A Função Contrafática Do Direito e o Novo CPC

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    Dierle Nunes

    Advogado. Doutor em Direito Processual pela

    PUC Minas e Universit degli Studi di Roma La

    Sapienza. Professor adjunto na PUC Minas e na

    UFMG. Secretrio-geral adjunto do IBDP. Membro

    fundador da ABDPConst.

    Afuno contraftica do Direito e oNovo CPC.

    Desde as primeiras aulas de um curso jurdico, oaluno aprende que uma das funes primrias doDireito a de impedir e fiscalizar comportamentos

    inadequados que as pessoas assumiriam dentroda busca de seus interesses pessoais.

    Com o sistema jurdico se busca coibir com-portamentos injurdicos que ordinariamente

    seriam desempenhados, salvo, em contraponto,quando se adote uma determinao normativaque os coba, o que poderamos nominar de fun-

    o contraftica.Esta funo pode ser percebida em situaes co-

    tidianas como a de se parar o automvel no semforoem um sinal vermelho para no colidir com outroveculo e, obviamente, no ser multado. Tal tendn-cia a parar aumenta exponencialmente se o semfo-

    ro for municiado do sistema de registro de avanoem decorrncia do acrscimo de fiscalidade.

    Mas qual seria a conexo desta funo bsicado Direito com o Novo Cdigo de Processo Civil(NCPC)? Respondo: toda!

    Ao se perceber uma srie de vcios e descum-primentos normatizao (inclusive constitucio-nal), a nova legislao tenta, contrafaticamente,

    implementar comportamentos mais consent-

    neos com as finalidades de implementao de

    efetividade e garantia de nosso modelo proces-

    sual constitucional. Este um de seus grandespressupostos ao se buscar corrigir problemas sist-

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    micos. Adota-se, assim, uma srie de registros de

    avano normativos para uma pliade de compor-tamentos no cooperativos habitualmente ado-

    tados pelos sujeitos processuais.E para no aparentar se estar procedendo a

    uma discusso meramente terica e de fundamen-tao, nos valeremos de alguns singelos exemplos.Passemos a eles:

    Uma situao recorrente na prtica (no mundoftico) que vivenciamos a de o magistrado, no

    momento de fixar honorrios sucumbenciais emcausas de grande relevncia econmica, especial-mente em face da Fazenda Pblica, estabelecerum valor irrisrio em prol do advogado, que des-

    considera todo o empenho, zelo e esforo empre-endido pelo profissional ao longo da tramitaoprocessual. Tal hiptese fomenta o uso de recur-sos e muitas vezes conduz, ao final, a um resulta-do indevido com a chancela dos valores anterior-

    mente fixados.

    O NCPC, contrafaticamente, ao constatar tal

    fenmeno, cria critrios normativos que limitam adeterminao judicial a parmetros que atendamao grau de trabalho empreendido pelo patrono nacausa, em seu art. 85.1

    O dispositivo fixa limites mnimos e mximosde fixao de honorrios, inclusive estabelecendocritrios precisos, principalmente em relao Fazenda Pblica.

    Outra patologia recorrente na prtica que o

    Novo Cdigo cobe a da criao, pelos TribunaisSuperiores, de entendimentos que patrocinamum maior rigorismo no juzo de admissibilidaderecursal, de modo a reduzir sua carga de trabalho:

    a famigerada jurisprudncia defensiva.

    Tal prtica chega ao requinte de promover a

    edio de enunciados de smula com o objetivo decriar ferramentas formais de impedimento do jul-gamento de mrito das impugnaes s decises.

    Em face do vcio manifesto da jurisprudncia de-

    fensiva, e em sua funo contraftica, desde a partegeral (art. 4odo NCPC2), a nova lei impe premissasinterpretativas e um novo formalismo que induz omximo aproveitamento da atividade processuale a regra da primazia do julgamento do mrito

    (THEODORO JR.; NUNES; BAHIA; PEDRON,2015; NUNES; CRUZ; DRUMMOND, 2014).

    1. Art. 85 - A sentena condenar o vencido a pagar honorrios ao

    advogado do vencedor.[...] 2 - Os honorrios sero fixados entre o mnimo de dez e o mxi-mo de vinte por cento sobre o valor da condenao, do proveito econ-mico obtido ou, no sendo possvel mensur-lo, sobre o valor atualiza-do da causa, atendidos: I - o grau de zelo do profissional; II - o lugar deprestao do servio; III - a natureza e a importncia da causa; IV - otrabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu servio. 3 - Nas causas em que a Fazenda Pblica for parte, a fixao doshonorrios observar os critrios estabelecidos nos incisos I a IV do 2e os seguintes percentuais: I - mnimo de dez e mximo de vinte porcento sobre o valor da condenao ou do proveito econmico obtidoat duzentos salrios mnimos; II - mnimo de oito e mximo dedez por cento sobre o valor da condenao ou do proveito econmi-co obtido acima de duzentos salrios mnimos at dois mil salriosmnimos; III - mnimo de cinco e mximo de oito por cento sobre ovalor da condenao ou do proveito econmico obtido acima de doismil salrios mnimos at vinte mil salrios mnimos; IV - mnimo detrs e mximo de cinco por cento sobre o valor da condenao ou doproveito econmico obtido acima de vinte mil salrios mnimos atcem mil salrios mnimos; V - mnimo de um e mximo de trs porcento sobre o valor da condenao ou do proveito econmico obtidoacima de cem mil salrios mnimos. 4 - Em qualquer das hipteses do 3: I - os percentuais previstosnos incisos I a V devem ser aplicados desde logo quando for lquidaa sentena; II - no sendo lquida a sentena, a definio do per-centual, nos termos dos referidos incisos, somente ocorrer quandoliquidado o julgado; III - no havendo condenao principal ou no

    sendo possvel mensurar o proveito econmico obtido, a condenaoem honorrios dar-se- sobre o valor atualizado da causa; IV - serconsiderado o salrio mnimo vigente quando prolatada sentenalquida ou o que estiver em vigor na data da deciso de l iquidao. 5 - Quando, conforme o caso, a condenao contra a FazendaPblica ou o benefcio econmico obtido pelo vencedor ou o valorda causa for superior ao valor previ sto no inciso I do 3, a fi xao dopercentual de honorrios deve observar a faixa inicial e, naquilo quea exceder, a faixa subsequente, e assim sucessivamente. 6 - Os limites e critrios previstos nos 2 e 3 aplicam-se indepen-dentemente de qual seja o contedo da deciso, inclusive aos casos deimprocedncia ou extino do processo sem resoluo do mrito. [...]2. Art. 4 - As partes tm direito de obter em prazo razovel a solu-o integral do mrito, includa a atividade satisfativa.

    Uma situao recorrente a de o

    magistrado estabelecer um valorirrisrio em prol do advogado.

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    Determina-se, assim, nos moldes do art. 932,3

    a impossibilidade de o relator dos recursos inad-miti-los antes de viabilizar a correo dos vcios,como, por exemplo, de ausncia de documen-tao4 ou de representao.5 Ainda estabelece,

    em seu art. 218, 4, que um recurso praticadoantes do termo inicial do prazo seja consideradotempestivo. Ou seja, busca-se limitar o comporta-mento no cooperativo dos tribunais de impediratividades processuais por rigorismos formais des-

    providos de fundamento constitucional adequado.E, por falar em comportamentos no coope-

    rativos, todos sabemos que o ambiente processualsempre est permeado destes, seja o advogado que

    se vale de manobras de m-f com a finalidadede atrasar o procedimento quando isto o interessa,sejam os juzes que no auxiliam as partes a supe-rarem dificuldades que as impeam do exercciode faculdades ou nus processuais, como os pro-

    batrios (dever de auxlio), as surpreende comdecises trazendo fundamentos no discutidos aolongo do processo e no enfrentam todos os argu-mentos relevantes apresentados por elas. E estas

    so apenas algumas situaes no cooperativas.Ao se vislumbrar tais hipteses, o NCPC impe

    uma premissa forte (contraftica) ao adotar uma

    teoria normativa da comparticipao(NUNES,2008) ou cooperaoque impe, mediante vrios

    dispositivos, a necessidade de se repreenderem

    comportamentos que no atendam a boa-f ob-

    jetiva e, ao mesmo tempo, cria mecanismos defiscalidade para as aludidas condutas dos sujeitosprocessuais.

    Aponte-se que no se trata, como alguns in-

    sistem em dizer, de uma concepo utpica, poisno se defende uma concepo de solidariedadeno processo, nem se adota mais a viso tradicionalde colaborao que estabelecia quase uma hie-rarquia entre juiz e partes/advogados, na qual as

    ltimas deveriam ajudar o primeiro. Aqui se tratade uma concepo normativa contraftica quedelimita ferramentas de controle de todos os su-jeitos processuais ao se perceber a interdependn-

    cia entre suas atividades e fazendo com que todasofertem um importante papel dentro do sistemaprocessual (diviso de papis).

    Assim, o CPC/2015 traz uma srie de preceitosnormativos louvveis que viabilizaro um dilogo

    mais proveitoso entre os sujeitos processuais coma adoo, por exemplo, do dever do juiz de levarem considerao os argumentos relevantes das par-tes (Recht auf Bercksichtigung von uerungen),

    atribuindo ao magistrado no apenas o dever detomar conhecimento das razes apresentadas(Kenntnisnahmepflicht), como tambm o de con-sider-las sria e detidamente (Erwgungspflicht)em seusarts.10 e 489, 1, inciso IV, do NCPC.

    H muito a doutrina percebeu que o contra-ditrio no pode mais ser analisado to somentecomo mera garantia formal de bilateralidade daaudincia, mas sim como uma possibilidade de

    influncia (Einwirkungsmglichkeit) (BAUR, 1954,p. 403) sobre o desenvolvimento do processo e sobrea formao de decises racionais, com inexistentesou reduzidas possibilidades de surpresa.

    Tal concepo significa que no se pode mais

    acreditar que o contraditrio se circunscreva aodizer e contradizer formal entre as partes, semque isso gere uma efetiva ressonncia (contribui-o) para a fundamentao do provimento, ou

    seja, afastando a ideia de que a participao das

    3. Art. 932 - [...] Pargrafo nico - Antes de considerar inadmissvelo recurso, o relator conceder o prazo de cinco dias ao recorrentepara que seja sanado vcio ou complementada a documentaoexigvel.4. Este tambm o entendimento do Enunciado n 82 do FrumPermanente de Processualistas Civis (FPPC): (art. 932, pargrafonico; art. 938, 1) dever do relator, e no faculdade, concedero prazo ao recorrente para sanar o vcio ou complementar a docu-mentao exigvel, antes de inadmitir qualquer recurso, inclusive osexcepcionais. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, TeoriaGeral dos Recursos, Apelao e Agravo. Salvador, 2013) .5. Conforme o Enunciado n 83 do FPPC: Fica superado o enun-ciado 115 da smula do STJ aps a entrada em vigor do NCPC (Nainstncia especial inexistente recurso interposto por advogado semprocurao nos autos). (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal,Teoria Geral dos Recursos, Apelao e Agravo. Salvador, 2013)

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    partes no processo possa ser meramente fictcia,

    ou apenas aparente, e mesmo desnecessria noplano substancial.

    No sistema alemo, o princpio, nos termos doart. 103, 1, da Grundgezets(Lei Fundamental

    alem), inclui no s o direito de se expressar, mastambm o direito a que essas declaraes sejamdevidamente levadas em considerao.

    Julgados do Tribunal Constitucional Federal(por exemplo, BVerfGE 70, 288 NJW 1987, 485)

    localizam esse dever como decorrncia do contra-ditrio (Anspruch auf rechtliches Gehr), apontan-do que ele assegura s partes o direito de ver seusargumentos considerados.

    No entanto, o entendimento inconstitucional eilegal corrente no Brasil at o advento do NCPC,por violador do dever constitucional e legal de fun-damentao das decises judiciais, autoriza que oEstado-juiz no enfrente um argumento jurdico

    relevante da parte, ou seja, mesmo argumentos queinvoquem uma norma jurdica aplicvel ao pro-cesso e que guardem imediata vinculao com ospontos controvertidos (questes) so singelamente

    desconsiderados por inmeras decises judiciaisque no os acolhem.6

    E o problema na atualidade de ndole prtica,eis que a ausncia de anlise de todos os argumentosrelevantes, em especial pelos Tribunais Superiores,

    induz falta de coerncia e estabilidade em sua ju-risprudncia, e se abre para uma constante reaber-tura a que novos debates e novos argumentos, quej poderiam ter sido analisados desde o primeiro

    recurso ou procedimento, sejam levados em consi-derao, fomentando uma anarquia interpretativa.

    E, em primeiro grau, o desprezo preparat-ria da cognio amplia a dificuldade de anliseracional dos argumentos relevantes, em decorrn-

    cia do dficit da filtragem na fase do art. 331 doCPC de 1973 reformado. Assim, ao exigir o cum-

    primento de um contraditrio dinmico e de uma

    fundamentao estruturada, reestrutura-se a fasede organizao e saneamento no art. 357 da Lei n13.105/2015, criando, inclusive, a possibilidade denegociao processual tpica sobre o objeto do pro-

    cesso e calendarizando o procedimento medianteacordo entre os sujeitos processuais (THEODOROJR.; NUNES; BAHIA; PEDRON, 2015).

    Os exemplos poderiam aqui se multiplicar exausto, mas creio que fugiriam ao propsito

    provocativo deste breve ensaio.No entanto, para terminar, h de se perce-

    ber que devemos afastar aqueles argumentosrecorrentes de que isto no funcionar porque

    sempre foi diferente, uma vez que negam exata-mente o papel corretivo e a funo contrafticado Direito, que se presta a fiscalizar e a imple-mentar balizas normativas (correo normativa)a que os direitos, especialmente fundamentais,

    se prestam.No podemos tolerar um processo judicial no

    dialgico e cooptado to somente por imperativosde mxima produtividade e de qualidade zero, at

    pela percepo bvia de que esta concepo novem trazendo bons resultados. S uma nova racio-nalidadede uso do sistema pode auxiliar na reso-luo de nossos problemas.

    O NCPC busca, assim, dentro de seus estritos

    limites, por ser to somente uma lei, e no uma pa-naceia, ofertar um balizamento contraftico quepossa otimizar a atividade processual e melhor-laqualitativamente. Resta-nos agora compreend-lo

    e aplic-lo sempre sob a melhor luz e em confor-midade com sua parte geral, sua unidade e suaspremissas norteadoras.7

    6. Cf. com mais argumentos Nunes (2003; 2004, p. 73-85; 2008);Nunes; Theodoro Jr. (2009).7. Para a devida compreenso cf. Theodoro Jr.; Nunes; Bahia;Pedron (2015).

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    Bibliografia

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    2008.NUNES, Dierle; CRUZ, Clenderson Rodrigues da; DRUM-

    MOND, Lucas Dias Costa. Novo CPC, formalismo demo-crtico e smula 418 do STJ: primazia do mrito e mximo

    aproveitamento. Revista justificando. 18 set. 20114. Dispo-

    nvel em: . Acesso em: 20 jan. 2015.NUNES, Dierle; THEODORO JR., Humberto. Uma di-

    menso que urge reconhecer ao contraditrio no direitobrasileiro: uma garantia de influncia e no surpresa e de

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    THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA,Alexandre; PEDRON, Flvio. Novo Cdigo de ProcessoCivil: Fundamentos e sistematizao. 2. ed. Rio de Janeiro:GEN Forense, 2015.