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A Hora e Vez de Augusto Matraga (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa A Hora e Vez de Augusto Matraga faz parte de Sagarana que é uma coletânea de novelas e novelas, nove no total. Todos os textos apresentam a tendência de Guimarães Rosa à pesquisa permanente da linguagem regional, mantendo-se ligados ao instrumentalismo. Todos os novelas se passam , como pode ser comprovado pelo cenário, no interior de Minas, existindo farta nomeação de lugares e regiões. Essa verossimilhança serve de primeiro elemento catalisador das narrativas. Mas há outras formas de agruparmos as narrativas. Estilo Sagarana, na qual se encontra a novela A hora e vez de Augusto Matraga, não apenas está inserida nas perspectivas instrumentalistas (linguagem como instrumento constante de pesquisas), bem como é uma das obras iniciadoras da terceira fase. A hora e vez de Augusto Matraga aponta para a tendência criada por Guimarães Rosa do regionalismo universalizante, uma vez que sua leitura do mundo regional faz-se a partir da projeção para um prisma universal. Tempo e espaço O tempo da narrativa está mais voltado ao psicológico, ou seja, indeterminado. O espaço é Minas Gerais, mais especificamente o Norte de Minas, destacando-se nomes de vilarejos (Rala-Coco, Murici, Pindaíbas, Tombador) e lugares do sertão (rios, serras, etc.). Foco narrativo A novela é narrada em terceira pessoa. O narrador é onisciente, penetrando nos pensamentos de Augusto Matraga como se fosse sua consciência. O novela mostra a linguagem regional aliando ao mais puro poético para criar efeitos inusitados e da mas sublime perfeição. O casamento entre o regional e o erudito parece surpreender o leitor, maravilhado e chocado diante do sortilégio verbal que, ora prende, ora espanta, criando dificuldades de entendimentos para muitos. Problemática e principais temas A novela A Hora e Vez de Augusto Matraga ocupa um lugar de destaque dentro da antologia de Sagarana, uma vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em O Burrinho Pedrês de que um único momento pode valer por toda uma existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também manifestada na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é alçado à condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o sítio montado num burrinho. Este é considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (“... porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzínho assim meio sagrado, muito misturado às pas sagens da vida de Jesus”), já que na Bíblia Cristo entrou em Jerusalém montado num desses animais. A caminhada do protagonista simboliza o homem em busca de seu destino. E qual seria o destino a ser cumprido? Claro que a salvação de Matraga só poderia surgir a partir da justiça divina com a negação de seu próprio ser físico em favor da justiça entre os homens. Ao salvar inocentes da sanha vingativa de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez. Matraga dá a vida, como Cristo, pelos seus semelhantes (“Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...” A força temática desse conto de que um momento pode valer por toda uma vida, encontra em Nhô Augusto o momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A persistência e fé do protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que a purificação de sua alma seja completa e sua santificação plena. A trajetória heróica de Augusto Matraga que desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados, recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais espaço para as grandes epopéias clássicas, para os heróis míticos do passado, pois o homem moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não só o bem, mas também o mal, está, como o protagonista comprova, mais próximo do homem barroco com suas dualidades e ambigüidades do que do clássico. As verdadeiras epopéias modernas, como podemos considerar A hora e vez de Augusto Matraga, são protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam arduamente através de seus corpos e de suas almas à espera de que surja a sua hora e vez.

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A Hora e Vez de Augusto Matraga (Conto de Sagarana), de Guimarães RosaA Hora e Vez de Augusto Matraga faz parte de Sagarana que é uma coletânea de novelas e

novelas, nove no total. Todos os textos apresentam a tendência de Guimarães Rosa à pesquisa permanente da linguagem regional, mantendo-se ligados ao instrumentalismo. Todos os novelas se passam , como pode ser comprovado pelo cenário, no interior de Minas, existindo farta nomeação de lugares e regiões. Essa verossimilhança serve de primeiro elemento catalisador das narrativas. Mas há outras formas de agruparmos as narrativas.

Estilo

Sagarana, na qual se encontra a novela A hora e vez de Augusto Matraga, não apenas está inserida nas perspectivas instrumentalistas (linguagem como instrumento constante de pesquisas), bem como é uma das obras iniciadoras da terceira fase. A hora e vez de Augusto Matraga aponta para a tendência criada por Guimarães Rosa do regionalismo universalizante, uma vez que sua leitura do mundo regional faz-se a partir da projeção para um prisma universal.

Tempo e espaço

O tempo da narrativa está mais voltado ao psicológico, ou seja, indeterminado. O espaço é Minas Gerais, mais especificamente o Norte de Minas, destacando-se nomes de vilarejos (Rala-Coco, Murici, Pindaíbas, Tombador) e lugares do sertão (rios, serras, etc.).

Foco narrativo

A novela é narrada em terceira pessoa. O narrador é onisciente, penetrando nos pensamentos de Augusto Matraga como se fosse sua consciência.

O novela mostra a linguagem regional aliando ao mais puro poético para criar efeitos inusitados e da mas sublime perfeição. O casamento entre o regional e o erudito parece surpreender o leitor, maravilhado e chocado diante do sortilégio verbal que, ora prende, ora espanta, criando dificuldades de entendimentos para muitos.

Problemática e principais temas

A novela A Hora e Vez de Augusto Matraga ocupa um lugar de destaque dentro da antologia de Sagarana, uma vez que representa o fechamento em círculo da temática iniciada em O Burrinho Pedrês de que um único momento pode valer por toda uma existência. Sabemos que a força mística de Guimarães Rosa é também manifestada na presente obra, já que, simbolicamente, o protagonista da ação é alçado à condição de um Cristo. Nhô Augusto deixa o sítio montado num burrinho. Este é considerado até mesmo na obra como um elemento sagrado (“... porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzínho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus”), já que na Bíblia Cristo entrou em Jerusalém montado num desses animais. A caminhada do protagonista simboliza o homem em busca de seu destino. E qual seria o destino a ser cumprido? Claro que a salvação de Matraga só poderia surgir a partir da justiça divina com a negação de seu próprio ser físico em favor da justiça entre os homens.

Ao salvar inocentes da sanha vingativa de Joãozinho Bem-Bem, Nhô Augusto encontra também a sua redenção final, obtida com seu trabalho, sua reza e a fé de que teria sua hora e vez. Matraga dá a vida, como Cristo, pelos seus semelhantes (“Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de salvar as famílias da gente!...”

A força temática desse conto de que um momento pode valer por toda uma vida, encontra em Nhô Augusto o momento de êxtase dentro da obra de Guimarães Rosa. A persistência e fé do protagonista, verdadeiro herói mítico moderno, faz com que a purificação de sua alma seja completa e sua santificação plena.

A trajetória heróica de Augusto Matraga que desce do espaço dos poderosos para o dos oprimidos e marginalizados, recorda-nos o fato de que realmente parece não haver mais espaço para as grandes epopéias clássicas, para os heróis míticos do passado, pois o homem moderno traz em si não apenas o herói, mas também o covarde, não só o bem, mas também o mal, está, como o protagonista comprova, mais próximo do homem barroco com suas dualidades e ambigüidades do que do clássico. As verdadeiras epopéias modernas, como podemos considerar A hora e vez de Augusto Matraga, são protagonizadas por homens comuns que se entregam à derrota ou lutam arduamente através de seus corpos e de suas almas à espera de que surja a sua hora e vez.

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Personagens

Augusto Esteves Matraga - é o protagonista da obra. Muda de nome de acordo com as passagens significativas de sua vida, o que nos permite enxergar nele uma projeção dos heróis míticos. Matraga transforma-se num homem bom e abnegado, trabalhador e rezador, depois de ter sido mau, mulherengo e violento. Seu comportamento desregrado levou-o a perder a fortuna, a mulher e a filha, tendo quase perdido a vida. Depois de uma surra aplicada pelos capangas do Major Consilva, Matraga sentiu-se renascer como outro homem. Foi obrigado a esconder-se dos inimigos num sítio com um casal de pretos velhos que o salvou. Terminou sua trajetória matando o famoso chefe de jagunços Joãozinho Bem-Bem para salvar uma família inocente, e morrendo.

Joãozinho Bem-Bem - Famoso chefe de jagunços. Homem temido e destemido no sertão. Faz justiça com as próprias mãos ou armas, defendendo seus aliados e eliminando seus inimigos. Pressente em Nhô Augusto uma força oculta que os aproxima.

Quim Recadeiro - Era empregado de Nhô Augusto, tendo a função, como o próprio nome indica, de levar recados. Entretanto, quando o patrão é morto, vai em busca de justiça e acaba sendo assassinado pelos capangas do Major Consilva.

Dona Dionóra: Era mulher de Nhô Augusto. Acabou não agüentando mais as judiações do marido e seu descaso e fugiu com Ovídio.

Mitinha: é filha de Nhô Augusto. Percebe, ainda menina, que o pai não gosta dela e da mãe. Acaba se tomando prostituta.

Major Consilva - Era inimigo de Nhô Augusto, tendo também sido inimigo do avô do protagonista. Homem mau e rico, tem todo o poder depois da suposta morte de Nhô Augusto.

Tião da Thereza - Conterrâneo de Nhô Augusto. encontra-o no povoado do Tombador e coloca-o a par dos acontecimentos posteriores à sua suposta morte.

Outros personagens: Angélica. Sariema, mãe Quitéria, preto velho, Juruminho, Teófilo Sussuarana, etc.

Enredo

A hora e vez de Augusto Matraga recria uma verdadeira saga do homem na travessia por este mundo. Matraga é, de um modo mais amplo, o homem no sentido universal. Sua trajetória recria a passagem evolutiva em busca do aprendizado do viver e da ascensão espiritual em plenitude. Seu objetivo será ter sua hora e vez de entrar no céu, "mesmo que seja a porrete". É uma história de redenção e espiritualidade, uma história de conversão. Ao longo do seu enredo o protagonista, Augusto Matraga, passa do mal ao bem, da perdição à salvação.

Augusto Matraga, foi criado por uma avó, que o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio criminoso, enveredou para o mal. A narrativa inicia-se em meio a uma festa de santo, em que, num leilão, Matraga arrebata por 50.000 réis uma prostituta, desagradando um sertanejo rude, grosseiro que estava interessado por ela. Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia. Ele, de fato era pessoa rude, não civilizada. Além de bandido e violento, tratava com pouco caso sua esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. Só queria saber de jogo, caçada e mulheres de vida fácil. No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona, passando a viver, com a filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga não pôde vingar a ofensa, pois recebeu a notícia de que seus capangas, com exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do Major Consilva. Augusto vai tomar satisfações pela afronta, sem perceber que o destino virou-se contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas e suas terras estão hipotecadas. Como o próprio narrador comenta, não havia se tocado de que era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar havia chegado.

Ao chegar à fazenda do Major, é cercado pelos capangas do vilão, alguns ex-subordinados de Matraga. Então é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o pior, atira-se de um altíssimo barranco. Para seus inimigos, estava morto.Mas é resgatado e cuidado. Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua situação, desejou a morte.

Com o tempo, Matraga volta a ter paixão pela vida. Os meses que passa se recuperando das feridas e fraturas é o tempo suficiente para se arrependa dos pecados e abrace ao cristianismo. No seu jeito rude, fica até cômica a convicção em afirmar que vai para o Céu, nem que seja a porrete. Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma propriedade sua perdida e distante.

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Mostra-se trabalhador, misto de louco e santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos. Um dia, sofreu uma dura tentação. Um antigo conhecido passa por lá e surpreende-se ao descobrir Matraga, ainda mais, mudado. Traz notícias muito inconvenientes. Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente de que estava viúva. Major Consilva apoderou-se das terras do protagonista. Quim, frouxo e atrapalhado, havia sido o único a se levantar em defesa do patrão, mas fora morto no momento em que, tomado de fúria, entrara nas terras do Major com a intenção de vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta. É um momento cruel para Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu? Mas, como o bíblico Jó, resiste bravamente à tentação de buscar vingança. Não percebe: já estava salvo. E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas, opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a elevação.

É então que surge o bando de Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do antigo Augusto Matraga. Suas intenções provavelmente eram malévolas naquela região, mas o amor e a dedicação com que o protagonista o recebe o desarma. O bandido intui o poder bélico de Matraga, por isso o convida a fazer parte da empreitada. É uma forte tentação: o herói sente saudade do poder de desmando que possuía. Imagina até a possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas resistiu a mais essa tentação. Estava evoluindo a passos largos. Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga, mas levando uma afeição enorme por ele.

Dias depois, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando. Sua intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia inteiro. Até que toma uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um jumento, animal carregado de simbologia cristã, pois havia carregado Maria às vésperas do nascimento de Cristo. Carregara, pois, o salvador. Matraga viaja muitos dias, até chegar ao arraial do Rala-Coco, que estava em polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá estava, prestes a realizar um crime hediondo. Um dos capangas do facínora o havia abandonado, ação que fora considerada traição. Joãozinho resolve se vingar em cima da família deste, querendo assassiná-la. No momento em que Augusto havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência pela vida de inocentes. A fúria do criminoso parecia não ter limite, pois já estava prestes a se derramar sobre o idoso. É nesse instante que Augusto Matraga intercede. Mesmo havendo um enorme apreço entre Joãozinho e o herói, os dois começam a se desentender. O bandido está tomado de um maligno espírito vingativo. Matraga defende a bondade divina, sempre pedindo para seu opositor evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo nome de Deus. O inevitável acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois saem feridos, mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu amigo se arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de Joãozinho, que morre segurando nas mãos suas entranhas. Augusto Matraga estava morrendo, mas contente.

Aclamado como santo e salvador entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem dignamente. Ainda teve tempo, além disso, de abençoar sua filha perdida. Morre, porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão, cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o Céu.

Duelo (Conto de Sagarana), de Guimarães RosaConto narrado na terceira pessoa. O narrador em Duelo é onisciente, ou seja, sabe o que

passa pela cabeça das personagens. Porém, com alguns diferenciais, como o toque de humor que Gunimarães Rosa dá à narrativa, o estabelecimento de diálogos com o leitor, a mesclagem entre o que se narra e a fala de algumas das personagens, opiniões pessoais do narrador em determinadas situações, dentre outros recursos.

Duelo pode ser lido como uma alegoria da fatalidade, de inexorabilidade do destino humano. Enquanto os homens se perdem na busca de seus objetivos, de um fim, algo superior dispõe o contrário, o imprevisto.

Sobre o título do conto, não se pode interpretar a palavra "duelo" literalmente dentro da história. Pode-se observar, então o duelo entre o forte o fraco, por exemplo: quando Turíbio chegou em casa e viu a mulher em adultério com Cassiano, Turíbio pensou antes de enfrentá-lo: Cassiano Gomes havia servido ao Exército, sabia manejar muito bem as armas e, por isso, poderia dar um fim à vida do marido traído ali mesmo. Percebendo que Cassiano era mais forte, Turíbio decidiu matá-lo em outra ocasião, covardemente com um tiro pelas costas: porém, não obteve êxito, matando o irmão de Cassiano. Turíbio foge e assim começa a perseguição...

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Durante toda a caçada, Cassiano e Turíbio não se cruzam uma só vez. Cassiano pára em um vilarejo chamado Mosquito devido a problemas de seu debilitado coração e conhece Timpim, um garoto franzino, frágil mesmo, a quem Cassiano decide apadrinhar – ele e seus três filhos. Nesse ínterim, Turíbio decide ir à São Paulo ganhar a vida. Cassiano vem a falecer, mas faz Timpim prometer que vai matar Turíbio Todo. Pois ocorre que, quando Turíbio volta de São Paulo, encontra com um “camarada meio quilo de gente” no caminho e começam a cavalgar juntos. E esse camarada magrelo era Timpim, que matou Turíbio Todo com um tiro de garrucha no rosto... mais uma vez, essa oposição aparece, já que o “fraco” (Timpim) acaba matando o “forte” (Turíbio).

O cenário é o Arraial de Vista-Alegre, no interior de Minas Gerais.

A linguagem especial de Guimarães Rosa aparece sob diferentes matizes em sua obra. Em Duelo não é diferente. A linguagem não é difícil ou rebuscada, mas sim recriações, invenções e resgates que levam o leitor a constantes redescobertas. Guimarães rosa era um “artesão” da língua, trabalhava as palavras como ninguém, a fim de transmitir profundamente a mensagem que desejava.

O humor está presente em toda obra, em tom, muitas das vezes, satírico. O maior exemplo é a personagem Silivana, esposa adúltera de Turíbio Todo; primeiramente, o narrador a descreve como tendo “grandes olhos bonitos, de cabra tonta”; no decorrer do conto, o narrador volta a repetir essa mesma sentença, causando uma impressão humorística na estória: “(...) Turíbio Todo (...) estava com saudades da mulher, Dona Silivana – aquela mesma que tinha belos olhos grandes, de cabra tonta (...)”; “Mas (Turíbio) tinha de fazer ainda um dia a cavalo e estava com pressa, porque Silivana tinha os olhos bonitos, sempre grandes olhos, de cabra tonta”.

A trama se desenrola de maneira linear durante todo o conto. Há ausência de flash-backs das personagens, visto que elas não se remetem ao passado para tentar buscar explicações de conflitos no momento atual. Com relação à duração da trama, não é possível afirmar quanto tempo ela dura exatamente; porém, o narrador diz em determinada parte do conto o seguinte: “E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou seis meses e meio a correria, monótona e sem desfecho.” Ou seja, um tempo impreciso demais para virmos a afirmar que o conto teve esta ou aquela duração (deve ser levado em consideração, também, que a estória ainda continua depois daquela colocação do narrador).

Com relação à época em que se passa o conto, pode-se dizer que é bem condizente com a época em que foi escrito pelo autor: a década de 30, mais precisamente em 1937. Foi uma tentativa do autor em retratar uma sociedade que começava a ser esquecida, devido à acelerada urbanização a que vinham se submetendo os grandes centros na época.

Personagens

As personagens de Duelo estão intimamente ligadas à paisagem do interior mineiro, à vida nas fazendas – como em todos os contos de Sagarana.

Seus personagens são admiravelmente delineados e caracterizados não apenas externamente, mas com uma rara penetração da psicologia do homem rústico. Suas descrições atestam um conhecimento minucioso de gentes, plantas e bichos em contato com o ambiente sertanejo.

Durante a narrativa de Duelo, Guimarães procura caracterizar bem suas personagens, dando mostras de que é um profundo conhecedor da alma humana.

É curioso também o modo como nomeia as personagens, apelidando ou distorcendo nomes próprios: Turíbio Todo, Vinte-e-Um, Silivana, Chico Barqueiro, dentre outros nomes, compõem um recurso literário para, através do exagero, destacar as características específicas, a personalidade própria de cada um (assim como, talvez, o próprio hábito de apelidar, presente até hoje nas sociedades interioranas).

Com relação ao ambiente rural em que as personagens estão inseridas, procura-se também caracterizá-lo, e delimitá-lo, na trama, ao oeste de Minas Gerais. A fauna, a flora, os lugarejos por onde passam Turíbio Todo e Cassiano Gomes, a topografia, tudo é retratado da maneira mais verossímil possível, para que o leitor realmente perceba o espaço físico no qual se desenvolve o conto.

Turíbio Todo - Seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas, chorava sem fazer caretas. Papudo, vagabundo, vingativo e mau.

Dona Silivana - Esposa de Turíbio Todo; tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta.

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Cassiano Gomes - Ex-militar, fama de exímio atirador, andava sempre com um rifle ao alcance da mão. Solteiro, tinha um caso Dona Silivana, esposa de Turíbio Todo.

Vinte-e-Um - Caipira pequenino, morador do povoado Mosquito. Cassiano, antes de morrer, salvou-lhe o filho e deu-lhe dinheiro. Vinte-e-Um matou Turíbio Todo.

Resumo do conto

Turíbio Todo foi pescar e avisou à mulher que só voltaria no outro dia. À beira do córrego, faltou-lhe o fumo de rolo para espantar os mosquitos; bateu com os dedos nos tocos e ficou com o pé direito ferido. Por isso, voltou para casa à noite. Ouvindo vozes no quarto, olhou por uma fisga da porta e viu que a mulher estava na cama com outro. Sem arma e conhecendo bem o outro (Cassiano Gomes que pertencera à polícia e era exímio atirador), Turíbio não fez nada. Afastou-se tão macio como se havia aproximado.

No outro dia, ao voltar para casa, "foi gentilíssimo com a mulher, mandou pôr ferraduras novas no cavalo, limpou as armas, proveu de coisas a capanga, falou vagamente numa caçada de pacas, riu muito, se mexeu muito, e foi dormir bem mais cedo do que de costume." Isso tudo foi na quarta-feira.

No outro dia, quinta, Turíbio terminou os preparativos e foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes. "Viu-o à janela, dando as costas para a rua. Turíbio não era mau atirador: baleou o outro bem na nuca. E correu para casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão".

Turíbio Todo, iludido pela semelhança e alvejando o adversário por trás, matara não o Cassiano, mas o Levindo Gomes, irmão daquele. O morto não era ex-militar e detestava mexer com a mulher dos outros.

Cassiano Gomes fez o enterro do irmão, recebeu as condolências, trancou bem as portas e as janelas da casa (era solteiro), conferiu as armas, comprou a besta douradilha com arreios e tudo, mandou lavá-la e ferrá-la. Só então, partiu para vingar a morte do irmão.

Cassiano não encontrou Turíbio na primeira tentativa. O papudo conseguiu enganá-lo, voltando por caminho diverso do imaginado. Cassiano queria pegar Turíbio desprevenido. Por isso, passou a andar à noite e dormir de dia. Os planos de Cassiano iam fracassando. Turíbio conhecia a região como a palma da mão. Assim, ia conseguindo escapar com boa margem de estrada e tempo.

Foram tantos os desencontros que Cassiano trocou pela segunda vez de montada, comprando um cavalo alazão. Também Turíbio Todo já trocara de animal umas quatro vezes.

Turíbio Todo teve a audácia de voltar ao arraial e passar uma noite de amor com a esposa, Dona Silivana. Até contou a ela, na hora da despedida, sob segredo, o seu estratagema último. Estava apostando que o coração de Cassiano não ia agüentar a perseguição. Dona Silivana contou isso a Cassiano na primeira oportunidade. Depois, muita gente sabia da intenção de Turíbio.

A correria monótona, sem desfecho, já durava mais de cinco meses, e os dois rivais não se encontravam. Certa vez, Cassiano chegou primeiro à margem do rio Paraopeba, onde só se atravessava de balsa. O dono da balsa não estava, mas um moleque, seu filho, garantiu que o papudo ainda não chegara por ali. Cassiano ficou de tocaia à espera do inimigo. À noite, houve troca de tiros. No outro dia, Chico Barqueiro quase agrediu Cassiano, pensando que ele fosse um inimigo. Explicados os mal-entendidos, ao meio-dia, Cassiano despediu-se: estava disposto a dar uma trégua, descansar, esperar que Turíbio relaxasse. Depois que partiu, Turíbio chegou, pronto para atravessar o rio. Em cima da balsa, Chico Barqueiro ainda o ofendeu.

Depois de atravessar o Paraopeba, Turíbio andou muito, sempre para o sul, até topar o rio Pará. Ali, encontrou uns baianos que iam para São Paulo, atraídos pela cultura do café. Falaram em dinheiro fácil. Apesar da saudade da mulher, Turíbio foi também. Depois mandava buscá-la.

Turíbio cansava-se à toa. Na parte da tarde, inchava as pernas e os pés. Foi ao boticário que lhe deu vida até o próximo São João. Se piorasse, morreria pelo Natal. Diante de tal realidade, tomou uma decisão: vender tudo que possuía e ir atrás de Turíbio; precisava matá-lo antes de morrer.

No caminho, Turíbio piorou e teve que fazer alta no Mosquito – povoado perdido num cafundó de entremorro, longe de toda a parte – com três dúzias de casebres. Esteve mal, com respiração difícil. Quando melhorou um pouquinho, "indagou se por ali não havia um homem valente, capaz de encarregar-se de um caso assim, assim..." Pagava até um conto de réis. Não havia. Nem no

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povoado, nem na redondeza. Cassiano via o tempo passar, dia após dia, sentado à porta de um casebre. A paisagem era triste.

Um dia, Cassiano assistiu a um irmão grandalhão batendo noutro menor. Chamou o menor, de apelido Timpim, e indagou-lhe o nome e por que ele não reagia às pancadas do irmão. O nome verdadeiro era Antônio, e o apelido oficial era Vinte-e-Um. É que a mãe dele tivera vinte e um filhos, e ele foi o último. Não reagia às pancadas do irmão porque a mãe lhe dissera que ele não levantasse a mão para irmão mais velho. E todos eram mais velhos. Vinte e um era casado, e a mulher dele acabara de ter criança. Cassiano deu-lhe dinheiro para comprar galinhas e alimentara a esposa. No outro dia, Vinte-e-Um fez uma surpresa ao doente: trouxe-lhe o filho para lhe tomar bênção. Cassiano ficou emocionado e piorou. Um dia, quando Cassiano estava pior ainda, Vinte-e-Um apareceu chorando: o filhinho estava muito doente, ele sem recursos para socorrê-lo. Cassiano deu-lhe o dinheiro para trazer o médico até a criança e comprar os remédios necessários. "Veio o médico; veio o padre: Cassiano confessou-se, comungou, recebeu os santos óleos, rezou, rezou". Sentindo que a morte já estava na porta, deu todo o dinheiro que possuía para o compadre Vinte-e-Um (agora tratavam-se como compadres). Logo depois, morreu e foi para o céu.

Por meio de uma carta da mulher, que o invocava para o lar, Turíbio Todo ficou sabendo da morte de Cassiano. "Ele já tinha ganhado uns bons cobres". Comprou mala e presentes, pôs um lenço verde no pescoço para disfarçar o papo, calçou botas vermelhas de lustre e veio de trem. Para perfazer o resto do caminho, alugou arranjou um cavalo emprestado. No caminho, foi alcançado por um cavaleiro miúdo, montando um cavalo magro. Via-se que os dois estavam em petição de miséria. Depois de continuarem pela estrada, a miniatura de homem perguntou se ele era mesmo o Turíbio Todo, seleiro de Vista-Alegre, que estava vindo das estranjas. Turíbio confirmou. A viagem prosseguiu. Turíbio falava da felicidade próxima: ver a mulher, levá-la para casa, talvez levá-la para São Paulo. O caipirinha mostrava-se pessimista: não valia a pena a gente alegrar-se.

De repente, no meio da estrada fechada, Turíbio levou um susto: o capiauzinho falou com voz firme e diferente, segurando uma garrucha velha de dois canos: "Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!" Turíbio fez voz grossa, mas o caipira explicou: não ia adiantar nada porque ele prometeu ao Compadre Cassiano, na horinha mesmo de ele morrer. Turíbio tentou ganhar tempo, fez que ia rezar e puxou o revólver. Mas a garrucha não falhou: foram dois tiros, um do lado esquerdo da cara, outro no meio da testa. Turíbio caiu morto, e Vinte-e-Um esporeou a montaria, tomando o caminho de volta.

Auto da Compadecida, de Ariano SuassunaAuto da Compadecida, de Ariano Suassuna, é uma peça clássica do teatro brasileiro, escrita

em 1955 e publicada em 1957. Virou minissérie de televisão e ganhou uma versão para o cinema, ambas dirigidas por Guel Arraes.

A trama da peça é permeada de peripécias mirabolantes. O herói ou o anti-herói da peça, o amarelinho João Grilo, se mete e, ao mesmo tempo, envolve todo mundo em infinitas trapalhadas, que começam em uma cidadezinha do interior e continuam depois da morte, nos limites do purgatório e do inferno. João Grilo é um herói típico da linhagem picaresca da literatura de cordel nordestina, da mesma família espiritual de Cancão de Fogo e Zé do Telhado, personagens que dão nó até em pingo dágua.

Em o Auto da Compadecida, Ariano Suassuna consegue realizar uma magnífica síntese de duas tradições: a dos autos da era medieval e a da literatura picaresca espanhola. Na era medieval, a cultura era indissociável da religião, mesmo porque a Igreja controlava tudo com mão de ferro. A Igreja cultivava os autos dramáticos de devoção aos santos para doutrinar e tolerava os autos cômicos para divertir o povo. A tradição da literatura picaresca espanhola vem da cultura popular e chega ao ápice no Dom Quixote, de Cervantes. O pícaro é o personagem astuto, esperto, sagaz, velhaco, que quer enganar os homens, deus e o diabo, e ainda pedir o troco.

Vemos que os personagens masculinos expressam o tipo "machões", mais na verdade alguns eles são muito medrosos, principalmente quando se envolve a figura de forças superiores. O livro mostra a esperteza de muitos personagens também, é o caso de João Grilo, que aplica vários "golpes" ao decorrer da história, dando uma de personagem malandro e aproveitador dos idiotas e ingênuos.

Como se vê é uma tradição cultural riquíssima que veio parar no nordeste brasileiro e se encarnou na pele de João Grilo. Esta passagem da narrativa do plano da vida na terra para o do

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purgatório, do inferno e do céu, é típica da cultura medieval. Ela está presente na Divina Comédia, poema de Dante, a obra prima da cultura medieval. Só que, como sempre, as classes populares deram uma versão mais divertida e esculhambada desta passagem para o outro lado da vida.

Ao escrever o Auto da Compadecida, Ariano Suassuna buscou inspiração precisamente nos folhetos de cordel ouvidos e lidos nos tempos da infância e, ao mesmo tempo, estabeleceu ou reestabeleceu conexões com essas fontes da tradição medieval e picaresca, da Divina Comédia, de Dante, e do Dom Quixote, de Cervantes, dois dos seus autores preferidos.

Em Auto da Compadecida podemos sentir a força poética e popular da peça, o catolicismo que ela transmite, a simplicidade dos diálogos.

A estrutura teatral e os tipos vivos fazem desta obra um exemplo raro na dramaturgia brasileira. Vemos os tipos de personagens nordestinos, e vemos também o tipo bem brasileiro neles, que é o de "dar conta do recado" com o famoso "jeitinho" brasileiro. Aqui vemos a forma de criação dos personagens segundo o autor: "Meus personagens ora são recriações de personagens populares e de folhetos de cordel, ora são familiares ou pessoas que conheci. No Auto da Compadecida, por exemplo, estão presentes o Palhaço e João Grilo. O Palhaço é inspirado no palhaço Gregório da minha infância em Taperoá. Já o João Grilo é o típico nordestino 'amarelo, que tenta sobreviver no sertão de forma imaginosa. Costumo dizer que a astúcia é a coragem do pobre. O nome dele é uma homenagem ao personagem de cordel e a um vendedor de jornal astucioso que eu conheci na década de 50 e que tinha este apelido."

Linguagem

O autor não propõe, nas indicações que servem de base para a representação, nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista. Busca encontrar uma expressão uniforme para todas a personagens, na presunção de que a diferença entre os atores estabeleça a diferença nos chamados registros da fala.

A composição da linguagem é a mais próxima possível da oralização, isto, é, o texto serve de caminho para uma via oral de expressão. Os únicos registros diferentes correm, com indicados no próprio texto, por conta do Bispo, personagem medíocre, profundamente enfatuado, como se nota nesta passagem: "Deixemos isso, passons, como dizem os franceses"; de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras desataviadas, embora divinas, porque são concebidas como encarnadas em pessoas comuns, como o próprio João Grilo:

Manuel: Foi isso mesmo, João. Esse é um dos meus nomes, mas você pode me chamar de Jesus, de Senhor, de Deus... Ele / isto é, o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus".

A compadecida: Não, João, por que iria eu me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, um invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo.

Quatro denominações de personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: João Grilo, Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chicó. Quanto ao Encourado, o autor dá a seguinte explicação: este é o diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro.

Na estrutura da peça, isto é, na forma final do texto é que se revela o estilo do autor, concebido com o a linguagem através da qual ele cria e comunica sua mensagem fundamental.

A peça apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligação e comando do espetáculo.

Personagem principal: João Grilo

Outras personagens: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demônio.

Personagem de ligação: Palhaço

Situação / Personagens / Conteúdo da situação

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1ª - João Grilo Chicó Padre João: a bênção do cachorro da mulher do padeiro.Expediente de João Grilo: o cachorro pertence ao Major Antônio Morais.

2ª - João Grilo Chicó Antônio Morais Padre: chega o Major Antônio Morais.Expediente de João Grilo: o Padre João está maluco, benze a todos e chama todo mundo de cachorro.

3ª - João Grilo Padre MulherPadeiro Chicó Sacristão Bispo: o testamento do cachorro morto.Expediente de João Grilo: o cachorro morto, encomendado em latim e tudo mais, deixa no seu testamento dinheiro para o Sacristão, para o Padre e para o Bispo.Fonte do dinheiro: o Padeiro e sua mulher.

4ª - João Grilo Chicó Mulher: a mulher do Padeiro lamenta a perda de seu cachorro.Expediente de João Grilo: arranja-lhe um gato que descome dinheiro. Vende-o e afaz seu lucro.

5ª - João Grilo Chicó Bispo Padre Padeiro Frade Sacristão Mulher Severino (do Aracaju) Cangaceiro: o assalto do cangaceiro Severino do Aracaju.Expediente de João Grilo: a gaita que fecha o corpo e ressuscita. A bexiga cheia de sangue.Evento especial: todas as personagens morrem, inclusive João Grilo. Salva-se Chicó

6ª - Palhaço João Grilo Chicó Todas as demais personagens Demônio O Encourado Manuel: ressurreição no picadeiro do circo. O Julgamento pelo Demônio, pelo Encourado e por Manuel (Cristo).Expediente de João Grilo: forçar o julgamento, ouvindo os pecadores.

7ª - Todas as personagens. A Compadecida: condenação dos pecadores, Expediente de João Grilo: apelo à misericórdia da Virgem Maria.

Nota-se que em todas as seqüências a presença de João Grilo é fundamental. Daí a afirmação de que a peça gira em torno dessa personagem, do ponto de vista estrutural.

Personagens

João Grilo: é uma figura típica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo. Habituado a sobreviver e a viver a partir e expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira. Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida. É essa convicção que o salva. E ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando à vida e à companhia de Chicó. É uma oportunidade inusitada de ressurreição e retorno à existência. Caberá a ele provar que essa oportunidade foi ou não bem aproveitada.

A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo:

Palhaço: Auto da Compadecia! Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia.

João Grilo: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada".

Mas a importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do fato de que as situações do Auto da Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem:

1ª) a benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais.

João Grilo: "Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era " Que maluquice, que besteira!", agora "Não veja mal nenhum em se abençoar as criatura de Deus!".

2ª) a loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais.

João Grilo: /.../ "É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido"./.../ "Não sei, é a mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro".

3ª) o testamento do cachorro.

João Grilo: "Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, coma a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoada e morrer como cristão. Mas nem assim ele

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sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão".

4ª) o gato que "descome dinheiro".

João Grilo: "Pois vou vender a ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descome dinheiro" /.../ "Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões). Esta aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente".

5ª) a gaita que fecha o corpo e ressuscita.

João Grilo: "Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer".

6ª) a "visita" ao Padre Cícero.

João Grilo: "Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta" .

Essa situação decorre da anterior, mas pode ser considerada com o independente.

7ª) o julgamento pelo Diabo (o Encourado).

João Grilo: "Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!".

8ª) o apelo à misericórdia (À Virgem Maria).

João Grilo: "Ah, isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?".

Chicó: Companheiro constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção íntima. Mas é um amigo leal.

Padre João, o bispo e o sacristão: Essas personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro.

Antonio Morais: É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda.

Padeiro e sua mulher: Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério.

Severino do Aracaju e o Cangaceiro: Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na seqüência de número cinco, porque nessa seqüência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.

O encourado e o demônio: Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo).

Manuel: É o Cristo negro, justo e onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudência.

A compadecida: É Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo.

Estrato metafísico

1. Vinculado à Igreja Católica e à idéia da salvação.

2. O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica – trecho fora do enredo dramático em que as idéias e as intenções ficam claramente expressas:

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Palhaço: "Ao escreve esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem direito a certas intimidades".

"/.../ Espero que todos os presente aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes".

Problemática da obra

Pela estrutura da peça, podemos notar que sua intenção clara e expressa é de natureza moral, e de moral católica; e que os componentes estruturais do texto revelam personagens que simbolizam pecados (maiores ou menores), que recebem o direito ao julgamento, que gozam do livre-arbítrio e que são ou não condenados.

Percebe-se, de outro lado, que a preocupação maior reside em compor um auto de moralidade, ao estilo quinhentista português (modelo Gil Vicente), mas seguindo alinha do teatro dirigido aos catecúmenos, do Padre Anchieta.

Para tanto, a peça se embasa em determinadas tradições localistas e regionalistas do folclore, com vistas à sua sublimação como instrumento pitoresco de comunicação com o público (que, no caso, seriam os catecúmenos).

Com isso, nota-se que a realidade regional brasileira, especificamente a realidade nordestina, está presente através de seus instrumentos culturais mais significativos, as crenças e a literatura de cordel.

O autor não pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela moralizar os homens, isto é, dinamizar nas usas consciências a noção do dever humano e da responsabilidade de cada um em relação a seus semelhantes e em relação a Deus, onisciente e onipresente.

Como proposição estética, o Auto da Compadecida procura corporificar a criação artística, o teatro em particular, devem levar o povo, a cultura desse povo a ele mesmo. Daí o circo, seu picadeiro e a representação dentro da representação.

Percebemos que, menos do que essa realidade regional e cultural de um povo, o que importa é criar um projeto que defina idéias e concepções universais (as da Igreja, no caso) com o fim de conscientizar o público. Por esse motivo a realidade regional nordestina é, no caso, instrumento de uma idéia e não fim em si nessa.

Criar um texto teatral é, antes de tudo, criá-lo para uma encenação, daí a absoluta liberdade que o autor dá para qualquer modalidade de encenação. O próprio texto final da peça, como editado, é o resultado da experiência colhida a representação pública.

Resumo

A história descreve as aventuras de Chicó e de seu amigo João Grilo. Chicó trabalha com o padeiro e sua mulher Dora que está preocupada com a cachorra que adoeceu. Dora manda chamar o padre para benzê-lo. O padre está irredutível. Diz que não benze a cachorra. A cachorra morre e o casal exige que seja feito um enterro em latim.

João Grilo fala ao padre que a cachorra deixou um testamento, com 3 contos de réis para as obras da igreja. O padre faz o enterro. Quando o bispo descobre, Grilo fala que a morta deixou também, 6 contos de réis para a arquidiocese. O bispo então aceita o dinheiro e concorda com o padre.

Grilo pede emprego ao Major e consegue o trabalho, acertando três charadas que lhe são feitas. O patrão pede que vá buscar sua filha que acaba de chegar de viagem.

O cangaceiro Severino e seu bando reúnem-se para atacar a cidade. Rosinha, a recém-chegada filha do Major, desperta o interesse dos homens da cidade. Assim que sai da igreja com a benção do bispo, encontra Chicó e se interessa por ele. Seu pai, porém, pretende que ela volte a Recife casada e receberá um dote.

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Grilo arma um plano para ficar com o dinheiro. O plano consiste num duelo entre Vicentão e o Cabo 70, ambos interessados por Rosinha. Isso liberararia o caminho para Chicó casar-se com a moça. Grilo marca um duelo entre Vicentão e o Cabo e quando Chicó aparece, um foge do outro, dando a impressão de Chicó venceu o duelo e os outros fugiram com medo dele. Rosinha aceita casar-se com ele. Chicó e Grilo visitam o Major. Grilo diz que o amigo é doutor, advogado e tem muitas fazendas, uma em Serra Talhada. O Major pergunta se ele pretende casar e Rosinha é chamada e diz que gosta de outro. Ao ver Chicó, diz que se casa na próxima semana. Grilo espertamente propõe uma reforma na igreja para a celebração do casamento. Mas como o doutor está sem dinheiro, seu futuro sogro oferece a quantia como empréstimo, pedindo como garantia a fazenda de Serra Talhada. Grilo diz que não precisa; o noivo é homem de palavra e que se ele não pagar em uma semana, o coronel pode arrancar-lhe uma tira de couro das costas.

O dinheiro é dado à igreja e dividido entre o padre e o bispo, que fica com a maior parte. João Grilo tem então a idéia que salvará seu amigo: uma bexiga de sangue será colocada por baixo de sua camisa e sua morte será forjada. Rosinha fingirá tristeza e encontrará com Chicó para fugirem. O assassino será João Grilo, que se vestirá de cangaceiro para enganar a todos. Assim, Chicó entra na padaria de Dora fingindo valentia. Mas, um grande tiroteio acontece na cidade; cangaceiros, liderados por Severino, estão atacando a população. Chicó, não percebe o equívoco e entra na igreja pensando tratar-se de João Grilo. Severino, já roubou a padaria, tirou o dinheiro da igreja e se prepara para matar a todos. Grilo, que entra na igreja, é também jurado de morte e Severino dá a ordem de execução. Severino resolve matar pessoalmente Chicó e João Grilo. Grilo oferece ao cangaceiro uma gaita que tem o poder de ressuscitar os mortos e a troca por sua vida e de Chicó. Severino é morto e quando a gaita não tem efeito nenhum, o comparsa do cangaceiro mata João Grilo. Chicó chora e retira o dinheiro que está em seu bolso, que havia pego de Severino.

As pessoas que estão mortas encontram-se em um lugar para esperar seu destino. O Diabo aparece mas João Grilo apela para Cristo, esperando que este o salve. O Cristo apresentado é negro e destrói o preconceito de todos. Os personagens são julgados e como estão prestes a seguir para o inferno, João, mais uma vez apela: chama Nossa Senhora, a Compadecida. O padeiro e sua mulher são absolvidos por terem perdoado um ao outro na hora final; o padre e o bispo, têm o mesmo benefício, porque abençoaram o carrasco. Os quatro vão para o purgatório.

Severino se livra através de Jesus, que lembra que este é incapaz de pensar nos seus atos, pois viu seus pais morrerem aos oito anos de idade. Nossa Senhora, pede uma chance a Grilo. Jesus consente e ele volta da morte. Pregando uma peça em Chicó, Grilo finge-se de morto. Depois, acorda, assustando o outro e pergunta do dinheiro. Chicó diz que prometeu o dinheiro a nossa Senhora, caso João Grilo se salvasse. Este, bravo, concorda em pagar a promessa.

Contando com a coragem de Chicó, Rosinha pede para marcar o casamento. Depois da cerimônia, a porca é quebrada, mas o dinheiro, velho e fora de circulação não poderá saldar a dívida. O Major é impedido de tirar o couro de Chicó, pela astúcia de Rosinha e de João Grilo, que alegam que no contrato não há a palavra sangue. O pai manda a filha embora e a deserda.

No final, os três amigos voltam para a estrada, conversando sobre riqueza e a pobreza; encontram com um mendigo, Cristo disfarçado, que pede a única comida que eles têm. Dividindo o pedaço de bolo com ele, João Grilo fala que nunca viu um Jesus negro e Chicó, se lembra de uma história... Um seu amigo uma vez morreu e foi para o céu...

O Primo Basílio, de Eça de QueirósAnálise da obra

Publicado em 1878, O Primo Basílio é um dos mais famosos "romances de tese" de Eça de Queirós.

Narrado em 3ª pessoa, apresenta um narrador onisciente que não consegue distanciar-se por completo de suas personagens, o que se caracteriza pela sua onisciência pelo emprego do discurso livre indireto. Há uma intimidade-identificação entre quem narra e quem vive a história.

Eça de Queirós reproduz os acontecimentos, os tipos e os comportamentos humanos das personagens de forma fiel. Há um abuso do recurso da descrição e um exagero no uso de adjetivos. A ironia é também intensamente presente neste romance.

A história de passa na segunda metade do século XIX.

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O espaço é Lisboa, o Alentejo, o Paraíso e Paris. Estes últimos lugares não são mencionados diretamente pelo narrador, mas apenas referidos.

Lisboa é o cenário da crítica de Eça de Queirós, é por onde transitam as personagens e onde elas expõem suas condições sócio-econômicas e históricas, é a sociedade portuguesa. O Alentejo é o espaço que rouba Jorge de Luísa, deixando-a num marasmo sem fim. Paris é o cenário que devolve Basílio à Luísa, trazendo alegria e a novidade de uma vida de prazeres e aventuras. A casa é o espaço privilegiado do romance, onde se passam as cenas entre Luísa e Juliana. O Paraíso serve de contraponto da vida doméstica e do mundo das alcovas.

As personagens de O Primo Basílio podem ser consideradas o protótipo da futilidade, da ociosidade daquela sociedade.

Influenciado pela fase realista de Balzac e por Flaubert, Eça de Queirós faz, nesta etapa de sua carreira, um inquérito da vida portuguesa.

A obra combate as principais instituições: a Burguesia, a Monarquia e a Igreja. Critica a cidade, a fim de sondar e analisar as mesmas mazelas, desta vez na capital: para tanto, enfoca um lar burguês aparentemente feliz e perfeito mas com bases falsas e igualmente podres.

A criação dessas personagens denuncia e acentua o compromisso de O primo Basílio com o seu tempo: a obra deve funcionar como arma de combate social. A burguesia - principal consumidora dos romances nessa época - deveria ver-se no romance e nele encontrar seus defeitos analisados objetivamente, para, assim, poder alterar seu comportamento. O autor critica veementemente o comportamento medíocre da família lisboeta de classe média e usa o adultério como pano de fundo.

Personagens

Luísa: representa a jovem romântica, inconseqüente em suas atitudes, a adúltera ingênua e, no final, arrependida. É o retrato da futilidade, da fragilidade e da ociosidade que caracterizavam as mulheres de sua classe e de seu tempo. Mimada a sonhadora, Luísa precisava ser amparada por uma figura masculina; por isso, quando se vê sem o apoio do marido por perto, procura abrigo a proteção nos braços do primo.

Basílio: o conquistador e irresponsável, "bom vivant" pedante e cínico. Personagem desprovido de qualquer senso moral. Joga com o sentimento alheio. Não tem compromisso com nada nem com ninguém. É o protótipo do filho pródigo, do janota, do "almofadinha". É ele quem serve de elo na medição de forças entre duas mulheres tão diferentes: a frágil Luísa e a obstinada Juliana.

Jorge: Personagem caracterizada por certa hipocrisia masculina aliada à sua tranqüilidade, à sua capacidade de ponderação. Achava que tinha o direito de julgar as mulheres que tinham amantes, chamando-as de promíscuas, devassas, mas ele próprio teve um caso passageiro em Alentejo do qual apenas o amigo Sebastião tinha conhecimento.

Conselheiro Acácio: Homem de palavratório complicado e inútil. Tipifica o formalismo próprio da época, o falso moralismo, o apego às aparências. Amigo do pai de Jorge e padrinho do casamento, gosta de frases feitas e citações morais, mas, na vida privada, lê poemas obscenos de Bocage e mantém como amante a empregada, Adelaide, a qual, por sua vez, o trai com um caixeiro. É um dos tipos mais famosos da galeria queirosiana, e responsável pelos adjetivos "acaciano" e "conselheiral", usados quando se deseja aludir ao falso padrão moral de alguém.

Juliana: personagem mais completa e acabada da obra, tem sido vista como o símbolo da amargura e do tédio em relação à profissão. Feia, virgem, solteirona, bastarda, é inconformada com sua situação e por isso odeia a tudo e a todos, não se detendo diante de qualquer sentimento de fundo moral. É a representante maior da população que circundava o lar do engenheiro.

Leopoldina: encarna o avesso da moral da época. Adúltera, fumante, escandaliza a toda a sociedade. Age conscientemente, possui vários amantes.

Ernestinho Ledesma: primo de Jorge, é um escritor vazio, preocupado com dramalhões românticos, os quais escreve para o teatro.

Enredo

Os protagonistas dessa obra são Jorge que além de ser um bem-sucedido engenheiro, é funcionário de um ministério, e Luísa, uma moça romântica e sonhadora. Formam o típico casal burguês de classe média da sociedade lisboeta do século XIX. Para completar a felicidade do casal faltavam-lhe apenas um filho.

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Havia um grupo de amigos que freqüentava sempre a casa do casal, como era chamada a residência pela vizinhança pobre. Este grupo era constituído por D. Felicidade, a beata que sofria de crises de gasosas, que morria de amores pelo Conselheiro; Sebastião, amigo íntimo de Jorge; Conselheiro Acácio, o bem letrado; Ernestinho, e as empregadas Joana, que era assanhada e namoradeira, e Juliana que era revoltada, invejosa, despeitada e amarga, responsável pelo conflito do romance.

Luísa ainda mantém amizade com uma antiga colega, Leopoldina - chamada a "Pão-e-Queijo" por suas contínuas traições e adultérios, o que não é bem visto pelo marido. Por conta disso, Juliana, a empregada maldosa, espera apenas uma oportunidade para apanhar a patroa "em flagrante".

A felicidade e a segurança de Luísa passam a ser ameaçadas quando Jorge viaja a trabalho para Alentejo afim de fiscalizar suas minas. Após a partida, Luísa fica enfadada sem ter o que fazer, no marasmo e em uma melancolia pela ausência do marido. É nesse meio-tempo que Basílio chega do exterior. Ele e Luísa haviam namorado antes dela conhecer Jorge.

Conquistador e "bon vivant", o primo não leva muito tempo para reconquistar o amor de Luísa, agora transformado em ardente paixão e isso faz com que Luísa pratique o adultério.

Os encontros entre os dois se sucedem, há troca de cartas de amor. Uma delas é interceptada por Juliana, graças aos conselhos "sábios" de tia Vitória. A empregada começa chantagear a patroa, Luísa. Com isso, Luísa se transforma em escrava de Juliana, e começa a adoecer. Por causa de sua frágil constituição, os maus tratos que sofre de Juliana logo lhe tiram o ânimo, minando-lhe a saúde. Basílio foge covardemente, deixando-a sem apoio.

Jorge volta e de nada desconfia, pois Luísa satisfaz todos os caprichos da criada, enquanto tenta todas as soluções possíveis, até que encontra a ajuda desinteressada e pronta de Sebastião, o qual, armando uma cilada para Juliana, intentando levá-la presa, acaba por provocar-lhe um ataque e a morte.

É um novo tempo para Luísa, cercada do carinho de Jorge, de Joana e da nova empregada, porém, tarde demais: enfraquecida pela vida que tivera de suportar sob a tirania de Juliana, é acometida por uma violenta febre. Em delírio, conta a Jorge seu adultério, fazendo-o entrar em desespero e, no entanto, perdoar-lhe a traição. De nada adiantam os carinhos e cuidados do marido e dos amigos de que foi cercada, nem o zelo médico que chegou a raspar-lhe os longos cabelos. Luísa morre e o lar antes "formalmente feliz", se desfaz.

O romance termina com a volta de Basílio e seu cinismo, ao saber da morte da amante, quando comenta com um amigo que se soubesse que Luísa havia morrido teria trazido Alphonsine, a amante que tem em Paris.