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A IDIA DE LIBERDADE NO SCULO XIX:
O CASO BRASILEIRO
Ubiratan Borges de Macedo
1997
Editora Expresso e Cultura
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DEDICATRIA
A D. JOS BORGES DE MACEDO (1795-1856)
meu trisav. Lder liberal, primeiro
prefeito de Curitiba, resistiu at a priso
ao regresso conservador.
A JOS BORGES DE MACEDO III (JUCA)
(1870-1965), meu av. Oficial maragato,
resistiu de armas na mo e sofreu
o exlio em defesa dos ideais liberais.
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SUMRIO
PRLOGO ......................................................................... 7
INTRODUO
I Objetivos ...................................................................... 11
II A Liberdade Filosfica e a Poltica ................................ 15
CAPTULO PRIMEIRO
A LIBERDADE NO SCULO XIX
I. O Ocidente, a Liberdade e a Revoluo Francesa ........... 21
II. A Liberdade na Filosofia Europia ................................ 27
A) A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna .................... 27
B) A Liberdade nas Doutrinas Filosficas do Sculo XIX ...... 29
III. A Liberdade no Brasil durante o Sculo XIX ................. 34
A) Originalidade e Autenticidade do Pensamento Brasileiro ... 34
B) O Problema Poltico a Liberdade no Brasil no
Incio do Sculo XIX ................................................. 37
C) As Correntes Filosficas do Segundo Reinado ................. 42
D) Liberdade e Sociedade durante o Segundo Reinado .......... 44
IV. A Liberdade nas Ideologias do Sculo XIX ................... 50
A) Conceito de Ideologia, sua Funo ................................ 50
B) O Liberalismo Romntico ........................................... 52
C) O Tradicionalismo Poltico Tradicionalismo e Catolicismo ... 55
a) Caractersticas do Tradicionalismo Poltico ................ 57
b) O Naturalismo Cientificista ..................................... 60
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CAPTULO SEGUNDO
O ESPIRITUALISMO ECLTICO NO BRASIL
I. O Problema da Denominao ........................................ 65
II. A Recepo da Escola do Espiritualismo no Brasil ......... 74
III. Arrolamento da Escola no Brasil ................................... 78
IV. A Oposio ao Ecletismo no Brasil Imperial .................. 85
V. A Liberdade em Monte Alverne .................................... 94
VI. A Liberdade em Eduardo Ferreira Frana ...................... 102
VII. A Liberdade em D. J. Gonalves Magalhes ................... 105
VIII. Visconde Sabia de Figueiredo ..................................... 115
IX. O Ecletismo Poltico .................................................... 119
CAPTULO TERCEIRO
O PENSAMENTO CATLICO NO BRASIL
DURANTE O SEGUNDO REINADO
I. A Igreja Catlica no Sculo XIX .................................. 130
II. A Reao Catlica no Brasil e a Liberdade .................... 134
III. A Liberdade Espiritual nos Debates da
Questo Religiosa ........................................................ 139
A) A Posio de Rui .................................................... 139
B) O Ponto de Vista Catlico ....................................... 145
C) A Posio Positivista ............................................... 152
IV. Correntes Cruzadas do Pensamento Catlico no Imprio 156
A) Krausismo no Brasil ................................................ 157
B) Tradicionalismo ...................................................... 162
C) A Escolstica Imperial e a Liberdade ........................ 166
V. Jos Soriano de Souza .................................................. 168
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CAPTULO QUARTO
TOBIAS BARRETO E A ESCOLA DO RECIFE
DIANTE DA LIBERDADE
I. O Bando de Idias Novas ............................................. 182
II. Tobias Barreto sua Personalidade ............................... 188
A) Sentido Geral da Obra de Tobias .............................. 190
B) A Liberdade em Tobias Barreto ................................ 199
a) Determinismo e Liberdade ....................................... 200
b) A Essncia da Liberdade em Tobias .......................... 202
c) A Liberdade Emprica de Tobias e o Monismo ............. 206
d) A Concepo de Homem como Fundamento ..................210
a) A Liberdade no Plano Poltico .............................. 212
III. A Liberdade na Escola do Recife .................................. 217
IV. A Liberdade em Fausto Cardoso ................................... 223
V. A Liberdade em Silvio Romero ..................................... 227
NOTAS................................................................................231
CONCLUSES .................................................................. 241
APNDICE
As Metamorfoses da Liberdade no Pensamento Brasileiro ..... 244
POSFCIO Antonio Paim...................................................255
BIBLIOGRAFIA...................................................................269
OBRAS CITADAS............................ ....................................275
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6
PRLOGO
No final dos anos setenta o problema era a volta
da liberdade e a instaurao da democracia em carter
duradouro. Alguns imaginavam salvaguardas como v-
rias frmulas de poder moderador e conselhos para
controlar a eventual insana vontade popular. Outros
repudiavam tais frmulas e queriam a volta ou
representantes sem limitaes de espcie alguma,
sonhando inclusive com volta pura e simples da
ortodoxia da vontade popular para autorizar a eleio de
quaisquer mandatrios de mandatos imperativos. Era
patente a desconfiana e o medo do povo e o temor ao
risco inerente em todo processo democrtico e humano,
onde se aprende (como em tudo alis) por ensaio e erro.
Nutria tal medo uma viso da cultura brasileira como
autoritria at a medula desde suas razes ibricas
passando pelo imprio escravagista e pela repblica
oligrquica, pela ditadura estadonovista e pela impura
democracia populista at 64, cujos problemas geraram o
regime militar. Fernando Henrique Cardoso sintetizava
num ensaio muito lido (Autoritarismo e Democra-
tizao) estes antecedentes: uma estrutura poltica que
nunca foi democrtica e que se formou no solo ibrico e
dele foi transplantada para a Amrica sem jamais ter
sido realmente europia, no sentido de que o
desenvolvimento capitalista e a revoluo burguesa no
a modificaram plenamente. No obstante, tambm a
forma deste autoritarismo variou, desde o paternalismo
autocrtico do imprio, passando pela forma oligrquica
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7
republicana da democracia de elites e pelo populismo
autoritrio (s vezes beirando o fascismo) at o atual
autoritarismo tecnocrtico, que no est imune tambm
aos apelos fascistas. Era bvio que o Brasil no tinha
precondio de autogoverno dado a tradio centralista
lusitana, nossos municpios no elegiam seu governo,
mas recebiam: juzes, autoridades policiais, clero e o
prprio executivo de cima, bem como no faziam leis,
aplicavam as feitas no ultramar. O analfabetismo, o
clima de diviso social, herana da escravido, no
ajudava, o regime patrimonial da sociedade em lugar do
capitalismo, que fazia as vezes de um feudalismo no
cooperava para a implantao da democracia repre-
sentativa. A extino dos partidos polticos no perodo
republicano idem. Agravando o triste diagnstico
parecia haver no passado brasileiro um desamor pela
liberdade de que dava testemunho o grande livro de
Jarbas Medeiros a Ideologia Autoritria no Brasil
FGV, 1978 onde estudava intelectuais da primeira
metade do sculo XX. Com uma elite pelo menos desde
o final do imprio negando a liberdade humana a nvel
psicolgico (proliferao de vrios tipos de deter-
minismos do positivismo), poltico-social, econmico e
educacional. Seria melhor abandonar de vez o projeto
liberal-democrtico. Instituies livres no so o fruto
apenas de leis, mas de homens que acreditem na liber-
dade e queiram implant-la.
Minha formao pessoal num colgio religioso
sob o pontificado de Pio XII antes do Conclio Vaticano
II, tornara-me favorvel ordem e descrente e irnico
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quanto liberdade. Todavia, o breve, mas intenso,
convvio com meu av, fez-me antever uma outra poca
onde o amor liberdade era natural e vivo e um apreo
pelas eleies (vov votava mesmo depois dos 80 anos ,
indo s, cumprir o dever cvico pelo qual lutara em sua
mocidade) muito distinto dos slogans positivistas e
tradicionalistas sobre o sufrgio universal inorgnico,
expresso de uma tirania do nmero e que no enchia a
barriga de ningum.
E se o amor liberdade de meu av fosse o de
todo um perodo, haveria uma tradio brasileira de
liberdade onde se pudesse enraizar o projeto de uma
sociedade livre e democrtica. Estava traado meu
projeto reconstruir as idias e a cultura brasileira no
perodo que vai da independncia repblica. E ao fazer
isto o sculo XIX, que meus professores religiosos
denominavam com Leon Daudet de estpido, apareceu
sob outra luz: o da generosa luta pela liberdade poltica
interna, e pela libertao da Grcia, pela libertao do
proletariado e pela liberdade religiosa, pela libertao
da ignorncia e medo, pela educao elementar
universal e obrigatria. Ao finalizar o sculo e iniciar -se
o nosso pouco se conquistou a no ser o que foi muito, o
fim da escravido no mundo ocidental (continuaria na
frica sculo XX adentro e em trechos da sia), a
reao conservadora fora vitoriosa, preparando a Grande
Guerra, com seu agressivo nacionalismo e imperialismo
autoritrios. Mas no tinha quando comecei esta
pesquisa idia da fora do debate brasileiro em torno da
liberdade e de sua variedade. Limitado por escopo
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9
acadmico a discutir apenas aspectos filosficos e pol -
ticos da liberdade, deixei de lado o aspecto religioso, o
da libertao da mulher e o magno problema da abolio
da escravatura, bem como o da liberdade na escola.
Porm, poca estes aspectos todos eram em conjunto
discutidos com grande interesse e vivacidade a
reconstruo completa da temtica da liberdade no
perodo, deveria inclu-los. bvio que a sociedade
imperial no realizava os valores dominantes na sua
discusso terica, exatamente como a nossa hoje toda
pacifista e contra a violncia coexiste com ndices
alarmantes de violncia. O que no quer significar a
nossa ou a imperial hipocrisia, mas apenas o fato de que
as vigncias dos intelectuais, demoram para passar ao
comportamento da sociedade como um todo. Resultados
da discusso da razo pblica de que nos fala Rawls,
passam primeiro para as leis e instituies depois s
salas de aula e muito mais tarde tornam-se atitudes e
comportamentos coletivos majoritrios, isto se no
forem impedidas por outras idias. Por isso, preciso
recuperar o amor pela liberdade para que se possa passar
das liberdades consagradas na Constituio para com-
portamentos efetivos, antes que o contnuo descum-
primento desta no leve ao descrdito e ao surgimento
de novas vigncias autoritrias de que quase todo o
nosso sculo XX no mundo e no Brasil deu exemplos.
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INTRODUO
I. Objetivos
Procurou-se uma compreenso das idias do Se-
gundo Reinado brasileiro. Preferiu-se para isso escolher
um problema, o da liberdade, central nos debates da
poca. E em torno dele procuramos discernir posies,
evolues, influncias e correlaes. Este mtodo nos
pareceu apresentar a vantagem de proporcionar um corte
vertical das idias naquele perodo.
Procurou-se seguir a tradio compreensiva
inaugurada por Miguel Reale e Lus Washington Vita e
continuada por Antonio Paim. Seu ponto principal o
abandono da posio sectria e participante, tpica dos
primeiros trabalhos sobre histria das idias no pas.
Substitui-se a referida atitude por outra aberta
compreenso da obra, procurando manter-se a analise a
nvel filosfico, sem passar sociologia ou poltica
vlidas, mas fora de nosso propsito.
O mtodo de que se trata vem sendo
aperfeioado desde A Doutrina de Kant no Brasil (1949)
e consiste, basicamente, em deixar de lado toda
arrogncia que nos leve a considerar privilegiada nossa
prpria situao para tentar compreender que problema
tinha pela frente determinado pensador. Nessa colocao
o centro de interesse volta-se para a obra do autor
brasileiro e as circunstncias do ambiente poltico-
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cultural em que a elaborou. Correlativamente, passa a
segundo plano a questo de discutir-se a legitimidade
dessa ou daquela interpretao e perde inteiramente o
sentido a tomada de posio pr ou contra uma ou outra
corrente. Embora apresente outras exigncias, tais so
os seus aspectos nucleares e norteadores(1).
Miguel Reale colocou como premissa de seu
mtodo evitar a crtica externa.(2) Nossa abordagem
ser pois intrnseca ou interna. Buscaremos o signi-
ficado da obra, do perodo ou do problema dentro de sua
imanncia, procurando no a julgar com critrios alheios
ou colocar seu significado numa estrutura externa. No
contestamos a legitimidade das interpretaes ex-
ternas.(3) Mas cremos que no excluem nem prescindem
de uma compreenso interna. Julgamos que Cruz Costa
quem melhor praticou este tipo de interpretao ao
colocar o sentido da obra na estrutura scio-econmica
que a rodeia tinha razo ao escrever: A filosofia no
pois exterior ao mundo. No simplesmente uma
aventura do esprito, mas uma aventura humana total
que se expressa, frequentemente de modo sutil, mas
cujas razes esto na terra.(4)
A pesquisa das razes sociais, econmicas e
polticas com certeza til. Desde que se procurem as
razes e no a verdade da obra ou seu significado.
Ao analisar os condicionamentos econmicos de
um sistema filosfico para neles encontrar a chave ou
a explicao integral do mesmo estou degradando
aquele sistema categoria de reflexo, sintoma ou
confisso, consciente ou no, de uma estrutura de
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12
classes. No levo a srio o sistema, no o compreendo,
pois do contrrio no o consideraria sintoma mas o
discutiria e antes ouviria suas razes. Ademais existe
aqui outra dificuldade como o historiador se transfigura
em analista, que saber mais da origem das idias do
pensador que ele prprio? O que nos leva a uma
pergunta essencial: em nome de que o intrprete sabe
mais? S se for de uma outra filosofia implcita, qual
oponho a interpretada, sem a lealdade de admiti -lo. Era
o que observava Merleau-Ponty:
No se pode pensar em substituir o estudo
interno das filosofias por uma explicao scio-histrica
seno referindo-se a uma histria da qual se julga
conhecer com evidncia o sentido e o curso. Supe-se
por exemplo uma certa idia do homem total ou de um
equilbrio natural do homem com o homem, e, do
homem com a natureza. Ento, este telos histrico dado,
toda filosofia pode ser apresentada como diverso,
alienao, resistncia a respeito deste futuro necessrio,
ou, ao contrrio, como etapa e progresso para ele. Mas
donde vem e que vale a idia diretriz?
A questo no deve ser colocada: coloc-la j
resistir a uma dialtica que est nas coisas, tomar
partido contra ela. Mas como sabeis que ela est a?
Pela filosofia. Simplesmente, uma filosofia secreta
disfarada em processo. O que se ope ao estudo interno
das filosofias, no nunca a explicao scio-histrica,
sempre uma outra filosofia, oculta nela.(5)
Aceita a interpretao interna da obra, ainda so
necessrias opes. Poder-se-ia adotar esta atitude e
13
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nela procurar a reconstruo da intuio bsica do
sistema, como preconizava Bergson, ou reconstruir os
tipos fundamentais das mentalidades vigentes em
certa poca, ou pr a nu o projeto fundamental da
filosofia, como na esteira de Dilthey fez Roque Spencer
Maciel de Barros nos seus paradigmticos trabalhos: A
Ilustrao Brasileira e a Idia de Universidade (1959)
ou em A Significao Educativa do Romantismo: Gon-
alves Magalhes (1973). Ou ainda numa abordagem
compreensiva e interna se poderia tentar aplicar o
mtodo das geraes de Ortega y Gasset, como tentou
fazer A.L. Machado Neto em A Estrutura Social da
Repblica das Letras (1973). Ou ainda aplicar o mtodo
estrutural como o fez Martial Guroult com Descartes.
No estgio atual dos conhecimentos sobre as idias no
Brasil preferi adotar o mtodo dos problemas, originrio
da figura de Rodolfo Mondolfo (1877-1976) e, dentro
dele, escolher no um autor mas um tema-problema: o
da liberdade. Parece-me que prefervel tal abordagem,
por permitir levantar um maior nmero de fatos, levando
em conta tambm que estamos longe ainda do seu
conhecimento para nos permitir interpretaes sutis(6).
Foi este o principal propsito da presente mo-
nografia: contribuir com maior nmero de fatos para a
histria das idias no Brasil. Pareceram mais impor-
tantes do que novas e a nosso ver prematuras
interpretaes, se bem que no as excluamos. Por essa
razo deu-se tanta nfase na descrio e listagem de
autores pouco ou nunca analisados e esquecidos.
Buscou-se igualmente identificar os elos perdidos.
14
14
II. A Liberdade Filosfica e a Poltica
Uma tradio antiga parece separar a liberdade,
estudada na filosofia onde aparece como livre-arbtrio
ou liberdade interior e a liberdade, razo de ser da
poltica, entendida como a liberdade exterior, ou
melhor, como as liberdades.
Epicteto, o filsofo escravo, considerava-se livre,
dissertava com proficincia sobre a liberdade interior.
Enquanto isto, no sculo XIX, John Stuart Mill defendia
a liberdade poltica e social no seu notvel ensaio: On
Liberty, e sustentava em sua Lgica, bem como no
Exame da Filosofia de Hamilton, o determinismo
negador da liberdade interior. Apoiado nisto, um dos
melhores politiclogos de nossos dias, Giovanni Sartori,
adverte-nos, na sua Teoria Democrtica, para o erro de
confundir-se o problema poltico da liberdade com o
filosfico.(7) Porque a liberdade poltica no um
gnero filosfico de liberdade. No a soluo prtica
para um problema filosfico, e ainda menos a soluo
filosfica para um problema prtico.(8)
Por respeitvel que parea esta tradio, parece-
nos errnea. A liberdade poltica uma conseqncia da
liberdade interior estudada na filosofia. Sua
conceituao pode e at deve ser diversa, mas sua
existncia depende da outra. O problema da liberdade
com segurana complexo, abrange questes lgicas,
teolgicas (da liberdade divina e a do homem face a
transcendncia), questes ticas, psicolgicas, socio-
15
15
lgicas e at fsicas, alm, claro, da poltica de onde
primeiro surgiu.
Nesta complexidade h um entrecruzar-se de
planos e nveis, mas bvio ser a liberdade interior , do
ponto de vista humano, a primeira e fundamento
necessrio das outras. Como reclamar com seriedade
liberdade poltica se no posso escolher ou querer?
Mostraremos, com a ajuda de Arendt, Maritain e Paul
Ricouer, o infundado da posio abstrata que isola
filosofia e poltica, como se o real fosse diverso nos
dois saberes.
Hannah Arendt, a notvel pensadora poltica
recentemente desaparecida, nos diz com graa: Para as
questes da poltica, o problema da liberdade crucial e
nenhuma teoria poltica pode se dar ao luxo de
permanecer alheada ao obscuro bosque onde a filosofia
se extraviou.(9)
No entendimento de Hannah Arendt, tomamos
inicialmente conscincia da liberdade ou do seu
contrrio em nosso relacionamento com os outros e no
no relacionamento com ns mesmos. Antes que se
tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade
da vontade, a liberdade era entendida como o estado do
homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar
de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras
pessoas em palavras e aes. Essa liberdade, claro, era
precedida da libertao: para ser livre, o homem deve
libertar-se das necessidades da vida. O estado de
liberdade, porm, no se seguia automaticamente ao ato
de libertao. A liberdade necessitava, alm da mera
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16
libertao, da companhia de outros homens que
estivessem no mesmo estado, e tambm de um espao
pblico comum para encontr-los um mundo
politicamente organizado, em outras palavras, no qual
cada homem livre pudesse inserir-se por palavras e
feitos.(10) Como, apesar disto, a liberdade veio se
divorciar entre a filosofia e a poltica? Hannah Arendt
relembra que a liberdade um conceito essencialmente
poltico, por isso no desempenhou ela qualquer papel
na filosofia anterior a Agostinho. S quando os cristos
descobriram com So Paulo uma espcie de liberdade
interior face sociedade e aos poderes deste mundo
pela vivncia da interioridade de seu corao onde o
Evangelho se responsabilizava at pela omisso de
pensamento que se tornou possvel filosofia, com
Agostinho, tematizar a liberdade interior. No alis
por coincidncia que Agostinho ser o primeiro autor de
uma autobiografia. E com o predomnio do cristianismo
no mundo obscureceu-se a acepo poltica da
liberdade. Durante o perodo cristo passou-se
considerao exclusiva da outra liberdade, a interior,
que importava analisar e correlacionar com Deus. No
alheio ao abandono da noo poltica de liberdade, na
filosofia, desmoronar do Imprio Romano, levando ao
desaparecimento da vida poltica organizada. S quando
esta ressurge, ao final da Idade Mdia, do-se as
condies para a nova emergncia do problema poltico
da liberdade.
Essa a maneira como Hannah explica o relativo
divrcio entre as duas abordagens. A partir do momento
17
17
que h vida social organizada, a poltica volta a ser
problema para o qual a filosofia deve contribuir; e a
liberdade interior da Filosofia no alheia, de modo
algum, aos importantes pressupostos polticos sobre os
quais repousam a separao entre o espiri tual e o
temporal.
Jacques Maritain, no seu brilhante ensaio de 1933
Du Rgime Temporel et de la Libert, enfrentou o
problema da conexo entre liberdade filosfica e a
poltica, segundo a tradio catlica que, para-
doxalmente, adotava soluo diversa numa e noutra
ordem. Mostrou sua conexo necessria ao livre-
arbtrio, ao que se segue uma espcie de liberalismo
poltico. Para separar sua posio da do individualismo
liberal, introduz a distino entre indivduo e pessoa,
sendo esta ltima fundamento da ordem poltica. E, ao
faz-lo, conseguiu dar uma explicao histrica para o
fato do liberalismo ter gerado os regimes totalitrios do
sculo XX. Explicao logo glosada por seu discpulo
brasileiro Joo Camillo de Oliveira Torres em livro a
isso dedicado: A verdade que se o liberalismo deu
ensejo a que rapidamente surgissem as grandes ditaduras
modernas, isto vem do fato de se fundar numa falsa
conceituao filosfica da liberdade. As prticas liberais
so mais ou menos eficientes conforme os casos; o que
no possvel a liberdade fundada em determinismo
universal e numa filosofia negando fins ticos so-
ciedade e aos homens. O liberalismo fracassou por no
saberem os liberais o que vem a ser a liberdade, da o
grande escndalo: os catlicos eram combativos por
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18
serem amigos da ordem e inimigos da liberdade, isto em
virtude de afirmarem que o homem livre perante o
universo.(11)
Hoje percebemos ser mais simples atribuir o
advento dos totalitrios negao dos liberalismos, do
que a uma falha interna dos mesmos. Sobretudo levando
em conta que nem todos os liberais so deterministas,
tratando-se, no caso, de minoria.
A posio de Maritain, expressa em muitas outras
obras como nos Princpios para uma Poltica Huma-
nista, consistiu em mostrar a necessria coerncia que
se seguia da deduo da liberdade exterior da interior.
Ou melhor, a indissolubilidade dos dois conceitos.
O tema dos Encontros de Genebra, em 1969, foi
Liberdade e Ordem Social. Paul Ricouer ali pro -
nunciou uma conferncia: A Filosofia e a Poltica
Perante a Questo da Liberdade. Nela procura demons -
trar a tese de que a institucionalizao faz parte do
conceito de liberdade e que inseparvel o sentido
filosfico da liberdade do seu sentido poltico e social.
Pela fundamental de sua demonstrao o processo da
liberdade abstrata. Essa liberdade que se conquista pela
reflexo, que fruto de uma separao do pensamento
da ao. Essa liberdade abstrata o poder de alternativa,
de opo, de escolha ou poder sobre os contrrios, como
se queira.
de notar que a reflexo na qual se fundamenta
tanto pode ignorar o prximo como a sociedade; para
ela, a liberdade nada tem a ver com as liberdades.(12)
Ricouer nega que a filosofia esteja errada ao conceber
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19
esta liberdade interior desligada do contexto histrico-
social; se assim fosse o seu contrrio, o determinismo,
estaria correto. Sua crtica volta-se para o que denomina
de iluso, de no perceber que antes do eu, veio o ns.
Assim, considera-a abstrata. Nisto consiste o seu reparo
fundamental liberdade interior, ao livre-arbtrio, ou
poder de querer ou no querer. Seria a liberdade do
vazio, abstrata, porque no se determinou ainda ao
recusar-se a sacrificar as suas possibilidades ilimitadas
de escolha de qualquer coisa. Deste modo, no se
inclui nem na existncia nem na realidade. Quem no
aceitou ser algo de limitado, de demarcado, optou por
no ser nada.(13) A liberdade real no absoluta, ela
encontra poderes que a limitam no mundo: o Estado, as
leis naturais, os valores e Deus. Mas s aceitando essa
limitao passar do plano das possibilidades para a
realidade. S aceitando passar da faculdade para ao
ser, e, quando o for, estar encarnada m uma
instituio de qualquer tipo que seja. conclui Ricouer.
Por isto nos julgamos autorizados neste trabalho
histrico a analisar ao mesmo tempo a liberdade no
plano poltico e filosfico por consider-los indisso-
civeis. E, muitas alteraes de um plano sero
imputadas ao outro, como veremos.
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20
CAPTULO PRIMEIRO
A LIBERDADE NO SCULO XIX
I. O Ocidente, a Liberdade e a Revoluo Francesa
A sociedade ocidental tem como uma de suas
caractersticas principais a paixo pela liberdade. Toda a
histria do Ocidente gira em torno da liberdade. Na
sociedade do Extremo Oriente, nem no Islam, a
liberdade parece representar tal papel. Por isso sentiu-se
Hegel autorizado em conhecida e respeitvel
interpretao do sentido da histria ocidental a v-la
como caminhando para o progresso da conscincia da
liberdade. Na sua Filosofia da Histria traa-nos um
impressionante panorama da histria sob este prisma.
No Oriente, bero da histria, um homem era
livre, o dspota; todos os demais escravos. Na Grcia e
Roma, alguns cidados eram livres, os outros escravos.
Devido a esse fato de que apenas alguns eram livres,
no havia o conceito de liberdade universal, atributo do
homem como homem. S com a Revoluo Francesa
que adveio humanidade a plena conscincia da
liberdade do homem universal, gozando da univer-
salidade da liberdade. Assim, na Idade Moderna, com a
Revoluo, proclama-se a liberdade de todos e inicia-se
o processo de sua concretizao. A Revoluo Francesa
21
21
assume pois uma caracterstica especial: o fato
racional que divide a histria da humanidade,
representa o advento da liberdade na terra. Hannah
Arendt, no seu clssico ensaio Sobre a Revoluo,
explica que a Revoluo no feita para conseguir
liberdades como a de locomoo, nem para nos libertar
da opresso. Isto poderia ser alcanado no regime
monrquico ou mesmo sob uma tirania. A Revoluo
feita para instaurar a liberdade como modo de vida
poltica, tornando necessria a constituio de uma nova
forma de governo, ou a redescoberta da Repblica.
Mesmo que a Revoluo Francesa venha inserida
num ciclo de revolues (holandesa, inglesa,
americana), nela que a humanidade se reconheceu e
tomou posse de si.
At 14 de julho de 1789 o homem sofria o ciclo
das leis naturais no mundo da cultura e da sociedade. A
tradio seria os destinos humanos, o poder passava por
sucesso hereditria e fazia-se o que sempre se fez em
qualquer domnio. Com a Revoluo assiste-se ao
espetculo de um povo que se d uma Constituio, isto
, organiza-se o calendrio, d-se aos meses do ano uma
designao racional. Encontra-se uma unidade de
medida, o metro, que no fosse a lembrana de qualquer
tradio mas algo razovel. Sistematiza-se o sistema das
medidas correlacionando-se racionalmente as mesmas e
pondo-as todas na mesma escala decimal. Unifica-se o
tempo no pas, extinguindo a hora local. Unifica-se o
direito poltico pela Constituio e o privado pelo
Cdigo Civil e outras codificaes, que levam a razo e
22
22
a liberdade aos menores detalhes da vida social.
Estabelece-se o fim dos privilgios e instaura-se a
igualdade para todos. O termo Constituio transcende
seu significado jurdico, como mostrou Georges Gusdorf
em Signification Humaine de la Libert, para assumir
o de uma organizao racional do mundo humano. Quer
dizer que a liberdade d-se a si mesma a condio de
possibilidade estabelecendo um mundo conforme a sua
exigncia.(14).
Abrem-se indefinidas possibilidades de modela-
mento do social pelos projetos humanos. Com a grande
Revoluo o problema da liberdade torna-se prtico e
poltico. No se trata mais de uma liberdade no seio do
cosmos como na Antiguidade, ou do sutil problema
medieval da liberdade da criatura face ao Deus criador e
onisciente; tampouco da liberdade renascentista en-
tendida como exaltao do homem face natureza. Com
os pensadores que a preparam, a Revoluo Francesa
desloca a tnica para a liberdade como coexistncia de
liberdades, como problema tico-poltico, alm de
significado geral da cultura.
A discusso sobre o livre-arbtrio passa a ter
implicaes profundas na sociedade, especialmente no
que tange aos critrios a partir dos quais esse assunto
julgado.
Compreende-se agora o entusiasmo do velho Kant
e de Hegel em relao Revoluo Francesa. Hegel
escreve: constri-se agora uma Constituio tudo
devendo daqui em diante repousar sobre esta base.
Desde que o sol se encontra no firmamento e que os
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23
planetas giram em torno dele, se no tinha visto o
homem colocar-se sobre a cabea, isto , fundar-se
sobre a idia e construir segundo ela a realidade.
Anaxgoras foi o primeiro a dizer que o Nos governa o
mundo, mas somente agora o homem veio a reconhecer
que o pensamento deve reger a realidade espiritual.
Foi um soberbo levantar do sol. Todos os seres
pensantes celebraram esta poca. Uma sensao sublime
reinou na poca, o entusiasmo do esprito fez tremer o
mundo como se a este momento somente se tivesse
chegado a verdadeira reconciliao do divino com o
mundo.(15)
Quer se concorde ou no com Hegel na im-
portncia histrica universal da Revoluo Francesa, o
fato que os contemporneos emprestaram-lhe este
significado, por isso pareceu-nos razovel iniciar a
histria da liberdade no sculo XIX com a descrio
deste entusiasmo infantil e apocalptico pela mesma.(16)
A liberdade o grande ideal dos jovens e o
grande programa poltico, cultural e religioso relembra
B. Croce, historiando o perodo. Por isso mesmo, o
melhor nome, para que esse ideal preserve as suas
particularidades o de religio. A liberdade trans -
forma-se em ideologia poltica, o liberalismo, mas este
logo transcende os quadros polticos, aparece um
liberalismo religioso, outro social, outro econmico e
at o literrio com o nome de romantismo. A emoo
que acompanha a liberdade nos homens do sculo XIX,
sua convico de que ela era objeto de uma aquisio
incessante, numa batalha contnua onde a ltima e
24
24
terminal impossvel, porque significaria a morte de
todos os combatentes, isto , de todos os vivos.(17)
Tal concepo religiosa da liberdade, por coloc-
la acima de todos os outros valores, goza de trans-
cendncia com relao ao confronto das liberdades
concretas. No se identifica com nenhuma reivindicao
ou conquista concreta. Apresenta-se como contnua,
inexaurvel, apta a motivar sempre novas liberdades.
Esta f secular, pelo seu carter exclusivo, teria de
entrar e entra logo em choque com as outras fs vigentes
no sculo.
Primeiro com o catolicismo na sua vertente po-
ltica tradicional, aliana do trono e do altar, tendo o
ultramontanismo e o tradicionalismo como suportes
ideolgicos e que passa a ser, apodado, na dcada de 60,
pejorativamente, de clericalismo.
Em segundo lugar, outra f vigente no sculo foi
a democracia, surgida da mstica da igualdade das
barricadas da Revoluo e tendo como pai Rousseau,
sendo pos posterior e distinta da f liberal. Oriunda do
puritanismo ingls, de Locke, Montesquieu, Voltaire e
Adam Smith, ela fundiu-se mas em outros locais e
tempos entrou em choque com o liberalismo. A terceira
f foi o comunismo que, desde Babeuf, tornou-se uma
vigncia do pensamento europeu at ser monopolizado,
j no nosso sculo, pelo marxismo. A quarta f secular
a mais fraca e a de menor durao, mas a mais armada, a
primeira que enfrentou com energia o liberalismo o
absolutismo. S em 1830 que se inicia sua decadncia,
aps ter liquidado com a Revoluo. Mas seu declnio
25
25
foi rpido em toda Europa, embora lento na Turquia e na
Rssia onde s no sculo XX desapareceu. A outra
grande f to ou mais forte e que predominou no
esprito do sculo sobre todas foi o nacionalismo. Mas
surgiu dentro do liberalismo, como liberdade para as
naes, e quase se identificou com ele; s no sculo XX
ambos se dissociaro. Complexas relaes existem entre
o liberalismo e o romantismo. Nascidos juntos, s vezes
nas mesmas pessoas, identificaram-se e depois sepa-
raram-se com o desaparecimento da escola literria a
meados do sculo.
A religio da liberdade, o liberalismo, entendido
como a tentativa de colocar a liberdade como supremo
valor individual, social e o programa poltico da
decorrente, permanece vigente at 1914 sem maiores
problemas; acomodando-se a doutrinas as mais diversas
e com elas compondo formas eclticas, predominou
entre os pensadores do sculo. No confundi-lo, bvio,
com sua expresso econmica. Esta surge depois que as
vertentes filosfica e poltica j estavam em ao;
alinhou-se um tempo a seu lado e depois seguiu sua
trajetria, passando a ser defendida inclusive e talvez
mais por no-liberais enquanto estes passavam a
crticos do capitalismo.
No debate da liberdade, o liberalismo trouxe
como conseqncia a extino dos enfoques pessimistas
e a unificao do discurso filosfico e poltico numa
intensidade maior do que a j verificada antes. A
negao ou restrio terica da liberdade no plano
filosfico acompanha normalmente uma poltica
26
26
absolutista ou pelo menos no liberal. Preocupada em
reforar a autoridade e manter o estado das coisas,
hostil a inovaes. Esta unificao dos dois discursos no
sculo justificar as digresses abundantes sobre as
idias polticas e as idias religiosas, embora o escopo
do trabalho continue sendo a liberdade a nvel
filosfico.
II. A Liberdade na Filosofia Europia
A) A Liberdade Antiga e a Liberdade Moderna
O impacto da Revoluo Francesa deixou um
sentimento de novidade nas novas geraes do incio do
sculo; ao pronunciarem o termo liberdade, parecia-lhes
que a sua liberdade no era a mesma pela qual lutaram
as comunas medievais ou a que comparecia aos
discursos de Pricles. Essa sensao de novidade
explode num discurso que Benjamim Constant
pronuncia no Ateneu de Paris, em 1819, sob o ttulo:
Da Liberdade dos Antigos Comparada com a dos
Modernos. Benjamim Constant a contraditria e
brilhante figura de romancista, filsofo da religio,
pensador poltico e homem de ao sustentava, no
calor de sua oratria, serem completamente diferentes as
duas concepes. Aos antigos a liberdade seria o poder
de participar no Estado. Para os modernos a liberdade
seria perante o Estado. A primeira concepo coletiva;
corresponderia apenas ao direito de votar e ser votado
27
27
na escolha dos magistrados do Estado. A moderna
incluiria a idia de proteo face ao Estado, bem como
uma esfera intima da privaticidade do homem. As idias
de Constant espalharam-se e, baseado nelas, Fustel de
Coulanges desenvolve-as ao escrever sua Cidade Antiga,
clssico estudo sobre as instituies greco-romanas.
Nesse estudo, o captulo 18 do livro terceiro intitulado
Da Onipotncia do Estado. Os Antigos no Co-
nheceram a Liberdade Individual. A liberdade antiga
no exclua uma submisso individual incrvel ao
Estado, chegando, como documenta Fustel de Coulan-
ges, obrigao imposta aos pais de assassinar os filhos
quando reputados defeituosos ou excedentes demo-
grficos. Ou a interditar ao marido o perdo da adltera,
entregando-a compulsoriamente lapidao. Ou, ainda
mais, este absurdo: o Estado interdita os lamentos das
vivas dos cidados, mortos em combate, para no
ofuscar o brilho das comemoraes de uma vitria. Bem
como era comum a prescrio de roupas, tecido,
formato, cor. O Estado antigo prescrevia tudo: idias,
sentimentos e roupas. E seus mandamentos e ele prprio
reputavam-se sagrados e eram tidos como tais. A
desobedincia a seus preceitos era impiedade e o exlio
verdadeira excomunho, dada a identidade da religio
com o Estado.
Um totalitarismo inconcebvel ao qual se somava
a participao poltica eis a liberdade para o antigo
greco-romano. O Estado podia pedir tudo, desde que o
cidado tivesse participado dos comitia que
designaram a autoridade que lhe pedia o ato absurdo.
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28
Ele se considerava livre, sendo admissveis as
prescries mais devassantes da intimidade.
Uma liberdade dentro do Estado e no contra o
Estado, no sentido de reservar ao indivduo uma esfera
de ao exclusivamente sua, uma intimidade inde-
vassvel, como se passa na concepo moderna,
individualista. Para os antigos o homem era um simples
indivduo e no uma pessoa, para usarmos a distino
maritaineana. Tal descrio da liberdade, em que pese
seus exageros,(18) transitou em julgado e foi aceita
pelos contemporneos, que se reconheceram na
contraposio e aceitaram as ponderaes dos seus
defensores como ponto inicial a se considerar no debate
do tema da liberdade. At o sculo XX, falar em
liberdade era pens-la contra o Estado, como se nota nos
livros clssicos sobre liberdade, escritos no sculo XIX,
por John Stuart Mill e Jules Simon, para mencionar os
dois de maior influncia na cultura brasileira. Colocam
o problema de modo bem diverso do livro sobre a
liberdade de S. Agostinho, por exemplo. a acei tao
do debate iniciado por Constant.
B) A Liberdade nas Doutrinas Filosficas do Sculo
XIX
De pose desta nova intuio, a filosofia vai
conceptualiz-la com ardor. A liberdade foi dos temas
constantes e presentes em quase todos os filsofos do
perodo. Numerosas teorias e vastos volumes foram
escritos sobre o tema. Procurarei mostrar como foi visto
o problema da liberdade pelas filosofias do nosso
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29
sculo, que logo iriam indagar do tema em Kierkegaard
ou em Nietzsche nomes sem ressonncias no sculo
XIX e da no teramos um esquema til para poder
discernir como os pensadores brasileiros reagiram a ele;
apanhamos a viso de um contemporneo.
Em 1894 o abb C. Piat, professor do Institut
Catholique de Paris, publicava pela livraria de P.
Lethielleux um vasto volume (351 pgs.): La Libert
1re
Partie: Historique du Problme au XIXe Sicle,
viso tanto mais importante porque feita por um
contemporneo francs, sabida a predominncia, no
Imprio, da cultura francesa.
Piat distingue trs perodos na anlise do
problema durante o sculo. No primeiro, que
corresponderia ao do romantismo, a liberdade foi
abordada pelo mtodo psicolgico e metafsico.
Psicolgico em Maine de Biran, Victor Cousin,
Thodore Jouffroy; metafsico em Fichte, Schelling e
Hegel. Em todos estes autores, o prestgio intacto do
Liberalismo, em plena fase ascendente de sua luta com o
Absolutismo, leva-os a defesas apaixonadas da
liberdade. Para os espiritualistas a liberdade des-
coberta numa intuio; para os idealistas, numa
complexa anlise metafsica. Por volta da dcada de 40
tem incio a vigncia de um segundo perodo, cor-
respondente a uma nova e radical atitude face
liberdade. A nova atitude sustentada pela crise com
que se defronta a filosofia, (19) em face da exausto dos
temas da problemtica moderna, na obra de Hegel, ou
devido incontinncia especulativa dos temas do
30
30
idealismo germnico.
Seja qual for a resposta adotada, a filosofia cai no
mais baixo nvel de seu prestgio coletivo, e todas as
esperanas voltaram-se para a cincia. (LAvenir de la
Science, de Renan, foi escrito em 1848). Talvez pelo
impacto das conquistas cientfico-tecnolgicas ou sim-
plesmente para ocupar o vazio deixado pela filosofia, a
cincia e o mtodo cientfico so usados para resolver o
problema da liberdade. Esta soluo aparece sob forma
de determinismo, que a nega e procura explicar a iluso
da conscincia da liberdade. Os pensadores agrupam-se
conforme o tipo de determinismo preconizado. O
determinismo cientfico ou mecnico recolhe os su-
frgios de A. Comte e J. Stuart Mill. O determinismo
fisiolgico tem a adeso de A. Bain e Thodule Ribot. O
determinismo psicolgico merece a defesa de Scho-
penhauer e Alfred Fouill, o qual prepara j a etapa
seguinte, por sua temtica. curioso notar que estes
determinismos sucedem-se no tempo. Iniciando-se por
defender uma rgida determinao mecnica, as difi -
culdades encontradas levam-no a procurar antecedentes
fisiolgicos para a vontade; persistindo os problemas, h
nova complexificao; chega-se aos antecedentes psico-
lgicos como idias, valores e representaes e toda a
ordem. Talvez no seja alheia a esse descrdito da
liberdade a imensa frustrao causada pelos fracassos da
maioria das revolues liberais de 1848, a que se
seguiram intensa fase de represso e os regimes
autoritrios de L. Napoleo e Bismarck. Cabe ainda
lembrar a feroz crtica do socialismo ao liberalismo
31
31
econmico, j estruturado a essa poca. Talvez se possa
inverter a causao: os sucessos polticos apontados
explicam-se pela mundividncia determinista alheia e
hostil ao liberalismo romntico. (Embora os ingleses
Mill e Spencer tenham procurado justificar um libe-
ralismo cientificista em funo de peculiaridades in-
glesas.) J na dcada de 80 muda o panorama. Re-
nouvier, Secretan e W. Wiendelband, entre outros,
adotam, para a anlise do tema da liberdade, o mtodo
moral.
Aceitando as dificuldades suscitadas pelo de-
terminismo quanto liberdade, permanecia entretanto o
fato da conscincia moral, que a pressupunha. Uma
oportuna volta a Kant e a ressurreio da metafsica
permitem usar novos mtodos de acesso ao real e
justificar a liberdade como exigncia da razo.
A cincia que autorizava o determinismo pela
adoo de leis universais e necessrias, depois do exame
a que foi submetida pela crtica filosfica, passa a uma
atitude mais favorvel ao indeterminismo. A tese de
mile Boutroux de 1874 A Contingncia das Leis da
Natureza fundamenta a admisso da liberdade.
Comea-se a examinar criticamente a epistemologia de
Stuart Mill, que se tornara padro. Numerosas dvidas
comearam a surgir: as leis cientficas parecem no se
dar na natureza, nem serem descobertas como
modelos abstratos; so construdas pelo cientista, e,
como dependem das medidas, estas podem aperfeioar-
se indefinidamente, o mesmo ocorrendo com as leis. Por
outro lado, as leis como generalizaes de fatos no
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32
representam o lado real. Exprimem relaes entre uma
estreita seleo, captada entre os fatos cientficos, que,
por sua vez, so uma abstrao e seleo do mundo dos
fatos naturais da percepo. Essas leis tm afinal um
valor estatstico e regional; valem em funo das
medidas e experincias feitas e no podem ser
estendidas sem risco para outras zonas do real e se
compaginam com numerosas excees. Era a crise da
cincia, sobretudo da viso positivista da cincia.
Dentro deste campo, a obra de Bergson, de 1889, o
Ensaio sobre os Dados Imediatos da Conscincia,
mostra como mesmo numa tica positivista havia lugar
para a liberdade. Chega-se ao fim do sculo admitindo-
se a coexistncia da ordem do determinismo e da ordem
moral ou da cultura ou do dever ser, possibilitando a
admisso da liberdade.
Tais so as metamorfoses por que passou a idia
de liberdade no sculo XIX. Com o romantismo ela
afirmada (Victor Hugo dissera no prefcio de Hernani
que o romantismo o liberalismo); sendo negada com o
naturalismo e o realismo. O simbolismo, coetneo do
criticismo e do pragmatismo na filosofia, a afirma de
novo, numa sntese que integra as dvidas do
cientificismo.
H uma caracterstica central do sculo, e que o
faz diverso do nosso: por exemplo, na tratao do tema.
O problema da liberdade no sculo XIX o da
existncia ou no da liberdade em todos os nveis e
planos: filosfico, poltico, social e religioso. Em nosso
sculo, o problema no mais o da existncia da
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liberdade. As discusses orientam-se da tica, onde se
encontrava na passagem do sculo, orientando-se para a
ontologia. A liberdade passa a ser aceita por quase todas
as correntes mas a preocupao com sua estrutura e
insero na prxis.(20)
III. A Liberdade no Brasil durante o Sculo XIX
A) Originalidade e Autenticidade do Pensamento
Brasileiro
Integrando a periferia da sociedade ocidental, no
sentido histrico-sociolgico emprestado a esse termo
por A.J. Toynbee, nosso pas experimenta como seus os
movimentos ideolgicos surgidos para resolver os
problemas da mesma sociedade, porque tambm deles
participa. Ainda que com uma defasagem, o nosso pas
experimentou os problemas dos pases ocidentais no
sculo XIX. Constitucionaliza-se, ensaia-se um regime
representativo, participa do mercado internacional,
adota o navio a vapor, os trens de ferro, o consumo do
carvo e do ferro, o romance e o drama romnticos e
depois o romance e o drama naturalista e realista.
Participando de um nico universo econmico, social,
religioso e cultural em suma, obviamente usar as
mesmas idias para resolver os mesmos problemas
derivados do ingresso comum no processo da
modernizao. Ao qual alis no poderia furtar-se como
prova o exemplo da China e do Japo, culturas
34
34
milenares do Extremo Oriente, foradas a participar da
vida da sociedade ocidental. Maiores razes teria para
participar um membro por direito de nascimento e
proximidade geogrfica.
Por esses motivos no de estranhar que o nosso
sculo XIX repita as mesmas etapas e correntes de
idias europias.
Julgamos sem sentido as estreis polmicas que
ocupavam os primeiros historiadores do pensamento
brasileiro. Muito preocupados com a originalidade e
acusando todos de copiarem e importares idias. Ao que
se saiba os ingleses jamais acusaram Stuart Mill de
importar e copiar A. Comte e, por isso, de ser alienado.
O mesmo se diga dos italianos com relao a Croce e
Gentile no tocante a Hegel. (Como nossos cr ticos nada
objetaram adoo do navio a vapor.)
O uso do conceito de alienao supe que uma
filosofia autntica do pas seria selvagem e originria, o
que uma idia romntica e alheia ao processo de
elaborao da filosofia e da cincia: processo comum a
geraes e no apenas de homens individuais. Caso
contrrio, s os gregos poderiam fazer filosofia. Vicente
Ferreira da Silva viu com perspiccia o problema no seu
artigo: Em Busca de uma Autenticidade, de 1958,
onde escreve: toda esta polmica de uma heteronomia
de nossos usos, idias e movimentos, supe, como
premissa, que somos algo diverso daquilo que somos,
um algo antieuropeu ou antiamericano soterrado pela
cultura de importao. Nada sustenta, contudo, esta
apreciao... Pertencemos a uma s cultura, com
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35
pensamentos, desideratos e maneiras de ser uniformes.
Vivemos o Ocidente, somos o Ocidente, o Ocidente
institucional, tico, filosfico, religioso, tecnolgico e
industrial. No possumos um ser potencial ou
subliminal diverso e exterior representao ocidental
da vida e pronto a se manifestar assim que superarmos
essa alienao. A nossa realidade uma realidade em
comum com as formas e ideais europeu-americanos e a
nossa tradio tambm uma ramificao dessa mesma
planta cultural.(21)
Cabe distinguir, bvio, a justa e pertinente
crtica iniciada por Slvio Romero (no resto feroz im-
portador de idias) e continuada por Euclides da Cunha,
Alberto Torres e elevada perfeio por Oliveira
Vianna feita importao de instituies. (Que tem
uma conexo com a geografia muito maior que com as
idias). Nesse sentido o Idealismo na Constituio
(1920) e o segundo volume das Instituies Polticas
Brasileiras (1949), ambos de Oliveira Vianna, disseram
tudo que se poderia dizer de razovel antes dos
desvarios do grupo do ISEB. Mais perto de ns, Mrio
Vieira de Melo no captulo inicial de Desenvolvimento e
Cultura (1963) mostrou o que se deve pensar sobre
importao e nacionalismo no setor.
Portanto dentro da cultura ocidental estamos em
casa. A validade de uma idia depender mais da sua
capacidade de resolver o problema que a originou do
que de seu coeficiente de originalidade. E quando
apresentadas, as respostas tericas possveis para um
mesmo problema no sero diversas aqui ou na Europa,
36
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claro. Mas seria infantil e errado falar em plgio, ou
seduo do ltimo livro lido, com relao aos nossos
filosofantes da passada centria.
O ecletismo de Magalhes desenvolve-se junto
com o francs; ele traduzido em Paris por estar
atualizado. Antecipa idias de Bergson, por partir de
fontes comuns e procurar responder perguntas idnticas.
O mesmo ocorre com o neokantismo de Tobias. Como
mostrou A. Paim em A Filosofia da Escola do Recife,
ele contemporneo e no um plagirio dos neo-
kantismos alemes, sendo mesmo anterior ao desen-
volvimento mais definido da escola. O mesmo se passa
com a neo-escolstica; a obra de Soriano de Souza
anterior de vrios anos Aeterni Patris, sendo con-
tempornea e no um plgio dos neo-escolsticos
europeus, em suas obras originais. A regra no se aplica,
claro, aos manuais, obra de compilao aqui ou no
hemisfrio norte. E como j notou Miguel Reale, as
correntes brasileiras, ainda quando afirmam serem
iguais s europias no o so, por outra atitude quanto
s nfases, quanto aos adversrios a combater e
finalmente por pudor ou receio de confessar inovaes.
B) O Problema Poltico da Liberdade no Brasil no
Incio do Sculo XIX
Sendo a Revoluo Francesa a derrocada do
Ancien Rgime, as lealdades humanas mudam de
orientao. O princpio dinstico e tradicional entre em
crise irremedivel. Os povos passam a uma aguda
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conscincia de suas nacionalidades. Ser o grande
problema poltico do sculo. Para tosos os povos a
questo poltica no incio do sculo passado apresenta-
se deste modo: libertar-se do estrangeiro criando para si
um Estado nacional, caso lhe falte; libertar-se do
absolutismo; e, terceiro, outorgar-se uma Constituio
que institua um sistema representativo para substituir a
velha ordem tradicional.
O Brasil teve diante de si o trplice problema do
tempo, como a Alemanha e a Itlia. Resolveu-o por sua
Revoluo de 1822, a qual, para entendermos as coisas,
tem que deixar de ser vista como movimento indolor,
pois foi literalmente uma Revoluo.
Aboliu a velha ordem de coisas, separou-nos do
estrangeiro e criou um sistema representativo para
substituir a ordem estamental; por ltimo no lhe
faltaram o terror e sangue derramado, em guerra externa
e em numerosas sedies e guerrilhas, at chegar ao seu
ponto de estabilizao. O processo da Revoluo
Brasileira foi lento, como tambm da francesa, que s
findar com Napoleo. Iniciada em 22, em 24 temos a
Carta Constitucional; em fins de 25, ao cabo de uma
difcil guerra externa, o tratado que selou a sada dos
portugueses. Depois, como na Frana, a agresso do
inimigo externo at quase 29 quando se definem os
limites platinos. Em 1830, a onda de jacobismo leva
abdicao, s lutas civis interminveis dos nove anos de
regncia, no interior dos quais tivemos o Ato Adicional,
similar s Constituies que a Frana proclamou ao
longo do caminho revolucionrio. Os contemporneos
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tiveram conscincia disso tanto que, depois da
abdicao, Bernardo Pereira de Vasconcelos fala em
travar o carro da Revoluo. A estabilidade e, por
conseguinte, o final do processo revolucionrio s se
dar depois de 1842 j com o Segundo Reinado e depois
de muito sangue. Ento, quando pacificados os espritos,
inicia-se o trabalho de reflexo que analisaremos. O
perodo de recepo do liberalismo no pas foi
analisado com brilhantismo por Vicente Barreto (A
Ideologia Liberal no Processo da Independncia do
Brasil). Resta entretanto examinar a discusso ideo-
lgica posterior ao ato formal de independncia e a
oposio ao liberalismo revolucionrio.
No se fala da oposio, mas ela existiu; nem
todos no Brasil eram liberais radicais como Frei Caneca,
nem sequer moderados como Pedro I. Dentro da prpria
Igreja, de Caneca a Feij, encontraremos a figura de D.
Romualdo Antnio Seixas, mais tarde arcebispo-primaz
do Brasil, que enfrentou Feij, apressando sua derru -
bada. Alis Feij foi, com Caneca, o inspirador das
nicas restries das cmaras municipais (Itu e Recife)
carta de 24. D. Romualdo, por exemplo, em 1819,
pronunciava na vila de Camut, na Bahia, um discurso
onde impreca:
Tu viste, Frana, os frutos desgraados de tua
liberdade de pensar... Naes inteiras, os mesmos reis e
prncipes, seduzidos pelo doce prurido da tua liberdade
se alistaram debaixo do estandarte da irreligio e do
pretendido filosofismo... A Frana, esta nao to
famosa pela sua sabedoria como pelo amor aos seus
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monarcas, entregue, bem como antigamente o Egito, ao
esprito de vertigem, que o Senhor espalhou nos seus
Conselhos: depois de flutuar numa infinidade de teorias
e sistemas mais engenhosos que slidos sobre os
princpios da legislao, precipitou-se nos horrores da
anarquia, manchando suas mos parricidas no sangue do
Ungido do Senhor e substituindo um governo paternal...
por Constituies revolucionrias que sob o pretexto dos
direitos do homem depositavam na massa os poderes...
da soberania. O germe dessas funestssimas convulses
seria o fantasma de uma liberdade quimrica.(22) D.
Romualdo dar continuidade a essa Cruzada contra o
liberalismo como ao ecletismo que apoiava durante
sua longa vida, que se extinguir em pleno Segundo
Reinado, numa ao incansvel, como arcebispos,
parlamentar, animador e fundador de jornais, revistas,
cenculos e autor de novos sermes. A mesma ao
vamos encontr-la em Cairu, a nvel religioso, e, a nvel
poltico, com o Visconde de Jequitinhonha que, em
1834, publica A Liberdade das Repblicas com
epgrafe de Edmond Burke, destinada a estabelecer que
as monarquias garantiam a liberdade melhor que as
repblicas.
Tal linha de pensamento no foi ainda levantada.
Parece inspirar-se num tradicionalismo, contra o
liberalismo radical, que seguia a ideologia empirista.
Em todo caso, ainda h pouco material para uma anlise
do debate de idias durante a Revoluo Brasileira.
O motivo seria, como insinuou A. Paim, o no se
ter explicitado entre ns a problemtica filosfica ligada
40
40
adeso do liberalismo?(23)
Interessa-nos aqui salientar que durante a
Revoluo Brasileira cumpre-se o processo de incor-
porao do pensamento moderno cultura luso-
brasileira, j iniciado com Pombal. As idias vigentes na
elite brasileira, quando da Independncia, no eram
mais as da escolstica, mas o que se denominou
empirismo mitigado.(24)
Este sistema nutria-se de Verney, de Genovesi, de
Condillac, dos idelogos, dava grande primazia aos
conhecimentos cientficos dentro de uma viso gros -
seiramente empirista; parece escamotear o problema
tico ao solucion-lo pelo sentimento e reduzi-lo ao
culto, e no fundo um praxismo mais ocupado na ao e
nos seus resultados. Tais idias estavam presentes em
Azeredo Coutinho, Jos Bonifcio, Frei Caneca e Avelar
Brotero, por exemplo. Mas o empirismo, como j
observou Kant, no consegue fundamentar a liberdade.
A partir da nossa herana cultural empirista no havia
possibilidade de se admitir a liberdade e fundamentar
nela um regime constitucional. Estes eram os termos do
problema da liberdade para a cultura brasileira no incio
do sculo XIX. Por outro lado a escolstica estava em
descrdito total e desconhecimento, acusada de ser
solidria com a fsica aristotlica e incapaz de
fundamentar a fsica de Galileu e Newton. As idias
vigentes oriundas dos idelogos tinham ajudado a
derrubar o Ancien Rgime mas com elas no se podia
viver no sistema liberal, exceo da obra de Silvestre
Pinheiro Ferreira, que pouco tempo passou no pas,
41
41
todos comungavam no mesmo empirismo sensualista
tendo Helvetius e Bentham como guias na moral e
fornecedores de fundamentos da poltica; difcil a
fundamentao da liberdade com tais referncias. Por
outro lado, o empirismo vigente no era capaz de fazer
face aos reclamos da conscincia religiosa tradicional,
encarnada em D. Romualdo e em Cairu, e estabelecer
uma tica compatvel. Seja como for, o liberalismo deu
conta destas resistncias de um tal modo que levou
Euclides da Cunha a dizer hiperbolicamente em
Margem da Histria: Somos o nico caso histrico de
uma nacionalidade feita por uma teoria poltica. Essa
adeso a nvel institucional refora o problema terico
da liberdade. A prpria difuso do liberalismo no pas
induz discusso do problema da liberdade, que
ocupar todos os autores de todas as correntes do
Segundo Reinado constituindo-se num autntico
Leitmotiv do perodo. o que dizia Pontes de Miranda:
No Brasil a luta pela liberdade comeou cedo. a
nossa histria quase toda. Ainda no temos outra.(25)
C) As Correntes Filosficas do Segundo Reinado
Repetimos, pois, a evoluo europia; mas a
nossa prpria defasagem, devido ao atraso decorrente
das condies infra-estruturais da cultura, cria uma
mutao nova no debate. Por exemplo, o positivismo
para ns pertence mais tradio do sculo XIX para o
XX. Inicia-se entre ns em 1874, com o primeiro livro
de Boutroux, que marca o declnio do positivismo na
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cultura francesa. Podemos pois deix-lo fora do
pensamento do Segundo Reinado pois seu apogeu s se
dar com a Repblica. Estudaremos, pois, as seguintes
correntes significativas do perodo do Segundo Reinado:
1) O espiritualismo ecltico, cuja vigncia coin-
cide exatamente com o perodo (1840-1889), a
corrente dominante no ensino oficial at o fim do
Imprio, nas tradues, e a ela aderem os vultos mais
representativos da poca. o suporte filosfico do
liberalismo da Carta de 1824.
2) Reao Catlica Designa um grupo de
filosofias identificadas com a defesa da Igreja Catlica
face crescente secularizao da sociedade. Como a
Igreja s em 1879 adotar uma filosofia oficial e neo-
escolstica (entre ns sinnimo de neotomismo), vrias
escolas disputam antes dessa data a preferncia dos
catlicos: tradicionalismo, krausismo, rosminianismo,
alm do neotomismo. O nome de Reao Catlica deve-
se a Silvio Romero e til pois designa o carter de
oposio dos catlicos cultura oficial, de incio
empirista e liberal e depois espiritualista, mas de um
espiritualismo racionalista seno hostil pelo menos
indiferente ao cristianismo. Isto, alm de favorecer o
liberalismo religioso com seu regalismo, como poltica
de uma nao unida Igreja. Na poca, por fora de
Syllabus, todos os catlicos eram antiliberais, contrrios
separao da Igreja e do Estado, tese cara ao
liberalismo. E tinham estes catlicos atitude no mnimo
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reticente face s liberdades modernas, como a
liberdade de conscincia, de culto, e de imprensa e
edio. Tudo isto os marginalizava dentro da elite do
tempo, com iderio francamente liberal, e os fazia
vincular-se a formas arcaicas da cultura popular.
3) Tobias Barreto e a Escola do Recife Dos
movimentos vinculados ao naturalismo cientificista que
entra no pas depois de 1868, o positivismo como j
dissemos, teve seu clmax no Brasil mais tarde, por se
ter transmudado aqui em filosofia poltica e religio. O
outro ramo do naturalismo cientificista e algo de novo
a Escola do Recife, que tem seu apogeu entre 1875 e o
fim do sculo, motivo pelo qual, somado pujante
personalidade de seu fundador, Tobias Barreto, a
estudaremos dentro do perodo.
D) Liberdade e Sociedade durante o Segundo
Reinado
A sociedade imperial tem uma vivncia intensa da
idia de liberdade. Os recentes trabalhos de Joo
Camillo de Oliveira Torres, sobretudo sua Democracia
Coroada (1757), brilhante estudo do sistema poltico do
Imprio, e o pequeno livro de 1968: Os Construtores do
Imprio trouxeram nova luz sobre as idias de sua elite
dirigente. Os volumes consagrados ao Brasil Monr-
quico na Histria da Civilizao Brasileira dirigida por
Srgio Buarque de Holanda, nos permitem uma viso
mais objetiva da sociedade imperial, despida dos
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preconceitos dos historiadores republicanos.
A sociedade imperial dispunha de instituies
liberais; a Carta de 24, apesar de outorgada, inclua uma
pauta de direitos avanada para seu tempo. O que fazia
o genial panfletrio que foi Justiniano Jos da Rocha
perguntar oposio radical, em 1855: diga-se qual o
grande princpio de liberdade que nela no se ache
consagrado, qual a instituio protetora que nela no
esteja indicada, qual o direito do homem e do cidado
que nela no aparea garantido? (26)
Com a Regncia, procura-se fazer uma experincia
de liberalismo integral, sendo inclusive eletivo o poder
mximo, e as leis processuais asseguram uma tal
liberdade civil que se chega impunidade, exigindo o
regresso de Vasconcelos. Uruguai e Torres. Com o
Segundo Reinado, o imperante timbra em ser apenas um
primeiro funcionrio que procura sempre cumprir e fazer
cumprir a Constituio. Protegendo mesmo antimo-
narquistas como Tobias e outros, gera no pas um clima
sem par de respeito lei. A liberdade de imprensa total
e aps a represso, em 1848, da ltima sedio poltica
no Imprio, a Praieira, desfruta-se de quarenta anos
ininterruptos de paz interna, sem censura imprensa, sem
banimentos ou qualquer priso por motivos polticos, o
que um recorde nacional e internacional. A liberdade de
imprensa com relao pessoa do imperador no seria
tolerada em nenhum pas contemporneo. A vida e a
liberdade dos adversrios polticos constituem ponto de
honra nas pugnas polticas do tempo. Esse panorama
idlico de respeito s liberdades e adeso sincera dos
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polticos a essa causa encontra trs graves excees.
A primeira e a menos grave era o problema
eleitoral. Graas ao controle da mquina policial pelo
ministro da Justia, as eleies imperiais, para as quais
a qualificao do eleitor se fazia na vspera da eleio,
que no era secreta, permitia manipulaes e presses
de toda sorte. As autoridades impediam a qualificao
pela fora pblica, exonerao e remoes do fun-
cionalismo. mas como o imperador, pelo uso do poder
moderador, alternava os partidos no poder, no era
insuportvel o estado das eleies. E ademais havia um
contnuo processo de aperfeioamento. Sucessivas leis
eleitorais, culminando na lei Saraiva, aperfeioaram
muito a autenticidade das eleies. O corpo eleitoral,
muito reduzido no Primeiro Reinado, recrutado pelo
sistema de censo alto, vai sendo ampliado. Em todo caso
as eleies do imprio, sem ser perfeitas, como todos
reconheciam, eram melhores que as da Repblica at
pelo menos 1934, muito pires em distoro e permitindo
o abuso de reeleies sucessivas e muito sangrentas.
Podendo-se dizer que o grupo, que assumiu o poder com
as primeiras eleies diretas republicanas, s foi apeado
do poder em 1930, dada a inexistncia de poder
moderador.
O principal problema no eram as eleies, mas a
irrecusvel contradio entre uma sociedade liberal e a
escravido de mais de um milho de seus membros.
Todos acreditavam na liberdade e defendiam-na com
retrica e fanatismo. Numerosas rebelies liberais
sucedem-se no Imprio, mas nenhuma delas faz da
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abolio o seu programa. E ironicamente, foi o Partido
Conservador o autor da maioria das medidas abo-
licionistas, inclusive da derradeira. Comprovando que a
diferena entre os dois partidos imperiais era ttica e
no ideolgica. Ambos eram liberais, s com a diferena
de que os conservadores eram pragmticos apegados
terra e muito pouco amigos da retrica. Como dizia o
Visconde de Uruguai referindo-se aos liberais radicais
estilo Tefilo Ottoni, invocadores do fantasma de Frei
Caneca: H muita gente que cr que a palavra liberdade
mgica, e opera por si s todos os melhoramentos.
Decretada a liberdade est tudo remediado. Decreta-se a
liberdade em um pas. No desapareceram logo todos os
seus males? porque a liberdade pouca. Evi-
dentemente o remdio aumentar a dose. coisa
simplssima e faclima.(27)
Os liberais do Partido Liberal desempenhavam
um papel universalista; retricos, desligados do
contexto estreito de uma sociedade rural atrasada,
sonhavam e acutilavam os conservadores s reformas
que encaminhassem o pas real para o ideal que viam
com os olhos deslumbrados. Por isso mesmo no podiam
ou no queriam enxergar a realidade que era o domnio
dos conservadores, de uma eficincia que desculpava
seu pedestrianismo. A contradio minava as bases da
sociedade imperial, ia contra seus foros de culta,
civilizada e liberal. Ningum defendia a escravido, mas
tambm no se tomava providncia alguma para
extingui-la. At a dcada de 60 h um ominoso silncio
em torno do tema. exceo de Gonalves Magalhes e
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Torres Homem, os pensadores todos defendem a
liberdade mas nenhum extrai conseqncias da tese com
relao escravido. S com a pregao de Castro
Alves e Joaquim Nabuco que se inicia a participao
da intelligentzia nacional no abolicionismo. As prprias
leis abolicionistas, como a proibio do trfico em 1850,
foram adotadas mais por razes de prestgio e segurana
nacionais do que para extingui-la.
significativo o esquecimento do olvidado libelo
de Affonso dAlbuquerqure Mello, no livro A Liberdade
no Brasil que tem como subttulo: Seu Nascimento,
Vida, Morte e Sepultura publicado no Recife em
1864 (216 pgs.). A obra, de um exaltadssimo libe-
ralismo, investe contra tudo e contra todos denunciando
opresses reais e imaginrias contra a liberdade no
Brasil, a qual como se v considera morta.
Faz uma longa lista de reivindicaes para res-
tabelecer a liberdade no Brasil (s pginas 94 e 97) tais
como: a volta do Ato Adicional, a abolio do Conselho
de Estado etc., mas nem uma palavra sobre a escravido.
Sobre esta uma referncia na pgina 12 e um tpico na
47, onde diz que num pas de instituies livres a
escravido corrompe os costumes e torna o povo incapaz
de liberdade; nem por isso pede a abolio da mesma.
Parece existir um acordo tcito entre os in-
telectuais, em se no discutir a escravido. Pelo menos
at a Guerra do Paraguai, onde o contato com as rep-
blicas do Prata, florescentes sem o brao escravo, mais a
crtica externa nefanda instituio, determinaram a
viragem de atitudes e idias.
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Seja como for, pelo menos h um consolo:
nenhum intelectual defendeu durante o Segundo
Reinado a escravido, (a exceo: Frei Firmino de
Centelhas, era espanhol) e bem ou mal a cada legislatura
se discutiam propunham a aprovavam medidas parciais
para eliminar a chaga social. E a sociedade imperial
conseguiu, gradualmente, chegar abolio completa da
escravatura, em 1888, sem os custos de uma guerra civil
como nos Estados Unidos, fato que talvez justifique a
poltica gradualista seguida pela elite do Imprio. A
liberdade era assim o valor supremo da sociedade do
Segundo Reinado, apesar do paradoxo da escravido, de
longa vida mais pelo medo da catstrofe econmica do
que por um projeto deliberado de mant-la.
O terceiro e contradio da sociedade imperial
era a unio da Igreja com o Estado. Incompreensvel da
tica liberal, implicava uma srie de limitaes e
desigualdades aos no-catlicos. Estes eram obrigados
pela legislao imperial a casar-se perante uma religio
que no era a sua; morrer sob ritos alheios para poderem
ser sepultados ou no ter de todo sepultura regular em
cemitrio; jurar defender uma religio estranha como
condio para cursar uma escola superior ou ascender a
uma cadeira de deputado. Alm de que seus templos no
poderiam ter a forma externa de Igrejas. Eram os no-
catlicos uma espcie de cidados de segunda classe
sem os mesmos direitos e liberdades dos outros.
medida que a elite abandona a f tradicional vai
julgando isto intolervel e entra em franca revolta. Por
outro lado, o Imprio tampouco podia, como a Igreja
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pelas idias que defendia poca, concordar com a
separao que o privaria de um dos seus maiores
sustentculos junto ao povo. Da o impasse que levaria
questo religiosa e que a sociedade imperial no
conseguiu resolver.
IV. A Liberdade nas Ideologias do Sculo XIX
A) Conceito de Ideologia, sua Funo
O conceito de ideologia um dos mais complexos
e amplos da filosofia e cincias humanas.(28)
Nosso intento utilizar um conceito histrico,
neutro, de ideologia, afastando-nos da tradio marxista,
inaugurada, alis, por Napoleo Bonaparte, primeiro a
atribuir um significado pejorativo ao conceito.(29)
Dentro desta tradio, a ideologia quase sinnimo de
erro e designa sempre um pensar comprometido ou pela
ignorncia de sua base social ou por estar a seu servio.
Usamos o conceito de ideologia num sentido mais amplo
e positivo, como sinnimo do que Mannheim chamou de
utopia. Seguimos neste ponto a lio de Frederick
Watkins ao denominar o pensamento poltico de 1750
aos nossos dias de A Idade da Ideologia e analisar
sucessivamente o liberalismo, o conservadorismo, o
nacionalismo e o socialismo entre outras. Este sentido
do conceito referendado por personalidades to
distantes como Carl Friedrich, Jean Lacroix e Hei-
degger. Nesse sentido, a ideologia um sistema global
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de interpretao do mundo histrico-poltico,(30) ou
um tipo de pensamento representativo que tenta cons-
truir uma imagem do mundo explicativa e totalizante.
o que Croce chamou com grande argcia de religio ou
f secular, tpicas do sculo XIX, ou seja, vastos
sistemas que se propunham a explicao integral do
mundo da cultura, fixavam valores e metas e inspiravam
programas de ao poltica. Suas caractersticas prin-
cipais so seu approach global desbordando dos limites
normais da filosofia, das cincias, indo religio e aos
mitos. Uma outra caracterstica essencial seu secu la-
rismo; os objetivos ideolgicos so desta terra, mesmo
no caso de ideologias permeadas de religio ou a seu
servio. Lembrar en passant que o cristianismo no
uma ideologia, como bem mostrou Karl Rahner.(31)
Embora possa e de fato tenha inspirado diversas
ideologias. Outro trao distintivo o comportarem as
ideologias uma interpretao da histria na qual
apontam erros no passado, fazem um diagnstico do
presente em funo de objetivos e estados supostos do
futuro. Com isso valorizam o presente indicando amigos
e inimigos, com uma forte tendncia ao maniquesmo
prtico.
A caracterstica final o serem voltadas para a
ao e no s especulativas, e se apresentarem quase
sempre carregadas de emotividade favorecendo todo
tipo de comportamento fantico.
O sculo passado foi o paraso dessas construes
intelectuais, assim como nos sculos XII e XIII flores-
ceram teologias: muulmanas, hebraicas e crists dos
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mais diversos tipos. Na centria passada tivemos uma
florada impressionante de ideologias (babuvismo, anar-
quismo, carlismo, eslavismo etc.). Dentre estas selecio-
namos as mais significativas e com influncia no Brasil:
o liberalismo romntico, o tradicionalismo-conservador
e o naturalismo cientificista e procuraremos mostrar sua
atitude face liberdade.
B) O Liberalismo Romntico
O liberalismo romntico que Nancy Rosenblum
estudou no livro Another Libewralism, Harvard, 1987
a forma com que o liberalismo se apresentou aps a
Revoluo Francesa. Essa ideologia fluida acompa-
nhava-se na sua origem do liberalismo econmico ou
capitalismo, mas se no identificava com ele, o que
explica a infidelidade dos governos liberais economia
de mercado. To somente com o naturalismo e sua
crena nas leis naturais que se vai assegurar o
predomnio do capitalismo. O liberalismo romntico
antes poltico e filosfico e, difundindo-se com rapidez,
tornou-se dominante at 1914, aps srias lutas na
primeira metade do sculo. Seu postulado bsico a
liberdade considerada como valor supremo e fim auto-
suficiente da vida, da cultura e da poltica. Em funo
deste postulado, defende a liberdade poltica entendida
como a defesa de um regime constitucional, em que a
separao dos poderes e o regime plurapartidrio con-
sagram um governo de opinio obtido por sufrgio
popular e com objetivo de garantir os direitos ou li -
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berdades individuais. Neste regime, o Estado de Direito
consagrado, isto , o ideal de limitar o governo dos
homens pelos homens ao mnimo possvel, substituindo
a obedincia s leis, realizando-se o projeto kantiano de
autonomia.
No plano poltico externo a liberdade se con-
fundia com o princpio das nacionalidades, isto ,
liberdade para cada nacionalidade constituir seu prprio
Estado nacional. E inclua a liberdade de intervir em
qualquer lugar contra a tirania, o absolutismo, o
obscurantismo e a barbrie, incluindo nesses tpicos a
livre-navegao e o livre-comrcio. O que configura um
aspecto expansionista e imperialista do liberalismo
pouco observado por vezes. O princpio de autode-
terminao valia s quando dentro dos fins previstos na
ideologia liberal.
No plano social interno o liberalismo era pela
liberdade de ensino, o que significava liberdade para o
Estado ensinar uma vez que no Ancien Rgime a
educao estava na mo da Igreja. Em funo de seu
dogma bsico, a liberdade de conscincia, os liberais
defendiam a separao da Igreja e do Estado com todas
as suas conseqncias como a secularizao dos
cemitrios e registros pblicos, a adoo do casamento
civil e a igualdade jurdica por motivos de religio. A
liberdade de edio e de imprensa sem censura prvia
eram outras teses bsicas do liberalismo. Essas
liberdades todas eram defendidas sob o nome genrico
de liberdade; sem adjetivo, porque dentro do
racionalismo do sistema eram vlidas como direito
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humano em qualquer nao e em qualquer momento do
tempo, sendo os indivduos os nicos titulares possveis
da liberdade, com excluso de outras pessoas morais,
entre eles e o Estado. Era o que chamavam seus
adversrios a liberdade abstrata do liberalismo e que
Jos Pedro Galvo de Sousa sintetizou nestes tpicos:
1 Liberdade fundada na plena autonomia da
razo e da vontade.
2 O homem naturalmente bom de Rousseau, a
vontade naturalmente boa de Kant. Donde a liberdade
abandonada a si mesma.
3 Liberdade formal, independente do contedo e
da considerao de fins. Liberdade, valor supremo.
4 Liberdade no estado de natureza (pr-social).
5 O indivduo sem vnculos sociais (o cidado
abstrato). Binmio indivduo-Estado.
6 S h liberdade individual, assegurara pelas
garantias constitucionais. Expediente da separao
de poderes para evitar o abuso de poder.(32)
Interessante que no liberalismo o fundamental a
sua intuio humanista, central, do homem como ser
livre e bom. O homem nele senhor do seu destino, cria
o mundo humano da cultura na sua busca de fel icidade,
como tambm cria suas normas e valores. Seu nico
dever a busca contnua da auto-realizao aqui na
terra, por isso procura suas liberdades fundamentais
porque elas lhe asseguram aquela busca. Mas no fazem
parte essencial do liberalismo instituies ou teorias
como o direito natural, que serviu no sculo XVIII para
fundamentar aqueles direitos, sendo substitudo no
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sculo seguinte, pelo princpio da utilidade, a
demonstrar que o fundamental a intuio otimista,
base do sistema, e no as estratgias intelectuais usadas
para fundament-lo.
C) O Tradicionalismo Poltico Tradicionalismo e
Catolicismo
Roque Spencer Maciel de Barros, em sua tese
sobre A Ilustrao Brasileira denominou este tipo de
ideologia de mentalidade catlico-conservadora;
preferimos o de tradicionalismo para no identificar
uma ideologia como uma religio. Mesmo porque seu
primeiro teorizador, Edmond Burke, no era catlico e
houve numerosos catlicos liberais durante todo o
sculo, embora se concorde que eram eles minor ia.
Importa observar que nunca houve adeso oficial da
Igreja Catlica a um tipo qualquer de conservadorismo
ou tradicionalismo. Houve sim a condenao de seu
contrrio, o liberalismo. Mas dizer que o preto falso
no significa automaticamente dizer que o branco
verdadeiro. E as violentas condenaes ao liberalismo
visavam ao naturalismo implcito neste, tese da
liberdade de cultos e liberdade de propagao do erro
como se chamou a liberdade de imprensa, ou a
liberdade de perdio (Mirari Vos) como se denominou
antes.
certo que a proposio 80 do Syllabus anexo
Encclica Quanta Cura de 1864 do Papa Pio IX,
condenava o liberalismo sem maiores distines. Mas
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essa situao dura pouco, pois, 24 anos depois, a
Encclica Libertas Praestantissimum, de Leo XIII, em
1888, introduz importantes distines. Para comear,
nela a Igreja aparece como a defensora da liberdade, da
verdadeira, sendo contrria apenas ao que h de mau
nas chamadas liberdades modernas. A encclica
distingue uma verdadeira liberdade de ensinar de uma
falsa, uma verdadeira liberdade de conscincia de outra
falsa, etc. O que condena Leo XIII no liberalismo (no
qual distingue vrios tipos) a negao da dependncia
do homem a Deus, recusar-lhe a obedincia, ou seja
que negue a moral religiosa ou o culto como obrigaes
anteriores ao Estado e que este deve respeitar. No h
contradio entre ser livre e obedecer a Deus, ao
direito e moral natural. Pois Deus o autor da
natureza e a natureza tem em si o impulso de obedecer
a si mesma, enquanto regra nacional de ao e de
prestar culto. Ora, obedecer sua natureza, que
prescreve o culto e a obedincia lei natural significa
obedecer a si mesmos, e isto liberdade. Com estas
precises de Leo XIII em que se nota a funo da
filosofia tomista, ausente nos pronunciamentos do papa
anterior v-se claro, no h identificao necessria
entre conservadorismo e catolicismo. Historicamente
houve tal identificao; mas, doutrinariamente, talvez
no perodo indicado e hoje depois da Pacem in Terris
a situao outra. Na poca, o novo catolicismo
conservador, alm desta designao, foi chamado de
ultramontamismo.
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a) Caractersticas do Tradicionalismo Poltico
O tradicionalismo poltico ou conservadorismo
no uma simples defesa do status quo, uma
ideologia; nesse sentido tem um plano para modificar o
presente. Por isso, adequadamente, Mannheim o incluiu
como forma de utopia. O mesmo Mannheim o estudou
no conhecido ensaio sobre O Pensamento Conser-
vador, oportunidade em que mostrou seu aparecimento
como forma de reao Revoluo Francesa, elabo-
rando-se simetricamente e em sinal oposto ao libe-
ralismo. Seus idelogos principais foram Burke, Adam
Meler e a escola histrica do direito de Savigny; os
tradicionalistas franceses Maistre, De Bonald, Bautain,
Rohrbacher e Louis Veuillot; os italianos Ventura de
Raulica, Taparelli dAzeglio; os espanhis Donoso
Corts, Balmes, Vazquea de Mella; e os alemes Stahl e
Vogelsang. Preferimos o termo tradicionalismo, embora
nem todos os citados o fossem no sentido filosfico do
termo. Essa designao tem o mrito de salientar o seu
aspecto ideolgico, alm de conformar ao uso hispnico
e desvincul-lo do catolicismo. (A Igreja condenou o
tradicionalismo como filosofia). O tradicionalismo co-
mo ideologia poltica quase se identifica com seu
homnimo filosfico, mas h excees: Lammenais, por
exemplo, era liberal. Em todo caso foi defendido por
neo-escolsticos, por idealistas de vrios matizes e por
polticos pragmticos.
So as seguintes as caractersticas de contedo do
conservadorismo tradicionalista, alm da defesa da
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