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Política
A Grécia põe na mesa a carta da democraciapor Antônio Martins — publicado 29/06/2015 15h45
Chantageado pelos credores, governo convoca plebiscito sobre “ajuste”imposto ao país. Oligarquia financeira vacila. O que a atitude representa,em termos globais
“A revolução não será televisionada”, lembra
um documentário de enorme repercussão na
década passada. Em certas ocasiões, os
grandes impasses históricos
desenvolvem-se diante dos nossos olhos – e
o velho jornalismo tornou-se incapaz de
narrá-los. Um deles começou a se
desenrolar na manhã deste sábado (27/6) e
vai se estender até 5 de Julho. Tem como
protagonista o primeiro-ministro da Grécia,
Alexis Tsipras, eleito no início do ano por um
partido-movimento organizado em rede e
partidário de uma nova ordem internacional. Pressionado pelos credores do país, que
querem impor redução de direitos sociais para rolar uma dívida financeira, o primeiro-
ministro da Grécia, Alexis Tsipras, convocou, em pronunciamento pela TV, um plebiscito
sobre a proposta. Considerou que ela equivale a um “ultimato”, uma “tentativa de humilhar o
povo grego”. Disse esperar dos eleitores “um grande não”. Lembrou que passava a palavra
a eles por considerar a democracia “um valor supremo da sociedade grega”.
A consulta popular, um recurso essencial da política, foi considerada um tapa na cara pelos
demais governantes dos países da zona do euro – todos implicados em políticas de
“austeridade”. “Estou muito desapontado”, afirmou Jeroen Dijsselbloem, o membro
do Partido Trabalhista Holandês (supostamente de centro-esquerda) que preside o chamado
“eurogrupo”. Ainda no sábado, reunido em Bruxelas, o órgão respondeu à convocação
democrática com uma demonstração de força bruta. A proposta de Atenas, que pedia adiar
a decisão sobre a rolagem da dívida por apenas sete dias – até que se conhecesse a
opinião popular –, foi rechaçada.
O Banco Central Europeu (BCE) decidiu não manter as linhas de crédito automáticas que
normalmente oferece aos bancos de todo o continente. A consequência imediata, todos
sabiam, seria o início de uma crise bancária na Grécia – cidadãos correndo aos caixas para
retirar seus depósitos, sem poder fazê-lo. Tsipras não se intimidou. Em novo
pronunciamento aos gregos, anunciou um feriado bancário de sete dias (até a apuração dos
votos do plebiscito). A medida tem conteúdo igualitário. No período, as retiradas de dinheiro
ficarão limitadas a 60 euros por dia, seja qual for o volume depositado em cada conta
bancária. Estão suspensas, além disso, as transferências de recursos ao exterior.
A ousadia de Tsipras provocou uma reviravolta. O poder econômico dos gregos é ínfimo,
O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras,
encontra-se com chefes de Estado da
Alemanha e França, há uma semana.
Pressionado pela aristocracia financeira, ele
soube dizer “não”.
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diante dos tecnocratas da União Europeia (UE) – mas a convocação do plebiscito é um tapa
democrático sobre um tabuleiro viciado. Nesta segunda-feira, os mercados financeiros
europeus abriram em meio a uma incerteza próxima do pânico. As ações estão caindo
fortemente, nas bolsas de valores de Londres, Frankfurt, Paris e Amsterdam, as mais
importantes do continente. As ações mais desvalorizadas são as dos maiores bancos
europeus. O secretário de Finanças dos EUA, Jacob Lew, achou prudente intervir,
erecomendar cautela aos governantes do “Velho Continente” empenhados em pressionar
Atenas. Há semanas, ele havia advertido: ninguém sabe se o sistema financeiro
internacional, ainda envolto em crise, suportará o impacto de um trauma como o de uma
eventual expulsão da Grécia do euro..
Nos próximos sete dias, estará em jogo muito mais que uma disputa entre Atenas e
Bruxelas. As sociedades têm o direito de construir coletivamente seu futuro? Ou devem
curvar-se ao que Marx chamou, de modo sarcástico, de “as águas gélidas do cálculo
econômico”? Num tempo em que a “aristocracia financeira” – nova classe global de
super-ricos – parece cada vez mais forte e insensível aos velhos valores civilizatórios, será
possível encontrar uma brecha em seu sistema de dominação?
* * *
Ao contrário do que tentam fazer crer as manchetes dos jornais de hoje, o está em jogo na
disputa entre a Grécia e seus credores muito mais que uma querela econômica e técnica.
Do ponto de vista financeiro, a crise grega poderia ser resolvida sem sobressalto algum.
Desde 2010, a UE emprestou à Grécia algo como 316 bilhões de dólares. As duas linhas de
crédito que precisam ser renovadas nas próximas semanas – 1,8 bilhão de dólares junto ao
FMI, mais 7,5 bilhões de euros ao BCE – perfazem apenas 3% deste total. Se as
negociações se arrastam há cinco meses é porque está em jogo muito mais que uma
ninharia percentual.
Por trás dos números, cada parte tenta validar seus projetos de longo prazo para as
sociedades e sua relação com as finanças. Quando evitaram que o Tesouro grego
quebrasse, há cinco anos, seus credores, reunidos na chamada troika (BCE, Fundo
Monetário Internacional-FMI e Comissão Europeia-CE), impuseram, como condição, um
ataque rude aos direitos sociais dos gregos, aos serviços públicos e à soberania do país
sobre si mesmo. Os acordos entre as duas partes foram estabelecidos em dois documentos,
conhecidos como “Memorandos” (1 2). Produziram políticas que elevaram o desemprego a
quase 30% (60% entre os jovens), privatizaram em massa – de portos a redes de
infraestrutura a parques públicos e sítios arqueológicos –, ampliaram a carga de impostos
(tornando-a, ao mesmo tempo, mais injusta) e reduziram, até mesmo em termos nominais, o
salário mínimo e as aposentadorias.
O projeto de unidade europeia construído pacientemente a partir doTratado de Roma
(1957), nas décadas de capitalismo keynesiano, implicava difundir o modelo do Estado de
Bem-estar Social. Mas após a crise de 2008, a Europa reduziu-se ao continente
da regressão de direitos e aumento da desigualdade O dinheiro destinado ao governo grego
jamais produziu benefício coletivo algum: retornou integralmente aos bancos privados a
quem o país devia. O movimento foi chamado de “austeridade” – um termo enganoso e
interesseiro. Oculta o fato de que os lucros e salários dos banqueiros e demais membros da
aristocracia financeira recuperaram-se e voltaram aos patamares nababescos de antes da
crise – enquanto, nas ruas, multiplicam-se os sem-teto e os que se alimentam da sopa dos
pobres.
A emergência do Syriza, o partido-movimento a que pertence Alexis Tsipras, desmontou a
trama, ao jogar luz sobre ela. No país europeu mais atingido pelas “novas” políticas, o grupo
chegou ao governo em janeiro. Embora ligados ao pensamento anti e pós-capitalista, seus
membros apresentaram um programa moderado e realista, que se apoia em quatro pilares –
todos de natureza social-democrata: a) enfrentar a crise humanitária; b) reativar a economia,
com Justiça Fiscal; c) um Plano Nacional de Retomada do Emprego; d) Reforma Política
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para aprofundar a democracia. Embora contido, o projeto é claro: os eleitores gregos
votaram numa proposta que exige a revisão dos “Memorandos” firmados com a troika.
Para surpresa de muitos, a oligarquia financeira recusou-se ao diálogo efetivo, mesmo
diante desta proposta conciliadora. Em fevereiro, poucas semanas depois de assumir o
governo, o Syriza enfrentou a primeira bateria de negociações com a troika. O resultado foi
uma espécie de empate. Para postergar, por quatro meses, o vencimento de dois
empréstimos, os gregos recuaram de medidas como a reversão das privatizações. Pela
primeira vez em cinco anos, no entanto, a resistência de Atenas impediu que o governo
fosse obrigado a anunciar novos cortes de direitos. Este fato provocou um primeiro
desconforto, num cenário político europeu marcado pelo conservadorismo. Governos como
os da Espanha, Portugal e Irlanda constrangeram-se diante de um desfecho que mostrou,
para seus próprios eleitores, que poderia valer a pena resistir.
Em junho, quando este acordo provisório expirou e as negociações foram retomadas,
a troika voltou com sangue nos olhos. Inspirando-se em medida semelhante oferecida à
Alemanha, em 1953, Atenas reivindica uma redução na dívida, para que seja possível
melhoras as condições de vida da população e relançar a economia. Os credores não se
limitam a repelir a proposta. Exigem que o Syriza traia seu programa e se desmoralize. Não
abrem mão de duas medidas emblemáticas, pela enorme repercussão política que teriam
junto aos gregos: nova redução no valor nominal das aposentadorias (a terceira, em cinco
anos) e aumento dos impostos indiretos – os mais injustos e os que são sentidos mais
imediatamente pela população.
Desde meados de junho, o eurogrupo viu-se imerso numa bateria frenética de negociações.
Além das reuniões entre chefes de Estado, os ministros de Finanças foram convocados a
Bruxelas cinco vezes, nos últimos dez dias. Atenas chegou a lançar propostas
aparentemente conciliadoras, para tensionar o discurso dos credores. Sugeriu, por exemplo,
que o “ajuste fiscal” reivindicado pela troika poderia ser feito tributando os mais ricos. Não
houve o menor sinal de recuo. No sábado, quando todas as possibilidades de negociação se
esgotaram, Tsipras colocou na mesa a carta do plebiscito – aprovado pelo Parlamento em
sessão de emergência, um dia depois. Agora, as propostas da troika terão de ser feitas a
todo o povo grego, que se pronunciará no próximo domingo. Mas quais as condições
concretas para continuar resistindo?
* * *
Na era da ultra-mercantilização, nada mais eficaz, para submeter um Estado ou sociedade
rebelada, que o fantasma de uma crise bancária. Em 11 de fevereiro, apenas quinze dias
após a posse de Alexis Tsipras em Atenas, o Banco Central Europeu agiu conscientemente
para evocar uma destas crises na Grécia. Numa decisão casuística, eledecidiu excluir o país
do mecanismo de assistência automática que oferece aos bancos da eurozona, quando
enfrentam dificuldades momentâneas de liquidez. Desde então, o auxílio aos bancos gregos
precisa ser autorizado, caso a caso, pelos dirigentes do próprio BCE. Quem reconheceu o
viés político da decisão foi a revista Economist,insuspeita de qualquer simpatia pelo Syriza:
“foi um tiro de advertência disparado contra o novo governo”, admitiu ela.
Inserida na zona do euro, a Grécia abriu mão do poder de emitir moeda. E, sociedade
dividida em classes, passou a sofrer, também desde a chegada do Syriza ao poder, a
pressão das elites, interessadas em fazer todo o possível a mudanças no status-quo. A
partir de janeiro, os bancos vivem um processo de retiradas predatórias – e cada vez mais
maciças – de dinheiro, feitas pelos mais ricos. Já em fevereiro, o montante total dos
depósitos havia caído para 140,5 bilhões de euros, o mais baixo em dez anos, desde a
criação da moeda única europeia.
O movimento intensificou-se desde então e se converteu em bola de neve à medida em que
os credores endureceram as condições para um acordo. Os saques subiram a € 300
milhões diários na semana entre 13 e 20 de junho e a € bi a cada 24 horas, desde então. No
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último fim de semana, antes de o governo estabelecer um limite diário equânime para as
retiradas, havia longas filas diante dos caixas eletrônicos. Temeu-se pelo pior: além de não
haver mais dinheiro nos bancos, surgiu o risco de faltarem recursos para pagar, na virada do
mês, os aposentados e pensionistas… O New York Times não deixou de captar as possíveis
consequências políticas. Na Argentina, uma crise bancária que eclodiu em janeiro de
2001 derrubou três presidentes em cinco dias. Houve quem especulasse: a União Europeia
estará tramando uma mudança de regime em Atenas?
É possível, porém, que estas especulações não levem em conta outro aspecto, de sentido
contrário. Caso a ruptura se consume, e impeça Atenas de saldar também seus
compromissos internacionais, qual será o impacto sobre os mercados financeiros
internacionais? O pensamento convencional prevê repercussão limitada. O PIB anual da
Grécia, de € 242 bilhões equivale a apenas 1,34% do europeu. Os grandes bancos do Velho
Continente já teriam “precificado” o risco de uma retirada grega da zona do euro (a “Greek
Exit”, ou “Grexit”) – ou seja, teriam feito provisões para absorver os eventuais prejuízos.
Mas talvez valha a pena ouvir duas opiniões ilustres e divergentes. No final de maio, o
secretário de Tesouro dos EUA, Jacob Lew, advertiu seus colegas do G7 sobre as
consequências – a seu ver desconhecidas da possível “grexit”. “Só sabemos ao certo que
estamos aumentando os riscos de um acidente [financeiro] quando deixamos de agir até
que chegue o próximo prazo fatal”, disse ele. Um dia depois, Paul Krugman, Prêmio Nobel
de Economia, foi além. “Mesmo no curto prazo, as salvaguardas financeiras de uma saída
grega nunca foram tesstadas e poderiam perfeitamente falhar. Além disso, a Grécia,
goste-se ou não, é parte da União Europeia e seus problemas iriam se esparramar pelos
demais países do grupo, mesmo se a barreira financeira aguentar”, escreveu ele – que
enxerga nos governantes europeus atuais a mesma tendência à alienação e cegueira
política que levou à I Guerra Mundial.
* * *
Indiferentes até ontem à crise grega, os velhos jornais brasileiros abrem hoje suas
manchetes para ela. A descoberta do assunto é bem-vinda, mas em todos os textos
sobressai uma distorção. A crise é tratada apenas em seu lado dramático. Destacam-se os
limites aos saques nos bancos, as filas quilométricas, os temores dos aposentados. É como
se estivéssemos diante de uma fatalidade trágica: os gregos desobedeceram os deuses, os
mercados – agora, assistiremos ao castigo.
Nesta cobertura invertida, o que não se menciona, ou se subestima, é precisamente o fato
novo, a notícia. Tsipras e o Syriza convocaram um plebiscito. A sociedade será ouvida, ao
invés de convidada a submeter-se (como no Brasil do “ajuste fiscal”) a políticas
apresentadas como tão inevitáveis como os terremotos ou as grandes secas ou os
terremotos. Abriu-se, subitamente, uma brecha na ditadura financeira.
Saberemos aproveitá-la? Os próximos sete dias serão decisivos. O gesto de Tsipras agrega
uma nova incógnita à equação, num mundo marcado por imensos riscos e oportunidades. E
se as populações da Espanha, Portugal ou Irlanda – para não falar dos outros países
europeus – exigirem também ser consultadas, sobre os programas impostos a seus países?
E se o recém-fundado Banco dos BRICS oferecer a Atenas – amparando-se na imensa
fartura das reservas monetárias chinesas – os recursos de que precisa para se livrar da
crise? E se, no Brasil, alguém propuser um referendo sobre o “ajuste fiscal” também
concebido para permitir elevação dos juros e enriquecimento ainda maior da aristocracia
financeira?
Os dados estão lançados e o resultado final já não depende apenas do interesse dos
mercados – mas das atitudes e posturas que tomaremos, coletiva e individualmente.
Costumava-se dar a isso o nome de democracia.
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