Upload
duongkien
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)265292ISSN:08745498
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos1Iliadcomics:spreadingtheclassics
TEREZAVIRGNIARIBEIROBARBOSA(UniversidadeFederaldeMinasGerais,Brasil)2
Abstract:Wereporttheresultsofaprojectdevelopedwiththepurposeoftranslatingthe Iliad into thesequential languageofcomicorcartoonstrips,hoping to reclaim theimagisticstrengthoftheepicattributedtoHomer.Intheprocess,wehavechosennottoemphasize narrative content, but rather give priority to the style and the rhetoricaldevicesusedintheGreektext.Thisapproachseekstocounterbalancesomecommercialadaptations of Homer which focus on the rewriting of content and plot.We haveattemptedtoassociatecomicsandancientrhetoricwithinthenarrativeprocess,therebyopeningupthepossibilityofapproachingvisualitythroughfiguresofspeech.
Keywords:image;figuresofspeech;literature;rhetoric.
AIladaeaOdisseiajforamtranspostasparaalinguagemdabandadesenhadamuitas vezes e demuitasmaneiras.3No nos compete aquiarrolar, analisar ou mesmo criticar tais tentativas, todavia apraznos odebate acirrado que se sustenta no Brasil e que focaliza, demodo geral,ousodasBandasDesenhadascomofacilitadoresdaaprendizagem.
No compartilhamosda ideiadequeoquadrinho sejaum simplificadorepropomos,noscasosdareescritadoscnonesdaliteraturauniversal,reconheceropotencialdeartesequencialdabandadesenhadaecoloclanopatamardeumatraduoartstica.ApoiadosnateoriadatraduodeHaroldodeCampos4 e ItamarEvenZohar,hipotetizamosumprodutosofisticadoeaomesmotempoacessvel,quetemvaloremsimesmoeque,
1Textorecebidoem15.11.2012eaceiteparapublicaoem23.01.2013.Apesquisa
aqui apresentada teve o apoio da Fundao deAmparo Pesquisa deMinasGerais(FAPEMIG).
[email protected] Entre os textos mais originais e de boa qualidade, podemos citar Camille
Legendre,Lacolre dAchille (Paris 2006);ValrieMangin eDemarez,Le dernier troyen,(Paris2004);MarciaWilliams,AIladaeAOdissia,traduodeLucianoVieiraMachado(SoPaulo2004);SbastinaFerran,Ulysse,TomoI(Paris2002).
4TranscriarHomero:desafioeprograma.OsnomeseosnaviosII:Homero,Ilada.(RiodeJaneiro1999)111155.
266
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
almdomritoquelheprprio,possibilitaacompreensodacarpintarialiterriademaneiradivertidaeaprofundada.Omtodoquedescrevemosepropomosconstituise,nonossoentender,comoumaabordageminovadoranocenrioeditorialbrasileiro.Parans,
(...)areflexoacercadatraducoporimagensnopartedaperspectivadeespecialistasemHq,masbrotadouniversodaliteraturaeempregadesafios,exerccioseprogramas(nosdizeresdeHaroldodeCampos)quepossibilitamadentrartantonaliteratura quanto naHq.Desta forma, esperamos que o quadro que intentamosesboarpossajogarumanovaluzsobreotema.Dirigimosnosso olharparamirar a conjugaco texto e imagem emum outro
horizontee,consequentemente,examinamosanovatendnciapedaggicadecombinar a leitura e reescritado cnone literrio com a formaHq sobumaperspectivamovente,queresultaemtrabalhosdepermuta,barganha,perda,trocaenegociacodaHqcomaliteraturaedaliteraturacomaHq.(BARBOSA,GUERINI2012)8.
Evitamos, portanto, lidar com a banda desenhada comoumamerareproduode enredos apartirde imagens e buscamosum formato querealceasestratgiaseoestilodopoeta,aqui,nocaso,Homero.Nestesentido, acreditamosqueum estudiosoda lngua eda literatura gregapodecontribuirsignificativamentepararecriaesecomopreferimosnomearo resultado deste processo, tradues deste tipo especial de forma.Emrazodisso,produzimos,comoumprimeirodesdobramentodenossapesquisa e como comprovao da metodologia utilizada, a Ilada emquadrinhos:umatraduodeHomero.5
Paraaobra,nossopontoderefernciafoiretricoliterrio;pretendamos, e acreditamos ter alcanado, demonstrar que o texto homrico foi,antesdesuaredaoefixaoporescrito,umprodutoconstitudo,apriori,de imagens voantes, para no dizer, retomando a conhecida frmula,depalavras aladas ().Como afirmamos,nossa realizao devedoradosautoresantesmencionadoscomsuaspropostasnaTeoriados
5EditoraRHJ(BeloHorizonte2012).Aobrafoiproduzida,sobnossaorientao,
emparceria comAndrezaCaetano,PauloCorraePieroBagnariol,osquais,almdeseremautoresdaIladaemquadrinhos:umatraduodeHomero, integramoreferidoprojeto.TodasasilustraessodePieroBagnariol,sendoosdireitoscedidosparaogrupodepesquisa.
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos267
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
PolissistemasenosexercciospoticosdaTranscriaoeTransluciferao.6Assim,opressupostodainvestigaoqueaquiseapresentaodeque:
The idea that semiotic phenomena, i.e., signgoverned human patterns ofcommunication (e.g., culture, language, literature, society) should be regarded assystems rather than conglomerates of disparate elements has become one of theleadingideasofourtimeinmostsciencesofman.Thus,thepositivisticcollectionofdata,takenbonafideonempiricistgroundsandanalysedonthebasisoftheirmaterialsubstance,hasbeenreplacedbya functionalapproachbasedontheanalysisofrelations.Viewedassystems,itbecamepossibletodescribeandexplainhowthevarioussemioticaggregatesoperate.Subsequentlythewaywasopenedtoachievewhathas been regarded throughout the development ofmodern science as the latterssupremegoal:thedetectionofthoserulesgoverningthediversityandcomplexityofphenomenaratherthantheirregistrationandclassification.(EVENZOHAR,1979)288
Situamonos,porconseguinte,emumaabordagem funcional, isto,pretendese conhecer o funcionamento dos poemas homricos atravsdesuaheranaiconogrficaeculturalinseridanosistemaliterriodosfalantesdelnguaportuguesa.Tratase,pois,deumaabordagemdinmica,heterognea e diacrnica, em que no se postula a uniformidade dos procedimentosnasdiversassituaes,vistoqueanfasedadamultiplicidadedeintersecesenagrandecomplexidadedeleituraspossveisnoreinodaliteratura (EVENZOHAR, 1979) 290 em todo o perodo de existncia de umadeterminada composio (para os poemas homricos, do sc.VII a.C aosculoXXId.C.).Nesseprocedimento,procuramosrealarematerializaremcores, formas, traosemovimentos,a tcnicanarrativadosaedoserapsodosantigosparatraduzirHomerosemtantaspalavras.Assim,porexemplo,em nossa traduo, os deuses ficam sempre fora da margem dos quadrinhos.Quandovmaomundodosmortais,elesentramnomortal.Abaixo vse o smile homrico de Apolo (Ilada, 1, 4347), frecheiro,deixandooOlimpoeentrandonaguerra.Elecai()comoumdardoe,aomesmotempo,comoanoite.descersobreaterra,mudaemtrevastudoqueestnomundo.
6ParatranscriaraIlada.(SaoPaulo,1994)1128.
268
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Entretanto,oprodutoresultadoalmejadonodeveestardesconecta
dodooriginal;naverdadeoquesepretendequealeituradeumamplieadooutro.Evidentemente,deacordo coma teoriadeEvenZohar,no exclumos aspossibilidadesda seleo,manipulao, amplificao e apagamento,bemcomoarelaodospoemashomricoscomosseusmuitostradutores.
Ooutrosuportequesubjazemnossapratica,odopoeta, tradutoreterico da traduoHaroldo deCampos abrange o campo da lingusticamaispontualmente.Paraoescritorbrasileiro,
[n]a traduodeumpoema,oessencialnoareconstituiodamensagem,masareconstituiodosistemadesignosemqueestincorporadaestamensagem,da informaoesttica,noda informaomeramentesemntica.Por issosustentaWalter Benjamin que a m traduo (de uma obra de arte verbal, entendase)caracterizase por ser a simples transmisso da mensagem do original, ou seja:atransmissoinexatadeumcontedoinessencial.(CAMPOS1977)100
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos269
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Na perspectiva desta corrente e,mais uma vez, pelas palavras deCampos,entendemosque
Hoelderlin escandalizou seus contemporneos (inclusive os poetas...) porque,comintuiodepoeta,preferiuplidaconvenodosentidotranslatoaforaconcretadametforaoriginal(amesmaquePound,porseuturno,fezemergirdosideogramas lexicalizados,distinguindo,por exemplo, segundo omtodode seumestreFenollosa, as pinturas abreviadas de sol e lua juntos, onde o linguista veria tosomente o substantivo brilho, o adjetivo brilhante ou o verbo brilhar).Nohdvidadequeosentido(contedodenotativo)dooriginalassimserarefaz,sehermetiza;masacompulsopoticadalinguagem,emcontraparte,aumentaconsideravelmente. Vejase, por exemplo, a concretude tctil que tm, em Dante,asparoledicoloreoscuro,inscritasnoprticodoInferno.(CAMPOS1977)99
Pensamos entonanaturezadas coisas,dohomem,dos bichos,docosmo,daculturaedaliteratura.Pensamosqueumacriana,antesdefalareseexpressarporescrito,veouve.Imaginamosqueela,aindanoterodesuame,aprendeaouvireaverpeloouvido(FREIRE1982)11.Semdvida,h,por trsdessas questes, toda anossa curiosidade sobre aspotencialidadesdarepresentaovisualdapoesiahomrica.Deacordocomvriostericos,7entreelesHeleneFoley,OliverTaplineIrenedeJong,razovel
7MaureenAlden,HomerBesideHimself:ParaNarrativesintheIliad(Oxford2005);
DonFowler,NarrateandDescribe:TheProblemofEkphrasis:JournalofRomanStudies81,(1991),2535;ChrisKraus,SimonGoldhill,HeleneP.Foley,JasElsner,VisualizingtheTragic:Drama,Myth,andRitual inGreekArtandLiterature(Oxford2007);S.D.Goldhill,ThePoetsVoice:EssaysonPoeticsandGreekLiterature(Cambridge1991);N.K.Rutter,&Brian Sparkes, A.,Word and image in ancient Greece (Edinburgh 2006); P. R.Hardie,Imagomundi:cosmologicalandideologicalaspectsoftheshieldofAchilles:JournalofHellenicStudies105,(1991),1132;I.J.F.deJong,NarratorsandFocalizers:ThePresentationof the Story in the Iliad (Amsterdam 2004); C.Moulton, Similes in theHomeric Poems,(Gottingen1977);Webb,R. Ekphrasisancientandmodern: the inventionofagenre inWord and Image:A journal of verbal/visual enquiry 15 v.1 (1999) 718; S.Goldhill, Theeroticeye:visual stimulationandculturalconflict:S.Goldhill, (ed.)BeingGreekunderRome. Cultural Identity, the Second Sophistic and theDevelopment of Empire (Cambridge2001)15494; J.Elsner,RomanEyes.Visuality andSubjectivity inArt andText (Princeton2007);ChristopherJanaway,ImagesofExcellence:PlatosCritiqueoftheArts(Oxford,1998);P.Toohey,EpicandRhetoric:IanWorthington(ed.),Persuasion:GreekRhetoricinAction(London/New York 1994) 153175; Peter Toohe, Reading Epic: An Introduction to theAncientNarratives(London/NewYork1992);BrianVickers,DefenceofRhetoric(Oxford,1989;JeffreyWalker,RhetoricandPoeticsinAntiquity(NewYork2000).
270
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
afirmar,paraomundoantigo,umahegemoniadaviso.Aderimosaestegrupo e, sem pretendermos esgotar o assunto, assumimos, para desenvolvimentodenossopropsito,queosgregosantigossoespectadoresdaspalavrasquesemovimentamnoarepousamnapedra,nopergaminho,nacermica.Maisdoque isso,afirmamosque,deHomeroao teatroclssico,na tragdia ou na comdia, de Plato com a alegoria da cavernascfraseisdosromancistasdoperodohelenstico,apalavrapoticacapazdefazeroouvinte veroquenarrado.Ahiptese jbastantearcaicaenoserestringeaosestudiososcontemporneos;reflexessobreoassunto,como vimos, existem inmeras. Todavia, um argumento conveniente.Citamos, para ilustrlo, um trecho retirado de Vision and Narrative inAchillesTatiusLeucippeandClitophon (Cambridge,2004),umapublicaodeHelenMoralesquepodeconfirmaresustentarasbasesdenossopensamento.Aclassicistaafirmaclaramenteque:
Greek literature has always been ocularcentric. The Homeric epics provideabundantattestationofthepowerofvision.TheOdysseyisenergizedbycuriosities,revelations, and epiphanies. When the iliadic hero is repeatedly displayed asawonder to behold, thauma idesthai, or when Priam calls Helen, that iconicbeauty, towitnesswith him the great spectacle ofwar fought over her, we theaudience become as Segal says spectators of the power of vision itself [Segal,1995,185].HelensslustluredazzlesthroughoutGreekliterature.Thesightofhertransfixesanddestroys.(MORALES2004)810.
Emoutropasso,MoralesevocaHerdotoeconsoanteaassertivaporeleveiculadapropeque:
Amongmankind,theearsarelesstrustingthantheeyes,saysacharacterinHerodotus (1.8.3),whoseHistories are a display, apodeixis (1.1), of the thingswhichheconsiders worthseeing,axiotheeton. ()manymythologicalaccountswhich tell of visual infringements, such as Teiresias catching sight of Athenabathingandbeingstruckblindasapunishment;andActeon ().Visualrelations central to theworksof these twogreat storytellers,HomerandHerodotusplayaprivilegedrolethroughoutGreekliterature.(MORALES2004)810.
Tomemosentoporcertaa importnciadaviso/imagemnapoesiadosaedoscegos(aquelesqueviampelapalavra)eadmitamosqueamensagemdosantigospodetersefixado,exclusivamente,pormeiodeimagens,seja retoricamente falando, seja concretamente, visto que as imagensletras,palavrasouformas,inscriesemmateriaiscomoapedra,aargila,
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos271
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
opapiro, o pergaminho, o papel etc (BRANDO 2012) 31578 so,efetivamente, eflvios, simulacros que ainda emanam do discurso dopassadoeseimprimememnscomosensaesdeviso.
Mas,aindaassim,carecenodescuidardosdetalhes.NaobraOquefilosofia,nocaptulointituladoPercepto,afectoeconceito,GillesDeleuzeeFlixGuattariproblematizaramoestatutodaimagemnaobradearteafirmando e por isso nos interessam de forma particular que figurasestticas(eoestiloqueascria)nadatmavercomaretrica.Sosensaes:perceptoseafectos,paisagenserostos,visesedevires(DELEUZE;GUATTARI1992)211256.Noconcordamosplenamentecomaassertivados filsofosfranceses,mas entendemos que esta postulao pode ser conjugada comalgumasdasreflexesdeEpicuronaCartaaHerdoto.9Epicurosepreocupacomaformaodasimagensemanadasdeobjetosemnossocorpo;DeleuzeeGuattariseinteressampelaformaodasimagensnodiscurso.Emambasasreflexes,asimagenssosimulacros;todavia,acontrapelodosfilsofosfrancesespontoemqueestamosemconsonnciacomofilsofoantigo,Epicuro diz que os simulacros so reais e verdadeiros, assim como osobjetos dos quais so emanados. (SILVA 2012) 275.Assim trataremos aretrica: como coisa feita de imagem e som fixada emmatria concreta,asaber,aspalavrasescritas,.
Paradesenvolveresseraciocnio,valemonosdaretricaantigaedasexpresses figura de linguagem e figura de pensamento, em grego,e.Interessanossaberoquevmaser,semanticamente,figuradepalavraefiguradepensamento.
A palavra grega traduzida nos dicionrios pelos termosforma,figura,aparncia,aspecto.Nessesentido,podemosentenderqueas
8Nessepasso,destacamos, igualmente,a seguinteafirmao: (...) importante
ressaltarqueaescritafazdodiscursotambmumobjeto,umamensagemque,emvezdeefetivarsedeumaformanatural,ouseja,dabocaparaoouvido,produzidapelasmoserecebidapelosolhos(...).
9NossoacessocartadeEpicurosedeuapartirdocaptulodesenvolvidoporMarkusFigueiradaSilva, Pensamentoe imagemnacartaaHerdotodeEpicuro,naobraorganizadaporMarceloMarquesTeoriasdaimagemnaAntiguidade(SoPaulo2012)269285.
272
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
formaseas figurassocapazesdeentrarna linguagemcomosensaesecomopensamento,pois
[a]simagensnosafetam,aomesmotempoemquevoltamosnossaatenoparaosobjetosexteriores.Dessemodo,elasse impemcomorealidadesimulada (representada)epodeseconcluirquetantoassensaescomoopesamentosoefeitosdasafecesdossimulacros.Sendoplausvelpensarassensaescomoocontatoexternodocorpocomossimulacroseopensamentocomoocontatointernodaalmacomossimulacros que penetramnos corpos; ento, a formulao epicurista da percepovisualcontnuacomavisomental.Ovisveleoinvisvelcompletamsenarepresentaodascoisasdomundonaquelequeaspercebe.(SILVA2012)2734.
Ora,endossandoopressupostoepicurista,vamos,portanto,admitirque a visode imagens se estabelece comoum fenmeno que acabapormoldardeformasubjetiva,sensveleestticaalinguagem,quedessemodosefazpoesia.Emoutrostermos:asfigurasdepalavraeasfigurasdepensamentosomarcasdeumprocessodetransformaodapalavraemmatriaepoesia; so igualmenteumprocessode transformaoda abstrao emsomritmadoedoarquivoemregistroe,destarte,alinguagemganhaformaedesenhovariadosdepessoaparapessoa,depocaparapoca.Nesteraciocnio,quandopostulamos,advertimos:nosetratasomentedodesenhogrficocom letras,mas,sobretudo,de imagenspensadasematerializadasemumalinguagemquesefazsentiremconcretudeporqueprovocaramumdesviodaquiloquefosseoesperadoe,peloestranhamento,chamaramnossaateno, jque,pelasfigurasliterrias,nossoolhardirigidoparaorealado.
Entretanto,deixemososfilsofoserecorramosaalgumaspalavrasdopoeta portenho Jorge Luis Borges para refletir sobre o mesmo tema.Emumaconferncia intituladaPensamentoepoesiaeproferidanaUniversidadedeHarvard,oescritorafirma:
Descobrimos que as palavras no comearam abstratas, mas concretas acreditoque,nessecaso,concretassignifiquequaseomesmoque poticas. (...)Tomemos a palavra thunder [trovo] e olhemos em retrospecto para o deusThunor,oequivalentesaxodoThornrdico.Apalavraunorexprimiaotrovoeodeus; mas tivssemos perguntado aos homens que chegaram Inglaterra comHengistseapalavraexprimiaoestrondonocuouodeuscolrico,noachoqueseriam argutos o suficiente para compreender a diferena. Imagino que a palavracarregavaambosossentidossemsecomprometermuitoafundocomnenhumdeles.
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos273
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Imaginoque,quandoproferiamouescutavamapalavrathunder,aomesmotempoouviamograveestrondonocueviamoraioepensavamnodeus.Aspalavraseramenvoltasemmgica;notinhasignificadoestanque.(BORGES,2000)85
Borges, na ocasio, falava de concretude, de poesia, de simultaneidadenoverenoouvir,demagia,daausnciadesignificadosdeterminadose fixos.Namesma confernciaopoetadeclaraque, em algummomento,nalinguagem, apalavra light [luz] talvez,de fato,parecesse lampejar e apalavranight [noite]qui fosse escura e representasseaprprianoitesuaescurido,suasameaas,asestrelascintilantes.Eacrescenta:
Paraos judeus,pareciabvioquehaviaumpodernaspalavras(...)Eles leemno primeiro captulo da Tor: Deus disse: Que se faa a luz, e fezse a luz.Assim, lhesparecebvioquenapalavraluzhouvesseuma forasuficienteparafazercomquea luzbrilhassepor todoomundo,uma forasuficienteparaengendrar,parageraraluz.(BORGES2000)87
Portanto,anuentesaesseoutroaedo,ograndepoetacegodaAmricaLatina,afirmamosquetudosedcomoseaspalavrastivessemcomeado,emcertosentido,comomgica(BORGES2000)86emgicanodosestudosde fillogos, filsofosou acadmicos,masde espantosdoshomenscomuns camponeses,pescadores, caadores, cavaleiros, soldados, cozinheiros, todos eles alumbrados com omundo e as coisas domundo.Poresta hiptese percebese, intuitivamente que umas tantas palavras,seconsultada sua etimologia, nos levaro a metforas. Esse tipo depercepoparecesertovivelcomoasdiversasteoriasfilosficasdavisoe, felizmente, no perder a legitimidade porque demasiado caro aospoetas(eans,seusdiscpulos)quealcanam,navisualidadedeadjetivoscomo avoado, aluado, desmiolado, melfluo, aucaradoapotnciade formare modelarpoemas.DeixemosoartesodepalavrasdabelaBuenosAiresedirijamonosparaabeiradadorioCuiab,noMatoGrosso.Umcantovindodeldizassim:
Humciovegetalnavozdoartista.Elevaiterqueenvesgarseuidiomaaopontodealcanaromurmriodasguasnasfolhasdasrvores.Notermaisocondoderefletirsobreascoisas.Masterocondodeslas.Notermaisideias:terchuvas,tardes,ventos,
274
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
passarinhos...Nosrestosdecomidaondeasmoscasgovernameleacharsolido.Serarrancadodedentrodelepelaspalavrasatorqus.Sairentorpecidodehaverse.Sairentorpecidoeescuro.VersambixugaentorpecidagordapregadanabarrigadocavaloVaiomeninoefuradecaniveteasambixuga:Escorresangueescurodocavalo.Palavradeumartistatemqueescorrersubstantivoescurodele.
EstepoemaintegraolivroRetratodoartistaquandocoisa,deManoeldeBarros (1998) 17.O verso indica o percurso: o artista se apega ao objetocomoumasanguessugabarrigadeumcavalo.Mataseasanguessugaeescorredelaosanguedoanimal.Mataseapalavradopoetaeescorredelaomundo.Dessamaneiraospoetasatiramnoqueveemeacertamoquenoveem... Borges e Barros nos fizeram, por conseguinte, relativizar a teorizao dos perceptos e afectos. Concordamos em parte com Deleuze eGuattari. Como eles, entendemos que a coisa no dependemais de seucriadornemdoespectadoroudoauditorqueapercebe;conservandosenotempo, ela um bloco de sensaes, vale por simesma. Esse raciocniodesemboca na afirmativa: A obrade arte um ser de sensao, e nadamais:elaexisteemsi(...)[p]intamos,esculpimos,compomos,escrevemossensaes. (DELEUZE;GUATTARI1992)216.Masoque seconserva tambmo afecto,mesmo seomaterialproduzidodurasse somente segundos;afinal [o]material particular dos escritores so as palavras e a sintaxe,asintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra nasensao.(DELEUZE;GUATTARI1992)218.
Semembargo,emnossaopinio,aimagemcomea,necessariamente,noobjetoquefoiumdiaoqual,aindaquedemodotnue,mantmligaocomele,umpoucodele.Eacrescentamosqueoobjetotambmonomequesedeuaele.Mataseasanguessugaeescorredelaosanguedocavalo.Dapalavradeum artista escorre o substantivo escuroque eleprprio.Alguns poderiam refutar nossas palavras dizendo serem elas voos depoesia.Masnosoapenasospoetasquefalamdecoisastais.Ofilsofoe
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos275
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
antroplogo brasileiro Reinholdo Ullmann, apoiado em teorizaes deKittel e de Kernyi, na tentativa de compreender a palavra grega ,emborafaaumpercursoopostoquelepropostoporBorgeselepartedaetimologiaeda filologiaacabaporchegaraomaravilhamento.Arazode sua trajetria que a palavra inalcanvel pela etimologia;afilologia, por sua vez, embora oferea pistas mais consistentes, acabaigualmentedesembocandonahermenutica,quedesguanaexperinciadeencantamento.
Para Ullmann, era inicialmente um nome predicativo, umapalavra singulare invarivelquequalificava termoseerautilizada igualmente para exprimir manifestaes grandiosas da natureza e em exclamaesdeassombroqueseapresentavamvisoporocasiesdeepifaniasou fenmenos inesperados. Todas essas manifestaes seriam um porque revelariam algomaravilhoso de ver, eficaz,mgico, assombroso,terrvel,um;assim,[d]onascimentodeumanovavida,dabelezadajuventude,davirgemedojovembemcomodasabedoriadavelhicedizse porque denotam o (ULLMANN 1989) 139. E, ainda, segundoUllmann, podemos acrescentar que o termo em questo emHomero significa tanto o ser divino quanto os efeitos da ao divinanaquelequeav(ULLMANN1989)141.
Pois bem, o que procuramos afirmar com toda essa argumentaofundamentadaemfilsofos,tradutores,helenistasepoetasqueapalavradeletrasformadassmbolo,abstrao,mastambmcoisadesever,coisapalpvel,objeto insubstituvel,queocupaespaono textoe lugarnoespaoenquantosom,quesepodepegar (pensamosaquinaarteda tipografia,sejaelafsica,sejaeladigital)equesepropaganotempo.
EstamosnospropondotambmpensarsobreoqueBorgeschamadefalciadosdicionriosperfeitos,asaber,afalciadepensarqueparacadapercepodossentidos,paracadaassero,paracadaideiaabstratapodese encontrar um equivalente, um smbolo exato no dicionrio. (BORGES2000)86.Objetivamosmostrarqueasfigurasdapalavrasoforasestticasresponsveispeloencadeamentodahistria.
HansUlrichGumbrecht, em sua obra Produo de presena: o que osentidono consegue transmitir, traduzida epublicadanoBrasil, apresenta,
276
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
assimcomons,umaposturadeJano,asaber,mostrandosecomumafaceorientadaparao futuroeaoutraviradae comprometida comopassado.Gumbrecht se interessapela culturado corpo epelasdiferentesmaterialidades.Comsuasponderaes,eletocaemalgunsdenossospontosdeansiedadeemrelaoteorizaodosperceptoseafectos.Intrigadocomquestes como a proximidade fsica, a tangibilidade e o prazer da presena,ofilsofo alemo radicado nosEstadosUnidos apoiase nashiptesesdeJeanLucNancyemThebirthtopresenceeconfirmaapremissadocolegadeque [o] prazer da presena a frmula mstica por excelncia.(GUMBRECHT2010)82.Edenunciaumcertofastiopelodistanciamentodascoisasadvindoda sensaodequeperdemoso contato comas coisasdomundo (GUMBRECHT2010)73e82.Poderamosgastarhorasa fio tecendoargumentos e discutindo essas teorizaes e perderamos nosso escopo:osquadrinhoseosclssicos.Voltemosentoaumapossvelorigemdaliteraturaocidental.Novamosbanirospressupostos filosficos,masvamosnosapoiarsomenteemAristteles.Assim,vejamosumpouquinhomaisdefilosofia.OvelhoestagiritaafirmanoSobreaalma,427a20427b20:10
Os antigos diziam, igualmente, que pensar e percepcionar so omesmo. (...)Todos eles supuseram, assim, que o entendimento corpreo, tal como opercepcionar, e que o semelhante se percepciona e pensa pelo semelhante, comoexplicamosnasexposiesdoinciodesteestudo.Ora,evidentequepercepcionarepensarnosoomesmo:deumparticipam
todososanimais,enquantodooutroparticipampoucos.tambmno omesmo que entender (...). que a percepo dos sensveis prprios sempreverdadeira; mais, ela pertence a todos os animais. Discorrer, pelo contrrio, possvel falsamente,enopertenceanenhumanimalnoqualnoexistatambmraciocnioA imaginao,porseuturno,algodiferentedapercepoedopensamentodiscursivo.Elanosucede,defacto,semaperceposensorial,esemelano existe suposio. Que a imaginao no contudo a mesma coisa que [opensamento],nemquea suposio, isso evidente.que essaafecodependedens,dequandotemosvontade(possvel,pois,suporalgodiantedosolhos,comoosquearrumamemmnemnicas,criandoimagens).
Secomefeitoqualqueranimalcapazdeperceber,masnocapazdeentender,perguntamonos:haveremosdecompreenderqueaobrade
10CitaesfeitasapartirdatraduodeAnaMariaLio(Lisboa2010).
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos277
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
arteumserdesensaoenadamaisequeaelaspossvelenquantodureamatriaprovocarpormeiodeperceptose afectos forasestticaspara um devir? Por certo no alcanamos a argumentao deDeleuze eGuattarinem temosessapretenso;queremossomente relativizaraassertivacitadaanteriormentesegundoaqualfigurasestticas(eoestiloqueascria)nadatmavercomaretrica,poiselas[s]osensaes:perceptoseafectos,paisagenserostos,visesedevires.Problematizamosafrase;pelomenos, julgamos tlo feito.PodemosagoranavegarnosantigosmaresdaJniacomaimaginaodosgregosantigosescritanapoesiapica.
Defato,comAristteles,entendemosqueaimaginaonoamesmacoisaqueopensamento;estadependedens,dequandotemosvontadede supor algo diante dos nossos olhos, como os que arrumam as ideiascriando imagens para praticar amnemotcnica.A imaginao, diferentementedoperceberascoisas,pareceestarligadaaoentendimento.Logo,elaatodevontadequepermitecriar imagens,oquenos levaa tiraroutrasconcluses.IssoporqueoautordaPoticaprossegue:
a imaginaono a percepo sensorial, fica claro a partir do que se segue.Apercepo sensorial , com efeito, ou uma potncia ou uma actividade, como avisoeoactodever,quandoumaimagempodeaparecernossemquesucedaqualquerumdaqueles. o casodas coisasquenos aparecemnos sonhos.Almdisso,aperceposensorialestsemprepresente,eaimaginaono.11
Retomandoofiodameadadoincio,buscaremosevidenciaragrandeutilizaodasfigurasouimagenspelosgregos.VamostentarmostraroquehderecursovisualforjadopelalnguanalgunstrechosdaIlada,demodoa sugerir ummtodo pelo qual ela possa ser transladada guardandosesomentealgumasdas figurasutilizadasno texto.Impossvelseriaresgatartodasasmetforas,metonmias,smiles,hiprboles,antteses,frmulas,eptetos, antonomsias, tmeses..., isto , todos osmultivariados recursos dematerializaode imagensempregados;contudoconcretizamosa ideiadeouvir imagens, tcnicaantigaquemotivouosprimeiroscristosadecoraremsuas igrejascomcenasbblicas,emafrescosouvitrais,prescindindodaalfabetizao.
11Aristteles,Sobreaalma427b1520,428a510.
278
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Ahistrianarradaparaaviso,seguardaraformadaculturagregaqueanarrou,auxiliaragregose troianos, servirparaosentendidosdalnguagregaeparaosnoacadmicos,apreciadoresdogneroHQ.Comoinformamos,nossa trajetriaprocuroupreservaroestilo,omodode falardos heris, as imagens empregadaspelo narradormaisdo que o enredoestabelecido, o qual se concretizou por acrscimo. Visamos formapoticainauguraladvindadoencantamento.Maisespecificamente:formaquepoetasugoudascoisas.
Comosesabe,apartirdadcadade20e30dosculopassado,houveuma grande mudana nos estudos homricos com as pesquisas de umamericano emParis. Sobre estepersonagem,Haubold (2007) 27 afirma:Parrychallengedfamiliarnotionsofwhatconstitutesatext,howmeaningentersintotexts,andhowtextsrelatetoothertextsacrosstimeandspace.OcomentriodeHauboldfoinorteparaotrabalhodetransposiodaIladaparaaHQ;ns,sistematicamente,observamoscomoossignificadosentraramnotexto.Entretanto,precisoqueserecordequenossosestudosincidiram sobre as picas que existem na forma escrita conquanto tivessemsido,antes,textosformadospormuitosatosdecomposioerecomposioduranteaperformance.Tratamosa Iladacomopoesia tradicional,evitamospensarsobreelaapartirdacategoriailusriadeumachamadapicaoral,queno tivemosacesso.12E,paradeixar tudobemcombinado,debomtom esclarecer que entendemos poemas tradicionais como aqueles queusamdosrecursosderepetio,quemarcamaoralidadenaexpresso,quevisamfunoperformancee,principalmente,querevelamalgunspadrescognitivos especficos no obstante estejam complexa e sofisticadamenteelaborados.No entendemos tradicional,no textoqueaqui seapresenta,como referncia tradio literria europeia, que se preocupa com ammesis,aapropriaoemulaoeocnon.Nossointeressesegueovisdateoria literria, da traduo e da recepo da literatura antiga. Neste
12Cf.Haulbold(2007)2829:()Comparativestudiessometimesfocusonepics
that exist inwritten form (like the homeric poems themselves) but insist that theirlanguage is shaped bymany acts of composition and recomposition in performance.Inorder to avoid themisleading categoryof oral epic forpoems that are sometimeswrittendown,scholarsprefertodescribethemastraditional.
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos279
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
sentido,apicahomricatradicionalporqueelaseexpressaemumestilotradicional, a saber, um estilo feito de [f]ormulaic phrases such as (brilliant Odysseus) or (muchsufferingbrilliantOdysseus)serveasbuildingblocks(...)performinganactofliterarycreation.(HAULBOLD2007)32
Do processo utilizado na traduo de Homero em quadrinhos orecursohomricomaissimplesparasetraduzirforamasfrmulas,poisosquadrinhos so instrumentos adequados para imaginar e repetir asfrmulas de maneira idntica ou com modificaes, tais como se fazcorriqueiramente no jogo dos sete erros. Tomaremos inicialmente umafrmulabastanteconhecida: aauroradededosrosa (Il.1,476)quepodeaparecercomoaaurorademantoaafro(Il.8,1;19,1)ouaindacomoaauroraquecedolevantadededosderosa(Il.24,788)ecomtantasoutraspequenasalteraes.Afrmulafoimantidaassimemnossatraduo:
280
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
A repetiodessa frmula foium recurso relevante,posto que, em
palavrasdeMatthewClark:
Manystudentsofliterature,eventhosewhodonotreadGreek,knowthattheHomericepicsareveryrepetitive;theyknow,forexample,thatAgamemnonisKingofMen(,usedthirtyseventimesinthetwoepics)andthatAchilles isSwiftfooted (, thirty one times).Repetitionsofthiskindanounwithmodifiersarecommonandimportant,buttheyareonlypartofthestory.(CLARK2004)117118.
Deacordo,eisapenasumapartedahistria,masde capital importncia.Umexamedetidoecuidadosorevela,naIlada,repetiesdevriostipos;de lugarnoverso,de funo sinttica comnomesvariados, em sequncias idnticas e em contextos diferentes, tais como, por exemplo,ogestodeumguerreiroaocolocaraarmaduraouaorealizarumsacrifcioemsituaescompletamentedistintas.13fcilimaginarasfrmulas,isto,
13Cf.Clark,op.cit.118,noqualessasideiasestoassimformuladas:Closeexa
minationofthepoemsrevealsmanyrepetitionsofvariouskinds.Ifanindividualwordisrepeated,itmayalwaysornearlyalwaysoccurinthesameplaceintheline;thenamesof many characters or the words for common objects are repeatedly linked withparticularadjectivesormodifyingexpressions;wholelinesarerepeated;manypassages
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos281
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
as imagens congeladas commodificaes sutis. Podemos evocar aqui ovocbulo clich,que,despidoda conotaopejorativa, retomao sentidode chapametlica onde reproduzida por fototipia uma imagem destinadaimpresso;fottipo;matriz14ouplacademetalgravadaemrelevocom textos ou imagens para serem impressos por prensa tipogrfica.Umcarimbo,digamos,quetemavantagemadicionaldepodersofrerinversesemodificaesvariadas.
Nomodelodas frmulas, inserimos igualmente e constantemente aestratgiaqueosestudiososdeHomerodenominamcenastpicas,etapasde narrativa que se repetem e nas quais podemos reconhecer situaesrecorrentes ehabituaisdosheris: so elas as cenasdehospitalidade,doritualdeluto,davestiodoguerreiroparaocombateedecombatespropiamenteditos.Deixamosparao leitoravaliarautilidadedosquadrinhosparaarpidapercepodosrecursosdapoesiaoralgrega,aqui figuradosnosdesenhosdePieroBagnariol.
of several lines (such asmessages)may be repeatedword forword; and frequentlyrecurringsituations,suchasputtingonarmourorperformingasacrifice,aredescribedoverandoverinverysimilarlanguage.
14DicionrioCaldasAulete,verbetesclicheclich.
282
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Passemos agora para uma situao em que imagens e conceitos seentrelaam;oprocessoocorresobretudonascomparaesemevoluo,isto, nos smiles. Veremos que esta figura retrica tambm rapidamentevisualizada e compreendida por meio dos quadrinhos. O exemplo quemostraremosretiradodocanto21,noqualsepodecontemplarumoutrosmile homrico a partir do qual foram criadas as imagens para os qua
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos283
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
drinhosqueseseguiroaosversoscitados.AssimnoscontaHomero(Ilada,canto21,vv.1216):
,.
Talqual,sobafascadefogo,voejamgafanhotosfugidosprorioeofogaruardeporfiosolevantantesbitoeelespulamguaadentro,assimsobAquilesseencheuacorrentetroantedefundosredemunhosdeXanto,emmisturadecavalosemachos.
Estetrechomagnfico,compostodecincoversossomente,naIladaemQuadrinhos: uma traduo deHomero, ganhou pgina inteira carregada decoresedemiudezasnostraos.Optamosporcorrespondnciascomplexaspara provocar um reconhecimento imediato e espontneo da intrincadatessitura do smile. Em primeiro lugar,Aquiles, semideus, parcialmenteforadasmargensdoquadrinho,apareceenvolvidoporchamasobservandoafugadostroianosqueestoemgrandequantidadeesohomensmidosemposies semelhantes as que lembram gafanhotos.Algunsdeles j separecemagafanhotos.VoemdireoaoXanto.Segueseorostodoheri,naposiofrontal,interpelandooleitor.Eleaprpriachama.Noquadrotrssevapenasascoisastransformadas:fogoeinsetos.Noquadroquatrovoltamosaoplanodoreal,dopossvel,dohumano,domortal.
Nestecaso,a linguagem tornouse imagem,que,porsuavez,se faznomovimentoe calor (coresquentes, traos leves).Homero foi traduzidoesteticamente(porformasecores).Anfasefoicolocadanamultiplicidadedefiguras,nadimensodosenvolvidos(grandezadeAquiles,miudezadostroianos), nas cores recuperadas da cermica arcaica (excetuando o rio).Etudo issosimplesmenteosubstratoculturalepoticodo recursoutilizadonopoema.Acrescentamos,paraprovocarestranhamento lingustico,algumasinterjeiesgregas.15
15HipteseemetadateoriadospolissistemasdeEvenZohar(1979)291.
284
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
OprocessodefabricarsmilesvisuaisfoirecorrentenatraduoHq,
visto que esta figura tambm recorrente nos poemas homricos. Entretanto,hnapoesiadoaedoantigofigurasaindamaiscuriosasepontuais.oquepensamosdousodaprosopopeia,aartedapersonificao,atcnicadedaraosseresinanimadosvidahumanaouanimalquesevabaixo.
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos285
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Prontamente, ao desenhar diante de nossos olhos expresses como
lanafamintadecarneeoutrastantasconstrues,Homerofaladecoisasinanimadas como se fossem cheias de vida. Aristteles, no sec. IV a.C.,jhavia notado (Retrica 1411b1412a) essa caracterstica.Quando declaraqueHomerocapazdeprdiantedosolhosascoisas,omestredeEstagira est se referindo forma frequentedeHomeroutilizardemetforaspararepresentaraes.Ofilsofosustenta:
[t]ambmHomeroutilizoumuitas vezes, pormeio demetforas, o inanimadocomoanimado.Masemtodaselasoquemaisreputadoasquerepresentamumaaco, comonos seguintes casos:denovopara aplancie rolava,despudorada, apedraea flechavooue [...]apontadaarmapenetrouansiosa,nopeito.Emtodosestesexemplos,porseatribuiranimao,representamsecoisasemacto:serdespudoradaeseransiosa,entreoutrosexemplosexprimeaco.16
Mas tudo isso sem longas explicaes pode ser visualizado,numtimo,pelabandadesenhada.Oqueexigeesforodetraduoetangenciaoperigodeestranhamentoeobscurecimentodocontedo,pelodesenho se desfaz. Pormais bem cuidadas que sejam, as tradues interlinguaisnoabarcamopoderdevisualizaoconstitutivodo textogrego,quenosofereceessepresentemediantesuasintaxedecasos,seusistemadeproduodepalavras,aspectosverbaisetc.ArepresentaoeatraduodeHomeroparaa linguagemdosquadrinhospermitiriamaosestudantesdegregovisualizarmelhorousoderecursospoticosutilizadosemumadasmais sofisticadasproduesda literaturauniversal;paraaquelesqueno
16AristtelesemtraduodeManuelAlexandreJnior,PauloFarmhouseAlberto
eAbeldoNascimentoPena.
286
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
sabemgregonempretendem sablo,poroutro lado,ahistriavisualdocombatedeAquilespropeduticaparaumentendimentomuitoprximodo texto grego e funcionaria como um suplemento traduo do textohomrico; sem ter lido grego, compreenderseia a estratgia potica deHomero. Para os no leitores do idioma antigo, teremos uma narrativafluidaeprazerosadascenas,comintuitomistagogo,poisassimelesestaropreparadosparadescobrirabelezaretricadaliteraturaclssica.
Diversostratadosmodernosderetricaabordamasfigurasdelinguagemcomumcomponentemeramenteestilstico;nsacreditamosqueousodaretricamanifestaaintenodedarmovimento,materialidadeevisualidade narrativa.Aomesmo tempo, a imagem que nos faz conhecer eidentificarumdeterminadorecursolingustico.Comefeito,todosnsutilizamoslitotesesindoqueseanforaseanacolutossvezessemosaber,deformanatural, intentando fazeroouvinte veranossaopinio.E, sepodemosdizerqueosditadoseadgiossoalinguagemfossilizada,moedasde troca do discurso, tambm as figuras so prprias do discurso oral,porquecomunicammaisemrazodesuaintensidadeimagtica.
Mrcio SeligmannSilva (2002, p. 96), ocupandose da histria dateoria da memria, afirma que [o] princpio central da mnemotcnicaantiga consiste namemorizaode fatos atravsde sua reduo a certasimagens que deveriam permitir a posterior traduo em palavras: arealidade (res) e o discurso final (verba) deveriam sermediatizados pelasimagens (os imagines agens). Voltamos ao nosso ponto de partida: umacriana,antesdefalareseexpressar,veouve!
Ascrticasferozesatribudasaousoretricodasfigurasdelinguagem,incluindoasupostaimpossibilidadedesistematizaoparaaprendizagem,oriscodeesfriamentodotextopeloexcessodetecnicismoeinstrumentalismo,oartificialismo,todasseapagamquandovemosasfigurassupriremausncias que sedonas boas tradues, as quaisminimizam a contemplaodacena,entendendoocontedocomolucro.Aoproporosclssicosemquadrinhos,agimosemfavorecimentodaquelesquevisualizamaqualidadeestticadapoesiadopassado.Recursoscomplicadoscomooquiasmoso imediatamentecompreendidospelo leitoraocontemplaroquadrododolodeZeus:
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos287
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Eassim,eparafinalizar,semmaispalavras,apenascomquadrinhos,
podemosenumeraralgumasdasimagensretricasutilizadaspelorapsodoantigotaiscomoseconcretizaramnotextoemostrlasaoleitor:
Analepse
288
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Hiprbole
Metonmia
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos289
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Finalmenterestadeclararquenossametafoiencherosolhosdoleitorcomimagenshomricaseterminamosnossorelatoreafirmandoque,decididamente,Homero(dignodesever)!Aollo,queoleitorserecorde do que disse Herdoto: !17E,seassim,queseregozigemnossosolhos.
Referncias:MaureenAlden,Homer BesideHimself: ParaNarratives in the Iliad (Oxford
2005).Aristteles.Retrica, traduo enotasdeManuelAlexandre Jnior,Paulo
FarmhouseAlbertoeAbeldoNascimentoPena(Lisboa1998).__________.Sobreaalma.TraduodeAnaMariaLio.(Lisboa2010).TerezaVirgniaRibeiroBarbosa,AndreiaGuerini,Pescandoimagenscomredetextual:Hqcomotraduo(BeloHorizonte2012).
ManueldeBarros,RetratodoArtistaquandocoisa(SoPaulo1998).Walter Benjamin, A tarefa do tradutor em traduo de Joo Barrento.
OrganizaodeLciaCasteloBranco.WalterBenjamin: quatro traduesparaoportugus.(BeloHorizonte2008)8298.
JorgeLuisBorges, Pensamento ePoesia:__________.Esse ofcio doverso,traduodeJosMarcosMacedo(SoPaulo2000)82101.
JacynthoLinsBrando, Relaesassimtricas: imagense textosnaGrciaAntiga:MarceloMarques (org.)Teorias da imagem naAntiguidade (SoPaulo2012)3157.
HaroldodeCampos,TranscriarHomero:desafioeprograma.Osnomeseosnavios II:Homero, Ilada.Org. introd.enotasdeTrajanoVieira (RiodeJaneiro1999)111155.
____________ Para transcriar a Iliada:Homero., a ira de Aquiles:canto Ida IliadadeHomero.TraducodeHaroldodeCamposeTrajanoVieira(SoPaulo1994)1128.
____________.Aartenohorizontedoprovvel.(SoPaulo1977).PauloFreire,Aimportnciadoatodeler:emtrsartigosquesecompletam.(So
Paulo1982).
17Com efeito, toda gente acha os ouvidosmenos fiis que os olhos.Traduo
nossaparaHerdoto,1.8.3.
290
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
Gilles Deleuze e Flix Guattari, O que filosofia?, traduo Bento PradoJnioreAlbertoAlonsoMuoz(RiodeJaneiro1992)211256.
GerardGenette,FiguresI(Paris1966).CsarGuimares, Oqueuma imagemem literatura?:_______. Imagensdamemria:entreolegveleovisvel.(BeloHorizonte1997)6082.
HansUlrichGumbrecht.Produo dePresena: o que o sentidono conseguetransmitir,traduodeAnaIsabelSoares.(RiodeJaneiro2010).
JohannesHaulbold, HomerafterParry: tradition,receptionand the timelesstext:BarbaraGraziosi,EmilyGrenwood,HomerintheTwentiethCenturyBetweenWorldLiteratureandtheWesternCanon(Oxford2007)2746.
Herodotus. Histories. English translation by A. D. Godley. (Cambridge1920).
Homero,Homeriopera.Vols.IeII,DavidB.MonroeThomasW.Allen(ed.)(Oxford1988).
________.Ilada,traduodeCarlosAlbertoNunes(RiodeJaneiro2003).________.Ilada,traduodeFredericoLoureno(Lisboa2005).________.Ilada,traduodeHaroldodeCampos,introduoeorganizao
deTrajanoViera,2v.(SoPaulo2003).________.Ilada,traduodeOdoricoMendes(RiodeJaniero/SoPaulo/
PortoAlegre1950).IreneJ.F.deJong.NarratologyandOralPoetry:TheCaseofHomer.PoeticsToday,Vol.12,No.3(Autumn,1991)405423
HeinrichLausberg,Elementosderetrica literria,traduodeR.M.RosadoFernandes(Lisboa1993).
Carlos JosMartins, Dana, corpo e desenho: arte como sensao: ProPosies,Campinas,v.21,n.2 (2010)101120,http://www.scielo.br/pdf/pp/v21n2/v21n2a08.pdf
MrcioSeligmannSilva,Aescrituradamemria:mostrarpalavrasenarrarimagens:TerceiraMargem,VI,n7(2002)93107.
MarkusFigueiradaSilva, Pensamentoe imagemnacartaaHerdotodeEpicuro:MarceloMarques (org.)Teoriasda imagemnaAntiguidade (SoPaulo2012)269285.
ReinholdoUllmann,Osignificadodethesemgrego:Classica,v.2(1989)135152.Maria Helena da Rocha Pereira, Frmulas e eptetos na linguagem
homrica:Alfa,211(1984)19.___________.EstudosdeHistriadaCulturaClssica.vol.1(Lisboa2003).
AIladaemquadrinhos:porumadifusodosclssicos291
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
ItamarEvenZohar,Polysystem theory.PoeticsToday,vol.1:12(1979)287310.
Paul Zumthor, Introduo literatura oral. Traduo Jerusa Pires Ferreira(SoPaulo1997).
292
TerezaVirgniaRibeiroBarbosa
gora.EstudosClssicosemDebate15(2013)
*********
Resumo: Relatamos os resultados de um projeto desenvolvido para a traduo daIladana linguagemdaartesequencial,HistriaemQuadrinhos (HQ)ouBandaDesenhada (BD),comvistasaresgatara fora imagticapresentenessaepopeiaatribudaaHomero. Privilegiouse, na empreitada, no o contedo narrativo,mas o estilo e osrecursosretricosutilizadosnotextogrego.AabordagemumcontrapontoaalgumasadaptaescomerciaisdeHomeroque focamareescritadocontedoeenredodahistria.BuscouseassociarosQuadrinhoseaRetricaAntiganoprocessonarrativo,oqueabriucaminhoparaoestudodavisualidadequenosoferecemasfigurasdelinguagem.
Palavraschave:imagem;figuras;literatura;retrica.
Resumen:Exponemos losresultadosdeunproyectodesarrolladopara latraduccindelaIladaallenguajedelartesecuencial,HistoriaenVietasoCmic,conelobjetivoderescatar lafuerzade la imaginerapresenteenestaepopeyaatribuidaaHomero.En laempresasehadadopreferencianoalcontenidonarrativosinoalestiloyalosrecursosretricosusadoseneltextogriego.EsteacercamientosuponeuncontrapuntoaalgunasadaptacionescomercialesdeHomeroquesecentranenlareescrituradelcontenidoylatramadelahistoria.SehabuscadoasociarlaVietasalaRetricaAntiguaenelprocesonarrativo, loquedejpaso librealestudiode lavisibilidadquenosofrecen lasfigurasdellenguaje.
Palabrasclave:imagen;figuras;literatura;retrica.
Rsum:Nous analysons les rsultats dun projet dvelopp pour la traduction delIliadedans le langagede lartsquentiel, laBandeDessine (BD),dans lintentiondercuprer la force imagtique de lpope dHomre. Lors de la ralisation de notretche, nous navons pas valoris le contenu narratif,mais le style et les ressourcesrhtoriques utiliss dans le texte grec. Labordage sert de contrepoint certainesadaptationscommercialesdHomre,quisecentrentsur larcritureducontenuetdelintriguedelhistoire.NousavonscherchassocierlaBandeDessineetlaRhtoriqueAnciennedansleprocessusnarratif,cequiapermisdouvrirlechampdtudeportantsurlavisualitquenousoffrentlesfiguresdulangage.
Motscl:image;figures;littrature;rhtorique.