A GESTÃO DAS ORGANIZAÇÕES DE TERCEIRO SETOR

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Programa de Ps-Graduao em Administrao

A GESTO DAS ORGANIZAES DE TERCEIRO SETOR: entre a lgica social e a lgica estratgica

Paula Pessoa de Castro

Belo Horizonte 2010

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Paula Pessoa de Castro

A GESTO DAS ORGANIZAES DE TERCEIRO SETOR: entre a lgica social e a lgica estratgica

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Administrao da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Administrao.

Orientador Prof. Dr. Roberto Patrus-Pena

Belo Horizonte 2010

FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

C355g

Castro, Paula Pessoa de A gesto das organizaes de terceiro setor: entre a lgica social e a lgica estratgica / Paula Pessoa de Castro. Belo Horizonte, 2010. 143f. : il. Orientador: Roberto Patrus Pena Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Administrao. 1. Setor tercirio. 2. Administrao Aspectos sociais. 3. Administrao estratgica. 4. Desenvolvimento gerencial. I. Pena, Roberto Patrus Mundim. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Administrao. III. Ttulo. CDU: 658.114.8

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Para os que se doam em trabalho, pensamento, alma e sentimento s organizaes e aos movimentos da sociedade civil no Brasil, por acreditarem na transformao. Para Csar, Teresinha, Lucinha e Chico, que fazem meu melhor mundo. Para Carmen, Ana Teresa e Alice; Para os meninos e meninas da Fundao Sorria, que sejam melhores para o mundo e ajudem a fazer um mundo melhor.

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AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Dr. Roberto Patrus-Pena, pela orientao impecvel e pelo elegante companheirismo de constante estmulo, pelas contribuies

engrandecedoras e pelos mundos que tem a mim apresentado.

A toda a equipe do Instituto Hartmann Regueira, especialmente Vilma Nascimento, Maria Lcia Oliveira e Ceclia Regueira, que estiveram de corao aberto para a ideia e ombro a ombro durante a coleta de dados;

Aos integrantes das organizaes participantes do PDG.org, especialmente Alcenira e Glauco, Valdinei e Adair, Eliziane e Alcione, e Ana Maria, por toda a riqueza doada a essa pesquisa.

Aos professores, autores, criadores e colaboradores do PDG.org que gentilmente me receberam para conversar e aprender com suas experincias e reflexes.

Aos professores e funcionrios do PPGA da PUC Minas, em especial ao Prof. Dr. Jos Mrcio de Castro, que mostrou os primeiros caminhos e conquistou minha profunda admirao; ao Marco e Jaqueline pela presteza sempre alegre e competente.

Prof. Dr. Graziella Maria Comini e ao Teo, Prof. Dr. Armindo dos Santos de Souza Teodsio, pelos importantes questionamentos feitos e melhorias sugeridas durante a banca de defesa desta dissertao;

Prof. Dr. Betnia Tanure e Prof. Dr Glucia Maria Vale, pelas contribuies na banca de qualificao do projeto.

famlia e aos amigos, que me acompanharam e torceram por mim, especialmente Nassim Calixto Jr., Marlia Bergamo, Vanda Tanajura, Beth Miranda, Astria Soares e Paulo Lemos, pela inspirao e motivao.

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Aos amigos queridos e a todos os funcionrios da Fundao Sorria, pela fonte de vontade e vida, e tambm s asas e ao sonho do Alusio Drummond.

Aos colegas de trabalho que viveram comigo trechos de vida que esto tambm aqui revelados nas reflexes desta pesquisa, em especial ao Maurcio Martins, Fernanda Lima, ao Vandeir Assis, ao Joo Bosco Senra, ao Francisco Galdino e dupla dinmica Darci Botelho e Haroldo Lima da Brecha.

Aos colegas do PPGA pelos bons e tambm pelos angustiantes momentos compartilhados em um perodo singular para todos ns, em particular aos que me cutucaram na convivncia mais direta, Lo, Lucinia, Gustavo, Carlo, Yolanda, Adriana e Wanice; aos colegas do IEC/PUC Minas, da Fundao Casper Libero e da UFMG, pela caminhada.

Ao Fbio Cegali, que musicou.

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Todos possuem a incerteza do que afirmam.Guimares Rosa (1985, p. 97)

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RESUMO O objetivo desta pesquisa foi investigar e compreender como acontece na prtica a articulao entre a lgica social e a lgica estratgica na gesto de organizaes de Terceiro Setor, por meio de um estudo de caso de um Programa de Desenvolvimento em Gesto, o PDG.org. O referencial terico abordou o conceito, a caracterizao do Terceiro Setor e os desafios da gesto de organizaes pertencentes a ele. O foco foi o aperfeioamento gerencial como uma alternativa proposta para vencer os desafios e a dualidade manifestada na prtica das aes administrativas nas organizaes de Terceiro Setor pelas lgicas social e estratgica,. A estratgia de pesquisa adotada foi de natureza qualitativa, com base em dados coletados em arquivos, documentos e entrevistas em profundidade. A anlise dos dados foi feita pelas tcnicas de anlise de contedo e anlise de discurso. A estruturao da coleta e da anlise dos dados seguiu quatro etapas do PDG.org: os antecedentes, a concepo, a execuo e os resultados de curto prazo. Os resultados reafirmaram o papel fundamental do contexto em que as organizaes surgem e o perfil de seus fundadores no direcionamento de sua gesto, o impacto causado pela capacidade em formar redes de parceria no desempenho da gesto, a busca por um modelo prprio que considere suas especificidades e os limites da capacitao gerencial como alternativa ou soluo para os principais desafios da gesto no Terceiro Setor. Em particular, os resultados demonstraram a insuficincia da lgica estratgica e da lgica social como fundamentos preponderantes de um modelo gerencial. Na realidade das organizaes de Terceiro Setor, as duas lgicas coexistem e podem equilibrar-se, harmonicamente ou no. Sendo assim, partindo do pressuposto de que os processos e o equilbrio entre a lgica social e a estratgica no so estanques, uma anlise de coexistncia faz mais sentido ao propsito de desenvolvimento em gesto, tanto para o entendimento da realidade de uma organizao, quanto para identificar caminhos para mudanas e melhorias. Nesse sentido, sugeriu-se ento uma tipologia para anlise de perfil de gesto de organizaes de Terceiro Setor que considere a articulao existente entre a lgica social e a lgica estratgica.

Palavras-chave: Terceiro Setor. Gesto Social. Gesto Estratgica. Desenvolvimento Gerencial.

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ABSTRACT

The main purpose of this research was to investigate and understand how the relationship between the social logic and strategic logic occurs in the practice of the management of organizations of the Third Sector, through a case study of a Management Development Program, the PDG.org. The theoretical framework discussed the concept, the characterization of the Third Sector, and the challenges of managing organizations belonging to it. The focus was on improving management as an alternative to overcome the challenges and the duality expressed in the practice of managerial actions in organizations of the Third Sector by the social and strategic logics. The research strategy adopted was qualitative, based on data collected in files, documents and interviews. Data analysis was performed by the techniques of content analysis and discourse analysis. The structuring of the collection and analysis of data followed the four stages of the PDG.org, namely: the history, design, implementation and short-term results. The results reaffirmed the fundamental role of context in which organizations arise and the profile of its founders in the direction of its management, the impact caused by the ability to form networks of partnership in the performance of the management, the search for a model that considers its own specificities, and the limits of managerial training as an alternative or solution to major management challenges in the Third Sector. In particular, the results demonstrated the inadequacy of strategic logic or social logic as the main foundation for a managerial model. In the reality of the Third Sector organizations the two logics coexist, and can be in balance, with harmony or not. Thus, assuming that the processes and the balance between social and strategic logic is not tight, an analysis of coexistence makes more sense to aim for development in management, both for understanding the reality of an organization, and also to identify ways to changes and improvements. In this sense, then it was suggested a typology for analysis of profile management organizations of the Third Sector that consider the existing relationship between the social and strategic logic.

Keywords: Third Sector. Social Management. Strategic Management. Managerial Development.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6

Etapas do PDG.org a serem analisadas ........................................ Setores socioeconmicos .............................................................. Diagrama conceitual das esferas sociais de Janoski (1998) ......... O pblico e o privado nas quatro esferas ......... Fundamentao do modelo do PDG.org ....................................... Relao entre as lgicas social e estratgica nas etapas de concepo e execuo do PDG.org ..............................................

21 29 31 31 79

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Figura 7

Anlise de processos de gesto em organizaes de Terceiro Setor ............................................................................................... 123

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LISTA DE QUADROS Quadro 1 Enfoques sitmico e gerencial na gesto de organizaes no governamentais ........................................................................... Quadro 2 Quadro 3 Quadro de anlise racionalidade x processo organizacional ... Tipologia de gesto em organizaes de terceiro setor por enfoque e racionalidade .............................................................. Quadro 4 Quadro 5 Quadro 6 Quadro 7 Quadro 8 Planejamento de coleta de dados ............................................... Controle das entrevistas .............................................................. Numerao e classificao das fontes ........................................ Existncia de dados referentes a cada etapa do PDG.org ......... Organizao dos dados por assunto e fonte nos antecedentes do PDG.org ................................................................................. Quadro 9 Categorizao dos dados quanto lgica subjacente s etapas concepo e execuo ................................................................ Quadro 10 Quadro 11 Quadro 12 Quadro 13 Quadro 14 Quadro 15 Quadro 16 Quadro 17 O que o PDG.org ...................................................................... Organizaes participantes do PDG.org ..................................... 62 77 91 61 49 54 56 58 60 44 47

Anlise de contedo da concepo do PDG.org ......................... 113 Anlise de contedo da execuo do PDG.org ........................... 117 Dados por assunto e fonte de execuo ..................................... Dados por assunto e fonte concepo ........................................ Dados por assunto e execuo ................................................... Dados por assunto e resultados .................................................. 140 141 142 143

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LISTA DE SIGLAS

ABONG CAPES CEATS

Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior Centro de Empreendedorismo Social e Administrao em Terceiro Setor

CEMPRE Cadastro Central de Empresas FASFIL IBGE IGS IHR IPEA Fundaes e Associaes Sem Fins Lucrativos Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica Instituto de Governana Social Instituto Hartmann Regueira Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

NUPEGS Ncleo de Pesquisa em tica e Gesto Social OIT ONG OSCIP PAEX PDG.org UFBA UFMG UFRJ USP PUC/SP Organizao Internacional do Trabalho Organizao No Governamental Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico Programa Parceiros para a Excelncia Programa de Desenvolvimento em Gesto Universidade Federal da Bahia Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade de So Paulo Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

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SUMRIO 1 1.1 2 2.1 2.1.1 2.1.2 2.2 2.2.1 2.2.2 3 3.1 3.2 3.3 3.4 4 4.1 4.1.1 4.1.2 4.1.3 4.2 4.2.1 4.2.1.1 4.2.1.2 4.2.2 4.2.3 4.3 4.3.1 4.3.2 4.3.3 4.4 4.4.1 4.4.1.1 4.4.1.2 4.4.2 4.4.3 4.5 4.6 5 INTRODUO .................................................................................... Objetivos da pesquisa ...................................................................... FUNDAMENTAO TERICA .......................................................... Conceito e caracterizao do Terceiro Setor ................................. Os limites do Terceiro Setor ............................................................. A composio do Terceiro Setor ..................................................... Desafios da gesto das organizaes de Terceiro Setor .............. A capacitao gerencial como soluo .......................................... Lgica social e lgica estratgica nos processos de gesto ....... METODOLOGIA DA PESQUISA ........................................................ Estratgia e mtodo de pesquisa .................................................... Unidade emprica de anlise ............................................................ Instrumentos e estratgia de coleta de dados ............................... Estratgia de anlise e tratamento de dados ................................. DESCRIO E ANLISE DOS DADOS ............................................ Os antecedentes do PDG.org ........................................................... Ceclia Regueira e o Instituto Hartmann Regueira ......................... As fontes de inspirao para o PDG.org ......................................... As primeiras experincias prticas ................................................. A concepo do PDG.org ................................................................. O formato do PDG.org ...................................................................... O PDG.org em relao a outros programas brasileiros de formao gerencial.................................................................. As especificidades da gesto de organizaes de Terceiro Setor manifestas no PDG.org Busca por parceiros e formao da primeira turma ...................... Corpo docente e material didtico ................................................... A execuo do PDG.org .................................................................... Os mdulos de ensino ...................................................................... O coaching social ............................................................................ A rede de aprendizagem ................................................................... Os resultados de curto prazo ........................................................... Dificuldades e oportunidades percebidas ...................................... Dificuldades percebidas ................................................................... Oportunidades percebidas ............................................................... Resultados percebidos e mensurados ............................................ A lgica subjacente concepo e execuo do PDG.org A lgica predominante na concepo do PDG.org......................... A lgica predominante na execuo do PDG.org .......................... CONSIDERAES FINAIS ................................................................ 12 22 24 24 29 34 38 40 44 50 50 51 53 57 64 65 66 68 71 74 74 80 81 83 85 88 88 95 97 99 99 99 103 105 111 112 116 121 129 136

REFERNCIAS .................................................................................................. APNDICES .......................................................................................................

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1 INTRODUO

O Terceiro Setor tornou-se pauta da Administrao ao mesmo tempo em que comeou a incorporar profissionais e teorias administrativas em sua gesto. Em busca da profissionalizao, o aperfeioamento gerencial o caminho percorrido pela maioria das organizaes. Essa afirmao pode ser encontrada na produo daqueles que apregoam que tal caminho pode levar a melhores resultados e est relacionado ao aprendizado de tcnicas de administrao e adoo de tecnologias gerenciais, como tambm na dos autores que se contrapem essa ideia. (DRUCKER, 1995; TENRIO, 1997; FALCONER, 1999). Nesse sentido, os gestores dessas organizaes deparam-se com novos conceitos, muitos deles advindos da rea administrativa e j aplicados gesto de organizaes privadas e estatais. Esses mesmos conceitos, porm, precisam ser compreendidos e aplicados em relao s caractersticas especficas das organizaes do Terceiro Setor. A racionalidade que d suporte realizao das atividades administrativas, propiciando adequao dos meios aos fins. Sendo assim, a racionalidade modela a prtica administrativa e est atrelada aos objetivos propostos pela organizao (THOMPSON, 2005). As alternativas que so propostas pelos estudos que se dedicam gesto de organizaes de Terceiro Setor tendem a basear-se na predominncia da racionalidade substantiva perante a instrumental, em enfoque mais sistmico que gerencial, muito embora considerem que, na prtica, as aes administrativas revelam que eles coexistem ou so utilizados de forma alternada em uma mesma organizao (SERVA, 1997; FALCONER, 1999; SALAMON, 2005; TEODSIO; ALVES, 2006; ARNDT; OLIVEIRA, 2006; ABONG, 2007). Em um estudo recente que teve como objetivo verificar como as Organizaes No Governamentais (ONGs) desenvolvem suas competncias gerenciais, tendo como base a anlise de vinte e quatro gestores de doze organizaes do Cear, Pedrosa et al. (2009) concluem que as atuais prticas formativas no do conta da complexidade que envolve a gesto dessas organizaes. Para os autores, evidencia-se a necessidade de se constituir uma aprendizagem (gerencial) capaz de promover um desenvolvimento institucional sustentvel (PEDROSA et al., 2009, p. 1), tendo como suporte suas prprias

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experincias. No estudo, a maior parte dos gestores concorda que as prticas da gesto empresarial no oferecem as melhores contribuies, dadas as

peculiaridades das ONGs, mas, por outro lado, admitem tambm que adotam em sua maior parte ferramentas baseadas na racionalidade instrumental, no clculo de meios e fins e na relao custo/benefcio. Os gestores ouvidos nesse estudo consideram que os conflitos constantes vividos em seu cotidiano advm da incompatibilidade entre a adoo de modelos construdos pela racionalidade instrumental e seus processos decisrios, que se baseiam em valores e necessidades sociais. Ao mesmo tempo em que se discute a adequao de prticas gerenciais intercambiveis entre os setores, questiona-se se a capacitao tradicional em gesto pode responder s expectativas e ainda se a falta de capacitao ou no um problema central do Terceiro Setor (FALCONER, 1999). A preocupao atual pelo incentivo profissionalizao do Terceiro Setor pode ser entendida como um desenvolvimento natural de um caminho que tem dado bons resultados, mas precisa ser melhorado. A anlise das formas de funcionamento e da ao coletiva das organizaes de Terceiro Setor pode ser uma fonte de aprendizado para a prtica e a reflexo terica de gesto (ANDION, 1998). O estudo descrito justifica-se tambm pela experincia e motivao pessoal da autora. Militante de movimentos sociais desde a adolescncia e juventude, formou seu conhecimento e prtica profissional formal nos primeiros anos de trabalho em organizaes do primeiro e do segundo setores. Atualmente, por opo, tm-se dedicado e mobilizado seus estudos e iniciativas profissionais para compreender a significncia do trabalho no mbito das organizaes sociais e atuar de maneira mais eficiente e eficaz no Terceiro Setor. Alm disso, a autora vivencia, no cotidiano profissional, os conflitos permanentes das lgicas e dos modelos intercambiveis entre os trs setores econmicos. Esse objetivo pessoal complementar torna o estudo importante para sua trajetria profissional. A pesquisa que originou esta dissertao est inserida no esforo coletivo de um grupo de pesquisadores que se dedicam aos temas tica, Gesto Social e Responsabilidade Social, integrantes do Ncleo de Pesquisa em tica e Gesto Social NUPEGS, do Programa de Ps-Graduao em Administrao da PUC Minas e Fundao Dom Cabral.

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Para analisar essas questes, optou-se por explorar como se deram os antecedentes, a concepo, a execuo e os resultados de curto prazo de um Programa de Desenvolvimento em Gesto para organizaes de Terceiro Setor PDG.org o , criado pelo Instituto Hartmann Regueira1 (IHR) para o aperfeioamento

gerencial de organizaes de Terceiro Setor. Este estudo pretende contribuir para aprofundar o conhecimento sobre esse novo tema o aperfeioamento da gesto em organizaes de Terceiro Setor, pela tica da Administrao, principalmente por analisar uma experincia em curso. Exercitando a mudana da posio de objeto para a de ator no processo de reflexo e criao de modelos de gesto adequados, Camargo et al. afirmam que [...] o Terceiro Setor deveria assumir maiores responsabilidades para atuar em uma rea que exige um intenso trabalho dos elementos que a compem (CAMARGO et al., 2001, p. 66). O resultado esperado da pesquisa contribuir para a reflexo e o aperfeioamento do conhecimento sobre a gesto das organizaes de Terceiro Setor, por meio do registro e da anlise da experincia de um programa especfico para as organizaes de Terceiro Setor. Alm disso, o estudo pretende lanar luzes sobre o entendimento da atuao do Terceiro Setor na dinmica social e gerar novas hipteses para futuros estudos. O resultado ser tambm uma contribuio importante para as organizaes que participaram da primeira turma, pois tero a oportunidade de formalizar a avaliao de sua experincia em um programa de Desenvolvimento em Gesto, bem como para a organizao que criou e que executa o programa, por ser uma oportunidade de registro, aperfeioamento e base para desdobramentos futuros. O estudo a respeito das organizaes de Terceiro Setor recente e controverso, ainda mais se relacionado ao campo de conhecimento da administrao. Se o termo Terceiro Setor novo e ainda no existe consenso sobre seu conceito, certa a relevncia do que se considera como Terceiro Setor na economia e na sociedade mundiais (ANDION, 1998). As organizaes sociais no so um fenmeno novo, muito pelo contrrio, precedem ao surgimento dos governos e das empresas. O que novo nesse campo o crescimento do nmero de organizaes que se enquadram na categorizao de Terceiro Setor em todo o1

O Instituto Hartmann Regueira - IHR - uma associao, fundada em 2003, certificada como organizao da sociedade civil de interesse pblico OSCIP e sediada em Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais.

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mundo (NAJAM, 2000). Situao no diferente ocorre no Brasil, onde a o setor cresce em reas de atuao, o tema surge como objeto de estudo e pesquisa, e as organizaes buscam cada vez mais a profissionalizao e o aperfeioamento gerencial. A origem das organizaes de Terceiro Setor no Brasil est contida no contexto da Amrica Latina e na especificidade da histria brasileira. No Brasil, as primeiras associaes comunitrias criadas tinham papel assistencialista e estavam vinculadas Igreja Catlica, at meados do sculo XX, e tambm ao Governo, durante a ditadura de Getlio Vargas (LANDIM, 1993, 1998; TENRIO, 1997; FERNANDES, 2005). Na Amrica Latina, o motor que impulsionou o crescimento da formalizao dessas organizaes tem forte vnculo poltico e social (ROSA et al. 2009). Nos anos 1960 e 1970, as organizaes sociais eram formas alternativas de expresso poltica e espaos de ao cidad e favoreciam a participao de setores populares e excludos, alm da defesa de valores democrticos, em oposio ao autoritarismo da poca. Os processos de democratizao poltica na dcada de 1980 vieram acompanhados de polticas econmicas recessivas e mudana do cenrio social. A partir de ento, o espao de atuao dessas organizaes tornouse extremamente complexo. No final do sculo XX, as organizaes sociais enfrentavam problemas de identidade, na busca por entender seu papel diante das mudanas sociais, polticas, econmicas e globais das ltimas dcadas. Entraram em cena, nos anos 1990, os processos de parcerias entre as organizaes pblicas, privadas e da sociedade civil, e com eles os conceitos de Terceiro Setor e, no final dos anos 1990, a presso pela profissionalizao e eficincia na prestao de servios sociais (THOMPSON, 2005). No caso especfico do Brasil, ressalta-se ainda, nesse perodo, a mudana ocorrida no papel que as organizaes da sociedade civil passaram a cumprir, alm do surgimento de instituies intermedirias, que inauguraram a funo institucional de fazer a articulao entre os trs setores (ALIANA CAPOAVA, 2005). Atualmente a anlise do cenrio brasileiro desafiadora, visto que, por um lado, nota-se um crescente interesse pela profissionalizao e institucionalizao das organizaes de Terceiro Setor, fomentadas pela reforma do Estado e da legislao a partir da dcada de 1990, acompanhado por resultados sociais inditos e positivos. Por outro lado, h uma crescente divulgao pela mdia nacional de

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denncias e investigaes sobre o mau uso de recursos pblicos transferidos para algumas organizaes, com resultados questionveis, alm da polmica questo sobre a transferncia ao Terceiro Setor de papis antes considerados como exclusivos do Estado (AQUINO RESENDE, 2008). O crescimento do Terceiro Setor, aliado consolidao de regulamentao para constituio de parcerias entre os trs setores, fez aumentar a competio por recursos, as obrigaes legais, as exigncias dos financiadores e a complexidade da gesto das organizaes, o que o levou ao caminho da profissionalizao (FRAZO; RAMOS, 2006). O movimento de profissionalizao nas organizaes de Terceiro Setor tem-se concentrado no aperfeioamento gerencial e tcnico para vencer o desafio de desenvolver uma estrutura de gesto que contemple a institucionalizao, o desenvolvimento de ferramentas gerenciais e a sustentabilidade (TENRIO, 1997; MARON; ESCRIVO FILHO, 2001). Nesse contexto, Falconer (1999) considera que as iniciativas de aperfeioamento gerencial esto revolucionando o Terceiro Setor no Brasil. Nesses termos, entidades [...] organizam-se, redefinem sua orientao, seus processos, servios ou atividades segundo critrios de excelncia gerencial, adquirem tcnicas de planejamento, acompanhamento e avaliao de processo e resultado" (FALCONER, 1999, p. 11). O Terceiro Setor, como campo de conhecimento especfico da Administrao, um tema que ainda conta com uma produo terica incipiente. A importncia e o interesse pelo tema so devidos, em grande parte, a um novo cenrio que se desenha no mundo, o que no diferente no Brasil, onde o Terceiro Setor tem ganhado papis de destaque e, em alguns momentos, tem protagonizado cenas importantes na histria das sociedades (TEODSIO, 2001). Entre esses momentos, mencionam-se o movimento Ao da Cidadania contra a Fome, a Misria e pela Vida, lanado em 1993 pelo socilogo Herbert de Souza, que mobilizou fortemente a sociedade brasileira, e o debate sobre a medida provisria proposta no ano de 2008 pelo Governo Lula para conceder anistia a mais de 2 mil entidades filantrpicas que tiveram ou deveriam ter a iseno tributria cassada pelo Conselho Nacional de Assistncia Social. O j existente fenmeno do Terceiro Setor ficou mais evidente e destacado em um contexto no qual se pode destacar: a adoo do conceito de responsabilidade social por parte das empresas privadas; a reforma do Estado com descentralizao administrativa e poltica; a privatizao de espaos da esfera

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estatal e, em movimento de progressiva democratizao da sociedade brasileira, a articulao da sociedade civil em organizaes; a institucionalizao dos movimentos sociais e o investimento crescente de organismos internacionais e rgos multilaterais. nesse contexto que o interesse acadmico pelo Terceiro Setor aumenta e a Universidade demandada para produzir conhecimento para compreender esse novo fenmeno e apoiar seu desenvolvimento (FALCONER, 1999; MENEGASSO; VALADO JNIOR, 2001; IIZUKA; SANO, 2004). A realizao de pesquisas sobre a gesto em organizaes de Terceiro Setor no Brasil tem aumentado, motivada pelo interesse acadmico e profissional, mesmo com resultados ainda insuficientes em nveis acadmicos para que a rea seja configurada como autnoma no estudo da Administrao (IlZUKA e SANO, 2004; ALVES, 2006). Alves (2006) afirma que o predomnio da rea de Administrao na construo e na difuso de conhecimento sobre o Terceiro Setor uma peculiaridade brasileira, embora ainda com pouco destaque na produo intelectual. O autor explica que, em outros pases, normalmente esse campo ligado Sociologia, ou Cincia Poltica, Histria e Economia. Como argumentao, cita pesquisas, como a que foi realizada em 2002 pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administrao no Terceiro Setor (CEATS), da USP, que mostrou que, dentre os projetos desenvolvidos pelos 38 centros de estudos do Terceiro Setor do Brasil, na poca, 69% eram voltados para cursos de extenso, treinamento, realizao de eventos e consultoria, atividades tpicas de gesto e business. Apenas 10% dos projetos do centro eram voltados para pesquisa. O prprio autor, porm, conduziu um levantamento, no mesmo ano, no servio que disponibiliza referncias bibliogrficas de documentos produzidos por pesquisadores e/ou bolsistas com currculos cadastrados no Sistema Lattes, denominado PROSSIGA, que resultou em 256 referncias, e praticamente metade delas estava na rea de conhecimento Administrao. Alves (2006) conclui, ou melhor, prefere usar o verbo intui, que a pesquisa sobre o Terceiro Setor tem se tornado qualitativamente mais importante tambm dentro do prprio campo de estudos em Administrao no Brasil (ALVES, 2006). As principais linhas observadas em pesquisas recentes apontam para a busca de estruturas e metodologias prprias ao setor; a reflexo sobre metodologias adequadas e os riscos de importar metodologias de outros setores; a tentativa de sinalizar modelos de gesto alternativos com formao de redes; e a identificao de

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fragilidades, paradoxos e desafios gesto de organizaes de Terceiro Setor (ROSA; COSTA, 2003; DUFLOTH, 2004; VIDAL; MENEZES, 2004; ASSIS; CKAGNAZAROFF; CARVALHO et al., 2006; ALVES JNIOR; FARIA; FONTENELE, 2009). Em estudo para identificar os paradoxos e desafios da administrao do Terceiro Setor, Vidal e Menezes (2004) concluem que a gesto organizacional dotada de uma dinamicidade que tem como pressuposto a cidadania deliberativa, na qual o cidado participa decidindo, no se restringindo apenas a identificar seu problema e dar sua opinio em conselhos. uma nova lgica de gesto, incentivadora de estudos empricos em ambincias organizacionais da sociedade civil articulada. Sinal de uma nova era no campo dos estudos organizacionais e da emergncia de uma teoria administrativa que contemple a cultura e as especificidades das organizaes sociais (VIDAL; MENEZES, 2004, p. 15).

Rosa e Costa (2003) citam, em uma anlise comparativa da eficincia e eficcia de gesto entre organizaes do Terceiro Setor e organizaes governamentais, a importncia das ONGs no Brasil e concluem na anlise que:[...] a despeito das muitas caractersticas positivas observadas, as organizaes do Terceiro Setor, alm de no estarem imunes a problemas semelhantes aos que so enfrentados pelas organizaes burocrticas tradicionais, tais como a rotina e o apego s normas ainda que em grau muito menor - estas entidades ainda sofrem limitaes peculiares a esse tipo de organizao, tais como a falta de recursos financeiros, a dificuldade em se obterem voluntrios, baixo envolvimento popular, e os constantes atritos com o setor pblico e privado. [...] Por outro lado, o crescimento acentuado dessas organizaes no Brasil, j , por si s, uma indicao do incio de uma mudana no perfil da nossa sociedade civil (ROSA; COSTA, 2003, p.14).

Dufloth (2004) prope algumas reflexes para que as organizaes de Terceiro Setor descubram um caminho mais flexvel para se auto-organizarem e autorregularem, na concluso do estudo Organizaes Sistmicas do Terceiro Setor, e todas esto relacionadas ao estabelecimento de redes e troca de informaes entre as organizaes e os setores socioeconmicos, num ambiente de cooperao (DUFLOTH, 2004). Assis, Ckagnazaroff, Carvalho (2006), em um estudo sobre a Gesto de Recursos Humanos no Terceiro Setor, identificam algumas fragilidades e contradies na gesto das organizaes do Terceiro Setor, ao afirmarem que, no

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[...] bojo destas questes, encontram-se organizaes que tm um objetivo, que o social ou ambiental, etc., mas que ainda no sabem ao certo o que so e como devem se estruturar. Isto faz com que algumas tenham receio de utilizar mecanismos gerenciais, pois acreditam que isto as descaracterizariam como sociais, burocratizando-as e transformando-as em meras empresas. (ASSIS; CKAGNAZANOFF; CARVALHO et al., 2006, p. 15)

Os estudos de Alves Jnior, Faria e Fontenele (2009), que investigaram empreendimentos sociais no Cear, apontam que as prticas desenvolvidas no denominado empreendedorismo social tm contribudo para novo paradigma de gesto e desenvolvimento para as organizaes de Terceiro Setor. Ao identificarem os gestores como empreendedores sociais, fortemente apoiados por uma conduta tica, os autores concluem que as articulaes formadas pelas organizaes na busca de solues para suas dificuldades demonstram inovaes que, embora ainda incipientes, podem configurar-se nas to almejadas melhores e eficientes prticas de gesto (ALVES JNIOR; FARIA; FONTENELE, 2009). Apesar do crescente interesse dos pesquisadores pela profissionalizao da gesto do Terceiro Setor, ainda existe uma lacuna em reflexo terica e crtica sobre o assunto, principalmente sobre a possibilidade de transferncia de modelos de gesto entre os setores. H, nas pesquisas, negligncia em relao identificao de caractersticas especficas do Terceiro Setor e anlise mais crtica sobre o governo, o mercado e a sociedade civil (ALVES, 2006). Existem aspectos obscuros e um intenso debate sobre a relao entre os trs setores, o que indica a necessidade de pesquisas sobre o Terceiro Setor (FALCONER, 1999). Torna-se necessrio compreender se o Terceiro Setor, originrio de uma lgica de fins no lucrativos e no estatais, com finalidades de benefcios coletivos e a longo prazo, pode ser regido por uma lgica administrativa focada na eficincia, no controle burocrtico e, muitas vezes, nos efeitos de curto prazo. Poderia ser acrescentada, tambm, a inexistncia de estudos sobre experincias prticas de estruturao de referncias de gesto especfica de organizaes de Terceiro Setor, como o caso da pesquisa aqui proposta. Por meio da observao das lgicas subjacentes aos processos de formatao e execuo do Programa de Desenvolvimento em Gesto PDG.org,

das dificuldades e oportunidades encontradas, pretende-se problematizar e levantar hipteses e respostas que esclaream a seguinte indagao:

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Como se equilibram a lgica social e a lgica estratgica na gesto das organizaes de Terceiro Setor, em particular na concepo e execuo de um programa de desenvolvimento em gesto para organizaes de Terceiro Setor, o PDG.org? Diante do contexto e da pergunta apresentados, esta pesquisa pretendeu investigar e compreender como se d a articulao entre a lgica social e a lgica estratgica na prtica da gesto de organizaes de Terceiro Setor, por meio da anlise de um programa de desenvolvimento em gesto. Considerou-se que os principais conceitos e fundamentos que orientam a gesto estariam

propositadamente manifestos na formao de gestores para organizaes de Terceiro Setor. O objeto de estudo desta pesquisa no , portanto, a gesto das organizaes que fizeram parte da primeira turma do PDG.org, o foco de anlise o programa de desenvolvimento em gesto. Sendo assim, descreveram-se e analisaram-se as etapas constituintes do Programa de Desenvolvimento em Gesto PDG.org. Analisaram-se tambm como as caractersticas especficas e os desafios atuais da gesto de organizaes de Terceiro Setor esto configuradas no PDG.org, alm dos impactos de curto prazo do Programa nas organizaes participantes. A referncia terica que fundamentou o estudo baseou-se no conceito e na caracterizao do Terceiro Setor (Seo 2.1) e nos desafios da gesto das organizaes de Terceiro Setor (Seo 2.2). A estratgia de pesquisa adotada foi de natureza qualitativa, com base em estudo de caso (Captulo 3). A unidade de anlise foi o programa denominado PDG.org, incluindo seus antecedentes at os resultados de curto prazo nas organizaes participantes da primeira turma, em quatro etapas, conforme demonstrado na Figura 1.

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PDG.orgANTECEDENTES CONCEPOIdealizao e formatao, descrio e diferencial do programa

EXECUORealizao dos mdulos temticos, coaching e rede de aprendizagem, relacionamento com financiadores e participantes

RESULTADOSImpactos de curto prazo nas organizaes participantes

Trajetria, fatores e motivao para a criao do PDG.org

Lgica subjacente? Gesto social/estratgica?

Figura 1: Etapas do PDG.org a serem analisadas Fonte: Elaborado pela autora.

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Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram arquivos, documentos e entrevistas semi-estruturadas em profundidade. Os dados foram organizados de acordo com as quatro etapas do Programa. A anlise dos dados foi feita pelas tcnicas de anlise de contedo descrita por Bardin (1977) e de anlise do discurso descrita por Maingueneau (2000). A descrio dos dados seguiu a mesma estrutura das etapas do Programa. A primeira etapa (Seo 4.1) abordou a trajetria das pessoas e das organizaes, a motivao e os fatores que geraram a ideia ou o projeto do Programa. A segunda etapa (Seo 4.2) condensou a concepo e a formatao do Programa, incluindo a idealizao, a elaborao da proposta pedaggica, dos mdulos de ensino, da elaborao do material didtico e a seleo de atores (coordenadores, professores, consultores, parceiros, financiadores e organizaes participantes). A terceira (Seo 4.3) foi a execuo, incluindo a realizao dos mdulos de ensino, do processo de coaching e a formao de rede de aprendizagem, considerando o envolvimento dos atores participantes e os resultados das avaliaes de acompanhamento. A quarta etapa (Seo 4.4), denominada resultados, identificou os impactos de curto prazo que puderam ser observados e mensurados pelas organizaes participantes. Logo aps a descrio dos dados de acordo com as etapas do Programa, procedeu-se anlise (Seo 4.5) sobre a lgica predominante nas etapas de concepo e execuo do PDG.org, fundamentando-se ento as consideraes finais (Captulo 5) sobre os principais achados da pesquisa.

1.1 Objetivos da pesquisa

O objetivo geral desta pesquisa analisar como se equilibram a lgica social e a lgica estratgica na gesto de organizaes de Terceiro Setor, em particular de um Programa de Desenvolvimento em Gesto para organizaes de Terceiro Setor, o PDG.org. Os objetivos especficos so: a) descrever e investigar os processos que deram origem ao PDG.org; b) descrever e investigar os processos constituintes da concepo do PDG.org; c) descrever e investigar os processos constituintes da execuo do PDG.org;

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d) identificar e analisar os resultados de curto prazo do PDG.org para as organizaes participantes; e) identificar e analisar a lgica predominante na concepo e na execuo do PDG.org.

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2 FUNDAMENTAO TERICA

O escopo terico que fundamenta esta pesquisa est centrado no conceito e na caracterizao do Terceiro Setor e nos desafios da gesto das organizaes que dele fazem parte. Na Seo 2.1, sero abordadas a origem e as diferenas dos conceitos dados ao termo Terceiro Setor, bem como as intenes reveladas pelo uso dado ao termo. A identificao de caractersticas particulares das organizaes de Terceiro Setor direciona a reflexo sobre os desafios de sua gesto. Alguns caminhos para superar esses desafios sero apresentados na Seo 2.2, em particular a capacitao gerencial como pilar da profissionalizao das

organizaes.

2.1 Conceito e caracterizao do Terceiro Setor

Um dos desafios do estudo do Terceiro Setor estabelecer um conceito que sintetize as correntes e ideias dos diversos autores que se dedicam ao tema, resultado da diversidade de organizaes que o compem e da consequente multiplicidade de formas e atuaes. O conceito do termo Terceiro Setor confundese com os de outras expresses como sociedade civil organizada, organizaes no governamentais e organizaes sem fins lucrativos, utilizados de maneira alternada nos estudos e pesquisas sobre a rea. O estudo sobre o Terceiro Setor precisa avanar e vencer a impreciso conceitual para sair da zona nebulosa, porque essa indefinio dificulta sua atuao, seu relacionamento com os parceiros e o prprio alcance de seus objetivos (FISCHER; FALCONER, 1998). Uma estruturao conceitual pode contribuir para a construo da identidade e o fortalecimento do Terceiro Setor, alm de facilitar a achar solues para lidar melhor com os problemas e desafios da sociedade civil, na qual se insere (SILVA; AGUIAR, 2008). A tentativa de conceituao uma tarefa intelectual dos pesquisadores em estudos tericos, mas tambm uma tarefa prtica dos envolvidos em atividades e programas que se

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dedicam s organizaes de Terceiro Setor, e no far sentido se no for uma ideia significativa para a maioria (FERNANDES, 1994). Consideram-se vlidas as tentativas de refletir sobre a origem, as diferenas dos conceitos e o uso do termo apresentados na literatura, mesmo quando o objetivo dos autores for justamente se opor ao conceito ou a seu uso. O termo origina-se de uma expresso inglesa, third sector, que comeou a ser utilizada como referncia s organizaes no-lucrativas, nos EUA dos anos 1970. A expresso caiu em desuso nos anos 1980 e reapareceu impulsionada pelos estudos do Johns Hopkins Comparative Nonprofit Sector Project2, na dcada seguinte, em uma ao orquestrada em sintonia com o interesse de organismos multilaterais (Banco Mundial, BID e outros), fundaes, governos, ONGs e universidades em dar visibilidade ao setor no lucrativo, proposto ento como substituto ou parceiro do Estado como agente da proviso social (ALVES, 2002). A expresso foi adaptada a partir dos anos 1980 no Brasil, influenciada pelos estudos mencionados anteriormente, para agregar, num mesmo conceito, entidades de diversas naturezas, mas com um mesmo contexto ideolgico (TENRIO, 1997; ALVES, 2002). O termo Terceiro Setor uma expresso de linguagem nova que pretende facilitar a transmisso intencional de um conceito atravs do discurso. Fernandes (2005) apontava a possibilidade de que o termo pudesse no vingar no Brasil. A expresso no usada unanimemente no mundo, nem mesmo nos pases de sua origem. Nos Estados Unidos, usam-se mais organizaes sem fins lucrativos e organizaes voluntrias. Na Inglaterra, com uma lei tradicionalista, usam-se caridades, filantropia e mecenato, e, na Europa Continental, com referncia nomenclatura utilizada em documentos oficiais da Organizao das Naes Unidas (ONU), a preferncia por organizaes no governamentais (FERNANDES, 2005). So vrias as expresses usadas para designar as organizaes, em correlao com suas diversidades. A escolha dos autores pelo termo mais adequado a se utilizar depende de fatores circunstanciais, de linhas tericas, alm da convenincia (NAJAM, 2000; LANDIM, 2003). Cardoso (2005) refora a compreenso sobre o significado ao fazer uma analogia do uso do termo Terceiro Setor com o termo terceiro mundo e sugere

Iniciado em 1990 pela Universidade Johns Hopkins (EUA), o estudo representa o maior esforo sistemtico j realizado sobre a atividade sem fins lucrativos em todo o mundo, com o objetivo de melhorar os conhecimentos e enriquecer a compreenso terica sobre o setor.

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que cada setor possui uma lgica subjacente. Para a autora, da mesma forma que o termo terceiro mundo foi usado para abordar uma realidade em formao, que no era capitalista avanada (primeiro mundo), nem socialista (segundo mundo), o Terceiro Setor enfatiza a nfase ao carter autnomo e indito de algo novo que est mudando a sociedade e que no governo (primeiro setor) e nem empresa (segundo setor). Alm disso, no se submete lgica do mercado (lucro) nem lgica empresarial (eficincia) (CARDOSO, 2005). Fernandes (2005) concorda com o significado sem concordar com o termo, ao afirmar que a sociedade civil termo que o autor prefere usar no lugar de Terceiro Setor marca um espao de integrao cidad e distingue-se, pois, do Estado; mas, caracterizando-se pela promoo de interesses coletivos, diferencia-se tambm da lgica do mercado (FERNANDES, 2005, p. 47). Na analogia de Cardoso (2005) citada acima, assim como o que era definido como Terceiro Mundo tornou-se to diverso, que acabou por dificultar o uso de um nico termo para conceituar uma realidade complexa, o uso do termo Terceiro Setor tem atualmente a dificuldade de tentar abarcar em uma mesma categoria realidades muito diferentes (CARDOSO, 2005). Ideias como filantropia, caridade, cidadania e mecenato, que so diferentes, e no se confundem, tambm j no se separam sob o conceito agrupador do Terceiro Setor e fundemse, [...] alternando situaes de conflito, cooperao e indiferena (FERNANDES, 2005, p. 27). No termo Terceiro Setor, ao agruparem-se as aes civis em benefcio pblico, ressalta-se tambm a fora da sociedade civil na relao com os outros setores. Hudson (1999) apresenta duas caractersticas fundamentais do Terceiro Setor, enfatizando sua propriedade nica de ser orientado por valores: no distribui lucros a seus proprietrios, ao contrrio do setor privado, e no est sujeito a controle poltico direto, diferente do setor pblico. Portanto, o Terceiro Setor tem, ou poderia ter, ou deveria ter independncia para determinar seu prprio futuro (HUDSON, 1999). Rifkin (2005) identifica o surgimento do Terceiro Setor alinhado com a necessidade de o setor no-governamental responsabilizar-se pela vida cvica, j que o governo e o mercado esto distanciados da vida das comunidades. O governo diminuiu seu papel e passou a delegar verbas e programas. O mercado tornou-se cada vez mais globalizado, voltado mais para questes mundiais que internas e locais. A fora da sociedade civil, enfatizada pela expresso Terceiro Setor, , para o autor, maior e anterior ao governo e ao mercado, independente do

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termo que se use para identific-la. A comunidade surgiu antes que se iniciasse a atividade de comercializao, e s depois apareceu o governo (RIFKIN, 2005). Os mesmos pontos, entretanto, ressaltados pela literatura como foras para o entendimento do conceito agregado ao termo Terceiro Setor, podem ser interpretados como riscos pelos autores que discordam do uso dado a ele. Autores como Landim (1993, 2002, 2003), Teodsio (2001), Ciconello (2004), Fernandes (2005) e Thompson (2005) garantem que o uso do termo ou a simplificao do conceito pode tambm enfraquecer as aes da sociedade civil, principalmente pelo risco de minorar sua complexidade. Na tentativa de pensar pelo avesso o Terceiro Setor, Teodsio (2001) declara que a expresso virou uma daquelas palavras que explicam tudo e no explicam nada, carregando muitas contradies em si (TEODSIO, 2001, p. 85) A ideia de separar um setor social e contrap-lo ao Estado e ao mercado gera, segundo Ciconello (2004), um discurso homogeneizado, que tende a eliminar os conflitos inerentes dinmica da sociedade civil. A ideia de convergncia, unificao e consenso que o termo prope no real, j que a realidade diversa, plural, heterognea. Ao tentar evocar caractersticas como positividade e colaborao, o termo Terceiro Setor esconde os conflitos e a contradio (CICONELLO, 2004). Alm de diluir conflitos, o termo pode esvaziar a dinmica politizada em que as organizaes sociais surgem, como no caso recente da histria brasileira. Enfatizando a falta de densidade conceitual e a inteno poltica, Landim (2002) discorda do uso do termo Terceiro Setor como sinnimo de sociedade civil. A autora destaca a origem do termo, de pases em que a cultura poltica e cvica se baseia no individualismo liberal e o iderio dominante o da precedncia da sociedade em relao ao Estado (LANDIM, 2002, p. 42). A opo pelo termo Terceiro Setor tem como pano de fundo uma tendncia global, compreendendo fenmenos tambm diversificados como a redefinio do papel do Estado e a predominncia da lgica de mercado com suas consequncias sociais desastrosas, no quadro do neoliberalismo (LANDIM, 2003, p. 1112). As crticas ao termo no se referem apenas sua origem. A apropriao e o uso da expresso de linguagem refletem a inteno de disseminar o conceito embutido, que geralmente vem acompanhado de alguns preconceitos. Para Fernandes (2005), os maiores difusores da utilizao do termo Terceiro Setor no

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Brasil so as empresas privadas. Segundo o autor, a apropriao e a difuso tm gerado algumas distores. A primeira distoro a introduo de valores de mercado e conceitos no naturais rea social, como competio, ranking e premiaes. A segunda distoro a formao de uma nova gerao de organizaes voltadas para o mercado, exclusivamente para a prestao de servios, sem fundamento social e com baixa capacidade de contestao ou crtica prpria realidade social. Outra importante distoro apontada pelo autor que as organizaes que compem o Terceiro Setor tm naturalmente uma vocao pblica, e a eficincia do mercado capaz de oferecer solues para problemas sociais que o Estado ineficiente no resolve (FERNANDES, 2005). Voltado para o fornecimento eficiente de servios sociais, o Terceiro Setor no consegue ser identificado como portador de ideias de transformao e de utopias sociais (THOMPSON, 2005), a exemplo do que pde ser observado na poca do surgimento das organizaes no governamentais sem fins lucrativos das dcadas de 1960 e 1970. Em uma ponderao com argumentos baseados em conceitos marxistas, Montao (2007) define que as promessas do Terceiro Setor correm o risco de ser, na verdade, o canto da sereia. Para ele, existem alguns fenmenos por trs do conceito ideolgico do Terceiro Setor, como a possibilidade de atividades pblicas serem desenvolvidas por particulares, a funo social contida na busca por respostas s necessidades sociais e na afirmao dos valores de solidariedade local, autoajuda e ajuda mtua. Em sntese, o autor questiona a viabilidade das promessas de que o setor possa reforar a sociedade civil, diminuir o poder estatal, criar espao alternativo de produo e consumo de bens e servios, propiciar o desenvolvimento democrtico, estimular laos de solidariedade local e voluntria, compensar polticas sociais abandonadas pelo Estado e ser fonte de emprego alternativo (MONTAO, 2007). No mesmo sentido, Teodsio e Alves (2006) consideram que as promessas da ideia que se gerou com o termo Terceiro Setor podem ser caracterizadas como utopias. O voluntariado, a participao popular, a responsabilidade social corporativa e o gerencialismo na administrao pblica soam como panaceias contra as agruras do individualismo, da falta de moralidade poltica e empresarial, do assistencialismo e da ineficincia da mquina pblica (TEODSIO; ALVES, 2006).

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Para caracterizar e conceituar o Terceiro Setor faz-se necessrio considerar a existncia dos trs setores socioeconmicos: o Primeiro Setor, formado pelo Estado, e o Segundo Setor, composto pela iniciativa privada ou mercado (SILVA; AGUIAR, 2008). A literatura apresenta, em suas diferentes perspectivas conceituais do termo Terceiro Setor, tendncias a explorar as relaes entre os trs setores socioeconmicos, da a referncia aos termos organizaes sem fins lucrativos e organizaes no governamentais como componentes do Terceiro Setor (TENRIO, 1999). Essas relaes entre os setores sero detalhadas adiante, na delimitao do Terceiro Setor em relao aos demais.

2.1.1 Os limites do Terceiro Setor

A interpretao mais comum para a delimitao do Terceiro Setor em relao aos demais setores socioeconmicos representada pela Figura 2.

Primeiro Setor ESTADO

Segundo Setor INICIATIVA PRIVADA

Terceiro Setor SOCIEDADE CIVIL

Figura 2: Setores socioeconmicos Fonte: TEODSIO, 2003.

As organizaes do Terceiro Setor so as organizaes no governamentais e que no possuem fins de lucro. A Figura 2 demonstra que existem entre os trs

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setores espaos ambguos, de complexa identificao, que so os espaos de interseo e interao entre os setores. Nesses espaos podem ser identificadas, por exemplo, organizaes no governamentais que vivem de contratos, metodologia e financiamento do setor governamental, ou de projetos e organizaes sociais criadas e gerenciadas pelo setor privado, com financiamento de recursos advindos de leis de incentivo, portanto, de recursos pblicos (TEODSIO, 2003). Essas organizaes ocupariam lugar nas intersees entre os setores do Estado, da Iniciativa Privada e da Sociedade Civil. Silva e Aguiar (2008, p. 3) apresentam uma interpretao ainda mais imbricada nas relaes entre os setores, ao afirmarem que o Terceiro Setor seria derivado de uma conjugao entre as finalidades do Primeiro Setor e a metodologia do Segundo. Os limites e a interao entre os setores so essenciais na compreenso da dinmica social. A delimitao do Terceiro Setor facilita a compreenso de que os setores interagem e que Mercado e Estado no so regidos somente por uma lgica intrnseca. Ao mesmo tempo, a principal dificuldade de conceituao do Terceiro Setor delimitar at onde ele pblico e at onde ele privado, expressa no trocadilho com que Fernandes (1994) define o termo: aquilo que pblico, porm privado, ou ento aquilo que privado, porm publico (FERNANDES, 1994). Pereira e Grau (1999) extrapolam um pouco essa definio baseada em trs divises e identificam quatro esferas relevantes dinmica social no capitalismo contemporneo: privada, corporativa, propriedade pblica estatal e propriedade pblica no-estatal. Melhor que tentar delimit-lo, talvez a anlise de sua interao com os outros setores, principalmente na interao entre o pblico e o privado, contribua mais para a compreenso da natureza do Terceiro Setor. Nesse sentido, prope-se outra representao da dinmica social, encontrada na interpretao feita por Liszt Vieira (2001), no livro Os Argonautas da Cidadania, do modelo proposto por Thomas Janoski (1998), sob o foco da cidadania e da democracia, demonstrada abaixo pelas Figuras 3 e 4.

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Executivo Judicirio Burocarcia

ESFERA ESTATAL

Polcia Foras Armadas Polcia Secreta Espionagem

Estado de welfare Partidos pblico, mdia, polticos educao e P&D

ESFERA PBLICA

Corporaes de direito pblico com controle tripartite Federaes sindicais

Contratos de Defesa Regulao

Sindicatos Educao, sade e mdia privada

Associaes voluntrias: welfare, Movimentos interesse Sociais Grupos de auto-ajuda

Associaes de empregados Associaes de consumidores

ESFERA DO MERCADOEmpresas Mercados

Vidas privadas reveladas na mdia e nos tribunais

Redes de empresas Familiares e de clubes de elite

Fam lias

ESFERA PRIVADAAmigos e conhecidos

Amor e afeio

Relaes sexuais

Figura 3: Diagrama conceitual das esferas sociais de Janoski (1998) Fonte: VIEIRA, 2001, p. 66.

Figura 4: O pblico (branco) e o privado (sombra) nas quatro esferas Fonte: VIEIRA, 2001, p. 69.

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A Figura 3 apresenta a dinmica das interaes sociais em quatro espaos chamados de esferas a estatal, a pblica, a do mercado e a privada, que se

compem, justapem e contrapem em duas dimenses: a pblica e a privada (FIG. 4). A esfera pode ser considerada o lcus das organizaes e a dimenso representa a lgica subjacente dinmica de relacionamento entre as esferas. A esfera estatal composta pelo Legislativo, Executivo e Judicirio, em parte representada pelo Primeiro Setor na Figura 2. A esfera do mercado representada pela atuao das organizaes que se preocupam com a produo de mercadorias e servios, atravs de mecanismos de trocas econmicas negociadas e maximizao dos lucros (NAJAM, 2000). Na esfera privada esto a vida particular, familiar, as redes de amizades e os dispositivos de propriedade pessoal. Seria o espao da privacidade, no fosse ela, nos tempos modernos, to invadida pelas esferas pblica, do Estado e do mercado (VIEIRA, 2001). A esfera pblica a que congrega maior nmero de organizaes, classificadas em cinco grupos, ou tipos: os partidos polticos, os grupos de interesse, as associaes de bem-estar social, os movimentos sociais e os grupos religiosos. A sociedade civil, alm da funo de controle social, de sua vocao poltica de lutar pelos direitos da cidadania, pela democratizao do Estado e da sociedade, tambm pode assumir a responsabilidade econmica de execuo de programas e servios sociais (VIEIRA, 2001, p. 84). A sociedade civil o espao de organizaes concentradas em articular e atualizar vises sociais particulares, espao intersubjetivo em que as inquietaes pessoais so transformadas em temas por meio de um entendimento mtuo (TENRIO, 1999; NAJAM, 2000). Vieira (2001) afirma que a existncia desse espao pblico no estatal uma condio necessria da democracia contempornea que, segundo o autor, sofre uma profunda crise de legitimidade (VIEIRA, 2001, p. 88). Para analisar a dinmica social por esse modelo, Vieira (2001) destaca dois pontos importantes relacionados interao entre as quatro esferas, semelhante ao que ocorre em relao s intersees do modelo de trs setores socioeconmicos (FIG. 2). O primeiro considera que a dinmica da sociedade civil desenvolvida por aspectos produzidos pela justaposio das esferas privada, estatal e do mercado sobre a esfera pblica. Os elementos comparativos entre as diversas sociedades so constitudos pelo tamanho das esferas e a extenso da justaposio (VIEIRA,

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2001, p. 68). O segundo ponto a ser destacado o balanceamento entre os pesos e contrapesos que se estabelecem na interao entre as esferas (VIEIRA, 2001). Nesse sentido, Murphy e Bendell (1999) destacam que, nos pases do hemisfrio sul, as organizaes no-governamentais, que pertencem esfera pblica do modelo apresentado, esto comeando a focar suas atenes no mercado, assumindo assim novas funes. Como os governos estatais esto pressionados pelas dvidas internacionais e pelos programas de ajuste econmico, algumas reas ficaram descobertas e esto sendo ocupadas pelas organizaes da sociedade civil. Esse seria o caso dos movimentos centrados em questes ticas, como proteo ambiental e comrcio justo (MURPHY; BENDELL, 1999). O controle da sociedade sobre os assuntos pblicos aparece no somente para cobrir vazios deixados pelo Estado ou pelo mercado, mas como uma maneira de autoorganizao da sociedade, em que coexiste a transferncia de aes para as ONGs, promovidas pelas polticas pblicas, e as oportunidades que se abrem com a substituio de empregos por atividades no mercado de trabalho (PEREIRA; GRAU, 1999). Sendo assim, a zona de interao entre as esferas estatal e pblica, na Figura 3, representa o espao para que esse controle seja exercido por mecanismos como consulta pblica, referendo, plebiscito e outras formas de participao (VIEIRA, 2001), como o estabelecimento de contratos de financiamento entre o Estado e as organizaes no governamentais para prestar servios comunidade (PEREIRA; GRAU, 1999). Os limites da interao entre a esfera do espao privado e a esfera pblica tm sido cada vez mais diludos pelas caractersticas da vida contempornea. A espetacularizao da vida privada, os escndalos polticos com enredo judicial, as regulamentaes estatais cada vez mais especficas em assuntos privados so exemplos atuais de como o direito privacidade um tema em profunda transformao (VIEIRA, 2001). A interao entre as esferas pblica e do mercado geram algumas opinies que, se no contrrias, retratam posies diversas e ambguas. Por um lado, essa interao pode contribuir, como numa promessa futura, para aumentar o nvel de auto-organizao social e fortalecer a sociedade civil (PEREIRA; GRAU, 1999). Por outro lado, por valorizar caractersticas que mais se distanciam do que reforam a natureza chamada assistencialista das organizaes no governamentais, a relao entre as esferas pblica e do mercado mais excludente e concorrente, e as ideias

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que compem as intervenes apresentam-se associadas a uma lgica de mercado na ao social, como eficincia, resultados, competitividade, marketing, etc. (LANDIM, 2002).

2.1.2 A composio do Terceiro Setor

Em uma delimitao bastante precisa, Aquino Resende (2003) esclarece que, do ponto de vista jurdico, as entidades que integram o Terceiro Setor no Brasil so as organizaes no governamentais formalmente constitudas, e, portanto, pessoas jurdicas de direito privado sem fins econmicos. O Terceiro Setor congrega as Associaes e Fundaes. Associao um agrupamento de pessoas que visa ao benefcio da coletividade, no tem interesse econmico nem fim lucrativo para os associados e administradores. Fundao um patrimnio designado por uma pessoa para beneficiar outras pessoas que no o instituidor ou administrador da organizao. Para o autor, essas organizaes jurdicas so como uma espcie que integra um gnero mais amplo chamado de organizao social. Essa ltima considerada como qualquer grupamento ou estrutura que rena pessoas e bens com fim de alcanar objetivos comuns entre seus componentes, seja de interesse privado ou de interesse coletivo, sem a obrigatoriedade de ser personalidade jurdica. Cabem na definio de organizaes sociais entidades como o Estado, a Igreja, os partidos polticos, um clube de pais e mestres, uma escola sem personalidade jurdica, uma indstria ou um comrcio, um condomnio, e at mesmo uma organizao criminosa (AQUINO RESENDE, 2003, p. 25). Mesmo com a delimitao aparentemente restrita apresentada acima, podese considerar a relevncia do conjunto de organizaes de Terceiro Setor para a socioeconomia do Brasil. Em 2005, o Cadastro Central de Empresas (CEMPRE), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), que constitui um importante acervo de dados sobre a atividade econmica do Brasil, identificou um total de 601,6 mil organizaes como entidades privadas sem fins lucrativos, com caractersticas e propsitos totalmente distintos. Nessa mesma categoria, estavam includos, por exemplo, cartrios, partidos polticos, condomnios de edifcios e entidades religiosas ou de defesa de direitos de minorias, categorizadas anteriormente por Aquino

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Resende (2003) como organizaes sociais. O estudo foi realizado em parceria entre o IBGE, o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), a Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais (ABONG) e o Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas (GIFE), com anlise dos dados de 2005, e publicado em 2008 (IBGE, 2008). Do total de organizaes sociais identificadas, 338,2 mil foram agrupadas na categoria denominada Fundaes e Associaes sem Fins Lucrativos (FASFIL), com uma identidade prpria: organizaes privadas, sem fins lucrativos,

institucionalizadas, autoadministradas e voluntrias (IBGE, 2008), a mesma delimitao jurdica apresentada por Aquino (2003) para a composio do Terceiro Setor. De acordo com a anlise, em 2005 as 338,2 mil FASFIL representavam 5,6% do total de entidades pblica e privada de todo o Pas e empregavam 5,3% dos trabalhadores brasileiros, o que representa um contingente de 1,7 milho de pessoas que ganhavam, em mdia, R$1.094,44 por ms. Esse valor equivalia a 3,8 salrios mnimos daquele ano, isto , uma remunerao ligeiramente superior mdia nacional que era de 3,7 salrios mnimos mensais em 2005 (IBGE, 2008). Apesar do estudo em questo no tratar da efetiva capacidade de ao das organizaes, a anlise geral das atividades desenvolvidas por essas instituies revela que sua vocao no assumir funes tpicas de Estado e sim defender direitos e interesses dos cidados e difundir preceitos religiosos (IBGE, 2008). Mais de um tero (35,2%) das FASFIL era composto pelos subgrupos Associaes de moradores, Centros associaes comunitrias, Defesa de direitos e grupos de minorias, Desenvolvimento rural, Emprego e treinamento, Associaes empresariais e patronais, Associaes profissionais e Associaes de produtores rurais. E um quarto delas (24,8%) eram entidades religiosas. Atuando no campo das polticas governamentais, desenvolvendo aes de Sade e Educao e pesquisa, por exemplo, se encontravam apenas 7,2% dessas organizaes (IBGE, 2008). A distribuio do total das FASFIL no Territrio Nacional acompanhava a distribuio da populao, com grandes diferenas entre a predominncia de atividade por regio. A idade mdia das FASFIL era, em 2005, de 12,3 anos e grande parte delas (41,5%) havia sido criada na dcada de 1990, perodo que coincide com o quarto momento apresentado anteriormente no histrico das organizaes no-governamentais no Brasil, que sucedeu a promulgao da Constituio, em 1988, e o Estatuto da Criana e do Adolescente, em 1990. No

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grupo de entidades mais antigas, criadas antes dos anos 1980, predominavam as entidades de Sade (36,0%) e as religiosas (20,2%). Entre as mais novas, criadas nos primeiros cinco anos deste milnio, destacavam-se as entidades de defesa de direitos e interesses dos cidados (30,1%) e as de meio ambiente e proteo animal (45,1%) (IBGE, 2008). O porte mdio das FASFIL era de 5,1 trabalhadores por instituio, mas com diferenas significativas entre as regies e atividade. Enquanto na Regio Sudeste a mdia de trabalhadores era de 6,8 pessoas por entidade, no Nordeste, ela caa para 2,9 trabalhadores. Enquanto os hospitais empregavam uma mdia de 174,1 pessoas, no grupo de Desenvolvimento e Defesa de Direitos a mdia caa para 1,4 pessoa (IBGE, 2008). As definies mais recorrentes em pesquisas e artigos sobre o Terceiro Setor no Brasil sugerem uma delimitao mais ampla referente s organizaes que o compem, e mantm as ideias registradas nos primeiros artigos publicados sobre o tema: Para alm do Estado e do Mercado: filantropia e cidadania no Brasil (LANDIM, 1993) e Privado, porm Pblico: o Terceiro Setor na Amrica Latina (FERNANDES, 1994). Ambos oferecem uma interpretao mais abrangente em uma perspectiva mais integrativa do que a apresentada pela terminologia antes do surgimento do termo Terceiro Setor e vo alm da dupla negao do no lucrativo e no governamental. Segundo essa perspectiva, considera-se o Terceiro Setor um composto de organizaes sem fins lucrativos reunidas em um nico corpo, com propostas, opinies, culturas e problemticas comuns. Criadas e mantidas pela nfase na participao voluntria e na persecuo de propsitos de interesse pblico, num mbito no governamental, as prticas dessas organizaes mantm continuidade s prticas tradicionais da benemerncia, da caridade, da filantropia e do mecenato, expandindo seu sentido para outros domnios, graas, sobretudo, incorporao do conceito de cidadania e de suas mltiplas manifestaes na sociedade civil (CAMARGO et al., 2001; FERNANDES, 2005; THOMPSON, 2005). As organizaes de Terceiro Setor voltam-se prestao de servios de sade, educao e bemestar social, defesa dos direitos de grupos especficos, proteo do meio ambiente e promoo do esporte, cultura e lazer, alm das experincias de trabalho voluntrio e de filantropia empresarial. O eventual resultado financeiro positivo obtido reaplicado na manuteno das atividades ou distribudo entre os

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colaboradores, sem que se d a apropriao privada do excedente (CARRION, 2000; CARDOSO 2005). J Hudson (1999) e Andion (1998) enfatizam, na conceituao do Terceiro Setor, os objetivos sociais, a independncia, a complexidade e a singularidade das organizaes. Hudson (1999) considera que o Terceiro Setor consiste em organizaes cujos objetivos principais so sociais, em vez de econmicos. A essncia desse setor engloba instituies de caridade, organizaes religiosas, entidades voltadas para as artes, organizaes comunitrias, sindicatos,

associaes profissionais e outras organizaes voluntrias (HUDSON, 1999). Em um estudo sobre a gesto do Terceiro Setor no campo da economia solidria, Andion (1998) esclarece que o termo Terceiro Setor refere-se s organizaes que no pertencem ao aparelho burocrtico do Estado nem ao rol de instituies que compem a economia de mercado. Dentre organizaes que pertencem ao Terceiro Setor, a autora inclui as ONGs, as fundaes empresariais, os institutos, as organizaes populares, as cooperativas de crdito e os organismos internacionais de cooperao, parceiros dos organismos locais e financiadores dos projetos no pas (ANDION, 1998). A impreciso conceitual e a pouca importncia prtica do Terceiro Setor para as teorias econmicas e as organizacionais j haviam sido apontadas por Fischer e Falconer (1998). Para os autores, o ensino e a pesquisa em administrao no davam a devida ateno mirade de organizaes que proliferavam na periferia de ao das organizaes empresariais capitalistas e da burocracia governamental. Reforando o carter diverso e complexo do Terceiro Setor, Fischer e Falconer (1998) afirmam que o termo refere-se, no Brasil, ao conjunto de organizaes que, ligadas redemocratizao, consolidaram os grupos formais e informais que atuam desde a mobilizao civil ara assegurar direitos at o atendimento s necessidades dos necessitados. A partir das contribuies anteriores, em uma opo pela perspectiva mais abrangente, neste estudo considera-se que o Terceiro Setor refere-se ao conjunto de organizaes no governamentais sem fins lucrativos. As organizaes que compem esse grupo so as associaes e as fundaes (tambm denominadas organizaes no governamentais ONGs), as organizaes religiosas e comunitrias, as entidades e os movimentos sociais organizados, as cooperativas e os sindicatos. O objetivo fundamental das organizaes que compem o Terceiro

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Setor deve ser social, e a finalidade deve estar ligada a sade, cultura, educao, trabalho, lazer, esporte, meio ambiente e direitos humanos. Todas essas contradies e vises mltiplas sobre o significado, a origem e o uso do termo Terceiro Setor manifestam-se na reflexo sobre a gesto das organizaes que o compem, como se v a seguir. Carrion (2000) revela que, ao se caracterizar a natureza gerencial, sero encontrados os principais fatores para a anlise da ao das organizaes de Terceiro Setor. a dinmica econmicogerencial e institucional que fundamenta como as organizaes delimitam em suas finalidades a questo social (CARRION, 2000).

2.2 Desafios da gesto das organizaes de Terceiro Setor

At metade da dcada de 1970, administrao no era uma palavra muito usada pelas pessoas ao referirem-se a organizaes de Terceiro Setor. A administrao era vista como parte da cultura do mundo dos negcios e no parecia ser apropriada para organizaes orientadas por valores. Com a crescente profissionalizao das organizaes do Terceiro Setor, a linguagem e os conceitos da cincia da administrao comeam a fazer parte da realidade das entidades sem fins lucrativos que buscam desenvolvimento social nas sociedades em que atuam (HUDSON, 1999). Para Hudson (1999), h uma conscincia sobre a importncia de uma gesto social eficaz para que as aes das organizaes tenham efetividade. Drucker (1995) afirma que, diferentemente de dcadas anteriores, quando as organizaes sem fins lucrativos no se preocupavam com gesto e sentiam-se orgulhosas por estarem livres do pecado da comercializao, atualmente elas verificam que fazer o bem com boas intenes no substitui a reflexo sobre gesto, liderana, responsabilidade, desempenho e resultados. Gestores com slida formao e domnio de tcnicas administrativas so captados pelo Terceiro Setor, tornando as prticas e polticas organizacionais mais sistematizadas, articuladas e voltadas ao cumprimento dos objetivos propostos pelas instituies sociais. Para o autor, as prticas administrativas convencionais, como a definio da misso, objetivos e metas, alm da estratgia para alcan-las, valem tambm para o Terceiro Setor, se implantadas de acordo com suas caractersticas prprias (DRUCKER, 1995).

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Compreender as caractersticas que so especficas das organizaes de Terceiro Setor contribui para identificar fatores que podem ser prprios de sua gesto. As especificidades das organizaes de Terceiro Setor, que por sua vez tornam especficas as caractersticas da gesto, so encontradas, na literatura analisada neste estudo, relacionadas aos nveis estratgico, gerencial e simblico. A principal marca do nvel estratgico o horizonte de longo prazo. O propsito e a misso, bem como os princpios e valores, so de interesse coletivo e a principal bandeira das organizaes do Terceiro Setor. Mesmo tendo em considerao o fato de que no existe homogeneidade entre as organizaes de Terceiro Setor, essas caractersticas, que normalmente esto focadas no longo prazo, apresentam-se claramente externadas e so a base do reconhecimento e da legitimao social das organizaes (SERVA, 1997; FALCONER, 1999; PEREIRA; SARTORI, 2003; ANDION, 2005; SALAMON, 2005; TACHIZAWA, 2007; ROESCH, 2009; FRANCO). O nvel gerencial marcado pela grande complexidade organizacional, com variados tipos de produtos e servios; relao com mltiplos pblicos simultaneamente; estruturas hierrquicas flexveis ou inexistentes; gesto de pessoas com articulao de mltiplos atores assalariados, voluntrios, gestores e beneficirios; gesto

participativa, necessidade de constante consenso e dependncia e influncia de fontes hbridas de recursos; dificuldade na mensurao dos resultados por no oferecer indicadores de eficcia e eficincia claros. (SERVA, 1997; CARVALHO, 1999; FALCONER, 1999; MENEGASSO; VALADO JNIOR, 2001; TEODSIO, 2001; ANDION, 2005; TACHIZAWA, 2007). O nvel simblico talvez seja o mais peculiar, porque introduz, de forma bem marcante, na reflexo administrativa, caractersticas adjetivadas como intensas relaes interpessoais, permanentes dilogo e reflexo coletiva sobre o cotidiano da organizao, atores que participam efetivamente nas decises com espao maior para demonstrar sentimentos, presena constante de demonstraes de afetividade, solidariedade e necessidade de realizao pessoal (SERVA, 1993; MENEGASSO; VALADO JNIOR, 2001; ANDION, 2005) Salamon (2005) identifica que as organizaes sem fins lucrativos tm como competncias especficas a mobilizao de movimentos e setores populares, a identificao e a divulgao de problemas ocultos, a mobilizao de recursos financeiros e humanos paralisados, a promoo de mudanas, a formao de novos lderes e a contribuio para que as polticas sejam legitimadas e tenham apoio

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popular para que possam ser implementadas. Segundo o autor, a ineficincia do Terceiro Setor um mito que precisa ser desfeito, j que o setor parece mais decisivo para o progresso econmico, quando no para a democracia, que o capital humano ou fsico (SALAMON, 2005, p. 99). Thompson (2005) acredita que o diferencial das organizaes do Terceiro Setor pode ser estabelecido na transparncia das aes e das finanas, em vantagem sobre a corrupo; na defesa de interesses comuns, no lugar do privado e do individual; na ao voluntria e nos movimentos de solidariedade e filantropia, como alternativa apropriao ilegtima e egosmo; e no exerccio da cidadania participativa e responsvel, em oposio excluso poltica e social. Os fatores citados anteriormente, apontados como caractersticos do Terceiro Setor, que deveriam, em tese, ser considerados na desafiadora constituio de processos de gesto especficos, coincidem com prticas tidas como tendncias e inovaes para a administrao de uma maneira geral. Nesse sentido, Aktouf (1996) apregoa a necessidade de que os gestores que desejam sair do tradicionalismo e adotar a renovao administrativa abram-se para a gesto mobilizadora e associativa, para a gesto de proximidade, solidariedade e equidade, para a sensibilidade em relao aos saberes mais fundamentais e menos instrumentais, para a humildade e prudncia ao enfrentar as complexidades, pela confiana e dilogo (AKTOUF, 1996). Kliksberg (2003), por sua vez, lana o desenvolvimento do capital social como um desafio para a eficincia da administrao, citando pontos como a mltipla participao e o grau de participao da comunidade nos processos de gesto social. Essas tendncias e inovaes so tambm apresentadas e por vezes identificadas como desafios para a gesto das organizaes de Terceiro Setor.

2.2.1 A capacitao gerencial como soluo

Entre os vrios desafios da gesto de organizaes de Terceiro Setor, identificam-se na literatura trs linhas principais, todas elas ligadas ao

aperfeioamento gerencial. Uma delas a crescente institucionalizao, com objetivo de fortalecer a imagem institucional. Outra linha a profissionalizao,

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fortemente orientada pelo ethos gerencialista, em busca de melhores resultados e eficincia na consecuo de seus objetivos. A terceira a da autossustentao, a busca pela otimizao de recursos e gerao prpria de receitas. As linhas citadas tm pontos de interferncia e, em alguns momentos, esto sobrepostas (DRUCKER, 1995; TENRIO, 1997; ANDION, 1998; TAVARES, 2000; CAMARGO et al., 2001; MARON; ESCRIVO FILHO, 2001; FRANCO; PEREIRA; SARTORI, 2003; TORO, 2005; SALAMON, 2005; ALVES; KOGA, 2006). A tendncia atual de profissionalizao das organizaes do Terceiro Setor tem o grande desafio de desenvolver uma estrutura de gesto que seja adequada s suas peculiaridades (MARON; ESCRIVO FILHO, 2001). Segundo Andion (1998), os trabalhos existentes sobre a gesto das organizaes do Terceiro Setor, na maioria das vezes, alm de no considerar suas singularidades, descaracterizam as organizaes estudadas, analisando-as em abordagem funcionalista, baseada nos mesmos conceitos e instrumentos utilizados no estudo das organizaes empresariais. Em um estudo que analisa a teoria da institucionalizao e a resistncia a mudanas das organizaes sem fins lucrativos no Brasil, Alves e Koga (2006) afirmam que, pela institucionalizao, as entidades esto se adaptando ao novo ambiente, motivadas no por questes de eficincia, mas sim por necessidade de legitimidade. Essa perspectiva desafia a noo de organizaes como sendo racionais e direcionadas a seus objetivos, introduzindo um retrato de organizaes guiadas por mitos, smbolos e a necessidade de legitimidade social (ALVES; KOGA, 2006). A superao da crise de identidade e o descaso acadmico e mercadolgico no reconhecimento do setor como alternativa de modelo econmico e organizacional so apontados como desafios do Terceiro Setor por Camargo et al. (2001). As entidades procuram aperfeioar-se em uma autoanlise, para que possam ter uma abordagem mais profissional e organizada, alm de valorizarem suas relaes institucionais com o governo e as entidades civis (CAMARGO et al., 2001). Sobre a emergncia da reflexo sobre autossustentao como uma das prioridades do Terceiro Setor, Drucker (1995) contribui com a ideia de que os principais desafios dessas organizaes so converter os doadores em contribuintes e criar identidade e objetivos comuns entre os envolvidos. Para Franco, Pereira, Sartori (2003), uma boa estratgia de captao de recursos, alm de contribuir para

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a sustentabilidade das organizaes, contribui tambm para a sustentabilidade de seus objetivos e iniciativas, reduzindo a vulnerabilidade e a subordinao destas. Segundo Tavares (2000), a autossustentao um termo que designa capacidade de sustentar-se em vrias dimenses: financeira (bancar as prprias atividades, atravs da gerao de renda ou captao profissional de recursos), administrativa (conseguir lidar com problemas de coordenao, controle, qualidade de servios prestados, identificao de mercado e clientes, e fazer planejamento estratgico), comunitria (ter suporte e participao da comunidade na atuao da entidade, seja fornecendo voluntrios, recursos em espcie ou financeiros), poltica (estabelecer relaes com o setor estatal e representantes da sociedade em geral), entre outras. A autora esclarece que esse conceito de sustentabilidade foi trabalhado por membros do Centro de Estudos do Terceiro Setor, da Fundao Getlio Vargas, em encontros, seminrios e discusses internas (TAVARES, 2000). De forma mais ampla, Toro (2005) considera que o maior desafio do Terceiro Setor em sociedades de baixa participao, como no caso do Brasil, no est no processo de gesto, mas em seu principal papel na dinmica social, que contribuir para a construo do projeto de nao (TORO, 2005, p. 35). Os desafios apresentados provocam tambm nos estudiosos e pesquisadores a busca por solues e alternativas que considerem as especificidades das organizaes, tendo em vista o aperfeioamento e os mecanismos que otimizem as tendncias apontadas para o futuro das organizaes de Terceiro Setor e seus modelos de gesto. Salamon (2005) define em quatro grupos os desafios e as propostas para o futuro da gesto de organizaes do Terceiro Setor, que passam pela legitimidade, eficincia, sustentabilidade e colaborao, ou seja: a) legitimidade garantia de oferta de informao bsica sobre o setor,

educao pblica sobre o que o setor capaz de propiciar, legitimao de forma legal, transparncia contbil; b) eficincia treinamento de administradores nas habilidades exigidas para

o setor, obteno de infraestruturas aptas para a consecuo dos objetivos; c) sustentabilidade consolidao da base filantrpica, outras formas de

sustentao, noo de Terceiro Setor como carreira; d) colaborao tanto com o Estado, como com o setor empresarial, entre si.

Algumas solues nas dimenses de gesto e governana esto colocadas para superar esses desafios, como o estabelecimento de redes e parcerias; a clara

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identificao de produtos, servios, reas de atuao e beneficirios; a atuao coletiva em um mesmo mercado; a introduo de mecanismos de controle; a maior visibilidade pela sociedade. De uma maneira geral, as solues esto centradas na capacitao gerencial e em novos instrumentos de gesto. Essas solues de capacitao e instrumentalizao devem considerar, porm, as particularidades do setor, para evitar alguns riscos: criar uma tenso entre os novos valores empresariais e os j estabelecidos na cultura das organizaes; burocratizar demais os processos e as relaes internas; e provocar conflitos na distribuio do poder (TENRIO, 1997). Como contraponto ao que foi apresentado at o momento sobre os desafios e as propostas de solues para a gesto de organizaes de Terceiro Setor, entre elas o aperfeioamento gerencial, Falconer (1999) e Teodsio (2003) apresentam argumentos que questionam essa alternativa. Falconer (1999) questiona se a capacitao tradicional em gesto capaz de oferecer as respostas necessrias. Alm disso, pe em dvida se a falta de capacitao mesmo o problema central e alerta para o risco de voltar o foco para a gesto interna das organizaes. O mesmo autor defende um modelo integrativo, que inclua no ambiente gerencial a viso de negcio (modelo da administrao de empresas), a competncia para gesto de servios pblicos (da administrao pblica), aliadas ao foco em atingir objetivos pblicos, atuar em problemas e polticas pblicas, que so prprios do Terceiro Setor (FALCONER, 1999). Na mesma linha, Salamon (2005) acrescenta a gesto dos relacionamentos e Serva (1997) inclui a gesto do ambiente perspectiva da gesto da organizao. Teodsio (2003, p. 8) considera que a viso difundida nos programas de capacitao est referenciada nas prticas da administrao empresarial, baseada em pressupostos como o pragmatismo, o clculo constante entre meios e fins, a disciplina financeira, o foco na eficincia. O modelo do gerenciamento privado pode no ser o mais adequado s organizaes do Terceiro Setor, e at mesmo exp-las ao risco de concentrar na participao restrita e no alcance de metas a curto prazo, perdendo a ligao com as transformaes sociais mais amplas (TEODSIO, 2003).

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2.2.2 Lgica social e lgica estratgica nos processos de gesto

opinio recorrente que a gesto do Terceiro Setor apresenta ligaes e sofre influncia dos modelos dos outros setores pblico e privado, mas deve considerar suas caractersticas especficas, que devem ser manifestas claramente em sua forma de gesto, um modo prprio de ao que contemple a gesto eficiente e eficaz dos recursos, com autonomia financeira para cumprir com competncia o papel social (SERVA, 1997; CARVALHO, 1999; TENRIO, 1999; MEIRA; ROCHA, 2003; ANDION, 2005; SALAMON, 2005). Na busca por modelos alternativos aos das esferas estatal e privada, que considere as especificidades do Terceiro Setor, a tendncia dos autores basearem-se nas lgicas da racionalidade substantiva em relao racionalidade instrumental, na lgica valorativa em relao lgica mercantil e na necessidade de considerar prticas de gesto interna e externa em igual valor, em enfoque mais sistmico que gerencial, ou ainda em modelos que possam extrapolar e ir alm das dicotomias (SERVA, 1997; FALCONER, 1999; SALAMON, 2005; TEODSIO; ALVES, 2006). Ao identificar as caractersticas especficas em consideraes que podem oferecer o suporte reflexo de metodologias prprias de gesto de organizaes de Terceiro Setor, duas publicaes Serva (1997) e ABONG (2007) contribuem

com classificaes que foram apropriadas para serem destacadas neste estudo. A primeira (QUADRO 1) uma tipologia apresentada pela Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais (ABONG), em uma publicao denominada ONGs: Repensando sua prtica de gesto (ABONG, 2007). As especificidades do setor foram consideradas como base para apresentar uma tipologia que pudesse favorecer o debate sobre gesto e fomentar a reviso das prticas de trabalho, como se v no Quadro 1.

ENFOQUE SISTMICOConsidera prioritria a ampliao do espao pblico pelo fortalecimento de atores sociais articulados e capazes de contribuir para a reduo da excluso social e negociar acerca de distintos interesses e caminhos da ao social estratgica. Enfatiza a dimenso sociopoltica da organizao (base social, credibilidade,

ENFOQUE GERENCIALTende a priorizar os desafios especficos de cada organizao.

Prioriza a gesto interna e as condies de eficcia e eficincia de cada organizao, com

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visibilidade, relaes com a sociedade civil e Estado). Enfatiza a capacidade de contribuir significativamente para a renovao da cultura poltica no espao pblico, juntamente com outros atores e parceiros.

seus interesses especficos.

Enfatiza uma viso tecnicista de planejamento estratgico, sistema de monitoramento e avaliao, marketing, capacitao, gesto administrativa e financeira, priorizando a organizao interna. Prioriza o papel das organizaes enquanto Tende a enfatizar um papel mais instrumental e protagonistas de mudanas. operacional para as organizaes da sociedade civil, assumindo uma atitude predominantemente reativa. Considera o aprimoramento organizacional e Avalia que os principais problemas das gerencial como necessrio, mas insuficiente organizaes do campo no governamental so, para assegurar o poder de fogo das fundamentalmente, problemas de capacitao organizaes da sociedade civil. tcnica e de gesto. Quadro 1: Enfoques sistmico e gerencial na gesto de organizaes no governamentais Fonte: ABONG, 2007, p. 13.

Afirmando que na ao cotidiana de uma entidade de Terceiro Setor difcil fazer uma separao entre os dois enfoques, a publicao conclui que as prticas tendem a acentuar ora o primeiro, ora o segundo enfoque, e que isso acontece numa determinada organizao, em perodos distintos ou ao mesmo tempo, em diferentes instncias institucionais ou programas (ABONG, 2007). O enfoque gerencial privilegia dimenses de gesto semelhantes lgica da gesto tradicional de empresas privadas e pblicas, como a administrao estratgica, gesto de pessoas, administrao de recursos e gesto de impactos. J o enfoque sistmico apoia-se nas capacidades de accountability (responsabilidade e transparncia das organizaes em relao a suas atividades e resultados, alocao de recursos financeiros, materiais e humanos) e advocacy (atividades em que a instituio planeja, promove e influencia processos de mobilizao, organizao e articulao sociais sobre a constituio de polticas pblicas), gesto da imagem pblica e administrao de parcerias e sistema legal, relacionadas a conceitos mais modernos da administrao (CARVALHO et al., 2006). A anlise feita por Serva (1997), apresentada mais adiante no Quadro 2, tambm se apoia em uma tipologia dupla para analisar caractersticas de gesto, mas relaciona os elementos referentes a cada tipo de racionalidade observada na prtica administrativa, ou seja, nos processos organizacionais. A perspectiva analtica da racionalidade um ponto fundamental para compreender, com mais consistncia, os desafios terico-metodolgicos em torno da produo de conhecimento da Administrao sobre o Terceiro Setor (TEODSIO; ALVES, 2006). Em estudo recente sobre os impactos do conceito de

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racionalidade no campo da teoria das organizaes, Silveira (2008) aponta, a partir de um breve resgate histrico, a abrangncia e os mltiplos aspectos da racionalidade implicados na compreenso sobre a relao indivduo-organizao. O autor recupera o surgimento da noo de racionalidade sobre a influncia dos preceitos filosficos relacionados s concepes de pensamento (lgica) e ao (pragmtica) (SILVEIRA, 2008). O conceito de racionalidade e a necessidade de sua regulao no mbito das organizaes foram apresentados pelo socilogo alemo Max Weber (2002) como um critrio para descrever e explicar as transformaes da sociedade moderna. Assim, para ele, aps o desencantamento do mundo, o homem moderno baniu da vida pblica os valores supremos e mais sublimes, prevalecendo a intelectualizao e a busca pela tcnica e previso, valendo prioritariamente as regras da lgica e da metodologia (WEBER, 2002). A abordagem de Weber (2002) inclui o desenho racional de atividades em razo dos propsitos organizacionais. a racionalidade que motiva e confere sentido ao social classificada por Web