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1 LUIZ FERNANDO BELMONTE MENA A FUNÇÃO DO PAI EM PSICANÁLISE: para que serve a autoridade? (função e deriva na modernidade) São Paulo 2004

A FUNÇÃO DO PAI EM PSICANÁLISE: para que serve a autoridade? · Se falo, do começo ao fim deste estudo, da função do Pai, vou começar agradecendo a meu pai pelo início e término

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LUIZ FERNANDO BELMONTE MENA

A FUNÇÃO DO PAI EM PSICANÁLISE:

para que serve a autoridade?

(função e deriva na modernidade)

São Paulo 2004

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LUIZ FERNANDO BELMONTE MENA

A FUNÇÃO DO PAI EM PSICANÁLISE:

para que serve a autoridade?

(função e deriva na modernidade)

Dissertação apresentada ao Instituto de

Psicologia da Universidade de São Paulo

como parte dos requisitos para obtenção do

título de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Psicologia Escolar e

do Desenvolvimento

Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina

Machado Kupfer

São Paulo 2004

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Ficha Catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP

Mena, L. F. B. A função do pai em psicanálise: para que serve a autoridade?: função e deriva na modernidade./ Luiz Fernando Belmonte Mena. – São Paulo: s.n., 2004. – 139p. Dissertação (mestrado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Orientadora: Maria Cristina Machado Kupfer. 1. Psicanálise 2. Pai 3. Autoridade 4. Modernidade I. Título.

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A FUNÇÃO DO PAI EM PSICANÁLISE:

para que serve a autoridade?

(função e deriva na modernidade)

Luiz Fernando Belmonte Mena

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Maria Cristina Machado Kupfer (orientadora) - IP-USP

Profª Drª Miriam Debieux Rosa – IP-USP

Prof. Dr. Rinaldo Voltolini – FE-USP

Dissertação defendida e aprovada em 10/09/2004, no Instituto de

Psicologia da Universidade de São Paulo.

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Agradecimentos

Se falo, do começo ao fim deste estudo, da função do Pai, vou começar agradecendo

a meu pai pelo início e término deste trabalho. Ainda, pelo pai do meu pai, pelo pai

do pai do meu pai, pela filiação simbólica que me foi imposta, à qual sou grato.

Graças a ela, o ponto final que pertence à última página pode exercer a dupla função

que cabe ao ponto simbólico: o de propiciar a retroação necessária à emergência do

sentido, a capitonagem que permite o caminho da mensagem ao código, que

possibilita à mensagem a recepção no Outro; e o de possibilitar a estruturação do

tempo, o término necessário que obriga o endereçamento da obra. E agradeço à

minha mãe por ter existido em seu papel de “mãe dos seus filhos” e no outro, de

“mulher do seu marido”, o que permite ao Valter existir como Valter, e não somente

como Pai, sem o qual o Nome não faria função.

Agradeço à minha orientadora, Cristina Kupfer, por seus ensinamentos e pela sua

paciência, desde os tempos em que meus cabelos eram compridos.

Agradeço à Miriam Debieux Rosa e Rinaldo Voltolini, por terem aceitado fazerem

parte de minha banca examinadora, pelas leituras atentas de meu trabalho e pelas

preciosas contribuições.

Enfim, como não podemos, como me disse uma vez a Cristina, citar todos os livros

que lemos durante a nossa vida em um trabalho científico, mesmo que eles tenham

nos ajudado nesse percurso e nessa obra, desde as Reinações de Narizinho até o

Pequeno Príncipe, não posso citar todas as pessoas a quem sou grato por ter

conseguido chegar aonde cheguei, desde as discussões filosóficas fundamentais, até

as cervejas fundamentais. Contudo, quero fazer um agradecimento especial à equipe

do Courtil, em especial a Dominique Holvoet, por suas supervisões precisas e

descontraídas. E além dele, a uma pessoa que me ajudou tanto na feitura intelectual

deste trabalho quanto nos momentos necessários de companheirismo: Nouné

Gharagoysian. Foi a Nouné, sem dúvida, quem me ajudou a “tenir le coup” na virada

radical que a teoria tomou para mim.

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Antes de sair do Brasil, o projeto de falar sobre a importância do Pai tinha um limite

claro: o Pai simbólico era, até aquele momento, o ponto final, através do qual eu

entendia a obra lacaniana, e através do qual eu entendia o caminho teórico da

psicanálise no tratamento da psicose e da educação no tratamento da autoridade. A

partir do momento em que eu “perdi o chão”, quando a teoria do Nome-do-Pai

insistia em sua incompletude, foi a Nouné que, por diversas vezes, explicava a

mesma coisa de diferentes maneiras, entre uma taça de vinho e uma porção de fritas

com maionese. Sempre explicando com um papel e uma caneta na mão, ela circulava

entre os esquemas lacanianos com tal simplicidade, que eu acabei por fim me dando

conta de que esses esquemas não eram “bichos-de-sete-cabeças”, os quais eu me

recusava a compreender por achá-los inúteis para a clarificação da obra.

Enfim, acabei me dando conta, pela extrema simplicidade pela qual ela explicava os

diversos registros do pensamento lacaniano através dos esquemas, que eles poderiam

ser ferramentas úteis para a compreensão do caminho do pai pela psicanálise. Tudo

dependia da maneira pela qual poderíamos utilizá-los, ou para nos escondermos, ou

para nos mostrarmos.

Agradeço pela sua amizade e ajuda sinceras nos momentos difíceis.

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SUMÁRIO

Introdução.....................................................................................................................................

1) Que pesquisa é esta......................................................................................................................

2) O pai e a autoridade entre a psicanálise, a política e a educação................................................

PRIMEIRA PARTE

Autoridade e Política..............................................................................................................

1) A autoridade como problema político..........................................................................................

2) A autoridade entre a persuasão e o autoritarismo.......................................................................

3) O nascimento da autoridade........................................................................................................

4) A autoridade e o pai na evolução da família................................................................................

a) A família tradicional...................................................................................................

b) A família moderna.....................................................................................................

5) Autoridade e Psicanálise.............................................................................................................

SEGUNDA PARTE

Pai e Psicanálise......................................................................................................................

I – “Le non du père” em Freud.........................................................................................................

a) o pai do traumatismo (1895).......................................................................................

b) o pai do Édipo (1901)..................................................................................................

c) o pai totêmico (1912)...................................................................................................

II – “Le Nom-du-Père”, ou Lacan freudiano.....................................................................................

a) Lacan freudiano...........................................................................................................

b) o sistema quaternário em “O mito individual do neurótico” (1953)..............................

c) a dissociação da imagem e o Estádio do Espelho (1949)...........................................

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d) o esquema L (1955).....................................................................................................

e) o esquema R (1958)......................................................................................................

II.2 – Da realidade à linguagem: uma questão preliminar..................................................

II.3 – O Seminário 5: o Grafo e o Nome-do-Pai (1957/1958).............................................

a) os termos da lingüística.................................................................................................

b) o Grafo (1957)...............................................................................................................

c) o Nome-do-Pai (1958)...................................................................................................

d) a metáfora paterna (1958).............................................................................................

III – “Les noms du père”, o seminário interrompido de 1963.............................................................

a) a crise política................................................................................................................

b) o plural dos nomes do pai.............................................................................................

c) a insuficiência do simbólico e o Outro barrado..............................................................

IV – “Les non-dupes errent”, ou Lacan lacaniano (1973/1974).........................................................

a) o gozo do pai.................................................................................................................

b) a père-version................................................................................................................

c) qual destino para o Nome-do-Pai?................................................................................

TERCEIRA PARTE

Considerações finais..............................................................................................................

1) A psicanálise como resquício do patriarcado...............................................................................

2) Interdição ou não, eis a questão..................................................................................................

3) Afinal, pode ser a mãe?................................................................................................................

4) Esquematicamente.......................................................................................................................

5) Finalmente... ..............................................................................................................................

Referências bibliográficas.............................................................................................................

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Resumo

Mena, L.F.B. A função do pai em psicanálise: para quê serve a autoridade? (função e deriva na modernidade). São Paulo, 2004. 139 p. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo. Pretendemos investigar neste trabalho a importância da autoridade do pai na educação dos filhos, mesmo que essa seja uma discussão perigosa, em face do discurso moderno educacional do “é proibido proibir”. É cada vez mais freqüente ouvirmos dos pais – e também dos professores – que a tarefa educacional anda cada vez mais difícil, que os limites de outrora não existem mais, ou então que estes limites não encontram mais a mesma eficácia na hora de educar as crianças. Nosso objetivo é analisar a relação de autoridade presente na família pelo pai, mas acreditamos que esse debate pode ser útil para a Educação de uma maneira geral, no que concerne também à escola e à autoridade do professor, mesmo que não nos atenhamos a isso. Dividimos nossa pesquisa em duas partes principais: na primeira, procuramos compreender o conceito de autoridade, com a ajuda de Hanna Arendt e da filosofia política. Neste caminho, abordamos o combate à tirania patriarcal e a crise da autoridade na modernidade. Na segunda parte, procuramos entender como a autoridade chega ao pai em sua função de pivô da constituição subjetiva da criança, utilizando a psicanálise e sua teorização sobre a função do Pai, passando por Freud e Lacan. Esta pesquisa nasceu com o intuito de recolocar a importância do “não” na educação, como uma crítica às teorias educacionais modernas que defendem o “é proibido proibir”. Contudo, ao longo de nossa pesquisa sobre o Pai em psicanálise, nos deparamos com o Lacan do real, e passamos a considerar que o “não” pode tanto estar presente quanto estar ausente, tão necessário quanto desnecessário, pois não é por causa dele que as crianças respeitam a autoridade do pai, do professor, ou que mantém a disciplina necessária ao processo de aprendizagem, como diriam os nostálgicos da educação tradicional. A autoridade do pai e do professor, parece-nos, não está condicionada ao “não” tão somente, pois há o nó dos três registros RSI. É através da maneira como ele – o pai ou o professor – goza, inserido numa filiação simbólica que sustente esse gozo possível, que o “não” e a autoridade podem ter algum efeito educativo, estruturante, de aprendizagem, de filiação, de acesso, de interdição, de transmissão. Palavras-chave: psicanálise; pai; autoridade; modernidade.

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A função do PAI em psicanálise: para que serve a autoridade? (função e deriva na modernidade)

__________________________________________________________

Introdução

1) Que pesquisa é esta

Pretendemos investigar neste trabalho a importância da autoridade do pai na

educação dos filhos. Por que? Porque é cada vez mais freqüente ouvirmos dos pais –

e também dos professores – que a tarefa educacional anda cada vez mais difícil, que

os limites de outrora não existem mais, ou então que estes limites não encontram

mais a mesma eficácia na hora de educar as crianças. O discurso moderno do “é

proibido proibir”, presente nas faixas de maio de 68 da revolução estudantil francesa,

teria sido levado a um limite incompatível com a própria tarefa educacional. Enfim,

porque os limites são necessários à educação das crianças? E porque a autoridade do

pai é aí chamada novamente a se pronunciar? Tais são as questões que pretendemos

desenvolver ao longo deste trabalho.

Falamos em autoridade não sem cautela. Pelo fato de o Brasil ter passado por um

longo período de obscurantismo democrático, durante a ditadura militar de 1964 e da

cessação de todo direito político da população em 1968, falar em autoridade ou em

uma suposta importância disto que chamamos autoridade traz um gosto amargo na

boca do brasileiro. Há 20 anos apenas, o Brasil saía timidamente deste período

sombrio, tendo como principal reivindicação política a liberdade irrestrita de

expressão.

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Mesmo assim, assumimos o risco de discutir a importância da autoridade, a partir da

queixa e da angústia dos pais e professores. Sua autoridade encontra-se fraturada na

modernidade, tal é a situação que encontramos freqüentemente nas escolas e nos

consultórios psicanalíticos. A literatura especializada tem se dedicado cada vez mais

ao assunto, procurando compreender a etiologia desta fratura, suas conseqüências, e

principalmente apontar saídas para a chamada “crise na educação”.

Se por um lado é cada vez maior o número de pais que procuram a ajuda de um

especialista para “aprenderem” como educar seus filhos, por outro é preocupante o

número crescente de professores que pedem sucessivos afastamentos através de

licenças médicas por estafa, depressão, stress, ou uma angústia inominada diante da

impotência. Nosso objetivo é analisar a relação de autoridade presente na família

pelo pai, mas acreditamos que esse debate pode ser útil para a Educação de uma

maneira geral, no que concerne também à escola e à autoridade do professor, mesmo

que não nos atenhamos a isso. Guardadas as devidas diferenças, insistimos na

fundamental função que desempenham família e escola na transformação da criança

em sujeito, através de sua introdução no mundo do Outro, ou ao contrário, da

introdução do Outro no mundo da criança. Uma encontra-se atrelada à outra nesta

função, nesta tarefa de passagem da criança da natureza à cultura, de entrada no

mundo da linguagem, no discurso do Outro. É pela via de uma transmissão – ou de

uma “troca de guardas”1 – que referimos a autoridade do pai ao professor. Para que

os professores possam ter alguma autoridade sobre seus alunos é necessário que ela

seja efetivada pelo Pai.

A psicanálise dedicou-se desde sua origem a uma extensa elaboração teórica sobre a

importância do Pai na constituição subjetiva da criança. Mas nestes tempos da

modernidade, os psicanalistas têm falado em um “declínio do pai”, um “declínio da

imago do pai”, ou mesmo “um declínio da função do pai”, chegando até a propor

novos constructos teóricos que dariam conta desta função de onde o pai foi

historicamente destituído, como por exemplo isto que tem sido chamado em

1 Na expressão de De La Taille, Y. (1999). Autoridade na Escola. In Aquino, J. G. (org), Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, p. 18.

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psicanálise de “função fraterna”2. Assim, faz-se necessário retomarmos a literatura

psicanalítica para entendermos, enfim, qual é – ou era – esta função, ao longo da

evolução da própria psicanálise.

Vamos dividir nosso trabalho em duas partes teóricas principais:

Na primeira parte, pretendemos compreender o conceito de autoridade, com a ajuda

de Hanna Arendt3 e da filosofia política, para entendermos este conceito que é

político em sua origem. Neste caminho histórico-político, vamos abordar o combate

à tirania patriarcal e a crise da autoridade na modernidade, crise que é, segundo

Arendt, generalizada, não se restringindo ao pai.

Na segunda parte, pretendemos entender como a autoridade chega ao pai em sua

função de pivô da constituição subjetiva da criança. Utilizaremos para isso a

psicanálise e sua teorização sobre a função do Pai, passando por Freud e Lacan, para

compreendermos qual é a função do pai para além da tarefa de interditar o filho,

chegando ao pai real.

A partir daí, podemos diferenciar uma coisa da outra. Ou seja, entre a tirania do

patriarcado e a importância da autoridade do pai na constituição subjetiva da criança

há uma grande distância, inclusive epistemológica, que é freqüentemente confundida

na discussão da autoridade. Nosso intento é, então, o de primeiro diferenciar as

considerações sociológicas, políticas e históricas da psicanalítica, ou seja, tentar

separar a função simbólica do pai das considerações imaginárias na qual ele está

historicamente misturado, principalmente por conta do patriarcado. E dentro da

própria psicanálise, diferenciar as funções do pai, para tentarmos responder às

seguintes perguntas: qual é (ou quais são) a tarefa do pai na constituição subjetiva da

criança, e como a autoridade (do pai) está relacionada – ou é necessária – a esta

tarefa.

2 Cf. Kehl, M. R. (2000). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 3 Arendt, H. (1954). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000.

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2) O pai e a autoridade entre a psicanálise, a política e a educação

No início deste trabalho tínhamos como norte a distinção entre autoridade e

autoritarismo. Parecia haver uma confusão entre os dois termos, e as conseqüências

desta indistinção se fariam sentir em vários domínios da sociedade. Assim, a

indiferenciação entre autoridade e autoritarismo, conceitos políticos em sua origem,

estaria presente também na família e na escola, trazendo conseqüências para o

terreno educacional.

A indistinção política entre autoridade e autoritarismo atingiu assim a esfera privada

da família, no que tange à função de autoridade do pai na educação dos filhos. Se

combatemos o autoritarismo das ditaduras políticas – e o autoritarismo do

patriarcado secular –, seria na autoridade do pai, atualmente, que se fariam sentir os

efeitos.

I

Pensamos freqüentemente a autoridade como uma forma legítima de algum tipo de

poder, ordem, algo necessário à convivência das pessoas em sociedade, e o

autoritarismo como uma forma de violência, imposição, tirania. Se a violência do

autoritarismo era – e é – nociva para a educação das crianças – e a duras penas

abandonamos a educação vitoriana das instituições disciplinares coercitivas do

século passado rumo a uma educação democrática e libertária –, a ausência de toda

autoridade e limite pode ser também prejudicial à infância. Na ausência de todo

limite, é a própria constituição psíquica que corre risco.

O conceito de autoridade pertence à esfera da filosofia política, e não da psicanálise.

Mas a partir do momento em que a crise da autoridade na modernidade migra para a

esfera privada – pré-política – da família, a psicanálise é chamada a se pronunciar.

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II

A psicanálise tem sido chamada a responder aos novos sintomas que tomam de

assalto o divã do psicanalista, em face da nova organização político-social moderna.4

Na transformação das formas tradicionais de organização familiar, os lugares

destinados ao pai e à mãe parecem esvaziados – ou deslocados – de suas funções

historicamente determinadas. Assim, à psicanálise coube acolher os pais que

chegavam aos consultórios, depois que o fogo dos novos tempos havia consumido os

fundamentos tradicionais da educação familiar. Mas não era isso mesmo que

queríamos?

Sim, era isso que queríamos, e de uma certa forma este movimento foi inevitável, em

face da Revolução. A própria modernidade exigiu que a família se reorientasse em

direção aos novos tempos, e abandonasse a estrutura opressora da organização

familiar patriarcal. Mas passada a revolução, os pais viram-se sem saber o que fazer:

como aliar a educação na qual eles mesmos haviam sido educados por seus pais com

as novas tendências educacionais, tão plurais e diferentes entre si quanto o número

de disciplinas que se dedicam ao assunto?

Muitos pais começaram a buscar auxílio – ou abrigo – nas instituições escolares,

alguns para saber o que fazer, outros para fazer parceria com os professores. Muitos,

para transferir uma responsabilidade – ou autoridade – da qual eles não se viam mais

investidos, como mostra o bilhete que uma professora recebeu da mãe de um aluno:

“Senhora professora, o Juninho brigou em casa com o irmãozinho. Tome

providências”5.

O problema é que os alicerces das escolas também não estariam mais a salvo das

fagulhas dos novos tempos, e a autoridade na qual o professor viu-se durante tanto

tempo investido para realizar sua tarefa também parecia desaparecer nos ares da

modernidade.

4 Cf. Meira, A.M. (2003). Novos sintomas. Salvador: Ágalma. 5 Segundo o relato da psicóloga Yara Sayão, comunicação pessoal.

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III

A crise que concerne à autoridade e sua indistinção com o autoritarismo tem

determinantes históricos, e atinge o mundo moderno em sua totalidade, não se

restringindo ao Brasil. A partir dos regimes totalitários que infestaram os países da

América do Sul nos anos 60 e 70 – e anos antes na Europa, com Franco, Salazar,

Mussolini, Hitler –, os termos autoridade e autoritarismo foram tornados sinônimos.

A população civil, após a queda das ditaduras nacionais, iniciara um combate de toda

e qualquer forma de violência política, tanto das formas explícitas de violência física

– as prisões políticas e torturas – quanto das formas de dominação ideológica, da

censura, e das formas institucionais de exercício de poder e autoridade. A principal

reivindicação política era a liberdade irrestrita de expressão. No Brasil, tal situação

ocorre após a tomada de poder em 1964 pelos militares, culminando nas “diretas já”

de 1984. Se quiséssemos construir um país democrático, após os 20 anos de

obscurantismo totalitário que o Brasil havia enfrentado, a condição mínima seria a

liberdade de expressão. E essa liberdade, pensávamos, só poderia ser conseguida

quando toda a forma de autoridade fosse banida dos sistemas político e social

democráticos, e por conseqüência, da família e da escola.

Essa redemocratização alcançou as mais variadas instituições sociais a partir da

segunda metade dos anos 80, e a autoridade foi paulatinamente rejeitada no tecido

social, inclusive no campo educacional, como explica De La Taille:

O vento da democratização, que soprou no mundo ocidental no século XX,

também passou pela escola. Deu-se aos alunos voz e espaço para que não se

limitassem a copiar, mas também criassem; para que não somente obedecessem,

mas também tomassem parte nas decisões da gestão da escola.6

No terreno da Educação, novos métodos pedagógicos foram elaborados a fim de

adequar a educação das crianças e adolescentes aos novos tempos de liberdade e

democracia. Os professores deveriam renunciar à posição de poder que

6 De La Taille, Y. (1999), op.cit., p. 27.

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desempenhavam na sala de aula, posição de saber, de mestria, de autoridade, e

deveriam dar voz aos alunos para que estes alternassem com o professor este lugar de

saber. Afinal, os alunos saberiam muitas coisas, e na verdade o professor não estaria

ali para ensinar: professor e aluno estariam ali para aprenderem juntos.

A Psicologia também se alinhou a este discurso moderno de educação. Os psicólogos

ensinavam aos pais que estes não deveriam mais utilizar o “método da palmada”

como método educativo para impor qualquer tipo de limite e autoridade. A violência

deveria ser banida da esfera educacional, e a palmada deveria ser desvinculada de

sua “eficiência educativa” historicamente transmitida. Os pais não deveriam mais

utilizar meios coercitivos para obrigar os filhos a nada que não quisessem fazer.

Dizem então os psicólogos que a imposição deve ser substituída pela persuasão: as

crianças devem ser ouvidas, e os pais devem renunciar aos métodos educativos

tradicionais baseados na autoridade substituindo-os pelas formas modernas baseadas

na conversa, no diálogo, no convencimento, em uma relação não-hierárquica entre

criança e adulto.

IV

É fato incontestável que a experiência de retomada da liberdade e as conseqüentes

conquistas que se seguiram a ela em todos os âmbitos da sociedade trouxeram

avanços significativos, não somente políticos, mas também sociais, refletidos nos

movimentos pela cidadania, pelo respeito entre os homens, pelos direitos humanos, e

sobretudo na luta pelos direitos das minorias. Esta redemocratização política chegou

ao terreno educacional e permitiu uma emancipação das crianças com relação ao seu

estatuto de sujeito. Ouçamos o que as crianças têm a dizer sobre seu desejo, é o que

teríamos aprendido a partir de Freud.

Não colocamos em questão tais avanços, nem somos daqueles que se afligem, como

já disse Lacan uma vez7, com o desmantelamento das formas familiares tradicionais,

7 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux (la famille: le complexe, facteur concret de la psychologie familiale, Les complexes familiaux en pathologie). In Encyclopédie Française, tome VIII, 1938.

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como os partidários nostálgicos da TFP. O que observamos com cautela é a

conseqüência de tais transformações na educação infantil. Esta cautela nos autoriza,

finalmente, a constatar que teríamos ido de um extremo a outro, e no meio do

caminho teríamos esquecido de algumas coisas importantes, que queremos resgatar

aqui.

Há que se fazer uma primeira observação: quase todos os movimentos sociais que se

seguiram no século XX por liberdade e igualdade de direitos, como por exemplo a

luta feminista e as lutas raciais, parecem ter se identificado, em um primeiro

momento, com seus opressores. Por exemplo, a bandeira do movimento feminista da

década de 60 era: “Na verdade, os homens não são melhores que as mulheres, as

mulheres é que são melhores e mais capazes que os homens”. Na ânsia por exigirem

respeito, e cansadas de tantos séculos de violência, acabavam utilizando um

mecanismo semelhante ao do opressor. De um extremo, partiam para o outro.

No caso da luta contra o autoritarismo, parece que o mecanismo se manteve.

Cansados do autoritarismo extremo dos regimes ditatoriais, os movimentos

libertários dos anos 70 e 80 acabaram no extremo oposto: do autoritarismo,

autoridade extrema, ou tirânica, foi-se para a libertinagem, ou liberdade sem limites.

Do autoritarismo à libertinagem esqueceram-se do papel e da função da autoridade.

Ao banir o autoritarismo, baniram também, indiscriminadamente, toda e qualquer

autoridade. Usando uma expressão popular, “jogaram o filho com a água do banho”.

V

Hoje viveríamos as conseqüências desta rejeição no campo educacional – ou “entre a

jaula de aula e o picadeiro de aula”, segundo expressão de Morais8 –, traduzida por

uma enorme dificuldade de pais e educadores em colocar limites para seus filhos e

alunos. É comum nos depararmos com psicanalistas de crianças que ouvem a

angústia dos pais traduzida por uma espécie de “tirania das crianças”. Este seria o

tempo da modernidade, um tempo em que a ditadura do pai teria sido substituída por

8 Morais, R. (1988). Entre a jaula de aula e o picadeiro de aula. In Morais, R. (Org.), Sala de aula: que espaço é esse? Campinas: Papirus.

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um não-saber generalizado, que mostra como sintoma uma pretensa “ditadura dos

filhos”.

Debieux9 nos ajuda a discernir os três pontos fundamentais que orientam a

investigação do drama da parentalidade moderna: primeiro, um não-saber

generalizado com relação a como educar os filhos; segundo, o questionamento

quanto à eficácia da educação autoritária tradicional; e terceiro, a diferença entre

autoridade e autoritarismo. Ela diz:

Se os dispositivos tradicionais foram se tornando insuficientes no trato educativo,

como colocar limites, se é exatamente essa posição autoritária dos pais que vem

sendo questionada? O que colocar no lugar da força e da imposição, para obter os

mesmos resultados educativos com esses filhos?10

Com um pavor generalizado de toda e qualquer imposição tirânica ou autoritária, a

sociedade moderna tem abandonado progressivamente todo e qualquer limite – ou

autoridade – no trato educativo com as crianças. Assim, muitos pais queixam-se de

que os filhos respeitam cada vez menos sua autoridade, mas eles também não

conseguem mais – por terem medo ou por não saberem como – impor limites aos

filhos. Muitas vezes, eles não sabem o que transmitir aos filhos, o que é certo e o que

é errado, o que ensinar, dizer, pedir, exigir. Pelo medo de “traumatizar” os filhos por

(ab)usar de autoridade, eles preferem se eximir da tarefa de colocar limites,

escorando-se cada vez mais na autoridade do professor ou do psicólogo para que

estes lhes expliquem a maneira “correta” de educar. Ou seja, na esteira da indistinção

dos termos autoridade e autoritarismo, encontramos também os agentes e suas

funções misturados.

9 Debieux Rosa, M. (2000). O não-dito familiar e a transmissão da história. II Volume dos Anais do Congresso Internacional de Psicanálise – Adolescência e Modernidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 10 idem.

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VI

Uma das conseqüências da luta contra a autoridade é que ela não teria sido banida,

finalmente, como queriam os psicólogos e pedagogos “modernos” dos anos 80.

Devemos considerar que um outro destino coube à autoridade nas sociedades

modernas. Saindo da esfera familiar dos pais ela teria se deslocado para o campo dos

“especialistas”, dos médicos, dos psicólogos, dos psicanalistas, dos assistentes

sociais, dos advogados. Julien explica, assim, que os lugares e funções exercidos

pelos pais com relação aos seus filhos – o lugar da parentalidade –, tanto no que se

refere ao saber sobre a educação quanto ao saber sobre o corpo, teria se deslocado da

família para o Estado:

A modernidade se define por uma nova clivagem entre o privado e o público, o

privado tornando-se o lugar da conjugalidade, e o público este da parentalidade.11

Se no século XIX o “ninho” constituído pela mãe era determinante para o bem estar

dos filhos, para seu “bom desenvolvimento”, no século XX esta relação passa a ser

considerada nociva pelo socius. Assim explica Julien:

Em nome do bem estar da criança vem tomar lugar, sob formas diversas, um

terceiro social: o educador, o pediatra, o psicólogo, o assistente social, o juiz para

crianças, o juiz para assuntos familiares (...) À diferença da conjugalidade, cada

vez mais discreta, a parentalidade passa a depender cada vez mais abertamente do

social pelo intermediário dos especialistas.12

Este terceiro social vem hoje em dia interferir cada vez mais no processo da

transmissão. São os especialistas esclarecendo os pais sobre o que devem ou não

fazer, sobre suas competências e julgamentos:

11 Julien, P. (2000). Tu quitteras ton père et ta mère. Paris: Aubier, p. 17. 12 idem, p. 24.

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Pouco a pouco, o saber do especialista se institui de um poder sobre a criança de

tal maneira que a lei do bem estar se transmite à geração seguinte não somente

pela família, mas pelo social.13

Como veremos, o fato de a esfera privada ter sido invadida pelo social de maneira

cada vez mais explícita traz conseqüências para a educação das crianças. Se para

Julien esta intromissão do social pode ser entendida através do “saber especialista”,

Arendt a analisa como um deslocamento da crise da autoridade do mundo político ao

mundo privado da educação. Esta crise seria política em sua origem, e teria sido

desencadeada pelo declínio da autoridade e da tradição no mundo moderno14.

VII

A crise política que acometeu o mundo moderno, com o declínio da tradição e da

autoridade, atingiu diversas áreas do tecido social, atingindo de maneira significativa

a educação. Esta crise não estaria confinada às fronteiras nacionais, mas atinge o

mundo ocidental de uma maneira generalizada.

A migração da crise política da autoridade à esfera da Educação leva a distorções da

própria tarefa educacional. Diz Arendt que a Educação moderna acabou por

confundir os três níveis da relação humana, sejam eles a persuasão, a autoridade e o

autoritarismo, acarretando como problema principal um “equívoco da igualdade”15.

Camuflada em uma ideologia aparentemente democrática, uma nova dominação

ganha ares de igualdade. Não mais uma oligarquia constituída pelos privilégios do

nascimento, como no Antigo Regime monárquico, a Educação ganha como sintoma

da crise política da autoridade novos métodos destinados a apagar as diferenças entre

os jovens e os velhos, entre crianças e adultos, entre alunos e professores. Não são

poucos os métodos educativos que surgiram nos últimos 20 anos baseados nesta

13 ibidem, p.41. 14 Arendt, H. (1954), op.cit., p.246. 15 idem, p.229.

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suposta igualdade entre pai e filho e entre aluno e professor, às custas da autoridade

do mestre, seja ele o pai ou o professor.

Veremos mais à frente que este movimento tem em seus determinantes históricos o

próprio nascimento da modernidade, como se repetíssemos incessantemente o gesto

que dera origem à época moderna – “ao rei a guilhotina” –, e que encontra seus

efeitos para além do mundo político.

Enfim, o que está em jogo nessa ideologia da igualdade é uma tentativa de

redefinição do papel dos adultos no trato com as crianças. Sendo o mundo infantil

diferente do mundo adulto, com suas leis e universo próprios, talvez devêssemos

permitir às crianças que governassem seu próprio mundo, cabendo aos adultos

somente auxiliá-las neste governo.

Esta visão da infância é uma produção histórica que teve início em meados do século

XVIII, com o nascimento da família moderna burguesa, como mostra Volnovich16.

Se a criança é diferente do adulto, devemos conservar esta diferença para

conservarmos a própria infância.

Muitas ideologias igualitaristas saem do universo político e invadem o terreno

pedagógico, querendo que se anule o lugar de mediação do adulto no mundo das

crianças, por entender que a tirania e o autoritarismo estariam presentes nos métodos

pedagógicos que se baseiam em uma assimetria do saber. Estas experiências

pedagógicas modernas, por seu discurso revolucionário e sedutor, acabam

dificultando a análise da situação educacional, ao identificarem a posição de

autoridade a uma posição de tirania.

VIII

Bem, o que aconteceria se tirássemos os adultos do lugar de mediação do mundo das

crianças? Talvez as crianças, enfim, pudessem se apropriar de toda sua infância,

16 Volnovich, J. (1993). A psicose na criança. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p.20.

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longe do controle do adulto; talvez elas pudessem relacionar-se livremente, sem

mediação; talvez elas pudessem construir seu mundo de sua própria maneira, longe

de uma repressão estranha às suas necessidades, vontades, desejos. Talvez elas

pudessem, assim, assistir mais à televisão, em vez de irem à escola; talvez pudessem

comer chocolates em vez de verduras; talvez pudessem bater no irmãozinho mais

novo sem serem tão importunadas.

Contudo, tal situação não é sem risco. Se deixássemos as crianças à própria sorte,

elas ficariam expostas a uma tirania – ou a um gozo, diria a psicanálise – sem

mediação: a tirania das próprias crianças. Elas ficariam assim submetidas a uma

tirania muito mais feroz, a tirania do mais forte:

Ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim

sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a

tirania da maioria.17

O resultado é que as crianças teriam sido, deste modo, banidas do mundo dos

adultos. Elas teriam sido jogadas a si mesmas, submetidas à tirania de seu próprio

corpo, de seu próprio gozo, de seu grupo de iguais, contra o qual elas não podem

argumentar por serem crianças, nem tampouco se abrigar no mundo dos adultos por

terem sido banidas dele.

De um extremo – novamente – teríamos partido ao outro. Se o equívoco da educação

tradicional teria sido o de aprisionar a criança na sombra do adulto, por ser

considerada um “adulto em miniatura”, hoje em dia teríamos finalmente libertado as

crianças do jugo e da tirania dos adultos, da alienação ao nosso desejo, possibilitando

a elas falar sobre seu próprio desejo. Mas ao mesmo tempo em que as libertamos dos

padrões adultos, ignoramos as condições necessárias ao desenvolvimento e

crescimento vitais à infância. Quase como se tivéssemos dito, em certo momento:

“Tudo bem, querem ser crianças? Então, virem-se!”

17 Arendt, H. (1954), op.cit., p.230.

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Para Arendt, essa ideologia da igualdade com a qual as crianças teriam sido

“contempladas” teria sido um engodo, um processo de “abandono e traição”18, no

qual elas teriam servido como bode expiatório da indiferenciação consumada aos

poucos na modernidade entre a esfera privada e a pública. As crianças, assim, teriam

servido para acobertar uma outra “emancipação”, agora dos adultos em relação à sua

responsabilidade coletiva com o mundo.

IX

O mundo moderno, após o terror das ditaduras nacionais, não confia mais a ninguém

o ato de assumir a responsabilidade por todas as coisas ou pessoas, em nome da

coletividade. Exige-se de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo.

Contudo, se levado ao extremo, isso significa também que as exigências do mundo

acabam sendo recusadas, ninguém quer mais assumir a responsabilidade pelos

outros. Toda a responsabilidade do mundo é hoje rejeitada, seja a de receber ordens,

seja a de dar ordens, pelo terror moderno de imposição ou violência.

O que acontece quando assumimos tal postura diante das crianças? Subvertemos o

papel educacional de guiar os recém-chegados em um mundo pré-estabelecido no

qual nasceram e chegaram como estrangeiros. Diz Arendt:

Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade.

(...) Face à criança, é como se ele [o adulto] fosse um representante de todos os

habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: Isso é o nosso

mundo.19

No atravessamento da esfera privada, a autoridade foi recusada pelos adultos em face

das crianças, sob uma aparência de “liberdade”, ou o que é pior, de “igualdade”. Isso

18 idem, p.238. 19 ibidem, p.239.

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equivale, no dizer de Arendt, a uma recusa dos adultos em assumir a

responsabilidade pelo mundo no qual trouxeram as crianças.20

A psicanálise diria algo muito semelhante, sob outros termos. Em vez de falar em

autoridade ou responsabilidade dos adultos em face das crianças, termos políticos,

ela fala em “dívida simbólica”. Diz Corso:

Indiferenciar-se com as crianças, ausentando-se do trabalho de lhes traçar um

ideal, nem que seja para que elas o contrariem, negando-lhes o direito ao ato

educativo que lhes delimita o tempo, o espaço e as possibilidades, deixando de

lhes traduzir o universo de acordo com o código subjetivo dos pais em questão, é

o mesmo que não pagar a ‘dívida’ e banir as crianças da cidade.21

Mas antes de enveredarmos pela psicanálise, convém compreendermos como a

autoridade sai do campo político e chega à esfera privada da família, nessa

“responsabilidade pelas crianças” da qual fala Arendt.

20 ibidem, p.240. 21 Corso, D.L. (1993). Parentalidade envergonhada. In Fleig, M. (Org.), Psicanálise e sintoma social. São Leopoldo: Unisinos, p.172.

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PARTE I

Autoridade e Política

1) A autoridade como problema político

A autoridade é um conceito pertencente à esfera política, e a crise da autoridade pela

qual vive o mundo moderno não chega à esfera privada da família senão por um

desvio. Para compreender o que vem a ser a autoridade do pai, qual a sua função,

qual seu papel na educação da criança, devemos acompanhar o caminho que a

autoridade teria feito, saindo da esfera política da administração pública e indo à

esfera privada da família e do pai.

A crise da autoridade tem acompanhado o mundo moderno desde seu começo, sendo

essa crise política em sua origem. Arendt chega a afirmar que o correto não seria

perguntarmos “o que é autoridade?”, mas sim “o que foi a autoridade?”, pois ela teria

desaparecido do mundo moderno. 22

Tínhamos desde o início a hipótese de que a luta contra os movimentos totalitários

dos anos 60 e 70 teria banido toda e qualquer autoridade. Ou seja, que a luta contra o

autoritarismo havia combatido, indiscriminadamente, também a autoridade.

Enfim, a partir de Arendt, descobrimos que não foi o combate ao autoritarismo que

fez desaparecer do mundo moderno a autoridade, como pensávamos. O surgimento

dos movimentos totalitários no século XX teria ocorrido em um momento em que a

autoridade já não era mais reconhecida, tirando proveito de uma atmosfera política e

social sem autoridade:

22 Arendt, H. (1954), op.cit., p.127.

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O ascenso de movimentos políticos com o intuito de substituir o sistema

partidário, e o desenvolvimento de uma nova forma totalitária de governo, tiveram

lugar contra o pano de fundo de uma quebra mais ou menos geral e mais ou

menos dramática de todas as autoridades tradicionais.23

Uma das conseqüências desta quebra generalizada da autoridade na modernidade foi

a substituição da autoridade pela violência e tirania. Ao contrário do que

pensávamos, a violência dos movimentos totalitários surge quando desaparece da

vida pública toda e qualquer autoridade, quando a tradição não é mais suficiente para

dar sentido nem à ação nem à fili-ação dos homens.

Enfim, o mundo moderno assiste não só a um declínio da autoridade, mas também da

tradição, como se autoridade e tradição fossem dependentes uma da outra. Enfim,

para que serve a tradição?

A tradição pode ser entendida de maneira semelhante à transmissão24 – conceito caro

à psicanálise –, algo como um testamento, que lega posses do passado ao futuro,

como um fio condutor que liga cada nova geração a um mundo onde acaba de

chegar, e do qual desconhece25. Kupfer explica a partir da psicanálise que a

transmissão possibilita o estabelecimento de “um antes e um depois”,

O que desenha [para a criança] um lugar, uma possibilidade, que é a do

testemunho. Se ele [o pai] pode testemunhar o que houve antes do advento de uma

criança ou de um sujeito, ele poderá dizer, como fez o poeta: meninos, eu vi!26

O que aconteceria na modernidade é que “nossa herança nos teria sido deixada sem

nenhum testamento”, nas palavras do poeta René Char27. Sem tradição, que selecione

23 idem, p.128. 24 Segundo Arendt, H. (1954), op.cit., p.164. 25 ibidem, p.31. 26 Kupfer, M.C.M. (2001). A transmissão do pai e suas consequências para a psicanálise de crianças. Conferência pronunciada no Colloque franco-brésilien “Liens fraternels et conjugaux: fraternité ou communautarisme?”, ocorrido em Paris nos dias 5 e 6 de outubro de 2001. Disponível em <www.usp.br/ip/lvida/>

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e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual

seu valor, o homem viveria “sem passado nem futuro”, em uma “lacuna temporal”28,

preocupado somente com a mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que

nele vivem. Na medida em que se rompeu o fio da tradição no mundo moderno, o

homem viu-se em uma esteira de desamparo e confusão, pois a tradição era o fio

condutor que ligava o passado ao presente.

O que aconteceu no mundo moderno? A partir do momento em que a modernidade

acaba com a tradição secular que sustentava a autoridade, por caminhos que veremos

ao longo deste trabalho – ou ao contrário, a partir do momento em que o combate da

autoridade mina os fundamentos da tradição –, a filiação deixa de ser o único meio

de transmissão de um “saber”. A palavra dos antepassados não teria mais valor para

sustentar a ação dos homens, uma palavra que teria sustentado, durante os séculos

passados, o universo cultural que ligava os homens em sua compreensão do mundo e

em sua própria experiência.

Na modernidade, não haveria uma tradição, mas várias tradições ao mesmo tempo,

sendo equivalentes umas às outras. Sendo elas equivalentes, caberia a nós,

simplesmente, escolher aquela que nos seria mais adequada, e comprá-la no shopping

center mais próximo. Budismo, catolicismo, construtivismo, inteligência emocional,

floral, tudo daria no mesmo, e poderíamos mudar de uma a outra quando

quiséssemos, conforme nossa necessidade.

Ou seja, se cada um de nós pode escolher a tradição que melhor nos convém, no

limite isso significa dizer que não há tradição alguma. O problema deste tipo de

equivalência é que as tradições não são amarradas de uma maneira equivalente à

filiação, elas não têm o mesmo estofo simbólico quando a pergunta que não calar

volta sempre: “enfim, como gozar?”

27 Char, R. (1946), in Arendt, H., op.cit., p.28. 28 Arendt, H. (1954), op.cit., p.39.

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Arendt diz que as formas modernas de tradição teriam uma “propriedade protéica”:

ou seja, elas seriam facilmente modeláveis, intercambiáveis, em face de nossas

sempre novas necessidades. Ela explica:

A autoridade, assentando-se sobre um alicerce no passado como sua inabalada

pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os seres

humanos necessitam precisamente por serem mortais (...). Sua perda é equivalente

à perda do fundamento do mundo que, com efeito, começou desde então a mudar,

a se modificar e transformar com rapidez sempre crescente de uma forma para

outra, como se estivéssemos vivendo e lutando com um universo protéico, onde

todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer outra

coisa.29

A conclusão de Arendt, enfim, é que estaríamos na modernidade em um retrocesso

tanto da liberdade como da autoridade.30 Mas enfim, o que é autoridade?

2) A autoridade entre a persuasão e o autoritarismo

Quando olhamos em dicionários comuns, os termos autoridade e autoritarismo

trazem semelhanças e diferenças entre si. Ficamos com a impressão de que não é tão

simples como gostaríamos a diferenciação dos termos, pois as definições de um e

outro foram se transformando, acompanhando as mudanças pelas quais passou a

própria língua, os usos e costumes, ao longo do tempo.

Inicialmente, buscávamos definições simples: “poder legítimo” para designar

autoridade, e “poder tirânico” para designar o autoritarismo. No dicionário, ao lado

destas definições simples, encontramos outras que misturam os termos, valendo tanto

para um quanto para o outro. Ao lado de “opressão, tirania, submissão cega”, termos

utilizados na definição do autoritarismo, encontramos também: “autoritário diz

29 Arendt, H. (1954), op.cit., p.131.

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respeito à autoridade”. Mais especificamente, autoritário seria o adjetivo de

autoridade: aquele que tem autoridade é autoritário. E ao lado das definições sobre

autoridade, encontramos também “arbítrio, dominação, força, jugo”.

Buscando a etimologia31 desses termos, descobrimos que inicialmente autoridade e

autoritarismo não estavam vinculados à tirania, à força, nem mesmo ao poder. Em

um segundo momento eles diferenciaram-se, e a autoridade passou a designar o

poder legítimo, e o autoritarismo, o poder tirânico. Em um terceiro momento,

principalmente após a conquista democrática pós-ditadura que se seguiu nos países

ocidentais na segunda metade do século XX, os dois termos foram novamente

igualados. Agora, falarmos em autoridade faz gelar a espinha de qualquer psicólogo

ou educador “pós-moderno” – assim como de muitos pais –, pelo terror generalizado

de toda e qualquer possibilidade de violência, imposição, uso da força, ou

cerceamento às liberdades individuais das crianças. Se inicialmente nenhum dos dois

termos referia-se ao uso da força e da tirania, agora ambos serviriam para defini-las.

Do dicionário comum passamos ao “Dicionário de Política” de Norberto Bobbio32,

para que possamos estreitar nossa compreensão sobre a autoridade. Contudo, até lá o

autor explica que a definição do termo é complexa e intrincada, pois ele passou a ser

interpretado de vários modos e empregado com significados diversos. Além disso,

ele explica que é própria da linguagem política a ambigüidade, principalmente pelo

fato de muitos termos terem passado por uma série de mutações históricas.

Para que possamos nos ajudar na definição do conceito de autoridade, e nos guiar

através do caminho histórico que faremos em sua gênese, convém entendermos

conjuntamente os três termos que estarão presentes em nossa discussão, e que de

alguma maneira iremos confrontar. O conceito de autoridade é político em sua base,

bem como o de persuasão e autoritarismo. Por isso, optamos por compreender como

eles são definidos no terreno da política, para que possamos transportá-lo à nossa

discussão dentro da psicanálise.

30 idem, p.138. 31 Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001). Rio de Janeiro: Objetiva, p.343, para aug-, étimo remoto da palavra auctoritas, que dá origem a autoridade e autoritarismo. 32 Bobbio, N. (2002). Dicionário de Política. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado.

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A persuasão encontra-se em um dos extremos da relação política. Ela se baseia no

convencimento de alguém mediante argumentos convincentes, inteligíveis,

aceitáveis. O cientista político Mário Stoppino explica que “na relação de persuasão

R adota o comportamento sugerido por C porque aceita os argumentos apresentados

por ele”33. A persuasão pressupõe uma relação de igualdade entre os agentes, em

uma não-hierarquia.

Mesmo que na persuasão não haja autoridade, há uma relação de poder, ainda que

entre iguais. Como elaboração racional, que parte de um emissor a um receptor, a

persuasão se estabelece através de valores nos quais tramita uma mensagem, e tem

como objetivos o entendimento, a aceitação, o reconhecimento, a concordância, o

convencimento do outro. A relação de poder está presente na persuasão tanto no caso

de quem fala buscando que o outro aceite suas idéias, quanto no caso inverso, em que

o emissor credita ao receptor uma posição privilegiada, um lugar de poder, como

aquele que pode reconhecer sua mensagem.

A autoridade se opõe à relação de poder baseada na persuasão, como explica

Stoppino, pois ela supõe obediência independentemente do motivo ou

convencimento: “R adota o comportamento indicado por C independentemente de

qualquer razão, sem que este necessite usar nenhum argumento ou justificação”34.

Uma vez que a autoridade é conferida a alguém ou a alguma lei, obedecemos. A

relação de poder na autoridade é baseada na assimetria entre os agentes, e estabelece

uma relação necessariamente hierárquica. Assim, a relação de obediência é a base da

autoridade, independentemente do conteúdo da ordem, do argumento, do

convencimento.

A autoridade pode estar fundamentada na legitimidade do poder ou na violência

(como veremos em seguida com o autoritarismo). A autoridade como poder legítimo

pressupõe uma legitimidade com relação à fonte do poder. Inclusive, um dos

sinônimos para o verbete autoridade é legitimidade. A autoridade legítima pode ter

relação com uma competência, sob a forma de uma superioridade do perito sobre o

33 Stoppino, M. (2002). Autoridade. In Bobbio, N. (Org.), Dicionário de política, op.cit., p.89. 34 idem, p.89.

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leigo, mas não necessita da relação com a competência para a manutenção da

obediência. Ou seja, se a competência é comprovada no passado, a autoridade pode

ser exercida no presente.

O autoritarismo – ou a autoridade como poder tirânico, ou ilegítimo – se define

basicamente por uma centralização do poder nas mãos de uma pessoa ou grupo,

abolindo ou colocando em uma posição secundária o consenso, a oposição, a

autonomia. Ele coloca em destaque um regime hierárquico de poder, como a

autoridade, e se vale também da obediência para a manutenção do poder. Mas como

explica Stoppino35, o autoritarismo seria uma forma degenerativa da autoridade, pois

a imposição da obediência, através de meios coercitivos, visa destruir as capacidades

políticas do homem, assim como os grupos e instituições que formam o tecido de

suas relações privadas. Pode-se dizer, então, que a diferença entre autoridade e

autoritarismo, de maneira esquemática, é que enquanto o primeiro vale-se da

obediência para a organização social, o segundo utiliza o medo para o controle

social.

Utilizaremos neste trabalho os termos “autoritarismo”, “autoridade como poder

tirânico” e “totalitarismo” como sinônimos, mesmo que não definam exatamente a

mesma coisa. Arendt, por exemplo, não fala em autoritarismo para designar o poder

tirânico, utilizando “autoridade como poder tirânico”, ou “totalitarismo”. Ela utiliza o

termo autoritarismo para designar a autoridade como poder legítimo:

Todos aqueles que chamam as modernas ditaduras de ‘autoritárias’, ou

confundem o totalitarismo com uma estrutura autoritária, equacionam

implicitamente violência com autoridade, e isso inclui os conservadores que

explicam o ascenso das ditaduras em nosso século pela necessidade de encontrar

um sucedâneo para a autoridade.36

35 Stoppino, M. (2002). Autoritarismo. In Bobbio, N., (2002), Dicionário de política, op.cit., p.94. 36 Arendt, H. (1954), op.cit., p.141.

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Como explica Stoppino37, a fronteira entre os termos autoritarismo e totalitarismo

são pouco claras, sendo que o termo totalitarismo é usado com maior freqüência para

designar um sistema de governo, e o autoritarismo para designar uma disposição

psicológica com relação ao poder. Optamos por utilizar tal definição ao longo deste

trabalho, preferindo ao termo totalitarismo (utilizado por Arendt), que guarda mais

uma relação com um regime de governo. Também, porque como o próprio dicionário

indica, o termo autoritarismo é mais comumente utilizado para definir a autoridade

tirânica do que a legítima, nos dias de hoje.

Então, as três formas de relação política entre os homens, a persuasão, a autoridade e

o autoritarismo são consideradas como relações de poder. A autoridade, de especial

interesse para nós, ficaria entre a persuasão e o autoritarismo, pois não utiliza nem o

convencimento através de argumentos, nem a coerção pela força, violência ou medo.

Na relação de autoridade, ambos os agentes estão submetidos a uma hierarquia ou

estrutura comum, e a fonte de autoridade, que legitima o poder, é exterior a ambos os

agentes, como Deus, o Estado, um antepassado, ou um código de leis.38

Podemos esquematizá-las assim:

- Persuasão: relação entre iguais; pressupõe convencimento, e depende do

conteúdo dos argumentos.

- Autoridade: relação assimétrica; pressupõe obediência com legitimidade; visa

a organização social.

- Autoritarismo: relação assimétrica; pressupõe obediência sem legitimidade,

ou seja, obediência pelo medo; visa o controle social.

37 Stoppino, M. (2002). Autoritarismo. In Bobbio, N. (2002), Dicionário de política, op.cit., p.94. 38 Arendt, H. (1954), op.cit., p.150.

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3) O nascimento da autoridade39 I

Na Grécia Antiga, não existia uma palavra equivalente à palavra romana auctoritas.

Não somente o conceito, mas também a função da autoridade era inexistente na

cultura grega. A Filosofia Política grega deriva de dois modos de governo diferentes,

um a partir do âmbito político-público, e o outro da esfera da administração

doméstica, ou privada. Mas nem a administração pública nem a privada utilizavam a

autoridade.

O mundo público grego, a polis, era composto de muitos governantes, não existindo

a autoridade no governo da cidade. Todos os homens (fora os escravos e

estrangeiros) eram responsáveis pela condução dos assuntos da cidade. No modo de

pensamento grego, “uma polis pertencente a um [só] homem não é uma polis”, dizia

Sófocles40.

A polis era regida pelo princípio de igualdade entre os homens, não existindo

diferença entre governantes e governados. A democracia grega era baseada na

persuasão, sendo a razão entre os homens suficiente para a administração da cidade.

Ela se dava através do argumento e do convencimento, donde os célebres debates em

praça pública, espaço político por excelência, em que eram travadas as discussões

sobre o destino da cidade.

Na outra esfera da vida grega, a esfera privada, também não existia o princípio da

autoridade. A vida familiar grega era comandada por um chefe de família despótico,

investido de poder para exercer coerção sobre os membros de sua família e escravos.

O déspota familiar era considerado inapto para a vida política, pois produziria uma

relação de dominação contrária à lógica da polis.

39 Utilizaremos a análise feita por Arendt em “Entre o passado e o futuro” (1954), op.cit., para a gênese histórica da autoridade. 40 In Arendt, H. (1954), op.,cit., p.143.

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É interessante notar tão grande discrepância dentro do mundo grego, no que tange à

administração dos assuntos públicos e privados. A relação entre os homens na esfera

pública era a base da democracia grega, relação de igualdade entre os homens. O

mundo público era o mundo político por excelência, a essência mesma da liberdade.

Mas isto não impedia que a violência e a dominação fizessem parte do mundo grego,

regendo o universo de administração privada do mundo familiar, mundo pré-político.

Assim, o mundo grego estava dividido entre a persuasão – mundo público – e a

tirania – mundo privado.

O conceito de autoridade surge no pensamento grego através de Platão, que busca

uma alternativa para tratar os assuntos domésticos pela persuasão e os assuntos

estrangeiros pela força. A autoridade seria este caminho, pois ela se encontraria entre

um e outro, entre a coerção pela força e a persuasão através da razão, entre a tirania e

a liberdade não-hierárquica. Por que Platão buscava uma alternativa para o governo

público? Porque para Platão a persuasão seria insuficiente para guiar os homens, para

guiar as massas, pois seu poder de ação seria restrito. Através da razão, ela atingiria

somente uma minoria.

Vale lembrar que estamos discutindo a esfera pública do mundo grego, para a qual

governar os homens, como experiência política, era um problema de ação que dizia

respeito a iluminar os homens em direção à verdade, para que fossem encontradas as

melhores soluções, conjuntamente, para a administração da cidade. Como para Platão

a persuasão não seria suficiente, e a violência seria um meio que destruiria a vida

política, ele busca na construção de leis a existência de algo que fizesse os homens

obedecerem sem precisar de violência.

Assim, a autoridade surge no mundo grego sob a forma das leis morais ou éticas.

Elas são propostas como um substituto à violência e à persuasão, por basear-se em

um princípio que, embora coercitivo, age sob a forma de uma coerção legítima.

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verbo augere: “aumentar; o que faz crescer; proteger; fértil; fecundo” 44. A partir

destas definições, explica Arendt que a palavra auctoritas estaria relacionada à

fundação e à expansão de Roma, servindo para designar a fundação de novas

comunidades e a preservação das comunidades já fundadas.45

A autoridade, então desvinculada do poder, era exercida por um conselho de anciãos,

que não precisava nem de coerção nem de força para ser ouvido ou obedecido. A

autoridade era imputada aos mais velhos não pela sabedoria ou experiência

acumuladas, mas porque o homem velho teria crescido mais próximo dos

antepassados fundadores. Desse modo, tinha autoridade quem, por descendência,

estaria mais próximo daqueles que haviam lançado as fundações de Roma. E não

podemos deixar de lembrar de Kupfer quando ela fala sobre o pai: aquele que pode

testemunhar o que houve antes do nascimento da criança, dizendo: meninos, eu vi.46

Fazia parte da cultura romana a necessidade da existência de pais fundadores, através

da mítica fundação da cidade, assim como a necessidade da manutenção desta

fundação/filiação através de seus substitutos, os anciãos. A autoridade desempenhava

esse papel através da tradição, enquanto testemunho vivo dos antepassados da

fundação e seu legado aos mais novos pelos mais velhos da cidade.

Se o mundo da administração familiar, tanto grega quanto romana, repousava sobre a

dominação do pater, o chefe de família despótico, o mundo político, ao contrário,

diferenciava-se na cultura grega e romana. No mundo grego, a esfera política era

baseada na noção de igualdade entre os homens livres, e o governo através da

persuasão era a pedra angular da democracia grega. Desse modo, não existindo uma

hierarquia entre os homens livres, tampouco existia o conceito de autoridade. O

mundo político romano, por sua vez, era baseado na autoridade, a partir da fundação

mítica da cidade e da perpetuação desta fundação/filiação aos mais novos, aos

“recém-chegados”. São os mais velhos que, por estarem mais próximos da Fundação

da cidade, tinham autoridade sobre os mais novos, estando desta forma a autoridade

44 Dicionário Houaiss (2001), op.cit., p.343. 45 Arendt, H. (1954), op.cit., p.163. 46 Kupfer, M.C.M. (2001), op.cit., p.6.

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– o auctoritas – relacionada à transmissão da fundação e da filiação, e não ao uso da

força.

III

Seguindo pela nossa viagem, a autoridade é perpetuada por uma instituição romana

das mais poderosas na história do mundo ocidental: a igreja católica. Através dela

torna-se clara a separação entre autoridade e poder, imprimindo uma transformação

ao conceito de autoridade, tal como o conhecemos em sua origem romana.

A igreja adaptou-se ao pensamento romano em matéria de política. Ela fez da morte

e ressurreição de Cristo uma nova versão da Fundação, propiciando aos romanos

algo que o Império, já em decadência, não podia mais proporcionar: um sentido de

cidadania. Assim, graças à Igreja, o espírito romano pôde sobreviver à fragmentação

do Império. A fundação da cidade de Roma se repete na fundação da igreja católica,

e retoma os pilares que sustentavam a unidade do Império, na santíssima trindade

romana: a religião, a tradição e a autoridade.

Ao atirar-se em sua carreira política a partir do século V, a Igreja adota a distinção

romana entre autoridade e poder, encarregando-se da autoridade e deixando o poder

– que já não estava mais nas mãos do povo – nas mãos monopolizadoras da família

imperial. Assim, a esfera política, definitivamente cindida entre autoridade e poder,

fazia com que a ordem dos governantes fosse investida de poder, mas destituída de

autoridade. Ao final do século V, o Papa Gelásio I escrevia então ao Imperador

Anastácio I, como resumo da manutenção da ordem pública:

Duas são as coisas pelas quais esse mundo é principalmente governado: a

autoridade sagrada dos Papas e o poder real.47

47 In Arendt, H. (1954), op.cit., p.169.

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A igreja católica amalgamaria ainda a tradição romana e a grega, fundindo o conceito

político de autoridade, vinculado a uma fundação, à noção grega de medidas, leis e

regras, com o intuito de criar um conjunto de premissas morais para todo

comportamento humano. Dessa maneira, a Igreja foi buscar entre os mitos e crenças

gregos aqueles sobre os quais ela iria erigir seus dogmas. Dentre eles, o principal

para o controle político seria a idéia de “vida após a morte”, vinculada a recompensas

ou castigos, além da própria divisão entre céu, inferno e purgatório, cuja inspiração

platônica serviria às descrições de Dante48 e aos propósitos da Igreja. Desse modo, a

própria existência de Deus teria uma importância política, “um padrão pelo qual se

podem fundar cidades e decretar regras de comportamento”, segundo explica

Arendt49.

Se de um lado a Igreja se depara também com a aporia encontrada por Platão no

andamento do mundo político, “ensinar a poucos como governar sobre muitos”, ela

resolve o problema de um modo diferente. Se Platão havia se deparado com um

limite da persuasão para o convencimento das massas, chegando à concepção das

Leis, a Igreja desenvolve o potencial da “crença”, ao lado da qual estariam

condicionados padrões morais e regras de conduta, com o intuito de melhor governar

as massas. Ou seja, para o mesmo problema, duas soluções: de um lado o

estabelecimento de leis; de outro, de crenças, para que o governo das massas fosse

efetivado em face dos limites da persuasão.

A apropriação pela Igreja da autoridade teve um preço político a ser pago. Na

diluição do conceito romano de autoridade, um elemento de violência se insinua de

maneira crescente no estabelecimento da nova autoridade, violência inexistente no

auctoritas original. Através de um minucioso catálogo de castigos futuros,

sofrimentos, culpas, destinados aos pecadores que ousassem questionar a autoridade

sagrada conferida ao Papa, a violência que invade o terreno da autoridade é

finalmente muito mais eficaz que qualquer violência concreta, infligida na realidade,

como mecanismo de controle. Esta violência invisível, vinculada à autoridade da

48 Arendt, H. (1954), op.cit., p.173. 49 idem, p.175.

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Igreja sob a forma de coerção através do medo, visando o controle social, afastava

definitivamente a autoridade do conceito romano original.

IV

A modernidade nascente seria este momento em que os homens se afastam

progressivamente do rei, da igreja, e também da autoridade. A Revolução Francesa

de 1789 é tida como o nascimento da modernidade. Ela rompe com o Antigo Regime

absolutista, com o poder hereditário dos monarcas, e varre com a autoridade sagrada

e intocável da Igreja do território francês, na consagrada trindade laica50 “Liberdade,

Igualdade e Fraternidade”. O movimento de tomada da Bastilha marca a

reivindicação da participação do povo na polis pela igualdade de direitos políticos,

econômicos e sociais, independentemente do “bom nascimento”, principais

exigências da Revolução contra o poder divino do rei. Em 1792 é declarada a

República, e em 1793 o rei Luis XVI é decapitado.

O poder de coerção da Igreja perde sua importância pública e política. Surge o temor

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Se a queda da Bastilha em 1789 teria sido um rito de passagem, a revolução

propriamente dita desdobrou-se aos poucos, desde muitas décadas antes, e continuou

a alastrar seus efeitos durante muito tempo ainda, não mudando a ideologia reinante

na mesma velocidade com que tombava a cabeça do rei:

O espírito revolucionário desdobra-se aos poucos. Avanços repentinos e recuos

sucedem-se. Vozes diferentes e contraditórias alçam-se para, no diálogo – e às

vezes, ao som da guilhotina – reinventarem mais uma vez a ordem social.53

Durante muito tempo ainda, a nostalgia pelo poder monárquico e pelo patriarcado

sagrados dividiria as ruas estreitas de Paris com os ideólogos da revolução. Grande

parte da sociedade francesa vê ainda na monarquia uma maneira capaz de restaurar a

antiga autoridade patriarcal, “sinônimo de razão e cultura”54. Muitos pensadores

criticam o novo ideário liberal, ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, temendo um

relaxamento dos costumes através do qual a humanidade mergulharia em decadência.

As alianças de “trono e altar” continuariam por muito tempo ainda, como uma

maneira de evitar revoluções populares e manter o poder.

A perda do poder político da Igreja em torno da crença em vidas futuras, junto ao

medo dos castigos invisíveis instituídos pela Igreja, é uma das mais significativas

mudanças engendradas pela época moderna com relação ao passado, como mostra

Arendt55. Mesmo que o mundo moderno encontre vivamente em seu tecido um

grande número de crenças religiosas e supertições, e que não possamos ignorar o

aumento da religiosidade ocorrido principalmente no final do século XX – do qual a

proliferação das igrejas evangélicas pode ser considerada exemplo maior –, não seria

mais sobre o medo do inferno (ou da Igreja) que o sistema que rege os padrões de

conduta e de comportamento da sociedade se basearia, como na antiguidade. Na

época moderna, é um sistema de leis, regras e sanções, laico em sua essência, que

passa a coordenar a vida pública.

53 De Lajonquière, L. (2000), op.cit., p.73. 54 Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.41. 55 idem, p.180.

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A Revolução Francesa, em todo caso, é o estopim de um movimento social e político

que continua a se alastrar mesmo depois de proclamada a República, em direção a

uma dupla emancipação dos homens: a emancipação da nobreza e do poder natural

do rei conferido pela lei do “bom nascimento”; e a segunda, a emancipação da

autoridade coercitiva e sagrada da Igreja, através do ato simbólico de decapitação do

monarca – o “representante de Deus na terra” – e da laicização do sistema de leis.

A Revolução Francesa de 1789 teria sido o golpe de misericórdia na dominação do

pai, como diz Roudinesco56. A decapitação do rei Luis XVI sela a abolição da

monarquia, assim como da figura de autoridade do Deus-pai. Através desta dupla

emancipação, o poder secular e a autoridade sagrada do Pai seriam também postos

em jogo. Nas palavras de Balzac, “ao cortar a cabeça do rei, a Revolução derrubou a

cabeça de todos os pais de família”.57

4) A autoridade e o pai na evolução da família

A evolução da função do pai está diretamente ligada à evolução da organização da

família nas sociedades ocidentais. Da família tradicional à família moderna, a função

social e o poder do pai modificaram-se bastante, sobretudo por uma nova

organização da sociedade, agora a partir do poder do Estado, e não mais a partir do

pater familias.

Como explica Roudinesco58, essa mudança implica em uma emancipação das

mulheres e das crianças da opressão patriarcal, que leva o século XX à afirmação dos

direitos e da diferença das mulheres, e à possibilidade de as crianças poderem ser

olhadas como sujeitos. Em face das mudanças no seio da própria estrutura familiar,

veremos que o papel reservado ao pai foi modificado, reduzido, mesmo

negligenciado. Contudo, em todos os casos percebemos um ponto comum: a dúvida

56 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.29. 57 In Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.33. 58 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.11.

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quanto a seu papel. Enfim, o pai não sabe mais o que deve fazer, nem o que pode

fazer. Se antes o papel do pai era garantido pela tradição, agora precisaríamos

discuti-lo, como fazemos aqui. Se os conservadores querem restaurar o patriarcado

de antigamente, e os modernistas acreditam que devemos transformar o pai em um

educador benevolente, que lugar deve ocupar o pai atualmente, em face das

mudanças estruturais pelas quais passou a própria organização da família na

sociedade?

A origem da palavra família é latina, e designa originalmente “o conjunto de criados

e escravos que vivem sob o mesmo teto, sob o poder do mesmo pater familias”59.

Pela extensão de seu poder, passou a designar “a casa em sua totalidade” 60,

compreendendo o pater famílias e sua mulher, seus filhos e mulheres, seus netos e

mulheres, seus escravos, seus animais e suas terras.

O termo “família” pode ser usado para definir, de uma maneira ampla, um

agrupamento de pessoas: do mesmo sangue, ou com uma ancestralidade comum, ou

que vivem sob o mesmo teto, ou que partilham características comuns, como credo,

língua, nacionalidade ou interesse comuns. Para nossa discussão em torno da função

do pai, trabalharemos com a significação mais comum de família, a família nuclear –

composta do pai, da mãe e dos filhos, naturais ou adotivos, residentes na mesma casa

– diferenciando-a da família estendida, que engloba as pessoas com mesma

ancestralidade, como tios, tias, primos, avós, sobrinhos, etc.

A família61 pode ser entendida como a organização ou unidade básica da sociedade,

e compreende uma aliança (o casamento) e uma filiação (o nascimento de filhos).

Contudo, o processo de filiação é secundário ao processo da aliança, pois a filiação

só pode se constituir a partir da aliança entre um homem 1342 Tw 6TJdaec 0.003l9Mes-5(m)9(, q Tw 6Tilh)]TJ0.0004 Tc 0.4046 Tww 15.815 -1.725 Tda ali5n�09(,i5nal[( (is)re diimnet7a )]TJ0.1017 Tc 0.0649 11w 6055 0 Tdquiodejande um)9(a alian�sascimb[(sl41si[(ent9( hom)-5(m)9(Jdaec 0.003w ( �a )]TJ12 4046 Tw1w 6015 -1.725 Td3o [(entdtitusso(A f)4(a)-5(m)9(í(uns, cem)9(u) vdifmnet ( hosl5liatund( eb hom)tendiaoas, prum)doos, natlo-a dia)]TJETEMCA6(afcar/P Type /Psobting 10 >>BDC BT/TT0 1 Tf0 Tc 0 Tw 12 0 0 12 113108456.1403 ( (61)TjETEM12 113110.66 144 Tc6)refMCA6(afcar/P Type /Psobting 10 >>BDC BT/TT0 1 Tw 12 0 0 257113108456.4403 Tm( )TjETEMC /Span <</MCI4 10 >>BDC BT/TT0 1 6w 60550 Tw 6 12 113100.70.1403 (59(61)TjETEMC /P <</MCI5 10 >>BDC BT/TT0 1 Tc -0.2007 Tc -0.0033 10.0w 12 0 0.0w 1w -88 96.20.8403 Tm1(s)D9(u)ic 0 nac9(u)und�)-3)ic7m)9(u) H9(u)o)2m)9(u)turet ()-3)20.9(u)1))-3uum139(u)049(u). lia

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diferença sexual como condição da constituição da filiação: os filhos nascem a partir

da união sexual entre um homem e uma mulher62.

Em todo caso, não discutiremos aqui o processo de nascimento de crianças, mas sim

o processo de constituição da família. Nele, mesmo que a diferença sexual seja

condição da filiação, é somente pelas trocas sociais presentes na aliança entre um

homem e uma mulher que uma família pode se constituir.

Explica Julien63 que no estabelecimento de cada aliança conjugal existe uma lei que,

sociologicamente, ordena uma troca entre grupos. Mais especificamente, entre duas

famílias diferentes. A sociedade impede assim que cada família se feche em si

mesma, constituindo um mundo fechado e autônomo pela via disto que chamamos de

incesto. Lévi-Strauss64 teria escandalizado os nostálgicos da “tradição familiarista”

ao afirmar a impossibilidade da auto-suficiência da família, defendendo que cada

família dependeria sempre de outras famílias pela via de um encontro com o

diferente, de uma fusão com o estrangeiro, do risco do desconhecido, para formar

uma aliança conjugal.

Assim, uma família não pode se constituir senão a partir de uma lei vinda da

sociedade, lei que interdita a endogamia, ou a auto-suficiência e o fechamento de

uma família nela mesma. A exogamia – ou a lei de proibição do incesto – é portanto

tão necessária à criação de uma família quanto a união de um homem e uma mulher,

como insiste Roudinesco65.

Seria condição da conjugalidade esta troca entre famílias. Ou, para ser mais preciso,

uma família só se constitui quando duas famílias se “desfazem”, quando os filhos

saem da casa parental para fundar sua própria casa. A lei pública – a lei que funda a

cultura contra a natureza perpetuada pela família, exige desse modo um rompimento

com a família de origem, para que ela seja substituída em favor da nova família:

62 Mesmo que a fertilização in vitro ou o processo de clonagem problematizem este ponto. 63 Julien, P. (2000), op.cit., p.47. 64 In Julien, P. (2000), op.cit., p.49. 65 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.15.

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A finalidade da lei é instituir a aliança conjugal extrafamiliar, e para chegar a esse

objetivo, a lei enuncia a necessidade de rompimento com os laços familiares

originais.66

Poderíamos dizer, então, que a sociedade estaria contra a família exatamente para

proteger a família. Ao obrigar a separação – ou a morte – da família de origem, ela

possibilita a constituição – ou nascimento – de novas famílias.

Segundo Roudinesco67, podemos distinguir em diferentes momentos da história

diferentes modos de organização da família. Trataremos aqui da família tradicional e

da família moderna, relacionando a elas os diferentes modelos, lugares e funções do

pai.

a) A família tradicional

A família tradicional tem como organização principal a ordem de um mundo

imutável, submetida à autoridade patriarcal. Ela se estabelece desde o começo dos

tempos como uma verdadeira transposição da monarquia de direito divino, sendo que

o pater familias se constitui como o monarca absoluto da ordem familiar. A família

tradicional é composta com casamentos arranjados, e a família serve acima de tudo

para assegurar a transmissão de um patrimônio. A família tradicional nos traz a

figura do pater familias, que organizava a administração familiar segundo os

princípios do patriarcado, com grandes poderes sobre todos os que lhe eram

subordinados:

Heróico ou guerreiro, o pai dos tempos arcaicos é a encarnação familiar de Deus,

verdadeiro rei taumaturgo, senhor das famílias. Herdeiro do monoteísmo, reina

sobre o corpo das famílias e decide sobre os castigos infligidos aos filhos.68

66 Julien, P. (2000), op.cit., p.50. 67 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.19. 68 idem, p.21.

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O pater familias não era o pai, tal como conhecemos hoje. Julien69 já chamava a

atenção de que a palavra pai origina-se de pater, que designava em sua origem

romana o chefe político e religioso de um agrupamento de pessoas, não sendo por

conseqüência que ele – o termo pai – passa à esfera privada da família. Assim, pater

tem um valor mais social e religioso do que de consangüinidade, esta expressa

preferencialmente em latim por parens70.

Para entendermos a definição de pater familias, basta lembrar de “O poderoso

chefão” de Mario Puzzo, eternizado no cinema por Copolla: encontramos na figura

de Vito Corleone uma ilustração do pater familias ao qual nos referimos. Como

explica Meira71, o pater familias não era necessariamente o pai, podendo ser o

ascendente masculino mais antigo, como por exemplo o avô ou o bisavô, mesmo que

o laço que unia a família ao pater não fosse definido somente pelo sangue. Ele tinha

sob seu poder os filhos e suas respectivas mulheres, os filhos dos filhos e suas

mulheres, os criados, os escravos, os afilhados. A família era uma organização de

cunho político, e a primeira definição de família relaciona-se com o poder do pater

familias: a família era uma reunião de pessoas subordinadas ao mesmo pater. Ou

seja, se a família não se restringia aos laços consangüíneos ou de parentesco,

originalmente, o pater familias também não, sendo que ambos determinavam muito

mais a extensão do poder político, religioso e econômico deste que viria a ser

designado como pai.

Todo o patrimônio pertencia ao pater, que exercia poder de vida e morte sobre os

que lhe eram subordinados, sendo também o sacerdote da religião doméstica em que

se adoravam deuses próprios, que se transmitiam de geração a geração.

Quando morria o chefe da família era rompido o círculo, e a família se multiplicava

em tantas outras famílias quantos fossem os filhos do sexo masculino sujeitos à

patria potestas (o poder paterno com relação aos descendentes), os quais, por sua

vez, vêm a se tornar também patres familias.

69 Julien, P. (1997). A feminilidade velada. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, p.13. 70 Dicionário Houaiss (2001), op.cit., p.2148.

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O parentesco romano, para efeitos civis, não se baseava nos laços de sangue, mas no

poder (potestas). Seriam parentes as pessoas que estivessem sob o poder do mesmo

pater. Em uma família, os filhos de um casal nunca eram parentes civis dos parentes

da mãe, pois o parentesco pelo sangue não tinha efeitos civis: os laços consangüíneos

eram secundários aos laços de subordinação ao pater, não sendo por via de

conseqüência que a eles se identificaram.

Porque falamos em direito civil? Porque, como vimos, o poder familiar do pater era

vinculado ao poder político, bem como à transmissão do patrimônio. Assim, o

parentesco civil era a base do direito sucessório, e não o parentesco sanguíneo, sendo

que os parentes pelo lado materno, mesmo que fossem sanguíneos, não tinham

qualquer direito civil, nem de herança nem de trono, diferentemente dos afilhados ou

apadrinhados do pater.

O poder do pater familias durava toda a vida, extinguindo-se com a morte, e seus

descendentes eram sempre subordinados, quaisquer que fossem suas idades ou estado

civil. Com a morte do pater, a família se multiplicava em tantas famílias quantos

fossem os filhos masculinos, que tornavam-se patres independentemente de suas

idades. As mulheres, por outro lado, estavam sempre sob o poder de alguém: quando

solteiras, do próprio pater, e depois de casadas, do pater familias do marido ou dele

mesmo, caso ele fosse o pater de sua família. Era a chamada “tutela perpétua” das

mulheres, como explica Meira.72

O pai todo poderoso de tempos não tão remotos, proveniente do poder do pater, era

considerado a encarnação familiar de Deus, herdeiro do monoteísmo, reinando sobre

o corpo das famílias e decidindo sobre o castigo dos filhos. Este pai temível é

descrito por Kafka em 1919, em uma carta que escreveu ao seu pai, mas que nunca

teve coragem de enviar.

Herman, o pai de Kafka, visto como um “tirano medíocre”, cujo poder de ação teria

roubado ao filho toda e qualquer possibilidade de ação – ou emancip-ação –, é o pai

71 Meira, S.A.B. (1971). Instituições de direito romano. São Paulo: Max Limonad, p.103. 72 Meira, S.A.B. (1971), op.cit., p.107.

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herdeiro de um patriarcado secular, investido de um poder insuportável ao filho.

Assim Kafka o descreve:

À mesa não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você

polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o palito de

dentes. (...) Esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente

insignificantes, eles só me oprimiam porque você, o homem tão imensamente

decisivo, não atendia aos mandamentos que me impunha. Com isso o mundo se

dividia para mim em três partes, uma donde eu, o escravo, vivia sob leis que

tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia porque,

nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente

distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se

com seu não-cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras

pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência.73

Tal era a descrição do patriarcado secular proposta por Kafka: o pai em sua figura

tirânica de dominação monárquica, que estava acima das leis que ele mesmo erigia,

que gozava ali onde ninguém mais era autorizado a gozar. A equivalência entre as

figuras de filho-escravo e de pai-tirano que nos propõe Kafka é a mesma que tem

origem na constituição da família romana e no poder do pater familias, como vimos.

A carta que escreve ao pai tem como móvel a desaprovação de Herman Kafka à

terceira tentativa de casamento do filho, tentativa abandonada (assim como todas as

outras), como nos informa Carone74. A Carta constitui-se, ao mesmo tempo, como

um ato de vingança e um esforço de reconciliação. Nela, Kafka figura tanto a falta de

espaço de um filho oprimido quanto a violência sem fronteiras da dominação de um

pai constantemente identificado à figura despótica de um senhor feudal, que lida com

o filho da mesma maneira que lida com seus escravos:

73 Kafka, F. (1919). Carta ao pai. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.19. 74 Carone, M. (1997), Posfácio de Kafka, F. (1919), op.cit., p.80.

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Você assumia para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito

está fundado não no pensamento, mas na própria pessoa.75

Entretanto, qual é a diferença entre o filho Franz e os escravos do pater familias do

Antigo Regime, com os quais ele se identifica? Em sua descrição na Carta, notamos

a passagem da família tradicional, organizada ao redor do poder do pater, à família

moderna: eis que surge a dúvida, a capacidade de interrogação do poder divino do

pater. Este pai, que chamaremos de moderno, herança ainda próxima do antigo poder

patriarcal, imprime em relação ao seu predecessor uma diferença fundamental, em

cuja carta Kafka revela: a possibilidade de questionar o poder secular do pai e a

legitimidade de sua tirania.

Mesmo que encontremos na Carta de Kafka um exemplo do poder do antigo

patriarcado, como um “acerto de contas com o pai despótico”76 – cujas

características tirânicas são as mesmas que sustentaram o pai tradicional desde o

início dos tempos, ancoradas na autoridade sagrada do Pai e baseadas no poder do

pater – vemos que as características da modernidade começam a se insinuar. Pois

encontramos na descrição de Kafka a figura do pai sob a forma de um tirano, sim,

mas um “tirano medíocre”, que produz através de toda a violência e tirania de que

estava investido um filho capaz de questionar a origem divina de seu poder infinito.

Tal é o pai da época moderna, que vê na construção da família nuclear burguesa uma

modificação do poder do pai: da figura do pai tirânico ao pai questionável.

b) A família moderna

A época moderna, a partir de fim do século 18, se caracteriza pela organização da

família nuclear burguesa, em comparação com a família estendida da antiguidade

que vimos há pouco. Se os casamentos na família tradicional eram arranjados, o

75 Kafka, F. (1919), op.cit. , p.15. 76 Carone, M. (1997), Posfácio de Kafka, F. (1919), op.cit., p.77.

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casamento passa agora a ser consagrado pelo amor romântico, baseado na

reciprocidade de sentimentos entre os esposos. Além disso, passa a depender do

consentimento da mulher para ser efetivado.

Com a queda do Antigo Regime monárquico, organizado por um sistema feudo-

patriarcal, em que cada pater era senhor de seu feudo, a formação do Estado

Republicano centraliza o poder, e a autoridade infinita do pai passa a ser regulada

pelas leis do Estado. Principalmente para conservar em suas mãos todo o poder

político e econômico que antes estavam espalhados pelos feudos, tem como

conseqüência o controle do pai pelo Estado, com a proteção tanto da prole quanto da

esposa da tirania do pater. A atribuição da autoridade é assim dividida entre o pai e o

Estado, em uma época em que o pai deixa de ser investido de seu poder divino. Diz

Roudinesco:

O pai será então um pai justo, submetido à lei e respeitoso dos novos direitos

adquiridos em virtude da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.77

O poder mítico do patriarcado começa a ser substituído por um poder simbólico,

baseado nas regras de aliança e no estatuto biológico da paternidade. O pai passa,

assim, a ser identificado também como aquele que fecunda, a partir da diminuição

dos poderes de pater – poderes civis, econômicos, religiosos – que tinha sobre a

família estendida.

Nesta perspectiva, assistimos a uma dupla emancipação, tanto da mulher quanto do

filho, com relação ao poder do pai, agora controlado pelo Estado:

- o casamento muda de natureza, e torna-se um contrato de consentimento

mútuo entre homem e mulher;

- o estabelecimento da lei do divórcio tira do homem o direito de decisão sobre

a indissolubilidade do pacto conjugal dependente exclusivamente da vontade

– do poder – do marido;

77 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.39.

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- emancipação da mulher no uso de métodos contraceptivos e controle da

natalidade;

- progressiva separação entre sexo e procriação, possibilitando à mulher

apropriar-se de seu corpo e de sua vida sexual;

- aos filhos é consentido o direito a uma família e à filiação,

independentemente dos caprichos do pai, que podia até então mandar o filho

para a cadeia78 ou recusar ao filho o direito à filiação e à transmissão do

patrimônio, renegando os filhos “indignos”.

Este controle do Estado pode ser acompanhado nas mudanças pelas quais as próprias

constituições nacionais passaram ao longo do tempo, como por exemplo na França e

no Brasil. Em 1970, a expressão “chefe de família” é excluída da constituição

francesa, e o pai passa a dividir com a mãe o poder sobre os filhos: é o chamado

“poder co-parental”79.

No Brasil, em 1962 é promulgada uma lei conhecida como “Estatuto da mulher

casada”, que reduz o poder do marido sobre a mulher e sobre os filhos, imprimindo

mudanças no então Código Civil já no mesmo ano. Até então, podia-se ler no artigo

380 do Código, no capítulo sobre o poder do pai, intitulado “Do pátrio poder”:

“Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido.” Após a lei de 1962, o poder

é pluralizado: “Durante o casamento, compete o pátrio poder aos pais.” Em 1988, a

nova Constituição segue esse rumo e passa a prever, no parágrafo 5º do artigo 226:

“Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo

homem e pela mulher”, razão pela qual no Novo Código Civil Brasileiro80,

implementado em 2002, o capítulo muda de nome, e “Do pátrio poder” passa a se

chamar “Do poder familiar”, dizendo: “Compete o poder familiar aos pais.”

Finalmente, o que assistimos com a Revolução foi o início de mudanças sociais e

políticas, que começaram no século XVIII e que se estendem até nossos dias, que

incluíram também o pai. Entre elas, destacamos:

78 Através da lei das “lettres de cachet”, como mostra Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.38. 79 In Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.104.

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- a substituição de um conjunto de crenças, que eram a base do sistema de

regras morais que conduziam a ordem social, por um sistema de leis laico; ou

seja, substituição da crença pela ciência;

- a separação na esfera política entre autoridade e poder: a Igreja perde seu

poder no estabelecimento de um código de leis laico, e o Estado perde o

caráter transcendente de sua autoridade, clivado da autoridade que a Igreja a

ele conferia;

- a queda do poder do pater familias, do patriarcado, e o cerceamento do poder

do pai pelo Estado; o Estado interpõe-se como um terceiro na relação entre

marido e mulher e entre pai e filho, vigiando os excessos do pai e interditando

sua onipotência;

- a emancipação da mulher através da luta feminista da década de 60,

questionando a autoridade divina do homem e o poder secular do marido-pai.

Estas mudanças alteraram o estatuto e o lugar do Outro social, que rege os padrões

de conduta e detém a Lei simbólica que organiza a sociedade. Se até então o pai

ocupava este lugar de Outro, outrora não-barrado – tal qual o pater familias da

família tradicional, ou o pai descrito por Kafka em sua “Carta ao Pai” –, com direito

a um gozo ilimitado com relação às mulheres e aos filhos e proibindo tal gozo a

ambos, agora é o Estado que assume este papel de Outro regulador das trocas

simbólicas na sociedade, ao qual o pai, assim como a mulher e os filhos, também

passa a estar submetido. Do pai são agora exigidas obrigações morais determinadas

pelo Estado, e caso não as observe, recebe do Estado a sanção devida. A lei do pai,

outrora soberana, é agora cerceada e vigiada.

A abolição da monarquia absolutista gerou, na sociedade do século XIX, uma nova

organização da soberania patriarcal. O movimento que vimos anteriormente através

da entrada do Estado na esfera privada da família teve como conseqüência imediata a

retirada e o controle do poder do pai, não de sua autoridade.

80 Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

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No mundo capitalista burguês o pai foi, de certa forma, reintegrado em seu poder,

depois de derrotado pelo regicídio de 1793. O pai da sociedade burguesa não se

assemelhava mais a um deus soberano, mas tentava manter seu poder aliando-se de

alguma forma ao novo Estado, através de acordos político-econômicos advindos com

a industrialização:

Acuado em um território privado, e questionado pela perda da influência da Igreja

em benefício da do Estado, ele consegue porém reconquistar sua dignidade

perdida, tornando-se, para começar, o patriarca do empreendimento industrial.81

Ou seja, o pai não foi destituído de sua posição soberana da noite para o dia, como se

os acontecimentos históricos que marcaram o regicídio de 1793 tivessem modificado

toda a estrutura social reinante durante séculos. Em vez disso, o pai e sua posição de

prestígio e autoridade tiveram que se adaptar, e ele se reorganizou em face dos novos

ordenamentos sociais, na medida em que a nova conjuntura social e econômica

impunha novas respostas. É por isso que vemos, até os dias de hoje, formas

familiares das mais variadas coexistindo, junto aos resquícios do antigo patriarcado

presentes em várias partes do mundo, como é o caso do coronelismo brasileiro do

norte e nordeste, que ainda guarda as características do patriarcado de outrora.

O que mostra Roudinesco é uma reorganização do poder do pai, em face da queda do

rei. Se não era mais o poder divino monárquico o modelo que conferia ao pai sua

autoridade mítica e imutável, agora a lógica das sociedades burguesas passava a

determinar seu novo estatuto. Os empreendimentos da revolução industrial serão,

como mostra Roudinesco, uma nova apropriação do poder pelo pai:

O patrão, como outrora o pai, escreve Alain Cabantous, defenderá o operário (...)

garantindo-lhe trabalho e habitação.82

81 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.37. 82 idem, p.37.

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Não é por acaso que a palavra “patrão” tem a mesma origem etimológica da palavra

“pai”: ambos vêm de pater, padre, padrone, patrão. O patrão das empresas

industriais do século XIX faz persistir a antiga autoridade do pai sob novas

roupagens, sem mesmo a preocupação na mudança do “radical”.

Ora, se o poder e a autoridade do pai continuam até hoje, o que teria mudado após a

decapitação do rei?

O movimento que vimos anteriormente através da entrada do Estado na esfera

privada da família teve como conseqüência imediata o controle e a perda do poder

do pai, não de sua autoridade. Tal foi a confusão na qual o pai viu-se envolto na

evolução dos acontecimentos sociais que se seguiram após a tomada da Bastilha.

Parece-nos não haver dúvida de que o pai foi também responsável pela progressiva

perda de sua autoridade, a partir do momento em que se viu destituído de seu poder.

Assim, parece-nos que a crise moderna do pai não se deve à perda de sua autoridade

divina, ancestral, pelo menos não em sua origem. O pai ainda é, com relação ao filho,

aquele que está mais próximo aos antepassados da Fundação, e sua autoridade tem

conseguido sobreviver em muitos lugares. Esta crise da autoridade em que está

submerso o pai atualmente se deve antes a uma horizontalidade das tradições. Do pai,

existem milhares de modelos disponíveis, sendo que com a chegada dos modelos

mais novos os mais velhos não foram tirados das prateleiras.

Tal situação, parece-nos, gera a crise do não-saber generalizado em que se encontra o

pai hoje. Pois, como vimos, a autoridade depende da tradição para se fazer presente.

Um dos problemas em que vive o pai é não saber – ou não poder – valer-se da

filiação a uma tradição, a partir da qual ele mesmo teria aprendido alguma coisa com

o seu próprio pai, para poder filiar – ou transmitir – algo para seus filhos.

Hoje em dia, todos os modelos possíveis coexistem lado a lado, aparentemente

intercambiáveis entre si, conforme a necessidade. É como se o pai de uma tradicional

família judia vivesse no apartamento 31, sendo que seus vizinhos de porta, a família

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do 32, fossem os pais liberais descendentes de Woodstock, e que os filhos de um e de

outro jogassem videogame juntos.

Mesmo que os bastiões de resistência do patriarcado existam até hoje no seio da

sociedade, a crise na qual se viu o pai foi provocada pela possibilidade de indagação

da estrutura antes imutável e natural do pater. Em outras palavras, a revolução

destituiu o pai de seu lugar ancestral ao minar a certeza quanto à ordem simbólica

por ele estabelecida. Esta incerteza, que começa a povoar o imaginário ocidental a

partir do século XVIII, determinou o destino que a função do pai encontraria hoje em

dia: um pai inseguro quanto à função.

Desse modo, a ordem secular estabelecida pelo pai é posta em dúvida. Mesmo que o

patriarcado exista até hoje, em muitos lugares, o fato de conviver com outras

organizações familiares e outras formas de autoridade e ordem – outras formas de

organização do universo simbólico – faz com que a função do pai seja colocada à

prova. A dúvida gera a incerteza do pai quanto à função.

Em vez de instaurar uma nova ordem, a modernidade se define como o tempo que

coloca novas ordens a todo momento, sem que as antigas desapareçam. O resultado

de existirem múltiplas verdades é que, enfim, a verdade não habita mais nenhuma

tradição.

O que queremos dizer é que não foi a mudança do estatuto do pai que ocorreu a partir

da revolução de 1789 o fato histórico que teria gerado o que se costuma chamar de

“declínio do pai”, mesmo porque, como vimos, essa mudança é mítica, como se um

momento pontual da história tivesse sido responsável pela mudança do estatuto do

pai. Ela ocorreu em alguns lugares, em outros não; e em todo caso, continua

ocorrendo até hoje. O que se observa como sendo um elemento da modernidade é a

coexistência – ou a inexistência, daria no mesmo – das tradições. É essa coexistência

que produz a dúvida do pai quanto à função.

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O pai moderno é o resultado da lenta decomposição das representações tradicionais

do cosmo, pelo viés das múltiplas representações que, coexistindo, anulam-se entre

si. O pai moderno é como Hamlet, que

inquieto e fraco, inseguro e culpado, não

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totalitarismo, entre mundo público e mundo privado, e finalmente entre adultos e

crianças.

Aprendemos com ela, enfim, que um conceito complexo como este pode – e deve –

ser perseguido pelos diferentes terrenos epistemológicos pelos quais se alastra, pelo

risco de perdermos os fenômenos contíguos que estão entre os campos. É por isso

que, para entendermos a autoridade do pai na esfera privada da família, à luz da

psicanálise, decidimos fazer o caminho inverso ao da autora, indo ao campo da

política para entender a autoridade lá onde ela nasce, na esfera pública, para

podermos voltar à psicanálise e entender como este conceito político está presente na

família.

Depois de percorrido este caminho, parece-nos que a crise do pai, tal como os

psicanalistas a apresentam (através do declínio da imago), teria raízes políticas, não

sendo por conseqüência que ela teria saído da esfera política, do poder do pater, e

chegado até a autoridade do pai.

Assim, as hipóteses sobre a origem do declínio da autoridade do pai na modernidade

podem ser consideradas como políticas em sua origem, como se a crise do poder do

chefe tivesse engendrado uma crise do poder do pai, “chefe” ele um dia da

administração privada da família. Como se, ao questionarmos o chefe do grupo,

estivéssemos nos autorizando por conseqüência a questionar o pai também, o “chefe

da família”.

A morte do pai da horda primeva84 poderia ser analisada da mesma maneira, como

um questionamento da autoridade do chefe político, como se tivesse sido uma crise

política em sua origem. O chefe da horda mandava em todos, controlava seu “povo”

de maneira despótica, e a briga que teria insurgido os “filhos” contra o pai teria como

origem o controle pelo poder político da comunidade.

Poderíamos pensar assim, mas faremos o caminho inverso ao do feito por Hanna

Arendt. Pois não podemos esquecer um outro lado, não o político, mas o psíquico. A

hipótese econômica do aparelho psíquico (função de manter o mais baixa possível a

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quantidade de energia pulsional), ou seja, a negociação entre as exigências pulsionais

da libido e os limites impostos pela cultura para sua auto-preservação, estão

presentes desde o começo da vida do homem em sociedade.

Ao levarmos em conta as idéias freudianas, podemos supor que a crise vivida pelo

pai mítico da horda primeva teria sido política na aparência, mas dizia respeito ao

gozo: quem goza e quem não goza, ou como se goza, ou quando se goza. Se no

patriarcado o pai – ou o chefe político – era o único que gozava de todas as mulheres

(e também dos filhos), a briga era, finalmente, pela possibilidade de acesso ao gozo.

A isto se dedica a segunda parte de nosso trabalho, às considerações feitas pela

psicanálise sobre a função do pai, para podermos isolar minimamente as

considerações políticas da função do pai; separar a luta contra a autoridade da igreja,

o poder do rei e o declínio do poder despótico do patriarcado para, enfim,

desvelarmos no pai a função que seria fundamental para a constituição psíquica da

criança.

Ou seja, é através deste caminho que fizemos através da política e da história que

podemos desvencilhar o pai da trama imaginária na qual estava emaranhado, e que

dificultava nossa análise sobre sua função simbólica. Pois não é o poder despótico do

pai que queremos restaurar, e por isso fizemos este percurso. A função do pai,

veremos, diz respeito à interdição mas também ao acesso ao gozo, feito pelo pai à

criança. A função do pai, finalmente, tem a ver com a autoridade do pai, e não com o

poder do pater.

84 Veremos com mais detalhes no capítulo seguinte, na parte sobre o “pai totêmico”.

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PARTE II

Pai e Psicanálise

A psicanálise é uma ciência moderna, que nasce em meio à crise do pai na

modernidade, mas que pode ser também considerada fruto desta crise, tentando

responder a ela.

A questão do “declínio do pai” de que tanto se fala atualmente na psicanálise não é

nova, estando ela no cerne do nascimento da modernidade, e também no cerne da

construção freudiana. Lacan entende que não teria sido por acaso que a psicanálise

teria nascido na Viena do final do século XIX, pelas mãos de um filho do patriarcado

judeu.85

Viena era, na época, um centro de importante afluxo comercial e cultural, assim

como um ponto de encontro das mais variadas formas familiares, desde as mais

arcaicas às mais evoluídas, desde as famílias pequeno-burguesas até as famílias

numerosas de camponeses eslavos.86 Tudo se encontrava em Viena, todas as

tradições, e todas as formas familiares. Para um filho de uma família patriarcal

burguesa não era difícil entrar em conflito com o que ele, Freud, imaginava serem

“formas degradadas da família”, que colocavam em risco o lugar do Pai.

Assim, diz Lacan que esta “crise do pai” de que se fala na modernidade deve ser

entendida no seio da construção da própria psicanálise, empresa laboriosa na qual se

viu Freud na tentativa de salvar o pai de sua degradação imaginária, construindo um

substrato simbólico que o preservasse neste lugar de Outro da função. Freud, assim,

teria desenvolvido toda sua obra em torno da pergunta “o que é ser um pai?”.

Segundo Lacan,

85 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux, op.cit., p. 20. 86 idem, p.20.

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toda interrogação freudiana se resume no seguinte: o que é ser um pai? Este foi

para ele o problema central, o ponto fecundo a partir do qual toda a sua pesquisa

realmente se orientou.87

Enfim, para podermos responder minimamente a esta pergunta, “o que é ser um pai”,

não podemos deixar de perceber que existe uma importante distância entre a figura

do pai do complexo edípico, este que é suposto fazer uma função simbólica, e a

personalidade do pai tal qual aparece na realidade familiar, como nos explica

Chemama88. Isto não quer dizer que estes diferentes registros se excluam, mas nos

obriga antes a distinguir as funções e os registros, para apreendermos enfim o que é

que o pai faz.

A divisão

Pretendemos perseguir o conceito de Pai, de Freud a Lacan, através dos esquemas em

psicanálise, desde o triângulo edípico até o “nó borromeano”, dividindo em quatro

partes nossa pesquisa sobre o pai. Falaremos em pai imaginário, pai simbólico e pai

real, no intuito de delimitarmos os diferentes momentos em que a psicanálise viu-se

às voltas com a tarefa complexa de investigar no Pai sua função, utilizando para

esses diferentes momentos da elaboração da teoria psicanalítica os três registros da

realidade humana, como propõe Lacan: o Imaginário, o Simbólico e o Real.

Nomearemos estas quatro partes utilizando a forma francesa, para explorar a

homofonia entre elas. São eles:

1) “le non du père” – ou “o não do pai”, que tratará do registro imaginário

concernente à função do pai;

2) “le Nom-du-Père” – ou “o Nome-do-Pai”, que abrange o registro simbólico;

87 Lacan, J. (1956-57). Seminário 4. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 208. 88 Chemama, R. (2003). Père réel, père imaginaire, père symbolique. In Chemama, R. & Vandermersch, B. (Orgs.), Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Larousse, p.308.

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3) “les noms du père” – ou “os nomes do pai”, título do seminário interrompido de

1963 desta que seria uma subversão do conceito do Nome-do-Pai, e em que

localizamos a passagem do simbólico ao real;

4) “les non-dupes errent” – ou “os não-tolos erram”, que abrange a fase real do

ensino de Lacan.

Insistimos que os termos são homófonos em francês, ou seja, têm o mesmo som

quando os pronunciamos, e não em português. Se insistimos na nomeação dos

capítulos utilizando os termos em francês, é para explorar essa homofonia: ou seja,

quando pronunciamos um deles, poderíamos estar nos referindo aos outros.

Tentaremos entender o porquê de Lacan ter brincado com esta homofonia, quando

ele afirma que, na verdade, “trata-se do mesmo saber”.89

I

O capítulo “Le non du père” tratará do pai que diz “não” ao filho. Vamos apreender a

função do Pai em Freud segundo a divisão que nos sugere François Leguil90, que

divide em três os pais freudianos:

a) o pai do traumatismo (1895, em “Estudos sobre a histeria”);

b) o pai do Complexo de Édipo (que substitui a teoria do trauma já em 1897, em

cartas de Freud a Fliess, mas é teorizado por Freud desde 1901, com “A interpretação

dos Sonhos”);

c) o pai totêmico (de 1912, com a publicação de “Totem e Tabu”).

II

A segunda parte, “Le Nom-du-Père”, perseguirá a constante elaboração que faz

Lacan do triângulo freudiano, através principalmente dos seus esquemas, em sua

89 Lacan, J. (1973). Seminário “Les non-dupes errent”, aula de 13/11/1973, inédito. 90 Leguil, F. (2003). Aula de 21/01/2003. Leers-Nord, Bélgica, inédito.

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preocupação em depurar o triângulo edípico proposto por Freud, diferenciando a

função imaginária da simbólica. Se o pai freudiano é aquele que diz “não” ao filho,

para executar a função simbólica, o pai lacaniano do Seminário 5 é aquele que diz

“não” à mãe. Veremos porém que com o “grafo”, a função paterna, estritamente

simbólica, não é mais aquela de dizer “não”, mas sim aquela de “reconhecimento da

mensagem no código”.

a) em “O mito individual do neurótico”, de 1953, Lacan propõe uma releitura do

esquema triangular edípico de Freud, colocando um quarto elemento e

transformando-o em um quadrado; aqui ele aponta a idéia de “diplopia” presente no

triângulo freudiano, retomando aspectos que ele havia trazido no esquema óptico;

b) em “O estádio do espelho como formador da função do Eu”, de 1949, Lacan

propõe uma leitura disto que ele chamará registro imaginário da constituição

subjetiva, através do “esquema óptico”;

c) em “A carta roubada”, de 1955, ele propõe o “esquema L”, depurando o esquema

de 4 pontos, localizando no esquema a relação imaginária que o sujeito constitui,

chamada especular, assim como o lugar do Outro;

d) em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, de 1958,

Lacan propõe o “esquema R”, que é uma transformação do esquema L: ele continua

com o esquema de 4 pontos, mas em vez de vetores, propostos no esquema

precedente, ele trabalha pela primeira vez a idéia de campos: o “duplo ternário”

substitui, enfim, o ternário simples proposto no esquema freudiano. Não um

triângulo, mas dois, fariam parte da relação complexa que marca a entrada da criança

no mundo do Outro: o primeiro triângulo corresponderia à relação imaginária, da

criança à mãe, e o segundo, à relação dita simbólica, através da entrada do Pai.

Até o “esquema R”, vamos observar que os esquemas propostos por Lacan partem do

triângulo freudiano, com o intuito de separar, em Freud, o que era imaginário do que

era simbólico, na apreensão da função do Pai. A partir do esquema R, Lacan

abandona os esquemas oriundos do Édipo, e toma outro rumo:

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e) em 1957/1958, propõe o “grafo do desejo”, esquema presente no seminário 5, “As

formações do inconsciente”, para tentar conceitualizar a função do Pai no Outro da

linguagem;

f) no mesmo seminário, elabora o conceito de Nome-do-Pai (apresentado já no

seminário das Psicoses, de 1955/56), onde teoriza uma função puramente simbólica

do Pai. O Nome-do-Pai substitui assim o pai da realidade, morto desde “Totem e

Tabu” e tornado significante;

g) ainda em 1958, elabora a metáfora paterna, operação pela qual a operação de

castração passa a ser uma operação de substituição na cadeia simbólica, do

significante Desejo da Mãe pelo significante Nome-do-Pai.

III

No seminário “Les noms du père”, de 1963, Lacan interrompe esta que seria a

elaboração formal do pai, quando ele coloca seu conceito de Nome-do-Pai no plural,

subvertendo-o, ao chamar seu seminário de “os nomes do pai”. Veremos que este

seminário interrompido traz os pontos fundamentais da passagem que faremos do

simbólico ao real, próxima parte, chamada “Les non-dupes errent”.

IV

A parte “Les non-dupes errent” traz o nome do seminário proferido por Lacan em

1973/1974, época que configura a época de seu último ensinamento, ou época do

real. Trataremos da elaboração do “gozo do pai” e da père-version, ou versão de

gozo possível do pai. Lacan continua a elaboração do pai e propõe a função que

desempenha, agora pai real, encarnado, na constituição subjetiva: nada mais de pai

morto, nem de autoritarismo imaginário. Um gozo possível, é o que reclama o pai

real. É por conta deste gozo que as funções precedentes, do não imaginário ao não

simbólico, podem fazer efeito. Porque, enfim, os três registros estão – e sempre

estiveram – enodados.

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I) “Le non du père” em Freud

Chamamos esta primeira parte da investigação psicanalítica do Pai de “le non du

père” por identificarmos, na teoria psicanalítica, uma primeira função do pai: o pai é

aquele que diz “não” ao filho, é aquele que barra, que interdita, que coloca limites.

Identificamos essa função com a primeira elaboração teórica que trata da função do

pai, em torno desta interdição: o Complexo de Édipo freudiano. Antes de Freud

chegar a ela, porém, ele chegou a propor uma outra explicação à etiologia das

neuroses, uma “teoria do traumatismo”, em que o pai a ser considerado no relato das

pacientes era ainda identificado ao pai concreto da realidade.

a) O pai do traumatismo

A Teoria da Sedução Precoce, tal como a elabora Freud, em 189591, foi um primeiro

modelo teórico elaborado a partir de sua prática clínica para a explicação da etiologia

das neuroses. Freud tinha como pacientes jovens diagnosticadas como histéricas,

cujos sintomas físicos tais como paralisias, tosse nervosa, afonia, não tinham

explicação orgânica. A partir do relato de suas pacientes, ele elabora a teoria de que

um trauma vivido em uma tenra infância teria sido o responsável por tais sintomas.

Esse trauma, dizia Freud, teria sido uma confrontação brutal com a sexualidade, em

uma idade precoce, provocada por um adulto. As mulheres ouvidas por Freud

contavam em seus relatos que tinham sido objeto de violências sexuais exercidas por

um parente próximo, e em muitos casos pelo próprio pai. Diz Freud a respeito de

uma paciente:

A doença da irmã causara nela essa impressão tão profunda porque as duas

partilhavam um segredo; dormiam no mesmo quarto e, uma noite, ambas sofreram

as investidas sexuais de certo homem. A menção desse trauma sexual na infância

91 Freud, S. (1895). Estudos sobre a histeria. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

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da paciente revelou não apenas a origem de suas primeiras obsessões como

também o trauma que em seguida produziu os efeitos patogênicos.92

Este encontro prematuro com a cena sexual teria acarretado um traumatismo que

teria sido recalcado durante a infância. Durante a puberdade, fase de (re)encontro

com o sexo, este traumatismo seria re-invocado. Como a consciência não suportaria

tais reminiscências, o recalque manteria as lembranças no inconsciente mesmo na

idade adulta. Estas lembranças dariam origem a uma descarga pulsional sob a forma

de sintomas, como por exemplo os sintomas histéricos:

As experiências que liberaram o afeto original, cuja excitação foi então convertida

em um fenômeno somático, são por nós descritas como traumas psíquicos, e a

manifestação patológica que surge desta forma, como sintomas histéricos de

origem traumática.93

Freud abandona a teoria da sedução precoce por causa da similitude e recorrência

com que tais casos eram relatados por diferentes pacientes. Ele começa a duvidar da

veracidade dos relatos, e se convence de que os incidentes sexuais evocados não

haviam realmente acontecido, mas pertenciam antes à esfera da fantasia. Se em 1895

os sintomas histéricos eram considerados expressões somáticas de um trauma, a

“teoria da sexualidade infantil” torna caduca a concepção de uma infância assexuada,

introduzida violentamente no mundo sexual pelos adultos. A teoria do trauma perde

sentido com a “teoria da sexualidade infantil”, onde Freud chega então à idéia de que

o sintoma histérico seria fruto de um desejo infantil recalcado, que faria força para

ser realizado, e que encontraria uma parte dessa realização na descarga pulsional do

sintoma.

Desde 1897 um novo aparato explicativo começa a povoar a mente de Freud,

ajudando-o a explicar de onde vinham tais fantasias sexuais precoces, ulteriormente

recalcadas, das crianças com relação aos seus pais. O pai do traumatismo cede lugar

92 idem, parte “A psicoterapia da histeria”.

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ao pai do fantasma, e a teoria da sedução precoce ao novo aparato explicativo: o

Complexo de Édipo.

b) O Pai do Édipo

O primeiro modelo teórico proposto por Freud, a “teoria da sedução precoce”, foi

substituído rapidamente pela teoria do Complexo de Édipo. Esta teoria atravessa toda

a obra freudiana, fundamentando e alargando a concepção sobre o aparelho psíquico

e seu funcionamento, mesmo que Freud nunca tenha dedicado um texto específico ao

Édipo, a não ser aquele que trata de sua dissolução.94

Já em 1897, em carta a Fliess, ele confessa ter encontrado nele mesmo “sentimentos

de amor pela minha mãe e de ciúmes pelo meu pai, sentimentos que são, penso eu,

comuns a todas as crianças pequenas”95. Ele escreverá mais tarde a Fliess sobre a sua

dificuldade em abandonar a teoria da sedução pela evidência do caráter da fantasia:

“Isto é tão fácil de reconhecer quanto precisou-se de um verdadeiro esforço

reconhecê-lo”.96

Se Freud partira da teoria da sedução precoce com o intuito de desvendar o caminho

da neurose, a teoria que vem substitui-la pretende-se uma teoria geral da constituição

psíquica, investigando o desenvolvimento normal (no sentido estatístico do termo,

comum a todos) da criança em sua constituição psíquica. Foi pela descoberta da

análise das neuroses que Freud desenvolve o Complexo de Édipo.

O Complexo de Édipo define, de uma parte, as relações psíquicas na família humana,

na triangulação em que se encontra o bebê em seu nascimento, na relação com o pai

e com a mãe. Como explica Lacan, o complexo de Édipo é também, para além das

relações psíquicas familiares, o “protótipo de todas as relações sociais que surgirão

93 idem. 94 Freud, S. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989. 95 Nusinovici (2003). Oedipe (complexe d´). In Chemama, R. (2003), Dictionnaire de la psychanalyse, op.cit., p.294. 96 In Nusinovici (2003), op. cit., p. 294.

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na vida da criança”97. Pode-se dizer, com Freud, que o complexo de Édipo impõe

para a criança a entrada na cultura e a saída do mundo da natureza, pela intrusão do

Outro social ou Outro da linguagem na relação fusional que caracteriza a relação

mãe-bebê desde o nascimento, mundo da satisfação pulsional. Como diz Lacan, o

Édipo se caracteriza por uma “trucagem cultural”98, através de uma “normalização”

dos impulsos instintivos.

O complexo de Édipo se caracteriza por um desejo sexual da criança pelo objeto

mais próximo que se apresenta a ela para a satisfação de suas necessidades. Em

geral, a mãe. A outra característica do complexo é a inibição forçada desta excitação

por um outro adulto, em geral o pai, que se coloca como um terceiro na relação dual

e suficiente entre mãe e filho, servindo de obstáculo à sua plena satisfação.

De maneira geral, são duas as relações que confluem para a realização do complexo:

de um lado, um investimento libidinal à mãe. De outro, uma identificação

ambivalente ao pai, pela rivalidade que ele representa em face dos cuidados da mãe,

junto a uma fascinação pelo fato de ser tomado como o objeto de escolha da mãe,

tornando-se um ideal.

Porém, é por simplificação que reduzimos o complexo de Édipo do menino a uma

atitude ambivalente em relação ao pai e amorosa em relação à mãe: “esta é somente a

parte positiva do complexo”, explica Nusinovici:

Uma investigação mais profunda descobre-o na maior parte do tempo sob sua

forma completa, positiva e negativa, o menino adotando ao mesmo tempo uma

posição feminina terna pelo pai e a posição de correspondente hostilidade

enciumada pela mãe.99

97 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux, op.cit., p.13. 98 Lacan, J. (1949). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. In Écrits, vol.I, nouvelle édition en poche. Paris: Seuil, 1999, p.97. 99 In Chemama (2003), op.cit., p. 294.

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O complexo de Édipo seria destruído, segundo Freud, pelo complexo de castração. O

menino abandona o investimento objetal à mãe, pois os desejos edípicos tornam-se

insuportáveis e implicam uma sanção imaginária terrível, a castração como punição

ao incesto. O menino toma então o pai como objeto de identificação, na medida que

tenha reconhecido o pai como obstáculo à realização dos desejos edípicos. O filho

introjeta sua autoridade, erigindo nele mesmo um obstáculo forte o suficiente aos

impulsos libidinais em relação à mãe. Esta introjeção da autoridade do pai, sob temor

da castração, configura o nó do Supereu.

Por outro lado, pela fascinação que o pai desperta na criança, por ser ele o objeto de

predileção da mãe, entre todos os outros objetos do mundo, o pai representa para a

criança um ideal, tanto pelo seu tamanho, força física (e outros dotes), como aquele

que, enfim, teria com a mãe uma especial relação, a relação proibida à criança. Desta

intromissão do pai na relação do filho com a mãe nascem as duas instâncias

psíquicas necessárias à aculturação, oriundas do Complexo de Édipo: o “supereu” e o

“ideal do Eu”. A tensão provocada pela entrada do pai na relação suficiente entre

mãe e filho, então, se resolve por dois caminhos: pelo recalque da tendência sexual

pela mãe, e pela identificação do filho ao pai.

Qual se torna o destino da pulsão, que na teoria da sedução precoce tinha sua

satisfação parcial através do sintoma histérico? A tendência sexual que era antes

voltada à mãe é inibida, e a pulsão sexual que a originava, deslocada, conforme

explica Lacan:

A tensão assim constituída se resolve, de uma parte, por um recalque da tendência

sexual que restará latente, deixando lugar a interesses neutros, eminentemente

favoráveis às aquisições educativas até a puberdade. De outra parte, pela

sublimação da imagem parental que perpetuará na consciência um ideal

representativo. Esse duplo processo tem uma importância genética fundamental,

pois ele resta inscrito no psiquismo em duas instâncias permanentes: esta que

recalca se chama supereu, e esta que sublima, ideal do eu.100

100 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux, op.cit., p.13.

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Em seu artigo de 1938 “Os complexos familiares”, escrito para a Enciclopédia

Francesa, Lacan comenta longamente sobre o complexo de Édipo, como o “pivô

subjetivo” do homem cultural. Diz que a importância maior do complexo é

reconhecer que o que caracteriza a espécie humana é esta subversão da fixidez

instintiva, de onde surge toda a cultura.

Esta é uma idéia central na teoria freudiana. Em “O mal estar da civilização”, Freud

diz que “a neurose foi encarada como o resultado da luta entre o interesse da auto-

preservação e as exigências da libido”101, onde entende-se por ‘interesses de auto-

preservação’ a necessidade de reprimir os instintos para tornar possível a vida em

comunidade, ou seja, para possibilitar a própria existência da cultura.

Lacan diz ainda que o complexo familiar do Édipo “preside aos processos

fundamentais do desenvolvimento psíquico”.102 É a interdição do incesto, então, que

preside o processo de passagem da natureza à cultura, tendo como efeito uma aliança

cultural. O complexo de Édipo marcaria os limites da subjetividade, “no movimento

das estruturas complexas da aliança, verificando os efeitos simbólicos do movimento

tangencial em direção ao incesto”.103 Ou seja, é o movimento em direção ao incesto,

sempre tangencial por causa da repressão dos instintos, que tem como efeito

simbólico a aliança cultural. Continua Lacan:

A Lei primordial é esta que, regrando a aliança, superpõe o reino da cultura ao

reino da natureza exposta à lei do acasalamento.104

Fiel ao pensamento freudiano, Lacan nos ajuda, finalmente, a esboçar a dupla função

do Édipo, ou a dupla função do pai, oriunda do esquema freudiano: de um lado

normatizadora, efeito da norma, lei da repressão pelo pai internalizado pela criança

101 Freud, S. (1930). O mal estar da civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 76. 102 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux, op. cit, p.3. 103 Lacan, J. (1956). Fonction et champ de la parole et du langage. in Écrits, op.cit., p. 275. 104 idem, p. 275.

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como supereu. De outro, normalizadora, pela possibilidade de acesso à realidade,

através da identificação ao pai, e à introjeção do ideal do eu.105

Este processo de identificação ao pai se constrói para Freud por causa da potência

imaginária que o filho credita ao pai. É a posse do falo que faz com que o pai seja

potente, não como órgão da realidade, mas o falo enquanto operador simbólico na

dialética subjetiva. A organização fálica marcaria, para Freud, a dissolução do

complexo de Édipo, em torno da dialética que se ofereceria para a criança em “ter o

falo ou ser castrado”. Ter o falo assumiria não somente a presença do órgão sexual

(posto que as crianças, como observa Freud, ignoram a presença da vagina, e

dividem o mundo em termos de ter ou não ter o pênis), mas uma potência simbólica,

símbolo de virilidade e potência. É a rivalidade com o pai em torno da posse do falo

que lança o filho para fora do Édipo, por não poder competir com ele com “as

mesmas armas”.

Finalmente, é através do complexo freudiano do Édipo e da função de repressão dos

instintos que ele confere ao pai, que toda a trama psíquica pode se desenvolver. Da

saída do colo da mãe ao mundo, estaria o pai responsável por essa dívida simbólica

com a cultura, a de tirar seu filho do gozo em que instintivamente ele ficaria

aprisionado (auto-suficiente com a mãe), levando-o, como representante da cultura,

ao Outro.

Enfim, o pai freudiano é este que diz não ao filho: “não possuirás tua mãe!”,

interditando o incesto ao filho. A repressão de seus instintos ao incesto o leva a temer

a castração, pela rivalidade imaginária em que se encontra a criança com relação ao

pai.

Vale repetir que para Freud a repressão dos instintos, segundo o modelo edípico que

vimos, é o que possibilita a existência da cultura. Paradoxalmente, Freud criticava as

práticas educacionais de sua época, por causa de uma repressão demasiada que

levaria ao aparecimento das neuroses, chegando a acreditar ser possível uma ação

105 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux, op.cit., p. 15; e Lacan, J. (1957-58). Seminário 5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 167.

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profilática da educação através de uma diminuição da repressão, a fim de evitar o

aparecimento das neuroses. Mas ele abandonou esta posição em seus últimos

escritos, convencido de que era impossível evitar o aparecimento da neurose.

Mesmo assim, não encontramos em Freud nenhum tratado sobre educação, como

explica Millot106. De todo modo, poderíamos supor algo como uma repressão

necessária para que a educação possa advir, uma posição onde, em algum momento,

o “não” do adulto/educador seria necessário às aquisições educativas.

Pretendemos problematizar esta posição, na passagem de uma posição imaginária da

função do pai, do “não” pela força, pelo temor, pela potência, a uma posição

propriamente simbólica. Mesmo que em Freud e no complexo de Édipo os elementos

de uma tópica simbólica já estivessem presentes (como na distinção entre falo

imaginário e falo simbólico), é na publicação de “Totem e Tabu” (em 1912) que a

passagem do imaginário ao simbólico pode se concretizar, através da morte do pai.

c) O pai totêmico

Da família conjugal moderna que analisava através dos relatos de seus pacientes,

Freud dá um salto a uma família hipotética, que estaria na origem da passagem da

natureza à cultura. Se já no Complexo de Édipo ele havia buscado no passado uma

representação, encontrada no drama de Sófocles, “Édipo-Rei”, agora seu salto é

ainda maior. Freud tenta imaginar como seriam os primórdios da humanidade, algo

como uma horda primitiva que se assemelharia à horda animal, onde o macho mais

forte do grupo dominaria os outros machos e possuiria todas as fêmeas para si.

O intuito de Freud era o de localizar a passagem do homem da natureza instintiva à

regulação da cultura. Através da análise que faz dos estudos de Frazer sobre o

totemismo, ele procura entender a relação entre totemismo e exogamia, como uma

“fase necessária do desenvolvimento humano, universalmente atravessada.”

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O totem seria uma organização social e/ou religiosa, que as tribos primitivas

adotariam na ausência das “instituições modernas” para a organização da vida social.

O totem é a base das obrigações sociais de um grupo, sobrepondo-se às filiações

tribais e às suas relações consangüíneas. Enfim, o sistema totêmico é um sistema de

proibições impostas pelo clã aos seus integrantes, e a punição pela transgressão do

totem era muitas vezes a morte.

As relações de parentesco no sistema totêmico substituem o parentesco

consangüíneo, através da interdição do casamento com pessoas do mesmo totem. O

totem marca um sistema classificatório de parentesco, baseado na divisão simbólica

do grupo. Isso leva os antropólogos – e o próprio Freud – a se questionarem sobre

essa relação entre o sistema totêmico e a lei contra as relações sexuais entre pessoas

do mesmo totem. A relação entre a exogamia – ou tabu do incesto – e a proibição, ou

lei totêmica, descritos por Frazer nos povos “primitivos” da América do Sul e da

Austrália, vai ser de especial interesse a Freud, às voltas com a etiologia das neuroses

e com o drama edípico. Seria esta uma pista para a genealogia de seu Complexo? O

desenvolvimento natural das civilizações ditas primitivas ao mundo simbólico da

cultura deveria ser calcado em uma proibição universal do incesto, e assegurada

através de uma lei simbólica, a lei totêmica? A conclusão de Freud é que o

totemismo se constitui em um sistema que provê a base de toda organização social:

A cultura totêmica em toda parte preparou o caminho para uma civilização mais

adiantada e, assim, que ela representa uma fase de transição entre a era dos

homens primitivos e a era dos heróis e deuses.108

Na tentativa de localizar um passado mítico, passagem da horda primitiva ao sistema

totêmico – ou primeiro sistema simbólico – de proibição e organização das

sociedades ditas culturais, para buscar a genealogia de seu próprio pensamento

quanto ao drama edípico, Freud vale-se da hipótese de Darwin sobre o estado social

dos homens primitivos. Diz que o homem vivia em grupos ou hordas, relativamente

pequenos, dentro dos quais o medo do macho mais velho e mais forte impedia a

108 Freud, S. (1912). Totem e Tabu, op.cit., p. 107.

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promiscuidade sexual. Este macho ciumento possuía todas as fêmeas do grupo, e

expulsava os machos mais novos que tentassem afrontá-lo, proibindo aos outros

machos qualquer acesso às fêmeas. O único macho que gozava era este pai da horda,

temido pela sua força e potência.

Mas diz Freud que o sistema que propõe Darwin fica incompleto. Não haveria lugar

para o totemismo na horda primeva tal qual Darwin a imagina, pois “tudo o que

encontramos aí é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si

próprio, e expulsa os filhos à medida que crescem”109. Freud tenta então reconstituir

os últimos dias deste pai temido, pai forte, pai tout-jouisseur, através de um retorno

mítico dos filhos expulsos do clã:

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e

devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a

coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer

individualmente. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado

modelo de cada um do grupo de irmãos, e pelo ato de devorá-lo, realizavam a

identificação com ele.110

Freud continua dizendo que um sentimento de culpa surgiu, pois odiavam o pai que

representava um obstáculo aos desejos sexuais dos filhos, mas amavam-no e

admiravam-no também. O pai morto tornara-se mais forte do que o fora vivo, e o que

até então fora interdito pelo pai vivo passou a ser interdito pelos irmãos entre si, em

uma aliança simbólica em torno do Nome do pai: o totem, substituto simbólico da

lei, que representava o pai morto. Como o animal totêmico era um substituto do pai,

os filhos poderiam tentar, na reconciliação com esse substituto e na deferência à lei

que ele promulgava, uma espécie de reconciliação com o próprio pai. É por isso que

Freud diz, finalmente: “O sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o

pai”.111

109 idem, p.145. 110 ibidem, p.146. 111 ibidem, p.148.

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De que pacto fala Freud? De um duplo pacto simbólico, conseqüência da morte do

pai. De um lado, a manutenção da interdição do incesto em nome do Pai. De outro, o

pacto da aliança simbólica dos irmãos ao totem, através da identificação ao pai, que

como vimos anteriormente no Complexo de Édipo, tem uma dupla vertente: uma

identificação à lei introjetada, e uma identificação ao pai amado. Ora, mas porque

tudo isso, porque falarmos do pai totêmico, se Freud havia já chegado a conclusões

semelhantes somente com a análise da neurose e com a construção do Complexo de

Édipo?

Podemos dizer que a construção do Édipo e do mito totêmico foram para Freud o

meio de dar conta da função simbólica do pai, na relação complexa que se estabelece

na família humana, Outro para a criança.

Como diz Lacan, a entrada no mito edípico engendra uma rivalidade quase fraterna

com o pai:

A agressividade em questão é do tipo daquelas que entram em jogo na relação

especular, onde o ‘eu ou o outro’ é sempre a mola fundamental. (...) É devido a

essa etapa, ou mais exatamente a esse vivido central essencial do Édipo no plano

imaginário, que este complexo se expande.112

A preocupação de Freud era a de apreender a função simbólica do pai para além de

suas considerações imaginárias, passo que foi efetivado com a morte do pai na

realidade. Diz Lacan:

Antes que haja o Nome-do-Pai, não havia pai, havia todas as espécies de outras

coisas. Se Freud escreveu Totem e Tabu foi porque ele pensava entrever o que aí

havia.113

112 Lacan, J. (1956-57). Seminário 4, op.cit., p.211. 113 Lacan, J. (1955-56). Seminário 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 344.

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Devemos dizer que o mito totêmico contém dois momentos: o momento do pai vivo,

todo poderoso, forte, potente, temido, que gozava de todas as mulheres. A este

momento identificamos o pai como “pai imaginário”, pois a função do pai está ligada

à potência do corpo. Poderíamos ainda considerá-lo equivalente ao pai do

patriarcado, como vimos na primeira parte deste trabalho. O segundo momento,

momento do pai morto, é o momento do “pai simbólico”, quando o pai morto se

transforma em significante, e quando é este significante que passa a fazer a função de

interdição. Este é o pai da modernidade.

É este salto de Freud que possibilita a Lacan retomar o pai já pela diferenciação dos

registros: em 1953, através do “Mito individual do neurótico”, Lacan retoma o

esquema triangular e o subverte, propondo um esquema de 4 pontos, em vez de 3.

Por que? Veremos que a proposta do “Mito Individual”, assim como a metamorfose

que Lacan imprime ao triângulo edípico, tem uma finalidade: separar o imaginário do

simbólico, para a apreensão da função do Pai.

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II) “Le Nom-du-Père”, ou Lacan freudiano

Dividimos este segundo período da teorização da função do Pai em psicanálise neste

momento que tem início após o pai morto de “Totem e Tabu”. Lacan desenvolve o

registro simbólico do Pai a partir do legado freudiano, neste período que chamaremos

de período do Nome, “le Nom-du-Père”. Procedemos desta forma pois o conceito

lacaniano de Nome-do-Pai ficou identificado, na teoria psicanalítica, ao registro

simbólico, principalmente a partir do “Seminário das Psicoses” (1955-56).

Lacan toma o complexo de Édipo em seus aspectos estruturais, com o propósito de

limpá-lo das considerações imaginárias que o confundiam a uma rivalidade entre pai

e filho. Porge explica a empresa lacaniana:

Lacan concebe o Nome-do-Pai como uma espécie de épura do complexo de

Édipo, de extração de seu mineral precioso (...) O Nome-do-Pai visa reduzir a

teoria do Édipo ao que ela tem de estrutural.114

Escolhemos como caminho a investigação dos esquemas lacanianos, perseguindo a

transformação do triângulo edipiano em um esquema quaternário no “Mito

Individual”. A seguir, este sistema quaternário ganha uma nova elaboração no

esquema L e mais tarde, no esquema R. Veremos que após o esquema R, Lacan

abandona a transformação do triângulo edipiano, quando propõe o Grafo.

a) Lacan freudiano

Chamamos este período do período de um Lacan freudiano, época do Outro e da

primazia do simbólico, em comparação a um período de um Lacan lacaniano, época

dos nós e do Outro barrado, último ensinamento de Lacan, como veremos mais à

frente.

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Em “O mito individual do neurótico”, de 1953, Lacan propõe certas “modificações

de estrutura ao mito freudiano”. 115 Estas modificações importam muito à nossa

pesquisa pois elas incluem o pai, na tentativa de diferenciação entre o “pai

imaginário e o pai simbólico”. Diz Lacan que a importância do pai está no centro da

teoria analítica, toda ela

sustentada pelo conflito fundamental que, pelo intermediário da rivalidade ao pai,

liga o sujeito a um valor simbólico essencial, sempre em função de uma certa

degradação concreta da figura do pai.116

Lacan, aqui, parte da rivalidade imaginária com o pai como caminho necessário à

função simbólica. Ele coloca o valor simbólico do pai ao lado do que ele chama de

“degradação concreta da figura do pai”, o que hoje em dia é muito discutido em

psicanálise com o nome de “declínio da imago do pai na modernidade”.

Este “declínio da imago do pai” não é novo para a psicanálise. Lacan já se referia a

ele em 1938, nos “Complexos familiares”, chamando-o de “declínio social da imago

do pai”, alertando para suas conseqüências:

Um grande número de efeitos psicológicos nos parecem provenientes deste

declínio social da imago do pai, declínio condicionado pelo retorno sobre o

indivíduo dos efeitos extremos do progresso social.117

Ele cita alguns destes efeitos, como a concentração econômica, a dialética política da

relação entre os homens, e a dialética da família conjugal. Lacan fala também, em

1938, de uma imagem degradada do pai sob a forma de um pai “carente, ausente,

humilhado, dividido”, que produziria no “berço do neurótico a impotência e a

utopia”, herança maldita do pai com a qual o filho terá que atravessar a tarefa de

114 Porge, E. (1998). Os nomes do pai em Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, p.41. 115 Lacan, J. (1953). Le mythe individuel du nevrosé. In Ornicar?, n.17/18, Paris, 1977, p.292. 116 idem, p. 292. 117 Lacan, J. (1938). Les complexes familiaux, op.cit., p. 20.

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subjetivação. Entre a imagem e a função, havia para Lacan uma ligação que poderia

engendrar problemas na filiação simbólica.

Se de um lado vemos um Lacan pouco otimista com relação ao futuro da função, em

1938, quando o pai estava ainda preso na (im)potência da imago para desempenhar

sua função simbólica, o Lacan de 1953 tenta desatar o nó. Ele fala sobre o pai:

Já bem apagado pelo declínio de nossa história, desta posição de mestre, insere na

dimensão das relações humanas fundamentais este que está na ignorância, e que

organiza a ele isto que podemos chamar de acesso à consciência.118

Ou seja, mesmo apagado em sua imagem, destituído do lugar de mestre, de rei ou de

deus, que ocupava nas sociedades tradicionais, esta posição simbólica do pai

continuaria fazendo a função que lhe cabe no seio da família humana, de tirar a

criança (“aquele que está na ignorância”) do estado de natureza, do gozo materno,

levando-a ao mundo simbólico compartilhado, organizando o que Lacan chama de

“acesso à consciência”.

Se a questão do “declínio do pai” não é nova, já fazendo parte do mundo em que

Lacan vivia, na França de 1938, tampouco era nova para Freud, como já dissemos.

Diremos, pois, que este “período do Nome” é o período de um “Lacan freudiano”: se

o conceito de Nome-do-Pai é de Lacan, devemos considerar que sua tentativa de

formalizar a função simbólica do pai foi uma continuação da elaboração freudiana do

pai.

Em face da degradação imaginária que o pai sofria com a modernidade, a tentativa de

Freud foi a de recolocar o Pai em seu lugar simbólico da função, lugar por excelência

do Outro. Este foi o caminho de Freud, o caminho do Outro. Nas palavras de J.-A.

Miller, “o período freudiano da psicanálise é este período do Outro” 119. Lacan, ele,

continua a empresa iniciada por Freud na formalização do Pai simbólico,

118 Lacan, J. (1953). Le mythe indivivuel du nevrosé, op. cit., p.293. 119 Miller, J.-A. (1996). L´Autre que n´existe pas. Aula de 20/11/1996. Paris, inédito.

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estruturando o campo do Outro até chegar em seu limite. Por isso chamamos este

período simbólico de sua elaboração teórica do período de um “Lacan freudiano”.

Em 1953, Lacan continua com a questão de Freud: degradado e humilhado em sua

imago, sim. Por isso, ele tenta avançar na separação dos registros, através da

construção disto que ele chama de “mito individual”.

b) O sistema quaternário em “O mito individual do neurótico”

Lacan explica este “mito individual” como sendo um “cenário fantasmático”, cenário

que o sujeito constrói a partir de sua apreensão subjetiva da relação inaugural entre o

pai, a mãe e o sujeito. Reconhecemos aqui Freud e seu Complexo de Édipo, nada a

acrescentar, é bem disto que fala Lacan. Porém, ele fala do esquema triangular de

Freud para subvertê-lo, propondo uma espécie de “diplopia”:

Temos aqui uma coisa muito diferente da relação triangular considerada como

típica à origem do desenvolvimento neurótico. A situação apresenta um tipo de

ambigüidade, de diplopia (...) e é precisamente na impossibilidade de se fazer

encontrar estes dois planos que se joga todo o drama do neurótico.120

De que diplopia fala Lacan? Em 1949, Lacan havia publicado o artigo “O estádio do

espelho como formador da função do Eu”, em que ele trazia uma formulação do

processo imaginário presente na constituição psíquica. O termo diplopia ao qual

Lacan se refere no Mito faz referência ao esquema óptico do estádio do espelho (que

veremos no tópico seguinte), sendo um termo utilizado na clínica oftalmológica para

designar a visão dupla de um objeto.

Diz Lacan no “Mito Individual” que pode haver duas diplopias: uma diplopia do

objeto e uma diplopia do sujeito. Para tanto, ele toma como exemplo o caso

120 Lacan, J. (1953). Le mythe individuel du nevrosé, op.cit., p.299.

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freudiano do Homem dos Ratos121, explicando que quando o sujeito consegue

assumir seu próprio papel social, ele ficaria idêntico a si mesmo, idêntico à imagem.

Neste caso, é o objeto que se desdobraria em dois. Para o “homem dos ratos”, este

objeto é o objeto feminino, que se desdobra em mulher rica, mulher idealizada que

empurra o sujeito a uma identificação mortal, e mulher pobre, mulher da realidade

com a qual o sujeito tem relações. Continua Lacan dizendo que quando o sujeito não

consegue desdobrar o objeto, é ele mesmo quem se desdobra: de um lado, um

personagem social e viril com o qual o sujeito tem uma relação narcísica mortal, ao

qual ele delega a tarefa de representá-lo em sua vida social. O sujeito, deste modo,

fica empobrecido, desvitalizado libidinalmente, se sentindo excluído de suas próprias

experiências.

O que nos interessa aqui sublinhar deste caso é essa duplicação que sugere Lacan no

esquema edípico. Ele propõe um sistema não mais de três pontos (pai, mãe e filho,

com o desejo incestuoso pela mãe e a interdição do pai e seus efeitos de barragem),

mas um sistema de quatro pontos, quaternário, dizendo “que o sistema tradicional

triangular é insuficiente para explicar as insolubilidades da situação vital dos

neuróticos”.122

Lacan está às voltas com o problema do desdobramento da imagem, problema que

ele havia tratado já no estádio do espelho, mas que ele tenta aqui integrar ao esquema

edípico, à função do pai, separando o imaginário do simbólico. Ele diz:

Se o pai imaginário e o pai simbólico estão normalmente fundamentalmente

distintos, não é somente por uma razão estrutural que eu estou lhes indicando, mas

também de uma maneira histórica. (...) No caso dos neuróticos, é muito freqüente

que este personagem do pai esteja duplicado.123

121 Freud, S. (1909). Notas sobre um caso de neurose obsessiva. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989. 122 Lacan, J. (1953). Le mythe individuel du nevrosé, op.cit., p. 304. 123 idem, p. 306.

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c) A dissociação da imagem e o Estádio do Espelho

A empresa lacaniana, como em Freud, caminha no sentido de resolver o nó da função

em que se vê o pai. Em 1957, Lacan colocava que “a interrogação ‘O que é o pai?’

está no centro da experiência analítica como eternamente não-resolvida, pelo menos

para nós, analistas”.124 A distinção dos registros imaginário e simbólico toma um

sentido importante para a apreensão da função do pai. Neste sentido, a elaboração do

“estádio do espelho”, em 1936, pode ser considerada o caminho lógico que levará

Lacan a formular em 1953 (como vimos no “Mito Individual”) a distinção entre pai

imaginário e pai simbólico.

Segundo Porge125, o imaginário foi introduzido por Lacan em seu artigo “Le stade du

miroir”, de 1936, artigo que nunca foi publicado. Em 1938 ele retoma o assunto em

seu artigo para a Enciclopédia Francesa sobre os “Complexos Familiares”, mas é só

em 1949 que ele escreve (e publica) um artigo sobre o Estádio do Espelho126,

preocupado em diferenciar os planos imaginário e simbólico, na passagem do “eu

especular ao eu social”.

Lacan elabora sua teoria do espelho como um estágio primeiro do desenvolvimento

mental, fundamental à constituição psíquica. Se acompanharmos os três tempos do

Édipo freudiano, que Lacan esquematiza como sendo o tempo da alienação, da

separação e da identificação127, podemos situar o estádio do espelho neste primeiro

tempo, dito da alienação, condição fundamental para que possa haver a separação

posterior creditada ao Pai.

Que tempo primeiro seria esse? Seria um tempo de prematuração: o bebê humano

nasceria prematuro, com um “inacabamento anatômico do sistema piramidal”.128

Esta prematuração do nascimento seria marcada por uma total dependência do bebê à

124 Lacan, J. (1956-57). Seminário 4, op.cit., p. 383. 125 Porge, E. (1998), op. cit., p. 29. 126 Lacan, J. (1949). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. In Écrits, op.cit., p.92. 127 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 185. Resumidamente: alienação ao Outro primordial, a mãe; separação provocada pelo enfrentamento do Édipo pela entrada do Pai na relação dual entre mãe e filho; identificação ao Ideal do Eu como efeito do atravessamento do Édipo e como resolução da rivalidade, e do Supereu como introjeção do lei do Pai. 128 Lacan, J. (1949). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du je, op.cit., p. 95.

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mãe durante os primeiros anos de vida, por uma impotência motora, por uma

dependência de alimentação, por uma inteligência instrumental reduzida, e por uma

não-consciência da imagem do corpo.

A fase do espelho recebe este nome por ser a fase em que a criança se reconheceria

no espelho, reconheceria sua imagem como sendo ela própria. No início da vida o

bebê humano não teria esta capacidade, não reconhecendo seu corpo como integrado,

como uma totalidade, mas sim fragmentado. O estádio do espelho seria este

momento em que a criança, “através de uma série de gestos onde ela prova

ludicamente a relação dos movimentos assumidos da imagem refletida num

espelho”129, apreenderia a imagem e sua totalidade como sua própria imagem.

Nesse sentido, Lacan chega mesmo a dizer que deveríamos compreender o estádio do

espelho como uma primeira “identificação”, como uma “transformação produzida no

sujeito quando ele assume uma imagem”. Apesar de guardarmos o cuidado com que,

em psicanálise, a fase da identificação é localizada, cujo atravessamento depende do

Outro e da linguagem, explica Lacan que esta primeira identificação seria uma

“identificação à própria imagem”, antes mesmo da entrada do Outro, ou antes que ele

se “objetive na dialética da identificação ao outro e que a linguagem o restitua no

universal sua função de sujeito”.130

Na verdade, este reconhecimento – ou identificação primeira – não seria um

reconhecimento lógico. Lacan explica a fase do espelho como uma fase “da

insuficiência à antecipação”.131 A criança passaria de uma imagem despedaçada do

corpo a uma “forma ortopédica de sua totalidade”, antecipando sua imagem como

uma “miragem da maturação de sua potência”.132

Assim, a criança antecipa, em um registro imaginário, a construção unificada do

corpo, e de outro lado, algo deste lugar que seu corpo assume frente ao outro, lugar

de objeto do desejo do Outro. Para entendermos esta posição subjetiva que marca o

129 idem, p. 92. 130 ibidem, p. 93. 131 ibidem, p. 96. 132 ibidem, p. 94.

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início da alienação da criança ao Outro primordial, Lacan explica que a “reflexão

especular” pela qual passa a criança neste estádio chamado do espelho reflete o

desejo do Outro na criança. Em outras palavras, o que a criança vê no espelho é o

que o Outro deseja dela, o que o Outro deseja de sua imagem. É como se a criança

olhasse no espelho com os olhos da mãe, ou como se olhasse sua imagem refletida

dentro dos olhos da mãe.

O estádio do espelho, então, é marcado por três aspectos: simboliza a permanência

mental do Eu; prefigura seu destino alienante à imagem do outro semelhante, numa

relação antecipada ao seu corpo pela relação ao corpo do outro, ou seja, a relação à

sua imagem através da imagem do outro. Terceiro, produz a alienação da criança à

imagem que o Outro deseja para ela, ou seja, uma alienação ao desejo do Outro.

O momento de ultrapassagem do estádio do espelho é o momento de virada do eu

especular ao eu social, na dialética que liga o Eu às situações ditas sociais,

inaugurando assim o momento de descolagem da imagem especular que o Outro tem

dela. Em outras palavras, o estádio do espelho acaba pela entrada do terceiro

elemento na relação alienada entre mãe e criança, exclusiva, relação que aliena a

criança ao desejo da mãe, relação constitutiva de sua imagem.

Por isso, Lacan chama o Édipo de “trucagem cultural”, por obstruir o impulso dos

instintos de forma não natural, através da “normalização da maturação sexual

natural”, impedindo que a criança fique capturada na imagem alienante da mãe,

primeiro objeto de relação da criança.

Do espelho – alienação da criança à imagem do outro – podemos compreender o

esquema L, quando Lacan transforma o triângulo freudiano inserindo nele o par

especular [a – a´] trazido no espelho.

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d) O Esquema L

É em seu “Seminário sobre a carta roubada”, de 1955, que Lacan elabora seu

esquema L, esquema que continua a elaboração quaternária do Édipo introduzida no

“Mito Individual”: dos três pontos existentes no esquema freudiano a um esquema de

quatro pontos. Toda a construção do esquema de quatro pontos tem o intuito, desde o

“Mito individual”, da diferenciação dos planos imaginário e simbólico, através da

diferenciação, no esquema, dos agentes envolvidos no drama edípico (pai, mãe e

filho) do plano da realidade imaginária. Lacan transforma os personagens em pontos

de uma estrutura, determinados pela posição no Outro que eles representam. É assim

que Lacan se exprime na apresentação do esquema L:

É assim que o homem vem a pensar a ordem simbólica, que ele é primeiro

capturado em seu ser. A ilusão que se formou pela consciência provém disto que é

pela via de um buraco específico de sua relação imaginária a seu semelhante, que

ele pôde entrar nesta ordem como sujeito.133

Esquema L134

A relação que Lacan tenta demonstrar através do esquema L é a relação que ele traz

do estádio do espelho, representando a diplopia da imagem, através do par [a – a´]. O

[S] representa o sujeito, [a] é o outro semelhante, pequeno outro, este que é o

primeiro objeto de relação que se apresenta à criança, representado pela mãe; [a´] é a

imagem que se forma pela duplicação do reflexo em [a], ou seja, pelo reflexo do

sujeito nos olhos da mãe, alienado ao desejo da mãe; e [A] é o lugar do Outro,

133 Lacan, J. (1955). Le séminaire sur la lettre volée. In Écrits, op.cit., p. 53. 134 Esquema L. In Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.163.

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representado pelo pai enquanto terceiro da relação, enquanto representante do mundo

da cultura, que interdita o gozo narcísico da criança com sua própria imagem.

J.-A. Miller fala dessa relação imaginária presente na constituição subjetiva, que

tentamos apresentar aqui como um caminho lógico entre o estádio do espelho e o

esquema L:

Estes dois termos, [a – a´], são a expressão simplificada do estádio do espelho, e

que dizem deste enquadre fundamental, enquadre originário, relação do sujeito

com sua imagem, imagem que em definitivo vai estruturar a si mesmo e ao mundo

de seus objetos em uma relação de espelho, com relação ao que se distingue a

relação simbólica.135

A partir do espelho, mostra Lacan que, ao diferenciarmos o imaginário do simbólico

na relação da criança com o outro, a trama imaginária se interpõe em sua relação

com o Outro, localizado em [A]. No esquema L, os eixos seriam representados por

vetores, e o eixo imaginário [a – a´] faria barreira ao eixo simbólico, representado

pelo pontilhado, de [A] a [S].

Esquema L136

135 Miller, J.-A. (2000). ...Du nouveau!, introduction au séminaire V de Lacan. Paris: Rue Huysmans, collection éditée par l´ECF, p. 63.

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Lacan explica:

O esquema L serve justamente para indicar que a questão é saber se, no vetor que

vai do Outro para o sujeito, alguma coisa transpõe ou não transpõe essa relação

imaginária.137

Desse modo, a relação de [S – A] passaria ainda por outros dois momentos: a relação

entre o par [S – a] seria a relação especular ao outro semelhante, relação invocada

desde Freud como relação narcísica,138 explicitada no espelho. A relação a este outro

semelhante é colocada por Lacan como sendo entre o “ser do sujeito”, ou “sua

inefável e estúpida existência” (posto que ainda não poderíamos falar em sujeito), e

seus objetos, a mãe sendo colocada então neste lugar de objeto do mundo, objeto que

existe para servir ao sujeito. Desta relação surge a imagem do Eu, [a´], reflexo de

sua forma nos objetos, reflexo de sua forma em [a], como vimos no espelho. Este

Eu, Lacan o localiza entre [a – a´], ou seja, “no véu da miragem narcísica,

eminentemente adequada para sustentar, por seus efeitos de sedução e captura, tudo o

que vem nela refletir-se”139.

A partir desta relação narcísica com este objeto, forma-se o reflexo do Eu, reflexo no

outro, até que a criança possa se distanciar desta imagem alienada e chegar ao A,

ponto no Outro onde ela se torna sujeito. Como diz Lacan, este ponto A pode ser

entendido como o “lugar de onde lhe pode ser formulada a questão de sua

existência”.140 Neste lugar, encontramos o Pai, enquanto Outro que livra a criança da

relação alienada ao espelho da mãe. Neste lugar do Outro, lugar de questionamento

do sujeito em sua existência, é realmente o “próprio significante que deve articular-se

no Outro, especialmente em sua topologia de quaternário”.141

136 Esquema L (completo). Lacan, J. (1955), Le séminaire sur la lettre volée. In Écrits, op.cit., p.53. 137 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 527. 138 Segundo Lacan em “Le seminaire sur la lettre volée” (1955), op.cit., p. 53/54. 139 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 557. 140 idem, p. 555. 141 ibidem, p. 557.

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Para compreendermos a relação simbólica presente no esquema L através desta

travessia sinuosa pela qual o sujeito deve passar para chegar ao Outro, vamos

introduzir o esquema seguinte, o esquema R, a próxima metamorfose do triângulo

que nos propõe Lacan.

e) O Esquema R

É em 1958 que Lacan introduz o esquema R, no texto “De uma questão preliminar a

todo tratamento possível da psicose”. Como explica J. A. Miller142, o esquema R é

uma transformação do esquema L, tanto que podemos ver no interior de seu

quadrado todos os antigos pontos do esquema precedente, como se ele tivesse

englobado o outro.

Esquema R143

Este esquema não é mais representado por vetores, como havíamos visto no esquema

L, mas por zonas, uma zona imaginária e uma zona simbólica. Representadas por

dois triângulos, têm como espaço intermediário o espaço destinado ao Real. Aqui

podemos ver a transformação na qual passou o triângulo freudiano, na diferenciação,

cara para Lacan, dos registros:

142 Miller, J.-A. (2000). ...Du nouveau!, op.cit., p. 63. 143 Esquema R, in Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar.... In Escritos, op.cit., p. 559.

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Esquema Edípico Esquema L Esquema R

Quando analisamos a representação gráfica do esquema R, percebemos que o

triângulo simbólico representa a metade da área total do quadrado, a outra metade

sendo dividida entre o imaginário e o real. Esta observação é de Marc Darmon144,

que explica que nessa época (anos 50), Lacan dá ao simbólico um papel

predominante na constituição subjetiva, com primazia sobre o imaginário da relação

especular e da imagem do corpo. O real, por outro lado, registro distinto da realidade,

seria enquadrado e mantido pela relação entre o imaginário e o simbólico, região

intermediária entre os dois triângulos.

Esta primazia do simbólico sobre o imaginário pode ser entendida pelo próprio

atravessamento do complexo edípico na constituição subjetiva, como explica

Darmon:

A identificação do sujeito ao falo imaginário enquanto objeto do desejo da mãe

deve ser ‘destruída’ correlativamente ao desvelamento em A, lugar do Outro, do

Nome-do-Pai P, o triângulo IPM sendo destinado a recobrir o imaginário145.

Como veremos, esta primazia do simbólico sobre o imaginário será revista pela

“teoria dos nós”, época do último ensinamento de Lacan. Por enquanto, vejamos qual

144 In Chemama (2003), op. cit., p.432. 145 idem, p. 431.

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é este papel de primazia do simbólico, que o Lacan de 1958 reserva à constituição

subjetiva.

Uma mudança introduzida no esquema R é a nova nomenclatura dos pontos do

esquema precedente. O ponto que antes era destinado ao sujeito S transforma-se em

φ, falo. Esta mudança inserida no esquema contém uma mudança de perspectiva com

relação ao lugar em que se encontra a criança com relação ao desejo do Outro.

Explica Lacan este “lugar de falo”: a primeira identificação da criança ocorre neste

lugar, a partir do desejo da mãe. A criança, assim, identifica-se a este lugar como falo

da mãe, ou, como explica Lacan, a este objeto que é o objeto de seu desejo. É pelas

idas e vindas da mãe, quando a criança é ainda pequena, que surge para a criança a

famosa questão: “O que quer essa mulher?” É pelo fato de a própria criança ser o

objeto parcial da mãe que ela é levada a se perguntar o que querem dizer as idas e

vindas da mãe. Como diz Lacan146, “o que isso quer dizer é o falo”:

A criança, com maior ou menor astúcia, pode conseguir vislumbrar desde muito

cedo o que é o x imaginário e, uma vez tendo compreendido, fazer-se de falo.147

Logo, a primeira identificação que se opera na constituição subjetiva é essa

identificação imaginária ao falo. A partir dessa primeira identificação o esquema se

expande, na medida em que o desejo da criança, ainda, “é o desejo do desejo da

mãe”148. Deste modo, desde o espelho é desta identificação imaginária que trata

Lacan, quando a criança identifica-se ao objeto imaginário do desejo da mãe, na

medida em que a própria mãe a simboliza neste lugar, lugar do falo.

146 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 181. 147 idem, p.181. 148 ibidem, p.188.

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Esquema R

A zona representada pelos pontos φim será chamada de “ternário imaginário”, a

partir do qual “a criança, na condição de desejada, constitui realmente o vértice I”.149

O vértice I é o ponto que vai ser constituído a partir da identificação especular: é a

partir da alienação constitutiva com a mãe e dessa identificação ao falo, relação de

completude com a mãe, que se deve interpor o Pai, que a partir deste lugar de Outro

tira a criança desta identificação ao falo da mãe, fazendo operar aí uma outra

identificação. Este é o ponto I, onde “o eu da criança se identifica à identificação

paterna do Ideal do Eu”. O ponto I, então, é o ponto de identificação da criança ao

Ideal do Eu, identificação a partir da entrada do Pai na relação especular da criança

com a mãe. O Pai, assim, provoca uma mudança disto que chamamos identificação:

da imagem ao Ideal do Eu.

Aí está o Pai, na entrada em cena do triângulo simbólico (representado pelos pontos

MIP), em que M seria o significante do objeto primordial, a mãe nesta posição de

objeto primeiro da realidade com o qual a criança se depara, e o P, a posição no

Outro do Nome-do-Pai.

II.2 – Da realidade à linguagem: uma questão preliminar

Antes de entrarmos no Nome-do-Pai (esta posição de P no Outro, como acabamos de

ver), convém sublinhar a torção que realiza Lacan, das relações humanas da

149 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar..., in Escritos, op.cit., p. 560.

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realidade à realidade significante das relações humanas. Vimos que o Esquema R

têm sua entrada no texto de 1958, “De uma questão preliminar a todo tratamento

possível da psicose”. Que questão seria esta?

O artigo “De uma questão preliminar...” traz o conjunto de um certo número de

idéias com as quais Lacan havia trabalhado em seu Seminário sobre as psicoses,

quando ele propõe um retorno às memórias de Schreber a partir da análise feita por

Freud sobre a psicose. O primeiro ponto que Lacan relança em 1958 em sua “questão

preliminar” é sobre esse retorno a Freud, “antes que nos distanciemos demais”, como

explica Laurent.150 Porque?

Eric Laurent nos ajuda a localizar os anos 50 como um período marcado por uma

abundância de tratamentos psicanalíticos das psicoses. De um lado, os alunos

psiquiatras de Lacan que acompanhavam seus seminários, como Leclaire, Oury e

Perrier, tinham se apressado em publicar artigos sobre o tratamento possível das

psicoses, seguindo os ensinamentos do Seminário de 1955-56. Além deles, esta

época é também marcada pelos neo-kleinianos, com Bion e Rosenfeld; pelos

terapeutas “maternais” da Escola Suíça; e pelos trabalhos de Sechehaye, “terapeuta

simpática que explicava como alimentar a criança psicótica mal amada”.151 Explica

Laurent que Lacan intervém dizendo: “Atenção, questão preliminar!”

Esta questão pode ser entendida no mesmo sentido do artigo de 1953, “Função e

Campo da palavra...”, onde Lacan chama a atenção de um sucesso demasiado da

psicanálise nos anos 50. Vanier explica que neste artigo de 1953, “situando de modo

mais preciso as instâncias introduzidas por Freud, tratava-se de combater o que

Lacan chamava de desvios (vindos do ultra-Atlântico) que conduziam a psicanálise

do pós-guerra a orientar-se a uma prática visando à adaptação do sujeito a seu meio e

ao reforço do Eu”.152

150 Laurent, E. (2003). Les traitements psychanalytiques des psychoses. In Les feuillets du Courtil, n.21, Tournai, Bélgica, p. 8. 151 idem, p. 8. 152 Vanier, A. (1999). Lacan. Madrid: Alianza Editorial, p. 11.

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Freud já chamava a atenção dos analistas com relação ao tratamento tanto das

psicoses quanto das crianças, pois nos dois domínios haveria uma profusão dos

“tesouros do imaginário”, sobretudo com relação à unidade imaginária do corpo. A

preocupação de Lacan ao anunciar sua “questão preliminar” era a mesma de Freud:

cuidado com o imaginário.

Os tratamentos das psicoses dos anos 50 tinham um consenso, oriundo de Freud: a

impossibilidade de estabelecer na psicose o mesmo tipo de transferência que se

estabelece na neurose, ou seja, uma transferência do tipo “paterna”. Diz Laurent que

os analistas tiraram conseqüências diferentes desta impossibilidade:

Então, devemos fazer a mãe, segundo as diferentes versões de mãe: a mãe

kleiniana não é a mãe annafreudiana, não é a boa mãe que nutre. Ou então

devemos fazer o irmão, quer dizer, fazer uma sociedade sem pai, horizonte da

psicoterapia institucional.153

Lacan coloca em questão a profusão de tratamentos que aparecem como variantes do

problema da transferência, dizendo que a solução não estaria em se fazer passar por

mães ou irmãos, na ausência da transferência do tipo paterna. O que está em jogo, diz

Lacan, é a relação do sujeito à língua ela mesma. Ele explica:

Freud escreveu, em 1924, um artigo incisivo, ‘A perda da realidade na neurose e

na psicose’, no qual chamou a atenção para o fato de que o problema não é o da

perda da realidade, mas o expediente daquilo que vem substituí-la.154

Qual é este expediente de que fala Lacan? A própria língua, o uso particular ou a

transformação que o sujeito imprime na língua para poder estruturar seu mundo

simbólico, mesmo que seja para estruturar seu delírio como forma mesma de

tratamento do gozo no qual o sujeito é tomado, “o que nos imporá definir esse

153 Laurent, E. (2003), op. cit., p. 10. 154 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar..., in Escritos, op.cit., p. 549.

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processo pelos mais radicais determinantes da relação do homem com o

significante”, completa Lacan.155

Lacan se aproxima da lingüística, e começa a elaborar sua teoria com conceitos

próprios à lingüística. Vorcaro nos ajuda a compreender esta aproximação dizendo

que o homem, por ser um ser falante, que qualquer determinação de sujeito depende

do discurso. Ela explica que o “ser dito pelo Outro” é, na teoria lacaniana, o que

constitui o tecido do sujeito:

O organismo é dito pelo ser materno, ou seja, ser que não sabe dizer de seu próprio

lugar ‘eu sou’, mas que é dito de outro lugar ‘ele é’.156

Deste lugar, os significantes se articulam no tecido disto que se forma como sujeito,

sujeito da linguagem, assujeitado ao significante do Outro. É assim que a castração,

finalmente, se articula para Lacan de outro modo: como conseqüência da submissão

do ser humano ao significante.

Enfim, o que Lacan faz é formalizar, com a ajuda da lingüística, o trabalho com o

significante que havia sido começado por Freud já nos primórdios da psicanálise,

através dos efeitos da palavra sobre o corpo. O trabalho com o significante é uma

herança freudiana.

Se desde a idade média a loucura e a histeria eram vistas como prerrogativa divina,

como vontade de Deus, é a partir do século XVII que elas tomam dimensão humana,

a partir da destituição de Deus e de Sua vontade do lugar de explicação dos

fenômenos da natureza, principalmente a partir de Kepler e Newton. Com as

explicações racionais dos fenômenos naturais, o homem ocidental se apropria da

causalidade do mundo, e o que era antes uma questão de fé torna-se uma questão de

ciência.

155 idem, p. 543.

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Esta é então a primeira mudança que ocorre na ciência: da crença à racionalidade,

tanto com relação aos fenômenos da natureza quanto ao corpo e ao organismo. Nas

palavras do fisiologista alemão do século XIX, Bois-Reymond: “ [Deve-se] impor

esta verdade, a saber, que somente as forças físicas e químicas, à exclusão de todas

as outras, agem sobre o organismo”157.

Freud é descendente desta visão positiva da ciência, mas ele ajuda a expandi-la. Esta

é a segunda mudança que ocorre na ciência, com a ajuda da psicanálise e da pesquisa

de Freud sobre a etiologia das doenças mentais, descrevendo o funcionamento

mental. Não só as forças físicas e químicas, mas também a linguagem imprimiria

seus efeitos sobre o corpo. O organismo do ser humano falante sofreria os efeitos da

palavra, tanto na constituição psíquica quanto nas formas possíveis de tratamento.

Este legado freudiano é o que permite a Lacan aprofundar sua investigação na área

da lingüística, através da metáfora, da metonímia, do significante e do significado,

assim como da relação entre código e mensagem.

Mas enfim, não era do Pai que falávamos? A mudança de perspectiva que o estudo

sobre o pai toma em psicanálise, principalmente a partir do Seminário 5 de Lacan (de

1957/58), aproxima-se dos estudos da lingüística. Se os esquemas e elaborações

lacanianos usavam o esquema edípico e os transformavam, como vimos, após o

esquema R Lacan abandona o esquema edípico, como se a elaboração do duplo

ternário tivesse resolvido, para ele, a épura que ele vinha realizando no esquema

freudiano. Na distinção dos triângulos imaginário e simbólico, parece-nos que Lacan

resolve um problema que a ele se colocava em torno da função do Pai.

Após o esquema R, o próximo esquema que propõe Lacan para explicar a função do

Pai não é mais uma transformação do triângulo freudiano. O Grafo que ele apresenta

no Seminário 5 (1957/58) afasta definitivamente o Pai de seu corpo imaginário,

localizando-o como um significante, e cuja função de Nome passa a ser impressa

sobre a linguagem.

156 Vorcaro (2002). Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação, p. 6. Inédito. 157 In Thys, B. (2003). Freud, l´émergence de l´inconscient. Paris: Les génies de la science, n.15, p.5.

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II.3) O Seminário 5: o Grafo e o Nome-do-Pai

Como explica J. A. Miller, “todo o Seminário 5 é dirigido no movimento de fazer

passar o imaginário no simbólico”.158 Para isso, Lacan procura dar conta da função

simbólica do Pai, “como a única capaz de dar conta do que podemos chamar de

determinação no plano do sentido”.159

Lacan parte da lingüística e diferencia, no Seminário 5, a linguagem em “fala do

sujeito” e “discurso vazio do Outro”. Vale diferenciarmos aqui o outro com

minúsculas e o Outro com maiúsculas, como Lacan os define neste seminário: o

Outro seria a “sede da fala e garantia da verdade, e o outro seria o dual, aquele diante

de quem o sujeito se encontra como sendo sua própria imagem”. Esta diferenciação

atravessa a obra lacaniana como uma diferenciação dos registros: quando falamos no

outro, falamos da imagem especular, do imaginário. Quando nos referimos ao Outro,

falamos da estrutura simbólica, do “tesouro de significantes” e estrutura de

linguagem onde nascemos já emaranhados, já pertencentes a uma rede significante

de filiação, com um lugar na ordem familiar, com nome e sobrenome. Ao nascermos,

nascemos dentro de um mundo de linguagem. Se a imagem do outro nos ajuda na

constituição do corpo, são os significantes do Outro que nos possibilitam

construirmos a nós mesmos como sujeitos, descolados da imagem especular.

Lacan estabelece o seguinte caminho neste Seminário 5: parte da construção do

Grafo, com uma elaboração sobre o witz160 freudiano na primeira parte do seminário,

e sua elaboração do Nome-do-Pai na segunda parte. Como explica J. A. Miller161,

este caminho não é feito ao acaso, partindo das considerações, no Grafo, entre

significante e significado, e entre mensagem e código, para acabar na função do Pai.

Vejamos porque.

158 Miller, J.-A. (2000). ...Du nouveau!, op.cit., p. 57. 159 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.12. 160 ou “tirada espirituosa”. 161 Miller, J.-A. (2000) ...Du nouveau!, op.cit.

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a) Os termos da lingüística

Lacan vale-se dos elementos da lingüística para a construção de seu Grafo.

Brevemente, entendamos o que querem dizer. Em primeiro lugar, o que é o

significante? O significante é a “imagem acústica”, algo como o real da palavra, no

qual vai estar associado um conceito. O significante seria o portador do conceito. O

significado seria este conceito que se associa ao significante. Dito de outro modo: o

significado de alguma coisa, seu conceito, aquilo que esta coisa quer dizer, está

sempre vinculado a uma palavra, que em si mesma não significa nada a priori: ela

precisa ser preenchida. É como se o significante fosse este invólucro vazio, o real das

letrinhas coladas umas às outras que chamamos de “palavra”, que ganha utilidade

quando o preenchemos com alguma coisa, dando o seu significado.

O significado, quando ligado ao veículo lingüístico do significante, dá origem ao

signo. Então, a propriedade do signo seria dada por esta “associação do significante

ao significado”.162 Assim, como explica Joel Dor, o signo é arbitrário, pois conforme

variam os usos e costumes de uma cultura, as palavras podem adquirir outros

significados ao longo do tempo. Ou seja, os significados ligam-se aos significantes

conforme os usos e costumes, como vimos na primeira parte deste trabalho com o

significante autoridade, com diferentes significados ao longo do tempo.

Lacan diz que há um perpétuo deslizamento entre significante e significado. Foi

assim que ele forjou a imagem do estofador e do ponto de capiton, ou ponto de

costura:

É preciso que em algum ponto, com efeito, o tecido de um se prenda ao tecido do

outro, para que saibamos a que nos atermos, pelo menos nos limites desses

deslizamentos.163

162 Dor, J. (1989). Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 29. 163 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 15.

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Contudo, como existe uma certa elasticidade nas ligações entre os dois termos, é

neste vão que se estabelece a relação disto que ele chama de “fala do sujeito” e

“discurso do Outro”. Ou seja, mesmo que existam ligações entre significante e

significado, ligações sancionadas pelo Outro da linguagem – terreno comum

necessário para que as pessoas se entendam ao compartilharem os mesmos signos –,

a associação entre significante e significado não é estável, permitindo modulações

dentro da própria estrutura da linguagem. Ou seja, entre a mensagem e o código,

existe um sujeito que precisa ser reconhecido pelo Outro.

b) O Grafo

Porque introduzimos os termos da lingüística? Porque a construção do próximo

esquema, o “grafo do desejo”, tem seu nascimento com tais termos. O esquema do

“grafo” nasce pelo deslizamento de duas setas: a de cima é a cadeia de significantes,

ou cadeia simbólica, e a de baixo é a corrente de significados.

A seta do significado corre no sentido inverso da primeira, pois como explica Lacan,

o sentido da frase só pode ser dado depois do ponto final. Da mesma forma, como o

sentido de uma palavra dentro de uma frase depende de sua relação com as outras

palavras, somente quando o ponto final é colocado é que pode ser feita a retroação

necessária e diacrônica para que cada uma das palavras tenha sentido. Deste

esquema, Lacan desenvolve seu Grafo:

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O Grafo164

O Grafo visa dar conta da relação da mensagem particular do sujeito com o código, o

feixe de empregos dado no Outro da linguagem. É na primeira linha, linha que

representa a cadeia significante, que existem todas as possibilidades de transgressão

significante da língua, como a metáfora, a metonímia, as possibilidades de

decomposição, reinterpretação, trocadilho, jogo de palavras, tirada espirituosa. Nesta

linha corta-se a segunda, a linha dos significados que Lacan chama de linha do

“discurso corrente”, “racional”, “discurso da realidade comum”. Nesta linha dos

significados existe um mínimo de criação possível, pois “o sentido já está como

dado”, como explica Lacan.165

Esta linha corta a primeira em dois pontos: o primeiro ponto, Lacan chama de

código, que como dissemos, é o feixe possível de empregos no Outro, representado

no esquema em [A]. O outro ponto fecha o circuito e constitui o sentido, que se

estabelece a partir do código. Este ponto vai se chamar mensagem [M], que é o ponto

de produção da enunciação do sujeito.

Diz Lacan que na maioria do tempo “não se diz nada”, um “puro e simples ronronar

da repetição”, um “moinho de palavras” que não servem para dizer nada. Quando

isto ocorre, há um curto-circuito entre [β – β’], um discurso comum feito de palavras

164 Que apresentamos aqui em sua forma simplificada, in Lacan, J. (1957-58), Seminário 5, op.cit., p.529. Sua forma completa pode ser encontrada na p.525 do mesmo Seminário 5. 165 Lacan, J. (1957-58), Seminário 5, op.cit., p. 19.

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para não dizer nada. O [ β ] é o Eu, e o [ β’] o objeto metonímico. Podemos entender

esses pontos de outra maneira, como explica Lacan166, através dos pontos com os

quais já estamos familiarizados: entre o Eu e o objeto reconhecemos a confrontação

especular [a – a’] do esquema L.

Então, entre a rede possível de empregos, o código, e a mensagem particular do

sujeito, há a possibilidade de uma criação significante, com a invenção de novos

sentidos. Lacan nos explica o que se passa entre código e mensagem através da

análise da tirada espirituosa que Freud realiza em “Os chistes e sua relação com o

inconsciente”, de 1905.

O familionário

Freud relata o encontro de Hirsch Hyacinth, um vendedor de bilhetes de loteria, com

o escritor Heinrich Heine. Hyacinth conta a Heine um episódio que havia se passado

com ele na casa de um tal Salomon Rothschild que havia conhecido, dizendo: “Ele

me tratou de maneira totalmente familionária”.

Freud reconhece aí o mecanismo de condensação entre as palavras familiar e

milionário, e nos diz que a palavra utilizada por Hyacinth é uma tirada espirituosa,

não um engano. Lacan realiza uma análise deste “familionário”, dizendo que

familionário seria a mensagem, que por não pertencer ao código, seria uma violação

ao código. É uma violação ao código, continua ele, mas não uma asneira, ou um

engano, ou um erro: é uma tirada espirituosa. Ora, questiona-se Lacan, como

descobrimos que familionário é mesmo uma tirada espirituosa?

É pela análise do witz freudiano que Lacan chega ao Outro, representado no Grafo

em [A]: para sabermos se a tirada espirituosa é uma tirada espirituosa e não um

lapso, o sujeito depende que o Outro sancione, reconheça a mensagem como witz,

para que ela seja um witz:

166 idem, p. 206/207.

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A sanção do Outro terceiro é essencial aqui. O Outro rebate a bola, alinha a

mensagem no código como tirada espirituosa. Quando ninguém faz isso, não há

tirada espirituosa. Quando ninguém se apercebe disso, quando familionário é um

lapso, ele não constitui tirada espirituosa. É preciso, portanto, que o Outro o

codifique como tirada espirituosa, que ele seja inscrito no código através dessa

intervenção do Outro.167

Todo o interesse de Lacan, ao analisar a relação até então reservada à lingüística

entre código e mensagem, visa compreender o que ele chama de transgressão da

língua, ou violação do código, baseando-se na análise do uso da linguagem pelo

psicótico. Lacan proferia seu Seminário 5 ao mesmo tempo em que escrevia seu

artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, em

1957/58. A linguagem em Schreber, que ele apresentava em “Questão preliminar...”

girava em torno do uso particular (sem o Outro) pelo qual Schreber manipulava o

código, produzindo uma linguagem própria na qual o Outro não estava incluído.

Enfim, toda a análise que faz Lacan da relação entre mensagem e código, que o leva

à construção de seu Grafo, visa responder à seguinte questão: que lugar é este do

Outro que, ao reconhecer a mensagem no código, reconhece o próprio sujeito em sua

existência? Este lugar é o lugar do Nome-do-Pai, que ele tratará na segunda parte do

seminário, no fio de sua articulação sobre o witz, como nos explica J.-A. Miller:

O Nome-do-Pai nasce no fio do witz. O Nome-do-Pai é em definitivo neste

seminário quem, no código, pode dizer sim ao neologismo. Esta função que ao

mesmo tempo representa a lei para poder acolher a exceção é o Nome-do-Pai.168

O caminho que fez Lacan em sua “épura” da função do pai, desde Freud, chega ao

Nome-do-Pai como o significante do Outro que reconhece, no código, a mensagem

do sujeito, outorgando-lhe existência de sujeito. Vemos como a triangulação edipiana

transformou-se, de um esquema para o outro, na limpeza do imaginário do pai ao

167 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 28. 168 Miller, J.-A. (2000). ...Du nouveau!, op.cit., p. 36.

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simbólico da função. Esta função reduziu-se, no Grafo, à estrutura da linguagem, em

torno da qual sua constituição subjetiva vai se processar. É o Nome-do-Pai, enfim,

que reconhece o witz da criança, que tem a função de inserir a mensagem da criança,

ainda particular, presa na relação imaginária especular [a – a’] com a mãe, no Outro

do código, reconhecendo-a como sujeito. Diz J.-A. Miller:

Lacan retoma em termos mais precisos que mesmo o pouco-sentido deve ser

acolhido pelo Outro como passo-de-sentido169. (...) Em seu fracasso em dizer, na

miséria de sua fala, lá você é, e lá eu te reconheço.170

O Grafo, assim, busca dar conta da função do Pai por um caminho diferente do até

então empregado por Lacan na transformação do triângulo edípico. A relação dos

agentes familiares é transformada a uma relação significante dentro da própria

estrutura da linguagem, e a importação da problemática da lingüística confere ao Pai

uma tarefa diferente de até então, mesmo que elas não sejam excludentes entre si: a

tarefa do Pai, ao barrar a Mãe, seria esta impressa na língua. Nem no corpo do filho,

nem no corpo da mãe, mas na língua de ambos, como detentor do código do Outro,

tal seria a tarefa do significante Nome-do-Pai, possibilitando à criança constituir-se

como sujeito a partir do reconhecimento de sua mensagem. O Outro como terceiro

entra em cena, com o Nome-do-Pai, barrando a linguagem ela mesma, barrando o

gozo da língua particular entre mãe e filho.

c) O Nome-do-Pai

O uso do termo Nome-do-Pai é anterior ao Seminário 5, apesar de este seminário se

constituir como uma referência à elaboração do conceito, como explica J. A. Miller:

“O Nome-do-Pai lacaniano nasce verdadeiramente com este seminário, mesmo se a

169 idem, p. 18. No original em francês, “pas-de-sens”, jogando com a ambigüidade do termo que significa, ao mesmo tempo “sem sentido” e “passo de sentido”. Ou seja, quem sanciona se a mensagem da criança é “sem sentido” ou é um “passo de sentido” é o Nome-do-Pai. 170 ibidem, p. 35.

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expressão já se encontra antes”.171 Porge nos ajuda a localizar o nascimento da

expressão tal como a conhecemos, em maiúsculas e com hífen: “O Nome-do-Pai faz

sua notável entrada no seminário ‘As psicoses’, a propósito do caso Schreber”.172

Contudo, como diz o próprio Porge173, é no artigo “De uma questão preliminar...”

que Lacan situa sua primeira elaboração teórica (escrita) sobre o Nome-do-Pai, ao

formalizar algumas das idéias elaboradas no Seminário das psicoses.

O conceito de Nome-do-Pai acompanha a formalização do Outro. Ambos os termos

localizam o que se pode chamar de primeira clínica lacaniana, ou clínica do

simbólico174, como uma continuação da clínica freudiana do Outro. Como explica J.-

A. Miller,

O reino do Nome-do-Pai corresponde em psicanálise à época de Freud. A

inexistência do Outro abre verdadeiramente isto que nós chamamos a época

lacaniana da psicanálise.175

Mesmo que o Nome-do-Pai seja um conceito lacaniano, o que faz Lacan é formalizar

o pai simbólico freudiano, o Outro que perseguiu Freud durante toda sua obra, este

lugar do Pai. Lacan forja seu conceito de Nome-do-Pai relendo a função de castração

elaborada a partir do drama edípico, situando-a junto do anúncio da morte do pai em

“Totem e Tabu”. Ao situar a função simbólica da castração na linguagem, como uma

conseqüência da submissão do ser humano ao significante, Lacan retoma a morte do

pai e sua transformação em Nome, em significante:

Para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, é preciso

haver o assassinato do pai. As duas coisas estão estreitamente ligadas – o pai como

aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o

Nome-do-Pai.176

171 ibidem, p. 36. 172 Porge, E. (1998), op. cit., p. 33. 173 idem, p. 33. 174 Apesar de haver divergências, como Márcio Peter de Souza Leite, que fala em três clínicas lacanianas, ao invés de duas. Cf. Estilos da Clínica, São Paulo: IPUSP, n.9, p.169-181, 2000. 175 Miller, J.-A. (1996). L´Autre que n´existe pas. Aula de 20/11/1996. Paris, inédito. 176 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 152.

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Lacan se refere à lei do código, que funda a própria significação dentro do discurso.

Retomando o estudo da psicose, diz Lacan que é a falta deste significante central, o

Nome-do-Pai, que cria na psicose um impasse das significações. Na psicose, os

significados deslizariam nos significantes de uma maneira particular ao sujeito, não

sancionada no código pelo Outro:

Na psicose, o Nome-do-Pai, o pai como função simbólica, o pai no nível do que

acontece aqui, entre mensagem e código e código e mensagem, é, precisamente,

forcluído. Por causa disso, não existe aqui o que representei em pontilhado, isto é,

aquilo mediante o qual o pai intervém como lei. (...) É nisso que se resume a

intervenção do discurso paterno quando é abolido desde a origem, quando nunca é

integrado na vida do sujeito, aquilo que produz a coerência do discurso, a saber, a

auto-sanção mediante a qual, havendo concluído seu discurso, o pai retorna a ele e

o sanciona como lei.177

Segundo Laurent178, Lacan traz a questão dos lingüistas para a psicanálise, tentando

resolvê-la a partir do estudo na psicose: o que garantiria a unidade do signo, a

estabilidade do deslizamento entre significante e significado? A resposta, para Lacan,

é esta: o Nome-do-Pai. É ele que garante a unidade do signo, “o pai como garantia,

como este que assegura a estabilização significante/significado”.179 O Nome-do-Pai

seria o ponto de capiton da ordem simbólica. Se a mensagem do sujeito excede o

código, ou o transgride, é o Nome-do-Pai que assegura a transformação desta

mensagem em código, reinserindo-a na língua. Diz Lacan:

O pai simbólico é o Nome-do-Pai. Este é o elemento mediador essencial do mundo

simbólico e de sua estruturação. (...) O Nome-do-Pai é essencial a toda articulação

de linguagem humana.180

177 idem, p. 211-212. 178 Laurent, E. (2003). Les traitements psychanalytiques des psychoses, op.cit., p. 12. 179 idem, p.12. 180 Lacan, J. (1956-57). Seminário 4, op.cit., p. 374.

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Devemos notar uma baliza que faz o pai lacaniano do Seminário 5 com relação ao

pai freudiano do Édipo. Se este último intervinha sobre o filho, como aquele que diz

“Não possuirás tua mãe!”, o pai lacaniano do Seminário 5 é este que, por um lado,

reconhece a mensagem do filho inserindo-a no código. Por outro lado, intervém

sobre a mãe: “Não possuirás teu filho!”. Diz Lacan:

O pai interdita a mãe. Esse é o fundamento, o princípio do Complexo de Édipo, é

aí que o pai se liga à lei primordial da proibição do incesto.181 (...) O pai intervém

na dialética edipiana do desejo por ditar a lei à mãe.182

É Porge quem nos lembra desta diferença: “Notamos aqui a diferença com Freud,

que fazia pesar a interdição sobre a criança, enquanto que Lacan a faz pesar sobre a

mãe”.183 Contudo, o que devemos observar é que a relação de interdição não pesa

sobre o corpo da mãe, mas sobre a linguagem. Esta intervenção do Nome-do-Pai,

como veremos, tem o efeito de uma metáfora, ao se substituir ao desejo enigmático e

caprichoso da mãe, e inseri-lo em uma significação fálica, vinda do Outro.

d) A metáfora paterna

A fórmula da metáfora paterna é apresentada em “De uma questão preliminar a todo

tratamento possível das psicoses”, de 1958, ao mesmo tempo em que Lacan a

desenvolve em seu Seminário 5. É na fórmula da metáfora paterna que Lacan volta

ao esquema do complexo freudiano propriamente dito, após o caminho feito no

Grafo. Maleval184 diz que a metáfora paterna seria uma “formalização do complexo

de Édipo fundada sobre o princípio de uma redução deste a um processo metafórico”:

os agentes são significantes, e a interdição na qual Freud sustentava seu Complexo

não pesa mais sobre o filho. Agora, a interdição pesa sobre a mãe, a mãe enquanto

significante.

181 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 174. 182 idem, p. 215. 183 Porge, E. (1998), op.cit., p. 42. 184 Maleval, J.-C. (2000). La forclusion du Nom-du-Père. Paris: Seuil, p.89.

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Se a interdição freudiana estava vinculada a uma potência imaginária creditada ao

pai pelo filho, e em face da ameaça de castração a interdição se efetuaria, Lacan

retoma o complexo freudiano nos termos de uma metáfora, dizendo que a interdição

não se passa no plano da potência, da rivalidade ou da ameaça, mas no plano

simbólico: ela é uma interdição na linguagem. Isto permite a Lacan elaborar a

chamada “metáfora paterna”, na insistência desta interdição como uma operação de

substituição no nível significante.

Primeiramente, o que é uma metáfora? A metáfora é uma figura de linguagem na

qual um significante surge no lugar de outro significante. Ao invés de dizermos que

“João é gordo como uma baleia”, poderíamos dizer simplesmente “João é uma

baleia”. O significante gordo é substituído pelo significante baleia, que assim se

reveste de um novo significado. Tal é a fórmula da metáfora, ou da substituição

significante, como nos apresenta Lacan185:

Primeiramente devemos pensar a fórmula da metáfora como uma equação

matemática, da qual estão elididos os passos intermediários, que colocamos aqui:

O [S] é um significante – “baleia”, por exemplo, e o [S’] um outro significante, por

exemplo “gordo”. O [x] é a significação desconhecida, aquela que terá sentido após o

ponto final, e [s] o significado que advém daí, induzido pela cadeia. Assim, o

resultado da fórmula da metáfora é que todo significante [S] – que pode ser o

significante gordo, ou baleia, ou hipopótamo, ou outros significantes que na língua

portuguesa poderiam ocupar este lugar no nosso exemplo –, ao ocupar o lugar do [1],

185 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar..., in Escritos, op.cit., p.563.

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resulta em um significado novo, o [s] que queremos. No caso, descrever os 250

quilos de João. Se o significado primeiro de baleia se refere a um mamífero aquático,

iremos substituir este significado por um significado até então desconhecido, que só

aparece na cadeia e após o ponto final. Tal é o resultado da metáfora.

Da fórmula da metáfora ao pai o caminho é direto, pois diz Lacan que o Pai é ele

mesmo uma metáfora, um significante que substitui um outro significante:

A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o

primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno.186

Tal é a maneira mais comum de entendermos a fórmula da metáfora paterna, através

da substituição do significante ‘Desejo da Mãe’ pelo significante ‘Nome-do-Pai’.

Contudo, a fórmula inteira é um pouco mais complexa:

Fórmula da metáfora paterna187

Construiremos passo a passo a fórmula inteira, para que ela torne-se inteligível. O

primeiro termo é a substituição do Desejo da Mãe pelo Nome-do-Pai. Esta relação do

Nome-do-Pai ao Desejo da mãe “explica como o pai torna-se portador da lei”188, na

mediação sobre a relação de alienação primária da criança à mãe, o segundo termo da

fórmula.

186 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.180. 187 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar..., in Escritos, op.cit., p.563.

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Este segundo termo descreve a primeira simbolização da criança, traduzida por

Lacan no par imaginário [a – a’] do estádio do Espelho, em que a criança se constitui

em uma posição de falo com relação ao desejo da mãe. No início, a única coisa que

existe é esta relação de alienação da criança ao desejo da mãe, em que a mãe coloca-

se acima da barra do recalque, e o falo – ou o [x], o significado desconhecido para o

sujeito – permanece abaixo da barra, recalcado, ao qual está identificada a criança.

O [x] é o falo, o significado desconhecido do desejo da mãe, que aparece abaixo da

barra, recalcado. A criança identifica-se a este lugar de desejo da mãe, a este lugar de

falo, ocupando ela também este lugar abaixo da barra, pois ainda não podemos falar

em sujeito. O sujeito está ainda alienado ao desejo da mãe, identificado ao [x].

Explica Lacan:

A criança se esboça como assujeito. Trata-se de um assujeito porque, a princípio,

ela se experimenta e se sente como profundamente assujeitada ao capricho daquele

de quem depende, mesmo que esse capricho seja um capricho articulado.189

Quando colocamos as duas relações juntas, o que acontece?

A relação do pai à mãe, o Nome-do-Pai como intervenção simbólica ao Desejo da

Mãe, serve como mediador desta relação entre mãe e filho. O pai, como detentor da

lei, assume este lugar de motivo da impossibilidade de fusão e completude entre mãe

e filho. No lugar do enigma da ausência da mãe, causado pelas idas e vindas deste ser

188 Porge, E. (1998), op.cit., p.39.

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irrequieto que insiste em não se completar através do filho, vem a significação dada

pela lei do Pai. Assim, o Nome-do-Pai, pela operação da metáfora, se substitui àquilo

que foi o significante do desejo da mãe, se constituindo ao mesmo tempo como a

causa da ausência da mãe e como o símbolo desta ausência. Diz Lacan:

Isso se aplica, assim, à metáfora do Nome-do-Pai, ou seja, à metáfora que coloca

esse Nome em substituição ao lugar primeiramente simbolizado pela operação da

ausência da mãe.190

Assim explica Vanier:

Ao desejo da mãe, desejo obscuro, velado, que se manifesta por exemplo por suas

idas e vindas e que são compreendidas pela criança como simples capricho, sem

lei, substitui-se o Nome-do-Pai, como representante para a criança de um desejo da

mãe que não ele mesmo. 191

Assim, podemos acompanhar a fórmula completa da metáfora paterna:

O efeito desta operação, seu resultado, visto na última parte da fórmula, é fazer surgir

a significação fálica à ausência da mãe. O significante Desejo da Mãe é recalcado, e

em seu lugar passa a ocupar o lugar o Outro, o [A]. Como para Lacan todo desejo é

desejo do Outro, a partir do Outro, o que antes era o desejo caprichoso e enigmático

da mãe torna-se o desejo do Outro, e o Nome-do-Pai seria o mediador simbólico que

regula esse desejo, dando-lhe sentido a partir da significação fálica: o motivo da

189 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.195. 190 Lacan, J. (1958). De uma questão preliminar..., in Escritos, op.cit., p.563. 191 Vanier, A. (1999), op.cit., p.43.

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ausência da mãe é o falo. Assim, encontramos o [falo] no mesmo lugar onde estava o

[s], lugar do significado induzido pela metáfora. Explica Vanier que “uma vez

realizada a operação da metáfora paterna, o falo se encontra em posição de

significado, isto é, todo dizer terá sentido fálico, sexual. É o que dá sentido ao desejo

do sujeito.”192

Maleval explica o produto da metáfora paterna nos seguintes termos:

O Nome-do-Pai se encontra inscrito, de sorte que a mãe se torna interditada, toma

o lugar do Outro, e cai no esquecimento; assim, o falo é dado como significado ao

sujeito. A partir daí ele não se encontra mais submetido à diversidade de

significações particulares induzidas pelo desejo da mãe, ele se torna capaz de se

orientar sobre a significação fálica, que possui uma função de normatização da

linguagem. Ela deixa o sujeito apto a se inscrever nos discursos que fazem laço

social.193

Assim, a metáfora paterna possibilita um novo entendimento da função do Pai, não

só relativa à interdição, mas também a um acesso, ao proporcionar um sentido fálico

ao desejo do Outro. O interdito produzido pela metáfora paterna possibilita significar

o gozo. Colocando um limite ao gozo, ele dá conta de nomear a parte possível. O que

isso quer dizer é que o efeito da metáfora, finalmente, seria a interdição de uma parte

do gozo, mas também o acesso e a permissão de uma outra parte, o gozo fálico, como

explica Vanier.194

A metáfora paterna funda o pai como mediador daquilo que está para além da lei da

mãe e de seu capricho. É por isso que é a mãe que o pai priva, e não a criança, como

já observamos com Lacan: “O que é castrado, no caso, não é o sujeito, e sim a

mãe”.195 O pai intervém como detentor de uma lei que está para além da mãe, para

além do capricho da mãe enquanto objeto primordial para a criança. Ou seja, a

metáfora paterna protege a criança de uma lei tão tirânica quanto a lei do pai da

192 Vanier, A. (1999), op.cit., p.44. 193 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.89. 194 Vanier, A. (1999), op.cit., p.44.

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horda, que é a lei caprichosa da mãe, por ser ela o objeto único que existe para a

criança.

Um ponto importante a sublinhar é que o Nome-do-Pai e a metáfora paterna não são

equivalentes, não são a mesma coisa. Como diz Lacan, “a posição do Nome-do-Pai é

uma necessidade da cadeia significante”.196 Ou seja, a metáfora paterna é a operação

de substituição que faz o Nome-do-Pai entrar em cadeia, ao lado do Desejo da Mãe e

do filho em posição de falo, e é na cadeia que a significação fálica ao desejo da mãe

como Outro pode surgir.

O Nome-do-Pai, também, não é um significante particular, predeterminado,

significante mágico que deveríamos procurar para cada sujeito. Ele só é um

significante primordial na medida em que, na cadeia, vem ocupar um lugar de

destaque. Assim explica Dor:

Como só o lugar aberto à substituição metafórica é prederteminado, o significante

Nome-do-Pai é um significante qualquer que virá ocupar este lugar decisivo.

Nesse sentido – Lacan o formulou diversas vezes – os significantes Nome-do-Pai

são múltiplos. Como lembra Nasio, eles existem, no mínimo, na mesma

quantidade dos significantes suscetíveis de se sucederem nesse lugar ao qual são

convocados num dado momento. A forclusão se produz, propriamente falando,

quando nenhum significante vem se apresentar a essa convocação. Logo, ela não

se dá de uma vez por todas. Ao contrário, não cessa de se reproduzir

sucessivamente.197

O ponto levantado por Dor, o da multiplicidade dos significantes Nome-do-Pai,

responde a mudanças estruturais na teorização lacaniana sobre o pai. Ao pluralizar o

conceito, o Outro muda de estatuto também. Veremos na próxima parte que o

Seminário de 1963, Lacan o intitula “Os nomes do pai”, transformando o conceito

195 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.191. 196 idem, p.187. 197 Dor, J. (1991). O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.104.

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por ele estabelecido e desenvolvido no singular, em maiúsculas e com hífen,

colocando o conceito no plural.

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III – “Les noms du père”, o seminário interrompido de 1963

Em novembro de 1963, Lacan anuncia este que seria seu Seminário 11, “Os nomes

do pai”. Se discutimos neste trabalho a função do pai, analisarmos um seminário de

Lacan no qual ele se dedicaria especificamente à questão do pai é para nós de suma

importância. Deste seminário, porém, temos somente a primeira aula, pois Lacan

interrompeu-o sem nunca mais retomá-lo, por causa de uma crise política entre a

Sociedade Francesa de Psicanálise e a IPA, na qual Lacan foi o pivô.

Este seminário de 1963, apesar de termos dele somente a primeira aula, pode ser

considerado como uma ruptura no desenvolvimento teórico de Lacan sobre o pai,

pois traz os pontos que serão desenvolvidos nisto que se chama de seu “último

ensinamento”, ou época do real. Explica Porge que esta ruptura diz respeito ao fato

de que seu ensinamento “não repousa mais sobre a fórmula da metáfora paterna,

como em 1957”198, e marca, segundo Maleval, uma “mudança decisiva quanto à

apreensão do Nome-do-Pai, correlativa à descoberta de um buraco no campo do

Outro”.199

a) a crise política

No dia 20 de novembro de 1963, Lacan dá a primeira aula do seminário intitulado

“Os nomes do pai”, e já avisa que será a última. A interrupção do seminário é uma

reação à crise política na qual Lacan viu-se envolvido, ao lado de Dolto. A

“Sociedade Francesa de Psicanálise” (SFP), da qual Lacan fazia parte, dissociada da

IPA desde 1953, vinha solicitando sua re-adesão desde julho de 1959. No centro da

negociação, a IPA condenava o que chamava de “subversão da técnica analítica”,

realizada por Lacan, estando o “tempo lógico” no centro da controvérsia. A IPA

aceitava a priori a adesão da SFP se esta obedecesse às indicações de exclusão de

198 Porge, E. (1998), op.cit., p.94. 199 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.94.

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Lacan e Dolto do quadro de analistas didatas, assim como a suspensão de todo ensino

realizado por Lacan200.

Lacan suspende então o seminário “Os nomes do pai”, após ter dado somente a

primeira aula. Mudando de lugar e de tema, começa um outro seminário na “Escola

Normal Superior”, intitulado “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”,

conhecido mais tarde como seu “Seminário 11”. Porge entende serem dois os

motivos que fizeram Lacan mudar o conteúdo em seu novo seminário: o primeiro é

que a mudança de lugar e de público, agora aberto a universitários e a não-analistas,

leva Lacan a tratar dos fundamentos da psicanálise. O segundo é uma interpretação

de Porge: se por um lado os analistas da IPA acusavam Lacan de se afastar de Freud

e dos preceitos técnicos estabelecidos por ele, era exatamente na investigação

exaustiva do Pai que Lacan legitimava sua filiação a Freud, e não o contrário.

Como diz Porge, um dos motivos da “excomunhão” de Lacan gira em torno da

“relação entre a lei e o pai”.201 Se Lacan se recusava a obedecer a um preceito

autoritário que a IPA entendia provir de Freud (a duração da sessão de 50 minutos),

era por estar simbolicamente filiado a este pai – e em nome da técnica analítica – que

ele podia destrinchar os meandros de sua teoria, não submetido imaginariamente a

um “pai mítico que nos ditaria sua lei”, como diz Clavreul.202 Não seria então por

acaso, continua Porge, que a crise política que levou à excomunhão de Lacan tenha

ocorrido exatamente no centro de sua elaboração sobre os “nomes do pai”. Se Lacan

mudou o conteúdo de seu novo seminário, intitulando-o “Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise”, foi para voltar aos fundamentos da psicanálise, e para

mostrar que era em Freud que ele fundava sua leitura da técnica analítica, mesmo que

ele pluralizasse os “nomes do pai”.

200 Porge, E. (1998), op. cit., p. 59-86. 201 idem, p. 67.

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b) o plural dos nomes do pai

Lacan intitula seu seminário de 1963 de “Os nomes do pai”, para surpresa de seus

alunos já habituados ao conceito de “Nome-do-Pai” no singular. Por que Lacan

colocava o conceito no plural?

Por “os nomes do pai”, entende-se o ternário pai simbólico, pai real e pai imaginário.

Diz Maleval203 que a pluralização do Nome-do-Pai indica a existência de maneiras

diversas de interpretar as exigências do desejo do Outro, sublinhando que as vias do

desejo se afastam da ordem significante tão somente, como era o caso da função do

pai na metáfora paterna. Com o título no plural, a prevalência da ordem simbólica

sobre os outros registros é colocada à prova.

Os dois conceitos, o do Nome-do-Pai e do ternário RSI, nascem quase ao mesmo

tempo: o Nome-do-Pai em 1955 com o Seminário 3, e o ternário RSI em 1954. Porge

diz que se a função paterna não estava na origem da invenção destas três categorias,

pode-se sustentar que ela contribuiu para “uni-las, para reuni-las como tríade, para

sincronizá-las”.204

Contudo, ao longo de seus Seminários, parece que a relação da tríade com o Nome-

do-Pai evocava um problema para Lacan: se por um lado eles não estão separados,

por outro sua lógica não está unificada, não se reduzindo uma à outra. Porge mostra

que, durante seus anos de Seminário, Lacan alternava entre a elaboração do Nome-

do-Pai e a da tríade RSI, como se houvesse um nó entre um e outro que ele não

soubesse (ainda) desatar.205 Tal é a questão de Porge:

O Nome-do-Pai é redutível a uma articulação do ternário? Que relação há entre o

Nome-do-Pai e os nomes do pai?206

202 In Porge, E. (1998), op. cit., p. 67. 203 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.107. 204 Porge, E. (1998), op.cit., p. 30. 205 idem, p. 32. 206 ibidem, p. 55.

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Assim, ao anunciar o seminário intitulado “Os nomes do pai”, no plural, Porge

entende que Lacan entrevia aí uma maneira de resolver o problema da trama entre

RSI e o Nome-do-Pai.

Certo é que Lacan, mesmo que alterne o uso da expressão pai simbólico e Nome-do-

Pai, sem que aparentemente resolva a relação deste com o ternário RSI, equivale ele

mesmo em alguns momentos os dois termos, como por exemplo no Seminário 5:

Com efeito, o que autoriza o texto da lei se basta por estar, ele mesmo, no nível do

significante. Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico.207

Veremos mais à frente que o “nó borromeano” tenta responder à relação entre o

Nome-do-Pai e os registros RSI. Para que pudesse chegar lá, Lacan aponta já no

seminário de 1963 para esta relação entre o Nome-do-Pai e RSI através do título no

plural “Os nomes do pai”, além de trazer importantes pistas do que viria a constituir

seu último ensino: ele anuncia, em 63, o que seria um duplo buraco, tanto do lado do

sujeito, sempre faltante, como do lado do Outro. Ou seja, o Outro, assim como o

sujeito, seria barrado. Mas como o Outro seria faltante, se o Pai estava morto?

c) a insuficiência do simbólico e o Outro barrado

A função simbólica do pai, em 58, era o que permitia a capitonagem do sentido,

garantindo a significação através da metáfora paterna. A função paterna assumia

assim uma dupla função: era um obstáculo ao gozo entre mãe e filho, na colocação

de uma barra sobre o desejo da mãe, se opondo à instauração de uma imaginária

completude; ao mesmo tempo, o Nome-do-Pai possibilitaria a capitonagem da

significação, no reconhecimento da mensagem da criança no código do Outro.

A construção do Grafo tinha por objetivo responder à questão que se colocava no

estudo das psicoses sobre a estabilização do signo. Lacan responde no Seminário 5

207 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 152.

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que é o Nome-do-Pai o elemento que faz a função de reconhecimento da mensagem

no código, garantindo a estabilização do significante sobre o significado. A primazia

do simbólico, nesta época, corresponde ao Outro como garantia desta capitonagem

do sentido.

Contudo, o mesmo caminho lógico que levou Lacan a chegar a esta função do Nome-

do-Pai como ponto de capiton da cadeia simbólica conduziu-o ao seu limite. Para

nossa surpresa, é no mesmo Seminário 5 – onde ele anuncia a função do Nome-do-

Pai no campo do Outro – que ele fala sobre sua insuficiência nesta capitonagem do

sentido:

De fato, a fórmula da metáfora que lhes forneci não quer dizer nada senão isto:

existem duas cadeias, os S do nível superior, que são significantes, ao passo que

encontramos abaixo deles tudo o que circula de significados ambulantes, porque

eles estão sempre deslizando. A amarração de que falo, o ponto de capiton, é tão

somente uma história mística, pois ninguém jamais pode alinhavar uma

significação num significante.208

Assim, o Nome-do-Pai dos anos 50 era concebido inicialmente como este que

assegura a consistência de um Outro absoluto garantia da verdade, como explica

Maleval209. O Outro seria, por um lado, o “lugar do significante”, e por outro, o

“lugar da lei”. A partir dos anos 60, o estudo sobre o Outro toma outra dimensão,

para Lacan, e ele passa a ser definido fundamentalmente como o “lugar da falta”.210

Os anos 60 são marcados por uma mudança decisiva quanto à apreensão do Nome-

do-Pai, correlativa a esta mudança no estatuto do Outro. A operação de capitonagem,

outrora pedra angular da função do pai no Grafo, geraria sempre um resto não

simbolizável, que Lacan chamará de “objeto a”. O limite da tópica simbólica, ou do

Outro, seria o real, e marcaria assim o “último ensinamento de Lacan”.

208 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p. 202. 209 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.91. 210 idem, p.95.

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Se a tarefa do Nome-do-Pai no Grafo era a de capitonar o S no s, Lacan se dá conta

de uma impossibilidade em tudo simbolizar. A simbolização encontraria um limite

naquilo que caracteriza o conjunto dos significantes, pois uma palavra só poderia

levar a outra palavra, e esta circularidade não possibilitaria uma colagem inequívoca

do significante em um significado. Neste Outro, lugar dos significantes, haveria um

buraco, inapreensível pelo Nome-do-Pai, que Lacan designará como S ( ), o

significante da falta, o significante que faltaria no Outro. Neste caminho, o Nome-do-

Pai sofreria também a conseqüência:

O deslocamento de uma barra colocada sobre o Outro, marca de sua

incompletude, produz uma ruptura decisiva quanto à apreensão do Nome-do-Pai.

A substância dada a este conceito se reduz de maneira singular: ele não se

constitui mais na garantia da existência de uma verdade trans-subjetiva,

articulável na troca dialética.211

Ficamos com a impressão de que Lacan tira nosso chão, a segurança que o conceito

do Nome-do-Pai produzia, tanto na teorização da constituição subjetiva quanto na

função do Pai neste processo. Quanto ao Pai estávamos tranqüilos, pois após 58 ele

se constituía como uma garantia. Contudo, mea culpa: teríamos sido nós os

descuidados, pois desde esta época, como já salientamos, Lacan apontava os

caminhos que determinavam a insuficiência do simbólico e a incompletude do Outro.

E um destes caminhos estava presente exatamente na fórmula da metáfora, como

mostra Maleval212:

Desde a formalização da metáfora paterna, é notável que Lacan seja conduzido a

situar o Nome-do-Pai no exterior do campo do Outro, quando ele escreve o

resultado da operação da metáfora.

211 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.101. 212 idem, p.93.

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Vanier213 faz a mesma observação, desta exterioridade do Nome-do-Pai com relação

ao campo do simbólico, pois ele seria um “significante que não está no Outro” na

fórmula da metáfora paterna:

Ora, se o Nome-do-Pai é um significante exterior ao Outro (A), Maleval214 diz que o

próprio matema do Nome-do-Pai pode ser lido como S ( ), na medida em que o

Nome-do-Pai seria um significante fora da cadeia, fora do Outro, e a ordem

simbólica se revelaria articulada em torno de um buraco.

Lacan constata, assim, que seria insuficiente identificar sua estrutura a uma metáfora,

pois ela não se resolveria inteiramente com uma análise da linguagem, como queria

em 58. O Outro da função simbólica não seria suficiente para estabilizar a relação

entre significante e significado, deixando sempre um resto impossível de ser

simbolizado. Este resto é o real, designado por Lacan como o objeto a:

O objeto a é o furo que se designa no nível do Outro como tal que ele é posto em

questão para nós na sua relação com o sujeito.215

O “objeto a” seria o resto de uma operação que Lacan designa como causação do

sujeito, através da operação de alienação e separação. Em outra palavras, o objeto a

seria o objeto causa do desejo, herança do “objeto perdido” de Freud, objeto que

orienta a vida do sujeito em suas buscas. Assim, este objeto primordial do gozo teria

sido elaborado sobre o rastro do objeto perdido freudiano, do qual somente a

separação desencadeia a dialética do desejo, orientada pelo seu impossível

reencontro.216

213 Vanier, A. (1999), op.cit., p.69. 214 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.99. 215 Lacan, J. (1968-69). Seminário 16, aula de 27/11/68, in Porge, E. (1998), op.cit., p.133. 216 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.106.

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Lacan, ao inscrever no coração do Outro um furo e uma incompletude, mostra que “a

necessidade repetitiva que daí decorre é logicamente o objeto a”, como explica

Porge.217 Se o Outro é barrado e o Nome-do-Pai não consegue assegurar a

estabilização do significante sobre o significado, então qual torna-se o papel do Pai?

A Pai faz um buraco no campo do Outro, ao mesmo tempo em que é o elemento

próprio a encobrir este buraco, ainda que de uma maneira falha ou parcial. Lacan dirá

que “o Nome-do-Pai não desempenhará mais que parcialmente um papel de

rolha.”218 Ou seja, o Nome-do-Pai produz, não mais que isso, uma sutura deste

buraco. Como dirá Alain Merlet, “nós somos somente um produto de quebra galho

em torno do Nome-do-Pai”.219

A era do Outro barrado, a partir dos anos 60, pode ser considerada como a “época

lacaniana da psicanálise”, como explica J.-A. Miller.220 Podemos considerar, assim,

que o caminho que leva Lacan a formalizar a incompletude do Outro o distancia de

Freud, pois como vimos Freud teria conduzido sua obra na tentativa de salvar o Pai

neste lugar de Outro, a fim de preservar sua função simbólica. Enfim, Lacan afirma

que, do pai, “Freud nos dá a forma idealizada”.221 Lacan fala da empresa freudiana,

tentativa de preservar o Outro, representado pelo Pai:

O que Freud preserva, de fato se não em intenção, é precisamente o que ele

designa como o mais substancial na religião. (...) Estranha sobrevivência. Freud

acredita que isso irá evaporar a religião, ao passo que na verdade é a própria

substância desta que ele conserva com esse mito, bizarramente composto, do

pai.222

Mas Lacan seguiu, durante bastante tempo, o caminho freudiano do Outro na

constituição psíquica através de seu Nome-do-Pai. Contudo, seu “último

217 Porge, E. (1998), op.cit., p.132. 218 in Porge, E. (1998), op.cit., p.133. 219 IRMA (1997). La conversation d’Arcachon. Paris: Agalma, p.275. 220 Miller, J.-A. (1996). L’Autre qui n’existe pas. Aula de 20/11/1996. Paris, inédito. 221 Lacan, J. (1969-70). Seminário 17. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.94. 222 idem, p.94.

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ensinamento”, correspondente à época do real, traz a insuficiência do simbólico e do

Nome-do-Pai em capitonar o sentido, por causa do resto real impossível de ser

simbolizado.

Lacan traz, no seminário de 1963, um buraco que seria duplo, uma falta constituinte

que incidiria sobre o sujeito mas que também incidiria sobre o Outro. Esta divisão

ocorreria já a partir do momento em que o sujeito descobre sua falta-a-ser, que levará

a criança a se identificar ao falo: “O que querem dizer suas idas e vindas? O que o

Outro quer?”

É assim que a incompletude do Outro surge da mesma operação que descobre o

sujeito incompleto, não todo, não suficiente. O duplo buraco nasce ao mesmo tempo,

por uma só operação: é a partir da operação de alienação da criança que Lacan diz

que o desejo da criança é o desejo do Outro: “É por esta cadeia que se afirma uma

vez mais sua dependência ao desejo do Outro”.223

Ou seja, no momento em que seu desejo está alienado ao desejo do Outro, “o que ele

quer de mim?”, ele percebe que o Outro deseja algo, que algo lhe falta. É por isso

que Lacan chega a afirmar, finalmente, que o Outro “está igualmente dividido em

dois”.224

De um lado o significante, e de outro, o gozo, o Outro estaria agora encarnado, não

sendo mais concebido como um puro significante. É neste momento do real que

Lacan revê a teoria do pai morto, como explica J.-A. Miller:

O Outro não é uma máquina. (...) É necessário que ele seja um sujeito real, que

deva partilhar conosco certas coisas, que deva saber o que vem a ser uma

necessidade, uma demanda. É necessário que ele seja vivente.225

223 Lacan, J. (1963). Les noms du père. Aula de 20/11/1963, inédito. 224 Lacan, J. (1969-70). Seminário 17, op.cit., p.93. 225 Miller, J.-A. (2000). ...Du nouveau!, op.cit., p.29.

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IV) “Les non-dupes errent”, ou Lacan lacaniano

Chamamos esta parte de “Les non-dupes errent” (“os não-tolos erram”), título do

seminário de Lacan de 1973-74, para abordarmos o último ensinamento de Lacan,

época do pai real. Lacan trata dos três registros do pai através do título provocativo

que coloca em seu seminário, e aborda a equivalência dos registros real, simbólico, e

imaginário, presente na teoria dos nós, desenvolvida neste seminário. Enfim, é este

pai real que vamos tentar compreender aqui.

Em 1963, Lacan interrompeu o seminário “Os nomes do pai”, que traria o

desenvolvimento específico de um conceito maior de seu ensino, sem nunca mais

retomá-lo como tal. Entretanto, ele intitula seu Seminário de 1973/74 de “Les non-

dupes errent”, fazendo um jogo de palavras com o título de seu seminário

interrompido, dizendo que “les noms du père e les non-dupes errent, trata-se do

mesmo saber”.226 Podemos considerar então o seminário de 1973 como um “retorno”

de Lacan ao seminário interrompido e a uma abordagem do pai, mesmo que de uma

forma subvertida.

a) o gozo do pai

Retomemos o seminário de 63, quando Lacan faz uma análise do mito bíblico do

sacrifício de Abraão. Eis o mito: Deus dera um filho a Abraão e sua mulher, Sara,

que tinha já 90 anos, e não podia mais ter filhos por causa da idade. Este menino se

chamou Isac. Mas o mesmo Deus que deu o filho a Abraão ordenou que ele levasse o

menino a um dos montes da “terra da visão”, e o sacrificasse como prova de sua

devoção a Deus. Quando Abraão ia matar seu filho, um anjo do Senhor gritou do céu

e o impediu, dizendo que não era mais necessário o sacrifício, pois ele havia dado

provas de sua devoção. 227

226 Lacan, J. (1973-74). Les non-dupes errent. Aula de 13/11/1973. Paris, inédito. 227 Gênesis 22: 1-14.

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O sacrifício de Isac é interpretado por Lacan como sendo o sacrifício do próprio

Abraão, pois seria ele que estaria se sacrificando ao ter que sacrificar o seu estatuto

de pai, ou em outras palavras, seu gozo de pai. Ao invés de incidir sua análise sobre a

lei do pai, Lacan incide sua ênfase sobre o gozo do pai: quando Abraão abre mão do

filho em sacrifício a Deus, ele abre mão de uma parcela de seu gozo, ao perder isto

que o nomeia pai. Diz Lacan:

Aqui se marca a trincheira entre o gozo de Deus e isto que de uma tradição o

designa como desejo, desejo de algo do qual está em jogo ao provocar uma queda:

é a origem biológica.228

A ênfase de Lacan recai sobre o sacrifício de uma parcela de gozo: quando se goza

segundo a lei, há uma perda de uma parte de gozo, ou como explica Maleval, “algo

do gozo do pai deve ser sacrificado para que se instaure a lei do desejo.229

Mas isto já sabíamos, e desde a morte do pai em Totem e Tabu: a lei do desejo só

pode ser instaurada quando o pai “tout jouisseur” morre. A diferença que Lacan

imprime é relativa a este “algo” ao qual alude Maleval: ou seja, se algo do gozo deve

ser sacrificado, há uma outra parte que deve ser gozada. O pai goza!

Lacan adiciona ao mito bíblico o comentário de um pequeno livro do século XI sobre

o sacrifício de Abraão, dizendo que assim que o anjo impede Abraão de sacrificar

seu filho – pois ele já havia dado mostras de sua devoção a Deus – Abraão teria dito:

Se é assim, eu vim até aqui por nada; eu vou fazer nele pelo menos um pequeno

ferimento para te agradar, Elohim...230

Se por um lado é Abraão que goza, quando procura satisfazer a vontade de Deus ao

mostrar-se tão fiel e leal, ele abre mão de um outro gozo, ao perder seu filho: o gozo

228 Lacan, J. (1963). Les noms du père. Aula de 20/11/1963, inédito. 229 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.107. 230 Lacan, J. (1963). Les noms du père. Aula de 20/11/1963, inédito.

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daquilo que o nomeia pai. Em outras palavras, o gozo é possível, mas através de uma

recusa de um gozo ilimitado.

Se o Nome-do-Pai estava mais próximo do Nome de Deus que do pai da horda

primitiva, na medida em que dessexualizava o pai, em 58, o pai real vem mudar isso,

na transubstanciação do pai, de Nome em corpo, através de um gozo possível do pai

agora encarnado. O pai real reclama para si uma parcela de gozo, proibido desde

Totem e Tabu. Lacan revê sua tópica de supremacia do simbólico, e tira do pai sua

função de puro significante:

Não se é pai de significantes, é-se pai por causa de.231

Assim, a tarefa do pai não se restringe ao “o que é um pai?” enunciado pelo Outro,

pelo Especialista, pelo Estado, pois este enunciado deixa um resto. Ser pai não diz

somente do simbólico, mas fundamentalmente do desejo. É-se pai por causa de

alguma coisa, causado por algo, e este algo pode ser escrito como sugere Lacan: o

objeto a, objeto causa do desejo. Ser pai não é ser um significante tão somente, é ser

causado pelo desejo e encarnado pelo gozo. Diz Lacan:

O que é nomeado pai, o Nome-do-Pai, se é um nome que tem uma eficácia, é

precisamente porque alguém se levanta para responder. Sob o ângulo do que se

passava para a determinação psicótica de Schreber, é enquanto significante capaz

de dar um sentido ao desejo da mãe que, a justo título, eu podia situar o Nome-do-

Pai. Mas no nível daquilo de que se trata, quando, digamos, seja a histérica quem

o chama, o de que se trata é que alguém fala.”232

Lacan propõe aqui de abordar o gozo do pai não mais como aquele do mito, que

garantia que nós podemos gozar de todas, mas como aquele que garante que nós

podemos gozar de uma. O pai é aquele que profere o interdito, que limita o gozo e

231 Lacan, J. (1969-70). Seminário 17, op.cit., p.122, grifo nosso. 232 Lacan, J. (1970-71). Seminário 18, aula de 19/06/71, in Porge, op.cit., p.147, grifo nosso.

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simboliza a lei, mas também aquele que encarna a dimensão do gozo como pai

gozante que é. Explica Laurent essa mudança de perspectiva:

Um pai não se sustenta de ser o ‘pai-pudor’, o pai-moral’, ou o ‘pai-tirano

doméstico’; ele se sustenta por causa de uma só coisa: ele sabe ou não de seu

gozo. (...) E seu gozo, é melhor que ele o tome pela via de uma mulher da qual ele

faz causa de seu desejo. (...) Um pai se julga no que ele pode humanizar o desejo,

quer dizer, segundo o qual ele pode encarnar ou não um modo de tratamento

efetivo do gozo.233

Se o pai da horda é o pai cujo gozo é ilimitado, e o pai simbólico é o pai morto, puro

significante, cujo gozo é impossível, na época do real Lacan desenvolve a função do

pai em torno de um pai vivo, dentro de um gozo possível, através de sua père-

version. Ou seja, o pai que goza faz função. Como diz Lacadee, “a única garantia de

sua função de pai é sua père-version”.234

b) a père-version

A père-version é um conceito de Lacan que diz deste gozo do pai: a père-version

seria uma versão que dá o pai sobre seu modo de gozo. Ou seja, como o pai goza,

como é sua versão do gozo, o que ele encontrou como possibilidade para gozar, tal é

a père-version, e é isto que transmite um pai a um filho.

Quando o pai goza, é a père-version, como uma versão de gozo do pai, que faria a

função de interdição do filho à mãe. O filho não pode permanecer colado – alienado

– à mãe porque o pai, enquanto homem, reclamaria para si sua mulher. Junto ao

Outro barrado, a père-version vai integrar a fase real do ensinamento de Lacan,

incluindo a função do pai real na constituição subjetiva, para além do pai simbólico,

233 Laurent, E. (1992). Institution du fantasme, fantasmes de l´institution. In Feuillets du Courtil, n° 4, avril 1992, Tournai, Bélgica, p.17. 234 Lacadee, P. (1991). Le symptome de l´enfant. In L´enfant, la verité et le roman familial, Les Séries de la Découverte Freudienne, vol. VII, janvier 91. Supplément au n° 26 de Pas Tant, Presses Universitaires du Mirail, p.19.

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como explica Laurent: “O conceito da père-version vem substituir este da metáfora

paterna.”235

O conceito de père-version produz também uma re-significação dos agentes: de pai e

mãe, eles se transformam em homem e mulher. Diz Lacan:

Um pai não tem direito ao respeito, senão ao amor, pois se o dito respeito é père-

versement orientado, quer dizer [que ele é] feito de uma mulher objeto a que causa

seu desejo.236

Nem não ao filho, como queria Freud, nem não à mãe, como queria o Lacan do

simbólico, acreditando que o pai morto desse conta, como puro significante, de fazer

a função de capitonar o sentido. Diz Lacan, finalmente, que o simbólico não dá

conta de capitonar o sentido, e que existe sempre um resto real. No pai real, é o

“sim” do homem à mulher que faz a função dita de castração. Nem pai nem mãe,

mas homem e mulher. É porque o homem está encarnado, e barrado como Outro,

faltante, que ele deseja a mulher que cuida de seu filho.

c) Qual destino para o Nome-do-Pai?

A criança, ao responder como sintoma à verdade do casal, responde à verdade do par

pai-mãe, par representável, mas não ao real da relação do par homem-mulher, ao real

da sexuação, resíduo irrepresentável e não simbolizável:

Homem-mulher, isto não faz um casal familiar, e é isto que resta ao estado de

resíduo, de intransmissível, de insimbolizável, de real.237

235 Laurent, E. (1992), op.cit., p.18. 236 Lacan, J. (1974-75). RSI. Aula de 21/01/75. Paris, inédito. 237 Lacadee, P. (1991), op.cit., p.11.

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A metáfora paterna permite a inscrição da relação entre pai e mãe como

significantes, Nome-do-Pai sobre Desejo da Mãe, mas não permite escrever a relação

sexual entre o homem e a mulher, presente como vimos na função do pai real em sua

père-version. Assim, a metáfora permite que a questão da criança sobre o enigma do

desejo da mãe, “o que ela quer de mim?”, em termos de “não sei que gozo?”, chegue

a um sentido possível mas incompleto: um gozo marcado por um significante, o falo.

Ou seja, o que o Nome-do-Pai faz é tornar possível uma coordenação da linguagem e

do gozo, permitindo um ciframento deste em termos de gozo fálico.238

Contudo, ao responder a esta questão, a metáfora deixa em aberto uma outra: “o que

quer uma mulher?” A esta questão não existe resposta em termos puramente

significantes, pois ela diz respeito à sexualidade. O significante falta, S ( ),

significante do buraco. Ou seja, em termos puramente simbólicos, há algo da ordem

do inefável, do real, buraco na significação que impede tudo dizer sobre a relação

sexual, pois uma parte desta relação pertence a uma esfera da experiência impossível

de ser completamente traduzida em termos de linguagem.

Assim, diz Lacadee239 que o Outro não responde a este enigma, à pergunta do filho

ao pai: “o que quer uma mulher?” Existe um buraco no mundo significante do Outro,

do Pai, ao qual a criança endereça sua pergunta. Como resposta, ela encontra uma

semi-resposta, a significação fálica proporcionada pelo Nome-do-Pai, que responde a

este enigma somente como um “semi-dizer”:

Existe alguma coisa que resta como enigma. (...) A este real então do “não existe

relação sexual”, que não pode da estrutura se transmitir, pois não existe em termos

de significantes, tarefa ao sujeito de descobrir a resposta.240

Mas descobrir sozinho? Como? Como propõe Lacan, através do exemplo do pai,

através de sua versão. Se o pai não pode responder à pergunta do filho, ele pode

mostrar como ele, pai, faz; ou seja, que ele encontrou uma maneira de gozar, que é

238 Maleval, J.-C. (2000), op.cit., p.111. 239 Lacadee, P. (1991), op.cit., p.16. 240 Lacadee, P. (1991), op.cit., p.14.

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sua, particular, “pessoal e intransferível”, mas que mostra ao filho que é possível

gozar, cabendo a ele descobrir por si mesmo a sua maneira, o seu sintoma.

Assim, o conceito de identificação é re-elaborado por Lacan. Este conceito estava

presente desde a fase do espelho, quando Lacan fala sobre a identificação da criança

à imagem, condição necessária para que pudesse advir a identificação simbólica, a

partir da entrada do Outro terceiro na relação entre mãe e filho. É aí que a criança

identificava-se ao Pai por um duplo processo, através do supereu e do ideal-do-eu.

Mas vai ser através da père-version que a identificação poderá alinhavar esta

identificação simbólica, a lei ao gozo. É assim que esse gozo possível do pai vem

barrar o acesso da criança à mãe – e da mãe à criança –, e instaurar o tempo da

identificação: “Enfim, como gozar como meu pai goza?”

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PARTE III

Considerações finais

1) A psicanálise como resquício do patriarcado

Seria a psicanálise uma descendência científica da antiga sociedade patriarcal, ao

tentar manter o pai em seu lugar de autoridade ancestral, mesmo que com uma nova

roupagem? Agora, não mais em termos de dominação política e econômica sobre a

mulher e sobre os filhos, emancipados no mundo moderno, mas uma dominação tout

de même, sob a carapaça científica de “pilar da constituição subjetiva”?

Tal é a opinião de alguns autores, segundo os quais novos paradigmas e novas

metáforas seriam necessários à psicanálise, pois não estaríamos mais submetidos aos

mesmos valores morais e às mesmas determinações históricas e sócio-culturais que

levaram Freud a erigir a teoria do pai tal como a conhecemos e reproduzimos.

Devemos considerar tal questão com o cuidado que ela merece, para que não a

tratemos com preconceito, nem ao defendê-la, nem ao atacá-la. Primeiramente,

convém não confundir uma questão de estrutura subjetiva – objeto da psicanálise –

com questões morais, mesmo que – devemos reconhecer – a teoria freudiana não

tenha deixado de responder a seu tempo.

Ora, porque a psicanálise se interessa tanto pelo pai? Como se pergunta Roudinesco,

será que “toda a psicanálise se resume então ao tema do parricídio e do incesto?”241

Ou seja, será que, ao insistirmos sobre a função do pai, corroboramos de alguma

forma com uma visão da psicanálise que a considera uma teoria conservadora e

241 Roudinesco, E. (2003), op.cit., p.47.

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patriarcalista, que tenta restaurar uma posição do pai que a duras penas conseguimos

nos livrar?

Ora, voltemos a Freud. A Europa do final do século XIX vivia um mal-estar

estrutural, que teria sido expresso por Freud em sua obra, segundo conta

Roudinesco242. Esse mal-estar parecia correlato à degradação da função monárquica

do pai, e Freud evidencia essa degradação em um duplo movimento: o primeiro, na

tentativa de salvar o pai de sua degradação imaginária, insistindo em sua função

simbólica; o segundo, o de colaborar com o movimento moderno ao insistir na

importância de um rito sacrificial do pai-patriarca.

Ou seja, é na tentativa mesma de restaurar a função simbólica do pai que Freud

insiste no declínio necessário da tirania das sociedades patriarcais, seguindo o

movimento social e político de sua época. Assim, Freud defende um declínio

necessário da tirania patriarcal, exatamente para que a autoridade do pai pudesse ser

preservada. Aqui devemos lembrar de Hanna Arendt243, que explica: onde há tirania,

não há autoridade.

O movimento de Freud foi o de salvar a autoridade do Pai, eliminando de sua figura

imaginária todo e qualquer resquício de autoritarismo ou tirania, oriundos do

patriarcado secular. Se Freud inventou o Complexo de Édipo, foi para restabelecer

simbolicamente a função do pai, no momento em que se apagavam em Viena o poder

e a glória das últimas monarquias imperiais. Deste modo, Freud deixou morrer – ou

acabou de matar – a antiga ordem patriarcal, derrotada já no plano político e social,

recentrando-a em torno da questão não mais do poder, mas da autoridade e do

desejo, como explica Roudinesco244. Segundo ela, a obra de Freud é “o sintoma de

um mal estar da sociedade burguesa, presa das variações da figura do pai, e o

remédio para esse mal estar”.245

242 idem, p.49. 243 Arendt, H. (1954), op.cit., p.128. 244 idem, p.91. 245 idem, p.93.

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Na verdade, Freud acabou sendo atacado pelos dois lados. Os conservadores o

recriminavam por atentar contra a moral civilizada, principalmente por causa de sua

teoria da sexualidade infantil, e os liberais, partidários da abolição da família

tradicional e do poder do pai, o recriminavam por uma suposta tentativa de

restauração da antiga ordem patriarcal, mais autoritária do que antes, pois

dissimulada na instância superegóica. Neste debate, destacamos as idéias de Jurandir

Freire Costa246, que indaga o porquê de continuarmos creditando ao pai o lugar de

organizador simbólico do aparelho psíquico.

Costa defende que a teoria psicanalítica construída em torno do pai refere-se ao pai

dos tempos de Freud, o pai das sociedades européias do fim do século XIX,

momento em que o imaginário cultural sustentava os signos da potência paterna

masculina, herança do patriarcado e do poder concreto do “pai de família”. Diz ele:

Aceitamos a existência teórica da função paterna porque o pai visível era uma

realidade simbólica, real e imaginária incontestável.247

Quando o Estado começa a cercear o poder do pai, este foi destituído de seu lugar. O

Estado dispensou a mediação do pai e passou a gerenciar, de forma direta, os

sujeitos, através das “burocracias anônimas de cuidados médicos, psicológicos,

sociais e educativos”. O autor analisa esta substituição do pai pelo Estado:

Com ou sem pai, não nos tornamos sociopatas, loucos perversos; não estamos no

melhor dos mundos, mas não capitulamos diante do que ele tem de pior.248

Costa diz que, em face das dificuldades e das mudanças sintomáticas que a clínica

atual revela, resvalamos de maneira automática para o pai, afirmando: “falta o pai!”,

como se estivéssemos presos a um automatismo dogmático do qual deveríamos abrir

246 Costa, J.F. (2000). Playdoier pelos irmãos. In Kehl, M.R. (Org.), A função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 247 idem, p.11. 248 ibidem, p.12.

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mão, pois como diz ele, o pai na atualidade seria somente “uma alegoria congelada

do que foi o pai do nosso pai ou o pai da tradição cristã ocidental”249. Porque, enfim,

não inventarmos metáforas mais ricas para a realidade psíquica dos tempos de hoje,

pergunta ele?

O questionamento que traz Costa com relação à função do pai gira em torno da

interdição. O autor problematiza a necessidade da interdição creditada ao pai –

interdição veiculada através de sua lei simbólica – para a constituição da

subjetividade da criança. O autor entende que a questão se concentraria aí, em uma

releitura da interdição proposta por Freud, resistência necessária à satisfação das

pulsões infantis.

Se Freud escolhera como metáfora um dique, edificado para conter o avanço do mar

e a inundação iminente, Costa mostra que outros autores trabalharam com outras

metáforas, talvez mais apropriadas, como por exemplo Winnicott, que utilizaria a

metáfora do moinho de água que aproveita a força da natureza para a realização de

trabalhos úteis.250

Não é nossa intenção aqui investigarmos o pensamento de Winnicott sobre a relação

entre a pulsão e a interdição, como faz Costa, nem investigarmos a sublimação

freudiana: não seria a sublimação um moinho de água? Contudo, da discussão

levantada pelo autor, retenhamos a relação entre a necessidade ou não da interdição

dos instintos com a função do pai.

Entendemos que a relação entre a interdição dos instintos e a função do pai responde

a um momento circunscrito da teoria psicanalítica. A função do pai se distancia da

interdição tão somente, principalmente no último ensino de Lacan, afastando-se

principalmente dos conteúdos imaginários que estariam colados ao pai sob forma de

onipotência, dominação, tirania, e que – concordamos com Costa – deveríamos

abandonar.

249 ibidem, p.15. 250 ibidem, p.18.

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Mas Freud já havia dado este passo, na morte do pai em Totem e Tabu, e Lacan

formalizou a função simbólica do pai elaborada por Freud afastando a interdição de

seus aspectos imaginários, transformando a interdição em uma operação significante.

Mas finalmente, daria no mesmo, seguindo o raciocínio de Costa, pois estaríamos

ainda presos ao pai da interdição.

2) Interdição ou não, eis a questão

Mesmo que pareça-nos uma redução à função do pai, a interdição suscita já um

debate importante. Porque ao pai é creditada a interdição do filho, ou porque o pai

interdita o filho, para além das considerações sobre o poder abusivo e historicamente

determinado do pater familias? Pois, como já dissemos, uma coisa é o poder

ilimitado do pater familias, que podia usar e abusar dos filhos, das mulheres e dos

escravos. Este poder foi interditado pelo Estado na modernidade. Ou seja, o poder

(de interdição) que credita ao pai a psicanálise e o poder do pater familias são coisas

diferentes, como vimos, e nos restringimos agora à discussão do primeiro. Então, por

que deve o pai interditar o filho?

Para começar, porque o filho nasce imaturo. O filho corre risco de vida se o pai – ou

a mãe, ou o avô, ou a tia – não o limita. A intenção é proteger a criança, limitando

seu raio de ação. Colocar o dedo na tomada, descer escadas, subir na varanda,

atravessar a rua, entrar na piscina, tais ações são riscos potenciais à integridade física

de uma criança, se livrada à própria sorte.

O segundo risco é quanto à sua saúde psíquica: o pai é aquele que interdita à criança

um gozo autístico, impedindo-a de gozar indefinidamente, à sua própria sorte, com o

próprio corpo, com o corpo da mãe, com o mundo, como se fossem objetos a seu

dispor, extensões de seu corpo. Ao colocar uma lei, uma ordem, uma interdição, o

pai protege a criança de se ver morta como sujeito, livrada ao mundo da natureza, à

alienação ao espelho do outro e ao perigo de se ver, assim, eternamente capturada

como objeto do gozo do outro. Como sujeito desejante, como mandatário do Outro,

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da lei do Outro, é conferida ao pai essa tarefa de limitar o gozo que aliena a criança,

levando-a ao mundo da cultura, ao mundo do Outro.

J.-A. Miller retoma também a função da interdição dizendo que, após Freud, as

sociedades culturais seriam o fruto de uma interdição251. O que nos restaria após a

interdição, pergunta ele? Ora, responde o autor, muitas coisas. Após a interdição nos

restaria o objeto do desejo, objeto proibido. A lei, após Freud, não estaria aí contra o

desejo, mas seria aquilo que dá suporte ao desejo: “eu desejo aquilo que é proibido”.

A lei é o que mantém e suporta o desejo. O nó do desejo é a lei.

Lembrando de outro mito bíblico, foi através da interdição que o fruto proibido da

“árvore da ciência do bem e do mal” se tornou o objeto de desejo para Eva:

E (Deus) deu-lhe este preceito, dizendo: Come de todas as árvores do paraíso, mas

não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque, em qualquer

dia que comerdes dele, morrerás indubitavelmente.252

Somente após a promulgação da lei, é que o desejo de comer do fruto proibido

existiu para Eva. Nesse sentido, Deus faz nascer o desejo, através da promulgação da

lei. Ao mesmo tempo, a lei da interdição do fruto é o que faz nascer o sujeito Eva,

diferenciada da natureza, diferenciada do resto das árvores presentes nos jardins do

Paraíso. Adão e Eva realmente morreram como avisou Deus, morreram como seres

naturais, como seres da natureza, seres sem desejo, salvos de seu destino de serem

árvores, a partir da interdição do Pai. A serpente assim explica:

Mas Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, se abrirão os vossos

olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.253

251 Miller, J.-A. (2003). Aula de 21/05/2003. Paris, inédito. 252 Gênesis 2: 16-17. 253 Gênesis, 3: 5.

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Se nos anos 60 havia o interdito do sexo, era exatamente para dar sentido ao ato. Era

esse interdito que autorizava o ato, pois fazê-lo em segredo contornava-o de sentido,

fazia borda. A função da lei é, finalmente, a de servir como suporte do desejo.

Estes dois motivos, um referente à integridade física, o outro à integridade psíquica

da criança, defendem a tarefa de interdição, creditada ao pai pela psicanálise. Mas

seria necessário um pai para esta tarefa de interdição?

3) Afinal, pode ser a mãe?

Uma coisa é a interdição, processo fundamental para que a criança sobreviva. Outra

coisa é creditarmos essa tarefa ao pai. Poderíamos pensar nos casos em que a criança

é abandonada em tenra infância, e encontra-se em famílias substitutas, em

instituições de cuidado, e mesmo em instituições de tratamento. Estas crianças

podem construir sua neurose normalmente, mesmo nestes casos em que não temos o

pai por perto para desempenhar esta função de interdição.

Nestes casos, arrumamos substitutos ao pai, e o processo pode desenrolar-se sem

maiores contratempos. Se destituímos o pai de sua função, se o substituímos sem

maiores prejuízos à constituição psíquica da criança, então deveríamos concordar

com Costa: o pai seria desnecessário à função, já que podemos substituí-lo.

Tal posição ganhou relevância considerável a partir dos estudos de Lacan sobre a

função simbólica do pai. Se o pai estava morto, e sua função simbólica era uma

operação significante que intervinha na linguagem, então qualquer elemento que

intervisse como terceiro na relação entre mãe e filho poderia realizar tal função.

Explica Dor:

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Todo terceiro que responder a esta função mediatizando os desejos respectivos da

mãe e do filho vai instituir, por sua incidência, o alcance legalizador da interdição

do incesto.254

Ora, tal seria o caso de tantos e tantos filhos de pais divorciados, diríamos, que não

se tornaram psicóticos por causa da ausência do pai. Eles lembram de Lacan com

propriedade, quando este dizia no Seminário 5 que a operação de interdição é uma

“operação metafórica significante”, e que o sucesso de tal operação dependia do caso

que a mãe faz da palavra do pai:

Trata-se menos das relações pessoais entre o pai e a mãe (...) que do momento que

tem que ser vivido como tal, e que concerne às relações não apenas da pessoa da

mãe com a pessoa do pai, mas da mãe com a palavra do pai.255

Ou seja, a operação de interdição do pai só é possível se a mãe a efetiva, se a mãe

inclui o Pai em seu discurso, o pai simbólico, o pai como detentor da lei do Outro,

para que a função paterna possa ser efetivada. Assim, seria a mãe a responsável pela

eficácia da interdição feita pelo pai, por ser responsável em validar ou não a palavra

do pai. Se pensarmos assim, poderíamos imaginar que a Lei da mãe poderia ser, nela

mesma, suficiente para realizar a tarefa de interdição, e assim deveríamos concordar

com Costa: em tempos de declínio da palavra do pai, tempos modernos, e de uma

auto-suficiência fálica das mães, porque não creditarmos à mãe tão somente a tarefa

de responsável pela entrada da criança no mundo simbólico da linguagem, no

discurso do Outro?

Lacan chegou a se perguntar a mesma coisa, imaginando uma Lei simbólica que

seria uma Lei da Mãe. Por que não? Diz Lacan:

No que tange a proibir à sua primeira maturidade no sujeito, quando este começa a

destacar seu instrumento, ou até exibi-lo, a oferecer à mãe os préstimos dele, não

254 Dor, J. (1991). O pai e sua função em psicanálise, op.cit., p.42. 255 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.197.

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temos nenhuma necessidade do pai. (...) A mãe é perfeitamente capaz de mostrar

ao filho o quanto é insuficiente o que ele lhe oferece, e também é suficiente para

proferir a proibição do uso do novo instrumento.256

Ou seja, será que a mãe pode ser portadora também da lei? Sim, responde Lacan.

Mas de uma maneira particular: a lei da mãe seria uma lei não mediada, uma lei

caprichosa, pois erigida sem a intermediação de um Outro:

Não obstante, essa lei é, por assim dizer, uma lei não controlada. (...) Essa lei está

toda ela no sujeito que a sustenta, no bem-querer ou mal-querer da mãe, na mãe

boa ou má. (...) A criança se experimenta e se sente como profundamente

assujeitada ao capricho daquele de quem depende, mesmo que esse capricho seja

um capricho articulado.257

Por ser a mãe o primeiro – ou o único – objeto com o qual a criança experiencia a

realidade em seus primeiros anos, sua lei seria a “lei do sujeito único”, “lei do

capricho sem o Outro”, uma lei fundamentada “toda ela no sujeito que a sustenta”.

Além disso, mesmo que a mãe pudesse desempenhar a função simbólica do pai, uma

mãe não é um pai. Mesmo que os agentes possam trocar de lugares e desempenhar

diferentes funções, isso não implica que mãe e pai sejam iguais. Mesmo que a mãe

possa assumir uma posição paterna e o pai uma posição materna, estas “posições

identificatórias” não têm o mesmo alcance simbólico que lhes é, respectivamente,

atribuído, como explica Dor.258 Por que? Porque o drama edípico, conclui ele, está

ligado “ao real da diferença entre os sexos”, como havíamos visto:

Certamente, basta que o significante Nome-do-Pai seja convocado pelo discurso

materno para que a função mediadora do Pai simbólico seja estruturante. Mas é

necessário ainda que este significante Nome-do-Pai seja explicitamente, e sem

ambigüidades, referido à existência de um terceiro, marcado pela diferença sexual

256 Lacan, J. (1957-58). Seminário 5, op.cit., p.193. 257 idem, p.195.

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relativamente ao protagonista que se apresenta como mãe. É só nessas condições

que, na ausência do pai real, o significante Nome-do-Pai pode ter todo o seu

alcance simbólico.259

Se precisamos de alguém que tome o lugar do pai, é porque sua função é necessária,

tal é a conclusão lógica a que chegamos. Com a agravante de que os substitutos não

são a ‘coisa’, e deixam um buraco no revestimento imaginário que dá estofo

simbólico à tarefa que a ‘coisa’ desempenha. Um pai não é a mesma coisa que uma

mãe, nem tampouco que um educador. Mesmo que os substitutos do Pai possam

exercer o papel de Nome-do-Pai, seu alcance simbólico não é o mesmo na função de

tornar presente no discurso da mãe não só a lei mediadora do Outro, mas também o

real da diferença sexual.

Enfim, o que queremos dizer aqui é que a tarefa do pai não é somente simbólica, nem

se reduz à interdição. Há um real em jogo, além do imaginário, que com o simbólico

fecham um nó.

4) Esquematicamente...

Podemos tomar as diferentes funções do pai em psicanálise, esquematicamente,

analisando-as com relação aos diferentes tipos de relação do sujeito ao Outro, com

relação aos diferentes acessos ao gozo.

1o. O pai da interdição – só o pai goza – gozo ilimitado – Outro encarnado não

barrado

É o pai – ou o educador – que busca no “não” autoritário um retorno nostálgico do

antigo sistema educacional disciplinador, acreditando que uma ordem rígida é o que

258 Dor, J. (1991), op.cit., p.57. 259 idem, p.58.

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faltaria na Educação hoje em dia. Não é difícil acharmos instituições que se baseiam

neste modelo de pai: os antigos colégios tradicionais, principalmente os colégios

religiosos, baseiam sua função educativa na crença da repressão, na força do “não”,

na importância da punição, na vigilância panóptica. São as instituições disciplinares

clássicas, descritas por Foucault em “Vigiar e punir”.

O pai, o professor, o mestre, instituído neste lugar de saber e poder, seria o único que

goza, interditando toda e qualquer possibilidade de gozo aos filhos ou alunos.

2o. O pai como educador benevolente – sem autoridade – quem goza é o filho

O pai que surge como reação aos modelos autoritários tradicionais é o pai

benevolente, o pai do discurso científico, politicamente correto. Qual seria a função

do pai aqui? Propiciar ao filho um gozo sem entraves, assegurado por uma educação

sem restrição ou interdição. Em suma, seria o pai-trocinador, o horizonte de uma

sociedade fraterna, horizontalizada, sem pai.

As instituições ditas maternas, ou “instituições sem pai”, seriam inspiradas nos

movimentos pós-autoritarismo dos anos 70, no “é proibido proibir”. A escola inglesa

idealizada por Neill – Summerhill – pode ser considerada o exemplo paradigmático.

Aqui, viveríamos a utopia de uma educação sem adultos, onde as crianças gozam

como querem. A educação utópica dos anos 80 defende que, na verdade, os pais e

professores estariam na mesma condição que as crianças: não são eles que detêm a

autoridade, que ditam as regras, que ensinam. Os adultos estão lá para aprender com

as crianças. Se os alunos não querem assistir às aulas, devemos perguntar o que eles

querem fazer.

Esse modelo de instituição dá lugar a todo tipo de entraves que vemos atualmente na

crise generalizada em que se encontram pais e professores na tarefa educacional:

com pais e professores sem autoridade, as crianças não podem mais confiar aos

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adultos a tarefa de transmissão, tendo que procurar sozinhas “onde se encontram os

tesouros e qual seu valor”260.

3o. O pai simbólico – reconhecimento do outro no Outro – acesso simbólico –

ninguém goza, gozo impossível – Outro simbólico barrado

O pai como puro significante – ou as instituições baseadas neste modelo de Lei

simbólica – buscariam na organização de uma estrutura vazia – sem sujeitos e sem

possibilidade de gozo – uma organização puramente significante. Aqui, ninguém

goza, pois não existem sujeitos. Pai e filho, e professor e aluno, ocupam um lugar

simbólico dentro de uma estrutura que funciona por si só, que os antecede e os

ultrapassa. A burocracia representa o tipo de funcionamento dessas instituições: os

alunos são números, os professores também. Quando falta um professor, não há

problemas maiores: substituímos este professor por outro, e retomamos a matéria no

ponto parado. A estrutura faria, por si só, a função de interdição necessária à prática

educativa.

Tal seria a utopia da pedagogia clássica: a aprendizagem seria um processo

meramente cognitivo, tal qual o ensino. Se o professor souber bem a matéria, ele

consegue ensinar seus alunos. O gozo, aqui, seria um empecilho para ambos, aluno e

professor, no processo educacional.

Percebemos que o ideal da pedagogia, esse que tenta universalizar o sujeito do

conhecimento, ao propor métodos universais de aprendizagem, não dá conta de tudo.

É também por isso que não resolve o problema os pais serem “aconselhados” por um

psicólogo sobre a “maneira correta” de educar. O caso a caso do sujeito escapa à

pedagogia, exatamente porque a pedagogia não permite que os sujeitos incluam no

processo educativo suas versões de gozo.

260 Arendt, H. (1954), op.cit., p.21.

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4o. O pai real da identificação – real da diferenciação sexual – versão possível do

gozo – Outro encarnado barrado

O pai real não é o pai ideal. O pai real possibilita o enodamento dos três registros: o

não do pai totêmico, a estrutura do pai simbólico, e o gozo do pai real. Os três

registros estão enodados, sempre estiveram, e somente através de uma versão

possível de gozo é que o não imaginário e o não simbólico podem fazer função. É

através desta posição particular que o pai – ou o educador – assume, quando ele

reivindica sua parcela de gozo, quando ele mostra como ele goza, é que ele interdita

e transmite, ao mesmo tempo, e pode fazer o “não” ter função.

Para exemplificar esta posição, daremos um pequeno exemplo. A pequena Laura, de

5 anos, havia comido um iogurte após o jantar. Mas ela queria outro. E recebeu seu

segundo iogurte. Mas ela queria um terceiro. Foi aí que o educador que estava com

ela disse “não” ao terceiro iogurte. Como – ou porque – dizer não a uma criança?

Podemos pensa-lo, neste exemplo, de diferentes maneiras:

O pai autoritário usaria seu poder: “Eu decido e acabou, eu mando e não tem

discussão!”, ou até “Eu não dou porque TODOS os iogurtes são meus, porque só eu

mando, só eu decido, só eu como, só eu gozo!”.

O pai benevolente daria quantos iogurtes Laura quisesse comer, mesmo com o risco

de ela passar mal depois. Provavelmente ele não se responsabilizaria por nada,

dizendo: “Foi ela quem quis.”

O pai simbólico se basearia nas leis do Outro: “eu não dou, não porque há uma lei na

instituição: cada um poderá comer um único iogurte após as refeições, o Outro-

diretor é que decidiu, Lei simbólica à qual estamos todos submetidos e barrados”.

O pai real diria não ao terceiro iogurte, “porque EU vou comer, é o MEU iogurte.

Você já comeu os seus, este é MEU”. O não aqui inclui as posições imaginária e

simbólica, e interdita algo de seu gozo, ao colocar em evidência algo do gozo do

educador.

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Nem o primeiro “não”, nem o segundo, funcionam, se o terceiro não enodá-los. No

caso de Laura, o educador realmente não deu o iogurte porque era o iogurte dele,

porque ele não havia comido ainda, e porque ele queria comê-lo. Nesse momento ela

parou de insistir, parou de gritar desesperadamente, parou de chorar. Sua angústia

pôde ser apaziguada e ela ficou tranqüila, olhando o educador comer, dizendo: “esse

é o iogurte do Pedro, a Laura já comeu o dela.”

5) Finalmente...

Quando começamos a nos debruçar sobre a literatura psicanalítica sobre o Pai,

percebemos que a conceitualização em torno do Pai abarcava a própria história da

psicanálise. De Freud a Lacan – ou seja, em 100 anos de psicanálise – muito foi

teorizado em torno do Pai. Em outras palavras, falar sobre o pai em psicanálise era

falar sobre a própria psicanálise, empresa que gira em torno de uma extensa

teorização sobre o pai. Não precisamos dizer que tal tarefa é inglória – mesmo

impossível –, pois se tentamos dar conta dos diferentes aspectos do pai dentro da

teoria, temos consciência de que simplesmente acabamos tocando a ponta do iceberg.

Para perseguir nossa questão inicial, “qual é a importância da autoridade na

educação?”, percorremos o caminho que o Pai traçou na psicanálise, por

identificarmos na posição historicamente representada pelo pai esta função de

autoridade. Procuramos limpar o pai de que fala a psicanálise de suas considerações

imaginárias nas quais estava misturado por conta do patriarcado e da tirania do pater

famílias. Esta foi a primeira parte de nosso percurso.

A segunda parte se dedicou a traçar a teorização em torno do pai na psicanálise, indo

de Freud a Lacan, até chegarmos ao pai real. Se o pai totêmico é o “pai vivo até

demais”, ou “père jouisseur”, e o pai simbólico é o pai morto, onde nenhuma

possibilidade de gozo é permitida ou possível, nem para o filho nem para o pai,

vimos que na época do real Lacan desenvolve a função do pai em torno de um pai

vivo, dentro de um gozo possível, a père-version. Esta parte da teoria enuncia que

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somente quando o pai reclama sua parte de gozo é que ele executa a função de

interdição e de transmissão.

Fechando o nó-borromeano, entendemos enfim que os três registros são sincrônicos,

e a função imaginária, simbólica e real do pai sempre estiveram enodadas, para

permitirem efetivamente a função que cabe ao pai.

Este trabalho nasceu de uma pergunta: a autoridade é enfim importante para a

educação? A resposta que propomos baseia-se na teoria dos nós. Na verdade, como

os nós estão enodados, assim como os três registros do pai, eles o estiveram desde

sempre.

Se tínhamos a impressão de que a educação de antigamente funcionava, ou que

antigamente era a disciplina e a rigidez, através de um “não” forte, o que

possibilitava a aprendizagem e a educação, vimos ao longo deste trabalho que não é

o “não” imaginário e a potência da voz que garantem a função. Se antigamente o

“não” funcionava, é porque os três registros estavam enodados. Ou seja, se o pai e o

professor conseguiam desempenhar sua tarefa educativa no passado, é porque eles

conseguiam passar também uma versão de seu gozo aos filhos e alunos, sua père-

version, a maneira pela qual eles também gozavam. Por exemplo, pode ser que o

professor soubesse como gozar, ao exercer uma profissão prestigiada como era a

profissão de professor, antigamente. Além disso, sua posição simbólica estava

assegurada de alguma forma, o Outro da cultura era uma estrutura continente à sua

modalidade de gozo possível.

Os três tempos do Pai não são diacrônicos, apesar de a teoria se mostrar assim, mas

sincrônicos. Falamos, do início ao fim, de um único pai, cujos registros RSI estavam

desde sempre enodados na função. Por isso, a nostalgia do “não” da educação

vitoriana parece-nos um engodo: ela dava certo não por causa do “não”, mas porque

os três registros faziam nó. Ou seja, através de um semblante de “não”, o pai passava

a sua versão de gozo possível. Podemos dizer até que o “não” era – e continua sendo

– necessário para a prática educativa, mas somente em sua função de semblante,

ancorado como semblante do nó. Tudo o que se passaria aí, no “não”, seria puro

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semblante. Mas esse semblante faria função sim, desde que junto a um gozo possível

e necessário à transmissão e à prática educativa, filiado a um registro simbólico

continente.

Nas famílias, devemos resgatar a filiação paterna, o lugar da tradição onde o pai

afilia sua transmissão de gozo possível ao filho. Como o pai goza, é isso que

devemos ajudá-lo a lembrar, ao invés de procurarmos nos manuais de auto-ajuda

como o Outro goza, ficção de completude e felicidade. Como diz Laurent, “a criança

se constitui como sujeito em uma referência ao nome de um desejo que não deve ser

sem nome”.261 Esse é o papel da psicanálise junto ao pai moderno: ajudá-lo a

“lembrar” de sua versão particular de gozo, de sua filiação, para que ele possa se

apropriar e nomear sua transmissão aos filhos. Como diria Lacan quanto ao papel da

psicanálise, “a gente está ali para conseguir que ele [o sujeito] saiba tudo o que não

sabe, sabendo-o contudo”.262

Nas escolas, devemos tentar ajudar o professor na mesma tarefa, a de lembrar porque

ele está ali, de onde veio, com qual intuito, por qual gozo. O professor de matemática

é professor de matemática por algum motivo, e podemos supor – para além da falta

de escolha no mercado de trabalho – que é o gozo que responde a esse motivo. Ele

identifica alguma forma de gozo possível com a sua escolha, e é essa versão de gozo

do professor que faz os alunos respeitarem sua autoridade, e que também faz os

alunos aprenderem.

Esta pesquisa nasceu com o intuito de recolocar a importância do “não” na educação,

como uma crítica às teorias educacionais modernas que defendem o “é proibido

proibir”. Queríamos defender que as crianças precisam de adultos que não tenham

dúvida de sua tarefa de educar e de sua tarefa de impor limites à criança, pois a

criança, em sua constituição subjetiva, tem necessidade de encontrar um adulto que

lhe mostre o limite, o enquadre, o “não” do Outro, condição de toda liberdade.

261 Laurent, E. (1992). Institution du fantasme, fantasme de l´intitution, op.cit., p.15. 262 Lacan, J. (1969-70). Seminário 17, op.cit., p.106.

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Contudo, ao longo de nossa pesquisa sobre o Pai em psicanálise, nos deparamos com

o Lacan do real. A busca pelo “não” perdeu o sentido, sendo substituída pelo “gozo

possível do Outro barrado”. Assim, passamos a considerar que o “não” pode tanto

estar presente quanto estar ausente, tão necessário quanto desnecessário, pois não é

por causa dele que as crianças respeitam a autoridade do pai, do professor, ou que faz

com que as crianças aprendam dentro de uma escola, ou que mantém a disciplina

necessária ao processo de aprendizagem, como diriam os nostálgicos da educação

tradicional. A autoridade do pai e do professor, parece-nos, não está condicionada ao

“não” tão somente, pois há o nó dos três registros. É através da maneira como ele – o

pai ou o professor – goza, inserido numa filiação simbólica que sustente esse gozo

possível, que o “não” e a autoridade podem ter algum efeito educativo, estruturante,

de aprendizagem, de filiação, de acesso, de interdição, de transmissão.

Finalmente, o “não” de autoridade do pai ou educador pode até funcionar, quando

necessário – e em muitos momentos ele é necessário. Mas somente porque os três

registros estão – e estiveram desde sempre – enodados.

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