. (p. 104).
Compreendemos que as mudanças que tivemos entre os anos de 2003 e 2016
na organização do Estado e em nosso sistema jurídico não alcançaram ainda uma
transformação cultural nas relações entre homens e mulheres. Assim, permanecem, de
outras formas, o patriarcado privado, pautado nos grupos domésticos, e o público
correspondente a esfera do Estado, refletido nas mais diversas dimensões.
Por fim, consideramos que nossas interpretações, fruto de leituras amplas sobre
o Brasil, estão longe de esgotarem este debate. Privilegiamos as relações existentes na
estrutura social a fim de contribuir, de forma inicial, para a contextualização sobre a histórica
“cegueira” de gênero em nosso país e potencializar novos debates, principalmente no atual
contexto de desmonte de políticas sociais e retrocessos em direitos que já achávamos estar
consolidados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Neuma. Patriarcado, Sociedade e Patrimonialismo. Soc. Estado, vol.15, nº 2,
Brasília, Editora UnB, 2000, pp.303-33.
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