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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros LUENGO, FC. A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 142 p. ISBN 978-85-7983-087-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. A história da higienização no Brasil: o controle, a eugenia e a ordem social como justificativa Fabiola Colombani Luengo

A história da higienização no Brasil - SciELO Livrosbooks.scielo.org/id/sw26r/pdf/luengo-9788579830877-02.pdf · fundadas e se mantiveram com o intuito de proteger a honra da fa

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros LUENGO, FC. A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 142 p. ISBN 978-85-7983-087-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

A história da higienização no Brasil: o controle, a eugenia e a ordem social como justificativa

Fabiola Colombani Luengo

1A históriA dA higienizAção no

BrAsil: o controle, A eugeniA e A ordem sociAl como justificAtivA

Apropriar ‑se dos conhecimentos produzidos pelos avanços das ciências

naturais para justificar a higiene psíquica e moral, como propunham os

higienistas, ou a depuração da raça como uma forma de abreviar a

seleção dos mais fortes sobre os mais fracos, como propunham os

eugenistas, é, a nosso entender, no mínimo um contrassenso.

Boarini, 2003, p.41

No Brasil, a história da educação começa a delinear contornos próprios e significativos entre o final do século XIX e início do sé‑culo XX, influenciada ainda pelos resíduos europeus de uma edu‑cação voltada aos cuidados médico ‑assistencialistas que, marcada pelo período pós‑Primeira Guerra, teve como grande preocupação iniciar programas que atendessem também aos órfãos, com o obje‑tivo de diminuir a mortalidade infantil.

Kuhlmann Júnior (2001) aponta o surgimento das instituições educativas infantis como consequência de articulações de inte‑resses jurídicos, empresariais, políticos, médicos, pedagógicos e

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religiosos, em torno de três influências básicas: a jurídico ‑policial, a médico ‑higienista e a religiosa. Porém, para que possamos traçar o cenário em que essas questões foram constituídas no Brasil, é pre‑ciso visualizar uma linha do tempo que nos permita refletir sobre elas, procurando compreender o contexto das relações sociais e le‑vando em consideração as influências recebidas por importantes períodos da história.

Um período muito significativo, pois deu origem a diversas questões que serão apontadas neste trabalho, é o do Brasil Colônia. Na época, os casamentos aconteciam a partir de interesses eco‑nômicos e sociais, embora muitas vezes nascessem filhos de rela‑cionamentos que não eram socialmente aceitos, como filhos de escravas com seus senhores ou filhos de casais que mantinham re‑lacionamento escondido da família, o que, inevitavelmente, cau‑sava o abandono de crianças indesejadas em portas de igrejas e casas, além de um grande número de infanticídios e maus‑tratos, o que criou a necessidade da implantação das casas de roda,3 igual‑mente conhecidas por rodas dos expostos, casas dos enjeitados, casas de misericórdia ou casas dos expostos, vários nomes para uma única instituição que tinha como objetivo caritativo ‑assis ten‑cial recolher as crianças abandonadas.

O nome roda foi dado à instituição porque a criança era deposi‑tada num cilindro oco de madeira que girava em torno de um grande eixo, construído em muros de igrejas ou hospitais de cari‑dade. Ao ser colocado, o “exposto” era entregue passando para o lado de dentro da instituição, sem nenhuma identificação, o que evitava que o depositário e o recebedor fossem reconhecidos.

Kishimoto4 traz um registro histórico no qual podemos veri‑ficar a existência de um regulamento específico destinado a essas casas:

3. Essa instituição foi criada em 1738 por Romão Mattos Duarte, com o objetivo caritativo ‑assistencial de recolher as crianças abandonadas.

4. Não foi utilizada a obra original, visto que na referência não consta o nome do livro.

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O regulamento dos expostos, aprovado em sessão de 13 de se‑tembro de 1874, especifica como obrigação da misericórdia a criação do exposto pelo tempo de um ano e meio de sua ama‑mentação e por mais cinco anos e meio, ou seja, um total de sete anos. Após o que cessa a obrigatoriedade do cuidado com essas crianças que são devolvidas a pais ou parentes, doados a interes‑sados, ou ainda, enviados ao juizado de órfãos. (Parecer da Co‑missão Especial, 1874, apud Kishimoto, 1988, p.48)

As casas de roda tornaram ‑se, então, um grande depósito de crianças enjeitadas. Segundo Costa (1989, p.164), essas casas foram fundadas e se mantiveram com o intuito de proteger a honra da fa‑mília colonial e a vida da infância. Porém, houve um abuso por parte de homens e mulheres que passaram a ver a roda como uma alternativa para encobrir suas transgressões sexuais, ou seja, es‑tavam certos de que poderiam esconder os filhos ilegítimos ou re‑jeitados num local onde seriam bem tratados, sem prejuízo da própria imagem. Com isso, a roda incitava a libertinagem, o que de‑sembocou numa superpopulação de crianças abandonadas, que chegavam muitas vezes à beira da morte a um lugar no qual obti‑nham precária atenção.

Esse foi um marco na história social da criança abandonada, tanto na Europa quanto no Brasil, que sempre recebeu forte in‑fluência europeia, até mesmo por sua dependência política.

Por conta da necessidade, surgiu um novo tipo de trabalho para as mulheres que buscavam uma forma de sustento, ser ama de leite das crianças abandonadas na roda. As amas de leite mercenárias, como eram chamadas, amamentavam sem nenhum comprometi‑mento nem higiene e muito menos afeto, o que acarretava morte prematura de muitas crianças.

No século XVII e mais intensamente no século XVIII – Século das Luzes –, houve grandes mudanças em relação à criança. Foi o período no qual começou a surgir uma nova visão de infância, até mesmo na forma de vesti ‑las, que até então era muito semelhante à do adulto. Esse período recebeu forte influência de um marcante

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acontecimento histórico, o surgimento da tipografia5 – no século XV –, pois, como diz Postman (1999), foi nesse período que a in‑fância passou a ser identificada, embora ainda sem reconheci‑mento, porque até então poucas pessoas eram alfabetizadas e não havia parâmetro entre a infância e a fase adulta, visto que todos pa‑reciam ter o mesmo nível de absorção e intelectualidade. Com a che‑gada da imprensa aumentou a necessidade da alfabetização, porém acreditava ‑se que somente o adulto era capaz de aprender, pois a criança ainda não era dotada de razão. Dessa forma, havia um marco de passagem entre a infância (ser sem razão e sem cultura) e a fase adulta (ser com razão e capaz de aprender). Podemos, então, arriscar‑nos a dizer que a noção de infância passou a ser determi‑nada não somente por fatores biológicos, mas também por fatores histórico ‑sociais.

Se até então a criança não tinha importância social, como des‑creve Ariès (1978) em sua obra clássica, História social da criança e da família, a partir do século XVII começa a existir por parte da fa‑mília um interesse pelo desenvolvimento físico ‑emocional dos fi‑lhos, começando a tratá‑los de maneira mais individualizada. Essa percepção fez surgir uma preocupação em separar o mundo infantil do mundo adulto, fazendo surgir, assim, a necessidade de escolas com o intuito de alfabetizar, para que a huma nidade saísse das “tre‑vas da ignorância”. Dessa forma, a escola passou a ser o lugar da infância e a criança deixou de aprender somente na convivência com os adultos que lhe eram próximos. Entretanto, a escola ainda era vista como uma espécie de quarentena, na qual a criança perma‑necia isolada antes de ser solta no mundo. Começou, então, um longo processo de enclausuramento das crianças (assim como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização (Ariès, 1981, p.11).

Ainda no século XVII, a razão passou a ocupar o lugar da emoção e das crenças religiosas, comportamento que fez abrir ca‑

5. Um maior aprofundamento dessas ideias pode ser encontrado na obra de N. Postman, O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

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minhos para inúmeras descobertas. A criança deixou de ser vista pela família como um adulto em miniatura ou ser incompleto, sem importância no seio familiar – um enfant, que quer dizer “não fa‑lante” (sem direito à fala). Mais tarde, no século XVIII, a criança começa a ser entendida como ser humano em processo de formação e desenvolvimento, que necessitava de cuidados específicos.

Ao olhar a criança de outra forma, a sociedade passou a se preo‑cupar mais com a saúde e o bem ‑estar infantil, pensando na im‑portância de cuidar dos primeiros anos de vida para garantir a sua sobrevivência, preparando ‑a para um bom desenvolvimento fí sico e moral. Mesmo assim, a mortalidade infantil apresentava eleva‑dos índices e a Igreja teve que intensificar ainda mais a assistência caritativa.

Influenciada pelas ideias iluministas do século XVIII, a Igreja juntou ‑se ao Estado e criaram a assistência filantrópica. Com a sociedade cristã e o Estado mobilizados para contribuir com os cuidados em relação à infância, as famílias passaram a ser culpabi‑lizadas, dando origem à ideia de eugenia.6 Ou seja, era necessário encontrar o “erro” na humanidade e, com isso, procurar aperfei‑çoar a espécie humana, corrigindo e eliminando os defeitos. As medidas de restabelecimento da ordem começaram então a ser tomadas.

Embora já houvesse novas preocupações com os problemas sociais, essas ideias ainda eram orientadas pelas leis de uma socie‑dade colonial em que a ordem, a justiça e todo o sistema punitivo eram controlados pelas ordenações monárquicas, o que muitas vezes acarretava punições violentas, que em nada contribuíam para o progresso da sociedade. Pelo contrário, as barbáries fizeram com que a população citadina adentrasse o século XIX sem grandes avanços.

6. Termo usado por Francis Galton a partir de 1883. Evolucionista, matemático e fisiologista, ele se dedicou aos estudos da hereditariedade, com o intuito de melhorar as qualidades raciais das futuras gerações tanto física como mental‑mente.

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Partia ‑se do pressuposto de que a pobreza e a promiscuidade andavam juntas e que causavam a desordem social, responsável pelo alto índice de abandono infantil e consequentemente da mor‑talidade precoce, ainda na primeira infância. Com relação a essa questão, Costa (1989) nos oferece dados sobre o panorama legal e punitivo da Colônia, relatando as duas instituições que cons‑truíram eficientes técnicas de controle para os indivíduos: a Igreja, através da pedagogia jesuíta, e o Exército. Porém, a pedagogia je‑suíta foi evitada e combatida pela Coroa portuguesa, pois contra‑riava a estratégia do governo ao pressupor o desenvolvimento da instrução e da escolarização. A velha ordem colonial resistia à ino‑vação, para que o controle servisse somente aos interesses do go‑verno, uma vez que a educação jesuíta propunha o controle por meio de normas geradas a partir dos interesses da cristandade.

Esses obstáculos só foram transpostos no século XIX, com o grande movimento de internação de crianças coordenado pela peda‑gogia leiga e a higiene médica. Com esse movimento, o Estado co‑meçou a entender que a força da lei não era suficiente para produzir indivíduos submissos. Era necessário estatizá ‑los para que tives‑sem a convicção da importância que o Estado tinha na pre ser vação da saúde, bem ‑estar e progresso da população. Nesse momento, as técnicas disciplinares saem do ostracismo colonial e co meçam a ocupar o primeiro plano da cena político ‑urbana (Costa, 1989, p.57).

Resulta desse processo a necessidade da intervenção da escola para combater a desordem social. A instituição foi criada para re‑ceber o povo, os mestiços e os degenerados socialmente, o que a princípio afastou as crianças das classes mais abastadas, pois, além de contarem com uma educação domiciliar, seus pais temiam que sofressem influências negativas das crianças consideradas moral‑mente afetadas, por pertencerem às classes e raças “inferiores”.

Costa (ibidem) também aponta que, nesse período, os jesuítas passaram a interatuar no sistema educacional, o que fez com que a educação se transformasse num aparelho disciplinar eficiente. Analisando a história, podemos perceber claramente que o apa‑

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relho disciplinar jesuítico foi para os colégios o que o dispositivo militar foi para as cidades. As técnicas de adestramento eram as mesmas, como também o culto ao corpo, que demonstrava a sani‑dade mental do indivíduo; assim, o ser capaz era o ser sadio, que dispunha de cuidados extremamente rigorosos com o corpo, inclu‑sive na alimentação.

O pensamento higienista seria, então, uma das formas discipli‑nares que surgiram com o objetivo de reestruturar o núcleo fami‑liar, mas isso só ocorre através do poder médico, que se insere na política de transformação do coletivo para compensar as deficiên‑cias da lei e entrar no espaço da norma. No casamento higienista deveriam existir três princípios básicos: o status social, uma boa saúde física e uma boa formação moral. Esses “pré ‑requisitos” para uma boa união atenderiam o objetivo principal da ordem higie‑nista ‑médica, para possibilitar condições de produzir uma norma familiar capaz de formar cidadãos domesticados, higienizados e in‑dividualizados, que se tornariam aptos a colaborar com o progresso da cidade, do estado. Enfim, da Pátria.

Pensou ‑se na escola como o local apropriado que pudesse dar continuidade à ordem social. A ética e os valores ordenavam as condutas no convívio social, modelando o indivíduo para que sua vida privada e familiar seguisse atrelada aos anseios políticos de uma determinada classe social, a burguesia.

É mais fácil visualizar esse processo quando se analisam os re‑sultados alcançados pela educação higiênica, que, embora tenha sido focalizada em um corpo individualizado, influenciou e mani‑pulou tanto política como economicamente a vida social. Mas esses resultados foram obtidos pelo controle moral, mediante o qual se ensinava que a boa educação estaria nas condutas civilizadas e no autocontrole. Essas condutas seriam conquistadas com a violência punitiva dos castigos físicos, o que produziu uma crescente ten‑dência à culpa, fazendo com que o sujeito tivesse um autocontrole opressivo sobre si.

Para Boarini (2003), a educação higiênica veio disposta a refinar e a racionalizar a primitiva sociedade colonial, gerando um pro‑

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cesso de hierarquização social da inteligência e das boas maneiras. Instalou ‑se a ideia de que o ser culto era superior ao ser inculto. Estabeleceu ‑se a razão como princípio fundamental para orientar a vida das pessoas, a fim de que se pudesse alcançar o progresso. Aos poucos, houve uma evolução higiênica da família, aumentando a disciplina, a vigilância e a repressão, que se estenderam também ao âmbito da educação. Os higienistas acreditavam que, se o controle do corpo fosse feito desde a infância, as condutas na fase adulta já estariam condizentes com o ideal desejado, segundo as normas higiênicas, isto é, uma criança bem fiscalizada seria o perfeito adulto higiênico. Porém, essas condutas não propiciavam o desen‑vol vimento da conscientização no sentido de levar os indivíduos a mudar suas visões de mundo. A ação das normas educativo‑‑terapêuticas sempre emanou de forma despolitizada, individuali‑zante, reduzindo o indivíduo a um mero produto de seu intimismo psicológico, sem levar em consideração as próprias necessidades socioemocionais.

Esse quadro passou por uma grande modificação quando as epidemias, as febres, os focos de infecção e a contaminação da água passaram a ser o infortúnio da administração colonial, que até então não se preocupava com saneamento básico. A população era des‑truída por ocasião dos surtos epidêmicos, que causavam, nos pe‑ríodos mais críticos, grande taxa de mortalidade. Tal administração culpava a sociedade, pois, sem planejamento e uma burocracia ade‑quada, transmitia a responsabilidade à população, ou seja, o povo deveria dar conta de controlar as epidemias através de suas práticas higiênicas.

Segundo Costa (1989), em 1808, com a chegada da Corte ao Brasil, houve várias modificações, pois, além da família real, várias figuras estrangeiras importantes e a “nata” da sociedade brasileira e dos profissionais da área diplomática se concentraram, aumen‑tando a população do Rio de Janeiro. A pressão da população e as exigências higiênicas da elite geraram a necessidade de mudança, o que fez com que os profissionais da área médica fossem mais solici‑tados. Entre as grandes conquistas da superioridade médica está a

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técnica de higienização das populações. Na Colônia, a conduta anti ‑higiênica da população impedia o progresso. Com o aumento de habitantes nas cidades, foi necessário pensar numa forma efi‑ciente de bloqueio higiênico para que as epidemias fossem aos poucos substituídas por uma melhor qualidade de vida.

É óbvio que controlar as doenças traria como consequência a di‑minuição de mortes, o que em qualquer aspecto significaria avanços positivos para a população. Entretanto, econômica e burocratica‑mente, a administração imperial ainda não contava com uma orga‑nização capaz de conseguir tal controle sem a ajuda de fiscais, o que acabou por delegar poderes às pessoas que viriam a atuar como au‑xiliares dos profissionais da área médica.

Esses auxiliares recebiam o nome de almotacés. Eles operavam e fiscalizavam essa área, como diz Costa (1989), com caráter vigi‑lante de ação ligada à justiça, a qual atuava no universo de punição que caracterizava todos como se fossem marginais. Essa fiscali za‑ção era descontínua, fragmentária. Não prevenia nem conscien ti zava – no âmbito social –, o que a tornava uma vigilância constante‑mente punitiva, que estigmatizava e reprimia por meio de proce‑dimentos institucionalmente legais, propiciando o que chamamos hoje de abuso de poder, o qual se dava através de tais condutas e de um olhar hierárquico.

Se antes os cuidados infantis se reduziam à assistência carita‑tiva, a partir daquele momento passou a ter outro valor. Com a ne‑cessidade da alfabetização e da entrada do homem no mundo da razão, a escola passou a ser espaço primordial da infância e seria lá o lugar mais apropriado para a medicina influenciar o comporta‑mento de cada aluno, imprimindo ali o seu poder, visto que a fa‑mília estaria distante daquelas ações e ainda seria diretamente “beneficiada” com a modificação das condutas infantis. Dessa forma, os higienistas passaram a pensar que, em vez de castigar os cidadãos, deveriam prevenir pensando no adulto de amanhã, cons‑truindo seres sujeitáveis e submissos.

A família passou a ser abordada com a justificativa de que a submissão às novas leis de conduta possibilitaria a sobrevivência da

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prole, o prolongamento da saúde e a felicidade do corpo. Deixá ‑los vulneráveis os tornaria aliados, o que facilitaria uma maior in‑fluência sobre suas crianças. Dessa forma, fica evidenciada a preo‑cupação em estabelecer parâmetros que pudessem orientar as práticas higiênicas com o apoio da família. Entretanto, aqueles que não tinham família não contavam com a supervisão médica, e sim com a vigilância policial, pela qual muitas vezes eram encami‑nhados às prisões e aos asilos.

Nesse intenso desejo de progresso, a higienização da família foi uma das propostas pensadas para contribuir com o desenvolvi‑mento urbano, tanto é que foi mais perceptível a ação higiênica nos grandes centros. A medicina se voltou para esse fim, embora de‑vamos deixar bem claro que nem todos os médicos se interessaram por essa prática médica higienista, mas os que abraçaram a causa se propuseram a modificar os hábitos através do disciplinamento, partindo de um ideal de comportamento em que todo e qualquer indivíduo que não obedecesse às normas era considerado fora do padrão desejado.

A família, mesmo quando tinha uma posição senhorial, estava sendo dominada lentamente, tomada por pequenos poderes que eram representados por agentes do Estado, responsáveis pela di‑visão dos padrões de comportamento social em legais e normativos, buscando a universalização de novos valores, principalmente o de acreditar na supervalorização do Estado em relação à família, regu‑lando os indivíduos para que se adaptassem à ordem imposta pelo poder, não apenas para abolir as condutas inaceitáveis, mas também para incorporar as novas práticas e sentimentos.

A medicina começou a atuar mais próxima das pessoas, se‑gundo uma prática filantrópico ‑assistencialista que invadia a vida privada sem que isso se configurasse um ato de desrespeito. Assim, os indivíduos acabaram permanecendo cegos, inertes e envolvidos pelo domínio estatal. Em 1829 ‑1830 houve uma ascensão signifi‑cativa desse poder, com a qual a higiene médica obteve o seu reco‑nhecimento público, impondo ‑se junto ao poder central como elemento essencial à proteção da saúde pública.

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Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicina contornou as vicissitudes da lei, classificando as condutas lesa‑‑Estado como antinaturais e anormais. Todo trabalho de per‑suasão higiênica desenvolvido no século XIX vai ser montado sobre a ideia de que a saúde e a prosperidade da família de‑pendem de sua sujeição ao Estado. (Costa, 1989, p.63)

Segundo o autor, podemos dizer que a higiene, a princípio, pa‑rece cuidar da moral e dos bons costumes da vida privada e pública dos indivíduos, mas na verdade o maior alvo da higiene sempre foi a família, ao passar a ideia de que era necessário um cuidado cientí‑fico para que ela pudesse se adaptar à urbanização e cuidar dos fi‑lhos, pois os pais eram vistos como incapazes, visto que erravam por ignorância e a família acabava por descobrir no saber higiênico a prova de sua incompetência, a qual os higienistas faziam questão de apontar. Dessa forma, a medicina passou a ser recebida e in‑ternalizada pela família, que pôde reconhecê ‑la como padrão re‑gulador dos comportamentos, brecando toda e qualquer conduta que se desviasse do padrão desejado pelos higienistas. Se o objetivo prin cipal do Estado era combater os maus hábitos entre os adultos, isso só ocorria com a intenção de que a criança fosse influenciada com hábitos saudáveis, pensando sempre no adulto do amanhã que contribuiria para o progresso.

A família passou então a ser moldada segundo o código médico e a casa converteu ‑se em local constante de vigilância de saúde, controle de doenças e de militância moral. Um modelo de regu‑lação disciplinar foi sendo desenhado e construído progressiva‑mente, invadindo a forma de funcionamento familiar e pouco a pouco foi se configurando o conceito de família “perfeita”, a fa‑mília nuclear, na qual o filho era sadio e respeitador, a mãe amorosa e dedicada ao lar e o pai responsável pelo sustento da casa.

Ao estabelecer um parâmetro de sociedade e família organizada, a disciplina idealizada pelo Estado pode passar a agir de forma mais significativa e constante, combatendo a imoralidade, os corpos in‑sanos e as atitudes corrompidas. Embora os pensamentos teoló‑

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gicos ainda se encontrassem fortes, lentamente a ciência foi conquistando território e sendo assimilada pela sociedade como uma forma de progresso e solução à saída da sociedade de várias situações de caos.

Foucault, em sua obra Vigiar e punir (2008), faz uma discussão singular sobre a ação da disciplina como reguladora dos instru‑mentos normalizadores, mostrando como essa disciplina favoreceu a docilidade com que a família se sujeitou à higiene e acabou desen‑cadeando uma nova constituição social. A higiene, representada por cientistas da área médica, chegou exercendo um papel de suposto saber que, tomado de pleno poder, recebeu licença para adentrar o seio familiar e consequentemente influenciar o funcio‑namento de outras áreas que até então não faziam parte da compe‑tência médica, como a educação.

A disciplina para Foucault tem ligação direta com o poder, pois, segundo ele, o poder é a ação das forças em detrimento de algo ou de alguém que apresenta fragilidade ou submissão em relação ao outro. O olhar hierárquico, que estigmatiza e reprime o que não é aceitável, tem como objetivo disciplinar o corpo dócil – termo usado por Foucault –, que está adjacente a uma época clássica em que houve a descoberta do corpo como um alvo de poder. Os higie‑nistas se utilizaram, em suas investidas, de um corpo que pode ser manipulado, modelado, treinado, que obedece e corresponde aos desejos dos detentores do poder que, nesse caso, estão represen‑tados pela figura médica.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esqua‑drinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nas‑cendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a ra‑pidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade)

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e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obe‑diência). (Foucault, 2008, p.119)

O autor então elucida que o disciplinamento veio não só para moldar a forma de organização familiar, como também para cobrir de domínio, através da norma, todo o corpo social que, ao ser vi‑giado e manipulado, “lubrificava” toda a engrenagem, tornando ‑se a vigilância um operador econômico determinante, na medida em que o poder disciplinar influencia a produtividade social.

Com o iluminismo, as preocupações com a infância se intensifi‑caram e se centraram na ideia de transformar a criança em “homem dotado de razão”, sempre com o objetivo de torná ‑la produtiva. Mas é no século XIX que a escola passa a ser o local por excelência da educação e da aprendizagem das crianças, submetidas aos disci‑plinamentos impostos pela instituição, com o intuito de constituir sujeitos eugênicos e capazes de dar conta de uma nova forma eco‑nômica que surgia naquele momento – a industrialização.

Já durante todo o século XIX e início do século XX, perce‑bem‑se todos os resíduos cristalizados de uma sociedade eugênica e higiênica, que passa a ter como suporte social verdades construídas ainda no Brasil Colônia. Várias iniciativas, nessa época, demons‑tram uma concepção assistencial que, proveniente de inúmeras leis, acaba por influenciar as condutas jurídicas, sanitárias e educa‑cionais, tendo sido denominada de período assistencial científico. Assim,

As primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por um amplo debate em torno da reconstrução da identidade nacional, em meio à constatação de um quadro sanitário‑‑educacional extremamente precário, tanto em zonas urbanas quanto em zonas rurais. Desencadeou ‑se um verdadeiro movi‑mento pela saúde e saneamento do Brasil, marcado pela presença da doença como o grande obstáculo a ser superado, articulada fortemente com os temas da natureza, do clima, da raça, dentre outros. (Boarini, 2003, p.45)

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Dessa forma, a infância passou a ser mais valorizada, sendo alvo de cuidados específicos por meio de um controle assíduo. Se esse “controle” do corpo tinha como principal meta obter uma infância protegida e higienizada para que houvesse a defesa da sociedade, pensando a criança como o “adulto do amanhã”, só a tinha para que esse “adulto do amanhã” viesse a ser um aparelho social eficiente, isto é, um cidadão que contribuísse para o avanço de sua nação com suas práticas progressistas e salubres. A escola se tornou o lugar apropriado para cultivar os bons hábitos na infância, cujo objetivo seria buscar a harmonização do corpo e do espírito com o alcance da disciplina.

Surge no ano de 1846 a primeira escola infantil pública do Brasil, denominada Caetano de Campos, frequentada por crianças pertencentes às classes mais abastadas. Isso significa afirmar que, se a escola primeiramente veio a surgir com o intuito de “cuidar” das crianças pobres, consideradas cidadãos em estado de risco, mais tarde veio a atender outra clientela, dessa vez sem o intuito de proclamar a ordem e modelar para o progresso, mas para manter e cultivar a disciplina que já havia sido adquirida no seio familiar. Kuhlmann (2001) relata a principal preocupação da educação in‑fantil naquela época:

A preocupação com a formação dos bons hábitos, do cultivo da docilidade, estava presente no jardim. As crianças eram alvos da constante intervenção e vigilância dos adultos; a educação moral, voltada para a disciplina, a obediência, a polidez, era o núcleo da formação, mesmo que no interior de um ambiente pe‑dagógico bastante rico e diversificado. Para ensinar a moral não se valia da coerção, mas de modelos normativos, da aprendi‑zagem de rituais para inserção social e dos exemplos de atitudes que são passados no próprio momento do ensino como, por exemplo, no momento de escolher e contar uma história. (p.159)

Além da preocupação com a saúde e a higiene, que visava ao controle das normas pelo disciplinamento do indivíduo, houve

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também todo um discurso eugênico que se criou na ciência médica, com o intuito de dar uma efetiva atenção à raça. Esta era uma questão de suma importância para os médicos, que tinham a raça como responsável pelo progresso ou detrimento social.

A eugenia funcionou como um princípio de racionalidade e em todo o processo de transição que o Brasil Colônia sofria. Entendia ‑se que as raças menos abastadas deveriam ser afastadas das outras para que pudesse ocorrer o crescimento sociointelectual da nação. Enfim, a eugenia infiltrou ‑se como um dispositivo que contribuía tanto com o disciplinamento da máquina7 quanto com a depuração da raça. A ideia do branqueamento da raça acompanhou a justifica‑tiva de que o negro estava intimamente ligado à pobreza e à igno‑rância, o que seria um perigo para o controle das doenças e da ordem social. Os higienistas, tomados por uma visão extrema‑mente biologizante e organicista, tinham como certeza absoluta que a depuração de sangues inferiores tornaria a população mais homogênea racialmente, e isso facilitaria o trabalho de alcance da civilização.

A eugenia modelando os corpos físicos (re)modelaria o corpo so‑cial, pelo “revigoramento” orgânico e pela “construção” da consciência do cidadão. Estabeleceria o lugar dos diferentes grupos na sociedade acenando ‑lhes porém com a possibilidade de outras posições assim que atingissem o branqueamento, a disciplina e a normalização. (Marques, 1994, p.44)

Sendo assim, além da família, a raça também se tornou alvo de controle e modelamento dos intelectuais, que tinham como exemplo a nobreza lusa e a sociedade burguesa europeia. A prin‑cípio, os higienistas acreditavam que o meio dominaria os indi‑víduos. Porém, após um tempo, com o aprofundamento dos seus

7. Termo usado por Foucault para representar o corpo, composto por várias “peças” elementares que se combinam.

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estudos científicos, os higienistas perceberam que somente cuidar da higiene modificando o meio, os costumes e os hábitos, além de organizar as cidades, controlar as doenças e reformular todo o con‑texto político ‑cultural não era o suficiente para fazer nascer o pro‑gresso. Era preciso cuidar de algo que independia da higiene – a genética, a semente hereditária, enfim, a eugenia.

Os higienistas procuravam o branqueamento da raça, por asso‑ciar o branco a um corpo saudável, sexualmente forte e moralmente regrado. Já o negro era ligado ao descontrole social, a um intelecto empobrecido e a uma moral e uma constituição física e mental de‑sagregadas.

A constituição familiar deveria, então, também ser “monito‑rada”, pois, se uma família era formada por pessoas de raças mes‑cladas, como poderia ser feito o melhoramento da raça brasileira? Uma raça branca para os eugenistas jamais deveria se unir a uma raça inferior. Mas como evitar essa união? Como fazer essa pre‑venção social?

A década de 1870 possui como marco a entrada significativa da influência médico ‑higienista nas questões educacionais. A escola foi vista como um local onde a criança passaria a refletir sobre a importância da virtude física e moral, e também a ter uma cons‑cientização racial, que possibilitasse associar o progresso à raça branca, recriminando o ócio e aceitando o valor do trabalho como dignificação do homem.

Se os vícios, os maus hábitos, as crenças e a ignorância cultural poderiam ser transmitidos à criança pela família, era preciso, se‑gundo os higienistas, apartar a criança de seus progenitores para que o futuro fosse pensado e mudado, embutindo ‑lhes bons hábi‑tos ainda na primeira infância, com o intuito de haver uma supe‑ração do modo de vida dos pais, fazendo dessa criança um soldado disseminador das ideias higienistas. O discurso médico apontava para a importância de uma intervenção precoce, pois a criança era vista como “cera a modelar”, na qual facilmente se imprimia a for‑ma que se desejava. Já modificar os hábitos dos adultos seria mais

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difícil, visto que, como dizia Júlio Pires Porto ‑Carrero,8 “é de pe‑quenino que se torce o pepino”.

Ver a criança como entidade físico ‑moral ainda sem forma justi‑ficava todas as investidas de instalações de hábitos, tão defendida pela sociedade médico ‑sanitarista que acreditava na importância da domistificação9 disciplinar. Essa ideia se intensificou cada vez mais no final do século XIX e início do século XX, porém é na pri‑meira metade do século XX, mais especificamente na década de 1920, que a higienização tomou força maior, havendo o processo de desenvolvimento de uma vida regulada pelos discursos e prá‑ticas médicas, sendo inclusive apoiada pelo Estado, cujo projeto era construir um movimento civilizatório rumo a uma nação prós‑pera pelo modelamento social, pois era uma população composta, em sua maioria, por analfabetos que não correspondiam aos inte‑resses das elites governantes e dos intelectuais da época.

O interesse pela infância seria então para preparar o adulto do amanhã. Vem daí o fato de as ações preventivas e educativas a ela dirigidas resultarem na criação de um homem melhorado e sadio, que viria a propagar as ideias higienistas servindo à nação, cola borando com isso para a ordem social. Se antes a criança era ma nipulada pela Igreja e pela família, agora passa a ser objeto de manipulação da ciência e o seu corpo torna ‑se alvo de mais um mecanismo de poder. A escola passou a ser vista como o meio e a criança como o fim dos alvos das ações de prevenção e saneamento, e educação e saúde se uniram para normalizá ‑la, enquanto o edu‑cador passou a representar um “identificador de anormalidades”.

Guiados pelas ideias eugenistas de Galton, Morel e Lombroso, a medicina passou a ver o professor como aliado e necessitava treiná ‑lo, desenvolvendo ‑lhe o “olho clínico” e assim torná ‑lo co‑

8. Médico psiquiatra, participou do movimento higienista e teve uma importante atuação como educador no movimento da “Escola Nova”. Nome de peso dentro da prática eugênica, foi um dos introdutores das ideias de Freud no Brasil, na década de 1920.

9. Termo usado por Foucault em sua obra Vigiar e punir (2008) para se referir ao disciplinamento do homem.

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adjuvante dos diagnósticos, partindo de um modelo positivista de normalidade que vinha escudado por um discurso científico. Patto (1991) localiza a entrada dessas ideias no Brasil, no início do século XX, com Franco da Rocha, Lourenço Filho e Durval Marcondes em São Paulo e Arthur Ramos no Rio de Janeiro. A primeira expe‑riência brasileira de instalação de clínicas de higiene mental nas es‑colas foi o “Serviço de Higiene Mental da Seção de Ortofrenia e Higiene do Instituto de Pesquisas Educacionais, fundado quando da reforma do ensino municipal do Distrito Federal instalada em 1934”, mostrando claramente uma operacionalização da influência do modelo médico nas escolas brasileiras, originado do movimento higienista norte ‑americano, que Ramos ajudou a introduzir no Brasil.

A partir daí surgiram clínicas de higiene mental nas escolas e a instituição de diversos dispositivos normalizadores: a inspeção mé‑dica, a ficha sanitária do aluno e a figura do professor soldado, cujo currículo de formação passou a ter disciplinas de conteúdo das áreas médica e biológica.

Fazendo desfilar a classe diante de si, o professor deveria esqua‑drinhar o corpo de cada aluno, examinando ‑lhe mão, unhas, cabe‑los, orelhas e, ainda, as roupas e os sapatos. Marcar a importância do asseio, explicar minuciosamente em que consiste, incentivar a repetição das noções, examinar acuradamente, chamando a aten ção para as falhas e louvando os acertos são os elementos que compõem essa prática, por meio da qual se buscava conformar os corpos e gestos infantis, produzindo comportamentos conside‑rados civilizados. (Rocha, 2003, p.49)

A instituição escola seria então um dos lugares de ação desse poder científico, que viria para “reformar” os cidadãos deste país e afastar do caminho do progresso as “enfermidades” morais. Ten‑taria construir na criança higienizada um corpo apto, constituído com vigor resultante do cultivo da educação física e dos hábitos sa‑dios. A escola torna ‑se o lugar de ação de várias disciplinas e formas

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de disciplinamento, e, como diz Foucault (2008), a disciplina fa‑brica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. É dócil um corpo que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfei‑çoado, impondo uma relação de docilidade ‑utilidade.

As normas, que vieram para diferenciar as boas das más condu‑tas e enquadrar os comportamentos considerados adequados, ti‑nham como parâmetro a ideia de anormal ou patológico. O normal vem se estabelecer como uma forma de aprisionar o aluno, que, por meio de uma educação padronizada, universaliza e iguala os de siguais, sem levar em consideração as singularidades de cada in‑divíduo.

Detectados os desvios conforme as normas, o corpo que não se comportasse de forma dócil e submissa passaria então a sofrer san‑ções normalizadoras que vinham para combater a suposta “re‑beldia”. Quais seriam essas sanções normalizadoras? A princípio, o castigo físico era o principal instrumento. A punição existia como forma de fazer o aluno obedecer a partir da dor e da humilhação, e, posteriormente, vinha o exame médico ‑psicológico do escolar, com o objetivo de sanar os “casos ‑problemas”.

Cada vez mais a educação foi se desenhando nas ideias gen e‑ticistas, para a qual a hereditariedade já trazia de antemão informa‑ções estigmatizantes sobre a criança. A eugenia, cada vez mais forte, tratava a genética como um biopoder, pensando o indivíduo como homem ‑máquina e corpo espécie, que vinha carregado de inúmeras expectativas sobre os processos biológicos, como os as‑pectos orgânicos próprios da raça. Sendo assim, os eugenistas viam a escola como um local que possibilitava a união harmônica do corpo e do espírito, podendo, pela cultura, melhorar o indivíduo e, consequentemente, a espécie. Essa visão de uma escola capaz de cuidar do corpo e da mente fazia ver como indispensável a presença de novos saberes para compor a equipe escolar, como os profissio‑nais da saúde. Assim, a escola passou a ser uma rede de saberes e poderes que, como uma teia, entrelaçavam as concepções dos de‑tentores do saber: higienistas e educadores.

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A nova palavra de ordem é a higiene mental escolar. Com inten‑ções preventivas, as clínicas de higiene mental e de orientação infantil disseminaram ‑se no mundo a partir da década de vinte e se propõem a estudar e corrigir os desajustamentos infantis. Sob o nome de psico clínicas, clínicas ortofrênicas, clínicas de orien‑tação ou clínicas de higiene mental infantil, elas servem à rede escolar através do diagnóstico, o mais precocemente possível de distúrbios da aprendizagem. A obsessão preventiva tem como lema “keep the normal child normal” (mantenha normal a criança normal) e em seu nome são criadas as “clínicas de hábitos” para crianças em idade pré ‑escolar. (Patto, 1991, p.44)

Toda essa forma de ver a educação surgiu pelo desejo de al‑cançar uma sociedade organizada e civilizada, que preparasse o in‑divíduo para o trabalho, disciplinando ‑o para que ele pudesse aceitar passivamente uma jornada laboral, pois, afinal, as institui‑ções educacionais acabaram desempenhando, segundo Sarup (1980) – grande estudioso das ideias marxistas –, um papel crucial na reprodução socioeconômica, pois, com seu caráter hierárquico, a educação sempre fez uma seleção social por meio da estratificação, que delineava comportamentos disciplinados e produtivos, o que tornaria os alunos futuramente aptos a produzir o que o capital en‑gendrava, garantindo com isso a força de trabalho necessária para o desenvolvimento capitalista do país. De acordo com Constantino & Caruso (2003), p.30, “trabalho e não trabalho estabeleciam a cisão entre normal e o anormal”.

A baixa produção ou desvios na forma de produzir implicava uma intervenção de autoridade, que fiscalizava e punia tendo como objetivo manter o alunado sob controle. A fiscalização era feita por inspeções que tinham um caráter de polícia médica e ao mesmo tempo formas de atuação de uma medicina social, própria da época.

A vigilância dos alunos, realizada por meio dos exames médicos, constituía ‑se no espaço da revista, espaço esse em que os alunos são observados por um poder que só se manifesta pelo olhar e no

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qual são levantados conhecimentos sobre o aluno, conheci‑mentos esses que são anotados, documentadas as aptidões, os vícios, as degenerescências, permitindo comparações, classifi‑cações, categorizações que servirão para a fixação de norma – de códigos médicos escolares – cujo objetivo será mantê ‑los sob controle por um lado, estabelecendo os gestos, os comporta‑mentos normais; e, por outro, inserindo e distribuindo ‑os numa população, sem tirá ‑los da especificação de ser um “caso” que poderá ser normalizado ou excluído. (Marques, 1994, p.113)

Esses dados constavam de uma ficha sanitária individual dos alunos na qual eram anotados aspectos sociológicos, antropoló‑gicos, psíquicos e pedagógicos, com a participação dos profissio‑nais da saúde e dos professores, que relatavam dados sobre a atenção, inteligência, memória, comportamentos, enfim, toda e qualquer manifestação do aluno no cotidiano escolar.

Esses registros eram utilizados como uma operação de exame, e neles havia uma comparação das crianças entre si e com outras de meio social diferente. Pode ‑se dizer que a criança passava por um processo de esquadrinhamento, em que o sistema fragmentava seu corpo e mente dividindo ‑a em si mesma, num modo de funciona‑mento panóptico, termo usado por Foucault para definir um mé‑todo de vigilância, máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder.

Essa ficha era analisada pelos médicos, que em caso de suspeita de anormalidade iniciavam um tratamento médico específico do aluno. A escola tornava ‑se então, usando novamente um termo foucaultiano, “espécie de aparelho de exame ininterrupto”, local onde se faria cada vez mais um trabalho profilático. Nesse sentido, o exame antropo pedagógico delegou ao professor a tarefa de super‑visionar para, junto com a área médica, diagnosticar, excluir ou tratar os que se desviavam da “normalidade”. Assim, a pedagogia e a medicina se articularam para fazer do universo escolar objeto do saber científico, construindo o novo homem e a nova sociedade, dando continuidade à medicina sanitarista, que surgira com o in‑

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tuito de fiscalizar os domicílios, higienizando a população e deses‑timulando o ócio.

O ócio foi outra questão que a escola tomou como importante, pois na sociedade colonial o tempo não era algo tão valorizado, coisa que numa sociedade capitalista em processo de industria lização não poderia ocorrer. Havia uma irresponsabilidade em relação ao trabalho e à diversão e isso, segundo os progressistas, precisaria ser mudado e a escola deveria contribuir para isso, modificando também os hábitos de lazer.

Essas ideias influenciaram os educadores no trabalho pedagó‑gico com crianças, pois passaram a tolher o ato de brincar e as brin‑cadeiras no cotidiano escolar, não pensando essas atividades como instrumento fundamental para o desenvolvimento infantil, mas como um gasto inútil de energia que só estimulava o descompro‑misso com a educação. Assim, o lazer na escola passou a ser um lazer proposital, direcionado a um sentido formativo, o qual só existiria com o intuito de ilustrar algum conhecimento proposto pela prática pedagógica.

O tempo passa, então, a ser instrumento disciplinar significa‑tivo, por ser “precioso” e não condizer com momentos de ociosi‑dade. Pelo contrário, deveria ser valorizado para preservar o corpo dos vícios e dos maus hábitos, que acarretariam em prejuízo do de‑senvolvimento físico e moral do indivíduo.

Se a vigilância estava presente nos diversos setores sociais, havia também todo um aparato punitivo, que cada vez mais passou a ser elaborado por normas médicas. Um instrumento punitivo sig‑nificativo foi o uso das medicações psicotrópicas, que passaram a ser utilizadas frente às más condutas, tidas como “crimes hi‑giênicos”. Esses medicamentos eram prescritos sem se saber qual efeito de fato causaria no indivíduo, fosse ele adulto ou criança. O castigo através da violência física foi lentamente cedendo lugar ao castigo simbólico, e se antes a psiquiatria se limitava a atuar no espaço hospitalar, mais tarde começou a se incorporar às ideias hi‑gienistas, deixando de atuar somente nos manicômios para lançar seus tentáculos em outras direções, como na escola.

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A medicalização da infância veio como consequência da hi‑gienização e, nesse sentido, educação e saúde se uniram como elementos inseparáveis na implantação de um programa de norma‑lização e moralização, que visava manter um forte pilar social – a ordem – pelos bons hábitos. Desde então, a educação passou a ser alvo do poder médico, consequência de toda uma história envolta nos preceitos higienistas e eugenistas.

Ao escrever este capítulo, objetivou ‑se trazer brevemente a his‑tória da infância no Brasil com o intuito de correlacionar o surgi‑mento da instituição escola, o desejo burguês da moral e da ordem e a influência médica tanto na família quanto na educação, com o re‑curso das práticas medicalizantes e biologizantes do processo de aprendizagem, maciçamente presentes no cotidiano escolar atual.

Orientados por essa preocupação e convictos de que é impor‑tante conhecer o cenário em que a medicalização surgiu, pensando na matriz principal que foi a eugenia e a higienização, propõe ‑se a discussão dos vestígios desses princípios higienistas na educação contemporânea, ou seja, podemos encontrar na realidade escolar atual condutas que ainda guardam os princípios de uma sociedade eugênica, higienista e disciplinar? Esta é uma questão que será abordada no capítulo seguinte, devido à sua complexidade.