282
A IDÉIA DE LIBERDADE NO SÉCULO XIX: O CASO BRASILEIRO Ubiratan Borges de Macedo 1997 Editora Expressão e Cultura

A ideia de liberdade no século XIX, o caso brasileiro - Ubiratan Borges de Macedo.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • A IDIA DE LIBERDADE NO SCULO XIX:

    O CASO BRASILEIRO

    Ubiratan Borges de Macedo

    1997

    Editora Expresso e Cultura

  • 2

    2

    DEDICATRIA

    A D. JOS BORGES DE MACEDO (1795-1856)

    meu trisav. Lder liberal, primeiro

    prefeito de Curitiba, resistiu at a priso

    ao regresso conservador.

    A JOS BORGES DE MACEDO III (JUCA)

    (1870-1965), meu av. Oficial maragato,

    resistiu de armas na mo e sofreu

    o exlio em defesa dos ideais liberais.

  • 3

    3

    SUMRIO

    PRLOGO ......................................................................... 7

    INTRODUO

    I Objetivos ...................................................................... 11

    II A Liberdade Filosfica e a Poltica ................................ 15

    CAPTULO PRIMEIRO

    A LIBERDADE NO SCULO XIX

    I. O Ocidente, a Liberdade e a Revoluo Francesa ........... 21

    II. A Liberdade na Filosofia Europia ................................ 27

    A) A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna .................... 27

    B) A Liberdade nas Doutrinas Filosficas do Sculo XIX ...... 29

    III. A Liberdade no Brasil durante o Sculo XIX ................. 34

    A) Originalidade e Autenticidade do Pensamento Brasileiro ... 34

    B) O Problema Poltico a Liberdade no Brasil no

    Incio do Sculo XIX ................................................. 37

    C) As Correntes Filosficas do Segundo Reinado ................. 42

    D) Liberdade e Sociedade durante o Segundo Reinado .......... 44

    IV. A Liberdade nas Ideologias do Sculo XIX ................... 50

    A) Conceito de Ideologia, sua Funo ................................ 50

    B) O Liberalismo Romntico ........................................... 52

    C) O Tradicionalismo Poltico Tradicionalismo e Catolicismo ... 55

    a) Caractersticas do Tradicionalismo Poltico ................ 57

    b) O Naturalismo Cientificista ..................................... 60

  • 4

    4

    CAPTULO SEGUNDO

    O ESPIRITUALISMO ECLTICO NO BRASIL

    I. O Problema da Denominao ........................................ 65

    II. A Recepo da Escola do Espiritualismo no Brasil ......... 74

    III. Arrolamento da Escola no Brasil ................................... 78

    IV. A Oposio ao Ecletismo no Brasil Imperial .................. 85

    V. A Liberdade em Monte Alverne .................................... 94

    VI. A Liberdade em Eduardo Ferreira Frana ...................... 102

    VII. A Liberdade em D. J. Gonalves Magalhes ................... 105

    VIII. Visconde Sabia de Figueiredo ..................................... 115

    IX. O Ecletismo Poltico .................................................... 119

    CAPTULO TERCEIRO

    O PENSAMENTO CATLICO NO BRASIL

    DURANTE O SEGUNDO REINADO

    I. A Igreja Catlica no Sculo XIX .................................. 130

    II. A Reao Catlica no Brasil e a Liberdade .................... 134

    III. A Liberdade Espiritual nos Debates da

    Questo Religiosa ........................................................ 139

    A) A Posio de Rui .................................................... 139

    B) O Ponto de Vista Catlico ....................................... 145

    C) A Posio Positivista ............................................... 152

    IV. Correntes Cruzadas do Pensamento Catlico no Imprio 156

    A) Krausismo no Brasil ................................................ 157

    B) Tradicionalismo ...................................................... 162

    C) A Escolstica Imperial e a Liberdade ........................ 166

    V. Jos Soriano de Souza .................................................. 168

  • 5

    5

    CAPTULO QUARTO

    TOBIAS BARRETO E A ESCOLA DO RECIFE

    DIANTE DA LIBERDADE

    I. O Bando de Idias Novas ............................................. 182

    II. Tobias Barreto sua Personalidade ............................... 188

    A) Sentido Geral da Obra de Tobias .............................. 190

    B) A Liberdade em Tobias Barreto ................................ 199

    a) Determinismo e Liberdade ....................................... 200

    b) A Essncia da Liberdade em Tobias .......................... 202

    c) A Liberdade Emprica de Tobias e o Monismo ............. 206

    d) A Concepo de Homem como Fundamento ..................210

    a) A Liberdade no Plano Poltico .............................. 212

    III. A Liberdade na Escola do Recife .................................. 217

    IV. A Liberdade em Fausto Cardoso ................................... 223

    V. A Liberdade em Silvio Romero ..................................... 227

    NOTAS................................................................................231

    CONCLUSES .................................................................. 241

    APNDICE

    As Metamorfoses da Liberdade no Pensamento Brasileiro ..... 244

    POSFCIO Antonio Paim...................................................255

    BIBLIOGRAFIA...................................................................269

    OBRAS CITADAS............................ ....................................275

  • 6

    6

    PRLOGO

    No final dos anos setenta o problema era a volta

    da liberdade e a instaurao da democracia em carter

    duradouro. Alguns imaginavam salvaguardas como v-

    rias frmulas de poder moderador e conselhos para

    controlar a eventual insana vontade popular. Outros

    repudiavam tais frmulas e queriam a volta ou

    representantes sem limitaes de espcie alguma,

    sonhando inclusive com volta pura e simples da

    ortodoxia da vontade popular para autorizar a eleio de

    quaisquer mandatrios de mandatos imperativos. Era

    patente a desconfiana e o medo do povo e o temor ao

    risco inerente em todo processo democrtico e humano,

    onde se aprende (como em tudo alis) por ensaio e erro.

    Nutria tal medo uma viso da cultura brasileira como

    autoritria at a medula desde suas razes ibricas

    passando pelo imprio escravagista e pela repblica

    oligrquica, pela ditadura estadonovista e pela impura

    democracia populista at 64, cujos problemas geraram o

    regime militar. Fernando Henrique Cardoso sintetizava

    num ensaio muito lido (Autoritarismo e Democra-

    tizao) estes antecedentes: uma estrutura poltica que

    nunca foi democrtica e que se formou no solo ibrico e

    dele foi transplantada para a Amrica sem jamais ter

    sido realmente europia, no sentido de que o

    desenvolvimento capitalista e a revoluo burguesa no

    a modificaram plenamente. No obstante, tambm a

    forma deste autoritarismo variou, desde o paternalismo

    autocrtico do imprio, passando pela forma oligrquica

  • 7

    7

    republicana da democracia de elites e pelo populismo

    autoritrio (s vezes beirando o fascismo) at o atual

    autoritarismo tecnocrtico, que no est imune tambm

    aos apelos fascistas. Era bvio que o Brasil no tinha

    precondio de autogoverno dado a tradio centralista

    lusitana, nossos municpios no elegiam seu governo,

    mas recebiam: juzes, autoridades policiais, clero e o

    prprio executivo de cima, bem como no faziam leis,

    aplicavam as feitas no ultramar. O analfabetismo, o

    clima de diviso social, herana da escravido, no

    ajudava, o regime patrimonial da sociedade em lugar do

    capitalismo, que fazia as vezes de um feudalismo no

    cooperava para a implantao da democracia repre-

    sentativa. A extino dos partidos polticos no perodo

    republicano idem. Agravando o triste diagnstico

    parecia haver no passado brasileiro um desamor pela

    liberdade de que dava testemunho o grande livro de

    Jarbas Medeiros a Ideologia Autoritria no Brasil

    FGV, 1978 onde estudava intelectuais da primeira

    metade do sculo XX. Com uma elite pelo menos desde

    o final do imprio negando a liberdade humana a nvel

    psicolgico (proliferao de vrios tipos de deter-

    minismos do positivismo), poltico-social, econmico e

    educacional. Seria melhor abandonar de vez o projeto

    liberal-democrtico. Instituies livres no so o fruto

    apenas de leis, mas de homens que acreditem na liber-

    dade e queiram implant-la.

    Minha formao pessoal num colgio religioso

    sob o pontificado de Pio XII antes do Conclio Vaticano

    II, tornara-me favorvel ordem e descrente e irnico

  • 8

    8

    quanto liberdade. Todavia, o breve, mas intenso,

    convvio com meu av, fez-me antever uma outra poca

    onde o amor liberdade era natural e vivo e um apreo

    pelas eleies (vov votava mesmo depois dos 80 anos ,

    indo s, cumprir o dever cvico pelo qual lutara em sua

    mocidade) muito distinto dos slogans positivistas e

    tradicionalistas sobre o sufrgio universal inorgnico,

    expresso de uma tirania do nmero e que no enchia a

    barriga de ningum.

    E se o amor liberdade de meu av fosse o de

    todo um perodo, haveria uma tradio brasileira de

    liberdade onde se pudesse enraizar o projeto de uma

    sociedade livre e democrtica. Estava traado meu

    projeto reconstruir as idias e a cultura brasileira no

    perodo que vai da independncia repblica. E ao fazer

    isto o sculo XIX, que meus professores religiosos

    denominavam com Leon Daudet de estpido, apareceu

    sob outra luz: o da generosa luta pela liberdade poltica

    interna, e pela libertao da Grcia, pela libertao do

    proletariado e pela liberdade religiosa, pela libertao

    da ignorncia e medo, pela educao elementar

    universal e obrigatria. Ao finalizar o sculo e iniciar -se

    o nosso pouco se conquistou a no ser o que foi muito, o

    fim da escravido no mundo ocidental (continuaria na

    frica sculo XX adentro e em trechos da sia), a

    reao conservadora fora vitoriosa, preparando a Grande

    Guerra, com seu agressivo nacionalismo e imperialismo

    autoritrios. Mas no tinha quando comecei esta

    pesquisa idia da fora do debate brasileiro em torno da

    liberdade e de sua variedade. Limitado por escopo

  • 9

    9

    acadmico a discutir apenas aspectos filosficos e pol -

    ticos da liberdade, deixei de lado o aspecto religioso, o

    da libertao da mulher e o magno problema da abolio

    da escravatura, bem como o da liberdade na escola.

    Porm, poca estes aspectos todos eram em conjunto

    discutidos com grande interesse e vivacidade a

    reconstruo completa da temtica da liberdade no

    perodo, deveria inclu-los. bvio que a sociedade

    imperial no realizava os valores dominantes na sua

    discusso terica, exatamente como a nossa hoje toda

    pacifista e contra a violncia coexiste com ndices

    alarmantes de violncia. O que no quer significar a

    nossa ou a imperial hipocrisia, mas apenas o fato de que

    as vigncias dos intelectuais, demoram para passar ao

    comportamento da sociedade como um todo. Resultados

    da discusso da razo pblica de que nos fala Rawls,

    passam primeiro para as leis e instituies depois s

    salas de aula e muito mais tarde tornam-se atitudes e

    comportamentos coletivos majoritrios, isto se no

    forem impedidas por outras idias. Por isso, preciso

    recuperar o amor pela liberdade para que se possa passar

    das liberdades consagradas na Constituio para com-

    portamentos efetivos, antes que o contnuo descum-

    primento desta no leve ao descrdito e ao surgimento

    de novas vigncias autoritrias de que quase todo o

    nosso sculo XX no mundo e no Brasil deu exemplos.

  • 10

    10

    INTRODUO

    I. Objetivos

    Procurou-se uma compreenso das idias do Se-

    gundo Reinado brasileiro. Preferiu-se para isso escolher

    um problema, o da liberdade, central nos debates da

    poca. E em torno dele procuramos discernir posies,

    evolues, influncias e correlaes. Este mtodo nos

    pareceu apresentar a vantagem de proporcionar um corte

    vertical das idias naquele perodo.

    Procurou-se seguir a tradio compreensiva

    inaugurada por Miguel Reale e Lus Washington Vita e

    continuada por Antonio Paim. Seu ponto principal o

    abandono da posio sectria e participante, tpica dos

    primeiros trabalhos sobre histria das idias no pas.

    Substitui-se a referida atitude por outra aberta

    compreenso da obra, procurando manter-se a analise a

    nvel filosfico, sem passar sociologia ou poltica

    vlidas, mas fora de nosso propsito.

    O mtodo de que se trata vem sendo

    aperfeioado desde A Doutrina de Kant no Brasil (1949)

    e consiste, basicamente, em deixar de lado toda

    arrogncia que nos leve a considerar privilegiada nossa

    prpria situao para tentar compreender que problema

    tinha pela frente determinado pensador. Nessa colocao

    o centro de interesse volta-se para a obra do autor

    brasileiro e as circunstncias do ambiente poltico-

  • 11

    11

    cultural em que a elaborou. Correlativamente, passa a

    segundo plano a questo de discutir-se a legitimidade

    dessa ou daquela interpretao e perde inteiramente o

    sentido a tomada de posio pr ou contra uma ou outra

    corrente. Embora apresente outras exigncias, tais so

    os seus aspectos nucleares e norteadores(1).

    Miguel Reale colocou como premissa de seu

    mtodo evitar a crtica externa.(2) Nossa abordagem

    ser pois intrnseca ou interna. Buscaremos o signi-

    ficado da obra, do perodo ou do problema dentro de sua

    imanncia, procurando no a julgar com critrios alheios

    ou colocar seu significado numa estrutura externa. No

    contestamos a legitimidade das interpretaes ex-

    ternas.(3) Mas cremos que no excluem nem prescindem

    de uma compreenso interna. Julgamos que Cruz Costa

    quem melhor praticou este tipo de interpretao ao

    colocar o sentido da obra na estrutura scio-econmica

    que a rodeia tinha razo ao escrever: A filosofia no

    pois exterior ao mundo. No simplesmente uma

    aventura do esprito, mas uma aventura humana total

    que se expressa, frequentemente de modo sutil, mas

    cujas razes esto na terra.(4)

    A pesquisa das razes sociais, econmicas e

    polticas com certeza til. Desde que se procurem as

    razes e no a verdade da obra ou seu significado.

    Ao analisar os condicionamentos econmicos de

    um sistema filosfico para neles encontrar a chave ou

    a explicao integral do mesmo estou degradando

    aquele sistema categoria de reflexo, sintoma ou

    confisso, consciente ou no, de uma estrutura de

  • 12

    12

    classes. No levo a srio o sistema, no o compreendo,

    pois do contrrio no o consideraria sintoma mas o

    discutiria e antes ouviria suas razes. Ademais existe

    aqui outra dificuldade como o historiador se transfigura

    em analista, que saber mais da origem das idias do

    pensador que ele prprio? O que nos leva a uma

    pergunta essencial: em nome de que o intrprete sabe

    mais? S se for de uma outra filosofia implcita, qual

    oponho a interpretada, sem a lealdade de admiti -lo. Era

    o que observava Merleau-Ponty:

    No se pode pensar em substituir o estudo

    interno das filosofias por uma explicao scio-histrica

    seno referindo-se a uma histria da qual se julga

    conhecer com evidncia o sentido e o curso. Supe-se

    por exemplo uma certa idia do homem total ou de um

    equilbrio natural do homem com o homem, e, do

    homem com a natureza. Ento, este telos histrico dado,

    toda filosofia pode ser apresentada como diverso,

    alienao, resistncia a respeito deste futuro necessrio,

    ou, ao contrrio, como etapa e progresso para ele. Mas

    donde vem e que vale a idia diretriz?

    A questo no deve ser colocada: coloc-la j

    resistir a uma dialtica que est nas coisas, tomar

    partido contra ela. Mas como sabeis que ela est a?

    Pela filosofia. Simplesmente, uma filosofia secreta

    disfarada em processo. O que se ope ao estudo interno

    das filosofias, no nunca a explicao scio-histrica,

    sempre uma outra filosofia, oculta nela.(5)

    Aceita a interpretao interna da obra, ainda so

    necessrias opes. Poder-se-ia adotar esta atitude e

  • 13

    13

    nela procurar a reconstruo da intuio bsica do

    sistema, como preconizava Bergson, ou reconstruir os

    tipos fundamentais das mentalidades vigentes em

    certa poca, ou pr a nu o projeto fundamental da

    filosofia, como na esteira de Dilthey fez Roque Spencer

    Maciel de Barros nos seus paradigmticos trabalhos: A

    Ilustrao Brasileira e a Idia de Universidade (1959)

    ou em A Significao Educativa do Romantismo: Gon-

    alves Magalhes (1973). Ou ainda numa abordagem

    compreensiva e interna se poderia tentar aplicar o

    mtodo das geraes de Ortega y Gasset, como tentou

    fazer A.L. Machado Neto em A Estrutura Social da

    Repblica das Letras (1973). Ou ainda aplicar o mtodo

    estrutural como o fez Martial Guroult com Descartes.

    No estgio atual dos conhecimentos sobre as idias no

    Brasil preferi adotar o mtodo dos problemas, originrio

    da figura de Rodolfo Mondolfo (1877-1976) e, dentro

    dele, escolher no um autor mas um tema-problema: o

    da liberdade. Parece-me que prefervel tal abordagem,

    por permitir levantar um maior nmero de fatos, levando

    em conta tambm que estamos longe ainda do seu

    conhecimento para nos permitir interpretaes sutis(6).

    Foi este o principal propsito da presente mo-

    nografia: contribuir com maior nmero de fatos para a

    histria das idias no Brasil. Pareceram mais impor-

    tantes do que novas e a nosso ver prematuras

    interpretaes, se bem que no as excluamos. Por essa

    razo deu-se tanta nfase na descrio e listagem de

    autores pouco ou nunca analisados e esquecidos.

    Buscou-se igualmente identificar os elos perdidos.

  • 14

    14

    II. A Liberdade Filosfica e a Poltica

    Uma tradio antiga parece separar a liberdade,

    estudada na filosofia onde aparece como livre-arbtrio

    ou liberdade interior e a liberdade, razo de ser da

    poltica, entendida como a liberdade exterior, ou

    melhor, como as liberdades.

    Epicteto, o filsofo escravo, considerava-se livre,

    dissertava com proficincia sobre a liberdade interior.

    Enquanto isto, no sculo XIX, John Stuart Mill defendia

    a liberdade poltica e social no seu notvel ensaio: On

    Liberty, e sustentava em sua Lgica, bem como no

    Exame da Filosofia de Hamilton, o determinismo

    negador da liberdade interior. Apoiado nisto, um dos

    melhores politiclogos de nossos dias, Giovanni Sartori,

    adverte-nos, na sua Teoria Democrtica, para o erro de

    confundir-se o problema poltico da liberdade com o

    filosfico.(7) Porque a liberdade poltica no um

    gnero filosfico de liberdade. No a soluo prtica

    para um problema filosfico, e ainda menos a soluo

    filosfica para um problema prtico.(8)

    Por respeitvel que parea esta tradio, parece-

    nos errnea. A liberdade poltica uma conseqncia da

    liberdade interior estudada na filosofia. Sua

    conceituao pode e at deve ser diversa, mas sua

    existncia depende da outra. O problema da liberdade

    com segurana complexo, abrange questes lgicas,

    teolgicas (da liberdade divina e a do homem face a

    transcendncia), questes ticas, psicolgicas, socio-

  • 15

    15

    lgicas e at fsicas, alm, claro, da poltica de onde

    primeiro surgiu.

    Nesta complexidade h um entrecruzar-se de

    planos e nveis, mas bvio ser a liberdade interior , do

    ponto de vista humano, a primeira e fundamento

    necessrio das outras. Como reclamar com seriedade

    liberdade poltica se no posso escolher ou querer?

    Mostraremos, com a ajuda de Arendt, Maritain e Paul

    Ricouer, o infundado da posio abstrata que isola

    filosofia e poltica, como se o real fosse diverso nos

    dois saberes.

    Hannah Arendt, a notvel pensadora poltica

    recentemente desaparecida, nos diz com graa: Para as

    questes da poltica, o problema da liberdade crucial e

    nenhuma teoria poltica pode se dar ao luxo de

    permanecer alheada ao obscuro bosque onde a filosofia

    se extraviou.(9)

    No entendimento de Hannah Arendt, tomamos

    inicialmente conscincia da liberdade ou do seu

    contrrio em nosso relacionamento com os outros e no

    no relacionamento com ns mesmos. Antes que se

    tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade

    da vontade, a liberdade era entendida como o estado do

    homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar

    de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras

    pessoas em palavras e aes. Essa liberdade, claro, era

    precedida da libertao: para ser livre, o homem deve

    libertar-se das necessidades da vida. O estado de

    liberdade, porm, no se seguia automaticamente ao ato

    de libertao. A liberdade necessitava, alm da mera

  • 16

    16

    libertao, da companhia de outros homens que

    estivessem no mesmo estado, e tambm de um espao

    pblico comum para encontr-los um mundo

    politicamente organizado, em outras palavras, no qual

    cada homem livre pudesse inserir-se por palavras e

    feitos.(10) Como, apesar disto, a liberdade veio se

    divorciar entre a filosofia e a poltica? Hannah Arendt

    relembra que a liberdade um conceito essencialmente

    poltico, por isso no desempenhou ela qualquer papel

    na filosofia anterior a Agostinho. S quando os cristos

    descobriram com So Paulo uma espcie de liberdade

    interior face sociedade e aos poderes deste mundo

    pela vivncia da interioridade de seu corao onde o

    Evangelho se responsabilizava at pela omisso de

    pensamento que se tornou possvel filosofia, com

    Agostinho, tematizar a liberdade interior. No alis

    por coincidncia que Agostinho ser o primeiro autor de

    uma autobiografia. E com o predomnio do cristianismo

    no mundo obscureceu-se a acepo poltica da

    liberdade. Durante o perodo cristo passou-se

    considerao exclusiva da outra liberdade, a interior,

    que importava analisar e correlacionar com Deus. No

    alheio ao abandono da noo poltica de liberdade, na

    filosofia, desmoronar do Imprio Romano, levando ao

    desaparecimento da vida poltica organizada. S quando

    esta ressurge, ao final da Idade Mdia, do-se as

    condies para a nova emergncia do problema poltico

    da liberdade.

    Essa a maneira como Hannah explica o relativo

    divrcio entre as duas abordagens. A partir do momento

  • 17

    17

    que h vida social organizada, a poltica volta a ser

    problema para o qual a filosofia deve contribuir; e a

    liberdade interior da Filosofia no alheia, de modo

    algum, aos importantes pressupostos polticos sobre os

    quais repousam a separao entre o espiri tual e o

    temporal.

    Jacques Maritain, no seu brilhante ensaio de 1933

    Du Rgime Temporel et de la Libert, enfrentou o

    problema da conexo entre liberdade filosfica e a

    poltica, segundo a tradio catlica que, para-

    doxalmente, adotava soluo diversa numa e noutra

    ordem. Mostrou sua conexo necessria ao livre-

    arbtrio, ao que se segue uma espcie de liberalismo

    poltico. Para separar sua posio da do individualismo

    liberal, introduz a distino entre indivduo e pessoa,

    sendo esta ltima fundamento da ordem poltica. E, ao

    faz-lo, conseguiu dar uma explicao histrica para o

    fato do liberalismo ter gerado os regimes totalitrios do

    sculo XX. Explicao logo glosada por seu discpulo

    brasileiro Joo Camillo de Oliveira Torres em livro a

    isso dedicado: A verdade que se o liberalismo deu

    ensejo a que rapidamente surgissem as grandes ditaduras

    modernas, isto vem do fato de se fundar numa falsa

    conceituao filosfica da liberdade. As prticas liberais

    so mais ou menos eficientes conforme os casos; o que

    no possvel a liberdade fundada em determinismo

    universal e numa filosofia negando fins ticos so-

    ciedade e aos homens. O liberalismo fracassou por no

    saberem os liberais o que vem a ser a liberdade, da o

    grande escndalo: os catlicos eram combativos por

  • 18

    18

    serem amigos da ordem e inimigos da liberdade, isto em

    virtude de afirmarem que o homem livre perante o

    universo.(11)

    Hoje percebemos ser mais simples atribuir o

    advento dos totalitrios negao dos liberalismos, do

    que a uma falha interna dos mesmos. Sobretudo levando

    em conta que nem todos os liberais so deterministas,

    tratando-se, no caso, de minoria.

    A posio de Maritain, expressa em muitas outras

    obras como nos Princpios para uma Poltica Huma-

    nista, consistiu em mostrar a necessria coerncia que

    se seguia da deduo da liberdade exterior da interior.

    Ou melhor, a indissolubilidade dos dois conceitos.

    O tema dos Encontros de Genebra, em 1969, foi

    Liberdade e Ordem Social. Paul Ricouer ali pro -

    nunciou uma conferncia: A Filosofia e a Poltica

    Perante a Questo da Liberdade. Nela procura demons -

    trar a tese de que a institucionalizao faz parte do

    conceito de liberdade e que inseparvel o sentido

    filosfico da liberdade do seu sentido poltico e social.

    Pela fundamental de sua demonstrao o processo da

    liberdade abstrata. Essa liberdade que se conquista pela

    reflexo, que fruto de uma separao do pensamento

    da ao. Essa liberdade abstrata o poder de alternativa,

    de opo, de escolha ou poder sobre os contrrios, como

    se queira.

    de notar que a reflexo na qual se fundamenta

    tanto pode ignorar o prximo como a sociedade; para

    ela, a liberdade nada tem a ver com as liberdades.(12)

    Ricouer nega que a filosofia esteja errada ao conceber

  • 19

    19

    esta liberdade interior desligada do contexto histrico-

    social; se assim fosse o seu contrrio, o determinismo,

    estaria correto. Sua crtica volta-se para o que denomina

    de iluso, de no perceber que antes do eu, veio o ns.

    Assim, considera-a abstrata. Nisto consiste o seu reparo

    fundamental liberdade interior, ao livre-arbtrio, ou

    poder de querer ou no querer. Seria a liberdade do

    vazio, abstrata, porque no se determinou ainda ao

    recusar-se a sacrificar as suas possibilidades ilimitadas

    de escolha de qualquer coisa. Deste modo, no se

    inclui nem na existncia nem na realidade. Quem no

    aceitou ser algo de limitado, de demarcado, optou por

    no ser nada.(13) A liberdade real no absoluta, ela

    encontra poderes que a limitam no mundo: o Estado, as

    leis naturais, os valores e Deus. Mas s aceitando essa

    limitao passar do plano das possibilidades para a

    realidade. S aceitando passar da faculdade para ao

    ser, e, quando o for, estar encarnada m uma

    instituio de qualquer tipo que seja. conclui Ricouer.

    Por isto nos julgamos autorizados neste trabalho

    histrico a analisar ao mesmo tempo a liberdade no

    plano poltico e filosfico por consider-los indisso-

    civeis. E, muitas alteraes de um plano sero

    imputadas ao outro, como veremos.

  • 20

    20

    CAPTULO PRIMEIRO

    A LIBERDADE NO SCULO XIX

    I. O Ocidente, a Liberdade e a Revoluo Francesa

    A sociedade ocidental tem como uma de suas

    caractersticas principais a paixo pela liberdade. Toda a

    histria do Ocidente gira em torno da liberdade. Na

    sociedade do Extremo Oriente, nem no Islam, a

    liberdade parece representar tal papel. Por isso sentiu-se

    Hegel autorizado em conhecida e respeitvel

    interpretao do sentido da histria ocidental a v-la

    como caminhando para o progresso da conscincia da

    liberdade. Na sua Filosofia da Histria traa-nos um

    impressionante panorama da histria sob este prisma.

    No Oriente, bero da histria, um homem era

    livre, o dspota; todos os demais escravos. Na Grcia e

    Roma, alguns cidados eram livres, os outros escravos.

    Devido a esse fato de que apenas alguns eram livres,

    no havia o conceito de liberdade universal, atributo do

    homem como homem. S com a Revoluo Francesa

    que adveio humanidade a plena conscincia da

    liberdade do homem universal, gozando da univer-

    salidade da liberdade. Assim, na Idade Moderna, com a

    Revoluo, proclama-se a liberdade de todos e inicia-se

    o processo de sua concretizao. A Revoluo Francesa

  • 21

    21

    assume pois uma caracterstica especial: o fato

    racional que divide a histria da humanidade,

    representa o advento da liberdade na terra. Hannah

    Arendt, no seu clssico ensaio Sobre a Revoluo,

    explica que a Revoluo no feita para conseguir

    liberdades como a de locomoo, nem para nos libertar

    da opresso. Isto poderia ser alcanado no regime

    monrquico ou mesmo sob uma tirania. A Revoluo

    feita para instaurar a liberdade como modo de vida

    poltica, tornando necessria a constituio de uma nova

    forma de governo, ou a redescoberta da Repblica.

    Mesmo que a Revoluo Francesa venha inserida

    num ciclo de revolues (holandesa, inglesa,

    americana), nela que a humanidade se reconheceu e

    tomou posse de si.

    At 14 de julho de 1789 o homem sofria o ciclo

    das leis naturais no mundo da cultura e da sociedade. A

    tradio seria os destinos humanos, o poder passava por

    sucesso hereditria e fazia-se o que sempre se fez em

    qualquer domnio. Com a Revoluo assiste-se ao

    espetculo de um povo que se d uma Constituio, isto

    , organiza-se o calendrio, d-se aos meses do ano uma

    designao racional. Encontra-se uma unidade de

    medida, o metro, que no fosse a lembrana de qualquer

    tradio mas algo razovel. Sistematiza-se o sistema das

    medidas correlacionando-se racionalmente as mesmas e

    pondo-as todas na mesma escala decimal. Unifica-se o

    tempo no pas, extinguindo a hora local. Unifica-se o

    direito poltico pela Constituio e o privado pelo

    Cdigo Civil e outras codificaes, que levam a razo e

  • 22

    22

    a liberdade aos menores detalhes da vida social.

    Estabelece-se o fim dos privilgios e instaura-se a

    igualdade para todos. O termo Constituio transcende

    seu significado jurdico, como mostrou Georges Gusdorf

    em Signification Humaine de la Libert, para assumir

    o de uma organizao racional do mundo humano. Quer

    dizer que a liberdade d-se a si mesma a condio de

    possibilidade estabelecendo um mundo conforme a sua

    exigncia.(14).

    Abrem-se indefinidas possibilidades de modela-

    mento do social pelos projetos humanos. Com a grande

    Revoluo o problema da liberdade torna-se prtico e

    poltico. No se trata mais de uma liberdade no seio do

    cosmos como na Antiguidade, ou do sutil problema

    medieval da liberdade da criatura face ao Deus criador e

    onisciente; tampouco da liberdade renascentista en-

    tendida como exaltao do homem face natureza. Com

    os pensadores que a preparam, a Revoluo Francesa

    desloca a tnica para a liberdade como coexistncia de

    liberdades, como problema tico-poltico, alm de

    significado geral da cultura.

    A discusso sobre o livre-arbtrio passa a ter

    implicaes profundas na sociedade, especialmente no

    que tange aos critrios a partir dos quais esse assunto

    julgado.

    Compreende-se agora o entusiasmo do velho Kant

    e de Hegel em relao Revoluo Francesa. Hegel

    escreve: constri-se agora uma Constituio tudo

    devendo daqui em diante repousar sobre esta base.

    Desde que o sol se encontra no firmamento e que os

  • 23

    23

    planetas giram em torno dele, se no tinha visto o

    homem colocar-se sobre a cabea, isto , fundar-se

    sobre a idia e construir segundo ela a realidade.

    Anaxgoras foi o primeiro a dizer que o Nos governa o

    mundo, mas somente agora o homem veio a reconhecer

    que o pensamento deve reger a realidade espiritual.

    Foi um soberbo levantar do sol. Todos os seres

    pensantes celebraram esta poca. Uma sensao sublime

    reinou na poca, o entusiasmo do esprito fez tremer o

    mundo como se a este momento somente se tivesse

    chegado a verdadeira reconciliao do divino com o

    mundo.(15)

    Quer se concorde ou no com Hegel na im-

    portncia histrica universal da Revoluo Francesa, o

    fato que os contemporneos emprestaram-lhe este

    significado, por isso pareceu-nos razovel iniciar a

    histria da liberdade no sculo XIX com a descrio

    deste entusiasmo infantil e apocalptico pela mesma.(16)

    A liberdade o grande ideal dos jovens e o

    grande programa poltico, cultural e religioso relembra

    B. Croce, historiando o perodo. Por isso mesmo, o

    melhor nome, para que esse ideal preserve as suas

    particularidades o de religio. A liberdade trans -

    forma-se em ideologia poltica, o liberalismo, mas este

    logo transcende os quadros polticos, aparece um

    liberalismo religioso, outro social, outro econmico e

    at o literrio com o nome de romantismo. A emoo

    que acompanha a liberdade nos homens do sculo XIX,

    sua convico de que ela era objeto de uma aquisio

    incessante, numa batalha contnua onde a ltima e

  • 24

    24

    terminal impossvel, porque significaria a morte de

    todos os combatentes, isto , de todos os vivos.(17)

    Tal concepo religiosa da liberdade, por coloc-

    la acima de todos os outros valores, goza de trans-

    cendncia com relao ao confronto das liberdades

    concretas. No se identifica com nenhuma reivindicao

    ou conquista concreta. Apresenta-se como contnua,

    inexaurvel, apta a motivar sempre novas liberdades.

    Esta f secular, pelo seu carter exclusivo, teria de

    entrar e entra logo em choque com as outras fs vigentes

    no sculo.

    Primeiro com o catolicismo na sua vertente po-

    ltica tradicional, aliana do trono e do altar, tendo o

    ultramontanismo e o tradicionalismo como suportes

    ideolgicos e que passa a ser, apodado, na dcada de 60,

    pejorativamente, de clericalismo.

    Em segundo lugar, outra f vigente no sculo foi

    a democracia, surgida da mstica da igualdade das

    barricadas da Revoluo e tendo como pai Rousseau,

    sendo pos posterior e distinta da f liberal. Oriunda do

    puritanismo ingls, de Locke, Montesquieu, Voltaire e

    Adam Smith, ela fundiu-se mas em outros locais e

    tempos entrou em choque com o liberalismo. A terceira

    f foi o comunismo que, desde Babeuf, tornou-se uma

    vigncia do pensamento europeu at ser monopolizado,

    j no nosso sculo, pelo marxismo. A quarta f secular

    a mais fraca e a de menor durao, mas a mais armada, a

    primeira que enfrentou com energia o liberalismo o

    absolutismo. S em 1830 que se inicia sua decadncia,

    aps ter liquidado com a Revoluo. Mas seu declnio

  • 25

    25

    foi rpido em toda Europa, embora lento na Turquia e na

    Rssia onde s no sculo XX desapareceu. A outra

    grande f to ou mais forte e que predominou no

    esprito do sculo sobre todas foi o nacionalismo. Mas

    surgiu dentro do liberalismo, como liberdade para as

    naes, e quase se identificou com ele; s no sculo XX

    ambos se dissociaro. Complexas relaes existem entre

    o liberalismo e o romantismo. Nascidos juntos, s vezes

    nas mesmas pessoas, identificaram-se e depois sepa-

    raram-se com o desaparecimento da escola literria a

    meados do sculo.

    A religio da liberdade, o liberalismo, entendido

    como a tentativa de colocar a liberdade como supremo

    valor individual, social e o programa poltico da

    decorrente, permanece vigente at 1914 sem maiores

    problemas; acomodando-se a doutrinas as mais diversas

    e com elas compondo formas eclticas, predominou

    entre os pensadores do sculo. No confundi-lo, bvio,

    com sua expresso econmica. Esta surge depois que as

    vertentes filosfica e poltica j estavam em ao;

    alinhou-se um tempo a seu lado e depois seguiu sua

    trajetria, passando a ser defendida inclusive e talvez

    mais por no-liberais enquanto estes passavam a

    crticos do capitalismo.

    No debate da liberdade, o liberalismo trouxe

    como conseqncia a extino dos enfoques pessimistas

    e a unificao do discurso filosfico e poltico numa

    intensidade maior do que a j verificada antes. A

    negao ou restrio terica da liberdade no plano

    filosfico acompanha normalmente uma poltica

  • 26

    26

    absolutista ou pelo menos no liberal. Preocupada em

    reforar a autoridade e manter o estado das coisas,

    hostil a inovaes. Esta unificao dos dois discursos no

    sculo justificar as digresses abundantes sobre as

    idias polticas e as idias religiosas, embora o escopo

    do trabalho continue sendo a liberdade a nvel

    filosfico.

    II. A Liberdade na Filosofia Europia

    A) A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna

    O impacto da Revoluo Francesa deixou um

    sentimento de novidade nas novas geraes do incio do

    sculo; ao pronunciarem o termo liberdade, parecia-lhes

    que a sua liberdade no era a mesma pela qual lutaram

    as comunas medievais ou a que comparecia aos

    discursos de Pricles. Essa sensao de novidade

    explode num discurso que Benjamim Constant

    pronuncia no Ateneu de Paris, em 1819, sob o ttulo:

    Da Liberdade dos Antigos Comparada com a dos

    Modernos. Benjamim Constant a contraditria e

    brilhante figura de romancista, filsofo da religio,

    pensador poltico e homem de ao sustentava, no

    calor de sua oratria, serem completamente diferentes as

    duas concepes. Aos antigos a liberdade seria o poder

    de participar no Estado. Para os modernos a liberdade

    seria perante o Estado. A primeira concepo coletiva;

    corresponderia apenas ao direito de votar e ser votado

  • 27

    27

    na escolha dos magistrados do Estado. A moderna

    incluiria a idia de proteo face ao Estado, bem como

    uma esfera intima da privaticidade do homem. As idias

    de Constant espalharam-se e, baseado nelas, Fustel de

    Coulanges desenvolve-as ao escrever sua Cidade Antiga,

    clssico estudo sobre as instituies greco-romanas.

    Nesse estudo, o captulo 18 do livro terceiro intitulado

    Da Onipotncia do Estado. Os Antigos no Co-

    nheceram a Liberdade Individual. A liberdade antiga

    no exclua uma submisso individual incrvel ao

    Estado, chegando, como documenta Fustel de Coulan-

    ges, obrigao imposta aos pais de assassinar os filhos

    quando reputados defeituosos ou excedentes demo-

    grficos. Ou a interditar ao marido o perdo da adltera,

    entregando-a compulsoriamente lapidao. Ou, ainda

    mais, este absurdo: o Estado interdita os lamentos das

    vivas dos cidados, mortos em combate, para no

    ofuscar o brilho das comemoraes de uma vitria. Bem

    como era comum a prescrio de roupas, tecido,

    formato, cor. O Estado antigo prescrevia tudo: idias,

    sentimentos e roupas. E seus mandamentos e ele prprio

    reputavam-se sagrados e eram tidos como tais. A

    desobedincia a seus preceitos era impiedade e o exlio

    verdadeira excomunho, dada a identidade da religio

    com o Estado.

    Um totalitarismo inconcebvel ao qual se somava

    a participao poltica eis a liberdade para o antigo

    greco-romano. O Estado podia pedir tudo, desde que o

    cidado tivesse participado dos comitia que

    designaram a autoridade que lhe pedia o ato absurdo.

  • 28

    28

    Ele se considerava livre, sendo admissveis as

    prescries mais devassantes da intimidade.

    Uma liberdade dentro do Estado e no contra o

    Estado, no sentido de reservar ao indivduo uma esfera

    de ao exclusivamente sua, uma intimidade inde-

    vassvel, como se passa na concepo moderna,

    individualista. Para os antigos o homem era um simples

    indivduo e no uma pessoa, para usarmos a distino

    maritaineana. Tal descrio da liberdade, em que pese

    seus exageros,(18) transitou em julgado e foi aceita

    pelos contemporneos, que se reconheceram na

    contraposio e aceitaram as ponderaes dos seus

    defensores como ponto inicial a se considerar no debate

    do tema da liberdade. At o sculo XX, falar em

    liberdade era pens-la contra o Estado, como se nota nos

    livros clssicos sobre liberdade, escritos no sculo XIX,

    por John Stuart Mill e Jules Simon, para mencionar os

    dois de maior influncia na cultura brasileira. Colocam

    o problema de modo bem diverso do livro sobre a

    liberdade de S. Agostinho, por exemplo. a acei tao

    do debate iniciado por Constant.

    B) A Liberdade nas Doutrinas Filosficas do Sculo

    XIX

    De pose desta nova intuio, a filosofia vai

    conceptualiz-la com ardor. A liberdade foi dos temas

    constantes e presentes em quase todos os filsofos do

    perodo. Numerosas teorias e vastos volumes foram

    escritos sobre o tema. Procurarei mostrar como foi visto

    o problema da liberdade pelas filosofias do nosso

  • 29

    29

    sculo, que logo iriam indagar do tema em Kierkegaard

    ou em Nietzsche nomes sem ressonncias no sculo

    XIX e da no teramos um esquema til para poder

    discernir como os pensadores brasileiros reagiram a ele;

    apanhamos a viso de um contemporneo.

    Em 1894 o abb C. Piat, professor do Institut

    Catholique de Paris, publicava pela livraria de P.

    Lethielleux um vasto volume (351 pgs.): La Libert

    1re

    Partie: Historique du Problme au XIXe Sicle,

    viso tanto mais importante porque feita por um

    contemporneo francs, sabida a predominncia, no

    Imprio, da cultura francesa.

    Piat distingue trs perodos na anlise do

    problema durante o sculo. No primeiro, que

    corresponderia ao do romantismo, a liberdade foi

    abordada pelo mtodo psicolgico e metafsico.

    Psicolgico em Maine de Biran, Victor Cousin,

    Thodore Jouffroy; metafsico em Fichte, Schelling e

    Hegel. Em todos estes autores, o prestgio intacto do

    Liberalismo, em plena fase ascendente de sua luta com o

    Absolutismo, leva-os a defesas apaixonadas da

    liberdade. Para os espiritualistas a liberdade des-

    coberta numa intuio; para os idealistas, numa

    complexa anlise metafsica. Por volta da dcada de 40

    tem incio a vigncia de um segundo perodo, cor-

    respondente a uma nova e radical atitude face

    liberdade. A nova atitude sustentada pela crise com

    que se defronta a filosofia, (19) em face da exausto dos

    temas da problemtica moderna, na obra de Hegel, ou

    devido incontinncia especulativa dos temas do

  • 30

    30

    idealismo germnico.

    Seja qual for a resposta adotada, a filosofia cai no

    mais baixo nvel de seu prestgio coletivo, e todas as

    esperanas voltaram-se para a cincia. (LAvenir de la

    Science, de Renan, foi escrito em 1848). Talvez pelo

    impacto das conquistas cientfico-tecnolgicas ou sim-

    plesmente para ocupar o vazio deixado pela filosofia, a

    cincia e o mtodo cientfico so usados para resolver o

    problema da liberdade. Esta soluo aparece sob forma

    de determinismo, que a nega e procura explicar a iluso

    da conscincia da liberdade. Os pensadores agrupam-se

    conforme o tipo de determinismo preconizado. O

    determinismo cientfico ou mecnico recolhe os su-

    frgios de A. Comte e J. Stuart Mill. O determinismo

    fisiolgico tem a adeso de A. Bain e Thodule Ribot. O

    determinismo psicolgico merece a defesa de Scho-

    penhauer e Alfred Fouill, o qual prepara j a etapa

    seguinte, por sua temtica. curioso notar que estes

    determinismos sucedem-se no tempo. Iniciando-se por

    defender uma rgida determinao mecnica, as difi -

    culdades encontradas levam-no a procurar antecedentes

    fisiolgicos para a vontade; persistindo os problemas, h

    nova complexificao; chega-se aos antecedentes psico-

    lgicos como idias, valores e representaes e toda a

    ordem. Talvez no seja alheia a esse descrdito da

    liberdade a imensa frustrao causada pelos fracassos da

    maioria das revolues liberais de 1848, a que se

    seguiram intensa fase de represso e os regimes

    autoritrios de L. Napoleo e Bismarck. Cabe ainda

    lembrar a feroz crtica do socialismo ao liberalismo

  • 31

    31

    econmico, j estruturado a essa poca. Talvez se possa

    inverter a causao: os sucessos polticos apontados

    explicam-se pela mundividncia determinista alheia e

    hostil ao liberalismo romntico. (Embora os ingleses

    Mill e Spencer tenham procurado justificar um libe-

    ralismo cientificista em funo de peculiaridades in-

    glesas.) J na dcada de 80 muda o panorama. Re-

    nouvier, Secretan e W. Wiendelband, entre outros,

    adotam, para a anlise do tema da liberdade, o mtodo

    moral.

    Aceitando as dificuldades suscitadas pelo de-

    terminismo quanto liberdade, permanecia entretanto o

    fato da conscincia moral, que a pressupunha. Uma

    oportuna volta a Kant e a ressurreio da metafsica

    permitem usar novos mtodos de acesso ao real e

    justificar a liberdade como exigncia da razo.

    A cincia que autorizava o determinismo pela

    adoo de leis universais e necessrias, depois do exame

    a que foi submetida pela crtica filosfica, passa a uma

    atitude mais favorvel ao indeterminismo. A tese de

    mile Boutroux de 1874 A Contingncia das Leis da

    Natureza fundamenta a admisso da liberdade.

    Comea-se a examinar criticamente a epistemologia de

    Stuart Mill, que se tornara padro. Numerosas dvidas

    comearam a surgir: as leis cientficas parecem no se

    dar na natureza, nem serem descobertas como

    modelos abstratos; so construdas pelo cientista, e,

    como dependem das medidas, estas podem aperfeioar-

    se indefinidamente, o mesmo ocorrendo com as leis. Por

    outro lado, as leis como generalizaes de fatos no

  • 32

    32

    representam o lado real. Exprimem relaes entre uma

    estreita seleo, captada entre os fatos cientficos, que,

    por sua vez, so uma abstrao e seleo do mundo dos

    fatos naturais da percepo. Essas leis tm afinal um

    valor estatstico e regional; valem em funo das

    medidas e experincias feitas e no podem ser

    estendidas sem risco para outras zonas do real e se

    compaginam com numerosas excees. Era a crise da

    cincia, sobretudo da viso positivista da cincia.

    Dentro deste campo, a obra de Bergson, de 1889, o

    Ensaio sobre os Dados Imediatos da Conscincia,

    mostra como mesmo numa tica positivista havia lugar

    para a liberdade. Chega-se ao fim do sculo admitindo-

    se a coexistncia da ordem do determinismo e da ordem

    moral ou da cultura ou do dever ser, possibilitando a

    admisso da liberdade.

    Tais so as metamorfoses por que passou a idia

    de liberdade no sculo XIX. Com o romantismo ela

    afirmada (Victor Hugo dissera no prefcio de Hernani

    que o romantismo o liberalismo); sendo negada com o

    naturalismo e o realismo. O simbolismo, coetneo do

    criticismo e do pragmatismo na filosofia, a afirma de

    novo, numa sntese que integra as dvidas do

    cientificismo.

    H uma caracterstica central do sculo, e que o

    faz diverso do nosso: por exemplo, na tratao do tema.

    O problema da liberdade no sculo XIX o da

    existncia ou no da liberdade em todos os nveis e

    planos: filosfico, poltico, social e religioso. Em nosso

    sculo, o problema no mais o da existncia da

  • 33

    33

    liberdade. As discusses orientam-se da tica, onde se

    encontrava na passagem do sculo, orientando-se para a

    ontologia. A liberdade passa a ser aceita por quase todas

    as correntes mas a preocupao com sua estrutura e

    insero na prxis.(20)

    III. A Liberdade no Brasil durante o Sculo XIX

    A) Originalidade e Autenticidade do Pensamento

    Brasileiro

    Integrando a periferia da sociedade ocidental, no

    sentido histrico-sociolgico emprestado a esse termo

    por A.J. Toynbee, nosso pas experimenta como seus os

    movimentos ideolgicos surgidos para resolver os

    problemas da mesma sociedade, porque tambm deles

    participa. Ainda que com uma defasagem, o nosso pas

    experimentou os problemas dos pases ocidentais no

    sculo XIX. Constitucionaliza-se, ensaia-se um regime

    representativo, participa do mercado internacional,

    adota o navio a vapor, os trens de ferro, o consumo do

    carvo e do ferro, o romance e o drama romnticos e

    depois o romance e o drama naturalista e realista.

    Participando de um nico universo econmico, social,

    religioso e cultural em suma, obviamente usar as

    mesmas idias para resolver os mesmos problemas

    derivados do ingresso comum no processo da

    modernizao. Ao qual alis no poderia furtar-se como

    prova o exemplo da China e do Japo, culturas

  • 34

    34

    milenares do Extremo Oriente, foradas a participar da

    vida da sociedade ocidental. Maiores razes teria para

    participar um membro por direito de nascimento e

    proximidade geogrfica.

    Por esses motivos no de estranhar que o nosso

    sculo XIX repita as mesmas etapas e correntes de

    idias europias.

    Julgamos sem sentido as estreis polmicas que

    ocupavam os primeiros historiadores do pensamento

    brasileiro. Muito preocupados com a originalidade e

    acusando todos de copiarem e importares idias. Ao que

    se saiba os ingleses jamais acusaram Stuart Mill de

    importar e copiar A. Comte e, por isso, de ser alienado.

    O mesmo se diga dos italianos com relao a Croce e

    Gentile no tocante a Hegel. (Como nossos cr ticos nada

    objetaram adoo do navio a vapor.)

    O uso do conceito de alienao supe que uma

    filosofia autntica do pas seria selvagem e originria, o

    que uma idia romntica e alheia ao processo de

    elaborao da filosofia e da cincia: processo comum a

    geraes e no apenas de homens individuais. Caso

    contrrio, s os gregos poderiam fazer filosofia. Vicente

    Ferreira da Silva viu com perspiccia o problema no seu

    artigo: Em Busca de uma Autenticidade, de 1958,

    onde escreve: toda esta polmica de uma heteronomia

    de nossos usos, idias e movimentos, supe, como

    premissa, que somos algo diverso daquilo que somos,

    um algo antieuropeu ou antiamericano soterrado pela

    cultura de importao. Nada sustenta, contudo, esta

    apreciao... Pertencemos a uma s cultura, com

  • 35

    35

    pensamentos, desideratos e maneiras de ser uniformes.

    Vivemos o Ocidente, somos o Ocidente, o Ocidente

    institucional, tico, filosfico, religioso, tecnolgico e

    industrial. No possumos um ser potencial ou

    subliminal diverso e exterior representao ocidental

    da vida e pronto a se manifestar assim que superarmos

    essa alienao. A nossa realidade uma realidade em

    comum com as formas e ideais europeu-americanos e a

    nossa tradio tambm uma ramificao dessa mesma

    planta cultural.(21)

    Cabe distinguir, bvio, a justa e pertinente

    crtica iniciada por Slvio Romero (no resto feroz im-

    portador de idias) e continuada por Euclides da Cunha,

    Alberto Torres e elevada perfeio por Oliveira

    Vianna feita importao de instituies. (Que tem

    uma conexo com a geografia muito maior que com as

    idias). Nesse sentido o Idealismo na Constituio

    (1920) e o segundo volume das Instituies Polticas

    Brasileiras (1949), ambos de Oliveira Vianna, disseram

    tudo que se poderia dizer de razovel antes dos

    desvarios do grupo do ISEB. Mais perto de ns, Mrio

    Vieira de Melo no captulo inicial de Desenvolvimento e

    Cultura (1963) mostrou o que se deve pensar sobre

    importao e nacionalismo no setor.

    Portanto dentro da cultura ocidental estamos em

    casa. A validade de uma idia depender mais da sua

    capacidade de resolver o problema que a originou do

    que de seu coeficiente de originalidade. E quando

    apresentadas, as respostas tericas possveis para um

    mesmo problema no sero diversas aqui ou na Europa,

  • 36

    36

    claro. Mas seria infantil e errado falar em plgio, ou

    seduo do ltimo livro lido, com relao aos nossos

    filosofantes da passada centria.

    O ecletismo de Magalhes desenvolve-se junto

    com o francs; ele traduzido em Paris por estar

    atualizado. Antecipa idias de Bergson, por partir de

    fontes comuns e procurar responder perguntas idnticas.

    O mesmo ocorre com o neokantismo de Tobias. Como

    mostrou A. Paim em A Filosofia da Escola do Recife,

    ele contemporneo e no um plagirio dos neo-

    kantismos alemes, sendo mesmo anterior ao desen-

    volvimento mais definido da escola. O mesmo se passa

    com a neo-escolstica; a obra de Soriano de Souza

    anterior de vrios anos Aeterni Patris, sendo con-

    tempornea e no um plgio dos neo-escolsticos

    europeus, em suas obras originais. A regra no se aplica,

    claro, aos manuais, obra de compilao aqui ou no

    hemisfrio norte. E como j notou Miguel Reale, as

    correntes brasileiras, ainda quando afirmam serem

    iguais s europias no o so, por outra atitude quanto

    s nfases, quanto aos adversrios a combater e

    finalmente por pudor ou receio de confessar inovaes.

    B) O Problema Poltico da Liberdade no Brasil no

    Incio do Sculo XIX

    Sendo a Revoluo Francesa a derrocada do

    Ancien Rgime, as lealdades humanas mudam de

    orientao. O princpio dinstico e tradicional entre em

    crise irremedivel. Os povos passam a uma aguda

  • 37

    37

    conscincia de suas nacionalidades. Ser o grande

    problema poltico do sculo. Para tosos os povos a

    questo poltica no incio do sculo passado apresenta-

    se deste modo: libertar-se do estrangeiro criando para si

    um Estado nacional, caso lhe falte; libertar-se do

    absolutismo; e, terceiro, outorgar-se uma Constituio

    que institua um sistema representativo para substituir a

    velha ordem tradicional.

    O Brasil teve diante de si o trplice problema do

    tempo, como a Alemanha e a Itlia. Resolveu-o por sua

    Revoluo de 1822, a qual, para entendermos as coisas,

    tem que deixar de ser vista como movimento indolor,

    pois foi literalmente uma Revoluo.

    Aboliu a velha ordem de coisas, separou-nos do

    estrangeiro e criou um sistema representativo para

    substituir a ordem estamental; por ltimo no lhe

    faltaram o terror e sangue derramado, em guerra externa

    e em numerosas sedies e guerrilhas, at chegar ao seu

    ponto de estabilizao. O processo da Revoluo

    Brasileira foi lento, como tambm da francesa, que s

    findar com Napoleo. Iniciada em 22, em 24 temos a

    Carta Constitucional; em fins de 25, ao cabo de uma

    difcil guerra externa, o tratado que selou a sada dos

    portugueses. Depois, como na Frana, a agresso do

    inimigo externo at quase 29 quando se definem os

    limites platinos. Em 1830, a onda de jacobismo leva

    abdicao, s lutas civis interminveis dos nove anos de

    regncia, no interior dos quais tivemos o Ato Adicional,

    similar s Constituies que a Frana proclamou ao

    longo do caminho revolucionrio. Os contemporneos

  • 38

    38

    tiveram conscincia disso tanto que, depois da

    abdicao, Bernardo Pereira de Vasconcelos fala em

    travar o carro da Revoluo. A estabilidade e, por

    conseguinte, o final do processo revolucionrio s se

    dar depois de 1842 j com o Segundo Reinado e depois

    de muito sangue. Ento, quando pacificados os espritos,

    inicia-se o trabalho de reflexo que analisaremos. O

    perodo de recepo do liberalismo no pas foi

    analisado com brilhantismo por Vicente Barreto (A

    Ideologia Liberal no Processo da Independncia do

    Brasil). Resta entretanto examinar a discusso ideo-

    lgica posterior ao ato formal de independncia e a

    oposio ao liberalismo revolucionrio.

    No se fala da oposio, mas ela existiu; nem

    todos no Brasil eram liberais radicais como Frei Caneca,

    nem sequer moderados como Pedro I. Dentro da prpria

    Igreja, de Caneca a Feij, encontraremos a figura de D.

    Romualdo Antnio Seixas, mais tarde arcebispo-primaz

    do Brasil, que enfrentou Feij, apressando sua derru -

    bada. Alis Feij foi, com Caneca, o inspirador das

    nicas restries das cmaras municipais (Itu e Recife)

    carta de 24. D. Romualdo, por exemplo, em 1819,

    pronunciava na vila de Camut, na Bahia, um discurso

    onde impreca:

    Tu viste, Frana, os frutos desgraados de tua

    liberdade de pensar... Naes inteiras, os mesmos reis e

    prncipes, seduzidos pelo doce prurido da tua liberdade

    se alistaram debaixo do estandarte da irreligio e do

    pretendido filosofismo... A Frana, esta nao to

    famosa pela sua sabedoria como pelo amor aos seus

  • 39

    39

    monarcas, entregue, bem como antigamente o Egito, ao

    esprito de vertigem, que o Senhor espalhou nos seus

    Conselhos: depois de flutuar numa infinidade de teorias

    e sistemas mais engenhosos que slidos sobre os

    princpios da legislao, precipitou-se nos horrores da

    anarquia, manchando suas mos parricidas no sangue do

    Ungido do Senhor e substituindo um governo paternal...

    por Constituies revolucionrias que sob o pretexto dos

    direitos do homem depositavam na massa os poderes...

    da soberania. O germe dessas funestssimas convulses

    seria o fantasma de uma liberdade quimrica.(22) D.

    Romualdo dar continuidade a essa Cruzada contra o

    liberalismo como ao ecletismo que apoiava durante

    sua longa vida, que se extinguir em pleno Segundo

    Reinado, numa ao incansvel, como arcebispos,

    parlamentar, animador e fundador de jornais, revistas,

    cenculos e autor de novos sermes. A mesma ao

    vamos encontr-la em Cairu, a nvel religioso, e, a nvel

    poltico, com o Visconde de Jequitinhonha que, em

    1834, publica A Liberdade das Repblicas com

    epgrafe de Edmond Burke, destinada a estabelecer que

    as monarquias garantiam a liberdade melhor que as

    repblicas.

    Tal linha de pensamento no foi ainda levantada.

    Parece inspirar-se num tradicionalismo, contra o

    liberalismo radical, que seguia a ideologia empirista.

    Em todo caso, ainda h pouco material para uma anlise

    do debate de idias durante a Revoluo Brasileira.

    O motivo seria, como insinuou A. Paim, o no se

    ter explicitado entre ns a problemtica filosfica ligada

  • 40

    40

    adeso do liberalismo?(23)

    Interessa-nos aqui salientar que durante a

    Revoluo Brasileira cumpre-se o processo de incor-

    porao do pensamento moderno cultura luso-

    brasileira, j iniciado com Pombal. As idias vigentes na

    elite brasileira, quando da Independncia, no eram

    mais as da escolstica, mas o que se denominou

    empirismo mitigado.(24)

    Este sistema nutria-se de Verney, de Genovesi, de

    Condillac, dos idelogos, dava grande primazia aos

    conhecimentos cientficos dentro de uma viso gros -

    seiramente empirista; parece escamotear o problema

    tico ao solucion-lo pelo sentimento e reduzi-lo ao

    culto, e no fundo um praxismo mais ocupado na ao e

    nos seus resultados. Tais idias estavam presentes em

    Azeredo Coutinho, Jos Bonifcio, Frei Caneca e Avelar

    Brotero, por exemplo. Mas o empirismo, como j

    observou Kant, no consegue fundamentar a liberdade.

    A partir da nossa herana cultural empirista no havia

    possibilidade de se admitir a liberdade e fundamentar

    nela um regime constitucional. Estes eram os termos do

    problema da liberdade para a cultura brasileira no incio

    do sculo XIX. Por outro lado a escolstica estava em

    descrdito total e desconhecimento, acusada de ser

    solidria com a fsica aristotlica e incapaz de

    fundamentar a fsica de Galileu e Newton. As idias

    vigentes oriundas dos idelogos tinham ajudado a

    derrubar o Ancien Rgime mas com elas no se podia

    viver no sistema liberal, exceo da obra de Silvestre

    Pinheiro Ferreira, que pouco tempo passou no pas,

  • 41

    41

    todos comungavam no mesmo empirismo sensualista

    tendo Helvetius e Bentham como guias na moral e

    fornecedores de fundamentos da poltica; difcil a

    fundamentao da liberdade com tais referncias. Por

    outro lado, o empirismo vigente no era capaz de fazer

    face aos reclamos da conscincia religiosa tradicional,

    encarnada em D. Romualdo e em Cairu, e estabelecer

    uma tica compatvel. Seja como for, o liberalismo deu

    conta destas resistncias de um tal modo que levou

    Euclides da Cunha a dizer hiperbolicamente em

    Margem da Histria: Somos o nico caso histrico de

    uma nacionalidade feita por uma teoria poltica. Essa

    adeso a nvel institucional refora o problema terico

    da liberdade. A prpria difuso do liberalismo no pas

    induz discusso do problema da liberdade, que

    ocupar todos os autores de todas as correntes do

    Segundo Reinado constituindo-se num autntico

    Leitmotiv do perodo. o que dizia Pontes de Miranda:

    No Brasil a luta pela liberdade comeou cedo. a

    nossa histria quase toda. Ainda no temos outra.(25)

    C) As Correntes Filosficas do Segundo Reinado

    Repetimos, pois, a evoluo europia; mas a

    nossa prpria defasagem, devido ao atraso decorrente

    das condies infra-estruturais da cultura, cria uma

    mutao nova no debate. Por exemplo, o positivismo

    para ns pertence mais tradio do sculo XIX para o

    XX. Inicia-se entre ns em 1874, com o primeiro livro

    de Boutroux, que marca o declnio do positivismo na

  • 42

    42

    cultura francesa. Podemos pois deix-lo fora do

    pensamento do Segundo Reinado pois seu apogeu s se

    dar com a Repblica. Estudaremos, pois, as seguintes

    correntes significativas do perodo do Segundo Reinado:

    1) O espiritualismo ecltico, cuja vigncia coin-

    cide exatamente com o perodo (1840-1889), a

    corrente dominante no ensino oficial at o fim do

    Imprio, nas tradues, e a ela aderem os vultos mais

    representativos da poca. o suporte filosfico do

    liberalismo da Carta de 1824.

    2) Reao Catlica Designa um grupo de

    filosofias identificadas com a defesa da Igreja Catlica

    face crescente secularizao da sociedade. Como a

    Igreja s em 1879 adotar uma filosofia oficial e neo-

    escolstica (entre ns sinnimo de neotomismo), vrias

    escolas disputam antes dessa data a preferncia dos

    catlicos: tradicionalismo, krausismo, rosminianismo,

    alm do neotomismo. O nome de Reao Catlica deve-

    se a Silvio Romero e til pois designa o carter de

    oposio dos catlicos cultura oficial, de incio

    empirista e liberal e depois espiritualista, mas de um

    espiritualismo racionalista seno hostil pelo menos

    indiferente ao cristianismo. Isto, alm de favorecer o

    liberalismo religioso com seu regalismo, como poltica

    de uma nao unida Igreja. Na poca, por fora de

    Syllabus, todos os catlicos eram antiliberais, contrrios

    separao da Igreja e do Estado, tese cara ao

    liberalismo. E tinham estes catlicos atitude no mnimo

  • 43

    43

    reticente face s liberdades modernas, como a

    liberdade de conscincia, de culto, e de imprensa e

    edio. Tudo isto os marginalizava dentro da elite do

    tempo, com iderio francamente liberal, e os fazia

    vincular-se a formas arcaicas da cultura popular.

    3) Tobias Barreto e a Escola do Recife Dos

    movimentos vinculados ao naturalismo cientificista que

    entra no pas depois de 1868, o positivismo como j

    dissemos, teve seu clmax no Brasil mais tarde, por se

    ter transmudado aqui em filosofia poltica e religio. O

    outro ramo do naturalismo cientificista e algo de novo

    a Escola do Recife, que tem seu apogeu entre 1875 e o

    fim do sculo, motivo pelo qual, somado pujante

    personalidade de seu fundador, Tobias Barreto, a

    estudaremos dentro do perodo.

    D) Liberdade e Sociedade durante o Segundo

    Reinado

    A sociedade imperial tem uma vivncia intensa da

    idia de liberdade. Os recentes trabalhos de Joo

    Camillo de Oliveira Torres, sobretudo sua Democracia

    Coroada (1757), brilhante estudo do sistema poltico do

    Imprio, e o pequeno livro de 1968: Os Construtores do

    Imprio trouxeram nova luz sobre as idias de sua elite

    dirigente. Os volumes consagrados ao Brasil Monr-

    quico na Histria da Civilizao Brasileira dirigida por

    Srgio Buarque de Holanda, nos permitem uma viso

    mais objetiva da sociedade imperial, despida dos

  • 44

    44

    preconceitos dos historiadores republicanos.

    A sociedade imperial dispunha de instituies

    liberais; a Carta de 24, apesar de outorgada, inclua uma

    pauta de direitos avanada para seu tempo. O que fazia

    o genial panfletrio que foi Justiniano Jos da Rocha

    perguntar oposio radical, em 1855: diga-se qual o

    grande princpio de liberdade que nela no se ache

    consagrado, qual a instituio protetora que nela no

    esteja indicada, qual o direito do homem e do cidado

    que nela no aparea garantido? (26)

    Com a Regncia, procura-se fazer uma experincia

    de liberalismo integral, sendo inclusive eletivo o poder

    mximo, e as leis processuais asseguram uma tal

    liberdade civil que se chega impunidade, exigindo o

    regresso de Vasconcelos. Uruguai e Torres. Com o

    Segundo Reinado, o imperante timbra em ser apenas um

    primeiro funcionrio que procura sempre cumprir e fazer

    cumprir a Constituio. Protegendo mesmo antimo-

    narquistas como Tobias e outros, gera no pas um clima

    sem par de respeito lei. A liberdade de imprensa total

    e aps a represso, em 1848, da ltima sedio poltica

    no Imprio, a Praieira, desfruta-se de quarenta anos

    ininterruptos de paz interna, sem censura imprensa, sem

    banimentos ou qualquer priso por motivos polticos, o

    que um recorde nacional e internacional. A liberdade de

    imprensa com relao pessoa do imperador no seria

    tolerada em nenhum pas contemporneo. A vida e a

    liberdade dos adversrios polticos constituem ponto de

    honra nas pugnas polticas do tempo. Esse panorama

    idlico de respeito s liberdades e adeso sincera dos

  • 45

    45

    polticos a essa causa encontra trs graves excees.

    A primeira e a menos grave era o problema

    eleitoral. Graas ao controle da mquina policial pelo

    ministro da Justia, as eleies imperiais, para as quais

    a qualificao do eleitor se fazia na vspera da eleio,

    que no era secreta, permitia manipulaes e presses

    de toda sorte. As autoridades impediam a qualificao

    pela fora pblica, exonerao e remoes do fun-

    cionalismo. mas como o imperador, pelo uso do poder

    moderador, alternava os partidos no poder, no era

    insuportvel o estado das eleies. E ademais havia um

    contnuo processo de aperfeioamento. Sucessivas leis

    eleitorais, culminando na lei Saraiva, aperfeioaram

    muito a autenticidade das eleies. O corpo eleitoral,

    muito reduzido no Primeiro Reinado, recrutado pelo

    sistema de censo alto, vai sendo ampliado. Em todo caso

    as eleies do imprio, sem ser perfeitas, como todos

    reconheciam, eram melhores que as da Repblica at

    pelo menos 1934, muito pires em distoro e permitindo

    o abuso de reeleies sucessivas e muito sangrentas.

    Podendo-se dizer que o grupo, que assumiu o poder com

    as primeiras eleies diretas republicanas, s foi apeado

    do poder em 1930, dada a inexistncia de poder

    moderador.

    O principal problema no eram as eleies, mas a

    irrecusvel contradio entre uma sociedade liberal e a

    escravido de mais de um milho de seus membros.

    Todos acreditavam na liberdade e defendiam-na com

    retrica e fanatismo. Numerosas rebelies liberais

    sucedem-se no Imprio, mas nenhuma delas faz da

  • 46

    46

    abolio o seu programa. E ironicamente, foi o Partido

    Conservador o autor da maioria das medidas abo-

    licionistas, inclusive da derradeira. Comprovando que a

    diferena entre os dois partidos imperiais era ttica e

    no ideolgica. Ambos eram liberais, s com a diferena

    de que os conservadores eram pragmticos apegados

    terra e muito pouco amigos da retrica. Como dizia o

    Visconde de Uruguai referindo-se aos liberais radicais

    estilo Tefilo Ottoni, invocadores do fantasma de Frei

    Caneca: H muita gente que cr que a palavra liberdade

    mgica, e opera por si s todos os melhoramentos.

    Decretada a liberdade est tudo remediado. Decreta-se a

    liberdade em um pas. No desapareceram logo todos os

    seus males? porque a liberdade pouca. Evi-

    dentemente o remdio aumentar a dose. coisa

    simplssima e faclima.(27)

    Os liberais do Partido Liberal desempenhavam

    um papel universalista; retricos, desligados do

    contexto estreito de uma sociedade rural atrasada,

    sonhavam e acutilavam os conservadores s reformas

    que encaminhassem o pas real para o ideal que viam

    com os olhos deslumbrados. Por isso mesmo no podiam

    ou no queriam enxergar a realidade que era o domnio

    dos conservadores, de uma eficincia que desculpava

    seu pedestrianismo. A contradio minava as bases da

    sociedade imperial, ia contra seus foros de culta,

    civilizada e liberal. Ningum defendia a escravido, mas

    tambm no se tomava providncia alguma para

    extingui-la. At a dcada de 60 h um ominoso silncio

    em torno do tema. exceo de Gonalves Magalhes e

  • 47

    47

    Torres Homem, os pensadores todos defendem a

    liberdade mas nenhum extrai conseqncias da tese com

    relao escravido. S com a pregao de Castro

    Alves e Joaquim Nabuco que se inicia a participao

    da intelligentzia nacional no abolicionismo. As prprias

    leis abolicionistas, como a proibio do trfico em 1850,

    foram adotadas mais por razes de prestgio e segurana

    nacionais do que para extingui-la.

    significativo o esquecimento do olvidado libelo

    de Affonso dAlbuquerqure Mello, no livro A Liberdade

    no Brasil que tem como subttulo: Seu Nascimento,

    Vida, Morte e Sepultura publicado no Recife em

    1864 (216 pgs.). A obra, de um exaltadssimo libe-

    ralismo, investe contra tudo e contra todos denunciando

    opresses reais e imaginrias contra a liberdade no

    Brasil, a qual como se v considera morta.

    Faz uma longa lista de reivindicaes para res-

    tabelecer a liberdade no Brasil (s pginas 94 e 97) tais

    como: a volta do Ato Adicional, a abolio do Conselho

    de Estado etc., mas nem uma palavra sobre a escravido.

    Sobre esta uma referncia na pgina 12 e um tpico na

    47, onde diz que num pas de instituies livres a

    escravido corrompe os costumes e torna o povo incapaz

    de liberdade; nem por isso pede a abolio da mesma.

    Parece existir um acordo tcito entre os in-

    telectuais, em se no discutir a escravido. Pelo menos

    at a Guerra do Paraguai, onde o contato com as rep-

    blicas do Prata, florescentes sem o brao escravo, mais a

    crtica externa nefanda instituio, determinaram a

    viragem de atitudes e idias.

  • 48

    48

    Seja como for, pelo menos h um consolo:

    nenhum intelectual defendeu durante o Segundo

    Reinado a escravido, (a exceo: Frei Firmino de

    Centelhas, era espanhol) e bem ou mal a cada legislatura

    se discutiam propunham a aprovavam medidas parciais

    para eliminar a chaga social. E a sociedade imperial

    conseguiu, gradualmente, chegar abolio completa da

    escravatura, em 1888, sem os custos de uma guerra civil

    como nos Estados Unidos, fato que talvez justifique a

    poltica gradualista seguida pela elite do Imprio. A

    liberdade era assim o valor supremo da sociedade do

    Segundo Reinado, apesar do paradoxo da escravido, de

    longa vida mais pelo medo da catstrofe econmica do

    que por um projeto deliberado de mant-la.

    O terceiro e contradio da sociedade imperial

    era a unio da Igreja com o Estado. Incompreensvel da

    tica liberal, implicava uma srie de limitaes e

    desigualdades aos no-catlicos. Estes eram obrigados

    pela legislao imperial a casar-se perante uma religio

    que no era a sua; morrer sob ritos alheios para poderem

    ser sepultados ou no ter de todo sepultura regular em

    cemitrio; jurar defender uma religio estranha como

    condio para cursar uma escola superior ou ascender a

    uma cadeira de deputado. Alm de que seus templos no

    poderiam ter a forma externa de Igrejas. Eram os no-

    catlicos uma espcie de cidados de segunda classe

    sem os mesmos direitos e liberdades dos outros.

    medida que a elite abandona a f tradicional vai

    julgando isto intolervel e entra em franca revolta. Por

    outro lado, o Imprio tampouco podia, como a Igreja

  • 49

    49

    pelas idias que defendia poca, concordar com a

    separao que o privaria de um dos seus maiores

    sustentculos junto ao povo. Da o impasse que levaria

    questo religiosa e que a sociedade imperial no

    conseguiu resolver.

    IV. A Liberdade nas Ideologias do Sculo XIX

    A) Conceito de Ideologia, sua Funo

    O conceito de ideologia um dos mais complexos

    e amplos da filosofia e cincias humanas.(28)

    Nosso intento utilizar um conceito histrico,

    neutro, de ideologia, afastando-nos da tradio marxista,

    inaugurada, alis, por Napoleo Bonaparte, primeiro a

    atribuir um significado pejorativo ao conceito.(29)

    Dentro desta tradio, a ideologia quase sinnimo de

    erro e designa sempre um pensar comprometido ou pela

    ignorncia de sua base social ou por estar a seu servio.

    Usamos o conceito de ideologia num sentido mais amplo

    e positivo, como sinnimo do que Mannheim chamou de

    utopia. Seguimos neste ponto a lio de Frederick

    Watkins ao denominar o pensamento poltico de 1750

    aos nossos dias de A Idade da Ideologia e analisar

    sucessivamente o liberalismo, o conservadorismo, o

    nacionalismo e o socialismo entre outras. Este sentido

    do conceito referendado por personalidades to

    distantes como Carl Friedrich, Jean Lacroix e Hei-

    degger. Nesse sentido, a ideologia um sistema global

  • 50

    50

    de interpretao do mundo histrico-poltico,(30) ou

    um tipo de pensamento representativo que tenta cons-

    truir uma imagem do mundo explicativa e totalizante.

    o que Croce chamou com grande argcia de religio ou

    f secular, tpicas do sculo XIX, ou seja, vastos

    sistemas que se propunham a explicao integral do

    mundo da cultura, fixavam valores e metas e inspiravam

    programas de ao poltica. Suas caractersticas prin-

    cipais so seu approach global desbordando dos limites

    normais da filosofia, das cincias, indo religio e aos

    mitos. Uma outra caracterstica essencial seu secu la-

    rismo; os objetivos ideolgicos so desta terra, mesmo

    no caso de ideologias permeadas de religio ou a seu

    servio. Lembrar en passant que o cristianismo no

    uma ideologia, como bem mostrou Karl Rahner.(31)

    Embora possa e de fato tenha inspirado diversas

    ideologias. Outro trao distintivo o comportarem as

    ideologias uma interpretao da histria na qual

    apontam erros no passado, fazem um diagnstico do

    presente em funo de objetivos e estados supostos do

    futuro. Com isso valorizam o presente indicando amigos

    e inimigos, com uma forte tendncia ao maniquesmo

    prtico.

    A caracterstica final o serem voltadas para a

    ao e no s especulativas, e se apresentarem quase

    sempre carregadas de emotividade favorecendo todo

    tipo de comportamento fantico.

    O sculo passado foi o paraso dessas construes

    intelectuais, assim como nos sculos XII e XIII flores-

    ceram teologias: muulmanas, hebraicas e crists dos

  • 51

    51

    mais diversos tipos. Na centria passada tivemos uma

    florada impressionante de ideologias (babuvismo, anar-

    quismo, carlismo, eslavismo etc.). Dentre estas selecio-

    namos as mais significativas e com influncia no Brasil:

    o liberalismo romntico, o tradicionalismo-conservador

    e o naturalismo cientificista e procuraremos mostrar sua

    atitude face liberdade.

    B) O Liberalismo Romntico

    O liberalismo romntico que Nancy Rosenblum

    estudou no livro Another Libewralism, Harvard, 1987

    a forma com que o liberalismo se apresentou aps a

    Revoluo Francesa. Essa ideologia fluida acompa-

    nhava-se na sua origem do liberalismo econmico ou

    capitalismo, mas se no identificava com ele, o que

    explica a infidelidade dos governos liberais economia

    de mercado. To somente com o naturalismo e sua

    crena nas leis naturais que se vai assegurar o

    predomnio do capitalismo. O liberalismo romntico

    antes poltico e filosfico e, difundindo-se com rapidez,

    tornou-se dominante at 1914, aps srias lutas na

    primeira metade do sculo. Seu postulado bsico a

    liberdade considerada como valor supremo e fim auto-

    suficiente da vida, da cultura e da poltica. Em funo

    deste postulado, defende a liberdade poltica entendida

    como a defesa de um regime constitucional, em que a

    separao dos poderes e o regime plurapartidrio con-

    sagram um governo de opinio obtido por sufrgio

    popular e com objetivo de garantir os direitos ou li -

  • 52

    52

    berdades individuais. Neste regime, o Estado de Direito

    consagrado, isto , o ideal de limitar o governo dos

    homens pelos homens ao mnimo possvel, substituindo

    a obedincia s leis, realizando-se o projeto kantiano de

    autonomia.

    No plano poltico externo a liberdade se con-

    fundia com o princpio das nacionalidades, isto ,

    liberdade para cada nacionalidade constituir seu prprio

    Estado nacional. E inclua a liberdade de intervir em

    qualquer lugar contra a tirania, o absolutismo, o

    obscurantismo e a barbrie, incluindo nesses tpicos a

    livre-navegao e o livre-comrcio. O que configura um

    aspecto expansionista e imperialista do liberalismo

    pouco observado por vezes. O princpio de autode-

    terminao valia s quando dentro dos fins previstos na

    ideologia liberal.

    No plano social interno o liberalismo era pela

    liberdade de ensino, o que significava liberdade para o

    Estado ensinar uma vez que no Ancien Rgime a

    educao estava na mo da Igreja. Em funo de seu

    dogma bsico, a liberdade de conscincia, os liberais

    defendiam a separao da Igreja e do Estado com todas

    as suas conseqncias como a secularizao dos

    cemitrios e registros pblicos, a adoo do casamento

    civil e a igualdade jurdica por motivos de religio. A

    liberdade de edio e de imprensa sem censura prvia

    eram outras teses bsicas do liberalismo. Essas

    liberdades todas eram defendidas sob o nome genrico

    de liberdade; sem adjetivo, porque dentro do

    racionalismo do sistema eram vlidas como direito

  • 53

    53

    humano em qualquer nao e em qualquer momento do

    tempo, sendo os indivduos os nicos titulares possveis

    da liberdade, com excluso de outras pessoas morais,

    entre eles e o Estado. Era o que chamavam seus

    adversrios a liberdade abstrata do liberalismo e que

    Jos Pedro Galvo de Sousa sintetizou nestes tpicos:

    1 Liberdade fundada na plena autonomia da

    razo e da vontade.

    2 O homem naturalmente bom de Rousseau, a

    vontade naturalmente boa de Kant. Donde a liberdade

    abandonada a si mesma.

    3 Liberdade formal, independente do contedo e

    da considerao de fins. Liberdade, valor supremo.

    4 Liberdade no estado de natureza (pr-social).

    5 O indivduo sem vnculos sociais (o cidado

    abstrato). Binmio indivduo-Estado.

    6 S h liberdade individual, assegurara pelas

    garantias constitucionais. Expediente da separao

    de poderes para evitar o abuso de poder.(32)

    Interessante que no liberalismo o fundamental a

    sua intuio humanista, central, do homem como ser

    livre e bom. O homem nele senhor do seu destino, cria

    o mundo humano da cultura na sua busca de fel icidade,

    como tambm cria suas normas e valores. Seu nico

    dever a busca contnua da auto-realizao aqui na

    terra, por isso procura suas liberdades fundamentais

    porque elas lhe asseguram aquela busca. Mas no fazem

    parte essencial do liberalismo instituies ou teorias

    como o direito natural, que serviu no sculo XVIII para

    fundamentar aqueles direitos, sendo substitudo no

  • 54

    54

    sculo seguinte, pelo princpio da utilidade, a

    demonstrar que o fundamental a intuio otimista,

    base do sistema, e no as estratgias intelectuais usadas

    para fundament-lo.

    C) O Tradicionalismo Poltico Tradicionalismo e

    Catolicismo

    Roque Spencer Maciel de Barros, em sua tese

    sobre A Ilustrao Brasileira denominou este tipo de

    ideologia de mentalidade catlico-conservadora;

    preferimos o de tradicionalismo para no identificar

    uma ideologia como uma religio. Mesmo porque seu

    primeiro teorizador, Edmond Burke, no era catlico e

    houve numerosos catlicos liberais durante todo o

    sculo, embora se concorde que eram eles minor ia.

    Importa observar que nunca houve adeso oficial da

    Igreja Catlica a um tipo qualquer de conservadorismo

    ou tradicionalismo. Houve sim a condenao de seu

    contrrio, o liberalismo. Mas dizer que o preto falso

    no significa automaticamente dizer que o branco

    verdadeiro. E as violentas condenaes ao liberalismo

    visavam ao naturalismo implcito neste, tese da

    liberdade de cultos e liberdade de propagao do erro

    como se chamou a liberdade de imprensa, ou a

    liberdade de perdio (Mirari Vos) como se denominou

    antes.

    certo que a proposio 80 do Syllabus anexo

    Encclica Quanta Cura de 1864 do Papa Pio IX,

    condenava o liberalismo sem maiores distines. Mas

  • 55

    55

    essa situao dura pouco, pois, 24 anos depois, a

    Encclica Libertas Praestantissimum, de Leo XIII, em

    1888, introduz importantes distines. Para comear,

    nela a Igreja aparece como a defensora da liberdade, da

    verdadeira, sendo contrria apenas ao que h de mau

    nas chamadas liberdades modernas. A encclica

    distingue uma verdadeira liberdade de ensinar de uma

    falsa, uma verdadeira liberdade de conscincia de outra

    falsa, etc. O que condena Leo XIII no liberalismo (no

    qual distingue vrios tipos) a negao da dependncia

    do homem a Deus, recusar-lhe a obedincia, ou seja

    que negue a moral religiosa ou o culto como obrigaes

    anteriores ao Estado e que este deve respeitar. No h

    contradio entre ser livre e obedecer a Deus, ao

    direito e moral natural. Pois Deus o autor da

    natureza e a natureza tem em si o impulso de obedecer

    a si mesma, enquanto regra nacional de ao e de

    prestar culto. Ora, obedecer sua natureza, que

    prescreve o culto e a obedincia lei natural significa

    obedecer a si mesmos, e isto liberdade. Com estas

    precises de Leo XIII em que se nota a funo da

    filosofia tomista, ausente nos pronunciamentos do papa

    anterior v-se claro, no h identificao necessria

    entre conservadorismo e catolicismo. Historicamente

    houve tal identificao; mas, doutrinariamente, talvez

    no perodo indicado e hoje depois da Pacem in Terris

    a situao outra. Na poca, o novo catolicismo

    conservador, alm desta designao, foi chamado de

    ultramontamismo.

  • 56

    56

    a) Caractersticas do Tradicionalismo Poltico

    O tradicionalismo poltico ou conservadorismo

    no uma simples defesa do status quo, uma

    ideologia; nesse sentido tem um plano para modificar o

    presente. Por isso, adequadamente, Mannheim o incluiu

    como forma de utopia. O mesmo Mannheim o estudou

    no conhecido ensaio sobre O Pensamento Conser-

    vador, oportunidade em que mostrou seu aparecimento

    como forma de reao Revoluo Francesa, elabo-

    rando-se simetricamente e em sinal oposto ao libe-

    ralismo. Seus idelogos principais foram Burke, Adam

    Meler e a escola histrica do direito de Savigny; os

    tradicionalistas franceses Maistre, De Bonald, Bautain,

    Rohrbacher e Louis Veuillot; os italianos Ventura de

    Raulica, Taparelli dAzeglio; os espanhis Donoso

    Corts, Balmes, Vazquea de Mella; e os alemes Stahl e

    Vogelsang. Preferimos o termo tradicionalismo, embora

    nem todos os citados o fossem no sentido filosfico do

    termo. Essa designao tem o mrito de salientar o seu

    aspecto ideolgico, alm de conformar ao uso hispnico

    e desvincul-lo do catolicismo. (A Igreja condenou o

    tradicionalismo como filosofia). O tradicionalismo co-

    mo ideologia poltica quase se identifica com seu

    homnimo filosfico, mas h excees: Lammenais, por

    exemplo, era liberal. Em todo caso foi defendido por

    neo-escolsticos, por idealistas de vrios matizes e por

    polticos pragmticos.

    So as seguintes as caractersticas de contedo do

    conservadorismo tradicionalista, alm da defesa da

  • 57