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A Guerra da Tarifa Muitos documentários logo serão produzidos, e provavelmente livros serão publicados, sobre aquilo que foi – ou está sendo – a maior revolta e movimento popular desde que esta cidade passou a ser chamada de Florianópolis. Embora ainda paire uma incerteza sobre a conquista da reivindicação central deste levante popular, pretendo aqui fixar as palavras no papel eletrônico antes que se percam da minha memória, sem a ambição de fazer qualquer análise ou relato detalhado do que aconteceu nessas duas últimas semanas. Foi a maior revolta ou movimento popular da história das últimas oito décadas desta cidade porque conciliou quantidade (adesão), formas contundentes de ação direta e um certo nível de organização e consciência. Uma revolta que não se expressou em simples fúria, que se esgota em si mesma, mas sim principalmente na forma de um movimento organizado horizontalmente, multifacetado, ligando principalmente, mas não somente, associações comunitárias e estudantes. Para entender a gênese desse “movimento contra o aumento das tarifas de ônibus”, sem irmos muito longe, teríamos que destacar a situação atual do transporte coletivo em Florianópolis e o contexto político em que ele se estabelece, assim como as atividades que vem desenvolvendo algumas associações comunitárias e principalmente a Juventude Revolução Independente (JRI) e a Campanha Pelo Passe Livre, puxada pela JRI há quatro anos. Do Buzu à Revolta Era o dia 5 de março deste ano, e fui ao Centro Integrado de Cultura (CIC) assistir o vídeo A Revolta do Buzu, que seria exibido naquela noite, atração principal do lançamento da Campanha pelo Passe Livre 2004 (veja fotos e matéria sobre o evento de lançamento em http://www.sarcastico.com.br/1pags/arq_capa/passelivre2004.php). O documentário tratava da revolta, primordialmente estudantil, que paralisou Salvador por três semanas contra o aumento da tarifa de ônibus. Revolta essa que teve um caráter autônomo, apartidário, sem líderes... Cerca de quarenta pessoas estavam naquela sala, naquele dia. Não poderia imaginar que aquelas pessoas ali, boa parte com cerca de metade da minha idade, iriam pôr a cidade de pernas para o ar alguns meses depois, ou serem tão fundamentais para tudo que ocorreu nas duas últimas semanas em Florianópolis. 1

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A Guerra da Tarifa

Muitos documentários logo serão produzidos, e provavelmente livros serão publicados,

sobre aquilo que foi – ou está sendo – a maior revolta e movimento popular desde que esta cidade

passou a ser chamada de Florianópolis. Embora ainda paire uma incerteza sobre a conquista da

reivindicação central deste levante popular, pretendo aqui fixar as palavras no papel eletrônico

antes que se percam da minha memória, sem a ambição de fazer qualquer análise ou relato

detalhado do que aconteceu nessas duas últimas semanas.

Foi a maior revolta ou movimento popular da história das últimas oito décadas desta cidade

porque conciliou quantidade (adesão), formas contundentes de ação direta e um certo nível de

organização e consciência. Uma revolta que não se expressou em simples fúria, que se esgota em

si mesma, mas sim principalmente na forma de um movimento organizado horizontalmente,

multifacetado, ligando principalmente, mas não somente, associações comunitárias e estudantes.

Para entender a gênese desse “movimento contra o aumento das tarifas de ônibus”, sem

irmos muito longe, teríamos que destacar a situação atual do transporte coletivo em Florianópolis

e o contexto político em que ele se estabelece, assim como as atividades que vem desenvolvendo

algumas associações comunitárias e principalmente a Juventude Revolução Independente (JRI) e

a Campanha Pelo Passe Livre, puxada pela JRI há quatro anos.

Do Buzu à Revolta

Era o dia 5 de março deste ano, e fui ao Centro Integrado de Cultura (CIC) assistir o vídeo

A Revolta do Buzu, que seria exibido naquela noite, atração principal do lançamento da

Campanha pelo Passe Livre 2004 (veja fotos e matéria sobre o evento de lançamento em

http://www.sarcastico.com.br/1pags/arq_capa/passelivre2004.php). O documentário tratava da

revolta, primordialmente estudantil, que paralisou Salvador por três semanas contra o aumento da

tarifa de ônibus. Revolta essa que teve um caráter autônomo, apartidário, sem líderes...

Cerca de quarenta pessoas estavam naquela sala, naquele dia. Não poderia imaginar que

aquelas pessoas ali, boa parte com cerca de metade da minha idade, iriam pôr a cidade de pernas

para o ar alguns meses depois, ou serem tão fundamentais para tudo que ocorreu nas duas últimas

semanas em Florianópolis.

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Após a exibição do vídeo, discussão sobre as insuficiências do movimento de Salvador, dos

seus erros e acertos, e do porquê não terem conseguido alcançar a reivindicação central que era

baixar a tarifa de ônibus. Em linhas gerais, o que se poderia concluir é que faltara um certo nível

de organização. A experiência de Salvador deixou claro também que o movimento deveria estar

muito atento a indivíduos politiqueiros, principalmente de organizações estudantis, que

pretendem se passar por representantes do movimento (e que muitas vezes caem de pára-quedas

depois que o povo já está nas ruas), pois em seu nome eles acabam negociando em gabinetes

propostas totalmente estranhas à vontade popular. Depois do dia 5 de março A Revolta do Buzu

seria passado em escolas de toda Florianópolis e a JRI/Campanha pelo Passe Livre se esforçaria

como nunca para organizar e criar esse momento.

Em junho de 2003 a JRI fizera uma análise da situação político-social em Florianópolis,

que orientou seus esforços futuros:

“Hoje em dia uma das grandes formas de arrecadação de capital “legal” e sob a exploração de operários e da população, é o transporte coletivo privado, ilegal, feito sem licitação, sem transparência, favorecendo as empresas ligadas à família Amin que estava no poder - o marido no Governo do Estado a esposa na prefeitura. Com poderes no aparelho de Estado, nas instituições políticas, na justiça, os donos do transporte coletivo criaram todas as condições “legais” para super-explorar o transporte da cidade, um dos mais caros do mundo! Esse tipo de situação esmaga a população e provoca grande indignação de amplos setores que fazem utilização do transporte coletivo. Nesses últimos três anos levamos a campanha do passe-livre que foi um importante primeiro passo, no sentido de enfrentar os donos do transporte coletivo. Hoje estamos aptos a pressionar essa reivindicação até a vitória. Se pretendemos realizar uma atividade militante focada, é contra esse setor que devemos concentrar nossos esforços. É na luta contra o transporte municipal que poderemos incendiar a população contra os setores mais atrasados, oligárquicos que se mantêm na condução e na divisão da exploração: - Guerra aos exploradores do transporte coletivo em Florianópolis. - Mobilização e paralisação no dia da inauguração do Sistema Integrado, e de um possível reajuste. - Levantar a discussão do transporte coletivo municipal e público, sob o controle do Estado”.

A guerra da tarifa que ocorreu nas últimas semanas em Florianópolis não foi mero fruto de

espontaneísmo. Ele é sempre um componente de qualquer revolta ou levante popular, mas sem

encontrar uma organização, a revolta e o espontaneísmo se perdem em ações e protestos isolados.

Foi o esforço de organização e a preparação a que se dedicou a JRI principalmente, em especial

no último ano, que possibilitou que a revolta e indignação popular pudessem encontrar uma

articulação e ter continuidade de modo a pôr em xeque a prefeitura e impedir o aumento da tarifa.

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O trecho da JRI acima transcrito praticamente resume o que se precisa saber sobre a

situação do transporte coletivo em Florianópolis e o contexto político em que ele se dá.

Acrescentemos ainda que a prefeita Ângela Amim é sócia da maior empresa de transporte urbano

da cidade (fato que nenhum órgão da imprensa burguesa jamais pontuou em toda essa discussão).

Uma oligarquia comanda Florianópolis e Santa Catarina há várias décadas, formada durante a

ditadura militar, e que ao mesmo tempo é envolvida com uma verdadeira máfia que controla o

transporte coletivo, que elege políticos, e que funda o principal poder econômico da cidade. Em

agosto de 2003 foi inaugurado um novo sistema de transporte coletivo na cidade, com vários

terminais construídos, e que se quer integrado. Além da tarifa ter aumentado na sua inauguração,

o sistema claramente foi projetado para racionalizar os custos e aumentar os lucros das empresas,

sem consideração pelo tempo e conforto do usuário, chegando ao absurdo de ter sido

implementado baldeação em linhas que anteriormente eram diretas, para bairros próximos ao

centro. Descrever todos os absurdos, do ponto de vista do usuário, do novo sistema de transporte

ocuparia algumas páginas. Já na sua inauguração houve alguns protestos, ônibus queimados aqui

e acolá, terminais fechados acolá e aqui, mas nada que tenha ido além de conseguir que algumas

linhas voltassem a operar. Faltara talvez um grande chamado, um grande esforço preparatório,

algo que desse uma cara de movimento, algo a que se identificar e uma articulação...

A revolta contra o atual aumento da tarifa liberou também a revolta acumulada contra o

novo sistema de transporte. Quanto ao preço, para se ter uma idéia, mesmo com a tarifa tendo

voltado ao valor anterior, muitos trechos de até dez ou doze quilômetros são percorridos de forma

mais barata de carro (preço de um litro de gasolina) do que de ônibus, mesmo com apenas uma

pessoa no carro!!!

A JRI

A Juventude Revolução Independente surge da desvinculação da Juventude Revolução de

Florianópolis com a corrente trotskista O Trabalho e com o próprio PT. A JRI passa a ter uma

postura apartidária, autonomista e libertária (alguns exemplos disso são sua postura diante do

sistema eleitoral, a prática do consenso ao invés do centralismo democrático, e uma postura ética

infelizmente rara na extrema-esquerda). A própria percepção da impossibilidade de mobilizar a

juventude a partir de concepções bolcheviques a levaram a se distanciar dessas concepções. Hoje,

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a JRI não se define como trotskista, leninista, marxista, ou anarquista... mas simplesmente como

revolucionária. Em certo sentido, a guerra da tarifa mostrou a capacidade e a adequação de

concepções políticas e organizativas historicamente associadas ao anarquismo. Isso é claramente

percebido até por bolcheviques locais. Nenhum partido ou organização bolchevique teria

conseguido preparar, fomentar e catalisar tal mobilização, principalmente em meio à juventude.

Os filhos de comunistas, ao voltarem para casa depois de um dia de manifestação,

invariavelmente tinham que ouvir broncas de seus pais leninistas, com coisas do tipo: “que merda

vocês estão fazendo! Falta direção...! Parece coisa de anarquista!”.

Dia 28 de Junho

Dia 22 o Conselho Municipal votou o aumento de 15,6% das tarifas de ônibus, que

passariam a ser as mais caras do Brasil, e num sistema terrivelmente ruim. A Campanha pelo

Passe Livre convocou uma grande manifestação contra o aumento para o dia 28 de junho,

segunda-feira, um dia após a entrada em vigor das novas tarifas. O ato deveria ocorrer durante

todo o dia, culminando às 17h em frente ao terminal do centro (TICEN).

A avenida Paulo Fontes, em frente ao TICEN, foi fechada pelos manifestantes nos dois

sentidos. O terminal de canasvieiras (TICAN) foi fechado durante toda a manhã pela comunidade

local, com a polícia chegando a intervir em favor dos manifestantes e contra os seguranças

privados do terminal que investiam contra esses. Provavelmente outros terminais também foram

fechados nesse dia pelas comunidades locais, mas isso já se perde da minha memória. De

qualquer forma, basta pesquisar em www.midiaindependente.org . A comunidade do norte da ilha

demonstrou ser a mais combativa, talvez por ser a mais prejudicada, tendo que pagar tarifa de

3,00 reais para qualquer locomoção. O fechamento do TICAN, ou a tentativa de fecha-lo, foi uma

constante em todos os dias de manifestações. A polícia chegaria a instaurar toque de recolher em

Canasvieiras.

O fechamento da avenida Paulo Fontes se tornaria rotina também. Os outros terminais

também seriam fechados por manifestantes nos dias subseqüentes por períodos diferentes e com

maior ou menor freqüência. A avenida Mauro Ramos também foi fechada em alguns dias.

Em frente ao TICEN a grande maioria era estudante, principalmente secundarista de escolas

públicas. Naquela segunda-feira eu estava me sentindo quase um pai ali no meio. Esse perfil fez a

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mídia, não sem alguma razão, associar o movimento a estudantes. Eles realmente foram parte

fundamental do movimento, sua linha de frente, principalmente nas manifestações que ocorreram

no centro da cidade. E tratava-se sobretudo de estudantes secundaristas. Os universitários, com

todo seu discurso empolado e sua aura histórica de contestação, em certo sentido foram meros

coadjuvantes em relação aos mais novos.

Naquele dia, a frente do TICEN parecia um grande espaço de socialização da juventude,

num clima sereno.

Por volta das 17:30h os manifestantes, algumas centenas, se dirigiram à ponte Colombo

Sales, que liga a ilha ao continente. A polícia acompanhou, não quis deixar que ocupássemos

todas as pistas da ponte. Mas por fim conseguimos, sem que a polícia reagisse com violência. E

ficamos ocupando a ponte por volta de meia hora. O tráfego ilha-continente foi desviado para

duas pistas da ponte Pedro Ivo. Para quem não conhece a cidade, as pontes que ligam a ilha ao

continente são tão ou mais estratégicas a Florianópolis quanto as marginais a São Paulo.

À noite os manifestantes que se encontravam em frente ao TICEN se dirigiram à câmara de

vereadores, e acabaram a invadindo, em meio a uma sessão que acabou sendo suspensa. Além da

questão do transporte coletivo, os manifestantes pressionaram os vereadores sobre o aumento de

salário de 150% que eles haviam concedido a eles mesmos e de 275% à prefeita. Depois de

alguma negociação os manifestantes se retiraram da câmara com a garantia de que os vereadores

sairiam também à rua para conversar com a população. Mas apenas cinco deles tiveram a

coragem.

No dia seguinte eles fizeram um abaixo-assinado pedindo que a prefeita não sancionasse o

projeto de aumento de salário que eles mesmos haviam aprovado, e o criador do projeto disse à

imprensa que não sabia onde estava com a cabeça quando havia pensado em tal aumento. O bafo

do povo na nuca dos vereadores teve efeito imediato. O aumento foi então indeferido. Nada como

uma boa e contundente ação direta de massa para pôr cabeças no lugar.

Na rua, com a presença dos vereadores que saíram da câmara, ficou agendada uma reunião

para quarta-feira, às 15h, no Núcleo de Transportes, com mediação da câmara de vereadores,

entre os manifestantes e o Núcleo para se tentar resolver o impasse das tarifas.

Terça-feira, dia 29 de junho, as manifestações tiveram continuidade. Nesse dia um grupo de

manifestantes invadiu a prefeitura, sendo retirado à força pela polícia. De madrugada três ônibus

foram incendiados na Caieira do Sul. Pela distante localização suspeita-se que tenha sido a

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mando da própria empresa Insular, para tentar “incriminar” o movimento. De qualquer forma,

teria sido a maneira mais idiota e ineficiente de enfraquecer o movimento – provavelmente o

ocorrido teve o efeito contrário.

Para a prefeitura (PP) e para a mídia, a polícia estava muito “boazinha” com os

manifestantes. O diretor do Núcleo de Transporte chegou a declarar que colocaria o exército na

rua (sic). É o hábito da ditadura.

Além da concentração em frente ao TICEN e a ocupação da Avenida Paulo Fontes, as

próprias saídas e entradas do TICEN eram com freqüência obstruídas durante os dias de

manifestação, fazendo com que as empresas tivessem que improvisar locais de embarque e

desembarque fora dos terminais. O sistema de transporte coletivo estava caótico, e perdendo

usuários.

Dia 30 de junho

As manifestações e bloqueios de terminais continuam. A SC-401, que dá acesso ao norte da

ilha, é fechada por manifestantes durante a semana. Operações catraca-livre (porta de trás aberta)

também são parte das ações diretas. Ela se torna rotina na UFSC, aonde a empresa de transporte

Transol chega a colocar seguranças no ponto de ônibus mais movimentado para impedir a entrada

pela porta de trás.

No início da tarde de quarta-feira, dia 30, alguns manifestantes tentam fechar a avenida

Paulo Fontes também na altura da rodoviária e são brutalmente agredidos pela polícia. Um

estudante, sangrando na cabeça é preso, e por ser cardíaco acaba parando no hospital.

Em passeata os manifestantes que estão no centro se dirigem ao Núcleo de Transportes,

localizado em um prédio na avenida Rio Branco. A polícia nos acompanha, utilizando até mesmo

um helicóptero. Ao chegar lá alguns manifestantes tentam entrar no prédio, mas são impedidos

pela polícia. Ficamos na rua ocupando a avenida. O presidente da câmara de vereadores e mais

um vereador aparecem. Não é montada comissão para negociar com o Núcleo de Transportes. A

lição de Salvador foi muito bem aprendida. Os manifestantes redigem sua reivindicação em

assembléia e a enviam através dos vereadores: nada mais nada menos que a redução da tarifa ao

valor anterior (já tremendamente cara). Os vereadores voltam com a resposta. O Núcleo de

Transportes é intransigente, diz que não vai baixar a tarifa. Então é declarado que a mobilização

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continua. A resposta do movimento não poderia ser outra, mas àquela altura eu não apostaria

muitas fichas que conseguiríamos ter força para fazer a tarifa baixar, ainda mais que a prefeitura

se mostrara de uma intransigência a toda prova. Tinha receio de que nos dias seguintes a

mobilização perdesse força.... Mas a queda de braço tinha sido lançada.

Quando voltávamos ao TICEN, Marcelo Pomar, da JRI e um dos líderes/porta-voz do

movimento, foi preso por policiais à paisana ao se afastar da manifestação para dar uma

entrevista. Há pelo menos um ano ele já estava sendo perseguido judicialmente – a máfia dos

transportes também conta com um braço no judiciário. Pesando diversas acusações sobre ele e

um interdito proibitório, resquício da ditadura que o impede de participar de manifestações

públicas. Solto no mesmo dia, mas sob a condição de não participar das manifestações, proibição

essa que pesa sobre ele nos próximos dois anos. Como se não bastasse Marcelo foi ameaçado de

morte, e foi aconselhado por um vereador amigo e pelo Secretário de Segurança Pública do

Estado a sair de circulação. Era uma oligarquia bandida, construída na ditadura e o interesse

capitalista que envolve milhões de reais por mês que estava sendo ferido.

Voltamos a nos concentrar diante do TICEN, ocupando as duas pistas da Paulo Fontes.

Nunca tivemos problemas com a polícia para obstruir essa avenida naquela altura. O TICEN

estava virando uma espécie de antitotem, reunindo uma juventude em torno dele, uma juventude

que não tem lá muita coisa a fazer ou excitante numa cidade como Florianópolis. Lembrava-me a

estátua Lieverdje, na praça Spui em Amsterdã, antitotem em torno do qual surgiu o movimento

Provos nos anos 60, com seus happenings e confrontos com a polícia.

Alguns problemas ocorreram desde segunda-feira em frente ao TICEN. Adolescentes que

foram chutados na cara, que receberam spray de pimenta etc. Por vezes havia tentativa por parte

de manifestantes de invadir o terminal. Na quarta, após um aroma de spray de pimenta no ar,

resolvi fazer minha refeição, já com a garganta temperada. Na esquina da lanchonete encontrei

alguns compas sentados, gazeando a revolução.

Voltando ao antitotem, o clima era um tanto tenso. P2 e capangas contratados pela Cotisa (o

consórcio da empresas de transporte da cidade) eram constantes entre os manifestantes em todos

os dias. Esses capangas, seguranças contratados para causar tumulto e tensão na manifestação,

jogavam rojões no meio de nós e na polícia. Em dias posteriores a própria polícia prendeu alguns

deles. Um segurança de uma boate revelou que alguém lhe havia oferecido dinheiro para

desempenhar esse trabalho sujo mas não aceitara, e que reconhecera alguns de seus companheiros

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de profissão entre os manifestantes. Procurou redes de TV para fazer tal denúncia mas,

obviamente, não era tema que interessava a grande imprensa local, totalmente empenhada em

exigir repressão aos manifestantes e apoiar a prefeitura e os bons lucros dos capitalistas.

Além da polícia, era uma verdadeira milícia armada que a população insurgente teria que

enfrentar. Os seguranças dos terminais, fardados e vinculados à empresa de segurança Ondrepsb,

certamente estavam ganhando um bom extra para agir da forma como estavam agindo, jogando

inclusive rojões no meio de manifestantes. Alguns deles foram também presos pela polícia

portando arma de fogo. O uso de coquetéis molotov e a explosão de latões de lixo pela cidade

fizeram parte do repertório da milícia das empresas/prefeitura, com o intuito provável de

provocar pânico na população e maiores medidas repressivas contra o movimento.

Seria no anoitecer de quarta-feira, dia 30, que ocorreria o primeiro grande confronto com a

polícia. Rojões estouravam no meio dos manifestantes em frente ao TICEN e na polícia que o

separava dos manifestantes. Pedras e rojões eram atirados contra ela. Vi um dos que jogaram um

rojão. Fui dar uma bronca, porque um avanço da polícia iria machucar as pessoas que estavam na

frente, despreparadas, e não ele que covardemente jogava a bomba de trás. Não acho que ele

estava sendo pago para fazer aquilo, mas não é descartável tal hipótese. Acho que era um

popular, certamente não de classe média, que queria expressar sua indignação de alguma forma, e

via ali uma oportunidade. Enfim a polícia avançou, quem era pego era espancado... espancado até

a delegacia e mesmo depois de ser solto. Bomba de gás lacrimogêneo, bomba de efeito moral,

bala de borracha, cães, tropa de choque, corre-corre, e eu com minha bicicleta amarela. Cidadãos

respeitáveis de classe média que passavam pelas imediações do mercado público aconselhavam

que jogássemos as pedras por cima do camelódromo, para ficarmos protegidos. Mas eu dizia que

apenas alguns poucos estavam atirando pedras. Uma adolescente está desmaiada no chão,

provavelmente efeito do gás. Um compa me oferece vinagre, não, vinagre é para a salada...

Finalmente algo excitante na cidade e a última coisa que eu quero agora é que o vinagre tire o

cheiro da guerra de classes.

O pessoal finalmente dispersa. A avenida Paulo Fontes continua obstruída pela polícia,

apesar de não estarmos mais lá, o que me faz realmente achar que o motivo do avanço da polícia

foi dispersar a manifestação para que eles – policiais – não fossem alvo de pedras e rojões.

Afinal, todos os outros dias a polícia nunca tentou ou quis nos retirar dali.

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Populares indignados com a brutalidade policial, centenas deles, ocuparam as imediações

da Paulo Fontes em frente ao TICEN e começaram a xingar e gritar contra a polícia e os

comandantes. Foi bonito ver isso... no fundo era todo o povo que se manifestava, era difícil

separar manifestantes da população. Algum tempo depois os estudantes voltaram para frente do

TICEN.

As cenas do confronto fizeram as manifestações ganharem novamente o noticiário nacional,

e ao contrário do que se poderia imaginar, fizeram com que mais pessoas aparecessem no dia

seguinte.

Dia 1 de julho

Ao contrário do que eu apostaria no início da semana, o movimento aumentava a cada dia

que passava. Cinco mil pessoas fecharam os túneis que ligam o centro ao Saco dos Limões e

depois fecharam as duas pontes que ligam a ilha ao continente por cerca de vinte minutos. O

trânsito no centro, e conseqüentemente na cidade, estava caótico, assim como o transporte

coletivo.

Nesse dia resolvi deixar a bicicleta em casa, até porque ameaçava chuva, e ir ao centro de

ônibus para sentir como estava o trânsito e o clima dentro dos ônibus. Entrei por trás sem pagar.

As pessoas reclamavam do caminho que havia feito o motorista, não desviando das áreas paradas

e congestionadas. Ouvi alguns populares dizerem algo que já havia ouvido desde o primeiro dia

de manifestações: que depois de aumentada a tarifa não adianta protestar. Seria entre as pessoas

paradas no trânsito que evidentemente poderia se encontrar mais opiniões e resmungos contra as

manifestações. Mas tratava-se acima de tudo de uma reivindicação alicerçada no desejo e

indignação de praticamente toda população. Não era incomum ouvir casais que passavam

dizerem para nós que “tem que queimar todos os ônibus” e coisas do tipo. Muitos transeuntes

sempre pararam para dar ao menos apoio moral. E com o passar dos dias foram aparecendo

pessoas novas, que não haviam aparecido nos dias anteriores. Depois que a “revolução” já

começou é fácil ser “revolucionário”. Muita gente de sindicato, ou pessoas mais velhas de

esquerda e de esquerda mais velha, ou mesmo alguns jovens mais acomodados, sentindo que o

movimento não era uma coisa qualquer, mas estava sacudindo a cidade e tinha fôlego,

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começaram a aparecer nas manifestações. O único sindicato que esteve desde o dia 28

participando ativamente através de alguns militantes foi o SINTUFSC.

As manifestações começaram a atrair também os jovens que vivem nos morros – elas

começaram a contar com verdadeiramente todos os segmentos da população. Certamente foi o

teor radical das ações diretas e até mesmo o confronto com a polícia que atraíram os jovens que

moram nos morros do centro e imediações. Certamente não seria uma passeata com algodão doce

que faria eles aparecerem.

Cheguei às 17h horas no TICEN, já chovendo. Antes de sair da Plataforma A percebi que

não havia seguranças nela, e estudantes aproveitavam para passar por baixo da catraca, motoristas

e cobradores se divertindo com a situação. Ouvia-se estouros nas outras plataformas e corre-

corre. A gurizada estava pintando e bordando. Praticamente não se via polícia.

Saí para a Paulo Fontes, fechada ao trânsito de automóveis. Uma adolescente estava

desmaiada no chão, nada incomum naqueles dias. Não vi polícia. Não havia grande concentração

de manifestantes, mas eles circulavam... a sensação era de que a cidade era nossa, realmente

nossa. Um ônibus velho foi estacionado em frente ao TICEN, área liberada pelos manifestantes.

Parecia ser proposital, um boi de piranha esperando para ser apedrejado. Logo os manifestantes

perceberam isso, ninguém atirou pedra. Um companheiro gesticulava para que o motorista desse

ré e saísse dali porque seria apedrejado. Um guarda municipal apareceu, pediu desculpas ao

companheiro e instruiu o motorista a dar ré e sair dali. Até a “polícia” estava pedindo desculpa

para a gente naquela altura!! Foi uma cena cômica.

Se não me engano foi nesse mesmo dia que foi formada uma Comissão de Mães e Pais Pró-

Movimento. E a OAB tomou a iniciativa de convocar e mediar uma negociação entre o

movimento e a prefeitura. A primeira reunião iria acontecer na sua sede, na tarde do dia seguinte.

Dia 2 de julho

Quando cheguei ao centro, em frente ao antitotem, fiquei sabendo que durante a madrugada

mais de vinte ônibus da empresa Canasvieiras haviam sido depredados, alguns incendiados.

Um grupo de cerca de 150 manifestantes havia se dirigido à OAB, para a tal reunião. Outro

havia ficado em frente ao TICEN. A concentração ali foi aumentando, como em todos os dias, à

medida que chegava o fim da tarde.

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Para mim foi uma tarde tensa. Conseguimos identificar alguns capangas que jogavam

bombas no meio dos manifestantes ali concentrados. Era uma situação pouco tranqüila, parecia

que algo poderia estourar (e literalmente estourava) ou alguma coisa ruim acontecer a qualquer

momento. Era necessário estar sempre atento. A própria manifestação, ou o próprio antitotem

TICEN, estava atraindo gente de todo o tipo, o que inclui porras-loucas de plantão, piromaníacos

e um povo a fim de fazer algazarra acima de tudo.

Como sempre, em torno da minha bicicleta amarela apareciam duas figurinhas simpáticas,

dois garotos que deveriam passar o dia perambulando pelas ruas, um negro e um índio. Estavam

sempre descontraídos, mesmo em um clima que eu considerava por vezes tenso. Imagino que o

clima de repressão e violência é o do dia-a-dia do pobre que vive nas ruas, espanado como uma

sujeira de todos os lugares. Provavelmente não havia nada diferente para eles ali do que o perigo

do dia-a-dia. Muito provavelmente ali eles estavam até mais seguros do que normalmente. Os

dois garotos eram talvez o melhor exemplo do futuro do brasil, e ao mesmo tempo mostravam

seu passado no seu rosto, nos seus traços, na sua cor de pele.

Com a volta daqueles que haviam ido à OAB e com a grande concentração que se formava

lá pelas 18h, as cerca de quatro mil pessoas resolveram ir à ponte. Dessa vez a idéia não era parar

na ponte, mas ir por uma e voltar pela outra, ocupando todas as pistas de cada uma. Foi ao todo

uma hora e meia de travessia, e mais uns quinze ou vinte minutos em que as duas pontes ficaram

fechadas. A polícia parou o trânsito para que entrássemos na ponte Colombo Sales. Achei tenso

também o percurso. Gente infiltrada certamente havia, fora atitudes inconseqüentes que poderia

surgir de dentro da manifestação. E em cima da ponte o resultado de um corre-corre poderia ser

catastrófico.

Quando estávamos na metade do retorno à ilha, pela ponte Pedro Ivo, centenas de

motoqueiros e motoboys alucinados vêm ao nosso encontro, por trás. E eu estava bem ao fundo

da manifestação. Em polícia nunca dá para confiar... eles teriam liberado o trânsito com a gente

ainda em cima da ponte? E para completar, nas palavras de Skárnio, “a situação se agravou

quando uma ambulância partiu da Ilha para o continente [em meio à passeata], provavelmente

para abrir caminho ou para recolher possíveis feridos em uma ação friamente calculada, pois o

veículo estava vazio” (www.sarcastico.com.br). Tivemos que fazer um cordão de isolamento e

parar de caminhar para nos protegermos dos motoqueiros que queriam a todo custo furar a

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passeata e passar. Era uma situação muito tensa e quase surreal. Uma centena de motoqueiros

acelerando desesperadamente e tentando forçar passagem.

Depois de cerca de dez minutos apareceu o capitão da polícia e um policial para contornar a

situação. Prosseguimos e voltamos à frente do TICEN. O sinal talvez mais evidente de que as

manifestações contavam com vários segmentos da população, era o fato de algumas câmeras de

vídeo e máquinas fotográficas terem sido expropriadas dentro da própria manifestação, por

pessoas que participavam dela.

Para mim o dia havia acabado. Mas tinha muita gente com adrenalina sobrando ainda.

Passado aquele dia tenso sem que nada de ruim tivesse acontecido, pressenti que era hora de não

dar mais sopa para o azar. Acabei indo embora cerca de uma hora depois. Em casa soube do que

acontecera lá no TICEN ainda naquela noite: a segunda e maior batalha.

Ouvi diferentes versões de como tudo teria começado. Manifestantes jogando rojões nos

seguranças do terminal, infiltrados jogando rojões, seguranças retirando supostos manifestantes

dos ônibus e espancado-os, assim como espancando qualquer um que eles achassem que fosse

manifestante e que estivesse na fila do ônibus. O fato é que se criou uma batalha entre a milícia

das empresas e manifestantes, dentro e fora do TICEN. A polícia estava ausente. Havia até

mesmo seguranças encapuzados perseguindo as pessoas dentro do terminal. Eles estavam

fazendo muito mais do que um simples serviço de defesa de patrimônio. Perseguiam

manifestantes até mesmo na rua. Pedras eram atiradas dos dois lados. A fachada de vidro da sede

da Cotisa foi destruída a pedradas. A polícia só chegou bem mais tarde. A tropa de choque foi

para cima dos seguranças, e não dos manifestantes, para separar a briga. A partir daí começou

também uma perseguição aos manifestantes pelo centro da cidade. Mais uma vez a batalha fez

Florianópolis aparecer no noticiário nacional.

No dia seguinte, sábado, houve uma reunião do movimento, ou de parte dele. Nela foram

tiradas comissões: segurança, comunicação, acampamento, cultura, articulação...

Uma grande manifestação seria preparada para quinta-feira, dia 8 de julho, com fechamento

simultâneo de todos os terminais. A idéia era trazer mais de dez mil pessoas ao centro da cidade

às 17h, o que não é pouco para um município com pouco mais de 300 mil habitantes. O ultimato

seria dado à prefeitura, se até quinta-feira a tarifa não baixasse...

A terça e a quarta seriam dias preparatórios para quinta-feira. Dia para se passar nos

colégios, chamar as pessoas etc. Mas as mobilizações na frente do TICEN eram diárias, elas se

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tornaram rotina, não precisavam mais de chamado, as pessoas simplesmente apareciam lá para

apoiar e se manifestar.

Dia 5 de julho

Era segunda-feira, depois de uma parada de fim-de-semana os protestos voltaram. As

negociações na OAB estavam sendo inúteis. Não havia outro modo do movimento parar sem que

as tarifas fossem reduzidas aos valores anteriores. Até porque aqueles que se sentavam à mesa de

negociação não eram delegados do movimento. Qualquer um poderia se apresentar como sendo

do movimento e sentar à mesa.

O clima em frente ao TICEN estava bastante calmo. Praticamente não havia policiamento e

parecia que as empresas/prefeitura haviam desistido da estratégia de contratar capangas para

jogar bombas entre nós. Alguns colégios do centro começaram a liberar os alunos mais cedo para

que eles não engrossassem a concentração que se formava por volta de meio-dia.

Bastavam uns poucos gatos pingados sentarem-se ao chão da Paulo Fontes para que a

polícia já interditasse a rua com cones. Pelo meio da tarde fomos em passeata pelo centro da

cidade até o prédio da prefeitura, onde permanecemos do lado de fora por cerca de quarenta

minutos. Éramos cerca de trezentas pessoas, eu acho, e a polícia nem sequer nos acompanhou –

havia poucos policiais pelo centro. No caminho se cantava: “chora prefeitinha, prefeitinha chora,

chora prefeitinha tá chegando a sua hora”; “não é mole não, dois e sessenta é o quilo do feijão”;

“não é ladainha, três reais é o quilo da tainha”; “ilha da magia, tem que ser mago pra pagar essa

quantia”; “puta que pariu, é a tarifa mais cara do brasil”, entre outros gritos de guerra.

Em frente ao TICEN um tapeceiro, morador da Armação, fez questão de parar e fazer com

que o ouvíssemos. Parou para dizer que toda a comunidade da Armação nos apoiava, nos

admirava e estava contente por ver que tinha gente lutando por eles, já que a maioria não podia

estar na luta por, como ele, não poder escapar do trabalho. Foi o apoio moral mais profundo e

emocionante que ouvi em todos os dias, tanto pela forma quanto pelo conteúdo.

O dia terminou com uma reunião no auditório da Catedral, comparecendo pessoas de várias

entidades que apoiavam o movimento. Foi um culto ecumênico mais do que qualquer coisa. A

grande manifestação para quinta-feira era um compromisso de todos. A cor alaranjada, por não

ser de nenhum partido, foi escolhida como cor do movimento (na reunião de sábado isso na

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verdade já havia sido tirado). Naquele mesmo dia à noite foi montado um acampamento no

canteiro central da avenida Paulo Fontes, em frente ao TICEN.

No dia seguinte a manifestação mais destacável ocorrida no centro foi o sopão preparado no

acampamento pela Comissão de Mães e Pais, para expressar o apoio que davam ao movimento.

Mas houvera também apresentações de maracatú e capoeira diante do antitotem.

Dia 7 de julho

Após participar da operação catraca-livre na UFSC, fui ao centro, ao encontro do antitotem.

No final da semana anterior a prefeitura se sentiu obrigada a começar a formular um

discurso de revisão das tarifas, embora extremamente modesto e com a intenção de causar cisão

na população. Dizia que era possível alguma redução das tarifas se estas fossem subsidiadas pelo

município, mas para isso teria que tirar dinheiro do subsídio de creches e escolas. Mentirosa da

prefeita: as creches já não recebiam subsídios da prefeitura, e várias comunidades já haviam

protestado contra isso no último ano! A tentativa era claramente de fazer com que a população

preferisse a não redução das tarifas. No início da semana a prefeitura acenou com a possibilidade

de reduzir em 6% as tarifas caso o município assumisse uma dívida da Cotisa, fazendo com que

as empresas não precisassem mais pagar a taxa de utilização dos terminais. Todas essas

“propostas” significavam o repasse de dinheiro público para as empresas privadas. Era

impressionante como o “poder público” se constituía no principal porta-voz dos interesses

privados, sem a mínima consideração pelo interesse da população, nem em retórica. As planilhas

de custo, forjadas pelas empresas, eram o principal argumento da prefeitura. Tratava-se para ela

de uma questão puramente técnica. Segundo essas planilhas as empresas estariam operando há

meses com prejuízo (sic). A escolha da planilha das empresas, e não da planilha de custo de vida

do João da Silva, para calcular o valor da tarifa, certamente não é uma questão técnica. No

mínimo, se essas planilhas mostravam que não se tratava de ganância e superexploração

(acreditando-se que elas não eram forjadas), tratava-se então de uma incompetência

administrativa sem tamanho, pois o transporte coletivo estava custando o mesmo que o transporte

individual e com gasto de tempo pelo menos três vezes maior para o usuário!!!

O ultimato já havia sido dado à prefeitura. Estava sendo convocado um dia de

megamanifestações para quinta-feira, um dia de desobediência civil, catraca-livre, fechamento de

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todos os terminais... A cidade vivia quase um clima pré-insurrecional. O governo do estado

decretou ponto facultativo para os funcionários estaduais. Sabendo disso, o mesmo fez a

prefeitura em nível municipal. A sede da prefeitura não iria funcionar e os funcionários não

deveriam ir trabalhar no dia 8. A Câmara dos Dirigentes Lojistas orientou os comerciantes do

centro da cidade a não abrirem as portas na quinta-feira. O CEFET e o Instituto Estadual de

Educação (as duas principais instituições de ensino públicas secundaristas) suspenderam as aulas

para aquele dia. O mesmo fizeram todas as escolas e colégios municipais e estaduais. Havia

boatos de que as empresas não colocariam os ônibus para circular. De fato vi alguns ônibus serem

retirados para as garagens na noite de quarta-feira. Motoristas e cobradores pediram para não

trabalhar na quinta-feira, com medo do que poderia ocorrer.

Às 19h de quarta-feira eu estava na OAB, para gravar mais uma reunião de “negociação”.

Ela havia apresentando uma proposta para a prefeitura: o retorno da tarifa ao valor anterior no

prazo de um mês, para que a cidade voltasse ao normal e para que nesse tempo se chegasse a um

acordo. Nenhum representante da prefeitura apareceu à reunião para dar uma resposta. Havia se

esgotado a mediação da OAB.

Por volta das 22:30h sai a notícia de que um juiz federal havia suspendido o reajuste das

tarifas por 30 dias, a pedido da OAB. Segundo o presidente da OAB de Santa Catarina, tal

medida cautelar seria preparatória para uma ação civil pública que a entidade iria impetrar na

Justiça. A medida cautelar expedida pelo juiz federal teve como base o clima de combate e a

onda de protestos instaurado na cidade. Mais uma vez foi ação direta em massa que fez a

diferença.

A suspensão do reajuste, embora temporária, saiu pouco antes que o prazo final dado pelo

movimento à prefeitura se encerrasse.

Dia 8 de julho

Chuva o dia inteiro. Além disso a liminar expedida no dia anterior fez daquela quinta-feira

um dia tranqüilo, bem longe da possível insurreição que espreitava. Somente o terminal da

trindade foi fechado. Mas mesmo com o tempo ruim e com a vitória do movimento, embora

ainda um pouco incerta, mais de mil pessoas foram ao centro para a manifestação. Basicamente

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ela consistiu em apresentações musicais e alguns discursos no palco, além de uma passeata por

algumas ruas do centro.

O pessoal do hip hop havia organizado o show para quinta-feira. Racionais MCs, MV Bill e

Gog estavam na lista dos convidados, mas apesar de não pedirem cachê para se apresentar, eles

acabaram não podendo vir. Porém as bandas de rap da cidade não deixam nada a dever para as de

fora. Um dos pontos mais interessantes desse movimento popular contra o aumento das tarifas

talvez tenha sido essa ligação que acabou acontecendo entre os jovens do morro e os debaixo

(rapers e rockers?). Difícil vê-los participando juntos dessa forma, numa mesma causa, num

mesmo momento.

Voltando para casa, um integrante de uma das bandas de rap morreu na Via Expressa num

“acidente de carro”. Estranhamente nada foi noticiado pela mídia, algo incomum quando se trata

de morte no trânsito em Florianópolis.

A liminar que suspende o aumento da tarifa foi a deixa para a prefeitura sair menos mal de

uma situação insustentável. Logo ela informaria que não iria tentar cassar a liminar, com o

discurso de que “a justiça é para ser acatada, e não discutida”. A não cassação da liminar e tal

discurso deixam claros que a prefeitura se via obrigada a revogar o aumento das tarifas pela força

da ação direta e desobediência civil popular. A liminar fez com que as tarifas fossem reduzidas

sem que a prefeitura tivesse que admitir que perdera a queda de braço com a população

insurgente: a redução da tarifa teria sido assim, pelo que quer fazer transparecer a prefeitura,

conseqüência de obediência à Justiça e não de um constrangimento vindo da ação direta nas ruas.

No final das contas, a liminar safou a prefeitura de uma derrota pior e mais explícita.

A mídia, numa tentativa de minimizar o efeito pedagógico que essa vitória da população

organizada e em ação direta certamente produziu e produzirá, não pára de publicar matérias nas

quais se diz que serão cortadas linhas, diminuído horários e haverá uma queda da qualidade do

serviço (que não consigo imaginar no que exatamente consistiria já que o serviço já é péssimo). A

mensagem que os órgãos da grande imprensa tentam passar é de que o povo nunca ganha, de que

é impossível lutar e ganhar dos tubarões do capital; se o povo arranca algo de uma mão logo eles

retomam com a outra. Essa luta, mesmo pontual, talvez não tenha acabado, portanto.

Sexta-feira, dia 9 de julho, Florianópolis voltou a ser a mesma cidade chata de sempre,

aparentemente. Só aparentemente, porque sem dúvida a guerra da tarifa ficará na memória

coletiva, e a experiência de uma vitória nas ruas ficará no imaginário. Pelo menos por uma

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geração não haverá mais aqueles que dirão que não adianta protestar depois que as coisas estão

“consumadas”. Embora a oligarquia tenha escapado do dia 8 de julho, que poderia ser muito bem

nosso 1789, ela sofreu uma derrota histórica, que pode ter sido o início de sua queda definitiva.

Mais do que o valor anterior da tarifa, o povo retomou sua força coletiva, a consciência de sua

capacidade. Algo que vai muito além de cifras.

É nesses momentos de luta que aparecem os contornos de uma “luta de classes”, onde pólos

antagônicos se tornam bastante nítidos. Mais do que nunca, parece que hoje em dia as classes só

existem na luta. Uma política de classe, ou classista, se quer ter algum sentido, só pode ser uma

política de luta social, e não uma política identitária. Só é possível um reconhecimento de classe

quando se está imerso na luta, e não antes disso. O reconhecimento do pertencimento a uma

classe não é pré-requisito para a luta, mas sim o contrário, a luta é que é um pré-requisito para o

reconhecimento de pertencimento a uma “classe”.

Parasitas

Quando um movimento ganha força e proeminência aparecem certamente não poucos

parasitas para tirar proveito. Existem vários tipos de parasitas de movimentos. Existem aqueles

que não acrescentam nada e só sugam. Existem aqueles que de fato ajudam, mas também tentam

utilizar o movimento em benefício individual e de sua organização, mesmo o prejudicando em

certo sentido. Existem ainda aqueles que embora não sendo parasitas, caem de pára-quedas e, por

não terem a devida humildade para ouvir mais do que falar, acabam contribuindo mais para

embolar o meio de campo do que qualquer outra coisa.

Bandeiras de partidos sempre foram rechaçadas por todos os manifestantes. Parece que o

pessoal do PSTU não entende que a única coisa que eles conseguem com suas bandeiras é atrair a

antipatia de todos. A UJS por sua vez tenta, com verba destinada ao movimento, produzir

material próprio. Tenta também utilizar o mesmo design de um logo do movimento para o logo

da sua sigla. Patifarias de grosso calibre acontecem, mas não jogarei a merda no ventilador aqui,

até porque foram elementos desprezíveis em número e em caráter que as produziram. Mas

estejamos sempre atentos.

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Mídia

Desde o primeiro dia de manifestações até o momento, a grande imprensa de Florianópolis

tem sido porta-voz incondicional da oligarquia e dos interesses das empresas de transporte. O

conservadorismo, o reacionarismo, beirando o fascismo, de articulistas e comentaristas de TV

locais deixou mais que explícito o caráter da imprensa catarinense. Era a mídia, dizendo

explicitamente o que a prefeitura não podia dizer, que pedia repressão aos manifestantes. Tudo, é

claro, em nome do “direito de ir e vir” e da “liberdade de locomoção” (evidentemente era

exatamente por esse “direito de ir e vir” e pela “liberdade de locomoção” que parte da população

tinha tomado as ruas, afinal o tal direito de ir e vir estava caro demais: seis reais!!!).

A prefeitura só podia contar no final das contas com a mídia, que lhe foi mais que fiel o

tempo todo. Procurando os juristas mais conservadores para darem as opiniões mais fascistas e

distorcendo e mentindo deslavadamente sobre as manifestações e sobre o transporte coletivo a

mídia fez o que pôde, mas inutilmente, para derrotar o movimento e confundir a população. Sem

dúvida a análise das reportagens e comentários que apareceram na grande imprensa de

Florianópolis durante o movimento contra o aumento da tarifa poderia encher dezenas de

páginas. Em suma, a mídia foi mais canalha e fascista do que a própria polícia e o governo do

estado.

Pressionada pela revolta popular a prefeita Ângela Amim gastou milhões de reais do

dinheiro público para comprar horários comerciais inteiros nas TVs locais para explicar o

inexplicável, divulgar suas mentiras e tentar confundir a população.

Mas o movimento também tinha sua mídia. A Rádio de Tróia, uma rádio livre com alcance

nos bairros em volta da UFSC, divulgava notícias e informes das manifestações, muitos ao vivo.

O Centro de Mídia Independente teve um destacado papel. Além da publicação de reportagens,

informações, fotos e vídeos no site, praticamente todos os dias saíram o CMI na Rua: uma página

A4, com tiragem de várias centenas de exemplares, contendo as informações do que acontecera

no dia anterior, do ponto de vista do movimento. O próprio chamado para a manifestação do dia

28 de junho foi feito também com colaboração do CMI na Rua, colado às centenas pela cidade. O

site do CMI foi referência para o movimento, e mesmo para quem, na cidade, simplesmente

queria acompanhar o que acontecia. Foi tão importante e tão acessado que soubemos, por fontes

seguras, que houve tentativa de hackeá-lo por parte das forças conservadoras, capitalistas e

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reacionárias contra as quais lutávamos. Além da Tróia e do CMI havia também o projeto

Sarcástico (www.sarcastico.com.br), cobrindo as manifestações.

Todo material informativo produzido pelo movimento era muito bem acolhido e até mesmo

procurado pela população, que parecia não engolir o discurso da prefeita e da grande imprensa,

esperando ler algo que se adequasse à sua experiência cotidiana como usuário explorado e

humilhado pelas empresas de transporte coletivo. Panfletos foram produzidos de forma

autônoma, sem sequer assinatura de siglas ou pessoas.

No dia 7 de julho saíram 100 mil cópias do Jornal do Ônibus, do Fórum de Transporte,

desfazendo as mentiras pregadas pela Ângela Amim e pela mídia em relação ao tema. Na noite de

8 de julho saíram ainda 4 mil cópias do jornal do movimento, distribuídos no dia seguinte.

Repressão

A atuação da polícia foi um tanto dúbia e contraditória durante os dias de manifestação. A

agressividade é algo inerente a sua própria função. Função essa que sabemos muito bem é

também a de reprimir movimentos sociais, como em qualquer parte do mundo. São sim e sempre

foram cães de guarda da burguesia, e quando soltos por seus donos vêm morder babando de

raiva.

Nos primeiros dias a polícia se mostrou mais preocupada em nos reprimir, muito embora

não com o mesmo afinco que teria se estivesse na mão do governo anterior, isto é, do Esperidião

Amim (PP). O que não significa também que ela não tenha operado todas as barbaridades típicas

e dignas da polícia: espancamentos durante a prisão, no caminho para a delegacia, dentro da

delegacia e mesmo depois do indivíduo ser liberado. Spray de pimenta nos olhos de crianças de 9

e 10 anos de idade, ou de adolescente de 14 anos já imobilizada, intimidações a pessoas que

procuravam presos em delegacias etc. etc. No entanto, não tenho dúvidas de que se a polícia

estivesse sob o comando do PP e do marido da prefeita a ordem seria usar de toda violência

necessária para dispersar qualquer manifestação e não nos deixar ocupar qualquer via. No

passado, a polícia do PMDB espancou aposentados que se manifestavam na ponte... Mesmo que

ela na mão do PMDB tenda a bater menos que na mão do PP ou PFL, só isso não explica a sua

atuação. Talvez um certo liberalismo do governador do estado, do secretário de segurança pública

e mesmo do comandante geral também tenham entrado em jogo. Mas o principal provavelmente

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tenha sido a conjuntura e o interesse político, e o fato da reivindicação ser nitidamente legítima,

mesmo para setores inerentemente conservadores como a própria polícia e políticos de primeiro

escalão. O fato das manifestações contarem em grande parte com adolescentes brancos de classe

média teve um peso fundamental também quanto ao teor da repressão. Certamente o governo do

PMDB, e talvez a própria polícia enquanto instituição, não quis sujar suas mãos e sua imagem

com sangue de adolescentes brancos de classe média. Uma repressão um pouco mais forte

poderia ter ocasionado mortes, e o governador não gostaria de ser lembrado por isso. Seria

demais ficar com esse ônus por causa das cagadas e roubalheiras dos Amim.

A partir do dia 1 de julho a polícia não demonstrou nenhuma vontade de reprimir as

manifestações. A ordem, segundo o secretário de segurança pública, era apenas acompanhar onde

fôssemos. E na semana seguinte às vezes nem sequer isso a polícia fazia. O governador,

respondendo a toda a pressão da mídia para reprimir os manifestantes, dizia resoluto que “no meu

governo a polícia não vai bater em estudante”. A função da polícia não era reprimir movimentos

sociais dizia o alto comando da polícia e as autoridades do estado. É claro que havia interesse

político que assim o fosse nessa ocasião.

Certamente se o Esperidião Amim tivesse sido reeleito a história teria sido bem diferente.

Para fazer tudo que fizemos no mínimo teríamos que ter entre nós muita gente disposta a arriscar

a vida em enfrentamentos encarniçados com a polícia. Fechar a ponte? Só depois de ganhar uma

verdadeira guerra contra uma tropa de choque.

As últimas eleições foram as primeiras em que votei, isto é, em que não “anulei” meu voto.

Fazia questão de dizer para meus amigos anarquistas, entre outros, que havia votado no segundo

turno, para governador, no PMDB (contra o PP do Amim). Evidentemente eu choquei meus

companheiros anarquistas ao dizer isso, assim como colegas de extrema-esquerda. Na época eu

simplesmente dizia: “votei no PMDB porque a polícia tende a bater menos com o PMDB do que

com o PP”. Sim, aqueles que ficaram chocados e me zoaram na época agora sabem que têm que

baixar a cabeça. Se existe algo atualíssimo, totalmente pertinente, dentro do anarquismo, é a sua

crítica ao sistema eleitoral, à democracia burguesa, ao poder (político, econômico etc.). Essa

crítica feita pelos anarquistas clássicos é, para mim, o grau mais elevado da ciência política. Mas

isso não significa nos fecharmos em dogmatismos, isto é, votarmos nulo como reforço de uma

identidade anarquista, como se a prática política anarquista consistisse em votar nulo. O

anarquista inteligente sabe jogar com a conjuntura política. E isso não significa se enfiar no lodo

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da corrida eleitoral e da política eleitoreira, fazendo campanha ou concorrendo a eleições. O voto

nulo não mudará uma vírgula na sociedade. O voto em alguém também não. Mas dependendo de

quem estiver no executivo, ou no legislativo, podemos ter mais margem de manobra para

levarmos adiante as práticas que realmente mudarão alguma coisa. Os anarquistas espanhóis

votaram em 1936 para que os presos políticos fossem soltos, provavelmente muitos anarquistas

votaram em Chirac para que Le Pen não fosse eleito e provavelmente muitos votarão em Kerry

para que Bush não seja reeleito. Para Noam Chomsky, se uma criança a menos morre de fome

num governo Democrata, isso já justifica seu voto por eles, em detrimento dos Republicanos. Se

posso, sem detrimento das práticas que buscam eliminar a tirania da sociedade, com um gesto

simples e que não me tira energia, contribuir para que, enquanto ainda não eliminamos a tirania,

estejamos sob um tirano menos pior, por que não o faria?

Sobre “violência”

Disse anteriormente que se as manifestações começaram a atrair, no centro da cidade, em

certa altura, não somente indivíduos e jovens de classe média, certamente foi porque elas não se

restringiram a passeatas com balões coloridos e algodão doce. Se apareceram jovens dos morros,

negros e brancos, foi porque eles perceberam que havia um movimento constante na rua ao qual

poderiam se unir e porque nele viam oportunidade de expressar sua indignação e seu protesto. E

obviamente aqueles que sofrem a violência econômica e social e a opressão do dia-a-dia de forma

mais crua e nua, irão expressar sua revolta de forma também mais violenta, crua e nua. Não é

segredo nem mesmo na Europa e EUA que os grupos que praticam as ações mais “radicais” em

manifestações, seja destruição de propriedade ou enfrentamento com a polícia, são os que atraem

os jovens das camadas mais pobres. Através dessas ações e grupos, eles encontram a forma de

expressar seu protesto.

Certamente não é interessante que alguém preparado para enfrentar a polícia, ou com intuito

de quebrar algo ponha em risco os outros manifestantes que estão ali despreparados para se

proteger da reação policial. Certamente pode não ser inteligente ou estratégico deixar a entender

publicamente que se compactua com a “violência” de alguns manifestantes ou de parte deles.

Mas condenar dentro do próprio movimento essas formas de expressar a revolta e o protesto com

base em preconceitos moralistas também não faz sentido. Primeiro porque isso tende a alijar uma

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camada da população das manifestações, tendendo a que elas se restrinjam unicamente a uma

classe média – o ideal é que aja espaço para todas as formas de expressão da revolta, sem que se

comprometam entre si. Segundo porque esses atos costumeiramente chamados de “baderna” ou

“violência”, desempenham, geralmente, um importante papel. Mostram claramente aos poderes

contra os quais lutamos que as pessoas estão saindo cada vez mais da disciplina que sustenta a

ordem, sem medo de pôr algo a perder. Um movimento social que não demonstra capacidade de

radicalização é um movimento social morto, ou ao menos domesticado, que já não oferece

ameaça e perigo ao poder. E o poder só cede por medo.

Uma condenação pura e simples de certas formas de ação não tem outro fundamento que

uma certa moral fundada na educação em meio a um grupo ou classe social. Dito mais

claramente, é fruto de um moralismo pequeno-burguês incapaz de compreender as formas de

expressão de camadas mais pobres que vivem uma realidade diferente no seu dia-a-dia.

Caça às Bruxas

A prefeitura preparou um dossiê com trechos de mensagens que circularam na lista de

discussão eletrônica da Campanha pelo Passe Livre. O documento foi posto em circulação no dia

6 ou 7 de julho. Tentando “incriminar” principalmente a JRI, ele trazia uma coletânea de jargões

comunistas e revolucionários. Assinado pela própria prefeita, o dossiê expunha tanto um “complô

revolucionário” para arrepiar os cabelos de toda velhacaria da época da ditadura, quanto expunha

toda a velhacaria ditatorial da prefeitura com seus procedimentos de monitoramento de listas de

discussão de adolescentes para arrepiar os cabelos de qualquer liberal sincero. Depois de lerem o

dossiê, assessores da prefeitura fugiam em seus carros ou nem sequer iam ao trabalho ao saber

que uma manifestação se dirigia ao prédio da prefeitura; tudo por medo de serem “degolados”,

afinal, aqueles que se chamavam entre si de “camaradas”, queriam “tomar o poder”.

O fato é que a onda de protestos e revolta atraiu para a cidade agentes da CIA espalhados

pelo Brasil, e, ainda mais grave, o ódio de uma oligarquia e de uma máfia que comanda a cidade.

Certamente dezenas de pessoas envolvidas com o movimento (principalmente as da

JRI/Campanha pelo Passe Livre) já estão cientes de que estarão sendo monitoradas, grampeadas e

sujeitas a receberem ameaças. Um outro membro da JRI sofreu uma ameaça de morte na rua onde

mora de um policial fardado e com identificação, que apontou uma pistola para sua cabeça

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dizendo “você é o próximo”, para espanto dos seus amigos que testemunharam a cena. Um

membro de uma associação comunitária do norte da ilha teve que se jogar no mato ao perceber

que estava sendo seguido por um automóvel. Um dos seus cães de estimação foi morto e o outro

está desaparecido.

Enquanto isso várias outras pessoas participantes do movimento receberam também o

interdito proibitório.

Estejamos alerta.

À guisa de continuação

O movimento já foi uma vitória em si mesmo. E ainda conquistou a sua reivindicação

central. Modificou o imaginário popular. Enfrentou as forças mais conservadoras da sociedade

catarinense e lhe impingiu uma derrota. O povo daqui agora sabe que é possível conquistar o que

se deseja através da mobilização e da ação direta. Isso se vê nas ruas.

As lutas anti-estradas nos anos 90 na Inglaterra, e em especial a da M11, por exemplo,

deram origem ao Reclaim The Streets. Como será a continuidade e a evolução desse movimento

ainda é cedo para se saber.

Nos primeiros dias de manifestação, um comentarista ultraconservador e fascistóide de uma

TV local, ladrava coisas do tipo: “essa gente que fica sentada dois dias no chão não trabalha

não?”, e “essas crianças deviam estar na escola”. Quando o antitotem que pode aglutinar a

contestação passa a estar fora da “fábrica”, o trabalho passa a ser antes de tudo um meio de

controle social. Se tomar as ruas, interromper o fluxo – como fazem bem piqueteros na Argentina

e street reclaimers na Inglaterra – ganha ares de greve social na virada do milênio, é porque o

capital já não pode ser identificado ao local de “produção”, já não há separação entre produção,

circulação e reprodução: a criação de valor está difusa em todas as relações sociais, em todos os

espaços.

Mané Ludd – 13 de julho de 2004