11
1 A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUA Hilario Oliveira de Oliveira * Sérgio Ricardo Strefling ** RESUMO: Marsílio Mainardini (1280-1343), médico, professor e filósofo, viveu em plena disputa pelo poder temporal entre os Papas e os Imperadores no século XIV. Estudioso de Aristóteles, do qual teve grande influencia, o paduano acredita que a cidade é o melhor lugar para o homem viver bem. Escreveu, entre outras obras, o Defensor Pacis (1324), obra com a qual desenvolve sua teoria sobre o Estado. Marsílio crê que todo o poder (temporal) vem do povo e, deve ser representado através de uma única autoridade, o Imperador. E, é isto, o que garante a paz ao Estado. Assim sendo, o Estado não pode se submeter à autoridade eclesiástica, como pretendiam os defensores da teoria da plenitude do poder papal. Portanto, ao extinguir o poder temporal pretendido pelos clérigos o paduano instaura o Estado Laico, colocando o clero como uma das partes que compõem o Estado. PALAVRAS-CHAVE: Século XIV – Política – Igreja - Clero. INTRODUÇÃO Pretendemos neste breve escrito discorrer sobre a constituição do Estado em Marsílio de Pádua. Qual é a sua origem, a ordem, a formação legislativa. Veremos também as atribuições que competem ao príncipe e a finalidade da existência de um de seus grupos, a saber, o clero. Assim, pretendemos demonstrar que já havia no pensador de Pádua algo de precursor do Estado moderno no que concerne ao papel da lei e do governante com vistas ao bom funcionamento da sociedade civil. CONTEXTO E OBRA DE MARSÍLIO: No âmbito de Idade Media, em especial no século XIV, a disputa entre papa e imperador, visando à supremacia do poder temporal estava bastante acirrada, podendo inclusive colocar em risco a paz e o bom viver dentro do Estado (Civitas). Talvez a principal dessas disputas tenha sido a protagonizada pelo Papa João XXII e pelo Imperador Luis IV. Após, um período sem que houvesse uma sede fixa para a Igreja de Roma, elege-se como Papa João XXII. Com excelente formação teológica e do Direito Canônico, o Papa reformula * Graduando em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. ** Professor Adjunto de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.

A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

  • Upload
    lamkien

  • View
    215

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

1

A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUA

Hilario Oliveira de Oliveira*

Sérgio Ricardo Strefling**

RESUMO: Marsílio Mainardini (1280-1343), médico, professor e filósofo, viveu em plena disputa pelo poder

temporal entre os Papas e os Imperadores no século XIV. Estudioso de Aristóteles, do qual teve grande

influencia, o paduano acredita que a cidade é o melhor lugar para o homem viver bem. Escreveu, entre outras

obras, o Defensor Pacis (1324), obra com a qual desenvolve sua teoria sobre o Estado. Marsílio crê que todo o

poder (temporal) vem do povo e, deve ser representado através de uma única autoridade, o Imperador. E, é isto,

o que garante a paz ao Estado. Assim sendo, o Estado não pode se submeter à autoridade eclesiástica, como

pretendiam os defensores da teoria da plenitude do poder papal. Portanto, ao extinguir o poder temporal

pretendido pelos clérigos o paduano instaura o Estado Laico, colocando o clero como uma das partes que

compõem o Estado.

PALAVRAS-CHAVE: Século XIV – Política – Igreja - Clero.

INTRODUÇÃO

Pretendemos neste breve escrito discorrer sobre a constituição do Estado em Marsílio

de Pádua. Qual é a sua origem, a ordem, a formação legislativa. Veremos também as

atribuições que competem ao príncipe e a finalidade da existência de um de seus grupos, a

saber, o clero. Assim, pretendemos demonstrar que já havia no pensador de Pádua algo de

precursor do Estado moderno no que concerne ao papel da lei e do governante com vistas ao

bom funcionamento da sociedade civil.

CONTEXTO E OBRA DE MARSÍLIO:

No âmbito de Idade Media, em especial no século XIV, a disputa entre papa e

imperador, visando à supremacia do poder temporal estava bastante acirrada, podendo

inclusive colocar em risco a paz e o bom viver dentro do Estado (Civitas). Talvez a principal

dessas disputas tenha sido a protagonizada pelo Papa João XXII e pelo Imperador Luis IV.

Após, um período sem que houvesse uma sede fixa para a Igreja de Roma, elege-se como

Papa João XXII. Com excelente formação teológica e do Direito Canônico, o Papa reformula

* Graduando em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.** Professor Adjunto de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.

Page 2: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

2

a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou o sistema de cobrança

de taxas e aumentou-as, o que permitiu grande acumulo de riqueza, por parte da Igreja”1. Com

braço forte e mão pesada acabou com as brigas internas, trazendo desse modo uma forte

unidade à Igreja2.

Exímio político que era o Papa viu, na eleição para o trono da Alemanha, a

possibilidade de alargar seus domínios. Após o término do reinado de Henrique VII de

Luxemburgo, candidatam-se para a eleição Frederico de Habsburgo e Ludovico da Baviera

(Luis IV). Ambos afirmam terem sido eleitos pelo colégio eleitoral daquele reino, vindo cada

um a ser coroado imperador em uma cidade diferente. Mas como não houve consenso sobre o

resultado final da eleição os ‘imperadores’ recorrem ao Papa para que este desse a palavra

final sobre quem, de fato, era o novo imperador da Alemanha. Contudo, o Pontífice tinha para

si que tal eleição havia ocorrido de forma fraudulenta e não a considerava legítima, e sendo

“influenciado pelo Rei Roberto de Nápoles, a quem confirmou no cargo de vigário pontifício

para Itália”3, e “haurido nas teorias da translatio imperri e da plenitudo potestatis”4 resolve,

por achar seu direito, assumir a administração temporária do império.

O imperador Ludovico não aceitou tal decisão, pois “desejava aumentar sua

influência no norte da Itália”5, após envolver-se em luta com seu rival, vencê-lo e aprisioná-lo,

solicita nova coroação ao Papa. Não obteve mais uma vez resposta positiva e, ainda “foi

solenemente excomungado em 24 de março de 1324”6. A partir de então, o Bávaro passa a

atacar violentamente o Papa, passando a negá-lo como representante da Igreja de Cristo e o

classificando como herege. O Papa, por sua vez, novamente o excomunga e, envia tropas para

lutar contra o Imperador. Contudo, Ludovico ignora “às censuras canônicas do Papa, e

aconselhado por seu assessor, Marsílio de Pádua, desce até Roma7, fazendo-se coroar pelas

autoridades civis.”8

1 STREFLING, 2002, p. 73.2 Referimo-nos aqui a divisões que existiam por parte dos franciscanos que não concordavam com que a Igreja

tivesse riquezas materiais tão grandes, conforme vinha acumulando com a nova administração do Papa.

(STREFLING, p. 73-74).3 STREFLING, 2002. p. 74.4 SOUZA, J. A. de C. R. de. A composição e a organização da sociedade civil. p. 297.5 STREFLING, 2002, p. 74.6 Idem, p. 75.7 “Ludovico IV chegou a Roma em 7 de janeiro de 1328. Imediatamente tratou de obter sua confirmação como

Rei dos Romanos, mediante um referendo popular, de acordo com as sugestões hauridas do Defensor da Paz.

Page 3: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

3

Contudo a roda da fortuna está sempre girando e, girou contra o imperador, fazendo

com que o Bávaro se retirasse de Roma devido a:

Imperícia política, a falta de recursos para manter o exército, os saques, somados às

tropas enviadas contra ele por João XXII9, fizeram com que os romanos se

revoltassem e o imperador tivesse que recuar para o norte da Itália e, por fim, voltar

para Munique (...) Marsílio, acompanhou o imperador na fuga.10

Esta era a época de Marsílio de Pádua (1284-1343) destacado conhecedor de direito,

médico e professor de filosofia em Paris, “onde foi reitor da Universidade entre dezembro de

1312 e março de 1313.”11 O paduano, como notamos, encontra-se em um mundo que vinha se

transformando, e não aceitava mais com tranqüilidade esta efervescente disputa de poder

entre o papa, pastor das ovelhas de Cristo e, o imperador, guardião da vontade geral dos

cidadãos:

Marsílio de Pádua como que pressentiu o resultado a que conduziriam essas

transformações, sentindo-as já bem vivas na manifestação de algumas tendências

suscitadas de permeio às lutas políticas das cidades italianas e às controvérsias entre o

poder espiritual e o poder temporal. Reunindo suas observações num corpo de

doutrina, deixou-nos assim uma obra que não se compõe apenas de conselhos aos

príncipes, reflexões à margem da historia e interpretações dos acontecimentos

políticos de que foi espectador – como é o caso de Maquiavel -, mas nos apresenta, de

modo sistemático, toda uma concepção de Estado, ou seja, uma teoria do Estado avant

la lettre.12

Teoria essa que elabora haurido em seus conhecimentos do direito romano e da

filosofia, em especial de Aristóteles. Tendo como objetivo principal dar um basta à teoria da

Dez dias mais tarde, foi solenemente coroado Imperador e entronizado por Sciarra Colona, agora investido na

função de capitão do povo.” (SOUZA, apud, STREFLING, 2002, p. 76-77).8 STREFLING, 2002, p. 76.9 É importante ter presente que as brigas entre papas e imperadores, nessa época, não ficava somente no campo

do debate filosófico. Tanto papa quanto imperador tinham seus próprios exércitos e reinos aliados, fazendo com

que a disputa fosse parar no campo de batalha.10 Idem, p. 77.11 Idem. p, 77.12 LAGARDE, apud, STREFLING, 2002 p. 79.

Page 4: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

4

plenitude do poder papal, pondo fim aos constantes embates entre poder civil e poder

religioso, pois acreditava ser a única forma de fazer com que a paz voltasse a reinar.

Marsílio então nos apresenta o seu Defensor Pacis13, obra esta que é dividida em três

partes. Na primeira discorre sobre a cidade (Estado), sua origem, formas, causa e leis da

administração. Na segunda parte tenta dar fim a teoria da plenitude do poder do papa. E na

terceira parte reforça suas principais conclusões.

A CONCEPÇÃO DE ESTADO

Na época de Marsílio o Estado como entendemos hoje era denominado Civitas. O

paduano, por influência de Aristóteles, considera que “uma cidade é uma comunidade perfeita

tendo por si mesma plenitude de sua suficiência”14, sendo que essa comunidade perfeita

(Civitas) é composta de parte, onde “o todo é maior que a parte. Tal asserção e verdadeira

tanto na grandeza ou massa quanto na virtude ativa ou na ação”15. Aqui estão os pilares que

formam a teoria da plenitude do poder civil, entendido enquanto soberania popular.

Mas antes de chegar a essas conclusões o paduano vai investigar qual seja a origem

da cidade. Demonstra ele que a cidade têm sua origem mais primitiva com a família, ou seja,

a união de um homem e de uma mulher, onde os homens viveram em uma única casa. Depois

com o passar do tempo, com o desenvolvimento do homem e com o surgimento de várias

famílias foi necessário que elas passassem a residir em casas diferentes, e ao agrupamento de

várias casas se deu o nome de povoado ou aldeia. Sendo esta, conforme Marsílio, a primeira

comunidade que se conhece16. O pensador de Pádua ressalta que no nível mais primitivo de

comunidade, já havia certa norma que regulava seu funcionamento e, cabia ao mais velho, por

sua sabedoria, decidir sobre o justo e o correto, bem como a aplicação de penas, e benefícios

com vistas ao bem viver.

Com efeito, sob certo aspecto, na aldeia, primeira comunidade, havia também muitas

coisas diferentes. Assim, ao pai de família desta única residência era licito absolver ou

castigar as injustiças domésticas, segundo a sua própria vontade e beneplácito.

Entretanto, não podia fazer isto, na condição de chefe da primeira comunidade ou

aldeia, pois era de sua competência determinar para os habitantes do povoado o que

13 Doravante citado apenas com DP.14 DP. I, IV, 1.15 DP. I, VIII, 2.16 DP. I, III, 3,4.

Page 5: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

5

era justo e útil, segundo uma lei quase natural e um ordenamento racional. Tal

determinação estabelecia que o que fosse mais conveniente a toda coletividade tinha

que ser regulado por certa equidade, a fim de não gerar protestos. Assim, a

comunidade aceitaria as decisões de acordo com os ditames da razão comum se fosse

uma exigência de sociedade humana.17

Marsílio deixa claro que já havia, na aldeia, certa lei geral que era aplicada a toda

comunidade e, que essa norma devia vir do consenso de todos os habitantes. E, também, deixa

transparecer a figura de certo juiz ou guardião da vontade geral, para garantir que houvesse já,

nesse povoado, certa paz e harmonia para o bom viver.

Ainda prossegue ele, que com o aumento da população surgem os primeiros grupos

de povoados, o que vem a ser o embrião da comunidade perfeita, nesta fase as comunidades

ainda não tinham grupos sociais e eram governadas por apenas um representante. Porém, ao

passar o tempo e com o desenvolvimento dos homens começam a surgir os grupos sociais:

À medida que as comunidades foram crescendo, a experiência dos homens foi

aumentando. As habilidades e as regras ou maneiras de viver foram sendo

consolidadas, de forma que os diversos grupos sociais existentes na cidade passaram a

ser mais claramente distintos uns dos outros. Enfim, a razão e a experiência humana

gradualmente foram descobrindo o que é necessário para viver, e viver bem, a fim de

poder se realizar.18

Na forma mais perfeita da comunidade os grupos sociais são necessários para que os

homens possam se desenvolver. Assim, associam-se em distintos grupos sociais conforme sua

função dentro da cidade, formando essas partes a comunidade perfeita. Marsílio apresenta

uma série de grupos sociais onde faz uma distinção entre os mais nobres e a plebe. Tendo

incluído neste os agricultores e os artesões e no outro os juristas, militares e sacerdotes. No

escrito de Marsílio não aparece em nenhum momento que dentro de cada grupo exista um de

seus integrantes que deva ser o ‘representante’ de todos os outros componentes. A função da

divisão da comunidade perfeita é facilitar o bem viver, como já foi dito, e que todos os

cidadãos e grupos devem estar de acordo com a norma geral.

Ora, para que essa comunidade perfeita venha a funcionar “foi necessário estabelecer

uma norma que determinasse o que é justo e se instituir um guardião ou executor da justiça no

17 DP. I, III, 4.18 DP. I, III, 5.

Page 6: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

6

intuito de facilitar a convivência social.”19 Tal norma vêm a ser a lei que rege o funcionamento

da comunidade:

Tendo em vista que o governo deve regular os atos civis dos cidadãos, conforme

provamos no capitulo V desta Parte, e deve fazer isso de acordo com uma regra que é

e tem de ser a forma de atuação do governante como tal, é oportuno interrogar se essa

regra existe, por que existe e o que a caracteriza.20

Essa idéia de norma, como observamos, está presente deste a primeira casa. Contudo,

o que muda é seu caráter, passando cada vez mais para uma forma geral. Marsílio fala sobre

quatro tipos de leis que existem nas diferentes comunidades, mas se detêm sobre o quarto

conceito de lei. Que define como uma doutrina sobre a justiça e a utilidade para cidade21 e,

divide essa concepção em dois aspectos:

Primeiro: em si mesma, enquanto revela somente o que é justo ou injusto, útil ou

nocivo, e, como tal, é chamada doutrina ou ciência do direito. Segundo: enquanto

considera o que um preceito coercivo estipulado impõe como recompensa ou castigo a

ser atribuído neste mundo, conforme a finalidade do seu cumprimento, ou, ainda, na

medida em que é dado mediante tal preceito.22

Para o paduano a lei coerciva é a que deve reger a cidade por ela estar baseada em

um princípio de justiça e utilidade para a comunidade. “A lei é um preceito enunciado ou

princípio que procede duma certa prudência e da inteligência política, quer dizer ela é uma

ordem referente ao justo e ao útil, (...) detentora do poder coercitivo, isto é, trata-se de um

preceito estatuído para ser observado, o qual se deve respeitar”23.

A lei não serve para dizer tudo o que é útil e justo à comunidade a menos que tenha o

caráter coercitivo atuando. Mas a lei perfeita é aquela que diz o que é justo e útil à

comunidade.24 Como se pode observar a lei em Marsílio é a norma que define a justiça e a boa

utilidade para a comunidade perfeita, contudo a lei não tem muita função de ser se não tiver

19 DP. I, V, 4.20 DP. I, X, 1.21 DP. I, X, 3.22 DP. I, X, 4.23 Idem.24 DP. I, X, 5.

Page 7: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

7

por trás a cortina da coercividade. Para a boa observação de determinada norma é preciso que

o cidadão tenha em mente que seu não cumprimento poderá gerar algum tipo de punição ou

prejuízo. O paduano relata que certos tipos de preceitos fundadores de leis podem estar

distorcidos, fazendo com que se possa fugir da aplicação da lei, mas isto não pertence à boa

lei, pois esta têm sempre em vista o que é correto e justo:

Nesta acepção do termo “lei” estão contidas todas as regras acerca do que é justo e

útil, estabelecidas pelo legislador humano aos cidadãos, tais como os estatutos, os

costumes, os plebiscitos, as decretais e outras semelhantes, apoiadas, como dissemos

na sua autoridade.25

Após, dizer o que é a lei e, qual sua função, Marsílio se propõe a investigar quem é o

legislador ou autor da lei. Para o pensador de Pádua a “promulgação das leis e do

estabelecimento dos governos provém imediatamente do arbítrio da inteligência humana.”26

De fato, “o legislador ou causa eficiente primeira e especifica da lei é o povo ou o conjunto

dos cidadãos ou sua parte preponderante, por meio de sua escolha ou vontade externada

verbalmente no seio da assembléia geral”27. A lei torna-se válida na assembléia onde todos os

cidadãos tem condições de externar seus anseios e vontades, formando um consenso em torno

de determinada proposição tornando-a lei geral ou descartando-a.

O conjunto dos cidadãos, em assembléia, é o único legislador absoluto. O cidadão e a

causa primeira e principal da existência da lei. Pois, somente ele pode dar valor e autoridade à

lei, tornando-a válida para todos. Isso ocorre porque ao participar da assembléia e decidir

sobre o que lá for proposto, cada pessoa está validando algo que é particular (para si), mas de

caráter geral (para todos). Cabe ressaltar que a elaboração da lei não cabia a totalidade dos

cidadãos, ficando sob a responsabilidade de um seleto grupo de sábios, indicados pela

assembléia, visto estes possuírem melhor discernimento sobre o justo e útil à comunidade.

Porém, a responsabilidade de validar o que foi proposto era de responsabilidade de cada

cidadão presente na assembléia.

É preciso então, que tudo o que foi decidido pela assembléia seja cumprido e

respeitado ou ao menos observado. Aqui surge a figura do governante, pessoa que está a

serviço do legislador. Tendo a função de fazer com que a comunidade perfeita funcione na

25 DP. I, X, 6.26 DP.I. XII, 1.27 DP. I. XII, 3.

Page 8: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

8

prática, sempre observando o que o foi decidido pela assembléia. O governante é, assim, o

guardião da cidade e de suas normas, responsável por protegê-la interna e externamente.

Tendo plenos poderes para desenvolver sua função, mas isto não significa que o governante

esteja acima do legislador. Pois, se o governante não respeitar as decisões da assembléia ou

vier a se tornar tirânico, será julgado pelo legislador e, poderá, conforme o caso ser destituído

de seu posto. Marsílio, notadamente não defende nenhuma espécie de plenitude de poder, mas

se esta for identificada não estará nas mãos de nenhuma pessoa ou grupo de pessoas, mais sim

com o legislador através da expressão de sua vontade.

3. A LAICIDADE DO ESTADO

Marsílio considera que o sacerdócio é apenas uma parte da cidade ao mesmo tempo

em que identifica a cidade com a igreja. A tentativa de Marsílio é demonstrar qual é o papel

do clero dentro do Estado e, ainda por um fim, as pretensões do papa de assumir a plenitude

do poder entendido como poder absoluto. O pensador de Pádua não tem nenhum problema

quanto à existência da igreja e nem mesmo do clero. Pois sabia, como cidadão do século XIV,

que "todos os fiéis (príncipes ou súditos) eram dependentes de uma dupla sociedade e, se

submetiam a uma dupla autoridade"28, a saber, a eclesiástica e a civil.

Como já dissemos, Marsílio considera que o todo é maior que a parte, entendemos,

portanto que o todo precisa se sobrepor as partes. Assim sendo, a comunidade somente foi

dividida em partes após estar em seu grau mais perfeito. O clero é uma dessas partes, embora

o paduano não acredite ser possível provar sua verdadeira importância através da via racional:

"No entanto todos os povos estão de acordo no tocante à conveniência de seu

estabelecimento, com vistas a louvar a Deus e, por conseguinte, no beneficio que isso ainda

proporciona a esta e a outra vida"29. Sabemos que dentro da sociedade medieval o sacerdócio

tem um papel importante, mas com vistas a alcançar um bem que não se encontra neste

mundo. "A finalidade do sacerdócio como instituição reside na instrução e educação dos

homens, de acordo com a Lei Evangélica, no tocante ao que é necessário acreditar, fazer e

evitar, de modo a obter a salvação eterna e livrar-se do seu contrário."30 Assim, o filósofo

paduano define qual a função pertinente ao clero.

O problema que o paduano centra suas energias em combater é a pretensão de alguns

28 LAGARDE, G. apud, AZNAR, 2005, p. 59.29 DP I, V, 10.30 DP I, VI, 8.

Page 9: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

9

clérigos de arrogarem para si a administração civil de reinos. Isto é, a pretensão dos papas de

tomarem partido nos assuntos referentes à cidade, sendo que esta função não lhes cabe, como,

expressamos anteriormente por vários motivos. E, ainda porque o próprio Cristo quando aqui

esteve não se envolveu em assuntos terrenos, por não ser este o seu reino. Também, proibiu

seus seguidores de se envolverem com a política. Portanto, não podem os bispos de Roma por

ganância à um poder que não lhes pertence assumirem o reino terreno. Prossegue Marsílio,

afirmando que o papa, se vier a assumir a administração civil não terá autoridade para exercer

o poder coercitivo, pois este cabe somente ao príncipe terreno, por este ter recebido tal poder

do conjunto dos cidadãos. E, ainda mais, seguindo um dos pilares de sua teoria política, o

pensador de Pádua não pode admitir que a cidade acabe se tornando doente, isto é, que uma

de suas partes venha se impor e dominar todas as outras.

Para Marsílio, deve haver um único poder que naturalmente, não contrarie as leis

divina, natural e humana, organizando com o intuito de reger a sociedade: o Estado

surgiu primeiro do que a Igreja, o que é esquecido pelos canonistas quando invocam a

Escritura como única fonte legal para legitimar a Autoridade espiritual.31

Este poder para o pensador de Pádua é aquele que foi instituído na assembléia pelos

cidadãos, ou seja, o exercido pelo governante. Cabe ao governante manter a ordem social e, a

paz dentro do Estado, fazendo com que haja um equilíbrio entre as partes que compõem a

sociedade:

A cidade não pode ser contestada e, nesse sentido, deve ser a soberania una,

indivisível, inalienável e imprescritível. Portanto, não se pode admitir grupos de

pressão que disputem a liderança da sociedade, nem admitir a autonomia do clero, e

menos ainda a pretensão da plenitudo potestatis do papa. Eliminando o poder

temporal do clero Marsílio instaura sua doutrina do chamado Estado laico.32

A unidade reclamado por Marsílio encontra-se no príncipe, representante das

vontades expressas na assembléia. Somente haverá a paz quando houver uma unidade da

autoridade frente ao Estado e, esta unidade está no conjunto de todos os cidadãos

representados na figura do príncipe. Por este abarcar todas as partes da cidade, como

representante da soberania popular.

31 COSTA; PATRIOTA; 2004, p, 75.32 STREFLING, 2002, p. 124.

Page 10: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

10

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mostramos neste breve escrito que Marsílio de Pádua viveu em um tempo de muitas

controvérsias políticas e de grandes brigas entre as cidades européias de sua época, onde de

um lado se encontravam as apoiadoras dos imperadores e de outro as apoiadoras do papa, que

pretendia para si a supremacia do poder terreno. Para Marsílio isto é algo muito nefasto para a

constituição do Estado, pois desestabiliza sua ordem natural de comunidade perfeita, uma vez

que o clero é apenas uma das inúmeras partes que compõem o estado e não pode se sobrepor a

todas as demais partes.

Toda construção argumentativa do pensador de Pádua versa sobre uma ordem de

estado que nasce desde a primeira família passando pela aldeia e depois pela comunidade

mais perfeita que o modelo de Estado que encontramos hoje. Marsílio é o primeiro pensador a

formular um Estado totalmente desvinculado da igreja, e ainda coloca a igreja como uma

parte importante dentro da sociedade civil. O que para o século XIV é algo bastante avançado

e, é a primeira concepção do que entendemos hoje como um Estado laico.

O pensador de Pádua acredita muito em sua concepção de estado como a única capaz

de colocar um ponto final nas nefastas disputas de poder que ocorriam entre os papas e os

imperadores daquela época. O Estado marsiliano é formado por todos os cidadãos que nele

vivem, formulam suas próprias leis e executam-nas segundo sua vontade. Este estado é,

portanto auto-suficiente por si só, desde que respeitadas às vontades do legislador que é o

povo. Marsílio não admite que grupos sociais ou representantes de grupos que existem dentro

da sociedade queiram sobrepor sua vontade expressa por toda uma comunidade já constituída.

Assim, o Estado do paduano tem uma ordem e, é esta ordem que garante a paz e o bom viver.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Tradução e notas de José Antonio Camargo

Rodrigues de Sousa. Introdução de J. A. Souza C. R., F. Bertelloni e G. Piai.

Petrópolis: Vozes 1997, 701 p.

AZNAR, Bernardo Bayona. “Marsílio de Pádua frente a los planteamientos dualistas de Juan

de Paris y Dante favorables a la autonomia de poder temporal”. In Princípios nº. 17-

18, jan./dez. 2005, p. 57-75.

COSTA, Marcos Roberto Nunes; PATRIOTA, Raimundo Antonio Marinho. Origens

Page 11: A IDÉIA DE ESTADO LAICO EM MARSÍLIO DE PÁDUAcifmp.ufpel.edu.br/anais/1/cdrom/mesas/mesa5/04.pdf · 2 a administração da Igreja, dando ênfase para a arrecadação, “reformou

11

Medievais do Estado Moderno: Contribuições da Filosofia Política Medieval para

construção do conceito de soberania Popular Moderna. Printer/INSAF. Recife, 2004.

PIERPAULI, José Ricardo. Las relaciones entre el poder eclesiastico y el poder político los

casos de Alberto Magno, Tomás de Aquino, Juan Quidort, Marsilio de Padua y Alvaro

Pelagio. In Dissertatio [29], p. 115-133, inverno de 2009.

SARANYANA, Josep-Ignasi. Historia de la filosofia medieval. Pamplona: Universidad de

Navarra, 1985.

SOUZA, José Antonio de C. R. de. A composição e a organização da sociedade civil segundo

Marsílio de Pádua.

_________. “A preeminência do poder temporal sobre o espiritual no Defensor da Paz de

Marsílio de Pádua”. In Theologica, n. 43, p. 421-448, 2008.

STREFLING, Sérgio Ricardo. IGREJA E PODER; Plenitude do Poder e Soberania Popular

em Marsílio de Pádua. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

_________. A disputa entre o papa Bonifacio VIII e o rei Filipe IV no final do século XIII. In

Teocomunicação, Porto Alegre, v.37, n. 158, p. 525-536, dez. 2007.

TOLEDO, Cezar de Alencar Arnaut de. “O conceito de poder na filosofia política de Marsilio

de Pádua”. In Acta Scientiarum. Human and social Sciences. Maringá, v. 25, n. 2, p.

267-276, 2003.