A ILHA de SANTA CATARINA E SEU Continente 1680-1750 (Almocaté - Pesos e Medidas)

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    Vitor Hugo Bastos Cardoso

    AS DINMICAS POLTICO-TERRITORIAIS DE UMA

    COMUNIDADE PERIFRICA NO SUL DA AMRICAPORTUGUESA: A ILHA DE SANTA CATARINA E SEU

    CONTINENTE, 1680-1750.

    Dissertao submetida ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria daUniversidade Federal de SantaCatarina para a obteno do Grau demestre em Histria Cultural.Orientadora: Prof.Dr. Beatriz GallottiMamigonian.

    Florianpolis, 2013

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    Para Sandra e Gabriela.

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    RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo principal analisar o processo polticoda ocupao luso-brasileira do espao da Ilha de Santa Catarina e dolitoral prximo entre finais do sculo XVII e a primeira metade doXVIII. Nesse perodo este territrio ultramarino passou por inmerastransformaes que culminaram a criao da Vila do Desterro, no ano de1726, e a instalao da capitania de Santa Catarina, em 1738. Para isso,procurou-se enfatizar aqui a trajetria social e poltica da elite localrecm-constituda, que a partir dos seus postos de governanaintermediava junto ao Estado luso o processo territorializao da

    fronteira sul da Amrica portuguesa.

    Palavras-chave: Vila do Desterro, Ilha de Santa Catarina, Amricaportuguesa, Elite local.

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    ABSTRACT

    This work takes as its principal objective to analyze the political processof Portuguese-Brazilian occupation of the island of Santa Catarina andthe nearby coat at the end of the 17th and beginning of the 18th century.During this time, this overseas Portuguese territory passed throughmany transformations, ending with the creation of the Vila de Desterroin 1726 and the installation of the Capitaniaof Santa Catarina in 1738.In order to achieve this analysis, the author emphasizes the social andpolitical trajectory of the recently constituted local elite which, through

    positions of governance, worked with Lisbon to territorialize of thesouthern frontier of Portuguese America.

    Keywords: Vila de Desterro, Island of Santa Catarina, PortugeseAmerica, Local elites

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    LISTA DE FIGURAS

    Mapa 1 - Porto e Serto dos Patos (sculo XVII) e as comunidadesguaranis atuais........................................................................................57

    Mapa 2 - Campos de Araatuba e o Porto de Manuel Manso de Avelar(1715)...................................................................................................135

    Mapa 3 - O patrimnio fundirio da cmara da vila do Desterro(1727)...................................................................................................256

    Mapa 4 - O termo da vila do Desterro em 1750 (Rossio, CamposComuns, Freguesias e Fortalezas)........................................................313

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AHMF Arquivo Histrico Municipal de FlorianpolisAHU Arquivo Histrico UltramarinoAHESC Arquivo Histrico Eclesistico de Santa CatarinaAPESC Arquivo Pblico do Estado de Santa CatarinaAPESP Arquivo Pblico do Estado de So PauloIHGSC Instituto Histrico Geogrfico de Santa Catarina

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    Sumrio

    INTRODUO.....................................................................................19Captulo 1 - A formao territorial de um povoado na costa Sul daAmrica portuguesa..............................................................................351.1 Prembulo.................................................................................................35

    1.2 - Francisco Dias Velho e o bandeirismo paulista em direo ao Sul............39

    1.3 - Os segundos povoadores e as conquistas do Sul em nome d'El Rei.......74

    1.4 - O povoado do Desterro, um territrio mestio?.....................................95

    Captulo 2 - A configurao social e poltica do Desterro ..............1032.1 - Prembulo................................................................................................103

    2.2 - A dinmica scio-demogrfica da parquia da Ilha ...............................105

    2.3 - Manuel Manso de Avelar: o chefe do bando ..........................................128

    2.4 - O contrabando com os franceses.............................................................164

    Captulo 3 - A vila de Nossa Senhora do Desterro e a capitania deSanta Catarina.....................................................................................197

    3.1 - Prembulo................................................................................................1973.2 - A estrutura poltico-geogrfica portuguesa no sul da Amrica................203

    3.3 - Os homens bons e o territrio da vila do Desterro...............................229

    3.4 - As jurisdies rgias da capitania subalterna da Ilha de Santa Catarina. .266

    3.5 - Os conflitos polticos em torno do espao da Ilha de Santa Catarina......294

    Consideraes Finais...........................................................................323

    FONTES...............................................................................................327

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................333

    ANEXOS..............................................................................................353

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    INTRODUO

    A questo que orienta este trabalho foca sobre o tipo e aqualidade das relaes que existiram entre as autoridades metropolitanase os colonos luso-brasileiros na Ilha de Santa Catarina e seu continenteprximo a vila do Desterro e depois a sede da capitania de SantaCatarina na primeira metade do sculo XVIII. Nossa inteno aqui analisar o processo de afirmao do Estado portugus nesse espao apartir de uma perspectiva local, ressaltando a participao dos sujeitoshistricos que viviam ali nesse momento de remodelao do sistemapoltico. Daremos nfase aqui ao conjunto da elite local que eram

    aqueles que detinham os principais postos de governanas da Ilha(camaristas, militares, senhores de terras e escravos, comerciantes, etc.),e que tambm assumiam a intermediao entre a sua comunidade e osrepresentantes do Estado luso.

    O problema que tentaremos responder com este trabalho se inserenum amplo debate da historiografia brasileira que desde muito vemdiscutindo as formas de relaes polticas entre a Amrica portuguesa eo reino de Portugal. Adiante faremos referncia a essa discusso

    historiogrfica a fim de nos situarmos dentro desse debate, sobretudo emrelao s pesquisas que ressaltaram a participao autonmica doscolonos luso-brasileiros na conduta da poltica colonial brasileira.

    Desde a dcada de 1980, pudemos perceber o quo importantefoi a emergncia de uma noo de poder local enquanto elementoestruturante das novas abordagens histricas que buscavam reconhecer aautonomia da Amrica portuguesa frente ao controle do Reino dePortugal. Neste sentido, as interpretaes sobre o passado colonial do

    Brasil caminhavam na direo de reconhecer que as formas polticasatuantes fugiam ao modelo prevalecente de submisso e imobilidadefrente metrpole lusa.

    No contexto da historiografia brasileira da primeira dcadadeste sculo, pesquisadores como Joo Fragoso, Maria de FtimaGouva e Maria Fernanda Bicalho, entre outros, articularam suas idiascontra as interpretaes histricas que entendiam as relaes externasentre colnia e metrpole a partir dos parmetros de uma economia do

    exclusivo colonial e com um sentido de colonizao, propriamente

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    dito.1 Para os estudiosos que tinham validado essas assertivas,primeiramente Caio Prado Jnior, por volta dos anos 1940, e depoisCelso Furtado e Fernando Novais, nos anos 1960 e 1970, a Amricaportuguesa detinha um papel limitado e perifrico na histria do perodomoderno, que tinha a ver com o processo mercantilista de acumulaode capital capitaneado pelas potncias europias. A aplicao da teoriada dependncia reduzia o passado colonial brasileiro a uma leitura dosmodos de expropriao material sob qual esteve subjugado diante doiminente capitalismo industrial.2

    Do ponto de vista poltico, as relaes econmicas desse tipo sseriam possveis graas aos aparatos administrativos e coercitivos de umEstado forte, centralizador e uniforme. O poder estatal (individualizadona pessoa do monarca) seria orientado do alto, e verticalizava seusefeitos de autoridade sobre as possesses coloniais do alm-mar deforma direta e absoluta. Nesse sentido, a leitura histrica que estava porser combatida assentava-se sobre o paradigma do Absolutismo, aforma peculiar de governo dos estados nacionais modernos. A partirdisso, as vises produzidas sobre a poltica colonial eram enfaticamentedicotmicas, centradas na nfase da oposio entre metrpole versuscolnia e na contradio de interesses entre reinis e colonos.

    Desconfiados desses modelos explicativos, dominados em geralpor lgicas deterministas e pelo amplo uso de categorias costumeirascomo centralizao, poder absoluto e dependncia, oshistoriadores passaram ento a questionar as relaes externas entre oreino de Portugal e a sua colnia americana, indicando a existncia decanais concretos de negociao poltica e espaos de autonomia doscolonos. Nesse empenho, tornou-se fundamental rever o conceito deAbsolutismo no qual estava assentado o Estado portugus, eoperacionalizar outras interpretaes que reavaliassem os espaos de

    1FRAGOSO, Joo. GOUVEIA, Maria de Ftima. BICALHO, Maria Fernanda.Uma leitura do Brasil colonial. Bases da materialidade e da governabilidade doImprio.Penlope, Revista de Histria e cincias sociais, n. 23, 2000, p. 67-88.Ver tambm; FRAGOSO, Joo, BICALHO, Maria Fernanda, GOUVA, Mariade Ftima (Org.). O Antigo Regime nos Trpicos: A Dinmica ImperialPortuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2001.2PRADO Jr. Caio. Formao do Brasil contemporneo. So Paulo: Ed.Brasiliense, 23 edio, 1994; FURTADO, Celso. Formao econmica do

    Brasil. So Paulo: Ed. Nacional, 18 edio, 1982; NOVAIS, Fernando.Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). So Paulo:Hucitec, 1979.20

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    atuao dos colonos frente ao monarca, como a prpria noo de poderlocal.

    As inquietaes sobre o formato poltico dos Estados

    absolutistas modernos no surgiram de dentro do debate brasileiroacerca dos assuntos coloniais. Alguns historiadores europeus jindicavam nos finais dos anos 1970 a fragilidade terica do conceitotradicional de Absolutismo um sistema de poder em que aautoridade soberana do rei no tinha limites constitucionais. Os novosestudos passavam a apontar, sobretudo, para as monarquias do Sul daEuropa, para a existncia de um governo constitudo a partir de umamatriz pluralista e/ou compsita das formas de poder, sinalizando umequilbrio das foras polticas que operavam naquelas sociedades doAntigo Regime.3 As consideraes feitas pelo historiador portugusAntonio Manuel Hespanha, entre outros, passaram a dar legitimidadeterica para a superao desse conceito. Os seus trabalhos ganharamdestaque na reavaliao dos estudos sobre mundo colonial luso, emespecial sobre o Brasil.4

    O trabalho de Antnio Hespanha props uma viso inusitada daorganizao do poder nas sociedades europias de Antigo Regime, comespecial ateno situao portuguesa dos meados do sculo XVII. As

    suas consideraes caminhavam no sentido de dimensionar o poderexercido pelos estados absolutistas no intuito de reavaliar a suacentralidade de mando, colocando em cena outros espaos decisrios, oque permitia uma abertura das possibilidades de estudo sobre oexerccio da governana nas esferas no formais do Estado. A sua maiorpreocupao foi a de pensar os problemas do Estado tido comoAbsoluto nas dimenses das estruturas sociais para avaliar, assim, osseus desdobramentos polticos.5 Segundo o autor, a sua linha deinvestigao seguia um modo de produo dos efeitos polticos e

    3HESPANHA, Antonio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Revisode alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo, BICALHO, MariaFernanda, GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O Antigo Regime nos Trpicos...Op cit,p. 163-188.4 HESPANHA, Antonio. M. As vsperas do Leviathan. Instituies e poder

    poltico. Portugal sculo XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.5Idem. Ver tambm: HESPANHA, Antonio M. O Estado Absoluto: problemas

    de interpretao histrica. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra,nmero especial em homenagem ao Prof. Doutor Jos Joaquim TeixeiraRibeiro, Coimbra, 1979.

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    sociais estudados. Ao tratar do poder estatal e dos seus efeitosinstitucionais, a leitura materialista de Antonio Hespanha preocupava-secom a descrio das condies materiais da produo dos efeitospoltico-administrativos. A atividade administrativa no se esgotava nosregulamentos e cargos decorrentes da vontade arbitrria do rei. Oexerccio cotidiano do poder poltico (a administrao) era uma prticacorporificada em coisas, e dependia do espao, dos equipamentos eprocessos administrativos, das estruturas humanas, dos saberes dosfuncionrios, etc.6

    A partir disso, o autor passou a caracterizar as unidadespolticas na Europa catlica como monarquias corporativas. Paratanto, ele se baseou na doutrina jurdica dos sculos XVI e XVII, queapontava para uma concepo limitada do poder rgio, segundo a qual omonarca representava simbolicamente o corpo social e poltico,mantendo o seu equilbrio e harmonia, zelando pela religio,preservando a paz e a ordem, e garantindo, sobretudo, a justia. A justiaestava entre os atributos mais importante da realeza, correspondia aoprincpio de dar a cada um aquilo que seu por direito, repartindoprmio e castigo, respeitando direitos e privilgios, e cumprindo oscontratos estabelecidos com os sditos.7

    A jurisprudncia tradicional dessas monarquias, enquadradapelos usos e prticas jurdicas locais, configurava o que o autor chamade sociedade corporativa. Nesse sentido, o poder era por naturezarepartido, e traduzia a possibilidade de haver espaos de autonomiapoltico-jurdica para outros corpos sociais como a igreja, os senhorios,nobres, comerciantes, militares, proprietrios, etc. Todavia, era a cabea(o monarca) que garantia o direito diferenciado de todos, segundo oestatuto social de cada parte deste corpo poltico. De toda forma, oestatuto continuava definindo o lugar de cada um e reforava asestruturas hierrquicas daquela sociedade.

    O modelo do sistema poltico corporativo defendido porAntonio Hespanha sustentado pelos seguintes pilares: legitimao dapolis na natureza e tradio; pluralismo poltico; administraopassiva da coroa (justitiam dare), que respeitasse os direitosadquiridos e centralidade de um direito.8

    6HESPANHA, Antonio M. Centro e Periferia nas estruturas administrativas do

    Antigo Regime.Ler Histria, n. 8, 1986, p. 35-60.7HESPANHA, A. M.As vsperas do Leviathan... Op. Cit.8Idem, p. 298-308.22

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    A legitimao da polis dizia respeito valorizao dosaspectos morais em relao aos deveres polticos do monarca. Asobrigaes polticas cediam lugar observncia de elementos moraiscomo a graa, piedade, misericrdia e gratido. Em suma, todos esseselementos eram decorrentes dos laos de amizade e compromisso,institucionalizados pelas redes de amigos e de clientes. A aplicao dopoder rgio, segundo o proposto, passava por essas redes derelacionamentos, e isso implicava na observao dessas relaes, nosentido de preservar ou no tais vnculos, seja por respeito tradio oupor estratgia de governo.9

    O pluralismo poltico tocava a idia de que o poder erapartilhado em instncias de menor ou maior hierarquia, e noconcentrado totalmente nas mos do rei10. Os poderes repartidoscompreendiam a realidade poltica quotidiana da Europa. A coroadividia seu poder com a igreja e nobreza, ambos dividiam com os dosmunicpios, dos senhorios, das melhores famlias, dos militares, e por aadiante.

    Sobre este aspecto, temos a organizao do poder municipal quegeralmente era dividida entre os potentados locais. Conforme apontouNuno Gonalo Monteiro, todo territrio continental da monarquia

    portuguesa estava coberto por concelhos, designados oficialmente comocidades, vilas, concelhos, coutos e honras, sem que dessas distintasdesignaes resultassem significativas diferenas11. Esses concelhoseram dirigidos por uma cmara e esta era composta por um juiz-presidente, dois vereadores e um procurador. Tais oficiais eram eleitos econfirmados pela administrao rgia, ou mesmo pelo senhor da terra,caso a cidade ou vila se localizasse em um senhorio. Em geral, asmelhores famlias da terra faziam valer o seu poder tornando elegveisos seus representantes.

    Quanto administrao da coroa, os oficiais rgios gozavam deuma proteo muito alargada dos seus direitos e atribuies, podendofazer valer tais direitos e privilgios at mesmo em situaes de

    9HESPANHA, Antonio M.A constituio do Imprio portugus... Op. Cit.10Idem.11MONTEIRO, Nuno Gonalo. Os concelhos e as comunidades. In:HESPANHA, A. M. (Coord.)Histria de Portugal. O Antigo Regime, vol. 4.

    Lisboa: Ed. Estampa, 1993, p. 303-330. Apud. BICALHO, Maria Fernanda.Ascmaras ultramarinas e o governo do Imprio. In: FRAGOSO, Joo;BICALHO, Maria. F., GOUVA, Maria de Ftima. (Org.). Op. Cit. p. 191-192.

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    confronto direto com o rei, tendendo por isso a minar e expropriar opoder real.12

    Esse comportamento dos funcionrios rgios era assegurado

    pela prtica de benesses expedidas pelo rei. A coroa distribua uma sriede privilgios como forma de agradecimento para aqueles sditos quemobilizaram esforos e recursos na execuo de algum servio em proldos interesses da coroa. Esse campo de prestao de servios abria umasrie de obrigaes recprocas entre as partes envolvidas. Asrecompensas distribudas pelo monarca geravam um mercado de vidosprestadores dos servios rgios. Dentre vantagens, havia adisponibilidade para cargos administrativos, patentes militares,privilgios comerciais, iseno de impostos, doao de terras, alm deoutros elementos que enriqueciam materialmente e simbolicamente osprestadores desses servios. No horizonte de tais sditos, estava semprea qualidade de ser agraciado pelo rei, fosse por ttulos, dinheiro,concesses, etc. Segundo Hespanha, as mercs reforariam o cartercorporativo da monarquia portuguesa, uma monarquia cujos encargoscorrespondem basicamente estrutura-feudal corporativa dobenefcio.13

    Quanto ao direito legislativo da coroa, este era limitado e

    enquadrado pela doutrina jurdica (ius commune) e pelas prticaslocais de justia. A centralidade do direito reflete na ateno ao direitocomum, o direito vivido pelas pessoas. Uma das caractersticas dessetipo de direito era a sua enorme flexibilidade, traduzida no fato de odireito local se impor ao direito geral e de na prtica, as particularidadesde cada caso e no as regras abstratas decidirem a soluo jurdica.14

    Sobre este ponto da centralidade do direito est mais assentadaa proposta do autor. O direito comum, atravs das prticas jurdicas

    costumeiras, engessava o mando real ao ponto de anular suas validaesde poder estatal. Nas palavras de Antonio Hespanha, temos:

    12HESPANHA, Antonio M.A constituio do Imprio portugus... Op. Cit.13HESPANHA, Antonio. M. A Fazenda In: HESPANHA, Antonio. M. (Coord.)Histria de Portugal. O Antigo Regime, vol. 4. Lisboa: Ed. Estampa,1993, p.165. Apud. FRAGOSO, Joo. GOUVEIA, Maria de Ftima; BICALHO, Maria.

    F. Uma leitura do Brasil colonial... Op. Cit. p. 68.14HESPANHA, Antonio. M. Depois do Leviathan. Revista AlmanackBraziliense. So Paulo, n.5, maio de 2007, p. 55-66.24

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    Isso quer dizer que a centralidade do direito setraduzia, de facto, na centralidade dos poderesnormativos locais, formais ou informais, dos usosdas terras, das situaes "enraizadas" (iura

    radicata), na ateno s particularidades de caso;e, em resumo, na deciso das questes segundo assensibilidades jurdicas locais, por muito longeque andassem daquilo que estava estabelecido nasleis formais do reino. Por fim, esta mesmaflexibilidade do direito, engendrava uma

    possibilidade infinita de recursos, bem como apossibilidade de paralisar um comando, umaordem, uma norma oficial, durante anos a fio,

    somando apelaes a agravos, recursoseclesisticos a recursos civis, splicas ao rei (aovice-rei, ao Conselho Ultramarino) aos maisvariados embargos e medidas cautelares.15

    O respeito aos parmetros da doutrina jurdica configuroulimites ao poder rgio ao ponto de ceder espao de atuao para outrospersonagens polticos como aristocracia, cmara, tropas militares, igreja,vice-reinados, etc. A imagem desptica dos reis da Idade Modernacristalizadas na memria e no discurso da histria tradicional, aospoucos ia cedendo lugar a um monarca diplomtico. Parte dissoresultava tambm do entrelaamento e do compromisso que a coroaassumia com essas partes do corpo social e poltico do seu reino, nosentido de assegurar a estabilidade e harmonia da sociedade fazendo jusa sua funo de monarca (a cabea), o que certamente preservava elegitimava seu poder. A partir da, surgia uma nova interpretao acercada estrutura administrativa do imprio portugus que passava, assim

    como no reino, a reconhecer a autonomia das instncias polticas queconfiguravam a esfera de poder local das possesses coloniais.

    A incorporao do modelo de Estado portugus sugerido porAntonio Hespanha encontrou nas Amricas uma das verses maisacentuadas. A importao dos valores corporativos do Antigo Regimeassumiu uma feio muito particular no cenrio do Brasil colonial. Ospesquisadores brasileiros que se debruaram sobre o tema passaram adefinir este processo de modelao do poder estatal realidade

    15Idem, p. 57.25

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    americana como o Antigo Regime nos trpicos.16Aos poucos esseshistoriadores foram percebendo que a poltica imposta Amricaportuguesa era de carter dual, e que o poder exercido pelo rei eracompartido entre as instituies e autoridades locais coloniais. O centropoltico colonial, ou melhor, os grupos dominantes que circulavam nasesferas do poder local, revelavam autonomia e capacidade paranegociar os termos das imposies feitas pela coroa portuguesa. A istotambm se acrescentava o papel dessas elites coloniais enquantopartcipes da organizao e manuteno das estruturas de governo doperodo colonial. A atuao desses grupos de poder se revelou comoobjeto importante e indispensvel para o entendimento do jogo polticoentre colnia e metrpole.

    A leitura sobre os grupos de colonos privilegiados se redefiniu apartir da sua prpria importncia no tabuleiro da realidade colonial, depeas relevantes que foram no jogo da formao das sociedades daAmrica lusa. O lugar que a estrutura do Estado portugus lhesreservava na gesto dos territrios coloniais, seja do ponto de vistapoltico, militar, econmico ou mesmo jurdico, atravs da presena nasinstncias poltico-administrativas locais, os tornava num dos principaisagentes de transformao da sociedade. Isto se dava no exclusivamente

    por exercerem o poder local de fato, mas, sim, por ocuparem lugaresestratgicos no processo de mudanas das estruturas gerais das reas quehabitavam, sendo mediadores entre o Mare Lusitanoe as populaescoloniais.

    Nesse contexto da ocupao colonial das Amricas, dasinstituies trasladadas as que certamente passaram a deter uma enormeinfluncia no campo poltico foram as cmaras municipais ultramarinas.A ocupao desse espao de poder era realizada pelos os colonos maisabastados, os principais da terra ou homens bons, que viam aoportunidade de usar as vereanas como um mecanismo de negociaodireta com a coroa portuguesa em prol dos seus interesses e,simultaneamente, como forma de distino social.17Como bem apontou

    16FRAGOSO, Joo, BICALHO, Maria Fernanda, GOUVA, Maria de Ftima(Org.). O Antigo Regime nos Trpicos... Op. Cit.17FRAGOSO, Joo. A formao da economia colonial do Rio de Janeiro e desua primeira elite senhorial (sculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, Joo;

    GOUVA, Maria de Ftima; BICALHO, Maria Fernanda. (Org.) O AntigoRegime nos trpicos... Op. Cit. p.29-72.; FRAGOSO, Joo. A nobreza daRepblica: notas sobre a formao da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro26

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    John Russel Wood, o poder conferido s cmaras era suficiente paraevitar ou modificar as polticas propostas pelas as autoridadesmetropolitanas no sentido de negociar um acordo menos ofensivo aosinteresses dos colonos.18

    Outro ponto importante foi o mecanismo poltico eadministrativo do sistema de mercs que, neste lado do Atlntico teve,digamos, resultados mais desastrosos para o Estado centralizador eabsoluto portugus.

    A fragilidade de recursos humanos e financeiros fez com que acoroa portuguesa lanasse mo da mesma artimanha utilizada nogoverno de Portugal, a distribuio de privilgios e benesses. A

    concesso dessas mercs, que era unicamente expedida pelo rei, faziacom que os sditos da colnia americana, portugueses ou descendentes,reforassem os seus laos de vassalagem e lealdade para com a coroa.Para alm da confirmao dos sditos, essa prtica tambm refletia umcanal de negociao entre os colonos e a coroa, uma vez que a lgicadas mercs colocava os envolvidos numa rede de reciprocidades. Para acoroa, a concesso do privilgio era atribuda como favor em respostaaos servios prestados em prol dos seus interesses, enquanto, que, paraos colonos, a prestao de servios coroa garantia a cesso de

    privilgios e espao para barganhas na defesa de seus projetosindividuais e coletivos. Joo Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Mariade Ftima Gouva apontam que foi este tipo prtica de distribuio debenesses que garantiu as condies de governabilidade do coroaportuguesa sobre o territrio americano.19Esse sistema de concesso deprivilgios em nada anulava a participao poltica dos colonos, pelocontrrio, colocava-os numa situao de pertencimento a essa mesmaestrutura de governo, sobretudo pelo uso alargado da idia de governarem prol do bem comum (a favor do imprio).

    A partir dessas insinuaes acerca dos poderes locais que foramse constituindo com base no modelo corporativo poltico portugus, e

    (sculos XVI e XVII). In: Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, 2000, p. 45-122.;FRAGOSO, Joo. A nobreza vive em bandos: a economia poltica das melhoresfamlias da terra do Rio de Janeiro, sculo XVII: algumas notas de pesquisa. In:Revista Tempo. Niteri, UFF, vol. 15, p. 11-35, 2003.18WOOD, John Russel. Centro e Periferia no Mundo Luso-Brasileiro (1500-

    1808). In:Revista Brasileira de Histria, So Paulo, vol. 18, n. 36, 1998.19FRAGOSO, Joo. GOUVEIA, Maria de Ftima. BICALHO, Maria. F. Umaleitura do Brasil colonial... Op. cit. p, 9.

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    das estratgias polticas das elites coloniais na consolidao do exercciode mando, podemos perceber que a noo tradicional do Absolutismo,quando aplicado ao imprio portugus, juntamente com as suasderivaes de poder metropolitano e submisso das colnias, se tornapuramente ineficaz. Diferente daquilo que se pensava acerca dasrelaes assimtricas nos termos do binmio explicativo metrpole-colnia, as pesquisas recentes caminham para uma interpretao dualdessa poltica, indicando a existncia de canais concretos de negociaoentre o poder central e o poder local.

    E justamente o poder local o principal objeto de estudodeste trabalho. Mas por detrs dessa categoria analtica se esconde amaterialidade do poder que era levada a cabo por pessoas quearrogavam para si o direito de governo sobre a sua comunidade, ousobre a repblica via as cmaras municipais. Dessa maneira, segue-seaqui a ideia de inquirir sobre a trajetria social e poltica desse grupo depessoas na Ilha de Santa Catarina, entre finais do XVII e a primeirametade do XVIII. Mas tambm, sobre a maneira como esses gruposorganizaram-se sobre aquele territrio, passando pela fundao dopovoado, pela sua atuao na cmara da vila do Desterro, instalada em1726, at o incio do projeto de defesa militar e colonizao

    implementado pela coroa portuguesa entre as dcadas de 1730 e 1750.Para esta tarefa de entender a organizao do poder nas mos de

    um grupo seleto de pessoas, fez-se necessrio adaptao aqui dopensamento do antroplogo noruegus Fredrik Barth, de que os recursosso distribudos de forma desigual na sociedade, e de que essa mesmadiferena, alm de outros padres de no-compartilhamento, que definea fronteira entre os grupos.20 Nesse sentido, procurou-se identificarelementos que conformassem um parmetro social comum entre osmembros da elite, como tambm outros elementos que no foramcompartidos entre eles, e o restante da populao de uma forma geral. Aprpria noo de elite que utilizada aqui, seguiu esse raciocnio: o deperceber as gradaes que compunham tal grupo de poder nos termos damanipulao e uso dos recursos de seus integrantes, revelando adinamicidade e diferena que persistia entre aqueles que insistiam emocupar as posies cimeiras da sociedade. Logo, o termo elite nestetrabalho puramente virtual, usado a fim de organizar o trabalho emtorno de um conjunto maior de pessoas que intentam aquisio de poder,

    20BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variaes antropolgicas. Riode Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 25-67.28

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    seja ele poltico social ou econmico.

    Com base nisso, atentou-se, quando possvel, ao mvel dasaes sociais que estavam sendo empreendidas pelos personagens desta

    histria, de como agiram frente as oportunidades de poder, e de comoexerciam no seu territrio.

    Entre finais do sculo XVII e incio do seguinte, a Ilha de SantaCatarina passava por um contnuo processo de formao e organizaodo seu espao enquanto parte do imprio portugus, que foi levado acabo por esses grupos que antes conquistaram e povoaram a costacatarinense. Este quadro temporal foi importante para perceber aformao das territorialidades que estiveram presentes naquela

    comunidade, tendo como ponto de partida a atuao da prpria elitelocal. Mas tambm a maneira como conduziram seus projetos de poderem relao administrao rgia.

    O incio do setecentos fora um perodo de profundas mudanasno espao da Ilha e do seu continente prximo. Isso pode ser percebidoem vrios aspectos da vida local (demogrfico, econmico, poltico,etc.). At ento, a Ilha acabava de ser ocupada pelos portugueses e luso-brasileiros que adentravam pelo meridional americano em busca de

    braos indgenas para o trabalho nas lavouras que ampliavam-se nascapitanias mais ao norte. Dali por diante, parecia iniciar-se acolonizao dos territrios sulinos portugueses, em especial as reas quecompreendem hoje os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. nesse contexto de conquista e de ocupao portuguesa efetiva da regioque se inicia o processo de configurao dessa elite. O perodo desseprocesso se deu em fins do sculo XVII, mas continuou por toda aprimeira metade do sculo seguinte com o assentamento de novoscolonos que garantiram a posse e o domnio do territrio.

    Para a realizao desse trabalho, se tornou no menosimportante entender o espao meridional recm-ocupado a partir de umaidia de fronteira, aqui definido no apenas de forma territorial, mascomo um lugar impreciso em termos polticos, sociais e econmicos, ouat mesmo geogrficos. Um lugar onde no havia ainda umentendimento claro sobre quem de fato exercia a soberania, sobretudono mbito local. Neste momento a presena do aparato estatal portugusera quase inexistente, o que permitia uma margem de atuao maior

    aqueles que pleiteavam mando sobre os povoados recm-criados. Masno apenas isso. A fronteira tambm um lugar incerto, uma rea de

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    tenso, suscetvel a mudanas de toda ordem. As estratgias dossujeitos fronteirios certamente foram elaboradas com o intuito dereduzir a margem de incerteza que lhes reserva o futuro numa regio deocupao recente, em busca de estabilidade e segurana.

    Nesse sentido, a pesquisa procurou focar as estratgias queforam elaboradas pelas principais famlias e sujeitos envolvidos nestaempreitada de colonizao de parte do territrio meridional, comotambm os recursos que estariam sendo manipulados por esses a fim deintegrar o topo da pirmide social que se construa. Para tanto, atentou-se para as redes de relaes nos quais esse grupo de pessoas estavainserido, com o intuito de perceber as dinmicas e trajetrias individuaise coletivas nos diferentes contextos de mando local.

    O interesse pelo comportamento social das elites coloniais,sobretudo enquanto grupo que procura preservar o seu lugar de poder,redefinindo as estruturas hierrquicas das sociedades americanasportuguesas no nenhuma novidade para a historiografia nacional.Entretanto, para o caso de Santa Catarina, esta temtica soa como algonovo no conjunto dos estudos histricos j foram desenvolvidos ataqui.

    Em um momento anterior, que foi de ampliao das pesquisasacadmicas no Brasil de uma forma geral, sobretudo as dcadas de 1980e 1990, o interesse de alguns pesquisadores passou a se dirigir sobre aselites coloniais a partir da sua importncia poltica e econmica noquadro do imprio portugus. Os objetos primordiais da anlise eram aatuao desses grupos nos espaos de governana locais, defendendoseus interesses, e que, em certa medida, eram discordantes do queimpunha a coroa portuguesa nos termos da sua poltica colonial. Istoparecia acontecer por conta da preocupao que parte dos pesquisadores

    tinha em derrubar os esquemas explicativos de submisso ao qual haviasido relegado todo o passado colonial brasileiro. A imagem histrica quepredominava at ento, havia sido produzida exclusivamente a partir doslaos de vassalagem que ligavam a colnia e a metrpole. Aos poucosesses historiadores foram percebendo que a poltica imposta Amricaportuguesa era de carter dual, e que o poder exercido pelo rei eracompartido entre as instituies e autoridades locais coloniais. A istoacrescentava-se o papel das famlias partcipes da nobreza da terra,enquanto grupos que passavam a organizar as estruturas de governo noperodo colonial. As elaboraes familiares desses gruposcorrespondiam com a manuteno e afirmao social e poltica do seu30

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    poder, envolvendo grande parte da sociedade do seu entorno. Astrajetrias desses grupos se revelaram objetos importantes noentendimento do jogo poltico entre autoridades locais e metropolitanasna Amrica portuguesa.21

    Um dos expoentes dessa reviravolta da pesquisa histrica sobreos estudos das elites coloniais foi Joo Fragoso. Este autor calcou com asua tese de doutoramento um novo modelo interpretativo para o passadocolonial, embasado sobre as caractersticas produtivas internas como ofator principal para o entendimento das dinmicas da sociedade colonialbrasileira. Ele procurou fugir de uma anlise que se pautavaexclusivamente sobre os fenmenos externos ligados metrpoleportuguesa, como antes fora exaltado pelos ensastas da primeira metadedo sculo XX. A sua pesquisa centrou-se sobre a atuao das elitesmercantis e polticas do centro-sul da Amrica portuguesa, em especialdo Rio de Janeiro, que operavam com certa autonomia frente ao controleportugus, colocando em xeque a imagem da submisso da colnia soba metrpole.22O argumento do seu trabalho acabou sendo tempos depoismelhor reformulado e ampliado.

    As dinmicas econmicas coloniais que foram consideradas apartir das caractersticas prprias da realidade brasileira, e que no

    respondiam de forma espontnea aos determinantes do reino dePortugal, passaram a integrar parte de uma lgica maior que organizavaas sociedades coloniais da Amrica portuguesa. Tratava-se do modelodo Antigo Regime nos trpicos, antes mencionado, que compreendiaalm dos fenmenos econmicos, os vetores culturais e polticos queorientavam, em parte, as aes sociais dos colonos, especialmente aselites.23Este modelo se tornou nos ltimos anos uma referncia para asanlises das sociedades coloniais brasileiras, sobretudo por noapresentar uma estrutura rgida e definida frente multiplicidade dasformas coloniais americanas. De certa forma, esse grande sistema de

    21FRAGOSO, Joo Lus Ribeiro; FLORENTINO, Manolo. O arcasmo comoprojeto. Mercado atlntico, sociedade agrria e elite mercantil em umaeconomia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 c. 1840 . Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2001.22FRAGOSO, Joo.Homens de grossa aventura: acumulao e hierarquia napraa mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1998.23

    FRAGOSO, Joo; GOUVA, Maria de Ftima; BICALHO, Maria Fernanda.(Org.) O Antigo Regime nos trpicos. A dinmica imperial portuguesa. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 2001.

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    comportamento garantiu um tipo de adequao entre os espaos de aoindividual e coletiva, que aparentemente podem soar como dissonantesao prprio sistema, configurando uma estrutura dinmica de tempolongo, que encerra uma pluralidade de formas sociais, polticas,culturais e econmicas do continente portugus americano.

    O raciocnio que definiu os traos da sociedade colonialbrasileira do Antigo Regime dos trpicos pauta-se na adaptao dosvalores das sociedades modernas europias realidade americana peloscolonos portugueses e seus descendentes. Em parte, foram esses cdigosde valores da sociedade corporativa portuguesa que vieram a definir asestruturas hierrquicas da Amrica portuguesa. Pesquisando sobre aorigem e formao das hierarquias sociais e econmicas do passadocolonial fluminense, Joo Fragoso sinalizou a importncia que tiveramtais valores corporativos na definio desse processo, em especialquanto ao comportamento familiar das elites coloniais. As estratgiasempreendidas por essas elites, seguiam na direo de manterem ereiterarem o seu poder social e poltico reinventado na Amricaportuguesa. Segundo Fragoso, a elite fluminense dos sculos XVI eXVII, seu principal objeto de estudo, reelaborou certos valoresaristocrticos que antes diziam respeito exclusivamente ao mundo

    portugus, como elementos de statuspara assumir e permanecer nasposies privilegiadas que pleiteavam sobre aquelas paragens. Partedesses mecanismos de qualificao social passava pela prestao deservio coroa portuguesa, incluindo os afazeres de conquista doterritrio americano.24

    Deste modo, consideramos para este trabalho o modelo doAntigo Regime nos trpicos como referncia para os mveis dasaes dos sujeitos sociais que integravam as posies de mando da Ilhade Santa Catarina no principiar do sculo XVIII. Mesmo porque asituao nova do domnio sobre o territrio meridional poderia trazeressas significaes de status, melhor, de aquisio de recursos naconfigurao desigual das recentes sociedades catarinenses.

    Pensando sobre a historiografia catarinense, pouco pode ser ditoem relao problemtica recente desses estudos. Os pesquisadoresatuais parecem cada vez mais se distanciar do recorte colonial como

    24FRAGOSO, Joo. A formao da economia colonial do Rio de Janeiro e de

    sua primeira elite senhorial (sculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, Joo;GOUVA, Maria de Ftima; BICALHO, Maria Fernanda. (Org.) O AntigoRegime nos trpicos... Op. Cit.p.29-72.32

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    tambm do tema das elites. O que ainda persiste, por mais inadequadasque sejam, so as validaes histricas feitas pela dita historiografiatradicional. Estas seguiam uma orientao de idias e pesquisa nadaempricas, ou mesmo nada condizentes com a virada do pensamentohistrico do sculo XX a referncia aqui a histria-problema. Oraciocnio de tais pesquisadores seguia o de uma histria alinhada aopensamento histrico-positivista do final do sculo XIX e incio do XX,que tinha como a principal inquietao a narrativa dos fatos e trajetriados homens ditos importantes, mas sem uma avaliao mais apurada deproblemticas sociais, polticas e econmicas do contexto em que essesestavam inseridos. Esses estudos foram pautados apenas pela meradescrio do evento histrico, e muitas vezes reproduzidos como

    verdades histricas de carter heroicizantes.25

    Desse modo, os trabalhos histricos de corte regional tiveram oseu valor apenas pelo conjunto de informaes que apresentam, uma vezque a maioria das fontes consultadas por esses pesquisadores parecemno mais existir nos arquivos locais. A interpretao dos fatos que osautores trazem foi reavaliada a partir das perspectivas atuais dahistoriografia. Frente a esta lacuna da historiografia regional, foram deextrema valia aqui as pesquisas recentes que versam sobre a temtica

    das elites coloniais. Mesmo sendo sobre outros contextos histrico-geogrficos elas forneceram subsdios metodolgicos e tericos paracomplemento deste trabalho, em especial aqueles que versam sobre oRio Grande do Sul, que, em face de uma realidade histrica quasecomum da capitania de Santa Catarina a referncia aqui o processode expanso portuguesa sobre a regio do meridional se tornaramimportantes interlocutores para o desenvolvimento desta pesquisa.

    A respeito das fontes que deram lastro a este trabalho, foramutilizadas em grande parte as missivas direcionadas aos conselhossuperiores do Reino (Conselho Ultramarino), responsvel pelaadministrao das possesses coloniais, e que ajudaram a indicar asrelaes entre os poderes central e local. Foi impossvel acessar materialprimrio referente cmara da Vila do Desterro, visto que toda estadocumentao se encontra em restauro. No entanto, parte desse materialfoi compilado e transcrito por um diligente historiador do final do sculoXIX, Jos Gonalves Santos e Silva, que interessado na histria local,copiou boa parte da documentao oficial respeitante vida poltica do

    25WOLFF, Cristina Scheibe. Historiografia catarinense: uma introduo aodebate. Revista Catarinense de Histria, n. 2, Florianpolis, 1995.

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    Desterro. No menos importante foram os estudos genealgicosorganizados por diversos pesquisadores da histria local, em geralvinculados ao Instituto Histrico e Geogrfico de Santa Catarina, e queforam complementados aqui com os dados do primeiro livro decasamentos da parquia de Nossa Senhora do Desterro. Foram teistambm as memrias escritas no sculo XIX pelos historiadores locais,que traduziam uma viso bastante positivista da histria local, mas queapresentavam dados adicionais a vida poltica do Desterro.

    O trabalho que segue est apresentado em trs captulos queprocuram organizar de forma um tanto coerente as validaes feitasacerca das experincias dos atores sociais que vieram a compor aprimeira elite da Ilha de Santa Catarina e os seus projetos de poder sobreo territrio na primeira metade do sculo XVIII.

    No primeiro captulo procurou-se apresentar o contexto deocupao e formao do territrio portugus da Ilha de Santa Catarina.A conquista das paragens meridionais apresentava-se como umaoportunidade nica para aqueles que intentavam melhores condies devida. A empreitada da colonizao, alm de promover o acesso arecursos como a terra e a administrao da fora de trabalho indgena,possibilitava tambm o acmulo de benefcios que advinham do poder

    central em reconhecimento s investidas dos particulares sobre os novosdomnios.

    Adiante, o segundo captulo apresenta o processo deestabilizao social e poltica do povoado do Desterro. Procuramosatentar para as dinmicas que envolveram o principal grupo de mandolocal.

    Por fim, o terceiro captulo procurou apresentar o processo deterritorializao levado a cabo pelo Estado luso sobre aquelas paragens,desde a criao da vila do Desterro, at a instalao das suas burocraciascomo a governadoria, ouvidoria e provedoria. O foco principal nestecaptulo foi o de entender esse processo de remodelao da organizaoscio-poltica do ponto de vista da elite local. Pautou-se pela observaoda atuao dos camaristas da Vila do Desterro na defesa da suajurisdio sobre aquele espao em que operava o seu governo.Procuramos atentar para as situaes de desafio da autoridade local, dacmara da vila, a fim de entrever as estratgias da elite desterrense.

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    Captulo 1 - A formao territorial de um povoado na costa Sul daAmrica portuguesa

    1.1 Prembulo

    Nos tempos idos da segunda metade do sculo XVII, entre asdcadas de 1650 e 1670, chegava Ilha de Santa Catarina um grupo depessoas vindo das bandas da capitania de So Vicente. Dentre osmotivos, um deles era fazer daquele pedao de terra parte dos domniosportugueses que avanavam sobre uma rea da Amrica ainda no

    apropriada. A expedio que arrastou centenas de pessoas pelas densasflorestas da Mata Atlntica, tinha sido chefiada por Francisco DiasVelho Monteiro. Ali o sertanista decidiu elevar uma das primeirasermidas crists do litoral catarinense. Sob a invocao catlica de NossaSenhora do Desterro, o pequeno povoado s margens do canal estreitoque separa a Ilha do seu continente surgia como mais um ponto decolonizao decorrente das investidas das bandeiras paulistas pelo Sul.

    O evento descrito acima tido pela historiografia regional e

    est presente na memria histrica dos catarinenses como o mitofundador da atual cidade de Florianpolis, capital do estado de SantaCatarina. As narrativas e os discursos histricos construdos em tornodesse fato nos levam a crer que tal feito digno de ser memorvel. Issopor que foi a partir da que deu-se incio trajetria secular das lutas queos antepassados heris enfrentaram para que estas terraspermanecessem como parte do territrio brasileiro e, consequentemente,territrio catarinense. Para a maioria dos estudiosos, as peripcias davida daqueles valentes de outrora merecem ser lembradas por que

    tratam de um captulo especial do passado dos catarinenses: o da suaorigem.26A histria da conquista da Ilha de Santa Catarina e do seu

    26A maior parte desses autores estiveram ligados ao Instituto Histrico eGeogrfico de Santa Catarina (IHGSC) e escreveram vrios estudos sobre odescobrimento e povoamento do atual territrio do estado de SantaCatarina. No que toca ao tema e recorte deste trabalho, a ocupao da Ilha deSanta Catarina e do seu litoral entre finais do XVII e incio do XVIII, estaremosrecorrendo a essa produo historiogrfica atentando no somente para os dados

    e informaes apresentados, mas tambm para o discurso construdo sobre ahistria que se propunha contar. Sobre a historiografia catarinense e o IHGSCver: SERPA, lio Cantalcio. A identidade catarinense nos discursos do Instituto

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    litoral, e a memria projetada sobre ela parte vital na construo emanuteno da identidade das pessoas do lugar.27Sabendo disso, em 18de agosto de 2001, a prefeitura municipal de Florianpolis levantou ummonumento dedicado ao principal personagem da histria deste lugar.Abaixo da imponente esttua que ergeram do bandeirante FranciscoDias Velho h uma placa que resume sua trajetria e agradece os seusfeitos com os seguintes dizeres: O reconhecimento do povo deFlorianpolis.28

    Talvez tenha sido em razo desse dever de querer lembrar,que os pesquisadores da histria de Santa Catarina, em diferentesmomentos, escreveram e re-escreveram verses sobre os acontecimentosque giraram em torno da vida e dos feitos de Francisco Dias VelhoMonteiro. Embora haja discordncias sobre os aspectos deste evento em

    Histrico e Geogrfico de Santa Catarina. Revista de Cincias Humanas,Florianpolis, v. 14, n. 20, 1996, p.63-79; WOLFF, Cristina Scheibe.Historiografia catarinense: uma introduo ao debate. Revista Catarinense deHistria, Florianpolis, n. 2, 1994, p.5-15; GONALVES, Janice. SombriosUmbrais a Transpor: arquivos e historiografia em Santa Catarina no sculoXX. So Paulo, Programa de Ps-Graduao em Histria Social/USP, Tese deDoutorado, 2006.27

    Sobre o significado e o papel da memria na construo da identidade socialver: POLLAK, Michel. Memria e identidade social. In: Estudos Histricos.Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p.200-212.; Para o gegrafo RogrioHasebaert, a identidade territorial uma identidade social definida atravs doterritrio, ou seja, dentro de uma relao de apropriao que se d no campo dasideias [histria e memria] quanto no da realidade concreta. HAESBAERT,Rogrio. Identidades territoriais. In: CORRA, Roberto Lobato;ROSENDAHL, Zeny (Org.). Manifestaes da cultura no espao. Rio deJaneiro: Editora da UERJ, 1999, p. 172.28O monumento dedicado a Francisco Dias Velho est localizado as margens darodovia Gustavo Richard, nas imediaes do Terminal Rodovirio Rita Maria,ao lado do elevado que tambm leva o seu nome, com os seguintes dizeres:Francisco Dias Velho, fundador de Nossa Senhora do Desterro, atualFlorianpolis, nasceu em So Paulo, na primeira metade do sculo XVII. Como

    bandeirante, saiu de So Paulo de Piratininga, em 18 de abril de 1662, com umaexpedio, para fundar uma "pvoa" na Ilha de Santa Catarina. Na Ilha,chamada Meiembipe pelos ndios, permaneceu, entre 1675 e 1678 e,regressando a So Paulo, requereu sesmarias na regio, onde j havia construdouma pequena Igreja. Mais tarde, Dias Velho retornou e fixou-se na Ilha de Santa

    Catarina, onde terminou seus dias de maneira trgica, morto num ataque depiratas, ocorrido entre 1679 e 1680. 'O reconhecimento do povo deFlorianpolis'.36

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    si, com as suas imprecises cronolgicas e factuais para alguns osobrenome Monteiro nem lhe deve ser atribudo29 todos concordam,direta ou indiretamente, com a ideia de que foi com a chegada da suaexpedio que inaugurou-se o momento da ocupao pioneira e estveldo litoral de Santa Catarina pelos portugueses, ou melhor, pelosbraslicos, a gente nascida no Brasil30, na segunda metade do XVII,dando incio a um processo de povoamento que insistiu continuar portodo o sculo XVIII.31

    O captulo que segue tem esse fato como ponto de partida paradiscutir os mveis que levaram os agentes colonizadores, nem todosbandeirantes, a ocuparem e se fixarem na Ilha de Santa Catarina e no

    29Para o pesquisador Evaldo Pauli, o sobrenome Monteiro no pode seratribudo Francisco Dias Velho por que sabe-se pelos seus antepassadosgenealgicos, que no poderia ser Dias Velho Monteiro. Segundo ele, essaconfuso do sobrenome foi feita por antigos historiadores locais que lheatriburam o nome do seu filho Jos Pires Monteiro. PAULI, Evaldo. Afundao de Florianpolis. Florianpolis: Lunardelli, 1987, p. 76; Em seuestudo genealgico sobre os antigos moradores do Desterro, o historiadorOswaldo Cabral prefere no adotar o sobrenome Monteiro para FranciscoDias Velho. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Razes Seculares de Santa

    Catarina (1948). Angra do Heroismo: Tipograf'ia Andrade, 1953. Ao longo dotexto vamos seguir as sugestes de ambos historiadores e adotar o nomeFrancisco Dias Velho, sem o sobrenome o Monteiro, para fazer referncia aosertanista paulista. O sobrenome Monteiro foi acrescentado a Dias Velho pelosmemorialistas Manuel Joaquim de Almeida Coelho e Paulo Joze Miguel deBrito. Cf. COELHO, Manuel Joaquim DAlmeida. Memria histrica daprovncia de Santa Catharina.Santa Catharina: Tipografia de J. J. Lopes, 1877,p. 5; BRITO, Paulo Joze Miguel. Memria poltica sobre a capitania de SantaCatarina (1816). Florianpolis: Livraria Central, 1932, p. 14.30O termo braslico estar sendo adotado ao longo desse trabalho parareferenciar as populaes que viviam na Amrica portuguesa do sculo XVII ata primeiras dcadas do XVIII. O termo era de uso corrente nos escritosseiscentistas, conforme sugere o historiador Luiz Felipe de Alencastro. Cf.ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formao do Brasil noAtlntico Sul, sculo XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 28.31O historiador Theobaldo da Costa Jamund enftico quanto ocupao

    pioneira e permanente da Ilha de Santa Catarina por Francisco Dias Velho. Paraele, mesmo que as datas no correspondam realidade, foi Francisco DiasVelho que efetivamente quem fundou povoado na Ilha de Santa Catarina e nele

    viveu com a famlia. JAMUND, Theobaldo da Costa. Pessoas IlustresLigadas a Santa Catarina (Segunda Parte). In: Histria De Santa Catarina(Volume II). Curitiba: Grafipar, 1970, p. 67.

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    seu continente entre finais do setecentos e incio do sculo XVIII. Ainteno aqui a de compreender as causas que levaram esse grupo depessoas a se fixarem e organizarem uma vida comum naquele espao defronteira, que como tal definia-se pelo fluxo constante de pessoas queaos poucos alargavam os limites do territrio portugus na Amrica emdireo ao sul, e em tempos variados.32Para tanto, analisaremos esseprocesso de formao territorial dos sertes da regio que compreendehoje o estado de Santa Catarina sob o ponto de vista dos principaisatores que inauguraram ncleos de povoao na Ilha de Santa Catarina elugares prximos. Esse sujeitos estavam sendo orientados por aes deconquistas e povoamento que traduziam os valores do imprioultramarino portugus.

    Os valores que passaram a organizar as sociedades americanasvm sendo definidos por aquilo que alguns historiadores chamam deAntigo Regime nos trpicos, uma linguagem poltico-cultural quepermitia que pessoas com orientaes valorativas bem diferentes(negros, ndios, portugueses, mestios, etc) pudessem viver emcomunidade identificando-se como sditos do rei de Portugal e a servioda sua monarquia catlica. Foi manipulando tais cdigos que os grupossociais que tiveram participao na conquista e defesa de novos

    territrios em nome da coroa portuguesa, influram na produoterritorial dos novos povoados e vilas que surgiam nos vazios daAmrica lusa. sobre a trajetria desses povoadores/conquistadores daIlha e sua terra firme, posteriormente a Vila de Nossa Senhora doDesterro (1726), de que vamos tratar a seguir.

    32Para Srgio Buarque de Holanda, em sua obra sobre a histria da empresabandeirante paulista, tanto a ideia de caminho quanto a de fronteiraapontam a mobilidade como uma caracterstica intrnseca dos processos deexpanso territorial. Segundo ele, se o aceno ao caminho, 'que convida aomovimento', quer apontar exatamente para a mobilidade caracterstica,sobretudo nos sculos iniciais, das populaes do planalto paulista [], o fato que essa prpria mobilidade condicionada entre elas e ir, por sua vez,condicionar a situao implicada na ideia de 'fronteira'. A fronteira para Buarque

    de Holanda nesse contexto de colonizao um espao em movimento favorda colonizao portuguesa. HOLANDA, Sergio B. de. Caminhos e Fronteiras.So Paulo: Cia das Letras, 1994, p. 12.38

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    1.2 - Francisco Dias Velho e o bandeirismo paulista em direo aoSul

    O despertar do sculo XVII assistiu a uma mudana profundana geografia poltica e econmica da Amrica portuguesa. Os interessesdo colonato braslico e das autoridades lusas direcionavam-se cada vezmais para o Atlntico Sul. No litoral, havia os fluminenses quecomandados por gente da estirpe de Salvador Correia de S e Bevenidesfortaleciam as trocas comerciais entre as praas do Rio de Janeiro,Luanda e Buenos Aires. Os produtos negociados nesse comrciotriangular eram: cachaa brasileira, escravo africano e prata espanhola.

    No continente, distante da economia litornea, os paulistas envolviam-secom a preao de ndios, transformando as entradas no serto33numadas principais empresas coloniais da Capitania de So Vicente, qui amaior delas no sculo XVII. Essa atividade foi responsvel pelo

    33O termo serto era de uso corrente no perodo colonial para designar osespaos longnquos do interior, distante da costa litornea. Ao mesmo tempo,carrega o sentido de ser um espao vazio (embora cheio de indgenas),deserto, selvagem, abandonado ou pouco habitado. Segundo Cludia

    Damasceno, o serto constitui o limite, em contnuo movimento, do espaopovoado, cultivado, civilizado e territorializado que pouco a pouco o substitui.Portanto, podemos defini-lo simultaneamente como a realidade que preexiste aoterritrio e como a fronteira, indefinida e movente, deste ltimo. Cf.FONSECA, Cludia Damasceno.Arraiais e Vilas d'El Rei: espao e poder nasMinas setecentistas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011, p. 54-55.; Sobreos diversos significados do imaginrio do serto na Amrica portuguesa ver:DELVAUX, Marcelo Motta.As Minas Imaginrias: o maravilhoso geogrficonas representaes sobre o serto da Amrica Portuguesa sculos XVI a XIX.Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas/UFMG,Dissertao de Mestrado, 2009. De certo modo, o historiador Marcelo Delvauxconcorda com a ideia de serto defendida por Cludia Damasceno, quandoreconhece que uma representao possvel dessa realidade geogrfica era oestado de um espao em perptuo vir a ser, diante o processo de expansoterritorial promovido pela coroa portuguesa, e que teve no sculo XVII os

    bandeirantes paulistas como os principais agentes. Segundo ele, O sertotambm significava o oposto ao modelo idealizado de organizao social que se

    procurava implantar nos ncleos populacionais litorneos. Isto explica asdescries que o apresentam como despovoado, ao mesmo tempo em que so

    ressaltados os perigos relacionados presena dos ndios hostis: era despovoadode cristos, onde a f catlica e o poder metropolitano no conseguiram chegar.DELVAUX, Marcelo Motta. Op. cit., p. 3.

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    a derrota das batalhas nas misses do Tape primeiro em Caaapaguau(1638) e depois Mboror (1641). Segundo John Monteiro, essas duasderrotas militares marcariam o fim de uma poca: o da guerra contra osaldeamentos jesutas e o das bandeiras de grande escala.38

    A partir do ocorrido nas misses do Tape, os bandeirantescomearam a reorganizar o seu modelo de expedio e apresamento dendios. Passaram a adotar uma nova orientao geogrfica para aspreias, espalhando-se mais para as regies prximas da Vila de SoPaulo, seguindo em direo aos sertes do Oeste e do Sul; diminuramos intervalos entre as viagens; reduziram o tamanho das tropas, agoraconhecidas como armaes; e o financiamento passou a ser particular,de capital prprio ou de financistas armadores, com quem ossertanistas deveriam repartir o lucro dos seus negcios, os ndios.39

    Esse novo contexto marcou o fim da carreira do bandeiranteFrancisco Dias, morto em 1645, e que segundo o genealogistasetecentista Pedro Taques de Almeida Paes Leme, se fez opulento dearcos, cujos ndios conquistou com armas no serto, e gostando destaguerra tornou para a mesma conquista, e no serto dos Patos e Rio deSo Francisco para Sul at o Rio Grande de So Pedro.40Ao seu lado,pouco anos antes da sua morte, atuou o seu filho Francisco Dias Velho,

    o futuro fundador da povoado do Desterro, nas suas ltimas investidascontra as populaes guaranis do litoral.41Dava-se incio a uma novagerao de preadores de ndios na famlia Dias.

    As bandeiras das quais os dois Franciscos (pai e filho)participaram e/ou chefiaram conservavam ainda traos do modelo antigode organizao, no que dependia inteiramente da colaborao indgena,

    38MONTEIRO, John M. Op cit., p. 76-79.39 Sobre os guaranis e bandeirantes ver: MONTEIRO, Jonh M. Os guarani...Op. cit., p.475-498; MONTEIRO, John Manuel.Negros da Terra... Op. cit., p.57-98.40PAES LEME, Pedro Taques de Almeida,Nobiliarquia Paulistana Histrica eGenealgica. Apud. SILVA LEME, Luiz Gonzaga da. Genealogia Paulistana.So Paulo: Duprat & Comp, vol 8, 1904, p. 26.41O historiador catarinense Walter Piazza comenta que Francisco Dias Velhoacompanhou seu pai nas vezes em que o mesmo investiu no 'serto dos patos',

    para aprisionar indgenas. PIAZZA, Walter. Santa Catarina: sua histria.

    Florianpolis: Ed. da UFSC/Lunardelli, 1983, p. 112. A genealogia da famliaDias Velho se encontra em: SILVA LEME, Luiz Gonzaga da. Op. cit., vol 8, p.25.

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    seja atravs da participao de ndios como membros da empresa(voluntrios ou no), seja via o estabelecimento de pactos comlideranas indgenas de grupos inimigos dos que seriam atacados.42

    Em termos operacionais, a coordenao da bandeira era feitapelo cabo da tropa ou capito do arraial que detinha o poderabsoluto sobre seus subordinados a funo que os dois Franciscosocuparam. O capito normalmente era um sertanista experiente, j haviaparticipado de outras entradas ao lado de parentes ou de terceiros, masque depois de ter juntado ou herdado alguma riqueza (ndios e armas defogo, por exemplo) decidiu investir em sua prpria bandeira. Poderiaainda, depois de ter adquirido fama e prestgio com os repetidossucessos de suas incurses, adquirir financiamento junto aos armadores.Ele tambm reunia toda famlia na empresa, filhos, parentes e agregadospara auxili-lo no comando da tropa, o que lhe garantia maior seguranano investimento das expedies. Alm do que, a presena da famliaaumentava o efetivo da tropa, reduzindo os custos humanos, e o maisimportante, legava aos descendentes a experincia de ser sertanista.43

    Outra figura importante da bandeira era o capelo, que tinhaobviamente como funo o atendimento espiritual dos membros datropa. Os cuidados para com a f crist catlica era fundamental, porque

    diante das privaes no serto bravio, ela poderia, mesmo queinconscientemente, afastar os temores e angstias do bando nosmomentos de hesitao, garantindo assim a continuidade da longa e durajornada. Ademais, ela cumpria o papel ideolgico na justificativa dasaes violentas contra os gentios da terra, impulsionando o avano docristianismo sobre as partes desoladas e gentlicas da Amrica, numcontnuo das guerras justas do sculo passado.44

    42MONTEIRO, Jonh M. Op. cit., p. 62-63; 90.43MONTEIRO, Jonh M.Negros da Terra...Op. cit., p. 85-91. LIMA, LeandroSantos de. Bandeirismo Paulista: o avano na colonizao e explorao dointerior do Brasil (Taubat, 1645 a 1720). So Paulo: Programa de PsGraduao em Histria Social/USP, Dissertao de Mestrado, 2011, p. 141-162.44Para Hebe Mattos, a noo de cativeiro justo e guerra justa ocuparo lugarcentral no pensamento teolgico-jurdico do Imprio portugus. Apesar daorientao favorvel liberdade natural dos amerndios, o cativeiro legitimado

    pela guerra justa ao ndio pago e hostil permaneceu na Amrica portuguesa ato advento das reformas pombalinas. MATTOS, Hebe. A escravido moderna

    nos quadros do Imprio portugus: o Antigo Regime em perspectiva atlntica.In: FRAGOSO, Joo L. R.; GOUVA, Maria de Ftima; BICALHO, MariaFernanda. (org.) O Antigo Regime nos trpicos. A dinmica imperial42

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    Tudo isso fazia das armaes uma empresa familiar e catlica.John Monteiro aponta que, no mais das vezes, a armao era umempreendimento familiar. Sem dvida, na ausncia de dispositivosinstitucionais que garantissem tais investimentos, parecia mais seguroconfiar em parentes.45 Assim aconteceu com Francisco Dias quandoiniciou seus filhos na carreira de bandeirante fazendo-os acompanharpelas suas andanas rumo aos sertes sulinos. Conforme anotou PedroTaques, este capito-mor Francisco Dias Velho [filho], tendoacompanhado o seu pai nas entradas que fez no serto dos gentios dosPatos, ficou-lhe herdando a disciplina e valor para conquistar gentiosbravos do serto da costa do Sul.46

    No foi somente a experincia de sertanista; Francisco Diasdeixou tambm para os seus filhos alguma riqueza para que os mesmospudessem continuar a desenvolver as suas prprias empresas. Dentre osbens arrolados em seu inventrio constavam bens de raiz (terras ecasas), escravos de Angola, gente forra do gentio da terra (ndios),gado vacum e ferramentas. Francisco Dias deixou rfos nove filhos,sendo que quatro j tinham idade suficiente para fazer parte dasarmaes. Eram eles: Pedro Dias (24 anos), Francisco Dias (23 anos),Manuel Dias (18 anos) e Ignacio Dias (16 anos).47Consta que no dia em

    que levantaram o inventrio para decidir sobre a partilha dos bens, noestavam presentes alguns dos herdeiros. Foi relatado que

    no mesmo dia, ms e ano acima e atrs escrito edeclarado, o dito juiz houve por entregues todosos bens mveis e de raiz, gado e peas do gentioda terra assim e da maneira neste inventrioescritos viva Custdia Gonalves para que tudotivesse em seu poder e administrasse at serem as

    partes herdeiras presentes s partilhas que se nofazem pela ausncia de ditos rfos.48

    portuguesa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 146.45MONTEIRO, Jonh Manuel. Op. cit., p. 86.46PAES LEME, Pedro Taques de Almeida,Nobiliarquia Paulistana Histrica eGenealgica. Apud.SILVA LEME, Luiz Gonzaga da. Op. cit.,vol 8, p. 26.47AESP.Inventrios e Testamentos.Papis que pertenceram ao 1 Cartrio de

    rfos da Capital. Publicao oficial do Arquivo do Estado de So Paulo. SoPaulo: Tipografia Piratininga, 1920, Vol. 14, p. 371-381.48AESP. Op. cit., p. 373.

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    Naquela ocasio estavam presentes Helena Dias, que atravs doseu marido Francisco Pires de Siqueira declarou que no queria entrarna colao e nem herdar os bens mveis, provavelmente por j ter sidoadiantado o seu dote, mas que queria herdar os bens de raiz. E AnnaDias, viva, que declarou que no queria herdar nada, certamente pelomesmo motivo do adiantamento do dote. Os outros trs filhos eramAntonia, Maria e Jos de respectivamente 14, 12 e 10 anos. Ou seja, osrfos ausentes no poderiam de ser as duas irms mais velhas, pelossimples fato de estarem sendo representadas, e nem as crianas.Estariam os filhos mais velhos ausentes em funo de entradas no serto procura de ndios? Fica a dvida. Em razo da prtica comum dejovens dessa mesma idade se aventurarem pelo serto para buscar

    remdio para a sua pobreza,49

    para usar uma expresso da poca,acreditamos que sim.

    Como j dito, para qualquer bandeirante, sobretudo em suasprimeiras expedies, ter disposio gentios da terra para atuar emfavor da tropa era fundamental para o sucesso das expedies. A maioriaeram ndios escravizados e/ou administrados50que realizavam todo tipode trabalho na empresa das bandeiras/armaes: carregavam osapetrechos da tropa nos lombos por longas distncias a p (mantimentos,

    armas, chumbo, plvora, ferramentas, etc.) a utilizao da foraanimal no transporte de cargas no era muito comum entre ossertanistas; construam e tambm remavam as canoas quando danecessidade de atravessar os rios, lagos e baas que entrecortavam oscaminhos terrestres; auxiliavam na construo dos ranchos nosmomentos de parada; buscavam alimento nas matas e os cozinhavam; eainda lutavam como soldados nos confrontos contra outros ndios,dentre outros trabalhos que as circunstncias da viagem poderiamexigir.51

    49MONTEIRO, Jonh M.Negros da Terra...Op cit., p. 85.50Sobre os sistemas de escravizao e administrao (trabalho compulsrio) dafora de trabalho indgena ver: MONTEIRO, John M. Op. cit., p. 147-152.;PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos: os princpios dalegislao indigenista do perodo colonial (sculos XVI a XVIII). In: CUNHA,Manuel Carneiro da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Cia daLetras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 2009, p.115-132.51Sobre a participao ativa dos indgenas como membros das bandeiras e/ou

    armaes ver: MONTEIRO, John M. Negros da terra... Op. cit., p.89-90; Umaanlise mais ampla sobre a atuao indgena nos diferentes espaos dasociedade seiscentista consta na obra acima, mas tambm em: MONTEIRO,44

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    Mas foi desempenhando a funo de guia pelas matas tropicaisque os ndios se tornaram ainda mais indispensveis para o sucesso dasbandeiras. Os caminhos trilhados pelos sertanistas paulistas seguiam asveredas indgenas, trilhas h muito conhecidas e utilizadas pelos ndiosna comunicao entre aldeias e povoados.52Esses caminhos primitivos(terrestres e fluviais) faziam parte de um itinerrio indgena inscrito nasrelaes espaciais concretas que desde muito grupos nativos j haviamestabelecido com os lugares da Amrica, a sua morada natural. O maisimportante desses roteiros era o Peabiru que conectava comunidadesguaranis da bacia do Paraguai com as do litoral de Santa Catarina e SoPaulo.53Ao mesmo tempo, todas as tcnicas nativas de representao eorientao espacial atravs da observao acertada dos fenmenos

    naturais (astros celestes, ventos, leito dos rios, etc.) foram cruciais parao bom desempenho das incurses paulistas. A aguada capacidade depercepo da geografia, topografia e natureza americana fazia dacartografia indgena um conhecimento necessrio aos paulistas para oenfrentamento dos sertes bravios. Mas tambm as tcnicas desobrevivncia na floresta, as habilidades de extrair da natureza alimento,bebida e remdio quando necessrio.54

    Para alguns estudiosos, foi desses encontros e desencontros do

    homem portugus com o indgena, em funo das bandeiras, eestimulado pela necessidade do primeiro em dominar os costumes daterra a fim de tirar-lhe proveito nas preias, que fez surgir a formacultural e hibrida do homem mameluco a raa dos gigantes comoqueriam alguns pesquisadores eugenistas do sculo XX55. Segundo John

    John M. O escravo ndio, esse desconhecido. In: GRUPIONI, Lus D. Benzi.ndios no Brasil. So Paulo: Global; Braslia: MEC, 1998, p.105-120. Emambos os trabalhos o autor discute o protagonismo indgena na histria de So

    Paulo, e no Brasil de uma forma geral, como atores significativos da sua prpriahistria e no somente como sujeitos que ficaram margem dos processoshistrico-sociais do seu tempo. Para uma discusso atual dessa nova viso dahistria indgena na historiografia brasileira ver: ALMEIDA, Maria ReginaCelestino de. Os ndios na Histria do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV,2010.52Cf. HOLANDA, Sergio B. de. Op. cit., p. 19-45.53Idem.54 KOK, Glria. Vestgios indgenas na cartografia do serto da Amrica

    portuguesa. In:Anais do Museu Paulista, So Paulo, v. 17, n.2, p. 91-109, 2009;HOLANDA, Sergio Buarque de.Op. cit.,p. 19-45.55 ELLIS JNIOR, Alfredo. Raa de Gigantes: a civilizao no planalto

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    Monteiro, o termo mameluco era utilizado na poca para designar osfilhos de pai branco e me ndia reconhecidos publicamente namaioria dos casos via casamento catlico dos pais e que gozavam deliberdade plena, aproximando-se mais da identidade colonial portuguesado que da indgena. No entanto, esses diferenciavam-se dos filhosbastardos, fruto das relaes extra-conjugais dos pais portugueses, queeram criados e aproximados mais da condio materna, e sujeitos aosistema de servido.56

    Muitos desses mamelucos souberam aproveitar da sua heranacultural nativa para tornarem-se sertanistas especializados. A partir dodomnio dos cdigos da cultura indgena eles se tornaram os principaisintermediadores entre o mundo do nativo americano e o mundo doportugus desbravador. Todo o conhecimento que os mamelucosherdaram foram teis nos desafios dos sertes bravios. O domnio dositinerrios indgenas, as tcnicas da caa e pesca, construo deembarcaes, mareagem dos rios, os sistemas de comunicao esinalizao nas matas e o conhecimento da fauna e flora nativa, tudoisso foi fundamental para garantir a sobrevivncia e o sucesso dasempresas bandeirantes.

    No caso de Francisco Dias Velho, o futuro fundador da pvoa

    do Desterro, ele mesmo descendia em linha direta de uma ndia tapuiado sculo XVI.57A sua av paterna, Antonia Gomes da Silva era filha deIzabel Afonso (mameluca), que por sua vez era filha do portugus PedroAffonso e de uma ndia que ele prprio resgatou. Vale lembrar que os

    paulista. So Paulo: Editora Helios Limitada, 1926; Ver tambm: ZENHA,Edmundo.Mamelucos. So Paulo: Empresa Grfica da Revista dos Tribunais,1970. Para uma discusso sobre as teorias raciais e eugnicas em torno dosmamelucos ver: MONTEIRO, John Manuel. Tupi, Tapuias e Historiadores...Op. cit., p. 194-216.56MONTEIRO, John Manuel.Op. cit., p. 166-167.Conferir ainda o verbeteMamelucos em VAINFAS, Ronaldo. (org.) Dicionrio do Brasil colonial(1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 365-367; E o verbeteMameluco em: BLUTEAU, Rafhael. Vocabulario portuguez e Latino.Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, p. 276-277.57 O termo Tapuia uma categoria genrica de classificao que os

    portugueses associavam aos grupos indgenas no conhecidos, diferentes do

    grupo Tupi. Os tapuias pertenciam, em boa parte, famlia jou a outrosgrupos lingusticos isolados. Cf. MONTEIRO, John M. Op. cit., p. 19-20. Cf. Overbete Tapuia em VAINFAS, Ronaldo (org.). Op. cit., p. 544-545.46

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    tapuias eram conhecidos como os ndios inimigos do portugueses.58

    Pedro Affonso foi um dos primeiros povoadores da capitania de SoVicente, um conquistador daquelas terras, e esteve envolvido em guerrascontra ndios hostis.59O historiador Evaldo Pauli, no seu estudo sobre afundao da cidade de Florianpolis, um trabalho rico em detalhes sobrea trajetria de Francisco Dias Velho, afirma que o sangue indgenacorria pelas veias, ainda que escala reduzida, lhe deram a simpatia doSerto e da solidariedade com o prprio selvcola, que sempre teveintegrado no seu lote de pees.60Ao que tudo indica, a famlia de DiasVelho compartilhava valores daquela cultura mameluca que originou-senos primeiros momentos do descobrimento na regio paulista, e quecontinuava pelo sculo XVII.

    Alm disso, o seu av paterno, Pedro Dias, portugus e irmoleigo da Companhia de Jesus, era profundo conhecedor dos costumesindgenas e estudioso da lngua tupi, a lngua geral do Brasil. Elechegou capitania de So Vicente para auxiliar no trabalho missionriodo colgio de So Paulo recm-criado em Piratininga. Ao lado dosconfrades inacianos ajudou no primeiro aldeamento da regio, que tinhasido montado em torno da aldeia tupiniquim do chefe Tibiri.61 Foiquando conheceu Tereb, filha de Tibiri, e com ela casou-se. Mas para

    efetivar o seu matrimnio ele precisou antes pedir licena da ordemjesuta. Seguindo os ritos catlicos, a ndia Tereb foi batizada com o

    58Segundo Jonh Monteiro, os ndios chamados Tapuia eram com frequncia osinimigos mais indicados para uma guerra justa. MONTEIRO, Jonh Manuel.Op. cit., p. 52.59Estas informaes sobre a genealogia e trajetria dos Affonsos foram retiradasde: SILVA LEME, Luiz Gonzaga da. Op. cit., vol 1, 1904, p. 1-9. Conferirtambm: TAUNAY, Afonso. Histria geral das bandeiras. So Paulo, T.8, p.362, 1946. Apud. PAULI, Evaldo. Op cit., p.76. A respeito das guerras do XVI,o historiador Joo Fragoso fala do apoio que as tropas paulistas de portuguesese ndios forneceram na luta contra os franceses e tamoios na capitania do Rio deJaneiro, sob comando do capito-mor da Capitania de So Vicente, JernimoLeito, entre 1573 e 1592. Cf. FRAGOSO, Joo L. R. Fidalgos e parentes de

    pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750).In: FRAGOSO, Joo L. R.; ALMEIDA, Carla Maria C. de; SAMPAIO, AntnioCarlos de J. (org.) Conquistadores e negociantes: histrias de elites no AntigoRegime nos trpicos. Amrica lusa, sculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2007, p. 48-50.60

    PAULI, Evaldo. Op. cit., p. 76.61Segundo Jonh Monteiro, Tibiri foi um dos protagonistas na promoo dasrelaes luso-indgenas. MONTEIRO, John M. Op. cit., p. 28-36.

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    nome cristo de Maria da Gr, em homenagem ao padre superior docolgio Lus da Gr. O casal Pedro Dias e Maria da Gr teve trs filhos.Tempos depois Maria da Gr morreu, e Pedro Dias decidiu casar-senovamente, desta vez com a neta do conquistador Pedro Affonso,Antonia Gomes da Silva, com quem teve mais trs filhos sendo umdeles Francisco Dias, o pai de Francisco Dias Velho.62

    Francisco Dias Velho no conheceu o av, que morreu em1590, mas toda a trajetria da sua famlia de contato com as populaesindgenas nos primeiros momentos da conquista dos territrios paulistaslhe permitiu acumular um conhecimento rico dos costumes da terra.Isso fez dele, assim como seu pai, um sertanista especializado,proficiente na vida nas matas e habilidoso na arte de prear ndios.Certamente ele dominava as lnguas nativas, tinha na sua famliareferncia dos dois principais grupos lingusticos, ojdos tapuias e otupidos tupiniquins.63Todo esse saber familiar o habilitou para que assuas futuras expedies em busca de ndios e de outras oportunidadespelos terrenos inspitos do sul se realizassem com relativo sucesso.

    interessante notar que os pesquisadores da histria de SantaCatarina, por quase dois sculos, nunca sinalizaram em seus trabalhossobre a origem mestia de Francisco Dias Velho, com exceo do j

    citado trabalho de Evaldo Pauli, e mesmo assim de maneira bemdiscreta, por que, segundo este autor, o grau da mestiagem dobondoso Dias Velho era reduzido.64Mesmo desconfiando dos dados

    62Um resumo sobre a trajetria de Pedro Dias consta em: SILVA LEME, LuizGonzaga da. Op. cit., vol. 8, 1904, p. 3.63Sobre as lnguas indgenas ver: MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. Lnguasindgenas no Brasil contemporneo. In: GRUPIONI, Lus D. Benzi.ndios noBrasil. So Paulo: Global; Braslia: MEC, 1998, p. 93-104. Ver tambm overbete Tapuia em: VAINFAS, Ronaldo (org.). Op. cit.64Dentre os estudos histricos que analisaram, mesmo que superficialmente, atrajetria de Francisco Dias Velho podemos destacar: BOITEUX, LucasAlexandre. A pequena histria catarinense. Florianpolis: Officinas aElectricidade da Imprensa Oficial, 1920.; BOITEUX, Lucas Alexandre. Notaspara a histria catharinense. Florianpolis: Typ. a vapor da Livraria Moderna,1912.; CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Histria de Santa Catarina.Florianpolis: Lunardelli, 1987.; CABRAL, Oswaldo R. Nossa Senhora doDesterro (Volume I Notcia). Florianpolis: Lunardelli, 1979.; PIAZZA,

    Walter. Santa Catarina: sua histria. Florianpolis: Ed. da UFSC/Lunardelli,1983.; JAMUND, Theobaldo da Costa. Op. cit.; FONTES, Henrique da Silva.A Irmandade do Senhor dos Passos e o seu hospital e aqueles que os fundaram .48

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    genealgicos que sustentam tal afirmao, que em geral so lacunares equase sempre no mencionam as fontes histricas de onde foramretiradas suas informaes, baseando-se mais em relatos orais, ahiptese da mestiagem do conquistador da Ilha de Santa Catarina bastante plausvel tendo em vista o contexto no qual ele e sua famliaviveram.65

    Para se ter uma ideia mais clara disso, a populao dospovoados e vilas da capitania de So Vicente ao longo do sculo XVIIera praticamente toda indgena. Esse grupo perfazia um total deaproximadamente 80% em lugares como as vilas de So Paulo eSorocaba. O nmero de brancos nessas sociedades era muito pequeno,se comparado aos dos mamelucos, bastardos, carijs (ndiosadministrados) e ndios pagos. 66

    A sociedade paulista onde Francisco Dias Velho nasceu, cresceue viveu boa parte de sua vida tinha como regra, e no como exceo, amiscigenao com os nativos que, no incio do processo dedescobrimento, tinha sido estimulada pelas autoridades portuguesas. Emdecorrncia disso, aquelas sociedades coloniais de referncia portuguesareinventaram suas hierarquias permitindo que os mestios se fizessempresentes em todas as camadas sociais, e at que estes ocupassem

    posies de destaque frente das incipientes vilas e cidades que surgiam

    Florianpolis: Edio do autor, 1965, p.11-19; MAGALHES, Baslio. Osbandeirantes em Santa Catarina. In:Revista do IHGSC. Florianpolis, vol. VII,n. 4, 1918, p. 360-361.; GUALBERTO, Luiz. Francisco Dias Velho.Florianpolis:Revista do IHGSC, 2 semestre, 1943, p. 107-116.65Recuperamos a trajetria dos ascendentes de Francisco Dias Velho tendocomo referncia o trabalho do historiador e genealogista paulista Luiz Gonzagada Silva Leme, Genealogia Paulistana, um estudo das principais famlias deSo Paulo, onde o autor atualiza, com o uso de documentos histricos, a obragenealgica Pedro Taques de Almeida Paes Leme escrita no sculo XVIII. Este,

    por sua vez, escreveu algumas notas sobre Francisco Dias Velho e sua famlia,provavelmente baseando-se em relatos orais, porm no menos fidedigno. Oav de Paes Leme, Pedro Taques de Almeida, era conhecido de Francisco DiasVelho. Ele foi procurador de Dias Velho na ocasio do inventrio de sua me,Custdia Gonalves. APESP. Inventrios e Testamentos. Papis que

    pertenceram ao 1 Cartrio de rfos da Capital. Publicao oficial do Arquivodo Estado de So Paulo. So Paulo: Tipografia Piratininga, 1920, Vol. 20, p.317-347.66

    HOLANDA, Srgio Buarque de. Movimentos da populao de So Paulo nosculo XVIII. In:Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. So Paulo, v.1,1966. p. 55-111.

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    na capitania de So Vicente. A estratificao social dos indivduos, namaioria dos casos, no era organizada exclusivamente por critriostnicos. Na Amrica portuguesa o poder social era resultado de outrosatributos, como a descendncia nobre dos conquistadores, os privilgiose ttulos advindos da prestao de servio coroa portuguesa, aocupao nos ofcios pblicos da Repblica (cmara municipal) e, nomenos importante, o controle sobre a mo-de-obra escrava e as terrasagricultveis.67 O prprio Francisco Dias Velho se viu beneficiadodesses critrios de promoo social. Ele ocupou cargos na cmaramunicipal da vila de So Paulo, passando a figurar entre os homensbons daquela sociedade. Exerceu a funo de alcaide em 1653 e 1658 ejuiz ordinrio e de rfos no ano de 1668.68

    Ademais, unies consensuais entre portugueses e ndias erammais do que comuns, como demonstram os altos ndices da presena demestios no seio da populao. Tudo isso nos leva crer que o fundadorda cidade de Florianpolis era mesmo um mestio moda mamelucados que haviam na sociedade paulista do seiscentos.

    Os motivos que levaram os pesquisadores do incio do sculoXX a propositalmente omitir a mestiagem de Francisco de Dias Velho,a maioria desses vinculados ao Instituto Histrico e Geogrfico de Santa

    Catarina (IHGSC) e/ou fiis a sua tratadstica historiogrfica, podem serdos mais variados. Entretanto, esse silncio voluntrio pode estar ligadoao fato de Dias Velho ser considerado um dos principais personagens dahistria de Santa Catarina, e que como tal, em razo da suaproeminncia no sculo XVII e dos seus grandes feitos, a sua origemno deveria de ser outra seno a portuguesa, branca, mesmo que nofosse declarada. Para a elite intelectual e poltica de Florianpolis nomais da antiga Desterro escravista dos tempos da Colnia e Imprio assumir que o principal heri da histria do estado de Santa Catarina,o fundador da capital, era um mestio, talvez no imprimisse o sentido

    67Sobre as hierarquias sociais na Amrica portuguesa ver: FRAGOSO, Joo L.R.Fidalgos...Op. cit., p. 33-120.; FRAGOSO, Joo. A nobreza vive em bandos:a economia poltica das melhores famlias da terra do Rio de Janeiro, sculoXVII algumas notas de pesquisa.Revista Tempo. Niteri, UFF, vol. 15, p. 11-35, 2003; FRAGOSO, Joo. O capito Joo Pereira Lemos e a parda MariaSampaio: notas sobre hierarquias rurais costumeiras no Rio de Janeiro do sculoXVIII. In: OLIVEIRA, Mnica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla M. Carvalho de

    (org.).Exerccios de micro-histria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 157-207.68PAULI, Evaldo. Op. cit., p. 83-86.50

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    moral-cvico que a histria-memria via IHGSC deveria comunicar naPrimeira Repblica. Parte desse mesmo grupo de historiadores seesforaria ainda, anos mais tarde, em elaborar uma identidade para oshabitantes do litoral catarinense, que diferente do interior no tinha suahistria atrelada colonizao europia do sculo XIX.69O evento a serexaltado no era o da conquista dos bandeirantes, como fizeram oscongneres paulistas vinculados ao Instituto Histrico e Geogrfico deSo Paulo70, mas sim a colonizao aoriana da segunda metade dosculo XVIII. Era a que residia a particularidade histrica e identitria

    69 Um discusso sobre esses temas historiogrficos do sculo XX pode serconferida em: SERPA, lio Cantalcio. Op. cit.; WOLFF, Cristina Scheibe. Op.cit.; GONALVES, Janice. Op. cit..; FLORES, Maria Bernadete Ramos. Afarra do boi: palavras, sentidos, fices . Florianpolis: Editora da UFSC, 1997.FALCO, Luiz Felipe. Entre ontem e amanh: diferena cultural, tensessociais e separatismo em Santa Catarina no sculo XX. Itaja: Editora daUNIVALI, 2000.70 Entre finais do XIX e incio do XX, a elite paulista da Repblica Velha

    procurou usar a imagem dos bandeirantes de maneira positiva em seus projetosde memria, como que fosse uma representao histrica (atemporal) do povode So Paulo, descendentes de uma raa de gigantes. Desta forma, a elite

    paulista procurava enaltecer a sua capacidade de liderana no plano nacional,

    manipulando os fatos da histria regional favor do seu projeto hegemnico depoder. A historiadora Ilana Blaj lembra que a partir da historiografia'paulstica', vinculada ao Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo, algumasimagens a respeito de So Paulo colonial foram sendo cristalizadas. Com efeito,tal historiografia tinha como construo implcita, a preocupao de justificar o

    poder de So Paulo no contexto de riqueza cafeicultora no mbito da RepublicaVelha, o que pressupunha um relacionamento com os outros Estados e a luta

    pela hegemonia nacional. As imagens a partir da resultantes edificam umpaulista altivo, independente, arrojado e leal, cuja snt