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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 A história em cena: os espaços na trama dos historiadores Bruno Balbino Aires da Costa * Sonní Lemos Barreto * Neste ensaio convidamos o leitor a seguir os conselhos de March Bloch quando o mesmo nos sugere a farejar carne humana. Os homens aos quais se refere Bloch em sua obra “Apologia da história ou o ofício de historiador” (2001) não estão pendurados no tempo, mas tecem suas relações no espaço e é por meio desde que o tempo se torna visível. Dessa forma, acreditamos que uma maneira interessante de pensar o espaço é articulá-lo à história e a temporalidade como seus constituintes. Os lugares que despertariam fascínios no historiador, certamente não seriam aqueles que escapariam do tempo, mas lugares entendidos como palimpsestos que surgem como acúmulos de práticas e de sentidos. Podemos inferir que os espaços são construções do olhar, do falar e do sentir humano, do uso das suas práticas, sejam elas cheirosas, dizíveis, visíveis, práticas plurais; as mais diversas. Desde a primeira geração da Escola dos Analles com Marc Bloch e Lucien Febvre o diálogo entre Geografia e História se torna mais evidente. Contudo, é somente a partir da segunda geração da Escola dos Annales com os estudos de Fernand Braudel que a discussão sobre História e Espaço ganha corpo, ou seja, o espaço se torna um dos objetos da História. Fernand Braudel em sua obra o Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico à época de Felipe II (1983) assume a herança deixada por Febvre, muito embora tenha sido influenciado por Vidal de La Blache na construção do conceito de Geo-História. Nesse sentido, uma das grandes contribuições de Braudel para o conhecimento histórico é promover uma aproximação profícua entre campos do conhecimento histórico e geográfico. Esse contato dar-se com a Geo-História permitindo que o espaço possa ser encarado como uma problemática também da História. A discussão que * Graduado em História pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte UERN e Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História com área de concentração em História e Espaços da UFRN. *Graduada em História pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte UERN e Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História com área de concentração em História e Espaços da UFRN. 1

A Historia Em Cena_os Espaços Na Trama Dos Historiadores

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a história em cena

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

A história em cena: os espaços na trama dos historiadores

Bruno Balbino Aires da Costa*

Sonní Lemos Barreto*

Neste ensaio convidamos o leitor a seguir os conselhos de March Bloch quando

o mesmo nos sugere a farejar carne humana. Os homens aos quais se refere Bloch em

sua obra “Apologia da história ou o ofício de historiador” (2001) não estão pendurados

no tempo, mas tecem suas relações no espaço e é por meio desde que o tempo se torna

visível. Dessa forma, acreditamos que uma maneira interessante de pensar o espaço é

articulá-lo à história e a temporalidade como seus constituintes. Os lugares que

despertariam fascínios no historiador, certamente não seriam aqueles que escapariam do

tempo, mas lugares entendidos como palimpsestos que surgem como acúmulos de

práticas e de sentidos. Podemos inferir que os espaços são construções do olhar, do falar

e do sentir humano, do uso das suas práticas, sejam elas cheirosas, dizíveis, visíveis,

práticas plurais; as mais diversas.

Desde a primeira geração da Escola dos Analles com Marc Bloch e Lucien

Febvre o diálogo entre Geografia e História se torna mais evidente. Contudo, é somente

a partir da segunda geração da Escola dos Annales com os estudos de Fernand Braudel

que a discussão sobre História e Espaço ganha corpo, ou seja, o espaço se torna um dos

objetos da História. Fernand Braudel em sua obra o Mediterrâneo e o Mundo

Mediterrânico à época de Felipe II (1983) assume a herança deixada por Febvre, muito

embora tenha sido influenciado por Vidal de La Blache na construção do conceito de

Geo-História.

Nesse sentido, uma das grandes contribuições de Braudel para o conhecimento

histórico é promover uma aproximação profícua entre campos do conhecimento

histórico e geográfico. Esse contato dar-se com a Geo-História permitindo que o espaço

possa ser encarado como uma problemática também da História. A discussão que

*Graduado em História pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte UERN e Mestrando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História com área de concentração em História e Espaços da UFRN.*Graduada em História pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte UERN e Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História com área de concentração em História e Espaços da UFRN.

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

Braudel elabora em relação à Geo-História permite um novo olhar acerca da

temporalidade. Com essa nova categoria de análise a temporalidade transforma-se,

assim, em espacialidade até desaparecer por completo por um processo de

‘naturalização’ da História (DOSSE, 2004:128). Sendo assim, o autor traça uma divisão

tripartida do tempo que se constitui como: a longa duração, isto é, o tempo geográfico,

quase imóvel que configuraria a estrutura; a média duração, que estaria ligada às

conjunturas; e por fim, a curta duração inscrita nos eventos. A primeira temporalidade é

a mais importante para entender a concepção do tempo e de História. Se lançando a

partir da longa duração Braudel desacelera o tempo, introduzindo a abordagem da

repetição, da permanência, da continuidade.

Braudel considera que a História, cujo tempo possui uma cadência, um ritmo,

uma temporalidade mais durável e resistente à mudança, vai buscar na longa duração

aquilo que sustenta e a constitui como uma totalidade, visto que a concepção de história

do autor vincula-se a uma perspectiva global, total da história. Sendo assim, a Geografia

lhe permite valorizar a duração longa, diminuindo o peso do homem como ator da

História; este, passa a ser substituído pelo Mar Mediterrâneo, alçado à condição de

sujeito da História. Destarte, o Espaço torna-se a chave da escrita em Fernand Braudel.

O autor entende a dimensão espacial como fundamento do devir das civilizações, ou

seja, Braudel utiliza o espaço como fator “explicativo dos diversos aspectos das

civilizações” (DOSSE, 2004:129-128).

No primeiro capítulo da obra O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico à época

de Felipe II (1983) intitulado de “o meio” Fernand Braudel traça um mapa da milenar

geografia do Mediterrâneo. Nesse momento da sua narrativa, o meio, ou seja, as

montanhas e as planícies do século XVI, ou as cidades e as rotas, entre muitos outros

exemplos, demonstra a unicidade do espaço e do homem como um ser geográfico. O

autor demonstra a relação desse meio com o homem como construtor dos processos

históricos de adaptação das sociedades e civilizações ao espaço geográfico característico

do Mediterrâneo. Dessa forma, o ritmo do trabalho e da vida aparece entrelaçado a uma

lenta realidade estrutural que a condiciona. Esse meio, gerador da longa duração, que

dará uma unidade geral ao mundo mediterrânico é responsável pela homogeneidade

milenar da vida humana em torno desse grande mar. O ritmo das estações, o clima, a

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vegetação, a paisagem, a agricultura, dentre outros fatores acabam por constituir uma

integração ao complexo mundo mediterrânico.

Para compreender a dinâmica da historicidade do Mar, Fernand Braudel recorre

à análise das estruturas da História. Estas ocupam uma posição central como ambiente

explicativo dos fenômenos humanos. A estrutura nada mais é do que o meio, o ambiente

geográfico onde os diversos elementos, climáticos, vegetais, animais, formam um

equilíbrio permanente (DOSSE, 2004: 130). Desse modo, é o meio, isto é, o espaço que

produz uma vida comum, uma unidade, que a determina. O Mediterrâneo passa a ser

então uma grande estrutura, na qual se acomodam outras estruturas sociais que possuem

ligações entre si. E é a história dessas estruturas que Fernand Braudel demarca no

Mediterrâneo.

A História que Braudel traça no livro em tela não está centrada nos indivíduos,

mas no que ele denomina de “movimentos de conjunto”, observados em movimentos de

espaço, ou seja, das planícies às montanhas, do Mediterrâneo ao Atlântico. Sendo assim,

os espaços, para ele, estão em constante movimento. As dicotomias espaciais expressas

na primeira parte da obra supracitada exemplificam a concepção do espaço para o autor,

quais sejam: a oposição entre as montanhas e planícies; deserto e mar; oriente e

ocidente. Braudel enxerga o espaço numa relação de dicotomia e unidade. A unidade é

dada pela circulação, e nesse sentido, aceita os contrastes. Montanhas e planícies são

contrastantes. Sendo assim, das diferenças entre essas regiões surgem também um

conjunto de homens com necessidades diversas, montanheses e homens da cidade, de

acordo com a unidade do meio em que foram criadas, e tudo isto permite que se

estabeleça a circulação como uma estrutura desses lugares. Montanhas e planícies se

ligam, se unem pela transumância (unidade), assim como, o deserto e o mar, o

Mediterrâneo do Ocidente e do Oriente que se conectam pela navegação de cabotagem

de pequenos barcos.

Diante disso, a História seria preenchida pelos movimentos repetitivos, como a

transumância do Mediterrâneo, ou o nomadismo do deserto, que exprimiriam esta

relação permanente do homem com o meio. Considerando que, para Braudel,

movimentos repetitivos configuram as permanências e que estes movimentos são

conseqüências da lenta conquista que o homem engendra no espaço, a longa duração é,

pois, o movimento que envolve e que enquadra os demais ritmos da história, ou seja, as

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conjunturas e os acontecimentos. A longa duração é, portanto, o ritmo lento da

produção do espaço.

No livro Civilização Material, Economia e Capitalismo, Tempo do Mundo, nos

séculos XV e XVIII (1996) Fernand Braudel amplia a discussão em torno do espaço.

Entendendo as divisões do espaço e do tempo na Europa o autor se empenha em situar a

economia no tempo e no espaço ao lado dos seus co-participantes, a saber: a política, a

cultura, a sociedade (BRAUDEL, 1996: 9). Nessa obra o autor resgata, analisa e

compara o tracejo econômico concebido pelo mundo moderno tomando como ponto de

partida o espaço. Este é tomado como fonte de explicação pondo em causa ao mesmo

tempo todas as realidades da história, todas as partes envolvidas da extensão: os

Estados, as sociedades, as culturas e as economias. Seus sentidos e suas representações

não se encerram no meio, tal como acontece na maior parte do “Mediterrâneo”. O

espaço pode ser – dependendo da perspectiva adotada – político, social, simbólico e

econômico, variando em seus sentidos e suas funções. Mesmo fazendo uma análise

sobre os bens materiais/espaciais das civilizações, Braudel também analisa a relação

entre espaços políticos e econômicos contribuindo, portanto, nessa obra, para a

percepção do papel do espaço na constituição do capitalismo.

Fernand Braudel centraliza sua análise na percepção do espaço e não no

indivíduo, mas a questão central são as estruturas, ou seja, são elas que influenciam os

indivíduos, o espaço influenciando o indivíduo. Braudel fez dos homens seres

praticados pelos espaços, eles se tornam parte de uma paisagem que os explica. O

espaço é o que os informam e não o oposto.

Contudo, se em Braudel é o espaço que motiva o sujeito em Michel de Certeau

(1994) a relação História e Espaços será analisada a partir de outro viés. Para Certeau,

indo na contramão de Fernand Braudel, o espaço é um lugar praticado (CERTEAU,

2008: 202). Sendo assim, Certeau entende o sujeito como modelador do espaço; ele está

a todo instante ressignifica-o.

Michel de Certeau toma o meio urbano (a cidade) como objeto de sua

abordagem. Nesse sentido, o autor coloca sob análise duas percepções espaciais

distintas e distantes uma da outra. Os voyeurs e os caminhantes. Os primeiros

vinculados ao mundo da projeção urbanística são aqueles que vêem do alto, enquanto

que os segundos se caracterizam por serem praticantes ordinários da cidade. Os

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caminhantes ou pedestres não enxergam as práticas organizadoras da cidade habitada,

mas praticam-na cegamente atribuindo-lhe sentido. Desse modo, Certeau concebeu o

projeto urbanístico da cidade como resultado de uma tripla operação que trabalha de

forma conjunta: a produção de um espaço próprio, a distribuição de um não-tempo com

relação às tradições e a criação de um sujeito universal que é a própria cidade

(CERTEAU, 2008: 173).

Sendo assim, a cidade pensada a partir dos projetores urbanísticos se inscreve

em um plano teórico, planejado, visível; a cidade se alia ao conceito transformando-se

em cidade-conceito. Desse modo, Michel de Certeau detecta práticas estranhas ao

espaço geométrico ou geográfico das construções planejadas, projetadas, visuais,

panópticas da cidade-conceito remetendo essas práticas espaciais à outra espacialidade,

a saber: o espaço antropológico, transumante e metafórico. Certeau focaliza as práticas

que escapam, que são estranhas a esse panoptismo, embora as mesmas estejam

circunscritas a esse poder.

O espaço, portanto, em Michel de Certeau ganha uma noção do praticado, do

subjetivado, da mobilidade, sendo a atividade dos sujeitos que o qualifica. Contudo, o

espaço praticado em Certeau se encarnava no caminhar dos habitantes. Para isso, o

autor estabeleceu uma distinção entre a cidade, que considerava como uma língua, um

campo de possíveis, e o ato de caminhar que a atualizava e advinha de enunciações dos

pedestres. Esta analogia cidade/língua e o caminhar/ fala permitia valorizar os processos

de apropriação da topografia urbana pelos seus atores.

Para Certeau, esta arte do caminhar remetia especialmente à sua abordagem da

postura mística que escapava a qualquer lugar, a qualquer instituição e se encontra a um

incessante vagar. “Caminhar é perder o lugar” (CERTEAU, 2008:183). A noção de

espaço em Certeau remete a uma relação singular no mundo, a dimensão de lugar

habitado. O Lugar seria imóvel, uma ordem estática.

A contribuição de Certeau para a compreensão da relação História e Espaços

centra-se na percepção do sujeito como fabricante do espaço, abordagem que difere

daquela empreendida por Braudel em que os homens eram praticados por este. Para

Michel de Certeau o espaço é inconcluso e não definido; ele se altera. São os gestos, as

práticas, ou seja, as artes de fazer e as narrativas do cotidiano que constituem os

verdadeiros arquivos urbanos. Portanto, o espaço é tido como um produto histórico.

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

Dialogando numa perspectiva semelhante, mas ao mesmo passo divergente

daquela empreendida por Michel de Certeau, Yi Fu Tuan (1983) também discute o

espaço como constructo do ser humano. Para ele, o homem, pela simples presença,

impõe um esquema no espaço (TUAN, 1983: 42). Esse autor entende que os sujeitos

constroem suas realidades e respondem ao espaço e ao lugar de maneiras diferentes.

Influenciadas pela cultura, os sujeitos moldam seus valores baseados nas experiências

que vão adquirindo através de seus órgãos e sentidos e pelas emoções vivenciadas.

Nesse sentido, o autor introduz na discussão a noção de espaço mítico para se referir a

capacidade das pessoas de imaginar o que tem em outros lugares, de criar contextos

imagéticos para galgar segurança. Sendo assim, o espaço mítico – que varia muito de

uma cultura para outra – é construído pelo intelecto como resposta aos sentimentos e

imaginações, ignorando a lógica e as contradições, para atender necessidades

fundamentais dos seres humanos (TUAN, 1983: 112).

Ao mover-se, o ser humano vivencia o espaço. Este é organizado a partir da

postura e estrutura do corpo e das relações de distância entre as pessoas, é também

construído a partir das necessidades biológicas e das relações sociais. O espaço se firma

num eu que se move e se direciona, consciente de que não apenas ocupa o espaço, mas

o dirige e coordena (TUAN, 1983: 39). Isso significa que os pontos de referência reais

no espaço, como os referenciais e as posições cardeais, correspondem à intenção e às

coordenadas do corpo humano. Na medida em que se desenvolve, o indivíduo vai se

apegando às pessoas, aos objetos e por fim às localidades, podendo cultivar por certos

lugares, sentimentos bons ou não, de acordo com suas vivências.

O espaço, à medida que vai ganhando sentido e definição, vai se transformando

em lugar. Dessa forma, há uma inversão em relação ao conceito atribuído por Certeau.

Para esse autor, a existência do espaço está condicionado a prática de um lugar. Já para

Yu-Fu Tuan, é a prática de um espaço a partir da atribuição de sentido e de pertença que

cria um lugar.

A grande contribuição do geógrafo Chinês para a discussão sobre História e

Espaços se faz sentir a partir da compreensão de que a dimensão da organização

espacial se dá também pelo universo do corpo humano e que a distância – um termo

espacial – está intimamente ligada a termos que expressam relações interpessoais. Tuan

destaca a questão da experiência espacial a partir dos sentidos e da relação do corpo

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

com o mundo. Tais experiências são, para ele, necessidades de se entender o fazer

espacial enquanto processo de inserção direta do sujeito histórico neste. Sendo assim, o

espaço e o lugar estão diretamente vinculados à perspectiva da experiência, a

compressão de um espaço e um lugar vivido, experimentado (TUAN, 1983: 56).

Por fim, outro autor que contribui para ampliar a discussão sobre História e

Espaços é o historiador Simon Schama (1996). Ele discute o espaço a partir da categoria

paisagem. Esta pode ser compreendida, grosso modo, como uma associação de

características geográficas concretas que se dão numa região, construindo um padrão

visual formado por elementos que a caracterizam e lhe conferem uma singularidade. Em

sua obra Paisagem e Memória (1996), os elementos que conferem essa singularidade

são oriundos do espaço físico, tais como a mata, a água, a rocha. Não obstante, Shama

diz ser a paisagem obra da percepção humana; não existe por si só, isoladamente, não se

nomeia enquanto tal. A paisagem só existe a partir do momento em que ganha

significação. Ora, se os espaços, na análise de Michel de Certeau (2008) só existem

quando são praticados, em Schama, para que haja paisagem faz-se necessário atribuição

de sentido. Para ele, a memória teria a função de significar a paisagem, ou seja, de

conferir-lhe sentido e significados. Dessa forma, a paisagem é construída pela

sedimentação da memória. É a memória entendida como uma prática do homem que dá

vida e torna possível uma leitura da paisagem.

Simon Schama frisa que toda a tradição da paisagem é um produto de uma

cultura comum, que trata de uma tradição construída a partir de um rico depósito de

mitos, lembranças (memória) e obsessões (SCHAMA, 1996: 24). Não obstante, a

paisagem seja um produto de uma tradição comum entre as culturas, essa apropriação da

natureza e da paisagem não é abraçada de igual forma, ou seja, com a mesma

intensidade e o mesmo entusiasmo entre as culturas, permitindo assim uma valorização

de uma posição histórica do autor. Todavia, mesmo levando em consideração essas

variações, os mitos e lembranças da paisagem partilham duas características comuns:

“sua surpreendente permanência ao longo dos séculos e sua capacidade de moldar

instituições com as quais ainda convivemos” (SCHAMA, 1996: 26).

Portanto, o autor se propõe em cada um dos capítulos – os quais abarcam

elementos da natureza como a floresta, a montanha a água e a rocha – a fazer uma

escavação que começa pelo conhecido, isto é, pelas camadas de lembranças e

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representações até tocar a superfície natural, como por exemplo, da rocha que se formou

há séculos ou milênios e se constitui como repositório de memória. Portanto, a natureza

para Simon Schama não é algo anterior à cultura e independente da História de cada

povo. Mesmo hoje na contemporaneidade onde o meio urbano é invadido pela técnica e

pela ciência, podemos constatar a sobrevivência de mitos que, vez por outra, emergem

com toda a força primitiva no cotidiano das pessoas.

Simon Schama faz uma análise detalhada e profunda das significações atribuídas

à paisagem. Ele nos mostra que em cada árvore, cada rio, cada pedra estão depositados

séculos de memória. Identificando exemplos na história, o autor opera com a

arqueologia1 da memória, partindo de indícios do presente para identificar mitos

primordiais que permitiram a cada cultura elaborar os arranjos de compreensão e leitura

da paisagem. Fugindo de uma compreensão que perceba a natureza como um

determinante geográfico, Shama reencontra na história outras formas dos homens dela

se apropriar, que não, necessariamente, a de esgotar seus recursos. Ele a compreende

como o resultado das práticas culturais e como algo que é sempre, representada pelos

seres humanos a partir de vivências sociais específicas. Dessa forma, se faz mister

compreender que a paisagem é, antes de tudo, produto de um lugar.

Contudo, embora os autores que trabalhamos até aqui tenham divergido ou em

algumas vezes se cruzado e se tocado em algumas análises sobre História e Espaços

cada um, ao seu modo de perceber essa relação, contribuiu para a construção de uma

idéia polissêmica, múltipla sobre as espacialidades. Essa polissemia de sentidos

atribuídos aos espaços se torna perceptível com as análises empreendidas por Braudel

que toma o espaço como próprio sujeito da História, como determinante nas relações

que permeiam a História; ganha visibilidade com Certeau que percebe o cotidiano como

uma prática dos sujeitos, como invenção destes, daí a idéia dos espaços como lugares

praticados. Já em Yi Fu Tuan o espaço é analisado a partir da postura e da estrutura do

corpo e das relações pessoais, e por fim, com Simon Schama a relação História e

Espaços é percebida a partir da relação homem-natureza que se constitui como um

conjunto histórico em que o homem ressignifica, através de mitos, os estratos da

1 É válido ressaltar que o termo arqueologia não está empregado para significar as origens de um passado linear e factual, mas faz referência ao processo de sedimentação da memória, de resgatar o que existe de forma incandescente.

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natureza representado-a a partir de uma paisagem que é antes de tudo um produto de

condições históricas específicas concernentes a cada cultura.

Por fim, acreditamos que todos esses autores contribuíram de igual forma para

que as fronteiras entre o Espaço e a História pudessem ser, se não desfeitas, ao menos

atenuadas permitindo novas compreensões historiográficas acerca dessa problemática

que causa, a nós historiadores, ainda muito estranhamento e incerteza.

REFERÊNCIAS

BLOCH, March. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2001

BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-

XVIII. O Tempo do Mundo (3). São Paulo: Martins Fontes, 1996.

____. Mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Felipe II. Lisboa: Martins

Fontes, 1983.

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes,

2008.

DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 2004.

SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.

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