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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Psicologia A FUNÇÃO PATERNA NAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES ATUAIS Jane Moreira de Azevedo Belo Horizonte 2008

A FUNÇÃO PATERNA NAS CONFIGURAÇÕES … · formas de famílias destes sujeitos abrangiam tanto o modelo nuclear de família ... Dissertar sobre a questão do pai não é tarefa

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A FUNÇÃO PATERNA NAS CONFIGURAÇÕES

FAMILIARES ATUAIS

Jane Moreira de Azevedo

Belo Horizonte

2008

Jane Moreira de Azevedo

A FUNÇÃO PATERNA NAS CONFIGURAÇÕES

FAMILIARES ATUAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Stengel

Belo Horizonte

2008

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Azevedo, Jane Moreira de A994f A função paterna nas configurações familiares atuais / Jane Moreira de Azevedo. – Belo Horizonte, 2008. 136 f. Orientadora: Márcia Stengel. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.

Bibliografia. 1. Família. 2. Pai - Aspectos psicológicos. I. Stengel, Márcia.

II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós- Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 159.922.9

Bibliotecária –Valéria Inês S. Mancini – CRB 6/1628

Jane Moreira de Azevedo A função paterna nas configurações familiares atuais Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.

Márcia Stengel (Orientadora) – PUC MINAS

Mirian Debieux Rosa – USP / PUC São Paulo

Cristina Moreira Marcos – PUC MINAS

Aos meus pais,

exemplos de vida.

AGRADECIMENTOS

Aos meus amados pais que me ensinaram a nunca desistir.

Aos meus irmãos Julianete, Joscélia, Jilmara e Jenilson pela inesgotável

torcida.

A minha doce orientadora, Dra. Márcia Stengel, pela amizade, pelas

calorosas e valorosas orientações e por ter acreditado em minha pesquisa.

A Oscar Cirino, pelo acolhimento e escuta cuidadosa de meu texto.

A amiga e eterna mestra, Paula de Souza Birchal, pela confiança e

incentivos, sem os quais eu não chegaria até aqui.

Aos amigos e companheiros do Colegiado de Coordenação Didática do

Curso de Psicologia da PUC Minas em Arcos, Izabella e Cláudio, pelo carinho,

apoio e por terem “segurado as pontas” em meus momentos de ausência na

coordenação do curso.

Ao Nivaldo, bibliotecário da PUC Minas em Arcos, pelo rico auxílio na

aquisição de artigos, dissertações e teses, especialmente pelas incansáveis

buscas das referências que eu nunca encontrava no portal da CAPES.

A Júlia, companheira de labuta em Arcos, pela revisão gramatical do

texto.

A PUC Minas, casa tão querida, que mais uma vez contribuiu para minha

formação profissional.

Por último, mas não por menor importância, aos meus “pequeninos

clientes” que me confiaram suas angústias.

“E o pai é remetido às calendas latinas, para fazer dele um pai/perseguidor arcaico, uma imago obsoleta, ultrapassada pela atualidade e pelos acontecimentos. O problema, contudo, é que arcaico refere-se ao grego arché: o chefe! Portanto, quando se diz que o pai é um conceito arcaico, acaba-se produzindo uma redundância: o pai, é o chefe, pois o chefe, é o pai...”

Gabriel Balbo

RESUMO Esta dissertação de mestrado visa discutir se na sociedade contemporânea há ou

não a incidência do declínio da função paterna, e se as configurações familiares

atuais, devido a sua pluralidade de composição, fortalece o declínio desta

função. O interesse em pesquisar o tema surgiu em nossa prática clínica, sendo a

questão sobre o pai freqüente nas investigações dos sujeitos em análise. As

formas de famílias destes sujeitos abrangiam tanto o modelo nuclear de família

quanto as denominadas novas configurações familiares. Para o desenvolvimento

deste trabalho foram realizadas pesquisas tanto teóricas quanto práticas. A

investigação teórica foi desenvolvida a partir de dois referenciais: o primeiro se

deu através dos estudos da história e da psicossociologia da família. O segundo

ocorreu sob a ótica da Psicanálise, através das construções teóricas de Freud e

Lacan. Buscou-se no postulado teórico destes autores como a questão paterna e

sua função se edificam, assim como a viabilidade de seu declínio. A

investigação prática diz respeito à utilização do método psicanalítico

propriamente dito, ou seja, a clínica. A partir de nossa prática clínica optou-se

por construir casos clínicos que de alguma forma perpassassem pela questão do

pai e da função paterna. O trabalho de análise dos casos acompanha a mesma

lógica que orienta o trabalho clínico, a saber, a interpretação da questão paterna.

Espera-se que esta pesquisa possibilite reflexões úteis para o trabalho clínico,

particularmente, sobre a formação da função paterna no interior das novas

configurações familiares.

Palavras Chave: Função paterna; configurações familiares atuais, família; Psicanálise.

ABSTRACT

This thesis aims at discussing whether in the contemporary society there is or

not the incidence of the fall of the paternal role and if the current family

configurations, due to its pluralities of formation, strengthens the fall of its role.

The interest in researching this issue arouse at our practice from the frequent

investigations of the subjects that were under analysis. The configurations of the

families of these subjects included the model of nuclear family as well as the so

called new families’ configurations. We have undertaken both theoretical and

practical researches for this work. The theoretical investigation was developed

from two referential points: the first was done through the studies of the family’s

history and psycho-sociology. The second was done under the viewpoint of the

psychoanalysis, through the theories of Freud and Lacan. The theoretical work

of both authors has been used to research how the paternal issue and its role are

built as well as its feasibility of its fall. The practical research is regarding the

use of the psychoanalytic method, that is to say, the practice. From our practice

it was chosen to build some clinical cases that somehow passed by the issue of

the father and the paternal role. The study of the cases analysis follows the same

logic that guides the clinical work, namely, the interpretation of the paternal

issue. One hopes that this research will enable useful thoughts towards the

clinical work, especially, about the formation of the paternal role in the inner of

the new configurations of the family.

Key Words: Paternal role; current family configurations, family; Psychoanalysis.

LISTA DE SIGLAS

AMAS - Associação Municipal de Assistência Social

DNA - Ácido desoxirribonucleico

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPA - Associação Internacional de Psicanálise

SFP – Sociedade Francesa de Psicanálise

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................

11

2 A FAMÍLIA...................................................................................................... 18

2.1 Transformações históricas da família......................................................... 19

2.2 A família brasileira....................................................................................... 28

2.2.1 A família brasileira no período colonial.................................................... 29

2.2.2 A família moderna brasileira..................................................................... 33

2.2.3 A família contemporânea brasileira...........................................................

39

3 AS VERSÕES DO PAI NA TEORIA FREUDIANA................................... 46

3.1 As primeiras versões do pai em Freud: do pai sedutor ao pai desejo...... 48

3.1.1 O romance familiar do neurótico............................................................... 54

3.2 O pai do gozo: a terceira versão freudiana do pai..................................... 58

3.3 O pai da lei: a quarta versão freudiana do pai..........................................

62

4 O PAI NO ENSINO DE LACAN................................................................... 65

4.1 O Nome-do-Pai, um significante primordial.............................................. 66

4.2 Nomes-do-Pai: o seminário que nunca existiu........................................... 75

4.3 O avesso da Psicanálise: o pai para além do Édipo................................... 77

4.4 O pai do nó e o terceiro ensino de Lacan....................................................

83

5 O DECLÍNIO DA FUNÇÃO PATERNA?....................................................

91

6 O QUE É UM PAI? A INVESTIGAÇÃO EM PSICANÁLISE................... 102

6.1.1 Mateus, o menino que não podia saber..................................................... 106

6.1.2 Laura, a menina que veio da mãe............................................................... 111

6.1.3 Luís, o menino que não queria crescer......................................................

114

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................

121

REFERÊNCIAS...................................................................................................

126

11

1 INTRODUÇÃO

[...] o pai isto não é tão simples. Jacques Lacan 1

Dissertar sobre a questão do pai não é tarefa simples! Exige do pesquisador um

distanciamento nem sempre possível, pois como qualquer ser falante, este também é um filho

e conseqüentemente tem um pai. Não é à toa que a afirmativa lacaniana traduz a

complexidade do tema.

Estudos sobre a questão paterna não são uma novidade nos diversos ramos da ciência,

principalmente na ciência psicológica. No entanto, o que se observa é que, mesmo diante

dessa variedade de pesquisas, a pergunta sobre o pai ainda permanece sem resposta.

Quais as dificuldades que a questão precipita? Na Antiguidade, a filiação paterna era

algo incontestável, pois todos eram filhos de um pai. Primeiro, a humanidade é filha de um

pai criador do universo – na tradição judaico-cristã, esse pai é denominado Deus.

Secundariamente, todos são filhos de um ser que é chamado homem/pai que é feito à imagem

e semelhança do pai Deus. O lugar ocupado pelo pai estabelece um distanciamento de seus

filhos, originando as primeiras indagações sobre o pai.

A partir das grandes revoluções que marcaram o advento da Modernidade (séculos

XVIII e XIX), a incógnita sobre o que é um pai se fortalece, pois este perde o status de

representante divino. Outro problema que se apresenta nos dias atuais é justamente sobre a

sua utilidade, afinal, para que serve um pai? Diante das reproduções in vitro, produções

independentes, o pai enquanto presença física é excluído do cenário social e familiar.

É encontrada, também, nos dias de hoje, uma multiplicidade de famílias que

prescindem da presença do pai. Essa situação provoca indagações sobre a questão paterna, e

ainda, sobre o que é uma família.

O termo família é derivado do latim famulus, que significa “escravo doméstico”. Esse

termo surgiu na Roma Antiga (século VIII a.C.) e fora utilizado para designar o conjunto de

propriedades de uma pessoa, incluindo os escravos e os parentes.

1 LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: A relação de objeto (1956-57). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 204.

12

De acordo com Houaiss (2002) o vocábulo família irá ganhar vários contornos.

Primeiro designa o conjunto de criados e escravos que viviam sob o mesmo teto,

posteriormente passou a designar o grupo de pessoas que possuíam um mesmo ancestral, e

mais tarde, a casa em sua totalidade, compreendendo a ancestralidade, o casamento e a

filiação – sendo esta tanto no sentido biológico quanto o da adoção. A casa da família era

composta pelo pater familias, sua esposa, filhos, escravos e até mesmo os animais e as terras.

Se se parte dos significados de família ora apresentados, é verificado que a família

desde a Roma Antiga possui roupagens distintas. Desse modo, deve-se tratar a família no

plural, ou seja, famílias.

Durante muito tempo, a família foi pensada e conceituada a partir do modelo nuclear,

da família composta por um pai, uma mãe e seus filhos. Nesse modo de família, há o pai

como o mais valorizado e temido no interior das relações familiares. Mediante as exigências

sociais, políticas, culturais e econômicas, a família se transformará; atualmente encontra-se

uma gama de modelos de famílias que se distinguem em sua formação do modelo tradicional,

ou seja, nuclear. Assim, o significado do que é família se amplia, não se restringindo mais aos

laços de consangüinidade e ou à triangulação mãe, pai e filhos.

As transformações da família trazem à tona uma discussão que envolve a idéia sobre a

sua dissolução, uma vez que socialmente restringe-se a família ao modelo nuclear. É comum

em contextos educacionais, no cotidiano, em órgãos públicos, como Conselhos Tutelares,

delegacias entre outros, ouvir que os problemas de aprendizagem, comportamento e a

marginalidade da criança e do adolescente são frutos de um lar desestruturado, quando esses

são oriundos de uma família na qual a formação nuclear tradicional não está presente. Circula

então a idéia de que as famílias “pós-nucleares”2 são responsáveis pela degradação social e

por isso essas são denominadas de desestruturadas e desestruturantes. Kehl (2003) critica essa

concepção e afirma que o que vem mutilando a sociedade brasileira, há quase quarenta anos, é

a degeneração moral dos espaços públicos.

Mesmo com o anúncio do falecimento da família, devido à perda de sua característica

nuclear, o que se percebe, pelo menos no contexto brasileiro, é que ela vai muito bem. De

acordo com as pesquisas realizadas pelo Datafolha nos anos de 1998 e 2007 e publicadas pela

Folha de São Paulo (2007), a família, independentemente dos laços que a formam, é a

instituição mais valorizada no Brasil.

2 São denominadas de famílias pós-nucleares as famílias cujas formas de composição se diferem do modelo de família nuclear. A expressão é utilizada principalmente para destacar a coexistência de diferentes modos de família no contexto social, desmistificando assim a idéia de que qualquer forma de família que não possui o formato nuclear é determinantemente desestruturada.

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Cirino (2001) considera que, frente a todas as transformações sociais sofridas

pela família, apenas o lugar da mãe tenha se garantido e/ou ampliado a sua importância na

organização familiar. De acordo com o autor, a mãe, além de cuidar dos filhos e das tarefas da

casa, agora participa de forma efetiva no aumento da renda da família. Assim, a mãe deixa de

ser a “dona-de-casa” e passa a ser a “dona-da-casa”, provocando um novo golpe no status do

pai.

Na sociedade contemporânea3, o poder do pai tem sido desacreditado e desvalorizado.

A massificação dessa desvalorização é provocada por mulheres e mães emancipadas que

assumiram a educação e o provento dos próprios filhos. “Nesta nova configuração, a figura

paterna é fragilizada e ausente e passa a ser desnecessária para as mulheres ditas emancipadas.

Mulheres que assumiram os filhos econômica e culturalmente devido à ausência ou a presença

frágil do pai.” (BORGES, 2005, p.19).

Por outro lado, o homem tem se mostrado mais afetivo, mais próximo de seus filhos. É

comum encontrar o homem que cuida da casa, que brinca com as crianças, que dá banho no

bebê. Essa mudança no perfil masculino aponta novamente para o desfalecimento do pai no

interior da família, pois ele passa agora a exercer atividades domésticas – tarefas estas que

eram exclusivas do domínio feminino – e podem assim deixar de executar a sua função

principal, a de provocar o desejo materno.

Nessa transformação social e conseqüentemente familiar, os papéis dos membros das

famílias se alteram e se alternam. Assim, os lugares de mães, pais e filhos serão modificados.

No momento em que a mulher ganha nova dimensão na esfera social, modifica-se o lugar do

homem, não só dentro do lar, mas também em todo o contexto social. Associado ao lugar do

homem, se tem o lugar do pai. Esse, por sua vez, também sofrerá modificações dentro das

famílias, pois se existem novas formas de famílias, conseqüentemente, haverá um novo tipo

de pai.

Há na atualidade a chamada crise da paternidade que leva ao declínio do poder

paterno; essas crises irrompem no cenário mundial através da decadência do patriarcado

oriundo dos séculos XVIII e XIX. Essa situação é proveniente das transformações

econômicas que precipitaram o homem moderno. A crise da paternidade provoca nos dias de

hoje a crise da referência ao pai.

3 Nesta pesquisa será utilizado o termo contemporâneo para indicar acontecimentos, situações do tempo atual, ou seja, dos séculos XX e XXI.

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Diante dos novos tempos e dos novos modos de ser pai discute-se muito sobre o

declínio ou fracasso da função paterna4. A pergunta que surge frente a essa realidade é se

efetivamente é possível pensar a função paterna atrelada ao lugar do homem e do pai no

cenário social. E se também a partir da reorganização das famílias e dos declínios sociais do

homem e da paternidade, esses podem acarretar no declínio da função paterna.

Desse modo, a questão que esta dissertação discutirá é se realmente pode-se afirmar

que com os novos arranjos de família teremos conseqüentemente o fracasso da função

paterna.

A fundamentação teórica desta pesquisa se pauta em dois referenciais: o primeiro trata

dos estudos da história e da psicossociologia da família. O segundo se dá sob a ótica da

Psicanálise, através das construções teóricas de Freud e Lacan. Buscou-se no postulado

teórico destes autores como a questão paterna e sua função se edificam, assim como a

viabilidade de seu declínio.

De acordo com Rosa (2006, p. 3), a família não está no centro das preocupações da

Psicanálise, apesar de abordar questões essenciais dessa instituição. Ela é percebida pela

Psicanálise como ato da cultura e não como instituição natural. Lacan afirma que a função

primordial da família é a transmissão da cultura, pois será através dela que as tradições serão

repassadas através de gerações. Ele enfatiza que a família irá presidir “[...] os processos

fundamentais do desenvolvimento psíquico [do sujeito, além de transmitir] [...]; estruturas de

comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência.” (LACAN,

1938/1985, p. 13). Nesse sentido, a família tem como função inscrever a criança no universo

simbólico, o que, por sua vez, se dará através das funções parentais.

É a partir da importância dada pelos postulados psicanalíticos às funções materna e

paterna na constituição psíquica dos sujeitos, que a Psicanálise foi tida, durante muito tempo,

como uma teoria da família. Mais especificamente como uma teoria da família nuclear, pois

na Viena dos tempos de Freud, a vivência edípica é dependente de um modelo familiar que

envolvia um pai, uma mãe e seu filho.

A idéia era que essa forma de composição familiar, ou seja, a nuclear favoreceria uma

constituição psíquica saudável dos membros de uma família. Porém, sabe-se desde Freud que

as neuroses e outras psicopatologias são provenientes do espaço familiar, que até então era

dominado pelo modelo nuclear. Se a família nuclear é fonte de adoecimento psíquico, por que

4 “Em psicanálise, ‘função paterna’ designa a entrada da Lei na relação entre a criança e a mãe, interditando a relação incestuosa, não se confunde com as responsabilidades, legais e morais, do genitor.” (KEHL, 2003, p. 172).

15

as novas famílias são consideradas desestruturantes? Por que elas acarretariam mais

sofrimento aos seus membros? O modelo de família nuclear favorece mais a saúde psíquica

do que as novas formas de família? Essas questões tornam profícuo entender como o

fenômeno da função paterna se dá nos dias de hoje.

A importância de desenvolver uma pesquisa que trata da função paterna nas várias

formas de composições familiares, não se limitando ao modelo de família nuclear, oferece

dispositivo para uma releitura da função paterna na sociedade atual, ampliando a visão sobre

essa função e suas aparições na vida cotidiana, não se restringindo à idéia do declínio e/ou da

desvitalização do pai na sociedade.

O interesse por este estudo surgiu em nossa prática clínica, em que constantemente

chegam demandas por atendimento psicológico causado pela questão do enfraquecimento do

lugar do pai no interior das famílias. As configurações dessas famílias abrangem tanto o

modelo nuclear como as novas formas de famílias. Dessa forma, observa-se a necessidade dos

sujeitos, independentemente da família de onde vêm, de construírem substitutos para a função

paterna, possibilitando sua amarração com o contexto social.

É importante salientar que a busca que se faz nas sessões de análise no que diz

respeito à função paterna está muitas vezes atrelada à figura do pai e do homem na sociedade

atual. No entanto, o que se propõe pesquisar é como nos dias de hoje, diante das

configurações familiares atuais, como a função paterna será operacionalizada, mesmo diante a

desvalorização do pai.

O que a prática clínica evidencia é que mesmo com as transformações socioculturais

da atualidade, a função paterna ainda é imprescindível para a organização psíquica dos seres

humanos. Dessa forma, a pesquisa sobre a função paterna nas configurações familiares atuais

possibilita o entendimento de como essa função se dá nas novas formas de família,

contribuindo para o aprimoramento teórico e o avanço da prática clínica ao lidar com o

fenômeno das novas famílias.

Deve-se destacar ainda que a família não é um objeto de estudo específico do campo

psicológico. Debates e teses sobre o tema ocorrem em diversas áreas do saber científico,

assim encontraremos várias pesquisas que tratam sobre a família na sociologia, na história, na

antropologia, no direito, entre outras. Dessa maneira a família é uma realidade sócio-histórica,

cultural, sua existência está além dos consultórios e das clínicas de psicologia.

[...] pensar a família é situá-la num contexto sócio-histórico e cultural que nos permita observar suas diferentes formas, sua transformação ao longo do tempo e nos abrirmos à possibilidade de redescrição dessa instituição; uma redescrição que seja compatível com um sentido de solidariedade rortyano; uma solidariedade

16

entendida “como sendo feita e não encontrada, produzida no decurso da história e não reconhecida como facto a-histórico.” (AMAZONAS; BRAGA, 2004, p. 36).

No percurso deste trabalho serão usados várias vezes os vocábulos função, papel,

lugar e figura. Esses termos não são substitutos um dos outros, por isso faz-se necessário

delimitar suas diferenças, ou melhor, o estatuto a que eles se referem nesta dissertação. A

palavra função designa as relações que precipitam a constituição subjetiva dos sujeitos (no

capítulo 4 essa concepção será mais bem explorada); em outros momentos, a palavra será

utilizada para designar funcionalidade. Já o termo papel é oriundo da Psicologia Social e é

definido através de uma ordenação social, ou seja, desempenha-se um papel a partir de

normas prescritas socialmente, sendo essas comumente relacionadas a uma obrigação legal,

moral, profissional, entre outras (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2002). Lugar delimita a

posição das pessoas no interior das famílias, e figura possui um sentido imaginário no qual

remete à imagem de alguma coisa, um símbolo.

Para sustentar o debate de que a função paterna se sustenta nas novas famílias esta

dissertação foi dividida em seis capítulos, além desta introdução (capítulo um).

O segundo capítulo irá perpassar pela história da família nos contextos mundial e

brasileiro, buscando demonstrar as mutações sofridas pela família em sua forma de

composição, destacando que o modelo nuclear não foi e nem é o único modo de família no

decorrer dos tempos.

No terceiro capítulo serão tomadas as teses freudianas sobre o pai. As construções

teóricas sobre os mitos do Édipo, do pai da horda primitiva e de Moisés são os destaques

deste capítulo.

Já o quarto capítulo versará sobre o tema do pai na teoria lacaniana. Para tanto, serão

utilizados os Seminários de número 3, 4, 5, 11, 17, 20 e 22 de Lacan. O intuito deste capítulo

é resgatar o percurso lacaniano na constituição do conceito de função paterna. Destaca-se

neste capítulo o desenlace proposto por Lacan entre o Édipo e a castração, podendo ter esta

última vários vetores que a operacionalizam.

O quinto capítulo, eixo desta dissertação, questionará o declínio da função paterna.

Para tanto, serão discutidos os declínios da paternidade, da imago paterna e do Nome-do-Pai

como significante único que possibilita a ordenação subjetiva dos sujeitos.

No sexto capítulo serão apresentados três casos clínicos, de crianças, oriundos de

nossa prática clínica. O método utilizado para a escrita dos casos foi a da construção do caso

clínico. As construções desses casos foram pautadas nas seguintes características: a) o modo

de composição familiar; b) o quadro sintomático das crianças; c) o lugar que o pai da

17

realidade ocupa no contexto familiar; d) a maneira como a função paterna é exercida. O

trabalho de análise dos casos apresentados na pesquisa acompanha a mesma lógica que

orientou o trabalho clínico, ou seja, a interpretação da questão paterna.

Por fim, o sétimo capítulo trata das considerações finais. Nesse capítulo, pretende-se

fazer uma articulação das considerações tecidas nos capítulos anteriores, principalmente no

modo de aparição da função paterna nas configurações familiares atuais.

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2 A FAMÍLIA

Embora todo mundo acredite saber o que é uma família, é curioso constatar que por mais vital, essencial e aparentemente universal que a instituição família possa ser, não existe para ela, como é também o caso do casamento, uma definição rigorosa.

Françoise Héritier5

A família tem sido foco de discussões e estudos de diversas áreas do saber científico

ao longo dos tempos. Mesmo sendo um objeto clássico de pesquisa, a família é, ainda, nos

dias de hoje tema atual que requer um olhar pormenorizado sobre as transformações ocorridas

com ela e o seu cotidiano. “As análises sobre a família na sociedade atual constituem um

mosaico que reflete os diferentes significados que essa instituição, tão básica quanto

complexa, pode assumir.” (AMAS, 1995, p. 12).

A família é uma realidade presente em qualquer tipo de sociedade conhecida. Com

formatos variados, particularidades culturais, sociais e políticas, a família está na base de

qualquer sociedade. A idéia da universalidade da família está relacionada ao fato de que a

sociedade é formada por agrupamentos de pessoas através de laços consangüíneos, da

ancestralidade e da linhagem que compõem os grupos familiares. Ainda essa universalidade

se dá pelo fato de ser concebida como categoria da natureza e não histórica.

Presente mesmo de forma diversificada nos vários tipos de sociedade, a família é vista

como característica própria nos modos de agrupamento e de convivência social. Dessa forma,

a família é naturalizada. Porém, quando se ajusta o foco sobre a família, o que se percebe são

diferenças radicais oriundas de influências de diversas ordens que modificam a composição

familiar e o modo de convivência de seus membros. A concepção do que é família se

diversifica devido às necessidades sociais, políticas, culturais e econômicas de uma

determinada época. A família torna-se, então, uma construção social.

Muitas são as maneiras de se conceituar a família: do ponto de vista histórico, das relações de produção, e de funcionamento, das relações interpessoais, como um grupo que tem determinadas características de relação e finalidade, etc. O conceito não só depende de diferentes pontos de vista teóricos e de diferentes epistemologias, como também apresenta mudanças que refletem a própria mudança sócio-histórica da família. (CANEVACCI apud COELHO, 2000, p. 08).

5 Héritier apud Ceccareli, 2007, p. 89.

19

Nos dias atuais, delimitar o que é família é uma difícil tarefa, pois essa definição

torna-se complexa devido aos vários arranjos dos grupos familiares. A conceituação do que é

família corresponderá às descrições de organizações e composições feitas por ela no decorrer

dos tempos.

Para Zamberlam (2001), o termo família é um vocábulo que cabe apenas descrevê-lo

e jamais conceituá-lo. Através dos tempos toda tentativa de definir a família resultou em

nada menos que descrever tipos de famílias. Pode-se encontrar elementos comuns em

algumas formas de composição familiar, mas nada que a defina ou a iguale e que permita

reduzi-la a um único conceito.

Para se compreender o que é a família, como ela se organizou ao longo dos tempos,

será apresentada, a seguir, a sua evolução histórica nos contextos mundial e brasileiro,

salientando as influências sociais, econômicas e culturais que permitiram as mutações da

família através da história.

2.1 Transformações históricas da família

No percurso histórico foram testemunhadas as várias transformações da família tanto

no que tange a sua composição quanto ao seu modo de vida. O movimento da família é

marcado pelas transformações sociais. De acordo com Zamberlam (2001, p. 40), “a família,

enquanto forma específica de agregação tem uma dinâmica de vida própria, afetada pelo

processo de desenvolvimento sócio-econômico e pelo impacto da ação do Estado.” A cada

época histórica, Idade Medieval, Moderna e Contemporânea, a família agrega características

próprias que permitem sua existência no mundo em que está inserida. A família irá existir de

acordo com as normas e com a realidade de seu tempo.

Dessa forma, ao investigar a família no ciclo histórico não é possível deixar de lado as

transformações ocorridas no contexto mundial, visto que os modos de vida das famílias são

reflexos diretos de certas formas de organização social, e só a partir desses parâmetros elas

poderão ser entendidas.

Um exemplo disso é descrito por Young e Willmot citados por Bruschini (1995),

quando expõem os estágios históricos da família inglesa do período pré-industrial. Esses

autores enfatizam que tais estágios irão ocorrer devido às mutações provenientes dos

20

processos de produção e pela distribuição de trabalho vigentes naquele período na vida

econômica da Inglaterra.

A Idade Medieval se caracterizava principalmente pelo domínio da religião em

relação aos homens. As ciências, as artes, a política eram governadas pela Igreja Católica. O

homem estava submetido tanto aos desígnios de Deus quanto aos da natureza. A sociedade

naquela época fora fundada sobre o alicerce da religião. (ROMAGNOLI, 2006).

Não diferente das doutrinações sociais da Era Medieval, a família naquela época tinha

como principal interesse o cuidado com os membros que compunham a aldeia, e não apenas

com um núcleo fechado composto por pais, filhos e pessoas de uma mesma descendência. A

formação dos grupos familiares na Era Medieval se dava através dos sistemas de castas ou de

linhagem. Casey (1992) descreve que a forma de organização familiar através do modelo de

castas, presente em regiões menos desenvolvidas da Europa, era provocada pela grande

mobilidade geográfica, militar e pastoral dos povos daquela época.

No entanto, será o sistema de linhagem que predominará como configuração familiar

na Idade Média. Os grupos de linhagens se definem “[...] pela posse de uma herdade,

transmitida de pai a filho.” (CASEY, 1992, p. 46). Nesse modelo, preza-se o valor da

propriedade e a perpetuação do nome da família.

As famílias, na Era Medieval, conviviam nas ruas, realizavam festas, compartilhavam

a intimidade com todos da aldeia. A vida afetiva ficava difundida através das relações com

todos os membros da sociedade, não se restringindo aos laços de consangüinidade. Não havia

distinção determinada entre o que se vivia no âmbito privado ou público. A vida era

compartilhada, não havendo isolamento dentro de pequenos grupos e nem diferenças quanto

aos laços afetivos. Dessa maneira, a família medieval se caracterizava como instituição

pública. (BRUSCHINI, 1995).

Pasqualini citado por Zamberlam (2001) enfatiza que a diferença entre o público e o

privado na Era Medieval se dava pela separação entre a religião doméstica, que se traduzia no

culto aos antepassados, e a religião oficial da polis, na qual se seguiam os ritos determinados

pela Igreja Católica. Através da influência da democracia oriunda da Grécia antiga, público e

privado começam a ser demarcados, também, a partir da experiência coletiva, que

ultrapassava as experiências e o convívio familiar. O indivíduo passa a ser demarcado com

características que o inscrevem ao mesmo tempo no âmbito privado e público. O indivíduo,

enquanto propriedade do público, se caracteriza pelo que há de comum em todos os cidadãos

da polis. Já o privado parte da experiência individual, particular de cada ser. “Nesse cenário,

21

a família [o privado] ‘era a condição humana’, o social [o público] ‘era uma criação

humana’.” (PASQUALINI apud ZAMBERLAM, 2001, p. 18).

O modo de vida coletiva das pessoas na Era Medieval caracteriza o que é denominado

por espaço público. O âmbito privado, enquanto modelo de vida, só se constituirá com o

advento da burguesia no século XVIII. Para Durkheim citado por Casey (1992), será através

da vida coletiva (pública) que se originará a vida individual, ou seja, particular.

Ariès (1981), em sua análise iconográfica da história da família, destaca que as trocas

afetivas e comunicações sociais da família antiga ocorriam por intermédio de vizinhos,

amigos, crianças, idosos, mulheres e homens que conviviam diariamente, tanto no interior da

casa, que se destinava ao descanso de uma família, quanto nas ruas e praças de uma vila. Essa

forma de vida é relatada, não apenas nos romances daquela época, mas principalmente

retratada por seus artistas.

Assim como nas cidades árabes de hoje, a rua era o lugar onde se praticavam os ofícios, a vida profissional, as conversas, os espetáculos e os jogos. Fora da vida privada, por muito tempo ignorada pelos artistas, tudo se passava na rua. [...] Essa rua medieval, assim como a rua árabe de hoje, não se opunha a intimidade da vida privada; era um prolongamento dessa vida privada, o cenário familiar do trabalho e das relações sociais. [...] Talvez essa vida privada se passasse tanto ou mais na rua do que em casa. (ARIÈS, 1981, p. 133).

Ariès (1981) revela uma inexistência do caráter afetivo na família medieval. Para ele,

a densidade social da Era Medieval não deixava espaço para a família. Essas possuíam como

função a “[...] transmissão da vida, a conservação dos bens, a prática de um ofício, a ajuda

mútua e a proteção da honra e da vida em caso de crise.”(BRUSCHINI, 1995, p. 51). A

família servia, então, para garantir a transmissão de um patrimônio e não como célula que

deixava de herança a seus membros valores de igualdade e afeição.

A falta de afeição mais igualitária a todas as pessoas do grupo familiar se evidenciava

principalmente no costume de privilegiar um dos filhos em detrimento dos irmãos, prática

muito comum no final da Idade Média até o século XVII. O filho primogênito ou aquele que

tinha a preferência dos pais, devido as suas características pessoais, recebia deles toda a

atenção e condição para se tornar um adulto bem sucedido. Acreditava-se que, se os bens da

família fossem divididos por toda a prole, nenhum dos filhos poderia perpetuar o brilho e a

glória da família. Dessa forma, os filhos mais jovens eram mandados para a clausura,

geralmente para a vida religiosa, contra a vontade e a vocação sacerdotal. (ARIÈS, 1981).

Ariès (1981) enfatiza que a família dessa época era uma realidade moral e social. A

família não sustentava um sentimento profundo entre pais e filhos. Esses, por sua vez, eram

22

cuidados pela contribuição que eles trariam para toda a comunidade e, conseqüentemente,

para toda a família. As famílias pobres se limitavam na manutenção do casal inserido

freqüentemente na fazenda ou na casa do senhor. Nas famílias abastadas, os laços se

mantinham para a promoção da riqueza e da honra da família. “A família quase não existia

entre os pobres, e quando havia riqueza e ambição, o sentimento se inspirava no mesmo

sentimento provocado pelas antigas relações de linhagem.” (ARIÈS, 1981, p. 159).

Na Era Medieval, o casamento era uma forma de controle dos corpos dos homens e

principalmente das mulheres. O matrimônio era uma relação indissolúvel, pois pela ética

cristã vigente não se separava o que Deus uniu. As mulheres não deveriam estar sós e

teriam três destinos possíveis: o pai, o marido ou Deus. (FLEISCHER, 2004).

Segundo Fleischer (2004), o casamento na Idade Média era um sacramento sagrado

que unia as almas fiéis, os corpos aptos para a procriação e as pessoas jurídicas. Havia uma

santificação dos interesses da espécie e da sociedade. Prevalece o modelo de casamento

arranjado, não importando os sentimentos amorosos por aqueles que fariam os votos de

núpcias. O matrimônio era concebido por uma determinação dos pais, a qual não cabia

nenhuma contestação por parte dos filhos. “Nessa ótica, a célula familiar repousa em uma

ordem do mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal.”

(ROUDINESCO, 2003, p.19 - grifo nosso).

No entanto, apesar da esfera de dominação da Igreja e do pai, sendo esse o substituto

da lei divina no interior das casas, começam a ocorrer já no século XV mudanças

significativas no âmbito familiar. Ariès (1981) descreve essas mudanças principalmente no

que tange aos cuidados e valorização da criança no interior da família. Aponta ainda que

influências políticas e culturais provocaram as transformações na sua base. O Estado, a partir

do século XV, torna-se mais presente na formação social através da expansão dos ideais da

educação formal. Esta, por sua vez, traz para o interior da sociedade uma família que não se

preocupa apenas com a transmissão dos bens e do nome, mas sim com a formação moral e

espiritual de seus membros. As crianças, que antes eram mandadas para a casa de amas de

leite e que em muitos casos só voltavam para o convívio do seu lar na vida adulta, agora

permaneciam em suas casas com suas famílias, freqüentavam escolas, independentemente do

ingresso na vida religiosa. A escola passa, então, a ser um meio de introduzir a criança no

convívio social amplo e de possibilitar a aprendizagem.

É significativo chamar a atenção aqui para o que Ariès (1981) denominará como

“sentimento de infância”. Para esse autor, esse sentimento emerge na sociedade a partir do

século XVI e diz de uma consciência na diferenciação entre a criança, o adulto e o jovem. A

23

partir do século XVI, a criança é vista a partir de suas particularidades e de suas

singularidades. Essa nova visão sobre a criança trará mudanças significativas para a família,

tornando-se esta um grupo mais afetivo e mais próximo de seus membros.

Com a mudança na perspectiva da família, a arquitetura das casas também se

modifica. As amplas salas que permitiam a convivência indiscriminada de pessoas se

reformulam em cômodos específicos, que garantiam a privacidade e o convívio da família.

Ainda, nas artes, a família torna-se tema central. A rotina familiar assim como seus membros

começam a ser retratados em conjunto, destacando a vida em comum de uma família.

Esse sentimento de família se perpetua do século XV ao século XVIII. As famílias

abastadas, do campo ou da cidade, da aristocracia ou da burguesia começam a se constituir a

partir de laços afetivos e de uma aproximação íntima que até então não existia.

É com o surgimento da burguesia que a família perde sua característica de instituição

pública. As funções antes desempenhadas pela sociedade se voltam agora para o interior da

família. A família burguesa se transforma então em espaço privado e os espaços públicos

ficam restritos ao “[...] triângulo pai, mãe e filhos e por uma completa combinação de

autoridade e amor parental.” (BRUSCHINI, 1995, p. 51).

Na família burguesa, a autoridade dos pais define o ideal afetivo da família,

esperando-se do casal parental um amor incondicional em relação aos filhos. A educação

familiar é calcada nesse amor, sendo que as punições e correções dos filhos são edificadas na

perda do amor dos pais. Essa modalidade de família se consolida a partir do final do século

XVIII, sendo apoiada pelo Estado e pela medicina, que intervinham na família, destinando às

mães um amor inato por seus filhos, contribuindo assim para a valorização da criança, do lar e

dos laços matrimoniais. (BRUSCHINI, 1995).

Devido à forte valorização do afeto na família burguesa, diferentemente da forma de

circulação dos afetos na família medieval, o casamento ganha força e se expande por toda a

sociedade ocidental. A família burguesa passa a ser definida por suas características

inabaláveis de sociedade patriarcal, monogâmica, heterossexual e nuclear.

Essas características da família burguesa perpetuarão e solidificarão as formas de

convivência e de formação das famílias da Era Moderna. Esta, por sua vez, surge no final do

século XVIII e meados do século XIX e é fundada no amor romântico, sanciona os desejos

sexuais através do casamento, valoriza a divisão do trabalho entre os cônjuges. A educação

dos filhos é delegada ao Estado, ficando, pois, a autoridade dividida entre os pais e o Estado.

Numa breve comparação, é possível dizer que a família tradicional da Era Medieval

se caracteriza pela valorização do grupo familiar, na qual a manutenção e o aumento das

24

riquezas enobrecia o nome da família. Opostamente, a família moderna enfoca valores no

indivíduo, tendo cada membro da família valor aproximado e o grupo familiar opera em

direção do bem-estar do indivíduo.

A Idade Moderna, considerando os séculos XVIII e XIX, foi perpassada por uma gama

de transformações que vão incidir diretamente na composição do grupo familiar. A

Modernidade se caracteriza pela supremacia do homem em relação à natureza. Esse, por sua

vez, governa e lidera a sociedade através de um sistema calcado na razão em detrimento ao

regime monárquico, absolutista, autoritário e divino. A razão é então o fundamento da

sociedade moderna, o que garante a evolução e a dominação da ciência frente a todos os

acontecimentos, sejam eles de ordem natural ou social. “Este movimento se manifesta nos

costumes, no modo de vida e no cotidiano [...], [propicia a] emergência e consolidação do

individualismo, na exaltação da razão e da ciência e no esvaziamento da esfera pública e a

valorização da esfera privada.” (ROMAGNOLI, 2006).

O modelo de família na Era Moderna será o da família nuclear, sendo esta composta

pelo marido/pai, pela esposa/mãe e pelos filhos legítimos do casal. Segundo Bruschini (1995),

a família moderna se constituirá a partir de laços afetivos cada vez mais sólidos. Ela dará ao

homem o status de chefe de família, colocando a função de ser pai num lugar privilegiado no

contexto social. “O pai de família torna-se uma figura moral que inspira respeito a toda

sociedade.” (BRUSCHINI, 1995, p.52).

A mulher passa a ocupar o espaço interno na família burguesa em contraposição a sua

função coletiva nas famílias da Era Medieval. Pelo status de ser mãe, a mulher é destinada

socialmente ao espaço doméstico. Seus papéis sociais estão voltados para o trabalho no

interior da família. Cabe a ela ser esposa, cuidar da casa, da educação dos filhos e garantir a

autoridade do pai perante os filhos e a ela mesma. Ao homem cabe ocupar o espaço público,

fora do lar, propiciando o sustento econômico da família.

Romagnoli (2006) afirma que a

[...] família no século XIX se encontra assim fortalecida na sua legitimidade e no seu poder por toda a sociedade, que nela vê um mecanismo regulador fundamental, célula pretensamente estável e equilibrada, responsável pela mediação do público com o privado, geradora da ordem social, assegurando o funcionamento econômico, a formação de mão-de-obra, a transmissão de patrimônio, avançando em direção ao progresso.

As profundas transformações da família na Modernidade afetam diretamente as

relações de conjugalidade do homem moderno. Na verdade, a mutação das relações de

25

matrimônio e as mudanças nos grupos familiares ocorrem simultaneamente, sendo uma

conseqüência da outra, pois ambas estão intimamente interligadas.

O enlace matrimonial constituía a base da sociedade na primeira metade do século

XX, que era a possibilidade da construção de um lar verdadeiramente aceitável pelo grupo

social. Casar significava legitimar a vida sexual entre um homem e uma mulher. O contrato de

casamento possuía caráter estável e seu rompimento só ocorreria nos casos de falta grave

cometida por um dos cônjuges.

Nos anos trinta, essa realidade começa a se modificar, tendo o amor conjugal o maior

peso nas decisões matrimoniais. A Igreja Católica é uma das grandes responsáveis por essa

mudança ao designar e enfatizar a importância da “espiritualidade conjugal”, que deveria unir

os corpos e as almas. Ainda, pode-se observar nessa mesma época a influência da ciência

“vulgar” pelas revistas femininas, que difundiam os ideais femininos através da valorização

dos sentimentos e da necessidade do encontro do amor verdadeiro. (BILAC apud

ZAMBERLAM, 2001).

É encontrada na família dos anos quarenta maior proximidade de seus membros, uma

vez que ocorriam diálogos entre pais e filhos, mesmo sendo a prole numerosa. Havia certa

harmonia no lar. A casa se destacava como local de encontro familiar. Para Cony citado por

Zamberlam (2001), essa aproximação só se tornara possível pois a televisão ainda não fora

inventada. Esse autor acredita que com o surgimento da televisão nos anos 50 a família

sofrerá um golpe mortal, fato que dará início a sua queda e ao que é chamado nos dias de hoje

de desestruturação, pois a televisão traz para o convívio da família um mundo repleto de

idéias que provocam transformações nas pessoas, tanto na forma de pensar como na de agir.

Na década de cinqüenta, a família torna-se reduzida quanto ao número de filhos, os

cônjuges procuram a satisfação tanto pessoal, no interior do núcleo familiar, quanto

profissional. A família torna-se mais igualitária, tendo o casal de cônjuges direitos e deveres

comuns ao grupo familiar e social. Relativo aos filhos, há uma aproximação entre as gerações,

sendo que esses visualizam em seus pais pessoas que permitem um diálogo, podendo eles

mesmos divergir das opiniões de seus genitores.

A partir dos anos de 1960, as uniões entre homens e mulheres se darão a partir de um

sentimento de realização pessoal. A estabilidade do casamento estará associada às satisfações

amorosas e sexuais de cada membro do casal. As alianças entre homens e mulheres serão

fundadas num compromisso de um com o outro, independentemente dos rituais religiosos e

legais.

26

Para Casey (1992), o desenvolvimento da família nuclear, conjugal, foi propiciado e

mantido pelos ideais de uma sociedade dita democrática, a qual preconizava a união estável e

harmoniosa entre o marido, a esposa e os filhos. Os pais tinham como missão ensinar a seus

filhos a autodisciplina tão exigida em uma sociedade democrática. “Fundamentalmente, a

família moderna cresceu em torno dos conceitos de autonomia e disciplina, elaborados por

uma civilização particular – um artifício fabricado pelo homem, não um legado natural.”

(CASEY, 1992, p.175).

No entanto, as configurações familiares atuais ou as famílias pós-nucleares vão ter o

reconhecimento social a partir das transformações ocorridas no século XX. Na sociedade

atual, essas configurações de famílias cujas formas de composição se diferem do modelo de

família nuclear são denominadas de novas configurações familiares. A expressão é utilizada

principalmente para destacar a coexistência de diferentes modos de famílias no contexto

social, desmistificando, assim, a idéia de que qualquer forma de família que não possui o

formato nuclear é determinantemente desestruturada.

Essas transformações no modo de composição das famílias, após o surgimento da

família nuclear, são decorrentes da entrada da mulher no mercado de trabalho, da queda da

exigência da virgindade para o casamento, da proliferação do divórcio, das expansões dos

laços afetivos provenientes dos novos laços conjugais, das novas formas de filiação e

procriação. As novas famílias começam a ocupar um espaço social que antes só era permitido

à família nuclear.

Nesse contexto, surge na sociedade o que é denominado de família pós-moderna,

contemporânea. O casamento nesse tipo de família se restringe ao bem-estar do indivíduo.

O exercício da autoridade paterna e/ou materna fica cada vez mais conturbado mediante os

inúmeros divórcios, separações e recomposições conjugais. Há uma supervalorização da

vida privada em detrimento das relações públicas próprias das famílias medievais.

(ROUDINESCO, 2003).

Os estudos de Giddens (1993) mostram que as relações familiares na

contemporaneidade irão se dar a partir da transformação das relações afetivo-sexuais

enfatizadas pelas exigências de igualdade entre homens e mulheres. Essa transformação é

ampla e rica, e não é sem conseqüências, pois implica na reelaboração da intimidade entre

homens e mulheres, que são protagonistas das novas relações vivenciadas no cotidiano da

vida. Essa nova forma de vida provoca a construção de uma nova identidade do indivíduo no

mundo moderno e significa uma ruptura com uma ordem emocional que garantia ao sexo

masculino o poder no relacionamento.

27

Em conseqüência às novas relações de gênero, a mulher ganha um novo espaço não

apenas no campo social, no mercado de trabalho, mas, também, no âmbito familiar. A

emancipação financeira juntamente com a valorização social faz com que ela tome decisões

independentes de acordos com seus pais/maridos /companheiros. O lugar do homem como

líder da esfera familiar e social começa a enfraquecer. Ocorre, então, um deslocamento do

pátrio poder para o campo materno.

Essas transformações sociais afetam diretamente a caracterização e o modo de

vida das famílias, trazendo consigo a idéia sobre dissolução. A família, por sua vez, exige

uma releitura do seu lugar na cultura e talvez uma nova forma de se caracterizá-la. Mas, em

que consiste a idéia de dissolução da família? De que família se fala?

Nos dias de hoje, ocorre uma idealização do amor romântico, que faz da família

nuclear uma referência para o bem-estar social e para a prosperidade do sujeito. Esses ideais,

tanto da família quanto dos relacionamentos perfeitos, são herdados da forma de pensar do

homem moderno. No entanto, a família nuclear precisa abrir espaço para as configurações

familiares atuais que surgem no cenário social a partir das necessidades e exigências do

mundo contemporâneo. Como já foi dito no início deste capítulo, é possível ver que arranjos

familiares distintos ocorreram durante toda a história da humanidade. Os grupos, diante de sua

realidade, precisaram se adaptar para criar condições mais propícias de sobrevivência. Na

atualidade, as famílias pós-nucleares vêm responder às exigências sociais, permitindo assim a

continuidade da vida em família. Dessa forma, é possível afirmar que a família, nos dias de

hoje, permanece, mas transformada.

Nós, humanos, a cada momento criamos novas formas de estabelecer vínculos. A família, na atualidade, necessita que forjemos novos modos de falar. Nossas descrições não poderão ser consideradas como “a verdade”. Serão apenas indicações para nossas ações. Uma ajuda para nossas decisões. Assim, deverão assumir um caráter necessariamente provisório, sem pretensões a fechamentos. Descrever, nesse sentido, é criar uma realidade flexível, plural. (AMAZONAS; BRAGA, 2004, p. 35).

Definir o que é família através do modelo nuclear é limitado e perigoso. As

transformações sociais e morais tornam as configurações familiares algo amplo e complexo.

O conceito sobre as configurações familiares atuais advém de uma nova estruturação na

constituição familiar. A família contemporânea não se restringe ao modelo de família nuclear

pertencente à burguesia e à Modernidade, e nem tão pouco, aos modelos de família pública

dos séculos V ao XVII. Zamberlam (2001) chama a atenção para o tipo de mudança ocorrida:

28

[...] a família mostra-se um agrupamento humano cambiante e sua estrutura e funções estão intrinsecamente vinculadas às mudanças de paradigma sócio-cultural ao longo do processo civilizatório. O sentimento de família engloba, assim, todas as emoções inerentes à pessoa: identidade, pertença, aceitação, rejeição, amor, carinho, raiva, medo, ódio. Um conjunto de interação, organizado de maneira instável, em função de suas necessidades, com uma história e um código próprios, que lhe outorgam singularidade. Estrutura cuja qualidade emergente excede a soma das individualidades que a constituem, para adquirir características que lhe são específicas. Certamente é esta fusão de opostos que torna a família tão complexa e sua compreensão um desafio interminável. (ZAMBERLAM, 2001, p. 36).

A historiografia da família no Brasil, não diferente da história da família no mundo, é

perpassada por diversas mutações. A partir de agora será discutido como essas

transformações ocorreram, apontando os aspectos que influenciaram e influenciam tais

transformações no cenário brasileiro.

2.2 A família brasileira

Desde o descobrimento do Brasil, formas variadas de famílias vêm se configurando

na sociedade brasileira. Essa variabilidade traz diversas discussões sobre qual é o modelo

preponderante de família em nosso País.

Não é possível deixar de chamar a atenção para a miscigenação no surgimento da

família dentro do cenário brasileiro. Ela nasce a partir do encontro e da mistura entre raças –

brancos europeus, índios nativos e negros africanos. A origem mestiça da família brasileira

certamente provocará uma multiplicidade de formas de se viver essa realidade.

Uma das descrições mais importantes sobre a família brasileira foi realizada por

Freyre em 1933 no clássico livro “Casa-grande & Senzala”. A partir de Freyre muitas

pesquisas sobre a família surgiram no Brasil, e algumas delas refutam suas idéias de que a

família patriarcal seria o modelo dominante de família do período do Brasil colonial.

O que será apresentado aqui não é a defesa de qual forma de família predominava ou

predomina no Brasil, mas sim a demonstração de como na sociedade brasileira, em qualquer

época, coexistiam ou coexistem modelos plurais de família.

29

2.2.1 A família brasileira no período colonial

Em 22 de abril de 1500, chegavam ao Brasil 13 caravelas portuguesas lideradas por

Pedro Álvares Cabral e assim começa uma nova história para o povo que aqui vivia.

Entretanto, somente após trinta anos da descoberta das novas terras, a Coroa portuguesa

começou a interessar-se pela colonização do Brasil. Isso ocorreu porque havia um grande

receio dos portugueses em perder essas terras para invasores, como, por exemplo, os

franceses, os holandeses e os ingleses. A colonização seria uma das formas de ocupar e

proteger o novo território. Portugal, então, enviou para o Brasil patrícios para garantir o

povoamento da Colônia e o domínio sobre as terras.

Esse grupo de pessoas enviadas para ocupar o Brasil tinha o objetivo de fazer da

Colônia uma terra semelhante – tanto cultural quanto economicamente – à Coroa portuguesa.

Assim, os portugueses vieram ao Brasil para habitar, cultivar e explorar a terra estrangeira.

Os portugueses que aqui chegavam se acomodavam em regiões distintas da Colônia e tinham

cada família ou homem uma forma de sustento. A família torna-se a base da colonização do

Brasil.

De acordo com Ricardo citado por Souza e Botelho (2001), a sociedade brasileira do

período colonial é formada a partir de três formas de composição familiar. A primeira era

representada por uma sociedade agrária, típica do Nordeste brasileiro, cunhada na

monocultura, no escravagismo e nos grandes latifúndios de cana-de-açúcar. A segunda, a

sociedade pastoril, representada pelas fazendas de gado, pela vida selvagem das capitanias do

Piauí e do Rio Grande; e, pela interioridade do povo mineiro. E, por último, a sociedade

bandeirante, com seus homens aventureiros e suas mulheres soberanas.

O que se pode perceber através dos estudos de Silva (1998) é que as famílias se

compunham de acordo com a atividade econômica da qual viviam. A família numerosa, com

vários escravos em seu entorno, era típica da agricultura canavieira, uma vez que esse tipo de

cultura exigia grande número de mão-de-obra para a sua manutenção. Diferentemente, as

famílias que viviam ao redor das fazendas de gado necessitavam de grande expansão de terra

para as pastagens, mas pouca mão-de-obra para a lida com o gado.

Através dos estudos sobre a família no Brasil, vislumbram-se diversas formas de

famílias que compunham o cenário do Brasil no período colonial. Assim, serão

caracterizadas essas várias tipologias de família encontradas no Brasil, a partir das pesquisas

de Silva (1998). Essa autora cita em seu trabalho as seguintes formas de composição familiar

30

na Colônia portuguesa: a família da Casa-grande; das fazendas de gado; a família mineira; a

de sitiantes, chacareiros e roceiros; e as famílias de comerciantes.

Os engenhos de açúcar eram a força econômica predominante no nordeste brasileiro,

sendo esses encontrados principalmente em Pernambuco e no Recôncavo baiano.

[...] às vésperas da invasão holandesa no Nordeste, estavam 350 engenhos funcionando no Brasil, dois terços dos quais localizados na Bahia e em Pernambuco; na primeira década do séc. XVIII foram calculados em 528; na década de 1770, só em Pernambuco e Paraíba, contabilizavam-se 406 engenhos. (SILVA, 1998, p. 51).

As famílias que se formavam ao redor dos engenhos de açúcar se caracterizavam pela

extensão de seus membros. Uma família numerosa, em que não apenas os laços de

consangüinidade caracterizavam o grupo familiar, mas também os laços de dominação entre

o homem branco, o escravo e o índio, sendo esse último o único ser genuinamente brasileiro.

Para Freyre (2002), a sociedade colonial brasileira desenvolveu-se dentro das casas-

grandes a partir de um regime patriarcal e aristocrático. O senhor de engenho, com sua

autoridade indiscutível, propiciava a expansão e a riqueza da Colônia.

A família [...] é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. (FREYRE, 2002, p. 92).

A família que cresceu em torno da agricultura canavieira no Brasil colonial foi a

patriarcal. Esse modelo de família de origem portuguesa movimentava não apenas a casa-

grande, mas também toda a sociedade aristocrática do nordeste brasileiro. As famílias

patriarcais “[...] faziam parte do cenário social como verdadeiros alicerces da vida coletiva.

Privilégio não do universo brasileiro, mas característica comum às sociedades tradicionais.”

(ROMAGNOLI, 1996, p. 42).

A base econômica agrícola brasileira fortalece o modelo de família patriarcal e, por

extensão, rural. Para Freyre (2002), a exploração sobre a cultura de cana-de-açúcar se dá

devido às dificuldades de se explorarem outras riquezas nas diversas regiões do País.

A família patriarcal era composta pelo senhor de engenho, esposa e filhos legítimos.

Junto a eles ainda encontram-se os parentes – tanto da linhagem do patriarca quanto da

esposa – os agregados e os escravos.

O senhor de engenho, o patriarca da família, detinha o domínio de tudo e todos no

engenho; de maneira rígida, era ele quem ditava as normas e regras. O patriarca, figura

31

centralizadora e detentora de poder, exercia um controle forte e implacável sobre o engenho

em nome da honra e da preservação do patrimônio e da linhagem.

A família patriarcal se formava principalmente pelos laços matrimoniais. Essas uniões

eram pautadas através do prestígio social da família no círculo social e da posição ocupada

pelos noivos na família de origem. O casamento era utilizado como forma de controle de

bens e de expansão das riquezas. Casava-se com o intuito de fortalecer as alianças entre as

famílias e não porque havia interesse afetivo mútuo entre homens e mulheres. As bodas eram

determinadas pelos patriarcas das famílias, sem considerarem a opinião ou a posição afetiva

dos nubentes.

A função6 do casamento e da família era a de garantir a preservação do patrimônio.

Ainda, a família era responsável pela segurança e o bem-estar de seus membros. Os aspectos

educativos e religiosos faziam parte da educação recebida pela prole. Essa, por sua vez, era

de responsabilidade da figura feminina da casa, que orientava as escravas no cuidado dos

filhos.

De acordo com o que já foi dito, a vida das famílias nas fazendas de gado muito se

diversificava da vida nas casas-grandes. A partir dos estudos de Silva (1998), é possível notar

que esse tipo de atividade econômica acontecia nas regiões do Piauí e do Rio Grande do

Norte.

Devido à hostilidade dos índios na região do rio Parnaíba, poucas eram as famílias

que se aventuravam em se concentrar ao redor da casa da fazenda de gado. As famílias que

ali viviam eram pequenas e na maioria das vezes a propriedade era ocupada pelos peões e

pelo dono das terras. “[...] Nas 129 fazendas de gado do Piauí em 1697, só havia uma mulher

branca, que eram raras as negras e mesmo as índias não eram numerosas. Famílias

praticamente não existiam naqueles sertões.” (SILVA, 1998, p. 69).

Essa realidade no sertão da Colônia começa a se modificar em torno de 1760, em

função da chegada do primeiro governador da capitania, João Pereira Caldas. Com a expulsão

dos jesuítas, suas fazendas são tomadas pela Coroa portuguesa, que, por sua vez, concede aos

patrícios terras com o intuito de criar vilas que pudessem acelerar o crescimento econômico e

produtivo da região. A concessão de terras a partir da política de sesmarias7 garantia a

6 A palavra função é utilizada aqui com o sentido de funcionalidade. 7 Terras brasileiras abandonadas ou improdutivas que eram doadas pela Coroa portuguesa aos colonizadores. A extensão agrária dessas terras equivale a 6.600 metros.

32

proliferação da pecuária e, conseqüentemente, o aumento do convívio das famílias nas

fazendas de gado (SILVA, 1998).

Os casamentos aqui também são arranjados e os dotes são acordados em números de

cabeças de gados. O pai, dono de todas as cabeças (de gados e de pessoas), também legisla

sobre a vida de todos na fazenda. É ele quem cuidará da riqueza da esposa a partir da

comunhão em matrimônio.

Já as famílias constituídas na região das Minas Gerais se apresentavam bem menos

abastadas que as famílias de engenho de açúcar e das fazendas de gado. No final do período

colonial, observa-se que a economia das Minas Gerais não se baseava apenas na extração do

minério, mas já se apresentava na união entre o cultivo da cana-de-açúcar, a agropecuária e a

mineração.

Acreditava-se que o ofício da mineração prejudicava a formação da família devido à

crença de que apenas os homens e seus escravos habitavam a região. No entanto, documentos

que concediam a moradores da região terras a partir da política de sesmarias refutam essa

idéia e confirmam a consolidação de núcleos familiares, uma vez que só se doava terras para

quem possuísse família. (SILVA, 1998).

Para Souza e Botelho (2001), a família é o centro da sociedade mineira, sendo a

autoridade patriarcal o cerne da vida doméstica. Os lugares ocupados por homens e mulheres

dentro da casa são claros e bem definidos. O homem mineiro ocupa o lugar de lei naquela

sociedade. No entanto, com a decadência da mineração, ocorrerá uma queda do domínio

patriarcal, tendo então a mulher se tornado a voz no interior da família. O regime matriarcal

naquele momento orienta a vida mineira. A mulher ganha destaque na família, mas a

hierarquia entre homens e mulheres no seu interior permanece tão sólida quanto as

montanhas de Minas.

No Planalto Paulista, são encontradas as pequenas propriedades nas quais o modo de

vida se dava de forma mais comunitária através da convivência comum de várias famílias. As

famílias eram pequenas, porém os grupos mais numerosos, tendo o pai, também, um lugar de

destaque no grupo familiar. (SOUZA; BOTELHO, 2001).

Roças, sítios e chácaras são propriedades rurais com baixa extensão de terra

encontradas na Capitania de São Paulo. Essas terras são concedidas através de sesmarias para

pequenos produtores, que também tinham a posse de escravos. Em alguns casos, quando a

terra era explorada por pessoas que não receberam a doação dos terrenos por sesmaria, esses

precisavam pagar à Coroa um foro. (SILVA, 1998).

33

Quanto à política das bandeiras, a família seria condição sine qua non para que essa

ocorresse. Aos bandeirantes só eram permitidas expedições no interior da Capitania Paulista,

uma vez que eles tinham famílias formadas para as quais poderiam retornar após a

exploração da terra e das riquezas minerais. Às mulheres dos bandeirantes cabia aguardar os

maridos do retorno do desbravamento e da colonização das novas terras. Eram elas

responsáveis por gerenciar sozinhas a casa e os poucos escravos que lhes restavam.

Nas culturas de café em solo paulistano encontravam-se semelhanças quanto às

grandes plantações de cana-de-açúcar no nordeste brasileiro. No entanto, Ellis Júnior citado

por Souza e Botelho (2001) afirma que em São Paulo:

[...] não havia monocultura especializada. Não havia latifúndios. Não havia escravidão africana. Não havia opulência. [...] O regime sociológico era o comunitarismo das bandeiras e os núcleos patriarcais, por não haver o latifúndio, se aglomeravam na pequena propriedade banindo o isolamento, e cultivando maior sociabilidade nos vilarejos satélites de Piratininga. (ELLIS JÚNIOR apud SOUZA; BOTELHO, 2001, p.420).

Os casamentos nas famílias paulistas se davam de forma restrita, sendo as uniões

limitadas ao círculo de parentes. A população paulista se multiplicava em torno da

consangüinidade. Nessa realidade, os casamentos ocorriam em menor número do que nas

famílias das casas-grandes.

A pluralidade de formatos de famílias no Brasil Colônia comprova que as diferentes

formas de famílias não são um fenômeno contemporâneo. É possível pensar que as famílias

nos dias de hoje são herdeiras dos modelos de famílias compostas desde a época colonial.

Será apresentado a seguir como as famílias se consolidaram no Brasil moderno dos

séculos XVIII e XIX, e como elas deixaram heranças às famílias dos dias atuais.

2.2.2 A família moderna brasileira

Como se pode observar, no Brasil do período colonial, a sociedade se caracterizava

por uma economia tipicamente rural, agrária, sendo a família demarcada pelo parentesco.

Com a emergência da modernidade, a sociedade brasileira se caracterizará como urbana,

tendo uma sociedade fundada em relações de classes e a família pautada nas relações de

produção.

34

No final do século XVIII e durante todo o século XIX, ocorreram mudanças

fundamentais na base da economia brasileira. A exportação do açúcar associada à exploração

do ouro via comercialização promovem uma nova característica à colônia portuguesa. O

Brasil colônia, de economia tipicamente rural, converte-se numa economia comercial. Essa

nova economia promove as migrações do meio rural para o meio urbano, provocando o

acúmulo de pessoas nas cidades.

A urbanização transforma as pequenas vilas em cidades. Essas vão se constituindo

como centros sociais, pouco a pouco. “Inicialmente, precárias e rudimentares, foram criadas

pelos senhores rurais, possuindo como modelo o engenho ou as fazendas e funcionando como

apêndice das propriedades rurais.” (ROMAGNOLI, 1996, p. 53).

A concentração de pessoas no meio urbano provoca uma nova realidade. O Estado

começa a interferir nas cidades e conseqüentemente no meio familiar através dos médicos

higienistas. Para Costa citado por Romagnoli (1996), a medicina higienista é o instrumento

utilizado pelo Estado para controlar, ordenar e subordinar a população, e mais diretamente o

grupo familiar. Apesar das transformações econômicas e sociais, a família ainda se mantinha

sob a custódia do poder patriarcal. Este, por sua vez, a partir da fidelidade aos próprios ideais,

poderia ameaçar os planos do Estado para com seus cidadãos. O saber médico então recai

sobre a família através dos princípios de intimidade, saúde, redefinição de papéis e do

conforto doméstico.

Outro resultado da atuação do dispositivo médico é a junção da saúde e da prosperidade da família em estreita dependência com sua sujeição ao Estado. Amar à pátria torna-se sinônimo de saúde, de instrução e de organização, e conseqüentemente, famílias saudáveis formavam um Estado saudável! A conversão do universo familiar à ordem urbana possui também o intuito de “nacionalização”, produzindo indivíduos convictos de que da higiene e da disciplina de seu cotidiano dependiam o futuro de sua nação. A família, gradativamente, vai se consolidando como célula mestra da sociedade. Célula mestra esta que já não é mais subordinada ao pai, tendo como fim último a coesão e a preservação do grupo; pelo contrário, o objetivo agora são os filhos, fruto de um casal unido em matrimônio pelo amor, derivado de uma ênfase cada vez mais crescente no indivíduo, propagada pelos higienistas. Filhos que em última instância devem ser bem criados e esbanjar saúde, para desta maneira participar do progresso da pátria. (ROMAGNOLI, 1996, p. 55–56).

Com a modernidade, a família brasileira se reestrutura; no entanto, ainda permanecem

traços do modelo de família patriarcal do período colonial. É possível dizer que o modelo de

família conjugal moderna do século XIX – que surge a partir da decadência do modelo

patriarcal do século XVIII – é herdeira de um modelo de família de camadas sociais

35

dominantes, tendo o homem, pai de família, a posse sobre todos os bens, ou seja, esposa,

filhos e as riquezas de família.

A família conjugal moderna – a família burguesa – caracterizava-se por uma ênfase na dicotomia público/privado, relativa às atividades do homem e da mulher, distinguindo o trabalho produtivo – remunerado – do improdutivo – não remunerado, doméstico, invisível. Essa família intimista excluía a mulher da produção e reforçava-a no papel de esposa e mãe, centrado na esfera doméstica. Revalorizava a esfera privada e os papéis femininos. A figura do pai era enaltecida, figura mais importante nas decisões da casa e no aspecto jurídico. (COELHO, 2000, p. 13).

A família conjugal pode ser definida como “[...] uma sociedade composta pelo casal,

unidos em matrimônio, e os filhos decorrentes desta união, caracterizando um grupo social

restrito em estrutura, função8 e hierarquia.” (ROMAGNOLI, 1996, p. 63). Esta família se

constitui por um número pequeno de membros quando comparada à família patriarcal do

período colonial. Nela se encontra o casal de cônjuges com sua prole reduzida, residindo em

casas próprias, sem a presença de outras figuras de parentesco, sendo sua rotina vivida

independente das famílias de origem. Possui a missão de procriar e criar os filhos sempre a

partir de ideais afetivos. O poder no âmbito familiar é compartilhado entre os cônjuges.

(ROMAGNOLI, 1996).

A família, assim tratada, se pauta num pensamento moderno, no qual valores de

igualdade são intrínsecos a homens e mulheres. A desigualdade entre os indivíduos irá surgir

pela diferença dos meios de produção que cada um ocupa e conseqüentemente por aquilo que

seu trabalho lhe permite possuir (propriedades). Dessa forma, a sociedade moderna se

caracteriza pelos valores igualitários, negando os valores tradicionais, fundados na hierarquia.

(DUMONT apud VAITSMAN, 1994). No entanto, verifica-se que esses ideais se perdem na

sociedade moderna, uma vez que as relações de propriedade se organizaram socialmente

através dos meios produtivos do trabalho remunerado.

A família conjugal moderna estrutura-se através de uma divisão sexual do trabalho,

que impede o exercício da liberdade e igualdade de forma equivalente entre homens e

mulheres. Isso se deve porque as funções produtivas anteriormente controladas pelas famílias

– como, por exemplo, os engenhos de açúcar – são transferidas para o mercado de trabalho,

fazendo com que a família conjugal moderna perca seu caráter de unidade produtiva. A

hierarquização surge nesse modelo de família através das atividades produtivas que, na

8 A palavra estrutura é utilizada no sentido de organização. Já a palavra função está colocada na frase no sentido de funcionalidade.

36

maioria dos casos, são destinadas ao homem, que sai de casa e possui remuneração pelo seu

trabalho; e pelas atividades não produtivas, que se referem ao trabalho da mulher, de cunho

doméstico, não remunerado, no cerne da família.

A noção romântica de individualidade9 e de amor que justifica o casamento no mundo

moderno é também o motivo dos desencontros e dos desenlaces das uniões entre os

indivíduos. A livre escolha, ponto crucial da singularidade do homem moderno, é a fenda de

ruptura matrimonial, pois quanto maior a possibilidade de escolha, maior será a valorização

de si mesmo e conseqüentemente maior será o conflito gerado entre o indivíduo e o coletivo.

Para Vaitsman (1994), a família conjugal moderna no Brasil – também chamada de

família patriarcal moderna –, apesar de resguardar aspectos da família do período colonial,

vai se diferenciar dessa última a partir de certa igualdade de direitos entre homens e

mulheres, pelo controle da natalidade, pelo aumento do número de divórcios e recasamentos,

pelo enfraquecimento da autoridade paterna e pela participação da mulher no mercado de

trabalho. Essa, por sua vez, se dá devido ao aumento da escolarização da mulher em nível

mais avançado, decorrente da abertura legal para seu ingresso em cursos universitários.

Não apenas os fatores apresentados por Vaitsman (1994) influenciam no modo de

vida das famílias no Brasil moderno. Pode ser destacada ainda a interferência das leis que

regulamentam o País, que incidem diretamente no contexto familiar. Essa situação é

verificada a partir da perda do poder patriarcal, tanto no interior da família quanto da

sociedade, sendo ele transferido para o poder judiciário. A família, que antes funcionava por

um regime patriarcal, agora passa a funcionar a partir de leis sociais ditadas pelo Estado. É

percebida esta mudança, por exemplo, no consentimento em 1943 pela legislação que

autoriza a mulher casada a trabalhar fora de casa sem precisar da permissão prévia do marido.

Agora, a mulher que desejava trabalhar poderia escolher seu caminho profissional

independentemente dos desejos de seu cônjuge. (PENA apud VAITSMAN, 1994).

Até a Constituição de 1988, era o Código Civil de 1916 que determinava as

formações de família no Brasil. O Código Civil brasileiro foi cunhado a partir de preceitos

franceses, o qual colocava a família num sistema patriarcal, matrimonializada, hierarquizada,

fundada numa comunidade de sangue. O homem ocupava o lugar de chefe da família; a

mulher e os filhos encontravam-se em posição hierarquicamente inferior. A unidade familiar

é mantida pela impossibilidade da dissolução do vínculo conjugal. (MATOS, 2000).

9 A noção romântica de individualidade do homem moderno e contemporâneo se dará através dos ideais de felicidade, que se concretizarão pela realização pessoal do indivíduo, não se considerando o bem-estar coletivo.

37

No entanto, como já foi dito, desde os tempos do descobrimento, várias formas de

famílias coabitavam o solo brasileiro. Assim, em 1988, com a nova Constituição é preciso

reformular o conceito de família. Esta, por sua vez, ganha novo formato na ordenação

jurídica brasileira, pois passa de um modelo de família formada para a manutenção

patrimonial, presente no Código Civil de 1916, para uma família formada a partir de laços

afetivos. Para que uma família seja considerada como tal não é mais necessário o vínculo

testemunhado em papel, deixando então o casamento de ser a base da família brasileira. A

hierarquia de seus membros agora está calcada no princípio da igualdade; a Constituição

consagra a direção da família tanto pela figura do pai quanto da mãe. A família extensa

transforma-se na família nuclear, e agora com a legitimação da Constituição de 1988, pós-

nuclear. Outorga-se pela Constituição um modelo de família eudemonista10, preocupada com

a realização pessoal dos indivíduos que a compõem.

Não se tutela mais a família como ente transpessoal, vinculada à relação de produção e procriação, mas sim como garantidora de realização pessoal, de caráter íntimo e afetivo dos indivíduos. [...] com a Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar a existência de um modelo jurídico plural de família. (MATOS, 2000, p. 03 - grifo nosso).

Com a Constituição de 1988 há uma expansão no que se considera entidade ou

unidade familiar. A nova Constituição aponta características comuns as quais são chamadas

de entidades familiares. De acordo com Lôbo (2002), essas características são: a) a

afetividade como fundamento e finalidade do grupo familiar; b) a estabilidade, não se

reduzindo esta a união legal; c) a ostensibilidade, forma de aparição pública da família.

Lôbo (2002) acredita que a expansão legal da família ocorreu pela mudança de foco

no que diz respeito à proteção. De acordo com ele, a questão da proteção nas Constituições

anteriores a de 1988 incidia sobre o grupo familiar, uma vez que este era a base do Estado

Brasileiro e de sua organização política, social, religiosa e econômica. No entanto, na

Constituição de 1988, o foco quanto à proteção passa para as pessoas humanas que compõem

as entidades familiar e social, tendo estas mais deveres previstos em Lei do que direitos. A

proteção da família se dará a partir do interesse da realização existencial e afetiva das pessoas

que a compõem. Sendo assim, não se pode proteger determinados tipos de famílias e

desproteger outros, pois essa ação infligiria o princípio fundamental da Constituição

brasileira, da dignidade humana. 10 O eudemonismo é uma doutrina que considera a busca de uma vida feliz, seja em âmbito individual, seja coletivo, o princípio e fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade. (HOUAISS, 2002).

38

Há também o fato de que a valorização do afeto ajuda a promover a legalização dos

demais tipos de famílias na Constituição de 1988. Esta passa a reconhecer o afeto como elo

que consagra as relações familiares, pois é a partir de relações de afeto que a família será

composta. Sendo assim, a Constituição de 1988 não funda mais a entidade familiar através de

suas funções provedoras.

Os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios, tutelando-se os efeitos jurídicos pelo direito de família e jamais pelo direito das obrigações, cuja incidência degrada sua dignidade e das pessoas que as integram. A Constituição de 1988 suprimiu a cláusula de exclusão, que apenas admitia a família constituída pelo casamento, mantida nas Constituições anteriores, adotando um conceito aberto, abrangente e de inclusão. (LÔBO, 2002, p. 55).

De acordo com Vaitsman (1994), o avanço da mulher quanto à escolarização foi outra

influência que permitiu as transformações da família no Brasil. A entrada maciça da mulher

no ensino superior a partir de 1966 permitiu a equiparação do nível educacional entre

mulheres e homens. Elas, por sua vez, entram no mercado de trabalho mais qualificadas,

podendo assim adquirir melhor remuneração, não se restringindo mais ao mercado

profissional no exercício de tarefas domésticas ou ao do magistério em cursos primário e

secundário. Será essa condição que permitirá às mulheres questionar sua condição

hierárquica em relação ao homem nas esferas social e sexual.

As transmutações sociais corroboram para o surgimento das modificações familiares,

pois sendo a família o pilar da sociedade moderna, essa é atingida diretamente em seu núcleo

– na forma de se compor – pelas transformações sociais.

No rastro dos tempos modernos, as transformações na estrutura social brasileira, que tiveram início no final do século XVIII e se consolidaram no século XIX, atingiram maciçamente o grupo familiar, que torna-se, paulatinamente, a organização social básica, a célula mestra da sociedade moderna. Inicia-se, assim, a caminhada da mutação familiar através da modernidade, onde, em uma seqüência presente em todo o mundo ocidental, vamos presenciar no pólo inicial as famílias nucleares, também chamadas conjugais, formadas pelo casal de cônjuges com seus filhos. Modificações essenciais e inegáveis, cujos efeitos permanecem até os nossos dias. (ROMAGNOLI, 1996, p. 51).

Não diferentes do contexto mundial, as transformações sociais – como, por exemplo,

as novas concepções de casamento, a lei do divórcio, as relações de conjugalidade, a

ascensão da mulher nos meios de produção, entre outros – que provocam mutações na família

trazem também para a família brasileira uma nova realidade. Os grupos familiares, que desde

39

o período colonial do Brasil já coexistiam, começam a ganhar espaço e status no contexto

social, sendo consentidos pelo poder judiciário.

Sendo assim, as famílias extensas pertencentes ao período colonial se

metamorfoseiam em famílias conjugais, nucleares. Essas, por sua vez, se pluralizam. Ganham

novas roupagens, novas composições; no entanto, permanecem denominadas de famílias.

2.2.3 A família contemporânea brasileira

Os movimentos que surgem no cenário mundial na segunda metade do século XX,

como, por exemplo, a consolidação social das mulheres no espaço público, a legalização em

alguns países de uniões homossexuais, a convivência pacífica (em alguns países) quanto à

diversidade religiosa, entre outros, propiciam mutações no mundo contemporâneo.

Para Vaitsman (1994), a sociedade contemporânea se caracterizará por um cotidiano

fragmentado, descontínuo e heterogêneo. Devido a essa qualidade é impossível pensar, nos

dias de hoje, a vida social a partir de uma universalidade. O fenômeno da globalização11

confirma a invasão cosmopolita mundial, que adentra o universo social de forma maciça,

principalmente pelos meios de comunicação, tendo a Internet a sua principal representante,

fazendo do múltiplo, do diverso, algo familiar aos indivíduos do planeta. Assim, o mundo

contemporâneo é pensado a partir de pluralidades de realidades que coexistem e

interpenetram-se.

Nesse contexto, não se pode pensar a família por meio de um único modelo que a

represente. De acordo com Ribeiro (2000), a família nuclear neste milênio ainda possui forte

influência nos ideais das pessoas, pois ela surge na sociedade como promessa de um modelo

de família feliz.

No Brasil, no ano de 2003, foi promulgado um novo Código Civil, que confere à

família um novo estatuto. Desse modo, pode-se chamar de família qualquer grupo social

formado por casamento, união estável ou comunidade de qualquer genitor e descendente. A

nova legislação institui que o casamento é a "comunhão plena de vida". No entanto, ele prevê

11 A globalização é um processo pelo qual a vida social e cultural nos diversos países do mundo é cada vez mais afetada por influências internacionais em razão de injunções políticas e econômicas. (HOUAISS, 2002).

40

que o mesmo é apenas uma das modalidades de constituição da família. Nele está

determinado que os cônjuges possuem direitos e deveres igualitários.

Mesmo com os avanços no que tange à questão familiar, o novo Código não legitima a

união entre pessoas do mesmo sexo como caracterização de grupo familiar. No entanto, tenta

amenizar essa situação através da garantia da partilha de bens quando for comprovada a união

estável de fato.

É possível, pois, concluir que, a partir de 2003, no Brasil, a idéia de família pode ser

resumida a pessoas que convivem juntas, assumindo um compromisso de uma ligação

duradoura entre si, incluindo uma relação de cuidado entre os adultos e deles para com as

crianças. (ROMAGNOLI, 2006).

As mudanças no interior da família – nos dias de hoje, como também no passado –

são decorrentes de uma gama de influências socioculturais que a transformam no seu dia-a-

dia. Essas influências modificam o grupo familiar e “obriga-o” a criar uma nova forma de

organização. Assim, pode-se pensar numa família plural, elástica, que se movimenta a partir

das contingências de sua experiência social.

No ano de 1994, a Associação Municipal de Assistência Social (AMAS) da cidade de

Belo Horizonte, Minas Gerais, realizou uma pesquisa com 1.041 famílias residentes no

município. O objetivo da pesquisa era subsidiar um programa de apoio às famílias de crianças

e adolescentes.

Na pesquisa, categorizou-se as famílias da capital mineira em oito tipos de famílias12,

sendo: a) Nuclear simples: família composta pelo casal de cônjuges e seus filhos, sendo esses

filhos do mesmo pai e da mesma mãe; b) Monoparental feminina simples: família em que

apenas a mãe está presente no domicílio, vivendo com seus filhos e eventualmente com outros

menores sob sua responsabilidade; c) Monoparental masculina (simples ou extensa): família

em que apenas o pai está presente no domicílio, vivendo com seus filhos e eventualmente com

outros menores sob sua responsabilidade e/ou outros adultos sem filhos menores de dezoito

anos; d) Nuclear extensa: família em que o pai e a mãe estão presentes no domicílio, vivendo

com seus filhos, outras crianças menores sob sua responsabilidade e também outros adultos,

parentes ou não do casal de pais; e) Monoparental feminina extensa: família em que apenas a

mãe está presente no domicílio, vivendo com seus filhos e outros menores sob sua

responsabilidade, e também outros adultos, parentes ou não; f) Família convivente: famílias

12 As definições de família assim como as nomenclaturas foram retiradas do relatório de pesquisa “Família de crianças e adolescentes: diversidade e movimento.” Belo Horizonte: AMAS, 1995, p. 27 e 29.

41

que moram juntas no mesmo domicílio, sendo ou não parentes entre si; g) Família nuclear

reconstituída: família em que o pai e/ou a mãe estão vivendo em nova união, podendo o casal

ter filhos com idade até dezoito anos da primeira união, vivendo ou não com seus pais na

nova união. Outros adultos podem viver no domicílio; h) Família de genitores ausentes:

família cujos genitores não estão presentes, mas existem outros adultos responsáveis pelos

menores de dezoito anos; i) Família nuclear com crianças agregadas: família em que o pai e a

mãe estão presentes no domicílio com seus filhos e também outros menores sob sua

responsabilidade. Não há presença de outros adultos na residência. Pela planilha da figura 1,

abaixo, de acordo com dados da AMAS (1995), é possível verificar as porcentagens dos tipos

de famílias no município de Belo Horizonte:

Na realidade de Belo Horizonte, o que se constatou é que o modelo de família nuclear

ainda é o que supera as demais formas de composição familiar, sendo seguido pelas famílias

monoparental feminina simples e nuclear extensa. Acredita-se que, apesar de haver uma

prevalência do modelo nuclear, são encontradas constantes mudanças nas composições das

famílias e a convivência permanente delas na rotina social.

Há de se chamar a atenção para o fato de que a categorização dos tipos de famílias

estabelecida pela AMAS (1995) não será necessariamente o modo de nomeação que cada

sujeito dará a sua particular experiência de família, pois cada sujeito a partir de sua

experiência é que “denominará” o seu modo de família. No entanto, a categorização proposta

pela AMAS (1995), pautada nos estudos da sociologia da família, é importante para esta

pesquisa, uma vez que a mesma comprova que no cenário social brasileiro coexistem diversas

formas de configurações familiares.

Fig. 1: Porcentagem dos Tipos de Famílias no Município de Belo Horizonte

58%

9% 8% 7% 6% 6% 2% 2% 1% 1%

Nuclear Simples Monoparental Feminina Simples Nuclear Extensa Monoparental Feminina Extensa Famílias Conviventes Nuclear Reconstituída Família de Genitores Ausentes Nuclear com crianças agregadas Monoparental Masculina (simples e extensa) Sem Informação

Fonte: AMAS – “Família de crianças e adolescentes: diversidade e movimento”, 1995.

42

Ainda de acordo com a pesquisa da AMAS (1995), a família, independente de sua

forma, deve garantir àqueles que a compõem as seguintes condições: 1) o cuidado e a

proteção de seus membros, principalmente aos menores de dezoito anos; 2) a divisão do

trabalho e a definição de papéis de forma mais clara possível, propiciando a sobrevivência do

grupo e a manutenção do lar; 3) a vivência da sexualidade e da afetividade calcadas nas

normas culturais (destacando aqui a proibição do incesto), o respeito quanto às diferenças e os

direitos entre homens e mulheres; 4) favorecer a convivência com o grupo familiar extenso,

entendido aqui como as relações entre parentes das famílias de origem.

Essas condições apresentadas pela AMAS (1995) mais uma vez tiram o foco no modo

de composição das famílias. O que a pesquisa sugere é que a família para ser denominada

como tal, deve assegurar a seus membros uma convivência afetiva que favoreça o

desenvolvimento pessoal e social deles dentro do grupo em que estão inseridos. A

configuração familiar torna-se então coadjuvante no favorecimento dessas condições.

Dos inúmeros arranjos e formatos familiares, modificações da estrutura e da família brasileira atual, conviver com o novo e o tradicional é um processo característico da não linearidade e complexidade de mudanças interacionais. A Família e as famílias que se nos apresentam nos anos 90, ou seja, a família pensada e as famílias vividas, são produto e produtor, ao mesmo tempo, de transformações nos níveis simbólico e funcional das relações institucionais. A família inventa cultura. (COELHO, 2000, p. 20).

No ano de 200013, realizou-se em todo o Brasil o censo populacional. Uma das

categorias avaliadas no censo foi a forma de caracterização das famílias brasileiras.

Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que se pode chamar de

família é um grupo de pessoas que vivem sob o mesmo teto. Ainda, considerou-se como

família “[...] o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência

doméstica ou normas de convivência, que residissem na mesma unidade domiciliar e,

também, a pessoa que morasse só em uma unidade domiciliar.” (BRASIL, 2006).

A partir desse ponto de vista, verificou-se no censo de 2000 que a maioria das

famílias brasileiras é formada por pessoas com laços consangüíneos. O relatório aponta que

outras formas de famílias estão presentes na realidade brasileira, sendo as famílias

13 No ano de 2007 o IBGE realizou uma operação censitária que abrangeu o censo agropecuário, a contagem da população e o cadastro nacional de endereços para fins estatísticos. O último Censo Demográfico foi realizado no período de outubro de 2005 a setembro de 2006, com o objetivo de atualizar dados populacionais incorporando as mudanças demográficas ocorridas no território nacional. O Censo Demográfico aponta informações como: natalidade, mortalidade, características gerais e de migração, características de instrução, características dos domicílios, características das famílias, características de trabalho e rendimento e características de fecundidade. Neste trabalho utilizaremos as informações relativas às características das famílias no território brasileiro tendo como base os dois últimos Censos Demográficos realizados no país.

43

unipessoais, ou seja, família de uma pessoa só, a que mais cresceu nos últimos nove anos, de

2,4 milhões em 1991 para 4,1 milhões em 2000.

Como na cidade de Belo Horizonte, o que se constatou nos demais municípios

brasileiros é que mais da metade (55,4%) das famílias brasileiras são formadas pelo modelo

clássico de família nuclear. Essa realidade está presente principalmente nos municípios com

população de até vinte mil habitantes, sendo que nas grandes cidades destacam-se os modelos

de famílias monoparentais femininas.

Quanto à nupcidade, o relatório do IBGE (2002) aponta que quase a metade da

população com dez anos ou mais do país era composta por pessoas casadas ou unidas a um

cônjuge (49,5%); 38,6% eram solteiras; 7,8% desquitadas, separadas ou divorciadas; e 4,1%

eram viúvas. Esses dados podem ser verificados no quadro a seguir:

Quadro 1: Distribuição das famílias por tipo e a situação do domicílio, segundo as classes de tamanho da população dos municípios Brasil - 2000

Classes de tamanho da

população dos municípios

Unipessoal 2 ou +

pessoas sem parentesco

Casal sem

filhos

Casal com

filhos (1)

Mulher sem

cônjuge com filhos

Casal com

filhos (2)

Outras modalidades

Total 8,3 0,2 15,6 52,4 12,6 3,0 7,9

Até 20.000 8,0 0,1 15,3 57,4 10,1 1,5 7,5

de 20.001 até 100.000

7,6 0,1 15,1 55,3 11,8 2,3 7,7

de 100.001 até 500.000

8,1 0,2 15,6 52,2 13,2 3,3 7,4

mais de 500.000 9,5 0,4 16,1 46,4 14,4 4,2 9,0

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000. Nota: (1) Casal com filhos sendo o responsável do sexo masculino. (2) Casal com filhos sendo o responsável do sexo feminino.

No censo de 2005/2006, verificou-se que crescem as famílias chefiadas por mulheres

sobre as famílias em que figura a presença do cônjuge; do total das famílias com parentesco,

em 28,3%, a chefia é feminina, e neste conjunto, 18,5% contam com o cônjuge. Houve

também um crescimento expressivo das famílias com mulheres com filhos e sem cônjuge na

chefia familiar: no Nordeste, de 17,4% para 20,1% e no Sudeste de 15,9% para 18,3%.

O relatório aponta que a proporção de mulheres na chefia das famílias com parentesco

nas áreas metropolitanas é mais elevada do que a porcentagem nacional, sendo esta expressa

por 28,3% da população pesquisada, enquanto que em regiões metropolitanas como a de

44

Salvador conta com uma porcentagem de 42,0%. Este indicador revela uma mudança de

padrão na caracterização das famílias, em que a figura do provedor não está mais atrelada

apenas ao sexo masculino.

No relatório, foi encontrada, também, uma redução quanto aos membros que

compõem os grupos familiares. De acordo com o IBGE (2006), a presença de parentes nas

famílias foi reduzida entre os censos realizados nos anos de 1995 e de 2005. Reduziu-se,

também, o percentual de casal com filhos, que era de 63,7% para 53,3%, na Região Nordeste,

mudança também ocorrida no Sudeste.

Quadro 2: Famílias e pessoas residentes em domicílios particulares, por condição na família, segundo algumas características da pessoa de referência da família - Brasil - 2006

Pessoas residentes em domicílios particulares (1 000 pessoas) (1)

Condição da Família Algumas

características da pessoa de referência da família

Famílias residentes

em domicílios

particulares (1 000

famílias)

Total Pessoas de Referência

Cônjuges Filhos Outros

Parentes Sem

parentesco

Total 59.094 186.628 59.094 38.383 77.683 10.841 627

Sexo

Masculino 40.542 137.083 40.542 35.207 55.399 5.588 346

Feminino 18.552 49.544 18.552 3.176 22.283 5.252 281

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006. Nota: (1) Exclusive as pessoas cuja condição na família era pensionista, empregado doméstico ou parente do empregado doméstico

Pode ser observado que tanto na pesquisa realizada nos anos noventa pela AMAS em

Belo Horizonte, quanto a pesquisa feita nos dois últimos censos brasileiros (2000 e

2005/2006) que, a cada dia, diversas formas de famílias vêm tomando conta mais e mais do

espaço social. Dessa forma, é fundamental que se entendam as transformações sociais que

trarão impacto à vida das pessoas. Chamar as famílias de hoje que fogem do modelo nuclear

de desestruturada ou irregular é ignorar os avanços e as mutações sociais. É esquecer que a

vida, apesar de suas diferentes faces, funciona a partir de um mesmo movimento. Movimento

este que é desenhado pelas influências sociais, políticas e culturais de uma época.

Mesmo diante das diversas formas de entidades familiares encontradas no cenário

social brasileiro, é notado que, ainda, nos dias de hoje, ocorre uma hierarquização da família

nuclear sobre os outros tipos de famílias, uma vez que esse modelo de família se destaca sobre

45

os demais. Isso ocorre devido aos ideais tradicionais de outrora que consideravam a família

somente através dos laços matrimoniais. Também há em nossos dias certa nostalgia quanto à

questão do casamento, que através de ideais românticos acredita-se ser a família conjugal

tradicional a garantia de felicidade plena.

Ao longo deste capítulo constatou-se que, independente da época e da cultura que

permeiam o conceito e/ou a idéia sobre família, os arranjos familiares vão estar repletos de

ideologias quanto a sua formação e prevalência na realidade social. É necessário, então, estar

sempre atentos para as armadilhas que o tema suscita em cada um de nós, pois todos, sejam

qual for o modelo de família de origem, são sempre oriundos de uma família. Assim, a

“família vivida”, ou seja, a família da realidade, a qual verdadeiramente se faz parte, e a

“família pensada”, família idealizada, fantasiada, sempre fará parte da realidade das famílias,

pois não é possível esquecer que sempre haverá desencontros entre essas duas formas de se

viver a família.

Entre esses desencontros aparecem os lugares, papéis e funções desempenhados por

pais e mães. A seguir, discutiremos a questão do pai e suas versões nos postulados freudiano e

lacaniano.

46

3 AS VERSÕES DO PAI NA TEORIA FREUDIANA

A família foi levada para o divã da Psicanálise – através dos pacientes de Freud –

desde a época em que ele usava a hipnose em seus tratamentos. Quais foram os temas que

chegavam aos ouvidos de Freud naquela época? Segundo Travaglia et al. (2003), o que Freud

escutava em sua clínica não eram as interpelações de seus pacientes quanto aos problemas

mundiais e nem tão pouco questões filosóficas, mas o que cada sujeito trazia eram seus

conflitos familiares e, particularmente, suas questões com o pai.

Na clínica atual, foi constatado que essa busca pelo pai ainda movimenta aqueles que

procuram um trabalho analítico. No entanto, o pai que se busca nos consultórios não é mais o

mesmo da época de Freud. Hoje, o que se procura em relação ao pai não é apenas o encontro

com o pai biológico, mas o encontro com um operador que permita a sexuação dos sujeitos e

a sua inscrição no mundo simbólico.

É importante ser lembrado que o pai a que se refere este estudo é aquele que permite a

inscrição simbólica dos sujeitos, o que encarna a função paterna. Dor (1991) designa o pai que

ocupa esse lugar de embaixador, cujo papel é representar para o filho a função. Dessa

maneira, qualquer pessoa poderá ocupar o lugar de embaixador da função paterna para uma

criança.

Na teoria psicanalítica, encontram-se a partir de Freud e de seus discípulos, como

por exemplo, Jung, Abraham, Ferenczi e Rank, formulações sobre a questão do pai. Com

freqüência se deparam nos textos psicanalíticos com a questão sobre o que é um pai?

A palavra “questão” possui etimologia na língua Latina e significa busca, procura.

Num sentido amplo, essa palavra é utilizada quando se tem dúvida sobre algo. Dessa

maneira, quando algum tema é questionado, é porque ele se apresenta como um problema

e assim deve-se encontrar respostas que apontem para a sua verdade. Sob que aspecto a

questão sobre o que é um pai se constitui como um problema para a Psicanálise?

De acordo com Lang (2002), a pergunta sobre o que é um pai possui caráter

infantil e por isto é uma questão fundamental. Devido a essa natureza, a questão por sua

vez nunca cessará, visto que as indagações levantadas pelas crianças sobre a origem da

vida são circunlóquios infinitos. Desse modo, as crianças criam suas próprias teses sobre a

origem dos bebês e qual a implicação do pai nessa história.

47

Diante destas especulações oriundas da infância sobre a questão do pai, este se

tornará, de acordo com Freud (1912-13/1988), fonte de sofrimento e dor tanto para o

sujeito quanto para a humanidade.

Freud retoma o antigo adágio romano, e dito jurídico, para indicar que do pai só pode haver indícios, vestígios, traços no e pelo exercício de suas funções. Ou seja, nunca se pode chegar a um absoluto do pai, o que leva cada um a percorrer infinitos labirintos até certezas provisórias, sempre renováveis. Nesse sentido, a mãe parece ser, desde um princípio, alguma coisa assegurada, sendo sua problematização restrita. O pai, em contrapartida, pede contínuas reformulações e teorizações (no sentido infantil). E cada uma destas teorias, até o ponto que ela pôde ter avançado, acaba por implicar uma posição e um espaço onde o sujeito pode mover-se com maior ou menor liberdade, com uma quota maior ou menor de prazer ou sofrimento. (LANG, 2002, p. 11).

Ao dedicar-se a estudar a questão do pai desde as tragédias literárias, das concepções

religiosas até a formação dos mitos em comunidades tribais, Freud resgata na história do

homem a importância vital do pai para a constituição da civilização e conseqüentemente da

família.

A valorização dada por Freud ao pai e, ao mesmo tempo, ao homem em sua teoria

deve-se a sua convicção de que a passagem do matriarcado para o patriarcado foi um marco

decisivo de evolução para toda a humanidade. Dessa forma, era necessário resgatar o lugar

perdido pelo pai em relação à feminilização do campo social. Há de se lembrar, como já foi

discutido no capítulo anterior, que a mulher ganha no mundo moderno espaço que até então

era prioritário ao homem. Freud via nesse avanço feminino, mesmo que tímido, a

possibilidade da queda da autoridade do pai, uma vez que esta última só se tornou possível

mediante a superação da intelectualidade (ordem do masculino) sobre a sensualidade (ordem

do feminino). Sendo assim, a família só pôde ser pensada por Freud a partir da primazia do

pai sobre a natureza e da razão sobre o afeto. (ROUDINESCO, 2003).

Ainda para Lang (2002), a teoria freudiana sobre o pai nasce não apenas do sentimento

do declínio do patriarcado vivido na Viena do final do século XIX e na tentativa de resgate da

figura paterna, mas também na revalorização do que representava para o próprio Freud a sua

relação com seu pai Jacob. O autor acredita que a origem da Psicanálise teve como ponto de

partida a experiência familiar do homem Sigismund. Freud era filho do terceiro casamento de

seu pai Jacob com a jovem Amália Nathanson. Essa realidade da família Freud faz torná-la

um modo de família atípica para os moldes das famílias vienenses, que se apresentavam

tradicionalmente como nucleares e conjugais.

48

A relação de Freud com seu pai é destacada na teoria freudiana da paternidade a partir

de dois pontos fundamentais. O primeiro diz do sentimento de culpa de Freud frente à morte

de seu pai, o que lhe possibilita aprofundar nas investigações quanto à questão edípica. E o

segundo diz de uma lembrança infantil significativa para Freud, que abala seu sentimento em

relação a seu pai. (LANG, 2002). Freud escreve no texto da Interpretação dos Sonhos, quando

trata dos sonhos formados a partir de experiências infantis, a seguinte passagem de sua vida:

Eu devia ter dez ou doze anos quando meu pai começou a me levar com ele em suas caminhadas e a me revelar, em suas conversas, seus pontos de vista sobre as coisas do mundo em que vivemos. Foi assim que, numa dessas ocasiões, ele me contou uma história para me mostrar quão melhores eram as coisas então do que tinham sido nos seus dias. “Quando eu era jovem”, disse ele, “fui dar um passeio num sábado pelas ruas da cidade onde você nasceu; estava bem vestido e usava um novo gorro de pele. Um cristão dirigiu-se a mim e, de um só golpe, atirou meu gorro na lama e gritou: ‘Judeu! saia da calçada!’ — “E o que fez o senhor?”, perguntei-lhe. “Desci da calçada e apanhei meu gorro”, foi sua resposta mansa. Isso me pareceu uma conduta pouco heróica por parte do homem grande e forte que segurava o garotinho pela mão. (FREUD, 1900b/1988, p.226 )

Freud vê na recusa do pai em responder de forma violenta a agressão sofrida uma

fraqueza paterna. Jacob, aos olhos do filho Sigismund, perde o lugar de herói e torna-se o

homem comum, judeu, fraco e humilhado.

Dessa forma, é possível perceber que as teses sobre o pai irão ocupar lugar central na

teoria freudiana. Segundo Peres (2002), o pai em Freud possui quatro versões: a primeira é a

do pai sedutor; a segunda, do pai desejo; a terceira, o pai do gozo; a quarta, o pai da lei. Essas

versões são encontradas nos artigos freudianos que tratam da teoria da sedução e dos mitos

sobre o Édipo, do pai da horda primitiva e o mito que trata de Moisés e a religião monoteísta.

Cada uma dessas versões do pai em Freud serão, pois, discutidas.

3.1. As primeiras versões do pai em Freud: do pai sedutor ao pai desejo

Freud acredita que os primórdios da religião, da moral, da sociedade e da arte

convergem para o complexo de Édipo. Os problemas psíquicos e suas soluções se mostram

com base num único ponto concreto: a relação do homem com o pai. (FREUD, 1910/1988).

De onde resulta a emergência do Édipo na teoria freudiana? A Psicanálise nascerá nos

escritos freudianos através dos conflitos psíquicos dos sujeitos oriundos da família conjugal. É

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pela via das neuroses, histérica e obsessiva, que Freud fundamenta o lugar do pai na

constituição desses tipos clínicos.

Para explicar tais conflitos, principalmente a emergência da histeria que se alastrava

na sociedade vienense, Freud vai propor a teoria da sedução. Esta consiste na “idéia de uma

cena sexual em que um sujeito, geralmente adulto, vale-se de seu poder real ou imaginário

para abusar de outro sujeito, reduzido a uma posição passiva: uma criança ou uma mulher, de

modo geral.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 696).

Com a teoria da sedução, Freud pôde explicar a etiologia das neuroses, uma vez que,

para ele, a neurose se fundava a partir de uma experiência real de um abuso sexual. Através da

prática clínica e especificamente pelos relatos de suas pacientes, Freud comprovou a

veracidade de sua teoria. Esta, por sua vez, leva Freud à construção de suas primeiras

hipóteses sobre o recalque e a causalidade sexual nas neuroses. (ROUDINESCO; PLON,

1998).

É aqui que a primeira versão do pai surgirá na teoria freudiana. Freud acreditava que a

neurose de suas pacientes se dava pelo viés da sedução da menina inocente pelo pai perverso.

Assim, o pai da histérica é um pai sedutor.

Nesse momento de sua obra, Freud propunha que a histeria era fruto de uma vivência

real sofrida na infância. A pequena criança sofrera abusos sexuais que na vida adulta

culminariam no quadro da histeria. A escuta do relato de suas pacientes era considerado então

por Freud como situações vividas verdadeiramente e que proporcionavam um acontecimento

traumático. (MARCOS, 2003).

Porém, é em torno de 1897, através de sua auto-análise, que Freud começa a

desacreditar de suas histéricas. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), Freud abandona a

teoria da sedução devido a uma incompatibilidade entre duas teses: a primeira delas seria que

nem todo pai/adulto é violador da pureza infantil. Essa não-convicção de Freud de que todos

os pais seriam os causadores do trauma sexual infantil é proveniente da sua própria recusa em

acreditar que seu pai, Jacob Freud, teria provocado em suas irmãs os mesmos males sofridos

pelas suas pacientes. A outra tese freudiana é que suas pacientes não mentiam quando se

diziam vítimas de sedução.

Como Freud resolve tal impasse teórico? A resposta para tal problema encontra-se na

construção do conceito de fantasia. Ele acreditava que quando suas pacientes inventavam a

sedução sofrida, elas não mentiam e nem simulavam, pois o trauma sofrido é de natureza

fantasística. A fantasia, por sua vez, possui natureza diversificada da realidade material. Essas

conclusões permitiram a Freud comprovar a veracidade da realidade psíquica baseada no

50

inconsciente. (ROUDINESCO; PLON, 1998). Essa nova concepção na causalidade das

neuroses permite postular sobre a sexualidade infantil e conseqüentemente a experiência dos

conflitos edipianos.

[...] o abandono da teoria da sedução por Freud possibilita a tomada do pai como formação do inconsciente, particularmente, o do sujeito histérico. Este é o primeiro passo para que se possa tomar o pai como um retorno do recalcado [...] Para que o pai retorne como um sintoma toma-se uma condição que tenha havido previamente um recalque. Trata-se do recalque de um desejo sexual que a histérica situa no lugar do pai. Para o sujeito histérico, não há desejo senão do pai, deixando-nos entrever a própria estrutura do desejo que se caracteriza pelo fato de que a sua enunciação fica sempre a cargo do Outro. (GOMES, 2002, p. 41-42).

A segunda versão do pai freudiano, ou seja, o pai desejo, aparece nos escritos de Freud

a partir da entrada do mito do Édipo em sua obra. O pai não desaparece como o pai sedutor,

porém retorna como vetor dessa experiência.

Para Bleichmar (1984), o conceito do complexo de Édipo será desenvolvido por Freud

em três formulações distintas, que compreendem ao longo de sua teoria seus textos teóricos e

clínicos. A primeira formulação é encontrada na carta 71 dirigida a Fliess. A segunda

formulação é encontrada nos textos de 1921, Psicologia dos grupos e a análise do ego, e de

1923, O ego e o id. A terceira e última formulação é encontrada no artigo também de 1923, A

organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade, que trata da

organização genital infantil. No entanto, o mito de Sófocles será evocado por Freud em vários

momentos de sua obra.

O termo complexo de Édipo fora usado pela primeira vez por Freud, em 1910, em seu

artigo Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens. Nesse texto, ele trata da

escolha de objeto feita pelos homens, tanto no âmbito da patologia quanto no âmbito da

escolha não patológica. Esta escolha de objeto, nas duas vertentes, encontrará sua origem na

fixação infantil dos sentimentos que os homens nutrem por suas mães na tenra idade.

No entanto, treze anos antes da utilização do termo complexo de Édipo, Freud já fizera

menção à lenda grega e a universalização da vivência que esse conflito provoca nos seres

humanos. É no ano de 1897, em uma de suas cartas ao Dr. Fliess – carta nº 71 –, que Freud

relata ao amigo as conclusões a que chegara em sua auto-análise. Conclui que todo menino

possui uma paixão ardorosa pela mãe e um ciúme repleto de sentimentos ambivalentes de

amor e ódio em relação ao pai. É nesse momento que Freud faz alusão à obra de Sófocles,

Édipo Rei, em que Édipo, filho de Jocasta e Laio, é predestinado a matar seu pai e esposar sua

mãe. Afirma que “[...] a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque

51

sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na

fantasia, exatamente um Édipo como esse [...]”. (FREUD, 1897b/1988, p. 316).

Freud não utiliza o mito do Édipo para suas elaborações sobre a etiologia das neuroses

por acaso. O que ele percebe a partir do relato de seus pacientes é que estes em primórdios de

sua vida experienciavam sentimentos ambivalentes de amor e ódio para o casal parental.

Ainda, na Viena dos tempos de Freud, o modelo burguês de família, prioritário naquela

sociedade, propiciava a vivência edípica e fazia dela dependente de um modelo familiar que

envolve um pai, uma mãe e seu filho.

O complexo de Édipo freudiano funcionava como estrutura, pois exprimia a cultura patriarcal, em um contexto espaço-tempo: a composição da família demarcava lugares e funções, os valores eram universais e incontestáveis, o apreço à verdade constituía-se na única ética. (PAOLI, 2005, p. 01).

É em 1900, em seu célebre livro sobre a Interpretação dos Sonhos, que Freud faz a

primeira referência publicada sobre o drama edipiano. Ao relatar os sonhos de desejo de

morte da mãe ou do pai de seus pacientes, faz alusão à experiência edípica vivenciada por

eles, sendo os sonhos de morte oriundos de tal experiência.

Ainda nesse texto, Freud, ao descrever a lenda sobre o Édipo Rei, destaca a fala de

Jocasta para Édipo, no que se refere aos sonhos que muitas pessoas têm de um dia deitar-se

com aquela/aquele que o gerou como algo estranho a si mesmo, mas que possui total relação

com os desejos incestuosos da infância.

Hoje, tal como outrora, muitos homens sonham ter relações sexuais com suas mães, e mencionam esse fato com indignação e assombro. Essa é claramente a chave da tragédia e o complemento do sonho de o pai do sonhador estar morto. A história de Édipo é a reação da imaginação a esses dois sonhos típicos. E, assim como esses sonhos, quando produzidos por adultos, são acompanhados por sentimentos de repulsa, também a lenda precisa incluir horror e autopunição. (FREUD, 1900a/1988, p. 290).

Qual é a função de Laio, pai de Édipo, na tragédia grega? Laio dá vida e morte a

Édipo, pois possibilita seu nascimento como ser e como rei, ao mesmo tempo em que condena

Édipo a seu martírio eterno, quando ao morrer permite que o filho se case com sua mãe. Laio

então falha na missão que todo pai tem perante seu filho, a de Lei, que interdita e proíbe as

relações incestuosas entre mães e filhos. Eis aqui em Freud as indicações para a função

paterna.

52

O eixo principal em que Freud se apóia para pensar a função paterna converge para seus estudos sobre o desenvolvimento dos complexos de Édipo e castração. A existência do pai, com o estatuto que a psicanálise lhe confere, só é reconhecida quando o pai torna-se representante de uma lei. (MENDES, 1993, p .02-03).

O pai, nesse momento da teoria freudiana, ganha o estatuto de lei e é devido a isso que

permitirá a seus filhos se constituírem enquanto ser de desejo. A função paterna

desempenhará uma dupla operação: a primeira consiste na castração da criança para o seu

objeto de amor, a saber, a mãe. A segunda é que, diante da proibição e da castração, a criança

não pode ficar desamparada. A forma de recompensação que a criança encontra para si diante

da introjeção da lei paterna será a de se constituir como o pai, tornando-se então um sujeito

sexuado e que também deseja.

No percurso da pulsão14 Freud irá descrever etapas em que a libido15 irá se organizar.

Dentre essas etapas encontram-se três que ocorrem antes da fase genital, que serão

denominadas de fases pré-genitais, tendo cada uma delas um objeto específico de satisfação

pulsional. (FREUD, 1917b/1988).

Na primeira fase da organização sexual, a criança terá como objeto pulsional o seio

materno ou o seu substituto. A essa fase, Freud denomina de oral. A segunda fase, chamada

de anal, o objeto de satisfação sexual serão as fezes. Freud faz uma comparação ao valor

simbólico dado pela criança para o seu produto. A criança atribui “[...] elevado valor às fezes,

considerando-as ‘presentes’ e ‘dinheiro’.” (FREUD, 1917a/1988, p. 368).

Na fase fálica, terceira fase da organização pré-genital, a libido estará organizada sob o

primado da zona erógena fálica. A diferenciação sexual se dará pela presença ou ausência do

pênis, pois a vagina é e continuará sendo desconhecida ainda por muito tempo. De acordo

com Freud, a fantasia das crianças nesse momento é que ambos os sexos são dotados do órgão

fálico.

[...] a característica principal dessa organização genital infantil, é sua diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo. (FREUD, 1923/1988, p. 18 - grifo do autor).

14 O conceito de pulsão no interior da obra freudiana é definido como “[...] carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 628). 15 O termo é utilizado por Freud para designar “[...] a manifestação da pulsão sexual na vida psíquica e, por extensão, a sexualidade humana em geral [...]”.(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 471).

53

Durante algum tempo, Freud (1917b/1988) acredita que a experiência edípica se dava

da mesma forma tanto para o sexo feminino quanto para o masculino, sendo apenas o alvo de

amor e os sentimentos ambivalentes de amor e ódio alterados para ambos. No caso dos

meninos, o objeto de amor seria a mãe e o objeto de repugnância e de competição seria o pai.

Inversamente, mas simetricamente ao Édipo vivido pelos meninos, no caso das meninas, o

objeto alvo de investimento amoroso seria o pai e a mãe ficaria como aquela que atrapalha a

filha de alcançar o seu amor, ou seja, o pai.

Em 1924, Freud começa a romper a simetria do Édipo para meninas e meninos. Em

seu texto A dissolução do complexo de Édipo, irá descrever a forma que garotas e garotos

darão entrada na vivência edípica. Esta é a primeira marca que Freud faz na diferença do

Édipo para ambos os sexos. Será pela via da castração que a paridade edipiana será rompida

(FREUD, 1924/1988).

A teoria da castração irá tornar-se, no cerne da obra freudiana, o princípio

organizador não apenas da diferença das gerações como também da diferença dos sexos. A

partir daí, o conflito edipiano dará lugar a duas histórias bem diferentes. Por meio da

descoberta da diferença anatômica entre os sexos, meninos e meninas serão divididos em duas

categorias de indivíduos: os fálicos e os castrados.

O confito edípico emergirá para a menina diante da constatação de sua castração, ou

seja, da ausência do falo. Porém, os meninos, que já vivenciam o Édipo desde seu nascimento,

abandonarão seu objeto de amor, no caso a mãe, pelo medo da perda do falo, ou seja, pelo

medo da castração. “Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo

de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do complexo de

castração.” (FREUD, 1925/1988, p. 285).

Na dissolução do complexo edípico, a criança deverá se desvencilhar de seus desejos

libidinais para com seu genitor (pai/mãe) e direcioná-lo para um outro objeto amoroso que

esteja fora de seu circuito familiar. Quando a criança se torna um adulto e não consegue se

desfazer do domínio paterno/materno, ou seja, não soluciona o complexo edípico, sendo inábil

no redirecionamento de sua libido a um objeto sexual externo, isso propiciará o surgimento

das neuroses. “Nesse sentido, o complexo de Édipo justificadamente pode ser considerado

como o núcleo das neuroses.” (FREUD, 1917b/1988, p. 393).

Marcos (2003) afirma que a aparição do pai pela vertente do Édipo no contexto da

teoria freudiana como pai de desejo deve-se ao fato dele surgir para a criança como aquele

que provocará o desejo nesse sujeito. No Édipo, o pai desejo ocupará o centro da trama

introduzindo na relação incestuosa do filho com a mãe a Lei da proibição do incesto, o que irá

54

possibilitar a entrada do sujeito na cultura. Será através das proibições do pai, ainda segundo

a autora, que a mãe será introduzida na triangulação familiar como objeto de desejo. Quando

se chega ao final da experiência edípica, o pai não deixará de influenciar na estruturação

psíquica do sujeito, pois sua Lei será introjetada e dará lugar ao supereu. É devido a essa

presença constante do pai no psiquismo que ele se apresenta para o sujeito sempre como uma

questão em aberto.

Decourt (2004) salienta que o pai freudiano é o agente da lei, uma vez que é ele que

introduz a interdição. “A partir desta concepção, a lei edipiana, enquanto proibição, introduz a

castração e o desejo sempre insatisfeito, cujo objeto será sempre incestuoso.” (DECOURT,

2004, p. 36). Com isso, o pai edipiano, ou seja, o pai desejo, será identificado ao recalque,

pois ele é o agente da castração. Esta, por sua vez, permite ao sujeito se identificar com o pai,

com o ser de desejo, podendo a partir daí se constituir também como um ser desejante.

Desde as primeiras menções de Freud sobre o Édipo até o fim da sua vida, é

encontrado o Édipo postulado como um conceito fundamental da Psicanálise, não somente

como “o complexo nuclear das neuroses”, mas também como o momento decisivo em que

culmina a sexualidade infantil e em que se decide o futuro da sexualidade. Ainda são

encontradas nas formulações de Freud sobre o Édipo indicações sobre sua compreensão de

família.

3.1.1 O romance familiar do neurótico

O artigo Romances Familiares16 (1909) foi escrito por Freud no ano de 190817 para

um livro de Otto Rank intitulado O mito do nascimento do herói. O texto só foi receber o

título em alemão – Der Familienroman der Neurotiker – na sua primeira reimpressão em

1931.

Desde os anos de 1897, Freud já se encontrava às voltas com as problemáticas

levantadas sobre os “romances familiares”. Porém, ele se debruçava sobre o estudo a partir

16 Será utilizado o título do artigo como foi traduzido na edição Standart brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, no entanto, é importante destacar que o título original do artigo é “Romance familiar do neurótico”. 17 De acordo com a nota do editor inglês da edição Standart brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.

55

das características específicas da paranóia. Em 24 de janeiro de 1897, ele escreve a Fliess

sobre suas observações dos rituais de feitiçaria, comparando-os aos delírios de memória de

pacientes paranóicos que acreditavam que pessoas colocavam fezes em sua comida. Chama a

atenção também para as ficções megalomaníacas contadas por aqueles pacientes que tinham a

convicção de ter uma filiação ilegítima que concernia a uma família abastada, culminando

aqui no “romance familiar”.

Ainda na carta, Freud (1897a/1988) destaca o fato de que pacientes histéricos

supervalorizam a figura do pai devido a uma superioridade imaginária que o filho encontra

neste pai. Esse modo do histérico enxergar o pai como alguém superior faz Freud aproximar o

conto neurótico das histórias criadas por pacientes paranóicos. Nas correspondências de Freud

a Fliess serão encontradas também menções desse romance na paranóia nas cartas de 25 de

maio de 1897 e de 20 de junho de 1898.

O artigo Romances Familiares pode ser dividido em duas partes. A primeira em que

Freud tratará da proposição da necessidade dos sujeitos em tenra idade idealizar os pais e

querer se parecer com eles. À medida que esta criança cresce, o discernimento intelectual

apontará as falhas dos pais; também, será aflorada a rivalidade sexual da criança para seus

genitores. A segunda parte do romance freudiano consiste numa construção inconsciente por

parte da criança, ou melhor, do filho de uma família inventada. Essa família idealizada será

sempre caracterizada como superior à família de origem. O filho se sente traído pelos pais,

pois estes estão longe de ocupar plenamente suas fantasias de grandeza, como, por exemplo,

na passagem relatada por Freud com seu pai (1900b/1988) descrita anteriormente neste

capítulo. Em suma, é possível dizer que a criança inventa um novo pai e uma nova mãe.

No “romance familiar do neurótico” será encontrada uma exaltação voltada à figura do

pai. Esta fantasia ocorre frente à incerteza da origem paterna - pelo menos nos tempos em que

os exames de DNA18 não existiam -, pois sobre quem é a mãe não recai nenhuma dúvida. A

mãe, por sua vez, é vista como pecadora, a pessoa que não cumpriu com o pacto nupcial de

fidelidade; sendo assim, o filho seria filho de outro pai. Este pai “verdadeiro” se caracteriza

sempre como alguém superior ao pai adotivo. Geralmente nessas fantasias o pai da ficção é

um pai forte, rico, inteligente, um herói. Freud (1909/1988) acredita que quando a criança

18 Sigla utilizada para ácido desoxirribonucléico. Este ácido é um composto orgânico cujas moléculas contêm a

"informação" que coordena o desenvolvimento e funcionamento de todos os organismos vivos. O exame de DNA para fins de identificação pessoal e determinação de paternidade é considerado o maior avanço do século na área forense. Com o exame de DNA, a determinação de paternidade passou a atingir níveis de certeza absoluta. Para a verificação de paternidade, são analisados os materiais (sangue) da mãe, do filho e do suposto pai. Disponível em http://www.ufv.br/dbg/BIO240/TP120.htm, consultado em 03 de maio de 2008.

56

forja essas características para o pai de sua fantasia ela está simplesmente resgatando o pai de

outrora. Ou seja, o pai que ela conhecia antes de se deparar com as exigências pulsionais e

intelectuais. Verifica-se, assim, que a função do “romance familiar” elaborado pela criança é

uma forma de restaurar a imagem do pai.

Freud (1909/1988) salienta que essa ficção do pai por parte da criança nada mais é que

uma tentativa de revalorizá-lo. É a forma que a criança encontra de resgatar os pais dos

tempos felizes, pais que lhe pareciam nobres e amáveis. A ficção da criança é uma tentativa

de reencontro com os pais do passado.

Foi constatado que Freud, ao escrever o artigo dos Romances Familiares, mais uma

vez, tenta dar uma resposta ao enigma do que é um pai. A criança, ao engendrar um pai

heróico, ou melhor, ao inventar um pai para si, está redigindo sua própria origem. A partir do

conto criado, a criança irá construir soluções sobre o sexo, sobre a função do pai e

principalmente qual é a relação deste com o seu nascimento. No entanto, Marcos (2003)

afirma que essas invenções que a criança forja para si sobre a questão do pai são insuficientes,

pois o pai ainda se coloca para a criança como um enigma indecifrável.

No romance familiar, trata-se de um esforço da criança para responder ao enigma do sexo e da origem, de modo que a resposta encontrada inclua a própria criança. A narrativa construída a ajuda a responder qual o seu lugar na história, a se situar em relação às gerações e à diferença sexual. A partir da narrativa ficcional, a criança busca esse lugar, a fim de responder às dúvidas quanto a seu nascimento e sua origem. O que se revela no romance familiar é que, ao final dessas elaborações, a dúvida que permanece é aquela em relação ao pai, sua relação com o nascimento e sua função. (MARCOS, 2003, p.27).

Estas considerações de Freud sobre o “romance familiar” trazem à tona a discussão do

favorecimento dado por ele à família conjugal. Devido à relevância do Édipo na teoria

psicanalítica, a Psicanálise é traduzida por muitos como uma teoria da família. Porém, há

ressalvas quanto a essa afirmação. De acordo com Machado (2007), foi a partir da invenção

da família conjugal, pelo menos enquanto fato histórico e sociológico, que a Psicanálise pôde

existir. Foi através dos conflitos de seus pacientes neuróticos que Freud pôde escutar uma

questão que provinha do intercâmbio do sujeito com a família. No entanto, os conflitos

identificados por ele não circulavam em torno da problemática da família, mas giravam em

torno do sujeito, mais especificamente da sua relação com a instância inconsciente e com a

sexualidade. Dessa forma, a Psicanálise pode ser definida como uma teoria do inconsciente e

nunca como teoria da família.

57

Outras questões podem ser feitas diante da inquietação frente à afirmação de que a

Psicanálise seria uma teoria da família e mais particularmente uma teoria da família conjugal.

Seriam elas: a problemática edípica se restringe ao modelo de família nuclear? As fantasias

cunhadas pelas crianças em seus romances familiares só podem emergir diante do modelo de

família conjugal? A Psicanálise após cem anos de sua existência estaria fadada ao extermínio

devido à convivência em nossos dias de diversas formas de configurações familiares?

É necessário, pois, relativizar as teorizações feitas por Freud no final do século XIX e

meados do século XX para o tempo atual. Ao descrever a família, muitas vezes, Freud dizia

de um grupo social formado por uma mãe e um pai com seus filhos que habitavam todos a

mesma casa. Se forem adaptadas essas idéias, por exemplo, ao que é chamado hoje pela

sociologia da família, para uma família convivente, é possível dizer que para essas famílias,

cada pessoa que as compõem pode ocupar para cada sujeito os lugares de filhos e pais. Essas

mesmas pessoas idealizam modos de famílias distintas daquelas que nasceram. Em muitos

casos, o pai da família “vizinha” poderá encarnar o pai fantasiado, ou seja, aquele que a

criança acredita ser o seu verdadeiro pai.

O que pode ser constatado é que mesmo a teoria freudiana tendo se fundamentado

num modelo nuclear de família não se esgota nele. Sua análise recairá na problemática

imutável da relação do filho com os pais. Independentemente do modo de família que ela

advém, a criança traz para si indagações sobre a sexualidade, sobre os lugares que homens e

mulheres ocupam na concepção. Daí a implicação sexual do inconsciente. Assim, as teses

freudianas estão para além do modelo de família conjugal e burguesa.

Não é preciso invocar a interpretação analítica (como Freud faz) para saber que, via de regra a salvo exceções, as famílias são uma só e a mesma, ainda que, cronologicamente, diferenciadas. Cada um guarda, no interior de si, um pai e uma mãe supervalorizados que, depois, são sobrepostos pelo pai e pela mãe que cada um reconhece como seus. (LANG, 2002. p. 150).

Retomaremos a discussão sobre a questão do pai na teoria freudiana. Assim

passaremos a discutir agora a terceira versão do pai.

58

3.1.3 O pai do gozo: a terceira versão freudiana do pai

Totem e tabu, texto de 1912–1913, nasce no percurso da história da Psicanálise a

partir das discussões entre Freud, Jung e Ferenczi a respeito da universalidade do complexo

de Édipo. Roudinesco e Plon (1998) indicam que Freud acreditava ser esse artigo seu melhor

trabalho após a publicação de A interpretação dos sonhos em 1900.

Mendes (1993) alerta que o texto de Totem e tabu é apenas um mito, e que, ao se

debruçar sobre ele, nunca se deve esquecer dos limites da credibilidade dele advinda. No

entanto, Marcos (2003) sugere que o mito é utilizado na teoria freudiana como uma

necessidade teórica. Sua função consiste na provocação do avanço da teoria, pois, ao esbarrar

no limite que a teoria impõe ao seu criador, o mito irá incitar um novo estatuto ao corpo

teórico ao confirmar os resultados obtidos na experiência clínica.

A eficácia do mito advém da transmissão do que é desconhecido. Através da utilização

do mito, Freud concede uma forma discursiva à transmissão do desconhecimento da verdade.

No caso de Totem e tabu, o mito possibilita a Freud apresentar a lenda fundadora da cultura.

Decourt (2004) salienta que a importância do mito de Totem e tabu é apontar a condição

lógica que justifica a fundação da cultura. Através do mito é que Freud discorre sobre a

passagem do homem como ser da natureza para um ser de cultura.

De que forma Freud irá postular esta passagem? Totem e tabu irá se valer do mito do

“Urvater – o pai original da horda primitiva, um pai pré-histórico, no sentido que a psicanálise

lhe confere, de representante da lei e autoridade.” (MENDES, 1993, p. 8). Será através da

morte do pai, do Urvarter que o filho se tornará um ser de cultura.

Com Totem e tabu, Freud volta-se as questões de origem, numa espécie de Gênesis freudiano. Não é um conto, nem uma obra dramática, nem chega a ser um poema épico, mas procura-se mostrar que nossas novelas analíticas possuem raízes ainda mais profundas, míticas, as quais estão para além das dimensões individuais. (LANG, 2002, p.108).

O artigo de Totem e tabu é composto de quatro ensaios, sendo que, no primeiro, Freud

(1912-13/1988) irá tratar do horror ao incesto, introduzindo assim o tema do totem. No

segundo ensaio ele trabalha com a idéia de tabu e a ambivalência de sentimentos que ele

provoca. Ainda nesse ensaio, usa os termos de “sagrado”, “misterioso”, “perigoso” e

“proibido” como sinônimos de tabu. No terceiro, discorre sobre o pensamento mágico do

homem primitivo. O quarto e último ensaio trata do retorno do totemismo na infância; Freud

59

defende suas idéias do mito do pai primevo e da universalidade edípica. Há que se discutir de

forma mais cuidadosa esse último ensaio.

No quarto ensaio de Totem e tabu, Freud irá apresentar o Urvater, ou seja, o pai

primevo. Nesse ensaio Freud (1912-13/1988) relata a ignorância entre a relação sexual e a

concepção nas comunidades primitivas. Nessas comunidades acreditava-se que os filhos eram

gerados apenas pela figura materna. A mulher era a única procriadora na concepção e no

nascimento do filho. Freud evoca novamente o “romance familiar” – já discutido

anteriormente neste capítulo – no qual a criança possui apenas a convicção de quem é a mãe.

Nas comunidades tribais a paternidade era atribuída a um totem ou a um espírito

qualquer ou, até mesmo, a elementos da natureza, como, por exemplo, a terra. Esses povos

acreditavam que no momento em que a mulher iria parir seu filho, um espírito que aguardava

a reencarnação ingressava no corpo da mãe, possibilitando assim o nascimento da criança.

Diante disso, Freud (1912-13/1988) chama a atenção para a ignorância do sexo masculino na

sua função no ato de fecundação.

A figura do pai é então representada pelo totem e a relação que os povos primitivos

tinham com seus deuses dependia da relação com o pai humano. O pai era adorado através do

totem. Nesse momento, pai totêmico e pai biológico tornam-se um só, um sendo reflexo do

outro. A aproximação entre filho e pai dentro das tribos primitivas era possível somente

através do totem. Ainda existia o temor pelo pai primevo, que impedia a aproximação dos

filhos de suas fêmeas.

O mito do pai original, que um dia gozava de todas as mulheres de sua horda e que

fora assassinado pelos seus filhos como reivindicação ao acesso a essas mulheres, traz

consigo a instituição da lei universal contra o incesto. Os filhos não podiam ocupar o lugar do

pai morto, pois as guerras constantes entre eles, em virtude da posse das mulheres,

provocariam o extermínio da horda. Dessa forma, faz-se um acordo no qual se renuncia ao

lugar do pai primevo e, conseqüentemente, às mulheres desejadas pelas quais o pai foi morto.

Assim, esse lugar aberto é substituído por uma lei que regula as ações de cada homem.

[...] a tumultuosa malta de irmãos estava cheia dos mesmos sentimentos contraditórios que podemos perceber em ação nos complexos – pais ambivalentes de nossos filhos e de nossos pacientes neuróticos. Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que vivo [...]. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido

60

pelos próprios filhos [...] Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. (FREUD, 1912-13/1988, p.146-147).

Mesmo depois de morto, o pai ainda continua vivo. Após devorarem o pai no intuito

de incorporarem o que ele representava, os filhos caem em lamentação e remorso devido a sua

morte. Freud acredita que o totemismo seria a tentativa dos filhos de recuperarem o pai

extinto e aplacar assim a culpa pelo assassinato. Dessa maneira, o mito da horda primitiva é

substituído pelo mito da fraternidade, inaugurando uma sociedade igualitária, pois todos

precisavam se manter iguais para que ninguém tivesse os privilégios do pai morto;

possibilitando assim a sobrevivência da horda.

O Urvarter é um macho poderoso, senhor de todas as fêmeas e que não conhecia

limites para o seu desejo. O pai primevo pode ser interpretado na teoria freudiana como a

terceira versão de pai, a saber, o pai do gozo. Este pai encontra-se acima da lei e fora da

castração.

Em Totem e Tabu, é encontrado o pai do gozo, o pai primevo que gozava de todas as

mulheres de sua horda e que impedia a aproximação dos filhos de suas fêmeas. Esse pai,

assassinado pelos filhos como reivindicação ao acesso a essas mulheres, traz consigo a

instituição da lei universal contra o incesto, uma vez que, mesmo depois de sua morte, os

filhos são proibidos de praticar a endogamia. Assim, apenas o pai gozará de suas mulheres.

Como se pode verificar, a Lei contra o incesto é postulada por Freud apenas no texto

Totem e tabu. As construções teóricas sobre o Édipo trazem o pai como aquele que irá

praticar a Lei, aquele que representará a Lei. Uma lei posta não pelo pai primevo, uma vez

que ele mesmo tinha acesso a todas as mulheres do clã, mas sim, no que sua morte

representou para seus filhos. O pai edípico simboliza o pai totêmico.

A análise realizada por Freud sobre a proibição das relações e aproximações de

membros de uma mesma família, nas comunidades tribais, aponta para o primórdio cultural da

lei contra o incesto. O que se verifica em Totem e tabu é a aproximação da lei do homem

primitivo com a lei do homem civilizado. Ambos são impossibilitados de desejar as mulheres

de sua linhagem e são punidos caso transgridam a lei. Essa constatação, mais uma vez,

possibilita a Freud sustentar sua teoria do complexo de Édipo. E ainda, o faz afirmar que a

etiologia das neuroses consiste na relação do filho com o pai.

Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo. Isso entra em completo

61

acordo com a descoberta psicanalítica de que o mesmo complexo constitui o núcleo de todas as neuroses, pelo menos até onde vai nosso conhecimento atual. Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: - a relação do homem com o pai. (FREUD,1912-13/1988, p.158).

Quais as conseqüências do assassinato do pai da horda primitiva? De acordo com

Mendes (1993), serão duas, sendo que a principal trata da internalização da lei de interdição

do incesto, e a segunda diz do surgimento do supereu19.

Para Freud o supereu terá sua origem no totemismo. No tempo mítico em que não

havia cultura, ou seja, no momento em que a natureza imperava através do domínio do

Urvarter, uma vez que seu instinto de macho imperava sobre os demais membros do clã

impedindo-os de ter acesso às mulheres da horda, a única lei existente era a do pai. Com o

advento de sua morte, inaugura-se nos filhos um novo sentimento, o de remorso, pois o pai

odiado também era amado. Para aplacar a culpa pelo assassinato do pai, os filhos mantêm

viva a lei do pai, uma vez que eles próprios se proíbem de ter acesso às mulheres pelo qual o

pai foi morto. Dessa maneira, a lei é incorporada, mantendo o pai vivo. Conjuntamente com

ela, uma nova instância psíquica surge, o supereu, pois ela advém da cultura e não precisa de

um terceiro para a todo tempo advertir ao eu sobre as insígnias culturais.

É em relação à lei de proibição de incesto que Freud aproxima o super-ego [sic] e a função do pai. Segundo ele20, “super-ego [sic] originou-se em realidade das experiências que levaram ao totemismo” (1923, p. 53). Decorrente dessas experiências, primordialmente temos o surgimento do sentimento filial de culpa e a relação que ele estabelece com o recalque, pois é neste ponto que Freud identifica a origem de todos os conflitos neuróticos. (MENDES, 1993, p. 20).

Quais as novidades que Freud nos traz com Totem e tabu? A principal novidade

encontra-se no surgimento da lei de interdição contra o incesto. É possível observar que no

mito edípico, ele até diz que o pai proíbe os desejos incestuosos do filho para com o seu

progenitor. No entanto, Édipo não é barrado de seu gozo, pois tem em seu leito a própria mãe.

Dessa forma, Freud precisa buscar na cultura algo que universalize o Édipo e por

conseqüência instaure a lei. Outra novidade é que, para Freud, a origem da família vai estar na

19 O supereu em conjunto com o isso e o eu formam a segunda tópica do aparelho psíquico freudiano. De acordo com Roudinesco e Plon (1998, p.744), “o supereu mergulha suas raízes no isso e, de uma maneira implacável, exerce as funções de juiz e censor em relação ao eu.” 20 FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: FREUD, S. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XIII: Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago.1987.

62

horda primeva, uma vez que será com a morte do pai que a cultura emergirá, permitindo

assim a inauguração da família.

Com a morte do Urvarter e a proibição de seus herdeiros possuírem as

mulheres do clã, Freud provoca um renascimento do pai, que não é um renascimento

qualquer, pois o pai retorna com a força de uma Lei. Assim, o significado do pai, de acordo

com a teoria psicanalítica, será dado a posteriori, ou seja, após a sua morte, a partir da

instalação da lei de interdição do incesto.

Para Marcos (2003, p. 29), “[...] o mito da horda primeva inaugura uma cadeia

que estará presente em toda a elaboração psicanalítica acerca do pai, da lei, da dívida

simbólica, do assassinato do pai, enfim da culpa que, em nome dessa dívida simbólica, o

neurótico não cessará de pagar.”

A inauguração da cultura, proposta no mito freudiano, proporcionará a inscrição dos

mandamentos divinos. A lei contra o incesto leva à lei contra o parricídio. É possível ler nesta

lei o seguinte mandamento divino: “Não matarás!”. Verificamos assim uma aproximação da

lei do totem com a lei do monoteísmo, momento este que será encontrada uma nova versão

para o pai em Freud.

3.1.4 O pai da lei: a quarta versão freudiana do pai

O pai da lei é cunhado por Freud em Moisés e o Monoteísmo, livro escrito no final da

vida de Freud entre os anos de 1934 e 1938. Apesar de ter sido um livro escrito no término

das construções teóricas de Freud, sua importância para a Psicanálise não o distingue do

conjunto dos trabalhos freudianos em seus áureos tempos. Um exemplo disto, de acordo com

Balmés citada por Marcos (2003), foi através da leitura do texto de Moisés que Lacan pôde ler

o pai freudiano. O conceito e a teorização sobre o Nome-do-pai terão sua origem em Moisés.

O livro é composto de três ensaios, no qual Freud (1938/1988) exporá a origem filial

de Moisés e resgatará as idéias já explanadas em Totem e tabu, recapitulando os conceitos de

recalque, traumatismo e etiologia das neuroses através do surgimento da religião monoteísta,

utilizando-se de analogias entre a psicologia do indivíduo e a psicologia grupal. Ao longo

desses três ensaios, Freud fará referências à questão do pai. E é justamente nesse ponto que se

deve deter.

63

O pai é apresentado por Freud em Moisés e o Monoteísmo como herdeiro de Deus.

Haverá apontamentos por todo o texto da trilogia Deus, líder, pai. Deus surge como o

princípio da linhagem patriarcal. Na terra, sua representação fica a cargo de um líder, político

e/ou religioso, sendo Moisés um exemplo. Para que a divindade esteja mais próxima dos

homens comuns, o pai é criado à imagem e semelhança de Deus.

Freud (1938/1988) considera que esta personificação de Deus na pessoa do pai ocorre

da seguinte maneira: primeiro esse Deus fora representado por um animal (totem). Depois,

ocorre uma humanização do ser, aparecem então deuses humanos, primeiro sob a forma

feminina e depois através de figuras masculinas.

Nesse percurso, encontram-se esforços de Moisés para tornar a religião monoteísta

uma religião única. Até o domínio de Deus-pai se tornar universal, mais precisamente até o

advento do cristianismo, são vistas as figuras de reis e faraós como substitutos dos deuses, por

serem líderes espirituais e/ou religiosos. Com a instauração da religião cristã, há então uma

naturalização do lugar do rei ou daquele que lidera um povo ou um grupo como o herdeiro

direto de Deus na terra. Não diferente do que ocorre com os reis, o pai irá tornar-se não

apenas o representante do rei, mas também de Deus. Tanto os reis quanto os pais falam em

nome de Deus. Sua lei é a lei de Deus. De acordo com Freud (1938/1988), a autoridade da

religião se transforma na autoridade do pai.

Para Freud (1938/1988), Moisés foi o precursor para essa passagem de poder entre

Deus e o líder de um povo. Moisés operava sobre seu povo não apenas com a mensagem

divina, mas detinha o saber das leis e o caminho para o alcance da verdade e da virtude. Não

diferente de Moisés, o pai no artigo freudiano aparece como legislador e educador. É devido

a essa característica de legislador que o pai se converte neste momento da teoria freudiana em

o pai da lei.

A aparição do pai como o pai da lei proporciona a vivência dos sujeitos no mundo da

espiritualidade. Através dos mandamentos de Deus apresentados por Moisés, o homem pôde

ter acesso ao divino quando ele obedece as suas leis. O filho, então, entra em contato com a

espiritualidade a partir do momento em que cumpre os mandamentos do Pai. O pai da lei, o

pai de Moisés e o Monoteísmo, é um pai que tem a função de interditar o gozo, ao mesmo

tempo em que aponta uma possibilidade para tal.

Freud acredita que o pai surge na vida da criança como alteridade de lei. É ele quem

determina o que deve ou não ser feito. Após a vivência edípica, caberá ao supereu realizar tal

função. Enquanto isso, a criança se submete à lei paterna e se impõe aos sacrifícios

determinados por ela, como na prática de circuncisão, na qual os homens obedecem à lei de

64

Deus-pai, marcando no real do corpo a castração simbólica herdada do pai. A circuncisão

aparece como substituto simbólico da castração que o pai primevo impunha a seus filhos.

“Todo aquele que aceita esse símbolo demonstra, através disso, que está preparado para

submeter-se à vontade do pai, mesmo que essa lhe imponha o mais penoso sacrifício.”

(LANG, 2002, p. 162). Da mesma forma que o filho abre mão de seu instinto e prova ao pai

ser adepto de sua lei, reconhecendo-o assim como pai, o homem judeu abdica de sua natureza

e resgata o pacto com Deus através do ato circuncisório. A introdução da circuncisão como

ato da religião monoteísta permite a Moisés santificar seu povo.

Moisés era visto por seu povo e por muitos que vieram depois dele como um “grande

homem”. Freud (1938/1988) acreditava que todos os grandes homens da história tinham como

essência a paternidade. Ele diz que a humanidade necessita de uma autoridade que a dirija,

que possa ser venerada e até mesmo repelida. Essa necessidade tem origem na infância,

através dos modelos parentais que a criança possui, mais precisamente através da figura do

pai.

Moisés e a religião monoteísta é o último grande texto freudiano, e no qual se insiste num dos temas que mais ocupou a atenção de Freud, ao largo de sua extensa obra: a questão do pai. Neste texto, convergem as linhas de pensamento de Freud sobre o assunto e o mito, novamente, é a estratégia para se pensar uma questão. O mito do Édipo, tomado de Sófocles, o mito do Urvarter em Totem e tabu, e a construção mítica sobre a morte de Moisés, a partir do texto de Oséias, mostram a relevância do mito para dar conta da função do pai, tanto em nível do sujeito como da massa. (LANG, 2002, p. 169 – grifo do autor).

As elaborações freudianas sobre o pai inscrevem-se na ordem do mito. Em cada

versão do pai freudiano será encontrada a inscrição mítica: no pai desejo o mito edípico; no

pai do gozo o mito do pai primevo e o pai da lei o mito de Moisés. Cada qual a sua maneira,

as versões do pai em Freud irão sustentar a regulação das pulsões através da Lei do pai, que se

transmite através das gerações na relação do filho com seu pai, na qual comporta uma falha,

sendo esta também transmitida. É devido a essa não totalidade de transmissão da Lei paterna

que a questão sobre o que é um pai torna-se um enigma indecifrável para o sujeito, enigma

que também será trabalhado na obra de Lacan.

65

4 O PAI NO ENSINO DE LACAN

Freud institui a teoria psicanalítica na Viena de 1900 a partir da publicação de A

Interpretação dos Sonhos. Desde lá, muitos foram os colaboradores e comentadores de sua

obra. Mas é com Jacques Lacan, psiquiatra e psicanalista francês, que a história da Psicanálise

começa a ser reescrita. Através de seu “retorno a Freud”, Lacan introduz na obra freudiana

uma leitura estrutural e acrescenta a ela seus próprios conceitos.

Nesse “retorno”, Lacan retoma a questão sobre o pai. Para ele, a paternidade é uma

construção cultural, considerando que o Édipo freudiano podia ser pensado como uma

passagem da natureza para a cultura. Suas construções face ao pai têm como meta o regaste da

autoridade paterna e de seu lugar no campo social. Lacan buscava pelo viés do pai a defesa

das tradições familiares. Para Peres (2002, p. 238), Lacan acreditava que “[...] somente a

estrutura familiar moderna do tipo burguês e de dominância patriarcal era capaz de assegurar

a liberdade social.”

Como Freud, Lacan também terá o pai como tema de destaque em seu ensino. As

várias versões que a questão paterna vai assumir na teoria lacaniana serão perpassadas pela

função paterna, que será desvelada através do conceito do Nome-do-Pai e da tripartição

simbólico, imaginário e real.

As construções realizadas por Lacan durante todo o seu percurso de trabalho não

constituem um fio reto. São encontradas em sua obra várias curvas e desníveis que

demonstram os redimensionamentos teóricos que ele faz em sua prática. De acordo com

Miller (2003), a obra lacaniana pode ser dividida em três ensinos:

O primeiro ensino de Lacan, o de seus dez primeiros Seminários, celebra o domínio do Outro. Seu segundo ensino é dedicado a articular o Outro e o objeto a. Já o seu terceiro ensino, o que chamamos o último parte do outro em letra minúscula, do que é singular. (MILLER, 2003, p. 9).

Miller considera que a obra de Lacan não se reduz a uma teoria, mas a um ensino, pois

este está sempre em consonância com a prática. À medida que a teoria sofre modificações a

prática também se transformará.

O primeiro ensino de Lacan diz de um retorno fiel ao texto freudiano, no qual o autor

baseia-se nos casos mais famosos de Freud para a construção de sua obra. Nesse ensino, ele se

deterá aos registros do simbólico, do imaginário e do real. No entanto, haverá privilégio do

66

registro simbólico sobre os demais. A influência da lingüística estruturalista contribui para

esse domínio assim como as construções teóricas sobre o significado e o significante. A

questão do pai surge nesse momento do trabalho lacaniano pelo viés do Nome-do-Pai. De

acordo com Miller (2003, p. 19), “o Nome-do-Pai, no primeiro ensino de Lacan, é o

significante por excelência que produz um efeito de sentido real. É o nome do significante que

dá sentido ao gozado.”

Por sua vez, o segundo ensino de Lacan ocorre após o rompimento do teórico com a

Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP), depois de 1964, sendo composto pelo intervalo dos

Seminários 11 ao 20. É com a apresentação do Seminário 17 – O avesso da psicanálise, que

Lacan irá provocar a disjunção entre a vertente mítica do pai freudiano para a vertente

estrutural da castração. Lacan situa o pai para além do Édipo. O pai que ele apresentará nesse

segundo ensino é o pai real.

O terceiro ensino, considerado por Miller (2003) o último de Lacan, propõe uma

mudança radical em sua clínica. Lacan pronuncia os nós borromeanos e institui o Nome-do-

Pai numa vertente múltipla. Esse é o momento do ensino da psicanálise lacaniana no qual o

Outro21 não existe.

De forma um pouco mais detalhada serão apresentados os desdobramentos da questão

paterna no ensino lacaniano.

4.1 O Nome-do-Pai, um significante primordial

Segundo Roudinesco e Plon (1998), Lacan utilizou vários termos para designar o

conceito Nome-do-Pai. Primeiramente, é utilizado por ele o termo “função do pai”; em

seguida, “função do pai simbólico”; e, posteriormente, introduz o termo da “metáfora

paterna”. O conceito do Nome-do-Pai é proposto em 1956 a partir de seu seminário sobre as

psicoses. No entanto, será no ano de 1951 que a primeira aparição do termo se dará. Lacan

utilizará o termo Nome-do-Pai em seu seminário que trata do caso freudiano o Homem dos

lobos.

21 O termo “Outro” foi introduzido na teoria lacaniana no ano de 1955 em seu Seminário sobre O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Quando grafado com letra maiúscula “[...] designa um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou ainda Deus – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.558).

67

Porge (1998) escreve que o termo Nome-do-Pai, utilizado por Lacan, é oriundo da

religião. Ele acredita que será a universalidade da paternidade de Deus que permitirá a análise

do Édipo.

Ainda nesse trabalho, Porge (1998) diz que o pai na obra lacaniana é situado como um

termo de referência, o que, por sua vez, só será garantido pela fé de seu nome e não por uma

verdade empírica.

Pater semper incertus est é a verdade fundamental, reconhecida como tal por Freud e por Lacan, de onde se origina a função tão particular do pai. A incerteza estrutural sobre a paternidade torna incontornável sua abordagem pela fé na palavra que nomeia o pai. Daí o termo Nome-do-Pai. (PORGE, 1998, p. 8).

Nos primeiros cinco anos do ensino de Lacan já são ouvidas menções ao Nome-do-pai

em suas palavras. De acordo com Decourt (2004), Lacan em seu primeiro seminário, nos anos

de 1953-54, tece considerações importantes sobre o lugar que o imaginário ocupa frente à

dimensão simbólica e indica a necessidade de um elo que permita o sujeito se situar nessa

realidade simbólica. Esse elo é o Nome-do-Pai. No seminário seguinte, dos anos de 1954-55,

será encontrado um Lacan que privilegia a ordem simbólica, na qual é impossível não

inscrever o sujeito no campo da linguagem. Nesse período, Lacan estabelece uma

justaposição dos conceitos do Nome-do-Pai e pai simbólico. O Nome-do-Pai é tomado, nesse

momento de seu ensino, como mediador das relações imaginárias, cuja função é universal.

Como Lacan está tomado pelo campo simbólico e pela linguagem, o Nome-do-pai é

destacado como significante primordial, permitindo que o sujeito se insira na cultura, no

campo do Outro e na ordem das relações coletivas.

O que acontece quando o Nome-do-pai não opera suas funções? Para dar resposta a

essa questão, Lacan nos anos de 1955-56 proferirá seu seminário de número três, intitulado

As psicoses. Nesse seminário, Lacan trabalhará exaustivamente os efeitos psíquicos diante da

foraclusão22 do significante Nome-do-Pai. Nesse momento de seu ensino, o Nome-do-Pai é

concebido “[...] como elemento de garantia do distanciamento em relação ao outro primordial

[a mãe], cuja função é alienante. Caberia ao Nome-do-Pai, portanto, retirar o sujeito da ordem

narcísica dual, originária, imaginária, para colocá-lo no registro da cultura.” (DECOURT,

2004, p. 41). O pai surge então na relação entre a mãe e seu filho como um terceiro que

promoverá o rompimento da relação dual. A mãe será privada de seu objeto fálico, ou seja, o

22 Em alemão Freud utiliza o termo verwerfung, o qual foi traduzido livremente por Lacan como forclusion, que significa arremessar para longe. Remete-se a uma liquidação, a uma remissão de uma privação de um direito.

68

filho, e a criança será castrada e frustrada de ser o objeto simbólico da mãe. O resultado dessa

operação será a entrada da criança no registro simbólico e conseqüentemente na ordem da

cultura.

Para esse percurso, Lacan utilizará as formulações freudianas sobre a patologia do

presidente Schreber. Ele acredita que a paranóia eclodida no caso é decorrente das questões

com o pai. É no momento em que Schreber precisa ocupar o lugar da lei, ou seja, no momento

em que ele se torna presidente do Tribunal de Apelação que sua psicose se desencadeia.

De acordo com Lacan (1955-56 / 2002), é pela falta de um significante primordial, o

significante do Nome-do-Pai, que a psicose se dará. Quando ocorre sua suspensão, ou melhor,

a sua foraclusão no inconsciente do sujeito, o que se instaura é a psicose. A carência do pai

propicia a foraclusão do significante do Nome-do-pai, que então nunca ocupará o lugar do

Outro.

É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saber, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose. [...] É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamento do significante onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante. (LACAN, 1964/1998, p. 582 e 584).

Para explicar o fracasso do Nome-do-Pai no caso do presidente Schreber, Lacan

(1955-56 / 2002) formula três argumentos básicos para a função do pai. O primeiro diz

respeito à integração simbólica, que ocorrerá através do conflito imaginário edípico e das

relações ambivalentes da criança com o seu progenitor. O segundo trata da realização

simbólica através do fenômeno da couvade23; e, o terceiro, que seria o resultante dos dois

primeiros, aponta para o papel que o pai desempenha na geração de seus filhos. Lacan afirma

que o que interessa para o sujeito é o pai enquanto simbólico e imaginário, é o pai como

genitor da alma e do espírito. O que acontece no caso de Schreber é que a paranóia se

desencadeará pela via da incompletude da realização da função paterna. De acordo com Lacan

(1955-56 / 2002), nesses casos a função real do pai na geração surgirá na forma de delírio, sob

23 “Costume de algumas sociedades, segundo o qual o homem vivencia simbolicamente o parto de sua mulher e, após o nascimento da criança, se recolhe como se estivesse em resguardo.” (HOUAISS, 2002).

69

a forma imaginária. É devido a isso que Schreber poderá se tornar a mulher de Deus24.

O pai torna-se, no cerne da obra lacaniana, o significante primordial para a

constituição psíquica do sujeito. Quando ocorre o fracasso de sua inscrição no inconsciente, a

relação do sujeito com o mundo simbólico ficará comprometida. Kaufmann (1996) acredita

que quando Lacan dá ao pai o lugar de significante primordial em sua teoria, ele confere a ele

uma certa transcendência, possibilitando-o obter o estatuto de Outro.

No ano seguinte ao do Seminário 3, Lacan trabalha em seu Seminário 4 – A relação de

objeto (1956-57) com os registros simbólico, imaginário e real. Nesse seminário, o Nome-do-

Pai surge na vertente do Édipo como versão normativa do pai, tornando-se referência central.

Ao trabalhar com o ternário simbólico, imaginário e real neste Seminário, Lacan

promove uma articulação entre os registros através das operações da castração, da frustração e

da privação que permitem-lhe apresentar definições sobre o pai real, o pai simbólico e o pai

imaginário.

Ele explica o pai simbólico como uma necessidade da construção simbólica, que por

sua vez, não encontra representação em nenhuma parte. Esse pai “impensável” se relaciona

com o Urvater freudiano, o pai morto de Totem e tabu. Para Lacan (1956-57 / 1995), o único

meio de se ter acesso a esse pai é através do mito. O pai simbólico é um pai total, único ser

não castrado. É essa condição que permitirá a sexuação dos demais sujeitos. O pai simbólico é

o Nome-do-Pai.

Na doutrina lacaniana, esse pai simbólico, que não intervém e não está representado em parte alguma, é um dado irredutível do mundo do significante, necessário na articulação mesma da linguagem humana. É ele que está na base da dialética edipiana, que necessita, para seu desenvolvimento, da suposição da existência de alguém que possa assumir a posição de pai e responder: eu o sou, pai. A fé na existência desse pai é que o faz existir, uma vez que ninguém jamais preencheu completamente esse papel. (OLIVEIRA, 2003, p.33).

O pai imaginário é o pai assustador, o todo-poderoso; é Urvater antes de sua morte.

Esse é o pai em que se está em constante conflito.

Quanto ao pai real, Lacan irá tecer considerações em todo o percurso de sua obra. No

Seminário 4 (1956-57) o conceito de pai real surge atrelado ao pai da realidade. É ele quem

irá intervir concretamente no ato da castração. No Seminário 5 (1957–58), o pai real é

24 FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoides) [1911]. In: FREUD, S. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XII: O caso Schreber; artigos sobre técnica e outros trabalhos. 2ª edição, Rio de Janeiro: Imago,1988.

70

apresentado por Lacan através da palavra da mãe. No Seminário 17 (1969-70), o pai real é

definido sendo nada mais que um efeito da linguagem.

O que diz respeito ao pai real é que alguém de carne e osso precisa assumir o

investimento simbólico que é oferecido pela mãe. O pai real será qualquer coisa que aplaque o

desejo materno. “O pai real desempenha de fato um papel de presença, que certamente não se

resume em algo mensurável, mas numa qualidade de presença que é capaz de jogar o jogo,

que está presente no imaginário da criança e que tem aí certa configuração operatória capaz de

agenciar a castração.” (OLIVEIRA, 2003, p.37).

Lacan explica que o Nome-do-Pai é uma metáfora que surge para substituir o

significante materno. Será ele que dará significação à criança. A função paterna a partir do

Nome-do-Pai deve ser “[...] encontrada no registro do sentido e da significação. Não se trata

da conduta do pai, nem da imagem do pai, mas da possibilidade, no registro do sentido, de

tomar sentido como pai, o que vincula à lei ao desejo.” (PERES, 2002, p.240). O Nome-do-

Pai ganha então estatuto de Lei, não sendo necessária a presença de uma pessoa para que ela

possa operar.

Comumente são confundidos os papéis de pai e de mãe com as funções denominadas

materna e paterna que a psicanálise lacaniana instituiu. Na constituição psíquica de uma

criança é evidente a importância deles e delas para a constituição da criança como sujeito.

Nos primórdios da vida de uma criança a mãe ocupa o lugar de cuidadora ao mesmo tempo

em que permite que essa criança seja falada. A cada choro do bebê a mãe infere com uma

significação, o bebê chora porque tem fome, frio, quer colo... De acordo com Faria (1998) a

função materna será efetuada quando alguém possibilita a entrada da criança no mundo da

linguagem. Ela é o veículo para o campo do simbólico. Ao pai cabe intervir nessa relação,

propiciando a diferenciação da criança com a mãe. A função paterna surgirá então na díade

mãe e filho. Sua função será a de provocar uma ruptura nessa relação, interferindo nela como

um terceiro. A função paterna como terceiro elemento servirá primeiro para frustrar e castrar a

criança da sua condição de objeto materno e de privar a mãe desse objeto. Sua função será

então a da castração, seja pela vertente do pai real, do imaginário ou do simbólico.

Diante disso, é fato que a relação inicial da criança com a mãe e a participação do pai

interpondo-se nela propicia a constituição da criança como sujeito. É devido a essa

participação que não há como excluir os papéis de pais e de mães nessa constituição,

provocando ainda dificuldades para se diferenciar os pais reais dos pais enquanto funções.

Porém, é importante salientar que não se pode afirmar que os pais reais não possuem

nenhuma relação com a função que deveriam exercer. Em contrapartida, também é perigoso

71

afirmar que para que a constituição de um sujeito se dê seja necessária a presença concreta, de

carne e osso, de um pai e de uma mãe. Essa presença concreta está geralmente atrelada às

figuras de pais e de mães biológicos de uma criança. Frente a esse impasse é possível propor a

seguinte questão: “[...] como é possível pensar nesse cruzamento entre as funções paterna e

materna como constituintes do sujeito humano, e os pais enquanto indivíduos concretamente

aptos a exercê-las?” (FARIA, 1998, p. 38). A resposta para tal questão é dada por Lacan

através de suas teses sobre o estatuto da função em Psicanálise.

Para que se possa apreender o conceito de função na teoria lacaniana, primeiro há de

se deter nas origens desse conceito, ou seja, nas bases científicas nas quais Lacan foi buscar

inspiração para a construção dele. Essas bases estão inscritas na matemática e na lingüística.

Na matemática, função designa uma relação especial entre dois conjuntos. Essa

relação abrange todos os elementos do primeiro conjunto que se associa a um único elemento

do segundo conjunto. Assim, o termo relação irá se restringir ao seu estatuto formal de

ligação. Será encontrada a função no encadeamento-desencadeamento das relações entre os

elementos de cada conjunto. “Uma função é, portanto, um modelo matemático para escrever

relações. Matematicamente, relações podem ser representadas por uma função. Toda função é

uma relação, mas nem toda relação é uma função. Uma função é um modelo de relação.”

(TEIXEIRA, 2006, p. 34).

Na lingüística, o conceito de função também será permeado pelas idéias de relações. A

função, na lingüística, dirá do papel que cada um dos elementos gramaticais desempenhará

dentro de uma frase. Essa decorre da relação que estabelece entre os demais elementos

presentes na frase.

Em Psicanálise, não diferente dos pressupostos da matemática e da lingüística, a

função também será designada a partir de relações. No que tange à questão da constituição do

sujeito, a criança só se constituirá como tal à medida em que os pais “funcionam” para ela

como elementos que exercerão determinados papéis na relação que estabelecem com a

mesma. (FARIA, 1998). Será pelas funções materna e paterna que a criança se transformará

de um ser biológico em um ser de cultura, ou seja, um sujeito psíquico.

Amazonas e Braga (2004, p. 41) definem a função paterna como:

[...] um conceito que foi desenvolvido a partir da obra de Freud, para dotar de significado nossas experiências de sujeitos, numa determinada época quando convivíamos com uma determinada forma de família: em que o pai real ou o seu substituto dava sustentação a essa função e correspondia tanto ao imaginário quanto ao simbólico. (AMAZONAS e BRAGA, 2004, p. 41).

72

Essa definição de Amazonas e Braga (2004) reacende a discussão da prevalência da

família nuclear, conjugal no interior da obra psicanalítica. Lacan, assim como Freud, tinha em

sua época o modelo burguês de família como sendo o preponderante na sociedade parisiense,

o que lhe permite fundar a constituição psíquica dos sujeitos humanos a partir das relações das

crianças com seus pais. Porém, já em seu primeiro ensino, Lacan aponta que é desnecessária a

presença dos pais reais, biológicos para que a constituição se dê. É possível dizer então que

não é essencial o modelo nuclear de família para que uma criança se constitua psiquicamente.

Outras roupagens de famílias poderão contribuir de forma satisfatória para que essa

constituição se dê, desde que de alguma maneira as funções de pai e mãe estejam garantidas

nessas famílias.

Para se tratar da função paterna é necessário que se fale do Édipo. Dessa forma, na

teoria lacaniana, Édipo e função do pai são praticamente sinônimos. Um existe mediante a

existência do outro, “[...] em torno do Édipo, e, ao mesmo tempo, em torno da função do pai,

pois se trata de uma única e mesma coisa. Não existe a questão do Édipo quando não existe o

pai, e inversamente, falar do Édipo é introduzir como essencial a questão do pai”. (LACAN,

1957-58 / 1999, p.171).

Lacan toma os anos de 1957-58 para explicar como a constituição do sujeito ocorre a

partir da relação da criança com as funções materna e paterna. Em seu Seminário de número

5, denominado As formações do inconsciente (1957–58), ele introduzirá em suas formulações

sobre o Édipo as idéias teóricas de Melaine Klein quanto às relações pré-edipianas. Para

ambos, a questão edípica está presente antes da etapa fálica.

Nas fases pré-edipianas o bebê vive uma relação com a mãe de indiferenciação, que é

mais determinante para o sujeito que o próprio Édipo. Sendo assim, o que Lacan propõe em

seus “Três tempos do Édipo” é a entrada do pai nessa relação como lei. Sua função será a de

privar a criança da fusão imaginária com a mãe.

Ainda nesse Seminário, Lacan chama a atenção para o estatuto do pai. Mesmo sendo

este quem operará a castração, ele também será concebido como um ser castrado, pois se trata

de um ser da linguagem. Assim, segundo Decourt (2004), não se deve mais falar em “O Pai”,

mas sim em “Um Pai”. Este “Um Pai” é um agente da castração, um representante da função

paterna.

Tanto na concepção freudiana como na lacaniana, a mãe é concebida como um ser de

falta. Essa característica decorre principalmente da castração da mulher. Assim, a criança tem

a função de preencher o vazio da castração materna, sendo apreendida por ela como objeto

que complementa a sua falta. Mais precisamente, essa falta é marcada pela ausência do falo

73

na mãe. A criança nesse momento fica alienada na problemática fálica sob a dialética do ser

ou não ser o falo materno. Nesse jogo, mãe e filho se tornam fusionados, não existindo assim

uma individualidade psíquica. Lacan situa essa relação dual entre mãe-bebê no primeiro

tempo do Édipo, marcado pelo imaginário, pois o que a criança busca é ser o “desejo do

desejo da mãe”.

No entanto, essa relação de amor entre a criança e a mãe é ameaçada por um terceiro

termo. De alguma forma, a criança percebe que para a mãe existe algo além dela. É a partir

da alternância entre presença e ausência da figura da mãe que a criança verifica que não basta

ser o falo da mãe, mas é necessário ter o falo. E quem possui o “pênis real” é o pai. O filho

deixa de ser o falo da mãe pelo desvio de olhar dela para o pai, pois a mãe enquanto mulher

deseja ser o objeto de desejo do pai. Assim, o pai é apresentado ao filho através da mãe.

O segundo tempo do Édipo é caracterizado pela entrada do pai na relação mãe-bebê

como lei. Esse momento é marcado pela lei paterna. A função do pai nesse momento do

Édipo é de proibir a mãe ao filho. “Como objeto, ela é dele, não é do filho. [...] O pai

efetivamente frustra o filho da posse da mãe.” (LACAN, 1957-58 / 1999, p.178). Como o pai

da horda primitiva, o pai desse segundo tempo é um pai terrível e interditor. Ele priva

duplamente, mãe e filho.

A função paterna será fazer com que a criança deixe de ser o falo e a mãe deixe de

ser a lei. Essa função é estritamente simbólica. E é exatamente nessa função que o Nome-do-

Pai será constituído como significante. Essa interdição será realizada pelo pai imaginário, um

pai que ocupa o lugar de lei. No entanto, esse lugar só será viabilizado pelo discurso da mãe,

já que é ela quem aponta para o filho que esse é seu pai. Em contrapartida, o pai oferece ao

filho seu nome, um lugar na família, na cultura. Ele encarna para o filho, ao proibir sua mãe,

a autoridade da lei. “Com este novo deslocamento do objeto fálico vai se inaugurar o tempo

decisivo do complexo de Édipo, no qual a instância paterna vai se desfazer de seus ouropéis

imaginários para advir o lugar de Pai simbólico [...]”. (DOR, 1991, p.59).

A partir do momento em que a criança nota que não basta ser o falo, mas é preciso ter

o falo, ela parte em direção ao Nome-do-Pai. “A função do pai no complexo de Édipo é ser

um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o

significante materno.” (LACAN, 1957-58 / 1999, p.180). Essa é a tese de Lacan a respeito da

metáfora paterna. O pai agora é o representante da lei, sendo esta uma das principais

características do terceiro tempo edípico. Nele há incidência do pai real, daquele que tem o

falo ou que a criança acredita ter. O pai real é aquele que a mãe investe seu desejo de mulher,

é quem permitirá ao filho passar a uma posição sexuada.

74

Opostamente ao pai do segundo tempo, que é um interditor, o pai do terceiro tempo

oferece ao filho a possibilidade da identificação sexual. “É na medida em que o pai se torna

um objeto preferível à mãe, seja por que vertente for, pelo lado da força ou pelo da fraqueza,

que pode estabelecer a identificação final.” (LACAN, 1957-58 / 1999, p.178-179). A

identificação ocorre então pela renúncia do falo pela criança. O menino, ao identificar-se com

o pai, assume a própria virilidade e sua condição de ser possuidor de falo. Já a menina

aprende que precisa se voltar ao pai para encontrar o falo.

Com isso, Lacan (1957-58 / 1999) introduz um quarto termo na triangulação edípica:

o falo. Dessa forma, o que se interpõe entre a mãe e a criança não é o pai e sim o falo, é ele

que viabiliza a vida ao pai. A constituição da função do pai nesse momento da teoria

lacaniana se dá pela via do falo, que é um significante simbólico do órgão genital masculino,

cujo valor está relacionado ao vigor e à força. É a posse desse significante simbólico que

organizará no sujeito sua dimensão de desejo.

É pela vertente do falo que o pai se faz pai de seu filho. O que proporciona o amor do

filho ao pai é o fato deste ser o possuidor do falo, é o fato deste poder orientar o filho quanto à

sua constituição enquanto ser desejante. Assim, o pai possui funções variadas: a de assegurar

a castração da mãe, de interditar o filho de ser o falo da mãe, e de possibilitar o acesso da

criança no discurso do desejo.

O elemento irredutível que se coloca no seio da família é a significação fálica, ou seja, a encarnação da Lei no desejo, cujo sustentáculo é um pai colocado em posição de agente da castração. Para Lacan, o valor determinante desse pai passa pela castração na medida em que é portador de um desejo que se caracteriza como “não anônimo”. Ora, se há algo que a psicanálise tem a dizer sobre a lógica do funcionamento da vida familiar é a respeito da interferência, sobre essa última, da função residual de transmissão da lei paterna. (SANTIAGO, 1998, p.25).

Para Decourt (2000), a leitura de Lacan sobre o Édipo como metáfora paterna introduz

o Nome-do-Pai como vetor essencial para os processos de filiação e de sexuação que resultam

na inscrição da castração.

Ainda de acordo com esta autora, quando Lacan introduz em seu ensino as idéias de

estrutura de linguagem, ele redimensionará o estatuto da lei, pois a linguagem aponta para o

inevitável da castração, uma vez que a falta é própria dessa estrutura. Dessa forma, o pai

também é um ser castrado, pois se trata de um ser falante. A função paterna, ou seja, a

interdição que separa o sujeito de seu objeto de desejo, não se limitará ao Édipo. “Podemos

dizer então que, em psicanálise, a lei primordial é o comando de que o objeto falte e, desse

75

modo, o gozo absoluto não pode ser proibido ao ser falante enquanto tal: ele é impossível.”

(DECOURT, 2000, p. 74).

4.2 Nomes-do-Pai: o seminário que nunca existiu

No conturbado ano de 1963, no início do mês de julho, Lacan anuncia o novo

seminário que ele proferirá no segundo semestre daquele mesmo ano. O seminário seria

denominado Nomes-do-Pai. Porém, no dia 20 de novembro daquele ano, Lacan, ao iniciar a

primeira lição desse seminário, participa a seus ouvintes que aquela seria a primeira e última

lição.

A interrupção prematura dos Nomes-do-Pai ocorre pela perda do cargo de didata na

Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP). Lacan é afastado do programa de formação da SFP,

ficando impedido de continuar a receber novos casos de análise didática e de supervisão. De

acordo com Porge (1998), a direção da SFP diz que Lacan poderia continuar com seus

seminários desde que eles não compusessem seu programa de ensino, que poderia até

trabalhar em paz, a seu modo, mas apenas como simples membro da SFP.

Como se pode notar, a lição publicada dos Nomes-do-Pai, mais de vinte anos após a

morte de Lacan, não revela o que ele chamaria naquela época de Nomes-do-Pai. Como ele

mesmo diz, seria impossível naquela única exposição explicar de forma límpida o significado

do plural. No entanto, ele dá indícios do caminho que seria seguido para aquele trabalho.

Gostaria este ano de amarrar para vocês os seminários dos dias 15, 22, 29 e 5 de fevereiro de 1958, referentes ao que chamei de metáfora paterna, os meus seminários de 20 de dezembro de 1961 e os que se seguem, referentes à função do nome próprio, os seminários de maio de 1960 referentes ao que, do drama do pai está implicado na trilogia claudeliana e, finalmente, o seminário de 20 de dezembro de 1961, seguido pelos seminários de 1962, referentes ao nome próprio. (LACAN, 1963 / 2005, p. 58).

É possível perceber que, mesmo na lição publicada, Lacan retoma alguns de seus

seminários. Evoca a questão do objeto a trabalhado no Seminário da Angústia (1962-63) e a

questão do pai enquanto mito.

De acordo com Miller (1997), o seminário Nomes-do-Pai tinha como objetivo levantar

questionamentos da primazia do pai na obra freudiana. Lacan dá indícios disso na lição

76

publicada; porém, é no ano de 1970 que essas críticas surgem mais explicitamente em sua

obra.

As formulações lacanianas sobre o pai na lição proferida no seminário Nomes-do-Pai

apresentam dialéticas. Ao mesmo tempo em que aproxima o pai da horda com o pai em

Moisés, Lacan os distancia. Primeiramente, ele afirma que “[...] o pai só pode ser um animal”

(LACAN, 1963 / 2005, p. 73). Aqui ele trata a questão do pai de forma mítica, dizendo que o

pai primordial está antes da Lei, e que assim é necessário achar outro estatuto para o pai que

vá além do totem. O pai, por sua vez, Lacan o denomina de nome próprio, “[...] o nome [...] é

uma marca já aberta à leitura – eis porque ela será lida da mesma forma em todas as línguas –

impressa sobre alguma coisa que pode ser um sujeito que vai falar, mas que não falará

obrigatoriamente.” (LACAN, 1963 / 2005, p. 74). O pai do totem seria um pai morto,

enquanto o pai que porta um nome próprio seria um pai vivo, que fala.

Trata também do mito de Moisés e afirma que o Deus que é apresentado por ele é um

Deus do desejo, da Lei. Diferentemente do pai da horda, que era um pai gozador, o pai da

religião é um pai que não tem acesso ao gozo. De acordo com Lacan (1963 / 2005), na

religião, principalmente na judaica, existe uma hiância entre o desejo e o gozo de Deus.

Marca-se aqui o gume da faca entre o gozo de Deus e o que, nessa tradição, presentifica-se como seu desejo. Aquilo de que se trata de provocar a queda é a origem biológica. Aí está a chave do mistério, em que se lê a aversão da tradição judaica a respeito do que existe por todo lado. O hebraico odeia a prática dos ritos metafísico-sexuais que, na festa unem a comunidade ao gozo de Deus. Valoriza, ao contrário, a hiância que separa desejo e gozo. (LACAN, 1963 / 2005, p. 85).

Mesmo Lacan prometendo a si próprio e a seus ouvintes que nunca mais retomaria

esse seminário, são encontradas em sua doutrina, a partir do ano de 1964 após a sua ruptura

com a SFP, construções importantes a respeito dos Nomes-do-Pai. A seguir será visto como a

questão do pai aparecerá na obra de Lacan após a sua “excomunhão”25.

25 O termo excomunhão significa a “exclusão definitiva da participação que uma pessoa tinha em grupo ou comunidade.” (HOUAISS, 2002). Lacan (1964 / 1998) usa o termo para “denunciar” as exigências da IPA (Associação Internacional de Psicanálise) para a SFP no que diz respeito ao seu ensino e formação de analistas. A IPA impõe como condição sine qua non para a filiação da SFP naquela Associação que Lacan nunca mais configure no seu quadro de analista didata. Lacan usa o termo em analogia ao que ocorrera com Spinoza no ano de 1656.

77

4.3 O avesso da Psicanálise: o pai para além do Édipo

Lacan retoma a apresentação de seus seminários no ano de 1964, ao deixar o lugar de

Sainte-Anne após sua excomunhão ordenada pela Associação Internacional de Psicanálise

(IPA), e prossegue seu ensino na Escola Normal Superior até novembro de 1969. Em

dezembro daquele mesmo ano Lacan prossegue com seu ensino na Escola de Direito.

Nessa retomada, Lacan faz novamente um retorno a Freud. Porém, não se trata mais

de um retorno fidelíssimo ao pai da Psicanálise. Ele retoma a leitura do texto freudiano de

forma mais crítica, colocando aos olhos e ouvidos de quem quisesse ver e escutar os

primórdios de seu desenlace de Freud.

No Seminário 11 – Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Lacan

levanta a seguinte questão: o que é a Psicanálise? Para responder essa pergunta, ele trabalhará

com o que chamou de “quatro conceitos fundamentais”, a saber, o inconsciente, a repetição, a

transferência e a pulsão.

Miller (2003) acredita que este retorno aos fundamentos da Psicanálise está totalmente

ligado ao desligamento de Lacan da SFP determinado pela IPA. Ora, a IPA é uma associação

criada por Freud, uma associação que o procedia. Assim, surge o questionamento: o que

Freud teria deixado para trás que proporcionaria tais ações de seus sucessores? Para resolver a

questão, Lacan procura responder qual seria o desejo de Freud. “O que eu tinha a dizer sobre

os Nomes-do-Pai não visava outra coisa, com efeito, senão pôr em questão a origem, isto é,

por qual privilégio o desejo de Freud tinha podido encontrar, no campo da experiência que ele

designa como inconsciente, a porta de entrada.” (LACAN, 1964 / 1998, p.19).

No entanto, de acordo com Miller (2003), o que Lacan faz em seu Seminário 11 é

justamente se afastar do desejo de Freud. Segundo ele, isso ocorre quando Lacan (1964 /

1998, p.25) distancia-se de suas formulações do “inconsciente estruturado como uma

linguagem” para o inconsciente que se abre e se fecha, no compasso da pulsão, o inconsciente

temporal, cuja dimensão não pode ser subtraída. É a partir da própria experiência analítica que

Lacan irá realizar esse deslocamento conceitual.

É somente quando se toma o ponto de vista da experiência analítica que se pode dizer que o inconsciente só funciona ali como uma suposição. A esse título, ele não é real, ele é só uma significação induzida pelo dispositivo no qual a experiência se desenrola. A definição do inconsciente como sujeito suposto saber já implica o desenlace entre a experiência e a teoria de Freud. (MILLER, 2003, p. 9).

78

Para Coelho dos Santos26 citada por Decourt (2004), Lacan no Seminário 11 não se

afasta do desejo de Freud, mas sim do desejo epistêmico que marcou seu primeiro ensino. A

diferença entre o inconsciente pulsátil e o inconsciente estruturado como uma linguagem

ocorre no nível conceitual e não ao nível do funcionamento psíquico.

Nesse Seminário Lacan irá retomar a questão do pai através do sonho relatado por

Freud no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos – 1900. Freud (1900/1988, p.541) relata o

sonho de um pai que deixa o filho morto aos cuidados de um terceiro. O pai acorda com o

impacto da seguinte frase que escuta durante o sonho: “Pai, não vês que estou queimando?” O

que este sonho significa? Segundo Porge (1998, p. 93), ao sonhar com o filho queimando,

“[...] o pai é interpelado por seu filho em seu desejo de pai.”

Através desse sonho Lacan introduz o encontro entre a realidade que provoca o sonho

e a realidade faltosa, ou seja, a morte do filho. O desejo do pai se presentifica no sonho que

perpetua a presença do filho. “É no sonho somente que se pode dar esse encontro

verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro

imemorável – pois que ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão enquanto

pai – isto é, nenhum ser consciente.” (LACAN, 1964 / 1998, p.60). Dessa forma, a verdade

para Lacan terá “[...] a estrutura de uma ficção: o que aparece sob forma de sonho ou

devaneio é por vezes a verdade oculta, sobre cuja repressão se funda a realidade social.”

(ZIZEK, 2001, p.13)

Nesse desenlace com o percurso freudiano encontramos, no ano de 1969 – 1970 em

seu Seminário 17 – O avesso da psicanálise, um Lacan que irá novamente questionar o Édipo.

Nesse seminário ele desatrela a castração e o Édipo. Enquanto o primeiro será efeito da

linguagem, o segundo será nomeado não mais como o fundador das neuroses, mas como “um

sonho de Freud”. Esse rompimento faz com que Lacan comece a considerar o Édipo “[...] fora

do ideal da família paternalista, o que lhe permite vislumbrar um operador para além do mito

freudiano.” (OLIVEIRA, 2003, p. 46). Isso ocorre porque a castração não é mais operada pelo

pai e nem tão pouco por sua Lei, mas pela linguagem. Para Lacan (1969-70 / 1992), o gozo

pleno estará proibido a qualquer ser falante.

Como foi verificado, nos anos de 1956 a meados de 1958 Lacan utiliza a metáfora

paterna para designar a função do pai no complexo de Édipo. Será através da metáfora paterna

que ele irá explicar como o pai se torna o portador da Lei. Já no Seminário 17, Lacan lançará

26 COELHO DOS SANTOS, Tânia. Os paradigmas do último ensino de Lacan. Rio de Janeiro: UFRJ,

2002 (Seminário de pesquisa proferido por Tânia Coelho dos Santos).

79

mão da metáfora paterna para separar o pai do mito e irá criticar Freud e a si mesmo por ter

atrelado o pai à castração, e ainda tece considerações de que a castração não se refere apenas a

uma operação simbólica, mas que esta é inscrita no real da estrutura, a saber, a linguagem.

Há de se chamar a atenção para esse desenlace da operação da castração com o modelo

edípico de família. O pai, ou quem o representa, aparece nesse momento do ensino de Lacan

como aquele que será o vetor para a castração. Ele será o porta-voz para que a castração opere

a constituição do sujeito. Porém, essa já é dada a priori, uma vez que a criança é mergulhada

num mundo de linguagem. A própria estrutura da linguagem oferecerá à criança a

possibilidade de se constituir enquanto ser de desejo. A função paterna estaria inscrita então

no próprio aporte da linguagem?

No Seminário 17, a linguagem surgirá como dispositivo fundamental para a operação

do laço social. Lacan utilizará a estrutura do discurso para apresentar a estrutura dos vínculos

sociais. A idéia de discurso na teoria lacaniana se difere da fala, da palavra. O discurso vai

estar para além das palavras, ele será essencialmente “sem palavras”. Esse é sem palavras,

mas não sem linguagem. Não é necessário que as pessoas falem, um olhar pode indicar a

relação entre duas pessoas, mas o que se transmite nesse olhar é um discurso através de uma

linguagem.

A teoria dos discursos é uma nova maneira que Lacan encontra para pensar a

inscrição, o modo de aparição dos sujeitos na estrutura social. No Avesso da psicanálise

(1969-70 / 1992), ele apresentará “quatro discursos”, a saber, o discurso do amo (discurso do

mestre, de acordo com a tradução brasileira), discurso da histérica, o discurso universitário e o

discurso do analista. A estrutura desses discursos é formada por quatro elementos: S1; S2; a;

$, que representam o agente, o trabalho, o produto e a verdade, respectivamente. Há de se

chamar a atenção para o discurso do mestre que será descrito com a seguinte fórmula

(LACAN, 1969-70 / 1992):

O discurso do mestre é o discurso por excelência para Lacan. Para a construção desse

discurso, ele se baseou na dialética proposta por Hegel entre o senhor e o escravo. O

significante-mestre, ou seja, S1, é o verdadeiro amo; é ele que detém o poder, pois há algo que

o representa. O S1 é uma referência particular do sujeito, ele “[...] está sempre situado numa

referência a S2, isto é, numa referência à diferença em relação a S2.” (JORGE, 2000, p.83 –

grifo do autor). Por sua vez, S2 representa o escravo; é ele quem trabalha, pois o “saber fazer”

(Agente) S1 S2 (Outro) (Verdade) $ // a (Produto)

80

é seu, S2 representará o saber do Outro, um escravo que nada sabe fazer é inútil. Como é o

escravo quem trabalha, será ele quem produzirá, e o que ele produz? Objetos a. É devido a

essa produção e a apropriação do senhor do trabalho do escravo que Lacan denominará o a

como “objeto mais de gozar” em analogia a “mais valia” de Marx. O objeto a é o “[...] objeto

faltoso, objeto causa do desejo, é o que resta da aptidão do significante para representar o

sujeito, daí sua estrutura de resto, de dejeto. Ele é o que sobra de toda tentativa de representar

o sujeito.” (JORGE, 2000, p.83 – grifo do autor).

A verdade surge no discurso do mestre como uma verdade oculta - $. O que é preciso

que fique oculto? Segundo Lacan (1969-70 / 1992) é a castração do mestre, essa nunca poderá

ser revelada. A castração permanecerá encoberta sob efeito do recalque, o que se encontra na

parte de baixo da barra é da ordem do inconsciente. Sendo assim, o mestre não sabe que é

castrado e nem tão pouco o escravo reconhece que o saber é seu.

Quinet (2006) afirma que os quatro discursos trabalhados por Lacan nesse Seminário

são estruturados através do Nome-do-Pai. É devido a essa estruturação que o psicótico é

definido como “fora-do-discurso”, pois remete-se à foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do

Outro.

O que estaria no avesso da Psicanálise? A resposta de Lacan é o discurso do analista.

Miller (1997) aponta que essa oposição é percebida de forma mais evidente e mais importante

quando Lacan trata do Édipo em seu Seminário 17. Segundo ele, nesse seminário, Lacan irá

destruir o Édipo freudiano. Esse aniquilamento do Édipo se dá no momento em que Lacan

retira-o da esfera mítica e coloca-o no lugar da estrutura. Miller (1997) salienta que o lugar do

Édipo como mito coloca-o no lugar do discurso do mestre, pois “[...] o pai, em Freud, é o

significante-mestre que reduz tudo aquilo que, nos mitos, é muito mais complexo.” (MILLER,

1997, p. 428). Ainda, esse lugar do discurso do mestre será identificado por Lacan no

momento em que ele afirma que, para Freud, o pai seria aquele a quem se deve primeiramente

amar e identificar-se.

Lacan afirma que o Urvater, o pai da horda primitiva, não precisou ser recalcado,

porque já o era desde a origem. “[...] o pai original é aquele que os filhos mataram, e depois

disso é do amor por esse pai morto que procede uma certa ordem. [...] É que, desde que ele

entra no campo do discurso do mestre [...] o pai, desde a origem, é castrado.” (LACAN, 1969-

70 / 1992, p.94).

Para Lacan, a utilização do mito tanto de Totem e tabu quanto do mito edípico, feita

por Freud, provocou uma ilusão sobre a realidade do pai. O mito em Freud esconde a verdade

do pai, ou seja, que o pai é castrado. O pai não castrado é da ordem mítica, pois ele se

81

encontra fora da linguagem, como o pai totalizador que tinha acesso a todas as mulheres da

horda. Porém, essa totalidade do pai é um engodo, pois o pai como ser de linguagem é

castrado, e essa é a verdade do pai.

Ao desmistificar o Édipo e o pai da horda primitiva, Lacan chama a atenção para o pai

real. Desde o Seminário 4 – A relação de objeto (1956-57), como foi dito, ele já apresentava o

pai real como agente da castração. Doze anos depois, o pai real reaparece em seu ensino não

somente como vetor da castração, mas fundamentalmente como operador estrutural que

encarna a função de agente da castração. Com isso, Lacan (1969-70 / 1992) vai diferenciar o

mito da estrutura, irá dissociar a função do pai. Não caberá mais ao pai edipiano o papel da

castração, ele será apenas o porta-voz da linguagem, pois a castração é um fato de linguagem.

Sobre tudo quero destacar o Seminário XVII, onde Lacan introduz os quatro discursos e separa nitidamente o Édipo da castração. Esta é claramente localizada como um efeito da linguagem, mais especificamente, do significante quando está posto em função do discurso do amo. Neste discurso, qualquer significante pode determinar a castração, não só o pai. Pois quando a castração foi separada do Édipo, Lacan recupera a categoria do Seminário IV do pai como agente da castração, faz uma releitura desse termo e volta a colocar o pai real como agente da castração. A linguagem é o que determina a castração, ao qual não implica que se prescinda da função do pai como seu agente, pois este é o seu transmissor. (MAZZUCA; SCHEJTMAN; ZLOTNIK, 2000, p. 82 – Tradução e grifo nossos)27.

Em Freud, o pai edípico é um pai que responde aos apelos do sujeito, constituindo-se

como um pai que sabe, ou seja, um pai que não é castrado pela linguagem. Esse pai ocupa o

lugar de sujeito de suposto saber. No entanto, para Lacan, a histérica interpelará o pai

justamente na fenda de sua constituição e o indagará sobre a sua verdade, a verdade da sua

castração. O pai que sabe é um pai idealizado pelo neurótico, por isso a histérica, através de

seu sintoma, tenta restituir, a partir da impotência do pai, um pai que sabe tudo. Nessa

tentativa, o que a histérica revela é que o pai não sabe tudo, o destituindo assim do lugar do

saber.

27 Pero sobre todo quiero destacar el Seminario XVII, donde Lacan introduce los cuatro discursos y separa nítidamente el Edipo de la castración. Ésta queda claramente ubicada como un efecto del lenguaje, más específicamente, del significante cuando está puesto en función de discurso amo. Desde este discurso, cualquier significante puede determinar la castración, no sólo el padre. Pero aun cuando la castración ha sido separada del Edipo, Lacan recupera la categoría del Seminario IV del padre como agente de la castración, hace una relectura de ese término y vuelve a colocar el padre real como agente de la castración. El lenguaje es el que determina la castración, lo cual no implica que se prescinda de la función del padre como su agente, pues éste es su transmisor.

82

Para Lacan, o pai não sabe e esse não saber do pai é identificado com a idéia da castração do pai. Se Freud formulava a idéia de um pai castrador, para Lacan, o pai é castrado. [...] Toda essa articulação entre o pai, a verdade e o saber culmina com a noção de que o pai simbólico se situa no nível em que o saber faz função de verdade. No saber inconsciente, o pai equivale a um significante que aponta para uma falha na estrutura, uma falha no saber que faz com que a verdade tenha a estrutura de um semidizer. A castração é a única resposta que retorna ao sujeito quando ele interroga o pai morto. (OLIVEIRA, 2006, p. 43).

Decourt (2000) adverte que cabe ao pai real fazer-se parecer o agente da castração. A

função está posta, mas o pai real, de carne e osso, é apenas o seu operador. Dessa forma,

qualquer homem pode operar a função. Lacan dissocia aqui o pai biológico do pai real e

conseqüentemente da lei. A lei no interior do mito é construída como uma proibição vinda do

pai. Na estrutura a lei, que remete à castração, é anterior ao pai da origem, é anterior ao

sujeito, pois esta está vinculada à lei da linguagem, à lei que remete a castração estrutural. “A

castração é a operação real introduzida pela incidência do significante, seja ele qual for, na

relação do sexo. E é óbvio que ela determina o pai como esse real impossível [...]”. (LACAN,

1969-70 / 1992, p. 121).

De acordo com Porge (1998), Lacan, ao colocar a castração como efeito da linguagem,

propicia uma quebra na vinculação entre o Nome-do-Pai e a metáfora paterna. Segundo ele, o

Nome-do-Pai adquire autonomia quanto à questão fálica, sendo que esta dependia

exclusivamente do complexo de Édipo. O Nome-do-Pai é um nome que conclama a falar,

opostamente ao falo que não fala. Com essa nova distinção, Lacan não retira do Nome-do-Pai

sua eficácia simbólica.

O que é nomeado pai, o Nome-do-Pai, se é um nome que tem uma eficácia, é precisamente porque alguém se levanta para responder. Sob o ângulo do que se passava para a determinação psicótica de Schreber, é enquanto significante capaz de dar um sentido ao desejo da mãe que, a justo título, eu podia situar o Nome-do-Pai. Mas no nível daquilo de que se trata, quando digamos que seja a histérica quem o chama, o de que se trata é que alguém fala. (LACAN28 apud PORGE, 1998, p. 147 – grifo do autor).

Até esse momento de seu ensino Lacan inscreve o pai em dois campos distintos. O

primeiro se refere ao campo da linguagem, no qual Lacan aborda o complexo de Édipo a

partir da metáfora paterna. O segundo será inscrito através do campo do gozo, campo este que

é inaugurado com o Seminário 17, no qual o mito edípico é tratado através do assassinato de

Laio e do gozo incestuoso.

28 LACAN, Jacques. De um discurso que não seria semblante, aula de 19 de junho de 1971, inédito.

83

A passagem do campo da linguagem ao campo do gozo implicará a reinterpretação do que é um pai e, sobretudo, do que é um pai real. [...] Lacan fará o pai morto corresponder ao gozo, não ao pai simbólico, como antes. Eis o pai real do sujeito, o pai gozador, impossível de suportar, que é a vertente do pai simbólico [...]. Essa equivalência pai morto = gozo permite definir o pai real como o operador estrutural – o que opera a castração – que como tal, pode ser representado por S1, significante-mestre, que possui a castração como princípio. Do pai do gozo, como impossível do mito freudiano, Lacan chega à depuração de sua função de operador da castração. (QUINET, 2006, p. 44 – 45 - grifo do autor).

Diferentemente das teses construídas no Seminário 17, Lacan no Seminário RSI (1975)

evidenciará a função de nomeação do Nome-do-Pai, e é justamente essa função que será

discutida a partir de agora.

4.4. O pai do nó e o terceiro ensino de Lacan

É possível notar até aqui que a função paterna no ensino de Lacan surge como um

significante, significante que está amarrado ao simbólico. Essa seria a grande originalidade do

ensino de Lacan como afirmam Mazzuca, Schejtman e Zlotnik (2000).

No terceiro ensino são encontradas as teses lacanianas sobre o pai, ou melhor, sobre o

Nome-do-Pai a partir de três proposições: a da sexuação, a do “enlaçamento” e a do sinthome.

Em O Seminário, 20 – Mais, ainda (1972-73), Lacan revê sua concepção sobre a

linguagem e as questões em torno do gozo ganham destaque. Estabelece as fórmulas

quânticas da sexuação – utilizando-se dos recursos da lógica clássica aristotélica – o que lhe

permite propor novas relações entre o feminino e o masculino, dando, então, ensejo para que

se fale do ser, do amor e do ódio. Ainda, trabalhará com as idéias sobre o nó borromeano.

Diante dos vastos temas tratados por Lacan nesse Seminário, ele será tomado com o intuito de

discutir como o autor formulará a constituição psíquica dos seres humanos a partir da

intervenção do pai na sexuação dos seres.

Para se tratar da sexuação é necessário que antes se trate do gozo, pois de acordo com

Lacan (1972-73 / 1985) a questão da sexuação dos seres humanos é secundária, visto que tudo

irá girar em torno do gozo e, mais especificamente, do gozo fálico.

Quais são os postulados lacanianos sobre o gozo neste Seminário? Lacan (1972-73 /

1985) definirá o gozo por uma vertente negativa, afirmando que ele não serve para nada. O

gozo será trabalhado a partir da proposição do gozo no próprio corpo, ou seja, do gozo sexual,

que está atrelado à linguagem, pois se trata aqui de um ser falante que goza de um corpo. Essa

84

forma de gozo irá trazer para os sujeitos conseqüências na maneira de se relacionarem com o

corpo e com a linguagem. Ele aponta no Seminário 20 (1972-73) essas conseqüências a partir

da fantasia que homens e mulheres terão quanto à sexuação.

A fantasia masculina ($ ◊ a) diz respeito ao Édipo. Ela parte da premissa do pai

morto, de todos sujeitos submetidos à castração. A constituição do sujeito na vertente

masculina terá a primazia do simbólico, obedecendo a lógica edipiana da sexuação. Assim,

esse sujeito será submetido à castração, tornando-se um sujeito de desejo. A forma de acesso

ao gozo nessa vertente será pela via da transgressão, ou seja, através do assassinato do pai. “A

Lei de que se trata nesta perspectiva considera, de um lado, a vertente imaginária do pai, onde

ele é considerado o agente da castração, e, de outro, a vertente real associada ao assassinato

do pai primordial.” (DECOURT, 2004, p. 58 - 59).

Já a fantasia feminina na sexuação será representada pela fórmula Nela há

uma inversão em relação à constituição do sujeito. O que surge aqui é a feminilidade e não a

posição feminina diante do falo. A feminilidade é introduzida por Lacan como um “além do

Édipo”, uma vez que difere da reivindicação fálica tal como na lógica edipiana, ou seja, tal

como na vertente masculina. Esse “além do Édipo” permite ainda uma nova via de abordagem

das relações do significante com o gozo e com o corpo. (COELHO DOS SANTOS, 2006).

Qual o novo estatuto que o pai ganha no Seminário 20? O pai surge como o

representante de uma Lei que está na origem da cultura e será a partir dela que a sexualidade

irá se orientar. Nessa perspectiva, o sujeito se constitui a partir da castração, cuja Lei é

introduzida pelo pai. “Neste momento do percurso lacaniano, o falo comparece como o

significante da diferença sexual para ambos os sexos, sendo o elemento que articula o

simbólico ao complexo de Édipo e de castração.” (DECOURT, 2004, p. 61).

Utilizando-se das fórmulas quânticas da sexuação29, Lacan (1972 – 73 / 1985) irá

propor uma diferenciação quanto à questão da sexuação para homens e mulheres, dissolvendo

assim a simetria da problemática fálica, ou seja, desfaz a constituição desejante dos sujeitos a

partir de um mesmo parâmetro da vivência edípica e de sua relação com a castração. Dessa

maneira, quando Lacan aponta a diferença na sexuação do lado feminino e do masculino, ele

irá despojar-se de suas idéias quanto aos Três tempos do Édipo no que diz respeito à exceção

29 Para grafar as fórmulas quânticas da sexuação Lacan irá utilizar dois quantificadores da lógica moderna que são o ∃ (existencial) e o ∀ (universal). No que diz respeito às fórmulas da sexuação, o ∀ designará o “para todo”.Ainda, Lacan acrescentará dois outros quantificadores, que são: o

o “não todo” ∀ e a inexistência ∃.

$ (A).

85

____

∃ x Φ x

da castração do pai real. Haverá do lado masculino uma exceção quanto à castração, enquanto

que, do lado feminino, a equação será a de que todos os seres são castrados.

De acordo com Oliveira (2003, p. 39), para Lacan, “a sexuação é uma operação que

estabelece um modo de gozar do falo.” Esse modo de gozo fará com que Lacan divida os

sujeitos em dois lados: o do homem e o da mulher. “Do lado do homem, o modo de

relacionar-se com o outro sexo implica a inserção do sujeito na função fálica [Φx]. Do lado da

mulher, o modo de gozo implica uma não-toda inscrição do sujeito na função fálica.”

(OLIVEIRA, 2003, p. 39).

Lacan apresenta a seguinte fórmula para grafar a sexuação masculina:

VERTENTE MASCULINA

____

∃ ∃ ∃ ∃ x Φ Φ Φ Φ x

∀∀∀∀ x ΦΦΦΦ x

A fórmula se refere ao pai da horda primitiva de Totem e tabu, pois indica o pai da

exceção, o pai todo, o não castrado. A barra sobre a função fálica significa uma negação, que

pode ser lida da seguinte maneira: “não se pode inscrever ‘x’ na função fálica”. (LACAN,

1972-73 / 1985). A outra fórmula, ∀x Φx, indica que todos os outros homens estão sujeitados

à castração. A aparição do pai como exceção à função fálica sustentará o universal do homem,

pois será através da existência das duas fórmulas que um sujeito poderá ser chamado homem.

(OLIVEIRA, 2003).

Na sexuação masculina “concentra-se a crença de que existe ‘ao menos um’, uma

exceção à castração, que funda um conjunto por identificação ao modelo.” (COELHO DOS

SANTOS, 2006, p. 162). Essa identificação permite o que é chamado por Freud de

identificação sexual. Sendo assim, a sexuação do lado do homem se dará pela operação do

Édipo. É encontrado então o Nome-do-Pai na vertente masculina da sexuação.

A lógica edipiana, como já vimos, é marcada justamente por esta condição da exceção. A partir do Édipo, para que todos os sujeitos sejam castrados é preciso que ao menos um não seja. Lacan, no seminário 19, lição 2 (Lacan [1971] apud Antunes 2002), afirmará que o pai é o nome desta exceção. O Nome-do-pai é o significante que, enquanto exceção, garante a constituição dos sujeitos submetidos à função fálica. É sob a intervenção do Nome-do-pai, portanto, que o sujeito será capaz de simbolizar o falo enquanto causa do desejo da mãe. Temos aqui claras indicações de que, nesta lógica, a constituição do sujeito está na dependência da função de exceção para se realizar. Esta lógica edipiana, segundo Lacan [...],

86

______

∀ x Φ x,

corresponderia à vertente masculina da sexuação. (DECOURT, 2004, p. 62 – 63 – grifo do autor).

É possível perceber que até o Seminário 20, Lacan pautou a constituição do sujeito,

toda ela, através do viés masculino da sexuação. Isso ocorre uma vez que o modelo para que a

criança atinja a própria sexualidade será dado através do complexo de Édipo. No entanto,

Lacan introduz a partir desse Seminário uma nova perspectiva quanto à sexuação, que a

encontramos do lado feminino da sexuação. Para ele, a sexuação feminina se dará pela lógica

do não-todo, uma vez que a idéia de conjunto deixa de existir, pois não haverá uma que

unifique ou represente todas as mulheres. Dessa maneira, a mulher será representada a partir

do um a um. Lacan (1972-73) irá grafar a fórmula da sexuação do lado da mulher da seguinte

maneira:

VERTENTE FEMININA

___ ____

∃ ∃ ∃ ∃ x Φ Φ Φ Φ x

______

∀ ∀ ∀ ∀ x Φ Φ Φ Φ x

A fórmula significa que do lado da mulher não existe uma mulher em

posição de exceção às outras. Não há modelo do lado feminino que permita uma

identificação. É devido a isso que Lacan irá dizer que “A mulher não existe.” Não há

significante que a represente no inconsciente, o real é sem lei, é “uma a uma”. Acredita-se,

nesta perspectiva, que a castração é universal, pois todos os sujeitos estão submetidos à

linguagem. “Nesta vertente, a lógica que a preside, é a de todo ser falante é causado pela

castração. Não se trata, entretanto, de sujeição à castração, pois não se trata de identificação

ao modelo, ao padrão.” (COELHO DOS SANTOS, 2006, p. 162). A outra fórmula,

coloca a mulher, a não-toda, na função fálica. Diferentemente do que ocorre do lado do

masculino, do lado feminino não haverá um conjunto comum no qual possam ser

categorizadas todas as mulheres. “A não-toda submissão da mulher à função fálica é o que

leva a Lacan a atribuir a ela um gozo, suplementar, o gozo do corpo que não está submetido

ao regime fálico.” (OLIVEIRA, 2003, p.40).

O que se pode notar é que, através da equação da fórmula da sexuação feminina, a

constituição subjetiva não se dará primordialmente através do Édipo, o que implica em uma

___ ____

∃ x Φ x

87

queda do masculino. A constituição dos sujeitos como seres desejantes não estaria mais

atrelada ao modelo edípico, à estruturação fálica.

Lacan sepultará o Nome-do-Pai e sua função significante nesse momento de seu

ensino? Não, segundo Porge (1998). No Seminário RSI (1975) Lacan apresentará a

pluralização dos nomes do pai. Ao trabalhar com a idéia do nó borromeano, no qual articula o

real, o simbólico e o imaginário, ele levanta a questão: como o enlaçamento ou a amarração

entre os registros/elos se darão? A resposta cunhada para esse problema é a do Nome-do-Pai.

Nosso imaginário, nosso simbólico e nosso real estão talvez para cada um de nós em um estado de suficiente dissociação como para que somente o Nome-do-Pai faça nó borromeano e faça sustentar tudo isto junto, faça nó do simbólico, do imaginário e real. É dizer que neste estado atual imaginário, simbólico e real se caracterizam por estarem dissociados, e necessitamos do Nome-do-Pai como quarto elemento para manter uma certa estabilização e uma certa ordem nas relações entre eles. (MAZZUCA; SCHEJTMAN; ZLOTNIK, 2000, p. 152 – Tradução nossa) 30.

É encontrado nesse momento da teoria lacaniana um novo estatuto para os registros

real, simbólico e imaginário, que se situam em grau de paridade. Não há mais a prevalência

do simbólico e nem tão pouco da metáfora paterna sobre os demais registros. Sendo assim, o

Nome-do-Pai surge como um novo elo que permitirá a união dos registros fundamentais na

constituição subjetiva dos seres humanos. Devido à noção de equivalência para cada registro

o que se observa é que ocorre uma perda na relação entre os mesmos. O Nome-do-Pai surgirá

então como aquele que permitirá a relação entre os registros; será aquele que promoverá o elo

de ligação entre o real, o simbólico e o imaginário.

Lacan, citado por Mazzuca, Schejtman e Zlotnik (2000), diz que a função radical do

Nome-do-Pai é dar um nome às coisas. O que isto significa? Dar nome às coisas é uma

operação simbólica. Nessa vertente, é encontrado o Nome-do-Pai enquanto significante. No

entanto, ele não se restringe a esse registro, não se reduz à função significante, pois essa

função de nomeação pode se equiparar com o imaginário e o real, e assim pode-se falar em

nominação imaginária e real. Esta seria “a radical ex-sistência31 do Nome-do-Pai que o nó

borromeano suporta.” (PORGE, 1998, p. 170).

30 Nuestro imaginario, nuestro simbólico y nuestro real están tal vez para cada uno de nosotros en un estado de suficiente disociación como para que solamente el Nombre-del-Padre haga nudo borromeo y haga sostener todo eso junto, haga nudo de lo simbólico, de lo imaginario y de lo real. Es decir que en este estado actual imaginario, simbólico y real se caracterizan por estar disociados, y necesitamos el Nombre-del-Padre como cuarto elemento para mantener una cierta estabilización y un cierto orden el las relaciones entre ellos. 31 De acordo com Fink (1998), Lacan utiliza o conceito de ex-sistência para qualificar o real, para dizer de uma existência separada de, que está do lado de fora, que está fora da estrutura.

88

De acordo com Mazzuca, Schejtman e Zlotnik (2000), quando Lacan diz que o pai é o

quarto elo que enlaça os outros três, ele não está dizendo do Nome-do-Pai como significante,

mas sim como um elemento real, do pai real, do pai sinthome, do pai exceção. Mas mesmo

assim, ainda naquela época de seu ensino, Lacan não deixará de indicar a função significante

do Nome-do-Pai, pois o Nome-do-Pai suportará duas versões: uma que é do pai que nomeia e

a outra do pai como nome. O pai que nomeia tem a função de dar nome às coisas, função que

é estritamente do pai real. Já o pai como nome é aquele que dá nome ao seu filho, indicando

uma linhagem, uma inscrição no mundo simbólico; aqui é encontrado um pai atrelado à

ordem do significante.

Mazzuca, Schejtman e Zlotnik (2000) apontam que as idéias de Lacan sobre a

pluralização dos nomes do pai já apareciam em Freud. Segundo esses autores, Lacan, no

Seminário 22, indica que Freud precisou criar uma maneira de amarrar os registros simbólico,

imaginário e real; esse modo de amarração se daria então através do complexo de Édipo e da

realidade psíquica. Todas as construções teóricas feitas por Freud sobre a questão do pai,

estudadas no capítulo anterior, perpassam por este entrelaçar dos registros. Freud, ao fundar

suas versões míticas sobre o pai, permite uma inscrição do ser no ordenamento da cultura e

conseqüentemente propicia a amarração do sujeito no contexto social.

Conseqüentemente à pluralização dos nomes do pai, haverá a pluralização do pai,

sendo ele apresentado como o pai imaginário, ou seja, o pai morto; o pai real agente da

castração; e, o pai simbólico representante da Lei.

Em RSI Lacan apresentará o Nome-do-Pai como sinthome. Essa aparição do Nome-

do-Pai como sinthome não anula a função de enlaçamento dos registros. Pelo contrário, ela o

reforça.

[...] no Seminário XXII encontramos o pai-sintoma que, deste modo, continua a elaboração do pai real no ensino de Lacan: prolonga e elabora a noção do pai doador do Seminário V e o pai agente do Seminário XVII e está precedido pela introdução das fórmulas da sexuação em que o pai é um existente – se refere à variável da função: (x), existe ao menos um: (x) – que nega a função fálica e desta maneira, como exceção, sustenta o conjunto. (MAZZUCA; SCHEJTMAN; ZLOTNIK, 2000, p. 83 – Tradução nossa) 32.

32 [...] em el Seminario XXII encontramos el padre-síntoma que, de este modo, continúa la elaboración del padre real em la enseñanza de Lacan: prolonga y elabora la noción de padre dador del Seminario V y la de padre agente del Seminario XVII y está precedida por la introducción de las fórmulas de la sexuación en que el padre es un existente – se refiere a la variable de la función: (x), existe al menos uno: ∃(x) – que niega la función fálica y de esta manera, como excepción, sostiene el conjunto.

89

O que é um sinthome? Não é outra coisa senão o quarto nó que possibilitará a

amarração entre o real, o simbólico e o imaginário. O pai como sinthome é uma outra versão

do Nome-do-Pai que se difere de sua função significante; é uma nova maneira de chamar o

pai que nomeia.

Em RSI (1974-75) o pai sinthome quer dizer que ele mesmo tem um sintoma, que é ter

feito uma mulher causa de seu desejo. Isso implica numa articulação entre gozo e desejo. Essa

articulação entre gozo e desejo é o que Lacan irá chamar de versão do pai (père-version). Na

père-version o pai deverá fazer de uma mulher o objeto a, que cause o seu desejo. A père-

version indica uma versão, uma orientação rumo ao pai. A “versão do pai está orientada,

vetorizada, fazendo valer uma versão de objeto não pela transmissão do falo, pela via da

metáfora paterna, a partir do Nome-do-Pai.” (FARIAS; LIMA, 2004, p. 23). Nesse sentido, é

possível dizer que o pai, a partir do Seminário RSI, é pensado na sua condição de homem,

condição esta que possibilita a paternidade.

Não se pode deixar de chamar a atenção para o fato de que Lacan, ao definir o pai

sinthome, articula-o de forma explícita com as fórmulas da sexuação. O pai sinthome é o pai

exceção. O pai que “escapa” à castração. Esse pai, que é exceção, não se organiza como

significante, mas sim como uma ex-sistência.

Com a formalização dos nós borromeanos, Lacan faz a passagem dos Nomes-do-Pai ao Sinthome onde o Sinthome é a letra particular do sujeito. A amarração dos nós vai efetuar-se por meio do Sinthome, o qual é diferente para cada sujeito. O que pode observar-se é que do pai ao Sinthome tanto o significante quanto a letra tem a mesma função – fazer nó. Enodam para o sujeito o campo do significante e do significado, enodam significante e significação, bem como fazem nó entre o simbólico e o imaginário. (IGLESIAS, 2001).

Como foi mencionado neste texto, será em RSI que Lacan irá tratar da pluralização dos

nomes do pai. Quais/quem seriam eles? De acordo com Porge (1998) a pluralização dos

nomes do pai é limitada, não é infinita. Ela aparece pela tripartição do Nome-do-Pai. Os

nomes do pai se referem ao real, ao simbólico e ao imaginário. No entanto, Brousse (2007)

acrescentará também o sintoma, a inibição e a angústia como aparições dos nomes do pai. De

acordo com a autora, a partir da pluralização dos nomes do pai a função paterna perderá sua

força, pois se antes ela era a única responsável por fazer a função de limite, agora existem

outras maneiras dessa função se estabelecer. O ato de enlace não é exercido mais por apenas

um operador, mas sim por vários.

90

É a partir dessas considerações de Lacan sobre a pluralização dos nomes do pai que foi

encontrada a afirmação sobre o declínio da função paterna. Neste momento da pesquisa, serão

tecidas considerações e críticas sobre essa afirmação.

91

5 O DECLÍNIO DA FUNÇÃO PATERNA?

Esta pesquisa tem o propósito de apontar como a função paterna circula nas formas

atuais de composição familiar. Partiu-se da premissa de que a função paterna e/ou os nomes

do pai, mesmo nos dias de hoje, continuam tendo importância vital na constituição psíquica

dos sujeitos.

No entanto, é ouvida com freqüência entre os psicanalistas a idéia do declínio do

Nome-do-Pai e do declínio da função paterna. As primeiras indagações levantadas frente a

essas problemáticas são: será mesmo o declínio da função paterna que impera nos dias de hoje

ou será o declínio da imago do pai? É possível colocar como sinonímias as expressões

declínio da função paterna e declínio social da paternidade?

Durante muitos anos, o homem foi o cerne da sociedade ocidental. Estudos

etnográficos apontam que essa soberania do homem sobre a mulher se deu devido à

necessidade de o homem pré-histórico proteger suas propriedades. Dessa forma, precisava

garantir sua paternidade perante os filhos e assim controlava a prática sexual das mulheres

dentro do grupo. A partir daí, passa-se de uma organização matrilinear, em que a lei na

família primitiva era norteada pela família materna, para uma organização patrilinear, ficando

a cargo da família paterna a ordenação do grupo.

Para Engels, citado por Bruschini (1995), a divisão sexual frente ao trabalho, em

sociedades primitivas, permite a primazia do homem sobre a mulher, uma vez que esse era

proprietário dos instrumentos de caça e conseqüentemente proporcionava o aumento da

riqueza do grupo familiar. A mulher perde o direito supremo sobre a prole, sendo o pai

agora quem transmite a herança. A destituição do poder materno perante o grupo familiar

propicia o surgimento do patriarcado. A família monogâmica enseja a submissão do sexo

feminino diante do masculino em nome dos bens e do poder do homem.

Segundo Peres (2002), o apogeu do pai ao longo da história se dá no fim da Idade

Média e no início do Renascimento. O pai é a garantia da família e da realeza. Sua função era

a de transmitir a herança, o alimento, a educação e a instrução.

A Igreja Católica, através de uma naturalização do rei como representante divino,

monopolizava a sociedade nas esferas política, econômica e científica. Dessa forma, o pai

enquanto imagem do rei e de Deus também possui o monopólio da família na Idade Média.

92

A figura paterna, nessa época, é vista como autoritária, severa, que não permitia a

aproximação dos filhos. Sua chegada no lar trazia temor e incômodo aos membros da família.

Falava-se e agia-se de acordo com as suas determinações. O bem-estar da família girava em

torno do bem-estar do pai.

De acordo com Gomes (2001), o poder do patriarcado influenciou as idéias da

humanidade sobre sua própria natureza e sua relação com o universo. Durante todo o seu

período de domínio, o patriarcado dirige os sistemas filosóficos, sociais e políticos através da

máxima em que a mulher deve estar submetida ao homem e, dessa forma, desempenhar os

papéis determinados por ele.

Porém, o homem e, conseqüentemente a figura do pai, não se mantém como

autoridade infinita na esfera social. De acordo com Balzac, citado por Roudinesco (2003), o

declínio da figura paterna ocorre através do desprestígio do lugar de Deus e do rei na

sociedade. Com a ruína da monarquia, na qual o rei é o representante de Deus, o pai é também

destituído de seu poder. Para ele, o maior exemplo disso é quando na Revolução Francesa, ao

decapitarem a cabeça do rei Luís XVI, caíram conjuntamente as cabeças de todos os pais de

família, demonstrando assim a queda do poder patriarcal na sociedade medieval.

Na era moderna, com a diminuição do poder da Igreja Católica, ocorre também uma

queda no lugar privilegiado de Deus. O mundo agora passa a ser regido não mais pelos

desígnios divinos, mas através das determinações humanas. Nasce na sociedade moderna um

sentimento de valorização do homem. Surgem tanto nas artes como nas ciências, obras que

tratam o homem pelo homem e não mais como um ser proveniente do divino. Assim, a

descendência divina perde seu poder na sociedade moderna.

Somos palco de grandes transformações que, inevitavelmente, alteram a posição do pai simbólico, lugar da lei, como também do pai biológico, pai da reprodução, e, conseqüentemente, modifica-se o lugar que, no imaginário, ocupa essa figura, detentora, no passado, de tanto poder e autoridade. (PERES, 2002, p. 233).

Com o advento da Modernidade, impulsionado pelos ideais do Iluminismo no século

XVIII, a sociedade ocidental passa a reger-se não mais pelo domínio do pai, mas sim através

das leis da fraternidade. A igualdade entre os homens começa a imperar no mundo ocidental,

proporcionando novas maneiras de pensar e viver.

A autoridade paterna passa a exercer-se, exclusivamente, no núcleo familiar, fazendo com que a família se constitua efetivamente como um paradoxo na modernidade. Este deslocamento denuncia que o poder paterno, antes referido a

93

uma encarnação política e religiosa e, portanto, de domínio público e universal, passa a ser uma questão privada. (DECOURT, 2004, p. 107).

Para Meira (2003), a intensificação da desvalorização do lugar do pai em nossa

sociedade se dá a partir da II Grande Guerra Mundial, quando se começa a questionar

incisivamente a função e o lugar do pai. Para a autora, a perda simbólica do pai se dá pelo

questionamento em alguns países sobre o nome que a criança irá portar (o da mãe ou o do

pai?), lembrando que em muitas culturas será o nome do pai que irá marcar a linhagem do

filho. De acordo com o que já foi discutido no capítulo anterior, se vê aqui uma das

origens do conceito lacaniano Nome-do-Pai cuja função significante permite a nomeação

do filho, fazendo com que este pertença a uma determinada família.

Observa-se que o pai vai perdendo desde a Era Medieval a sua posição de poder e

prestígio tanto dentro dos lares quanto na esfera social. Essa condição foi perpetuada e

intensificada na Idade Moderna, o que faz com que o pai seja destituído de sua soberania.

Assim, os pais de família precisam, então, no mundo contemporâneo, encontrar um novo

lugar no seio familiar e social.

Na família moderna (séculos XVIII e XIX), os papéis desempenhados pelos seus

membros eram claros e de pouca mutação. Ao pai cabia o sustento do lar, à mãe, o cuidado

com a casa, a educação dos filhos e a subordinação ao marido; aos filhos, o respeito e a

obediência em relação ao casal de pais. Kehl (2003) aponta que na contemporaneidade esses

papéis se modificam. O que se verifica é que tanto mulheres quanto homens e até mesmo

filhos exercem papéis múltiplos no interior das famílias. É visto que o pai da família

contemporânea, ou o novo pai como é chamado, encarna papéis variados, ora exercendo a

maternagem33, ora sendo o pai biológico que com seu espermatozóide fecunda o óvulo

materno, ora o pai que sai de casa perdendo assim a intimidade familiar através das

separações e dos divórcios. (AMAZONAS; BRAGA, 2004).

A partir da modernidade, o pai de família muda de posição. Ele passa a ser definido em função dos papéis a cumprir e tarefas a realizar. Não é nada difícil perceber a fragilidade que esta definição comporta, à medida que uma função é algo que pode ser, facilmente, desempenhado por quaisquer outros igualmente capazes. O pai da modernidade parece poder prescindir definitivamente de sua condição de soberania, de exceção, para ficar reduzido a uma função. Com Lacan, diríamos que esta redução fez do pai uma metáfora. (DECOURT, 2004, p. 107).

33 O exercício da maternagem se dá através de ações que evocam os cuidados maternos de atenção à criança, como, por exemplo, o afeto, a alimentação e a higienização.

94

Nesse caleidoscópio de papéis familiares, é preciso sustentar que, de alguma maneira,

tanto os cuidados maternos quanto a interdição exercida pela função paterna sejam efetuados.

Não se pode confundir a função com responsabilidades sociais e morais que o genitor

masculino habitualmente deverá cumprir. A função paterna diz da proibição, em forma de

Lei, da relação incestuosa entre a criança e a sua mãe. Assim, independente de seus membros,

a família se estruturará edipicamente, fazendo com que a Lei interdite a criança de seu gozo

com a mãe. A família, olhada através das lentes da Psicanálise, tem como papéis primordiais a

proibição do incesto e a sexuação da criança quanto à identificação com o feminino ou o

masculino, permitindo assim a constituição dos sujeitos. (KEHL, 2003).

Peres (2002) faz uma crítica aos pais dos dias de hoje que não ocupam o lugar da

função paterna nas relações com seus filhos. Ela analisa uma campanha publicitária para o dia

dos pais em que pai e filho brincam juntos. No outdoor constava a seguinte frase: “Pai não,

amigão!” O que nos revela essa frase? Que o pai de hoje não é o pai temido de 50 anos atrás.

Que o pai ocupa um novo lugar, do pai amigo e próximo em detrimento do pai autoridade e

educador. A figura paterna até pode mudar de sentido, ou seja, ser mais acessível aos filhos,

mas ela precisa exercer sua função na constituição subjetiva de seus filhos.

Que haja amor e amizade entre um pai e um filho é correto, mas negar a especificidade de seu lugar, tão necessária na constituição da subjetividade, na sua história edípica, me parece não ser sem conseqüências. A publicidade, porém, não surge por acaso, mas reflete uma demanda, e, nesse sentido, a figura de pai projetada é sempre a de um pai jovem que brinca com o seu filho, um pai que procura um contato corporal. O pai autoridade, o pai educador não aparece. (PERES, 2002, p. 233-234).

Invadidos pelos ideais iluministas da fraternidade, mesmos nos dias de hoje, os pais se

posicionam frente a seus filhos como iguais. Pelo medo de perder o amor dos filhos, os pais

não conseguem conter e impedir a realização plena de desejo do infans. Para Brousse (2007),

essa realidade permite uma alteração na posição do pai, fazendo com que ele passe de uma

posição de autoridade para de acompanhante e cuidador do pequeno filho.

Julien (1997) considera que a nova versão do pai no século XX, ou seja, do pai que

troca fraldas, que brinca com a criança e que fala “bebezinho com o recém-nascido” é uma

versão frágil do pai, pois, essas funções, ou melhor, papéis executados pelo pai

contemporâneo, podem ser ocupados por outros igualmente capazes, ou ainda, como o autor

mesmo afirma, por outros “senão mais capazes” que o pai.

Kehl (2003) destaca também que a grande dificuldade de pais e mães em nossos dias é

justamente a de sustentar o lugar da autoridade perante seus filhos. Eles acreditam que o

95

exercício da autoridade afasta os filhos de uma relação de confiança e acima de tudo pautada

no amor.

Em suma, é possível dizer, de acordo com Julien (1997), que o declínio social do pai

e/ou da paternidade se dá através de um golpe tríplice na figura do pai, a saber: o político, o

religioso e o familiar. Político, porque a partir do século XVIII a sociedade se funda sobre a

fraternidade e não mais sobre a paternidade. A definição de “ser-pai” a partir de uma

autodenominação perde seus efeitos na sociedade ocidental. O pátrio poder fica restrito ao

poder do homem dirigido a uma única mulher e aplicado sobre os filhos.

Religioso, por que o pai perde sua soberania, uma vez que ele mesmo precisa acatar as

leis impostas pela Igreja. O pai passa de soberano para servidor. “A Igreja saberá lhe

relembrar: da lei, o pai, não é o legislador, mas o representante, e no caso de conflitos com a

Igreja educadora do jovem cristão, o pai deve saber se submeter.” (JULIEN, 1997, p. 41).

Familiar, por que “ser-pai” referia-se a um ato de soberania. A paternidade se

constituía como ato político e religioso. A filiação remetia a pessoa a uma ordem de linhagem

que o denominava filho de uma determinada família. Como é encontrado nas escrituras

sagradas, fulano é filho de beltrano, que é filho de sicrano, que é filho de beltrano... No

entanto, com os avanços científicos, principalmente no que tange aos progressos da

inseminação artificial, a mulher não precisa mais do encontro sexual com o homem para se

tornar mãe. Dessa forma, a criança passa a ser somente filha da mãe, perdendo o pai o seu

direito à filiação.

De que forma é possível definir o que é um pai? A palavra pai “[...] é um termo de

origem indo-européia, que designa essencialmente uma classe de parentes, na diversidade dos

usos e costumes.” (BORGES, 1996, p.7). Na língua portuguesa essa palavra será designada

como progenitor, homem que dá vida a outros seres, filhos. Porém, a definição e a função

sobre o que é ser um pai estão além do ato de procriação e de criação dos filhos. Ser pai é

também praticar o lugar da lei.

Na Antiguidade, a paternidade denominava uma filiação ao mesmo tempo política e

religiosa. O pai e seu nome determinavam o parentesco e garantia a origem e a continuidade

da família. A palavra paternidade tem sua etimologia no latim parens, que sustenta a palavra

pater. O pater é o chefe da família. É ele quem tem a autoridade política e religiosa. O pater é

o soberano na família e na sociedade. O declínio social da paternidade ocorre com o declínio

do lugar do pai no mundo. Desde a época de Luís XVI, a paternidade vem sofrendo golpes

sucessivos na sua supremacia. O declínio social da paternidade está totalmente atrelado ao

declínio do pai.

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O que a Psicanálise tem a dizer sobre o pai frente a todas essas transformações da

família e da sociedade? A família durante muito tempo foi lida e interpretada pela Psicanálise

através do lugar do pai. Sendo assim, como já foi apresentado nos capítulos anteriores, a

questão do pai na obra psicanalítica é tema central de discussão e estudos. Roudinesco (1998)

afirma que Lacan acreditava que a “[...] psicanálise nascera, em Viena, de um sentimento de

declínio da imago paterna e da vontade freudiana de revalorizá-la.” (ROUDINESCO, 1998,

p.542 – grifo nosso).

Segundo Leal (1997), Freud cria a Psicanálise com o intuito de dar respostas a suas

questões sobre o pai. Quais seriam essas questões? De acordo com o autor, todas as

indagações freudianas sobre o pai giravam em torno da angústia. Freud se questionava sobre o

sofrimento humano, a culpa de existir, sobre o propósito e o sentido da vida, sobre a

felicidade e os planos do Criador para com os homens e acima de tudo se questionava sobre o

que é um pai.

Nos primórdios da Psicanálise, principalmente nos textos freudianos, se vê que a

função paterna está, de certa forma, atrelada ao lugar do pai e do homem. O que se vai

perceber com Lacan é que essa função, já posta por Freud, será exercida independentemente

da figura masculina.

Para a Psicanálise, o pai é um operador simbólico, o qual não remete à existência de nenhum pai encarnado. É uma entidade simbólica que ordena uma função que é estruturante do ponto de vista do inconsciente. O ser falante diante da função simbólica exercida pelo pai fica assujeitado numa sexuação pela operação de castração. (IGLESIAS, 2001).

Freud, ao criar seus mitos sobre o pai, devolve para a humanidade a excelência do pai

na constituição da civilização. Para ele, será através da morte do pai em Totem e Tabu

(1912/13) que os filhos podem ter acesso à cultura. “A suposição de uma potência ilimitada

do pai surge ao tempo da sua morte. Surge no declínio. A decadência paterna não pode ser,

então, concebida sem a suposição de sua força.” (PERES, 2002, p. 237).

Mesmo estando o pai no cerne da obra psicanalítica, esbarra-se, em um momento ou

outro, com a afirmação do declínio de sua função. De acordo com Cottet citado por Peres

(2002, p.238 – tradução nossa)34, “[...] todos os desvios doutrinais dos alunos de Freud têm

34 Toutes les déviations doctrinales des élèves de Freud ont pour point nodal le père et la fonction paternelle. De

Freud à Jung comme de Rank à Abraham lui-même, en passant par Ferenczi, le déclin de l’image paternelle dans la théorie psychanalytique est incontestable. (COTTET, Serge. Freud et le père. In: COTTET, Serge. Le père. Métaphore paternelle et functions du père: l’interdit, la filiation, la transmission. Paris: Denoel, 1989. p. 53).

97

como ponto nodal o pai e a função paterna. De Freud a Jung como de Rank a Abraham, e

passando por Ferenczi, o declínio da imagem paterna na teoria psicanalítica é incontestável.”

Quanto à afirmação do declínio da imagem paterna, são encontrados seus primeiros

vestígios num texto lacaniano de 1938, denominado Os complexos familiares na formação do

indivíduo. Lacan, nesse texto, escreve a pedido de Henri Wallon considerações a respeito da

influência da família na formação subjetiva dos indivíduos. Nele, Lacan coloca a família

como operação da cultura. Segundo ele, não haverá na espécie humana nada que diz respeito à

natureza que não seja modificado pela cultura. Diante dessa premissa, Miller (2007) considera

que a função paterna para Lacan não é uma função dedutível da natureza: ela não se atrela ao

pai biológico e nem tão pouco se limita ao seu representante social.

Nesse mesmo trabalho, Lacan mostra que em todo grande homem percebe-se a

inscrição do papel da imago35 paterna na formação subjetiva desse homem. Acrescenta que o

declínio sofrido pela imago do pai no percurso dos tempos provoca uma crise psicológica;

crise que ocasionará as neuroses contemporâneas.

Mas um grande número de efeitos psicológicos nos parecem depender de um declínio social da imago paterna. Declínio condicionado pelo retorno dos efeitos extremos do progresso social no indivíduo, declínio que se marca sobretudo, em nossos dias, nas coletividades que mais sofreram esses efeitos: concentração econômica, catástrofes políticas. [...] Declínio mais intimamente ligado à dialética da família conjugal [...]. Qualquer que seja seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja a essa crise que se deve relacionar o aparecimento da própria psicanálise. (LACAN, 1938 / 1985, p. 60).

Miller (2007) chama a atenção para o fato de que Lacan nesse texto trabalha com a

idéia de um pai idealizado. O pai de Os Complexos Familiares é um pai fruto da sublimação.

“Neste texto, a imago paterna é muito classicamente encarregada dessa função de idealizar e,

35 De acordo com Roudinesco e Plon (1998), o termo imago foi trazido para o postulado psicanalítico por Jung em 1912. O termo indica a representação inconsciente da imagem que um sujeito tem de seus pais. Laplanche e Pontalis (1992) acrescentam que esta apreensão do outro pelo sujeito é elaborada na sua relação intersubjetiva e fantasística com o meio familiar. Ainda, Lang (2002) nos adverte para o fato da imago pertencer a mesma ordem de realidade que o fantasma, porém encontramos distinções entre os dois conceitos. A imago se refere a uma representação de pessoa que está imbricada nas instâncias psíquicas reguladoras do Eu. Já o fantasma se constitui a partir do desenvolvimento do indivíduo. “Assim, as diferentes versões do pai, apresentadas por cada paciente como imagens do pai, são fantasias acerca do pai, formas de dar conta desse Outro.” (LANG, 2002, p. 17). A partir destas considerações do autor, podemos afirmar que a diferenciação entre imago e fantasma (imagem) é da ordem da filogênese e da ontogênese, uma vez que a imago se constitui a partir da relação do sujeito com sua história e com a história da sua própria espécie. Enquanto o fantasma se estabelece a partir da relação do sujeito com suas próprias fantasias a respeito das histórias universais da humanidade, como, por exemplo, como citou Freud, os complexos de Édipo e de castração, os romances familiares, as fantasias de sedução, entre outras.

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é preciso dizê-lo, idealizante. Aqui se prepara o Nome-do-Pai.” (MILLER, 2007, p. 14 - grifo

do autor).

É possível notar que Lacan evidencia o declínio da imago paterna. É importante

esclarecer que, nesse momento do trabalho lacaniano, o autor é encontrado distante de suas

construções sobre o Nome-do-Pai e a função paterna. Para Viviani (2003), a imago paterna

nesse artigo lacaniano está intimamente relacionada ao registro do imaginário. Nela as

determinações culturais da família se intercruzam com os vínculos imaginários. Dessa forma,

Lacan (1938 / 1995), ao tratar do declínio da imago paterna, está se referindo ao pai

imaginário, um pai que para o neurótico nunca é suficiente. Por seu lado, a função paterna:

[...] não opera por imagens, opera por meio da palavra que transmite a lei, lei de proibição do incesto, e, portanto, simbólica. Enquanto função, a paterna, ela não poderia declinar, opera ou não opera, pode estar recalcada, recusada ou forcluída. O que sim pode declinar, e de fato tem declinado, é o pai autoritário, mas não a função. (VIVIANI, 2003, p. 31).

No entanto, de onde surgem as afirmações sobre o declínio da função paterna? De

acordo com Brousse (2007), as idéias sobre o declínio da função paterna surgem quando a

função do pai deixa de ordenar a família. É quando a família perde seu status de patriarcal.

Para a autora (2007), a família deixa de estar ordenada pela função paterna por duas razões:

na primeira destaca o avanço do discurso da ciência. Esse avanço limita o pai ao biológico,

aniquilando a função da palavra. Esse fator pode ser constatado a partir da paternidade

comprovada pelos exames de DNA. A outra razão se refere ao discurso capitalista que reduz a

dimensão de ideal dos sujeitos, dimensão esta oriunda da interferência da função paterna. O

ideal em nosso tempo é definido através de números, através da quantidade de coisas e

objetos que se possui.

Brousse (2007), nessa mesma conferência, destaca que o discurso sobre o declínio da

função paterna também emergirá devido aos dias atuais haver uma total simetria, seja no

âmbito social ou legal, nas posições de pai e de mãe no interior das famílias. Expõe, ainda, a

perda do lugar de chefe de família pelo pai, e a legalidade de casamentos homossexuais, que

provocam a dissociação entre o pai e a masculinidade como fatores que contribuíram para o

declínio da função.

Nessa mesma perspectiva, Rosa (1999) apresenta três dispositivos que incentivaram as

idéias sobre o declínio da função paterna. O primeiro deles é o imaginário social. Neste

criam-se teorias e conceitos sobre a família, a criança e o adolescente, tecendo conseqüências

na constituição psíquica dos sujeitos. Esta ocorre devido ao discurso do Outro estar

99

impregnado das construções imaginárias do grupo social. “Ressaltamos a idéia de que é a

partir de uma certa fantasia sobre paternidade, família, sexualidade e domínio que alguns são

percebidos como criança ou filho, que só alguns têm acesso à escuta, à palavra, ao gozo, à

cidadania.” (ROSA, 1999).

Para o segundo dispositivo, Rosa (1999) destaca a importância do porta-voz dos

enunciados fundamentais à criança e ao adolescente. Aqui é encontrado o discurso social

predominantemente sobre o discurso da família, do casal parental. Esse discurso aparece

como operador na constituição psíquica da criança e isola os efeitos da função paterna. O

Outro está fora do discurso familiar.

Nestas situações se constata a prevalência do discurso adulto-criança e o apagamento do discurso familiar, seja por condições sociais, seja por impossibilidades do desejo. Para estes o enunciado é diluído em vários “outros”, encarnados, aleatoriamente, ora pelo diretor da escola, ora pela polícia... Para eles é oferecido apenas o discurso da criança, de uma criança que não lhe diz respeito, que não é “filho” e que escapa à condição desejante, que incluiria o Outro e o implicaria no efeito subjetivo. O discurso, carregado de expectativas culturais, desqualifica seu discurso e atos. (ROSA, 1999 – grifo da autora).

O terceiro dispositivo surge através da própria problematização do declínio da função

paterna, na qual o pai se presentifica como fraco e incapaz de operar sua função. Em

substituição ao Nome-do-Pai, a ciência emerge como o Outro que irá proclamar a verdade

sobre a criança e a família.

Desse modo, o que se verifica é que as conclamações sobre o declínio da função

paterna estão atreladas a dois outros declínios: o declínio social da paternidade e o declínio da

imago paterna. Mas será mesmo que a função paterna declinará mediante os declínios da

paternidade e da imagem do pai?

Como já trabalhado no capítulo anterior, Lacan utilizará o Nome-do-Pai como

metáfora ao desejo materno e este será o vetor da função paterna. Porém, ele irá mudar

durante o seu ensino o estatuto do Nome-do-Pai. Ele retira-o do lugar de significante que

opera a constituição psíquica dos sujeitos para aquele que irá propiciar o enlaçamento entre os

registros real, simbólico e imaginário. Mas isso significa dizer que Lacan forclui a função

paterna na constituição psíquica dos sujeitos? Significa dizer que o Nome-do-Pai não opera

mais como metáfora?

Miller (2003), ao apresentar o terceiro ensino de Lacan, descreve-o como o ensino em

que o Outro é inexistente. O que isso quer dizer? De acordo com Miller (1998), o Outro não

existe, pois ele é imaginário. O Outro foi diluído na pluralização dos nomes do pai. O que

100

sobrou como resto é um Outro que não passa de um semblante. O Outro perde seu status de

diferenciação e passa a ser tratado como o equivalente, o par do outro. Essa situação dá

indícios para identificar o declínio do Nome-do-Pai.

Na não existência do Outro é encontrada uma alteração na sua dimensão. O Outro

como suporte da cultura, da tradição e da autoridade, como campo da linguagem desaparece e

se transforma em um outro na condição de similar com o sujeito. Esse novo Outro é chamado

de parceiro-sintoma. A idéia de parceiro-sintoma é uma alternativa que o sujeito encontra para

tamponar o buraco deixado pela inexistência do Nome-do-pai e assim poder fazer laço social.

O Outro perde sua potência simbólica no ordenamento subjetivo dos sujeitos tornando-se um

outro. Porém este outro, que é denominado parceiro-sintoma, vem justamente operar a função

paterna, proporcionando a inscrição subjetiva dos sujeitos.

[...] o Outro enquanto parceiro-sintoma é uma expressão do laço social contemporâneo. O parceiro-sintoma é uma forma de ancoragem do sujeito contemporâneo no laço social, onde a dimensão coletiva do Outro já não existe e, conseqüentemente, onde os sintomas não são mais coletivos. (DECOURT, 2004, p. 75).

O Outro não existe mais porque quando desaparece o poder do pai também

desaparecerá S1 como ordenador do discurso. O pai como o Um não existe mais. O que surge

no lugar do Pai como função simbólica, como ordenador da família e dos grupos são as

pluralizações do nome do pai. (BROUSSE, 2007).

Diante do que foi exposto até aqui, o que se evidencia é que nos dias atuais há a

incidência do declínio do Nome-do-Pai, mas não necessariamente o declínio da função

paterna. Com a diluição da ordenação simbólica na pluralização dos nomes do pai, o Nome-

do-Pai como metáfora deixou de ser o único a exercer a função paterna. Nesse sentido, há de

se recorrer às considerações de Rosa (1999) que, ao comentar Aulagnier, adverte que, mesmo

com todas as transformações culturais que a sociedade ocidental passou, o pai e a sua função

mantêm um pilar fundamental: seu nome. Mesmo na falha do pai, como vetor da função

paterna, outros substitutos poderão encarnar o seu lugar propiciando a constituição subjetiva

dos sujeitos. Sendo assim, “[...] de qualquer maneira, a função paterna não ficará jamais sem

titular.” (ROSA, 1999), ou seja, jamais deixará de ser exercida.

Decourt (2004, p. 77) levanta a seguinte questão: “Como podemos conceber, em

psicanálise, um sujeito que não tenha passado pelo Outro em seu processo de constituição?”

Essa também é a indagação que se faz frente à afirmação de um declínio que resulta numa

suspensão da função paterna. O que passa a não existir é o Outro como universal.

101

Acreditamos que o conceito de ex-sistência aponta uma saída para este impasse, ou melhor, para este mal entendido, na medida em que define uma possibilidade de existência que não dispensa o Outro em seu processo de constituição, mas que dele só se separa após ter se constituído. Esta formulação, a nosso ver, se aproxima daquela proposta por Laurent a propósito da consideração que Lacan faz no Seminário 5, onde o sujeito poderia dispensar o pai com a condição de saber se servir dele. Esta interpretação abre a possibilidade de o sujeito aprender a se servir de uma nova forma daquilo de que ele não pode escapar, ou seja, do Outro. (DECOURT, 2004, p. 77).

A função paterna é instaurada a partir de três vetores, a mãe, a criança e um homem

que encarne o lugar de pai real. Dizer que no mundo contemporâneo se prescinde dessa

função é dizer que a estrutura da subjetividade em nossos dias está destinada a uma

marginalização. De acordo com Brousse (2007), a conseqüência do declínio da função

paterna para os sujeitos é que eles não se tornam sujeitos no sentido psicanalítico do termo –

ou seja, sujeitos desejantes – mas tornam-se sujeitos opacos frente ao próprio desejo.

Sutenta-se neste trabalho que, mesmo no mundo atual, no caleidoscópio de

composições familiares, a função paterna se constitui e se mantém como vetor na constituição

psíquica dos sujeitos. Porém, ela não se funda apenas através do vetor do pai biológico, mas

através da pluralização dos nomes do pai e essencialmente através do pai real, que segundo

Laurent (1997, p. 129), é o único a suportar “[...] não ser o único a fazer a lei.”

102

6 O QUE É UM PAI? A INVESTIGAÇÃO EM PSICANÁLISE

Na Viena do século XIX, devido à força da ciência positivista e das novas abordagens

teóricas que começam a despontar no cenário científico, fortes discussões são propiciadas

entre os modos de se fazer ciência. A “querela dos métodos” surge entre as ciências naturais e

as ciências do espírito, uma vez que ambas possuem concepções distintas no modo de se

pesquisar. As ciências naturais irão utilizar-se do método da explicação, enquanto as ciências

espirituais utilizarão o método da compreensão.

Sob forte influência de sua formação como fisiologista, Freud naquela época recusa a

discussão vigente, pois para ele só haveria um modo de fazer ciência. Esse modo é

pertencente às ciências naturais que procuram a explicação dos efeitos através de suas causas.

Para comprovar sua inclinação científica e inscrever a nova teoria que começava a

surgir através de suas pesquisas clínicas, Freud em 1895 escreve o artigo Projeto para uma

psicologia científica. Com esse artigo Freud tinha pretensões de colocar a Psicanálise como

integrante das ciências naturais, ou seja, comprovaria para a comunidade científica as causas

inconscientes para a etiologia das neuroses, fazendo assim da novata teoria uma ciência.

Nesse artigo Freud utiliza-se de termos médicos, de categorias neurológicas para

explicar que os processos psíquicos têm substrato corpóreo. Na introdução, ele afirma que

“[...] a intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os

processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais

especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição.” (FREUD, 1895

/ 1988, p.347). Freud, para a construção do Projeto, parte da observação direta da clínica

patológica, principalmente no que diz respeito às representações super intensas. No entanto,

essa linguagem médica aos poucos vai perdendo força nos escritos freudianos e em seu lugar

surge a dialógica entre as instâncias psíquicas, o desejo e as idéias investidas. Contudo, jamais

Freud abandonou a cientificidade da Psicanálise.

O que implica, porém, é de que forma a Psicanálise pode ser chamada de ciência.

Como ela pratica sua pesquisa? Desde os tempos de Freud, há grande discussão se a

Psicanálise é ou não uma ciência. Alguns, até mesmo psicanalistas, afirmam que a Psicanálise

não é uma ciência. Essa afirmação se dá devido a seu objeto de estudo – o inconsciente – ser

tão incomum quando comparado aos fenômenos observáveis de outras escolas científicas.

Outros afirmam que sim, pois apesar de toda a sua particularidade, a Psicanálise possui

princípios que devem ser seguidos e que garantem a sua cientificidade.

103

Freud (1922 – 23 / 1988, p. 287) afirma que Psicanálise é:

[...] o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica. (FREUD, 1922-23 / 1988, p. 287 – grifo nosso).

Essa afirmativa freudiana inscreve a base da teoria psicanalítica na investigação.

Lowenkron (2004) afirma que Freud, ao descrever o que é a Psicanálise, apresenta a questão

do método em primeiro lugar, pois ele é essencial. É a partir do método que a terapêutica e a

teoria irão se fundar. Mas, há de se questionar de que método de investigação se fala neste

estudo.

Freud (1912 / 1988, p. 152), em suas recomendações, adverte para que “[...] uma das

reivindicações da psicanálise em seu favor é indubitavelmente, o fato de que, em sua

execução, pesquisa e tratamento coincidem; não obstante, após certo ponto, a técnica exigida

por uma opõe-se à requerida pelo outro.” A investigação que funda a teoria psicanalítica é,

então, a da pesquisa clínica.

Nogueira (2004) afirma que a Psicanálise é uma pesquisa e que ela se constitui a partir

da apresentação dos casos clínicos36 mais famosos relatados por Freud. O autor acredita que a

transmissão do que é Psicanálise ocorre quando Freud revela ao mundo suas descobertas

clínicas.

Freud, ao propor a seus pacientes que fizessem associações livres, introduz um novo

método de investigação. Esse novo método provoca uma mudança radical tanto no tratamento

de pacientes neuróticos como na participação dos sujeitos no curso da pesquisa. Ao pedir que

os pacientes falem livremente, ele não considera seus pacientes apenas como objetos de

pesquisa, mas sim estabelece com eles uma relação. Diferentemente da ciência tradicional, a

Psicanálise dá voz ao saber do sujeito, que é ativo no processo de investigação. Aliás, o saber

é seu, pois parte de sua dimensão inconsciente na qual a rotina da clínica propicia sua

revelação. Nesse sentido, Elia (2000) considera que a inclusão do sujeito como ativo na práxis

investigativa é devido ao campo pesquisado ser sempre o inconsciente.

De acordo com Lowenkron (2004), a direção da pesquisa psicanalítica é dada pela

própria experiência psicanalítica, ou seja, pela experiência da clínica. Esta, por sua vez, desde

os primeiros trabalhos freudianos, forneceu solo fértil para que a teoria psicanalítica pudesse

36 Os cinco casos que o autor destaca são: O caso Dora; O Pequeno Hans; O Homem dos Lobos; O Homem dos

ratos e o caso do Presidente Schreber.

104

se erguer. Porém, Freud (1912 / 1988) chama a atenção para que não seja confundida a

pesquisa em Psicanálise com a prática clínica, pois as técnicas que servem à investigação e a

prática clínica são distintas. Rosa (2002) salienta que o que se diferencia tanto no tratamento

quanto na pesquisa é a posição do analista. No que diz respeito à dimensão investigativa, o

desejo do analista deve estar orientado ao desejo de saber, enquanto que na prática clínica o

desejo é o da “cura”. O analista por sua vocação científica faz “achados” preciosos no

percurso de sua clínica, permitindo ao sujeito que se analisa se implicar nestes “achados”.

Assim, “[...] se os achados fundam, de algum modo, a posição do analista, poderíamos aventar

a hipótese de que procurar, investigar caracterizaria uma posição analisante.” (ROSA, 2002,

p.51).

Mesmo sendo a clínica o modo privilegiado de se fazer pesquisa em Psicanálise,

Lowenkron (2004) apresenta outras modalidades de pesquisa psicanalítica. A primeira

modalidade seria a que passa pela inclusão da pesquisa em Psicanálise nos programas

universitários, a segunda modalidade passa pelo modo de produção clínica dos conhecimentos

psicanalíticos.

Desde 1919, Freud já vislumbrava a importância da Psicanálise no contexto

universitário. Para ele, a entrada da Psicanálise na universidade proporcionaria um outro

sentido para a pesquisa, permitindo ao cientista um novo olhar sobre seu objeto de estudo. A

Psicanálise, então, adentra o campo universitário a partir de seu caráter científico.

Lowenkron (2004) diz que a pesquisa psicanalítica na universidade permite uma “[...]

leitura histórica, problematizante e interpretativa dos textos psicanalíticos.” (p. 27). O objeto

da pesquisa é a literatura psicanalítica por meio da investigação de artigos e escritos. Apesar

de se diferenciar do material clínico, ela remete a uma situação clínica, pois ocorre um

paralelismo entre as construções inconscientes e o discurso que o comenta.

A segunda modalidade, que passa pelo modo de produção clínica dos conhecimentos

psicanalíticos, é um modo “puro” de ciência. De acordo com Lowenkron (2004), para que um

psicanalista formule sua teoria são necessários critérios de cientificidade como, por exemplo,

a coesão interna, a comunicabilidade, a verificabilidade e a cumulatividade.

Esta dissertação, a função paterna nas configurações familiares atuais se inscreve no

primeiro modo de pesquisa psicanalítica apresentada por Lowenkron, uma vez que se trata de

uma revisitação aos textos psicanalíticos, principalmente aos escritos freudiano e lacaniano,

na busca da problematização do declínio da função paterna. Através da experiência da prática

clínica, das construções de casos clínicos que ora serão apresentados, a pesquisa

105

essencialmente psicanalítica possibilitará a ilustração e a interpretação da teoria já descrita

neste trabalho.

Barroso (2003) acredita que a construção do caso clínico nas pesquisas psicanalíticas é

um método que viabiliza a produção do saber clínico. Será utilizada neste trabalho a

denominação “construção” do caso clínico no lugar de “relato” do caso clínico, pois, como

discute Willemart (2002), toda escrita de um caso clínico é uma construção e não um relato. É

construção por que no momento em que o analista põe-se a escrever o caso do analisando, as

histórias por ele contadas serão “transformadas” pelo analista, pois este escreve a partir de sua

interpretação daquilo que acredita ter escutado de seu cliente. Também, enquanto constrói o

caso clínico, o analista inscreve o analisando nos ditos teóricos, “comparando-o” com outras

neuroses já apresentadas por outros analistas. Ainda, faz da história do analisando uma

história original, singular e única.

Segundo Rudelic-Fernandez (2002), quatro são os modelos para a narrativa do caso

clínico em Psicanálise: científico, histórico37, literário e hermenêutico. Foram escolhidos para

a narrativa dos casos clínicos que serão construídos nesta pesquisa os modelos literário e

hermenêutico. O modelo literário, como afirma Rudelic-Fernandez (2002), se fundamenta

numa visão literária para a construção da história do caso. A escrita do caso clínico é

considerada como exercício retórico. Ele será analisado e “contado” através de metáforas e

metonímias, o que permitirá se remeter aos afetos e as suas representações.

O relato opera como metáfora, afirmando a semelhança, introduzindo um vínculo causal, cronológico e discursivo entre os acontecimentos esparsos, combinando-os através das semelhanças percebidas. Isto pressupõe que os incidentes percebidos como puramente contingentes sejam rejeitados, pois não [são] assimiláveis à trama da ação narrativa. (RUDELIC-FERNANDEZ, 2002, p. 62).

Através do modelo hermenêutico o caso clínico será construído pela interpretação

psicanalítica, que permite uma “criação” de sentido para o passado histórico do cliente. A

história relatada será re-descrita, re-narrada, pois esta é modificada pelo simples fato de ser

contada. Nessa medida, a narrativa do caso não segue um esquema cronológico dos

acontecimentos dos fatos, ela não busca a verdade canônica da narrativa do analisando. Ela se

torna passo a passo uma leitura circunstanciada, pontual e descontínua. A visão hermenêutica

37 Rudelic-Fernandez (2002) descreve o modelo científico da narrativa do caso clínico como verificável e reprodutível, uma vez que este será narrado sempre da mesma maneira independentemente de quem relata o caso. Já o modelo histórico fundamenta-se na fidelidade dos acontecimentos cronológicos ocorridos na vida do paciente, procurando assim traçar o caminho da patogenia.

106

da construção do caso permite ao mesmo tempo uma crítica e uma operação de decifração da

história do caso clínico.

Segundo os defensores desse modelo, é a própria natureza da experiência psicanalítica que afirma não haver uma única maneira de relatar uma história de caso. Não somente falta a verdade histórica, mas graças à experiência analítica e ao seu relato é possível formular várias histórias a partir de um mesmo material clínico, de um mesmo tratamento. (RUDELIC-FERNANDEZ, 2002, p. 63 – grifo da autora).

A partir de agora, serão contruídos três casos clínicos para se discutir a incidência da

problemática da função paterna nas configurações familiares atuais. Esses casos são

provenientes da prática clínica da autora desta dissertação e dos atendimentos ocorridos entre

os anos de 2000 e 2006. Trata-se do atendimento de três crianças que apresentaram em seu

trabalho analítico a questão sobre o que é um pai; ainda, essas crianças pertencem a famílias

cuja formação difere do modelo nuclear. Todos os nomes, tanto dos clientes quanto de seus

familiares, são fictícios, uma vez que foram criados pela pesquisadora para preservar a

verdadeira identidade das crianças e de suas famílias. As falas das crianças e de seus

familiares serão sempre grafadas entre aspas e em itálico.

6.1.1 Mateus, o menino que não podia saber

No decorrer de uma gestação a pergunta que mais se faz presente na vida dos futuros

pais é de qual sexo será seu filho. Será menino ou menina? Mesmo diante dos avanços da

medicina, como, por exemplo, com seu equipamento ultramoderno que capta a imagem do

feto no útero materno em 4D38, o que se pode observar é que essa questão não é tão simples

de se responder. Não é somente a presença ou ausência do órgão genital masculino que

determinará o sexo do bebê. Freud (1917b / 1988) destaca que a diferença sexual entre seres

masculinos e femininos se dará pela presença ou ausência do órgão fálico. Afirma que as

crianças dotam ambos os sexos da presença fálica. No entanto, deixa claro que será pela via

38 O método de ultra-sonografia em 4D (quatro dimensões), nada mais é, que a imagem 3D em movimento em tempo real. Neste tipo de exame pode-se captar e observar toda a movimentação fetal, desde que as condições para a obtenção da imagem em 3D sejam favoráveis. Disponível em: http://www.ultrasom3d.com/secao_ultrasom/ultrasom4d/ultrasom4d.htm. Consultado em 29 de junho de 2008.

107

da identificação com quem possui ou com quem não possui o falo que a identificação em ser

homem ou mulher se fará.

O seguinte caso trata diretamente da possibilidade de um sujeito se constituir

“masculinamente” mesmo diante da deficiência física do órgão masculino. Mateus nasceu

com anomalia da diferenciação sexual, seu quadro clínico é denominado hipospádia39. Chega

para atendimento aos oito anos de idade. A mãe, Marisa, trouxe-o devido ao mau

comportamento do menino na escola e as sérias dificuldades de aprendizagem. No entanto, a

questão sobre a hipospádia irá surgir como problemática já nos primeiros atendimentos.

Até o nascimento de Mateus, Marisa possuía um bom relacionamento com o marido.

A gravidez foi planejada e seu sonho era ter um filho “homem”. No entanto, no ato do

nascimento, Marisa “pressente” que há algo errado, pois o médico não a deixa ficar com o

bebê. Mais tarde retorna e lhe avisa que precisará fazer um exame na criança para saber qual é

seu sexo. Assim, Mateus fica internado no hospital enquanto sua mãe recebe alta. Nesse

momento, a vida de Marisa e Mateus começa a ter destinos bem diferentes daqueles que a

mãe tinha planejado e/ou sonhado para ambos. Devido ao “problema do filho”, Marisa

abandona o marido, pois queria dar “toda a atenção” para a criança. Aniquila qualquer

lembrança do marido, afirma que rasgou fotos, cartas, qualquer coisa que o lembrava. O pai,

por sua vez, logo após o rompimento, busca a reconciliação com a esposa, ficava chamando-a

na rua e lhe pedia para ter calma, pois tudo se resolveria. No entanto, Marisa se afasta de

todos, amigos e familiares, “só queria cuidar do filho”. O que leva Marisa a se afastar desta

maneira das pessoas? A deficiência do filho aponta a própria deficiência de Marisa, a saber, a

própria castração. O filho tão esperado, aquele que iria aplacar a angústia de sua

incompletude, é ineficaz nessa função. O marido, pai de seu filho, assim como seu pai, nega o

falo tão desejado. Marisa esconde o filho das outras pessoas com o intuito de esconder a sua

própria castração.

Quando Mateus recebe alta do hospital, após um período de cerca de 15 dias de

internação, e depois de ter sido confirmado seu sexo, masculino, Marisa deixa a maternidade

“escondida” com o bebê e registra-o só em seu nome. Oito anos mais tarde, Mateus reivindica

da sua mãe o nome de seu pai. Diz-lhe que quando crescer vai trocar de nome, pois “não quer 39 A hipospádia é “uma malformação congênita, caracterizada pela abertura anormal do orifício por onde sai a urina (meato urinário), em diferentes locais na parte de baixo (face ventral) do pênis, ou mais raramente na bolsa escrotal. Na maioria dos casos é acompanhada por uma alteração da pele (prepúcio) que recobre a glande (cabeça do pênis), sendo que o prepúcio passa a ter o formato de um capuz. Esta malformação ocorre por múltiplos fatores, podendo ser genético (Ex.: Síndrome de Reifenstein) e/ou hormonal (Exemplo: deficiência da enzima "5-alfa-redutase"; ou deficiência de receptores hormonais ao nível celular do pênis).” Disponível em: http://www.uroped.com.br/tiraduv/hipospad.htm. Consultado em 08 de junho de 2008.

108

ter só dois nomes.” Como já foi discutido nos capítulos anteriores, o nome do pai possibilita à

criança uma origem e uma nomeação. Ter apenas um nome, ou seja, o nome da mãe, é

insuficiente para esse sujeito, pois remete-lhe à deficiência de sua concepção, já que todo

mundo é filho de um pai e de uma mãe.

A questão sobre o pai também aparece nas sessões de Mateus. Apesar de seus oito

anos, Mateus é uma criança bem imatura. Sempre escolhe as brincadeiras para crianças

pequenas, e seu jogo preferido nos atendimentos é com a família de animais. Certa vez, em

uma sessão, ao “brincar” com dois ursos que, segundo ele, eram pai e filho, tece os seguintes

comentários:

“Quando ele crescer ele pode ter saudade do pai... Aí ele vai ter que

fugir para achar o pai. Também se ele fugir para a cidade e se

alguma pessoa ficar assustada e alguém liga para o zoológico e aí

ele pode ir para a mesma jaula que o pai... Se ele reconhecer o pai

dele... [Após um momento de silêncio questiona à analista] Como a

gente reconhece um pai? O pai pode reconhecer ele, ele pode

lembrar... Quando o filhote cresce o pai envelhece também... A mãe é

que pode reconhecer quem é o pai...”

Sabe-se que é pela mãe que o pai é apresentado ao filho, e o pai, como nome, se revela

para a criança pelo discurso da mãe. E que ele se constitui, enquanto uma metáfora, a partir do

desejo materno. Assim, o filho deixa de ser o falo da mãe pelo desvio do seu olhar para o

desejo do pai. Mas, como identificar o pai biológico, enquanto pai real, sendo que ele não

desvia mais o olhar da mãe para o seu desejo? Mateus, ao questionar à analista em como

reconhecer um pai, na verdade questiona-se qual é o homem que provoca o desejo materno.

Ao final, conclui que somente a mãe poderá fazer tal indicação, visto que o pai sozinho é

impotente nessa função, não sendo suficiente somente ele reconhecer seu filho, mas é preciso

que a mãe o denomine pai.

As fantasias sobre o que é um pai continuam a habitar as sessões de Mateus. Conta à

analista passeios memoráveis que fez com o pai. No entanto, Mateus nunca viu ou falou com

o seu pai. Há certa ambivalência em suas opiniões sobre o que é um pai. Ora afirma ser o pai

melhor que a mãe, pois o “pai protege mais que a mãe porque é mais forte.” Ora diz que o pai

“não é uma coisa importante. A mãe é mais importante que o pai, porque quando o menino é

pequeno a mãe cuida dele, preocupa.” Essa não importância do pai é reforçada pelas suas

109

dúvidas quanto à participação dele na concepção e na origem dos filhos. A criança questiona

à analista sobre como as crianças “entram” na barriga de suas mães, além de afirmar que

nasceu da barriga de sua mãe, ainda que não saiba como foi parar lá. Apresenta também uma

dificuldade em diferenciar homens de mulheres e a seu ver há uma hipótese de haver pênis na

mulher. Além disso, a criança sabe que elas fazem xixi sem usar o pênis, mas não imagina

como. As investigações sobre a sexualidade feminina e a diferença entre os sexos está cada

vez mais presente no dia-a-dia de Mateus. Certa vez foi surpreendido em companhia de uma

amiga da igreja que freqüentava durante suas investigações quanto às diferenças anatômicas;

situação esta que deixou sua mãe bem aliviada, a ponto de chegar a afirmar que “ele é homem

mesmo.”

De que forma Mateus se constitui como sujeito? O que provoca sua separação da mãe,

tornando-o um ser distinto dela? Uma das primeiras problemáticas apontadas pela questão do

pai é que para se ter um pai não é necessário que se tenha um homem. Lacan demonstra que

quando ocorre a ausência física de um homem, em que há somente na relação a mãe e o filho,

complexos de Édipo normais são estruturados, “[...] normais nos dois sentidos: normais como

normalizadores, por um lado, e também normais no que se desnormalizam, isto é, por seu

efeito neurotizante, por exemplo – se estabelecem de maneira exatamente homóloga a dos

outros casos.” (LACAN, 1957-58 / 1999, p. 173). Essa normalidade ocorre pela via simbólica

do Nome-do-Pai. A metáfora se faz presente pela palavra da mãe. É na presença do discurso

da mãe que a metáfora cumpre o seu papel, ou seja, a de introduzir a criança no discurso

simbólico. No entanto, Marisa destrói qualquer rastro que remeta ao pai de Mateus. Em

nenhum momento ele surge em suas palavras. Sua vida se resume a ela e ao filho. Desde a

separação com o marido, não houve outro homem em sua vida a não ser o próprio filho. De

que forma a função paterna irá operar na vida de Mateus?

Constatou-se que a função paterna irá se valer por dois operadores, sendo que o

primeiro e o mais essencial é a própria anomalia apresentada por Mateus, a hipospádia. A

castração real no corpo não permite à mãe fazer de seu filho o objeto total de desejo. Há algo

que a afasta de seu filho que, num certo momento da vida, não permite mostrá-lo a ninguém,

porque para ela, seu troféu não pode ficar exposto. Durante muito tempo no processo de

análise de Mateus, a mãe não o retira do lugar do doente, daquele que precisa ser protegido do

mundo exterior. Junto à hipospádia, houve as inevitáveis cirurgias, que, de passagem, não são

poucas e que afastam literalmente mãe e filho. É somente com a ida da criança para a

enfermaria que a mãe retoma o contato com o seu objeto.

110

Até Mateus entrar em processo analítico a maioria das cirurgias é frustrada. Há sempre

infecções que impedem que ele possa usar seu pênis para urinar. Há uma sonda a tiracolo que

ele nem se lembra quando colocou, pois para ele sempre esteve lá. Acha graça quando os

colegas da escola dizem a ele que querem uma também. Pela deformação do órgão, a sonda o

substitui e marca em Mateus uma potência que é negada a todo tempo pela mãe. Com o

sucesso da mais recente cirurgia, Mateus começa a urinar em pé, o que para ele é muito

importante, pois possibilita sua virilidade e seu desejo masculino.

“Tirei a sonda. Já posso jogar bola e andar de bicicleta! [Revela que a

cirurgia fora feita para tirar a sonda e que agora está urinando pelo

pênis.] Eu tô fazendo xixi em pé!. Eu tentei fazer xixi em pé e

consegui! Não quero fazer xixi sentado pois homem que faz assim é

bicha! [Bicha?] É, homem que não quer ser homem; homem que

gosta de homem. [No decorrer desta sessão, novamente utiliza o

significante bicha. Marco novamente, bicha?] Ué, quando o homem

nasce ele é criança, quando ele é grande é homem, quando ele vai no

show e um homem tira a camisa, aí ele vai e quer namorar com ele,

ele se veste de mulher, é igual a Lacraia40, ele é homem, não é

mulher. É um homem que virou mulher!” (Mateus, 08 anos).

Os sintomas escolares persistem. Todo ano Mateus tem a possibilidade de ser

reprovado na escola. Evita qualquer tipo de situação que exija dele maior investimento de

raciocínio ou de comprometimento. Deixa as tarefas escolares sempre inacabadas. Em uma

sessão constrói a seguinte história sobre Adão e Eva:

“Se eles comessem a maçã iam ficar sábios, se ficar sábios pode

morrer! [Sábio?] Pessoa que sabe, conhece tudo.”

Estudar, fazer as tarefas escolares, ter bom comportamento na escola, para Mateus, são

formas de se tornar sábio. Mas o que ele não pode saber? As investigações sobre o que é um

pai permitem ao filho construir um saber sobre si, sobre sua origem, sobre o lugar do pai no

surgimento do filho. Porém, Mateus não podia saber quem é seu pai. Precisava permanecer na

40 Dançarino de um conjunto Funk.

111

ignorância de sua origem. Mesmo não se colocando no lugar do objeto materno, ele se torna

cúmplice da mãe em não querer saber.

Durante as sessões fica fascinado com um jogo no qual ele tem dinheiro para comprar

coisas. Exige da analista sempre o troco, mesmo quando ele não tem nada para receber de

volta: “agora eu quero o troco.” Querer o troco é o pagamento esperado por Mateus pelo fato

de ter aceitado o lugar de não saber quem é seu pai. Remete a sua espera paciente por alguém

que lhe indique quem é o pai. Assinala a cobrança que faz à mãe por ter renunciado um saber

que lhe é essencial, o saber de quem é seu pai.

6.1.2 Laura, a menina que veio da mãe

Laura é uma menina de três anos, que fora trazida para atendimento pela mãe e sua

avó materna. A queixa inicial é de a menina “não querer ir com o pai”. Ambas descrevem a

criança como “agitada, crítica, controladora e com personalidade forte.” No primeiro ano de

vida apresentou diversas afecções. A mãe, Débora, relata ter passado o período da gravidez

bem conturbado, com brigas constantes entre ela e o namorado (pai de Laura). Após o

rompimento definitivo, o pai da criança “some” durante um tempo. Quando a criança nasce

ele “ressurge”, reivindicando a paternidade da filha. Durante um longo período, mãe e pai

brigam pela guarda da criança. Débora repudia a possibilidade de sua filha estar com o pai.

“Confesso que há um tempo atrás influenciava para ela não ir com

ele. Agora tento ser neutra. Não consigo ver nele nada de bom. Ele é

grosso, tem pouca instrução, a casa onde mora não é adequada.

Possui vários bichos, tem muita poeira e ela tem o hábito de rolar

pelo chão. Meu pai sempre foi ausente. Teve uma época que eu o

odiava. Queria ter um pai igual ao das minhas amigas. Eu sofri

muito naquela época, fico com medo que ela sofra também. Aliás, ela

já sofre por causa disto”. (Mãe de Laura).

Como se vê, a mãe de Laura não permite que o pai se faça pai de sua filha. Pelas suas

palavras, ela não remete ao pai ao lugar de lei, de ponto de seu desejo. Mais ainda, vê no pai

da filha a ausência do próprio pai. No entanto, o pai quer se valer do seu papel de provedor da

112

criança e da sua função de privar a relação dual mãe e filha. Apela à instância jurídica que

interpele a mãe, já que é impotente nessa função. É a partir da entrada de um juiz de direito

que aquele homem começa a ter o direito de pai. A lei do pai entra na relação mãe-filho-falo

pela palavra do juiz: “A criança deverá ir com o pai.”

Em seus atendimentos, Laura chega a questionar à analista: “De onde você vem?”

Logo em seguida afirma: “Eu venho da minha mãe!” Essa afirmativa aponta diretamente para

a problemática: o que é um pai? Para que serve um pai?

Para a criança “ir com o pai” significa que ela tem um pai. A menina nega essa

paternidade, afirmando ter vindo apenas da mãe. Para Laura, a mãe tem tudo, por isso ela não

precisa do pai. Porém, ao perceber que o olhar da mãe desvia-se para um outro homem, que

não é o pai, ela abre mão dessa totalidade oferecida em um primeiro momento pela mãe.

Assim, ela aceita o novo namorado da mãe como pai. Dessa forma, é o sujeito que diz quem é

o pai, neste caso, o namorado da mãe. Há, então, um outro homem que exerce a função

significante do Nome-do-pai, ou seja, a causa de desejo da mãe.

O homem, pai da criança, oscila em vários momentos entre a potência e impotência.

Ora se vê fortalecido em sua função, anunciando ser o pai, o dono da filha e do falo, ora se vê

enfraquecido nessa função, denunciando ser a mãe a portadora do falo. Ele diz:

“Se as coisas continuarem assim penso em desistir da menina. Assim

que ela crescer ela vai me procurar e aí eu vou ter uma relação de

pai e filha com ela. Sem interferência das duas.” (Da mãe e da avó da

criança).

No decorrer dos atendimentos, a criança afirma “gostar um pouquinho” de seu pai.

Chega a ir para a casa dele sem fazer escândalos. Nesse momento, mãe e avó ficam abaladas

com a atitude da criança. Começa na família um novo movimento. Agora a queixa sobre a

criança é a da “desobediência”. A partir da mudança da criança, esta é retirada de sua análise,

sendo alegadas dificuldades financeiras que impediam a manutenção dos atendimentos. Meses

depois, retornam dizendo que ela novamente “não quer ir com o pai.” A análise agora começa

a ser demarcada pela diferenciação das funções na família. A mãe é convocada a exercer a

função de mãe. É esta que deverá responder pela filha e não mais a avó materna. Novamente a

análise é interrompida, alegando-se que a criança “não quer mais ir.”

O que a criança quer dizer quando afirma que não quer ir com o pai? Silvestre (1991,

p. 112) aponta “[...] que o temor ou a rejeição ao pai é de fato apelo e demanda a este.”

113

Alegando que não quer ir com ele, a criança convoca-o para interditar a mãe e a avó. Porém,

ela não pode decepcioná-las e ir com o pai sem olhar para trás. Diante dessa situação, no lugar

de ir com o pai, a criança faz sintoma. Vive com afecções dermatológicas, apresenta enurese

noturna, é “desobediente”.

Para Lacan (1969/2003), a criança elabora seu sintoma como forma de responder ao

sintoma da própria família. O sintoma é conseqüência do complexo de Édipo, pois é este que

orienta a estrutura familiar. Ele é o representante da verdade da família. Assim, o sintoma

surge pela vertente do par parental, ou seja, da mãe e do pai.

A mãe que ocupa o lugar de autoridade do pai no meio familiar retira do filho a

possibilidade dele ser castrado. Dessa forma, a criança neurótica elege o sintoma como forma

de vivenciar a castração simbólica que é proporcionada pelo Nome-do-pai. O sintoma é

construído pela criança como defesa frente a uma mãe totalizadora e a um pai da realidade

carente. Garcia–Roza (1995, p.227) afirma que “[...] o sintoma é aquilo que está no lugar da

palavra [...]”. O sintoma, como presença, assinala a ausência da palavra. A ausência da lei do

pai nas palavras da mãe é traduzida pela criança na forma de sintoma. Como a significação

paterna, a criança constrói a significação sintomática. No lugar de responder o que é um pai,

ou seja, o homem que faz de minha mãe uma mulher, ela encarna o sintoma como verdade,

como resposta de sua questão. É possível destacar assim a função estruturante do sintoma.

Quando a metáfora paterna é enfraquecida, é o sintoma que surge no lugar dela para estruturar

o sujeito na sua escolha neurótica.

Verdadeiramente, é uma nova versão da metáfora paterna. Na primeira versão poderia se pensar que o pai poderia preencher o buraco do simbólico com seu nome. Com essa nova versão, por outro lado, vemos que o pai se encarrega do buraco, o protege, o rodeia, o marca com essa divisão entre a mulher e a mãe. Assim, podemos esclarecer a estrutura da família edípica. Não se trata da famosa trindade, a trindade é divina, não é humana. Não consta de três protagonistas, mas, de quatro significantes, de quatro lugares, um deles sendo desdobrado. (NOMINÉ, 1997, p. 21).

Esse desdobramento apontado por Nominé é o da figura feminina que, pela presença

do Nome-do-pai, se transformará de mãe em mulher. A figura feminina possui dupla função

no interior da família, uma de ser mãe de seu filho e outra de ser mulher de seu marido. A

mulher só se faz mãe pelo homem do pai de seu futuro filho. Nominé (1997) afirma que para

um pai é mais importante que ele cuide da mulher e da mãe de seus filhos do que dos próprios

filhos, pois será por esta via que seu nome se constituirá.

114

[...] um pai só sai do ostracismo, só sai do anonimato quando faz de uma mulher causa do desejo. É, exatamente, nesse momento, que um pai deixa de ser uma incógnita para a criança, podendo, inclusive, obter para si respeito, admiração e até renome. (SANTIAGO, 1998, p. 25).

O que ocorre exatamente no caso da criança que não quer ir com o pai é que a mãe,

também, não quer ir com ele. A mãe não se faz enquanto objeto de desejo do pai de sua

filha. Para a criança, o pai não é portador do falo imaginário. Ele não transforma sua mãe

em mulher. Novamente o sintoma emerge para simbolizar o que a mãe procura em outro

homem e não no pai. A mãe busca ser mulher frente a outro homem. A criança

simbolizará essa transformação pela via do sintoma. Como substituto do homem/pai, o

sintoma surgirá como veículo para a simbolização.

Verifica-se, nesse caso, que a função paterna irá se fazer valer por duas vertentes. A

primeira é demarcada pela Lei propriamente dita, na qual o juiz determina que a criança deve

ir com o pai. Nesse ato, o juiz exerce a dupla castração: primeiro, priva a mãe da criança - a

mãe aqui também é encarnada pela figura da avó materna - , e segundo, por castrar a criança

de ser o objeto fálico da mãe / avó.

A segunda vertente da função paterna é personificada através dos sintomas da criança.

A criança irá se desvencilhar das amarras maternas aos poucos, permitindo-se construir

paulatinamente as respostas às questões do pai.

“De onde você vem? Eu venho da minha mãe!” Vir da mãe, para essa criança, é fazer

oposição ao pai. É negar um amor que não é permitido, a não ser que seja velado pelo

sintoma.

6.1.3 Luís, o menino que não queria crescer

Luís é o segundo filho de Renata e Marcos. Os pais estavam separados há um ano

quando o menino foi trazido para atendimento. Além de Luís, Renata e Marcos têm mais dois

filhos: um menino de dez anos e uma menina de três anos. Luís chega para a primeira

consulta aos cinco anos de idade. Sua mãe toma a iniciativa da procura clínica, está

“preocupada com o filho, pois este está com dificuldades de evacuar e quando acontece

sempre faz na roupa.” Há seis meses aproximadamente Luís vem apresentando esse sintoma.

Ele passou por vários exames médicos e eles constataram normalidade na organização

115

esfincteriana. O pediatra da criança incentiva a decisão da mãe na procura do atendimento

psicológico.

Segundo a mãe, Luís é um menino bem “esperto, inteligente e muito falante.” Diz que

ele vem “evacuando na roupa, pois não consegue sentar no vaso para fazer o cocô.” O

relacionamento com pai é conturbado e ela descreve o ex-marido como:

“irritado, nervoso, preocupado, não era de brincar com os meninos,

o tempo livre era dormindo, muito bravo, principalmente com o mais

velho, ele apanhou muito dele... Hoje raramente os meninos vêem o

pai. Aliás, vê só quando dá tempo. O pai faz o possível... O negócio é

complicado... O que eu sinto... Eu percebo que raramente eles

perguntam do pai. Eu tenho um namorado, o mais velho já viveu

situações de chamar ele de pai...”

Na primeira sessão, Luís se apresenta da forma como a mãe o descreveu: falante e

esperto. Porém, a sensação proporcionada é de se estar com vários personagens de desenhos

animados no consultório, sua fala é caricaturesca. Fala muito no diminutivo: carrinho,

almofadinha, menininho, ursinho... Tem sempre um ritual de chegada: entra na sala, corre

para o sofá, se cobre com a manta e deseja à analista boa noite: “good night!” A questão da

encoprese41, assim como o relacionamento com o pai, demorarão a aparecer em suas

verbalizações e “brincadeiras”.

De acordo com Ajuriaguerra (19--), a encoprese adquirida após o controle

esfincteriano é mais freqüente em meninos em idade pré-escolar a partir dos quatro anos de

idade. O autor considera que esses quadros clínicos estão intimamente relacionados com o

casal parental, sendo que a figura materna se caracteriza muitas vezes como autoritária em

relação à criança e o pai apresenta-se como passivamente isolado e emocionalmente distante.

Ele afirma ainda que esse sintoma “[...] parece ser utilizado como manobra hostil e para

chamar a atenção dentro de uma relação hostilidade-dependência, num contexto de um

ambiente familiar específico, isto é, a ausência do pai.” (AJURIAGUERRA, 19--, p. 283). Foi

41 A encoprese é a evacuação intestinal parcial ou total na roupa que acontece depois da idade normal de controle (mais de 4 anos), desde que não seja devida a algum tipo de problema orgânico ou medicamentoso (laxante). Sua característica é a evacuação repetida de fezes em locais inadequados, como por exemplo, nas roupas, na cama ou no chão (DSM.IV). A encoprese freqüentemente está relacionada à constipação (intestino preso), impactação e retenção de fezes. Disponível em: http://pt.shvoong.com/humanities/1782505-encoprese-que-%C3%A9/, consultado em 28 de junho de 2008.

116

verificado que, na história clínica de Luís, seu quadro sintomático ocorre após a separação de

seus pais e a efetiva ausência do pai em casa. Marcos, o pai, amplia o distanciamento de seus

filhos com essa mudança; ele não tem tempo para as crianças. Durante um longo período,

Marcos é convidado para entrevistas com a analista, mas sempre “está muito ocupado.”

Devido a insistência, ele acaba agendando alguns horários, que porventura são desmarcados

ou simplesmente inutilizados pela ausência do pai.

Mesmo com a ausência do pai, Luís prossegue com os atendimentos. A analista

resolve “provocar” o sintoma da criança e coloca no armário de brinquedos um pote de argila.

Já na primeira sessão, Luís encontra-o lá. Começa a mexer com a argila timidamente, mas

logo deixa-a de lado dizendo que é nojenta. Em várias sessões, Luís indaga à analista o que

“aquilo” faz ali. Dirige-se à argila com nojo, chega a pedir várias vezes para que ela seja

colocada em outro lugar. Quando é perguntado onde a argila deve ser colocada, Luís

responde: “no banheiro, lá é o lugar dela.” Mesmo se recusando a trabalhar com a argila,

Luís a substitui por tintas, faz desenhos misturando as cores, sendo o desenho amorfo e de cor

escura. Enquanto pinta, diz: “é sujeira, aqueles e estes dois são sujeiras. Eles são irmãos.”

A fala de Luís não se apresenta mais tão caricatural. Suas brincadeiras já estão mais

evoluídas e seu ritual de chegada é bem menos freqüente. No entanto, o sintoma persiste. Em

uma sessão, escreve em uma folha: “Sobre Luís”, a entrega para a analista e diz que irá ditar

coisas sobre ele e que ela deverá escrever.

[Título:] “O cocô

Não sinto dor de barriga. Não ligo de ficar sujo de cocô. Fico feliz,

alegre quando a mamãe tem que me limpar.”

Nessa sessão e em outras que virão, sempre no final, Luis evacua na roupa. O processo

começa a ficar bem conturbado, uma vez que Luís apresenta resistência para os atendimentos.

Freud (1917c/1988) ensina que as fezes para as crianças são consideradas como uma

dádiva, uma parte de seu corpo que ela só presenteia a quem ama, e por isso, por via de regra,

as crianças não sujam os estranhos. A analista, mesmo se interpondo na relação da criança

com a mãe e, acima de tudo, “provocando” a apropriação do sentido do sintoma pela criança,

é eleita por Luís para ser aquela a quem o segredo pode ser dividido. No entanto, como a

criança é impotente frente a seu sintoma e não consegue simbolizar sobre a questão nas

sessões, precisa surgir no real, sendo literalmente um presente para a analista.

117

A defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal. Ou reparte obedientemente as suas fezes, ‘sacrifica-as’ ao seu amor, ou as retém com a finalidade de satisfação auto-erótica e, depois, como meio de afirmar sua própria vontade. (FREUD, 1917c/1988, p. 139).

Em conjunto com esses acontecimentos, há a união da mãe com seu namorado

Guilherme; agora a casa de Luís tem um novo homem e também mais duas filhas, oriundas do

primeiro casamento de Guilherme. Mesmo Luís chegando a faltar a algumas sessões “por não

querer ir” , a mãe insiste e mantém os atendimentos. Não esconde sua angústia e ansiedade

pela demora da remissão do quadro sintomático do filho. Volnovich (1991) considera que na

Psicanálise com a criança, a última preocupação do analista é com a remissão do quadro

sintomático de seu paciente. Mesmo diante das pressões advindas dos responsáveis pela

criança, a redefinição do sintoma será dada no tempo oportuno pela criança. Para o autor, o

sintoma da criança, assim como o do adulto, está articulado com o fantasma. Dessa forma,

“[...] o sintoma da criança, como todo sintoma, vai se articular na hora que for descoberto o

sentido de seu fantasma inconsciente [...]”. (VOLNOVICH, 1991, p. 27).

Nesse sentido, Ferreira (2000) resgata o texto freudiano e afirma que o sintoma no

campo analítico é o substituto de uma satisfação pulsional. O desprazer provocado por essa

satisfação é desviado de seu percurso e encontra refúgio no sintoma. Esse por sua vez advém

como resposta a uma questão posta pelo sujeito, porém ele não sabe a que responde.

A que perguntas a encoprese de Luís vem responder? A primeira se refere a sua

dificuldade de crescer e, principalmente, se separar da mãe. Não consegue se desvencilhar do

lugar do filho pequeno, mesmo tendo uma irmã mais nova que ele. A segunda trata da

ausência do pai e da sua ineficiência na castração do filho. Quanto a isso, Ferreira (2000, p.

59) considera que o sintoma tanto da criança quanto o do adulto é um “[...] remédio produzido

pelo sujeito para a falha do pai.” Falha em interpelar a mãe de ter o filho como objeto

narcísico, falha em provocar o desejo materno em direção a si.

A nova união de Renata, a mãe, trará importantes contribuições para a alteração do

quadro sintomático de Luís. A partir de Guilherme, o pai Marcos aparece nas sessões. Luís

menciona que tem “900 anos que não vê o pai”, que tem saudades, mas “é ele [pai] que tem

que ligar.” No entanto, a resistência frente aos atendimentos ainda continua.

Numa certa sessão, Luís se recusa a entrar na sala de atendimento. A mãe, por sua vez,

adentra a sala dizendo que ela então fará o atendimento naquele dia. Luís surpreso segue a

mãe e entra na sala. Renata começa a sessão contando que fez um trato com o filho. Ele

sempre lhe pede um vídeogame e como esse jogo é de “menino grande”, ela o dará quando

118

ele se portar como um menino grande, ou seja, quando parar de evacuar na roupa. Várias

pontuações a respeito de Luís são feitas por Renata naquela sessão. Num determinado

momento, Luís interrompe sua mãe e fala: “você já pode sair agora.” A mãe atormentada

olha para a analista, que reforça: você já pode sair agora. Com a saída da mãe da sala, a

analista interpela a criança questionando sobre o que acha do que foi dito ali. Luís em silêncio

respira fundo, vai até o armário de brinquedos, observa-os e escolhe um jogo. Olha para a

caixa e lê em voz alta: “Jogo da vida”. Em seguida, olha para a analista e exclama: “O jogo

da vida é tão difícil!” E obtém como resposta: “É, o jogo da vida é difícil.”

A partir daí inúmeras serão as sessões nas quais “o jogo da vida” irá fazer parte. O que

é tão difícil no “jogo da vida”? Para Luís, crescer. No jogo propriamente, qualquer situação

que remetia-lhe a uma posição de crescimento, Luís se rebelava contra ela: não queria pagar

suas dívidas, não queria casar e nem ter filhos. Em uma das sessões na qual era jogado o

“jogo da vida”, ao cair na casa onde nasciam filhos, Luís pede à analista:

“Posso trocar?” [Pode trocar?] “É, por filhas...” [Por quê?] “Não

quero ter filhos. O Guilherme não tem filhos...”

Nesse momento da vida de Luís, Guilherme ocupa um lugar para além do marido da

mãe. É aquele que propicia a Luís uma identificação: como o padrasto, Luís quer ser pai, mas

pai de meninas. O padrasto se faz efetivamente presente na vida de Luís; leva-o para as

sessões, pede à analista para marcar um horário para ele, pois acha importante saber mais

sobre o “filho”.

O quadro sintomático de Luís reduz consideravelmente, chega a fazer novamente o

cocô em uma das sessões, porém daquela vez corre para o banheiro e sentado no vaso

sanitário chama a analista euforicamente: “consegui! Consegui!” A resistência também

diminui. No final de uma sessão, Luís se despede da analista dizendo: “nós fazemos uma boa

dupla.”

Luís conta uma história em que tem um “anel mágico”, anel este que ganhou do pai e

o pai ganhou do pai dele.

“É um anel que cura, passa por tudo, fica invisível, tem muitos

poderes, é uma boa mágica”.

119

Afirma que foi o pai que deu os poderes para ele. Fala para a analista que ele irá dar a

ela alguns poderes, mas “não os poderes do pai.”

Ajuriaguerra (19--) considera que o quadro da encoprese será extinto no momento em

que a criança consegue restabelecer sua relação com o pai; o quadro sintomático será

substituído pela vivência edipiana. O desenlace sintomático acontecerá quando “[...] a relação

com o pai lhe traz de pronto uma imagem sólida e tranqüilizante, que a faça superar a díade

mãe-filho primitiva, para desembocar na relação triangular edipiana.” (AJURIAGUERRA,

19--, p. 285).

Quais são os poderes que a função paterna, encarnada por Guilherme, proporciona a

Luís? A primeira, como aponta a própria criança, a de “cura”. A segunda, o apontamento de

sua própria virilidade e a possibilidade de crescimento, não necessitando assim se fazer o

“filhinho da mamãe”, podendo se tornar ele mesmo, Luís.

***

Nos casos apresentados foram destacadas quatro características: a) o modo de

composição familiar; b) o quadro sintomático das crianças; c) o lugar que o pai da realidade

ocupa no contexto familiar; d) a maneira como a função paterna é exercida.

No momento em que essas crianças chegam para a análise, todas as famílias possuem

configurações distintas do modelo nuclear. As famílias de Mateus e Luís em um determinado

momento da vida tiveram sua composição pautada no modelo nuclear. Porém, no caso de

Mateus, ele nunca conviveu com a presença do pai. O modo de família de Mateus é

genuinamente monoparental feminina. Já a família de Luís, após o casamento de Renata com

Guilherme, tornou-se nuclear reconstituída. A família de Laura, composta por ela, pela mãe,

por um tio e pela avó, é uma família monoparental feminina extensa, uma vez que cabe à avó

todo o sustento da casa e a orientação da família.

Cada criança, a seu modo, apresentou uma problemática que fizeram-nos ser levados

para a análise. Apesar da singularidade dos quadros sintomáticos – dificuldade de

aprendizagem; dificuldade de relacionamento com o pai, encoprese –, eles apontam para o

conflito frente à questão paterna. Cada criança, a partir de seu sintoma, cria uma cadeia

enigmática na tentativa de responder sobre o que é um pai. O conflito psíquico surge com o

intuito de tamponar o furo deixado pela ausência do pai no caso de Mateus, e/ou pela

fragilidade e impotência paterna nos casos de Laura e Luís.

É possível constatar que, mesmo diante da instabilidade do pai da realidade na vida

dessas crianças a função paterna será exercida, uma vez que se frustra e castra a criança na

sua condição de objeto fálico da mãe, ao mesmo tempo em que priva a mãe desse objeto. A

120

função paterna nessas famílias será desempenhada por vários vetores: pelo sintoma de cada

criança, pelo juiz de Direito, pelas internações, pelos namorados das mães de Laura e Luís.

É evidente que o quadro sintomático dessas crianças se interpõe entre elas e o desejo

materno. Contudo, ele por si só é insuficiente para aplacar esse desejo e livrar a criança da

total condição de objeto, da não diferenciação entre ela e a mãe. Dessa maneira, não se pode

deixar de destacar que algo do real, e no real, precisa emergir para que a operação simbólica

se estabeleça. É necessário que algo ou alguém concreto encarne a função paterna e seja o

vetor/operador da privação materna e da castração da criança.

O mundo atual se caracteriza por uma orfandade de ideais coletivos que norteiam e

organizam os sujeitos. Mesmo diante da fragilidade de ordenação dos tempos atuais, a função

paterna precisa de alguma maneira se fazer valer. A sua ineficácia ainda provoca a não

inscrição simbólica dos sujeitos. Para se evitar as discussões ideológicas que o termo “função

paterna” pode levantar, ele será denominado neste trabalho a partir de agora como “função de

limite”, pois afinal é esta a função radical que a função paterna opera, ou seja, fazer limite.

Destaque-se que a de “função de limite” está muito além do ato de

limitação/impedimento que os pais colocam frente ao comportamento de uma criança. A

“função de limite” não é a de proibir uma criança de andar descalço, não gritar, não brigar,

entre outros. Mas é uma função que priva e castra o “outro dos cuidados maternos”42 do

investimento exacerbado sobre o seu objeto fálico, a saber, o filho/falo. Ela também irá incidir

sobre a criança proibindo-a dos desejos incestuosos com o par parental. A “função de limite”

faz borda no gozo tanto da criança quanto de quem a cuida.

Sendo assim, verifica-se que nos casos de Mateus, Laura e Luís a “função de limite”

fora exercida por diversos representantes, ou melhor, por pluralizações do nome do pai. Ela,

por sua vez, promoveu a subjetivação dessas crianças, permitindo a sua inscrição no campo

simbólico e a sua constituição como sujeito desejante.

42 Este termo é criado por Wagner Ranña (2004) para designar a pessoa que exerce a função de maternagem na vida de uma criança.

121

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que é um pai? Essa pergunta permeou todo este trabalho na busca de identificar

como no mundo contemporâneo a questão sobre o que é um pai é respondida. Em conjunto a

essa problemática, foram feitas indagações se há ou não em nossos dias o declínio da função

paterna, e, se nas famílias atuais, devido a sua diversidade de composição, se prescinde dessa

função. No desenvolvimento desta pesquisa esforços foram envidados para sustentar as

seguintes proposições: a) A família desde sua origem é formada por uma diversidade de

modelos, não tendo apenas um modo de composição que a caracterize e/ou a defina; b) As

transformações teóricas sofridas pela questão paterna na teoria lacaniana acompanham as

mudanças ocorridas quanto ao lugar do pai no contexto social. Destacou-se o desenlace

provocado por Lacan, da função paterna exercida exclusivamente pelo pai biológico; c) A

função paterna nos dias atuais se faz presente e é imprescindível para a constituição psíquica

dos sujeitos.

Zenoni (2007) considera que a partir da inauguração de uma sociedade na qual a

hierarquia e a desigualdades são criticadas, a questão sobre o que é um pai se apresenta como

“fora de moda”, pois junto a ela impõe-se uma nostalgia pelos áureos tempos em que o pai

ocupava o lugar de poder. Esse lugar lhe garantia privilégios e demarcava sua superioridade

frente aos demais membros da família e da sociedade, caracterizando assim a desigualdade

entre os seres. Em conjunto a essas considerações, como discutido no capítulo 5 deste

trabalho, Miller (2003) afirma que o Outro não existe. Se o Outro não existe e se em tempos

em que a igualdade é marco no modo de vida dos sujeitos, o que faz uma criança sair em

busca do pai? O que leva um sujeito investigar as formas de se “reconhecer” um pai?

A resposta à questão sobre o que é um pai não se limita ao lugar de poder que o pai de

outrora ocupava na sociedade. Mas sim, é perpassada principalmente sobre qual é a

participação dele na origem dos seres. Foi encontrado também como solução para a questão

outro argumento que pode traduzir o que é um pai; ela é dada por Lacan em seu último

ensino, no qual define o pai como aquele que tem uma mulher como causa de seu desejo. A

partir dessas considerações, foi possível afirmar que a questão sobre o que é um pai nunca

será arcaica, obsoleta. Mesmo num mundo globalizado como o atual, em que as tecnologias

avançam na velocidade da luz, o pai ainda é uma incógnita para os sujeitos. Aliás, pode-se

dizer que as novidades do mundo contemporâneo fortalecem esse enigma. As mudanças nas

formas de procriação, como, por exemplo, a procriação artificial, doador de esperma anônimo,

122

embriões congelados, e as mudanças nas formas de filiação dos filhos – alterações no sistema

de atribuição do sobrenome, monoparentalidade, homoparentalidade – sustentam a questão,

uma vez que remetem à desqualificação do homem no lugar de pai e ainda como o causador

do desejo materno.

Os conceitos Nome-do-Pai e função paterna muitas vezes são interpretados por meio

de um viés ideológico que defende a autoridade do pai. A égide do declínio desses conceitos

busca o desenlace com as tradições românticas, em que o pai era o seu representante. Tendo

em vista a multiplicidade dos laços afetivos e das modalidades de famílias em nossos dias, a

organização fálica encarnada pela função paterna é uma possibilidade de subjetivação entre

outras. Como foi discutido neste trabalho, Lacan, ao apresentar a pluralidade dos nomes do

pai, indica essas novas possibilidades, mas isso não quer dizer que ele anule a importância do

Nome-do-Pai, tanto em seu postulado teórico quanto nos processos de subjetivação.

Retomado novamente o texto lacaniano de 1938, Os complexos familiares, o autor afirma

ocorrer o declínio social da imago paterna, em outras palavras, é o declínio social do pai e não

o declínio daquilo que ele denominou de função paterna. É devido à importância da eficácia

dessa função que ela foi denominada neste trabalho “função de limite”.

De acordo com Brousse (2007), a família é uma estrutura simbólica privilegiada para a

constituição e manifestação dos ideais dos sujeitos. Ela, por sua vez, é ordenada pelo lugar do

pai e o exercício da função paterna. Contudo, nos dias de hoje, tanto os ideais da família

quanto a sua estruturação simbólica não estão mais organizados pela função paterna, mas

através de uma outra maneira, que implica numa pluralização, não tendo forma definida para

essas inscrições. Essa diluição da função paterna não implica em absoluto no falecimento da

família, mas sim, numa reorganização das relações familiares em torno de um ponto central

que a organiza de forma distinta. E que ponto é esse? Nos tempos atuais não existe uma

nomeação para o ordenador da família e dos sujeitos. Por isso, foi eleita a denominação de

“função de limite”.

No entanto, é freqüente escutar que as novas configurações familiares desestruturam

tanto a sociedade quanto os sujeitos nelas inseridos. Como demonstrado neste trabalho, o

modo de organização das famílias é decorrente da ordem social que a produz. A convicção de

que o modelo nuclear de família é o único modo de se viver em sociedade nasce com os

princípios burgueses pautados nos ideais afetivos que sustentavam a família na Época

Moderna. A perda da hegemonia da família nuclear no cenário social traz consigo a fantasia

da perda do amor romântico e dos ideais de igualdade próprios de seu tempo. As novas

formas de família exigem da sociedade novas saídas, ou melhor, novas respostas frente às

123

angústias da vida. Da mesma maneira que existe mais de uma forma de se fazer “função de

limite”, também haverá mais de uma maneira de responder sobre quem somos, de onde

viemos, o que nos constitui como sujeitos... Os ideais calcados na família nuclear não

garantem mais essas respostas. A variabilidade é característica do mundo contemporâneo.

Ceccarelli (2007, p. 95) considera que o “[...] o significante ‘família’ é representado,

como todo significante, por fatores conscientes e/ou inconscientes, que definem a maneira e

engendram as categorias pelas quais o mundo social é organizado.” Ainda sustenta a idéia de

que uma família será composta pelos “pais” e por seus “filhos”, porém essas denominações

estão longe de se referir a uma paternidade biológica e/ou a configuração heterossexual de

uma família. No resgate dos fundamentos que sustentam a noção de família, o autor lembra

que o surgimento de uma mãe e um pai não se configura através do nascimento real de uma

criança. Assim, o ato de filiação não é determinado pela consangüinidade. Independentemente

do modelo familiar, o ato em si será inaugurado pelo lugar em que a criança ocupa no

imaginário e na circulação do desejo daqueles que se dispuseram a ser seus pais. Nessa

medida, não interessa para o sujeito em qual forma de família a sua se encaixa: monoparental,

nuclear, convivente, entre outras.

Os casos clínicos apresentados nesta pesquisa tratam-se de sujeitos oriundos de

modelos de famílias distintas do modelo nuclear. Porém, o que evidencia o quadro

sintomático dessas crianças não é o fato delas pertencerem a um modelo não nuclear de

família, mas sim a dificuldade de algo se interpor entre a mãe e o seu objeto fálico e propiciar

a entrada da criança na organização simbólica. Percebeu-se, ainda, que a ausência do pai da

realidade ou a sua impotência dificulta a investigação dessas crianças sobre o que é um pai.

Investigação que se apresenta para qualquer sujeito, independentemente da forma de família

que advém.

Nesta pesquisa, não foram defendidos nem o retorno do pai para seu lugar de poder na

sociedade e na família nem tão pouco a exclusividade de uma forma de configuração familiar

no contexto social, mas sim houve a defesa da função paterna em sua “função de limite”

essencial para a constituição da subjetividade dos seres humanos.

Diante das configurações familiares atuais, principalmente das novas formas de

parentalidade, é proposta a seguinte questão: como nos dias atuais se exerce a função paterna

na ausência do pai da realidade?

Primeiro deve-se lembrar que a função paterna é uma “função de limite.” Ela, por sua

vez, pode ser encarnada por diversos representantes, suas variações são múltiplas. O

importante é que essa função possa emergir apontando a não complementaridade na relação

124

mãe-filho. É fato ainda que não exista apenas um modo de se estabelecer à subjetivação. O

acesso à ordem simbólica é realizado por caminhos múltiplos, visto que não se deve

considerar apenas um modo normativo de se constituir enquanto humano.

Como apresentado nesta pesquisa, a Psicanálise fora construída por Freud com o

intuito de resgatar o lugar do pai na sociedade. Nessa perspectiva, Lacan cunha em seu

postulado o Nome-do-Pai numa tentativa de demarcar a importância da operação significante

que ele detém. Nesses esforços, primeiro Freud e depois Lacan sustentam o lugar do Édipo na

constituição psíquica dos sujeitos. Porém, em conjunto com as transformações sociais, a

construções teóricas também se modificam. É claro que são encontradas de forma mais

evidente em Lacan essas transformações, mas não se pode deixar de chamar a atenção para a

característica ineditista que o texto freudiano possui mesmo depois de mais de 100 anos da

invenção da Psicanálise. Lacan, no final de seu ensino, provoca novas formas de se encarar a

subjetividade, criando a pluralização dos nomes do pai, o sinthome e a clínica borromeana.

Elas tentam compreender as novas formas de sintoma provenientes das mudanças dos laços

sociais.

A Psicanálise, mesmo pautada em seus princípios, a saber: o inconsciente, a pulsão e a

sexualidade, se atualiza diante das mudanças sociais, mas em nenhum momento despreza a

singularidade da interpretação do sujeito do mundo em que vive.

Finalizando, mesmo em tempos em que o Outro não existe, em que a fixação fálica

perde sua hegemonia na ordenação simbólica e na partilha dos sexos, em que os ideais na

cultura encontram-se em declínio, o sujeito, hoje, ainda necessita de algo ou alguém que de

alguma forma o conduza para a socialização.

O sujeito na contemporaneidade encontra-se carente de um pai que assuma a

transmissão da castração. No entanto, mesmo na ausência ou na insuficiência do pai da

realidade como operador de limite há possibilidades dessa função se valer. Um terceiro que

encarne a operação de castração adota o sujeito, e permite assim sua constituição subjetiva.

Seja pela vertente do Nome-do-Pai, seja na vertente da amarração borromeana, do

sintoma, da inibição e de tantos outros que possam operar a função de limite, o essencial é que

de alguma maneira o Outro se faça valer e permita a inscrição dos sujeitos na ordenação

subjetiva.

É importante ressaltar, ainda, que não se pode afirmar sobre o “declínio da função

paterna” uma vez que essa função está atrelada à ordem da linguagem e por isso todos os

seres são castrados. Se a castração é da ordem da estrutura, assim não há como haver o

declínio dela, pois mesmo em tempos em que o Outro não existe, a linguagem permeia e

125

inscreve os sujeitos através da articulação e do enlaçamento dos registros real, imaginário e

simbólico, permitindo que o sujeito advenha como singular.

Quanto à pergunta com que se iniciou este trabalho, o que é um pai, ela nunca cessará

de ficar sem reposta, pois “[...] não há reconciliação possível com o pai – por melhor pessoa

que seja ele. O amor que o sujeito espera como recompensa por sua renúncia é um logro

narcísico.” (SILVESTRE, 1991, p. 103).

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