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THÁREA RAIZZA HERNANDES HOMENS E DEUSES NA ILÍADA: AÇÃO E RESPONSABILIDADE NO MUNDO HOMÉRICO ARARAQUARA SP 2011

THÁREA RAIZZA HERNANDES HOMENS E DEUSES NA ILÍADA · Hernandes, Thárea Raizza Homens e deuses na Ilíada: ação e responsabilidade no mundo homérico / Thárea Raizza Hernandes

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  • THREA RAIZZA HERNANDES

    HOMENS E DEUSES NA ILADA:

    AO E RESPONSABILIDADE NO MUNDO HOMRICO

    ARARAQUARA SP

    2011

  • THREA RAIZZA HERNANDES

    Homens e deuses na Ilada:

    ao e responsabilidade no mundo homrico

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Estudos Literrios, da Faculdade de Cincias e Letras -

    UNESP/Araraquara, como requisito para obteno do ttulo

    de Mestre em Letras.

    Linha de Pesquisa: Histria Literria e Crtica

    Orientador: Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos

    ARARAQUARA - SP

    2011

  • Hernandes, Threa Raizza

    Homens e deuses na Ilada: ao e responsabilidade no mundo

    homrico / Threa Raizza Hernandes. 2011

    116 f. ; 30 cm

    Dissertao (Mestrado em Estudos Literrios) Universidade

    Estadual Paulista, Faculdade de Cincias e Letras, Campus de

    Araraquara

    Orientador: Fernando Brando dos Santos

    l. Literatura grega. 2. Homero. 3. Ilada. I. Ttulo.

  • THREA RAIZZA HERNANDES

    Homens e deuses na Ilada:

    ao e responsabilidade no mundo homrico

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Estudos Literrios, da Faculdade de Cincias e Letras -

    UNESP/Araraquara, como requisito para obteno do ttulo de

    Mestre em Letras.

    Linha de Pesquisa: Histria Literria e Crtica

    Orientador: Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos

    Data da qualificao: 13/ 05 / 2011

    MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

    Presidente e Orientador: Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho

    Membro Titular: Prof. Dra. Anise de Abreu Gonalves D' Orange Ferreira

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho

    Membro Titular: Prof. Dra. Marisa Giannecchini Gonalves de Souza

    UNAERP Universidade de Ribeiro Preto

    Local: Universidade Estadual Paulista

    Faculdade de Cincias e Letras

    UNESP Campus de Araraquara

  • A minha me, aos meus amigos e professores.

    Aos meus padrinhos.

    Ao meu eterno namorado pois, a morte

    maior que a vida, mas o nosso amor maior

    que os dois.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos amigos pela fora e companheirismo ao longo de um rduo perodo.

    queles que sempre acreditaram que eu seria capaz de atingir meus objetivos.

    Aos professores que, com boa vontade, colaboraram para a concretizao deste trabalho.

    Ao Prof. Dr. Fernando Brando dos Santos pelas sugestes, sem as quais este trabalho

    seria impossvel.

    A Walter Fonseca Junior pelo amor, compreenso e pacincia ao longo dos anos e ajuda

    com a lngua alem para esse trabalho.

  • Como lees carnvoros se lanaram os

    troianos

    contra as naus , cumprindo as ordens de Zeus

    []

    Intentando estas coisas, incitou nas cncavas

    naus

    Heitor Priamida, ele que de si estava j muito

    incitado. (Il. XV,592-604)

  • RESUMO

    Este trabalho analisa a relao entre o humano e o divino no mbito das aes realizadas pelos

    homens e a responsabilidade que eles teriam ou no sobre elas, na Ilada. Para tanto, verifica a

    concepo de homem em Homero, buscando mostrar o homem como unidade capaz de realizar

    aes e analisa a concepo divina associada s ideias de vontade de Zeus e de Destino, que

    afetariam a noo de responsabilidade na ao humana. Portanto, desejamos mostrar que as

    decises prprias do homem no alteram o curso dos acontecimentos, uma vez que, na Ilada,

    deparamos com a mentalidade mtica na qual divindade e homem se completam atravs de

    oposies.

    Palavras-chave: homens; deuses; destino; ao; responsabilidade; Ilada; Homero.

  • ABSTRACT

    This study analyzes the relationship between the human and the divine in the context of the actions

    carried out by men, and the responsibility that they would have on them or not, in the Iliad. To do

    so, it verifies the conception of man in Homer, trying to show the man as a unit capable of

    performing actions and analyzes the divine conception associated with the ideas of will of Zeus and

    Destiny, which would affect the notion of responsibility in the human action. Therefore, we wish to

    show that the man's own decisions do not change the sequences of events, once, in the Iliad, we

    faced with the mythical mentality in which divinity and man complete each other through

    opposition.

    Keywords: men; gods; Destiny; action; responsibility; Iliad ; Homer.

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................. 11

    1 A CONCEPO DO HOMEM DE HOMERO ....................................................... 20

    2 RELAO ENTRE HOMENS E DEUSES: CAPACIDADE DE AO DE ZEUS E DAS

    PARTES ............................................................................................................................. 40

    3 O HERI DE HOMERO E O IDEAL GUERREIRO ........................................... 73

    4 AO E RESPONSABIIDADE NA ILADA .......................................................... 93

    CONCLUSO ................................................................................................................... 111

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 114

  • 11

    INTRODUO

    A poesia pica, que tem suas imagens extradas do mundo do poeta, era centrada no

    passado heroico e mostrava as emoes e qualidades dos heris. A partir da guerra, Homero

    trabalha, na Ilada, o enigma da condio humana, no qual encontramos as aes dos heris,

    que seguem o ideal guerreiro diante da morte, destino comum aos mortais. Essa morte, por

    sua vez, est ligada vontade de Zeus de eliminar todos os heris, uma vez que os homens

    mortais no deveriam ter contato com as divindades.

    Dessa forma, vemos que o poeta, considerando os temas da honra e da morte

    presentes na trama da Ilada, mistura as aes dos deuses com a dos homens de forma que

    temos a presena das musas, fala divina capaz de retomar pela memria as faanhas dos

    heris do passado; a clera de Aquiles; o encadeamento de mortes e a vontade de Zeus. A

    morte aparece como fado dos mortais, sobre o qual os deuses no possuem poder algum,

    podendo colaborar para efetivao e aceitar o cumprimento de uma ordem maior.

    No mbito da morte, outros elementos aparecem no poema como as prticas

    funerrias, a crena na existncia ps-morte e a concepo do mundo dos mortos que

    associada aos aspectos da vida trazem a ideia de mortalidade e imortalidade. Isso nos leva

    oposio entre a condio humana e a divina estabelecida por efemeridade e permanncia,

    impotncia e potncia, infelicidade e felicidade, espao e alimentao. Todavia, devemos

    atentar para o fato de que em Homero o humano e o divino no devem ser compreendidos

    separadamente, mas como formas complementares, para assim entender qual a concepo dos

    deuses para o homem retratado pelo poeta e de como ela era relacionada condio humana.

    Antes disso ainda, devemos analisar a concepo que esse homem tinha de si mesmo e de

    como isso afetava sua ao.

    O corpo humano () no seria o mesmo que 'corpo', como encontramos em

    Plato ou textos modernos, mas significaria cadver, em Homero. Assim tambm a

    seria um duplo do homem como um todo e no uma parte dele como , o e ,

    palavras usadas para designar a sede da emoo, conscincia e pensamentos. Para

    entendermos esse termos na concepo do homem e de como eles afetam a noo do agir

    humano e sua consequente responsabilidade ou no utilizaremos como base terica o livro A

    descoberta do esprito de Bruno Snell (2003) e The origins of European thought de Onians

    (1954).

  • 12

    No decorrer do trabalho, buscando compreender a relao do homem com o divino e

    a concepo desse associada s ideias de vontade de Zeus e de Destino, que afetariam a noo

    de responsabilidade na ao humana, nos basearemos em Nature and culture in the Iliad: the

    tragedy of Hector de Redfield (1975), O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mtico

    do ser no mundo de Jaa Torrano (1987) bem como Dictionnaire tymologique de la langue

    grecque de Chantraine (1968/1980) e os dicionrios Dictionnaire Grec-Franais Anatole

    Bailly (1950) e A Greek-English Lexion Lidell-Scott (1940) nos quais todos o termos do

    trabalho e seus significados foram pesquisados. Seguindo para o captulo final, no qual

    relacionaremos o que vimos at ento com as aes dos heris na Ilada, analisando-as para

    ver at que ponto elas se dariam como prprias ou como motivadas pela divindade, ou seja, se

    trariam ou no a esse homem retratado responsabilidade sobre a ao, utilizaremos Gttliche

    und menschliche Motivation im homerischen Epos, Lesky (1961) e A selvagem perdio: erro

    e runa na Ilada, de Andr Malta (2006).

    Em seu trabalho, Snell (2003) aborda a conscincia do homem retratado por Homero,

    o conceito de pessoa individualizada e de alma, baseado na lexicografia, e o surgimento de

    um eu interiorizado. Atravs disso, ele buscou uma histria do esprito na Grcia, que

    questionado por Cunha Corra (1998). Para ela, uma parte do equvoco cometido deve-se ao

    fato de existir em Homero palavras que foram descartadas por Snell, alm do uso do mtodo

    lexicogrfico que baseado no conceito de falta de palavra, ausncia de conceito, pois como

    os poetas faziam um recorte na linguagem no podemos afirmar que o que inexistente em

    Homero seria no vocabulrio corrente.

    Vale ressaltar que Snell busca fundamentos em dados arqueolgicos onde compara

    representaes do corpo humano em cermicas com as feitas por 'nossas crianas', que

    representam o corpo com uma parte central, enquanto os primeiros mostrariam a mobilidade

    do corpo, sem um centro como parte principal, com msculos fortes e bem definidos, unidos

    por juntas. A partir de sua pesquisa, Snell concluiu que se o homem retratado por Homero no

    apresentava uma unidade fsica de corpo, tambm no teria unidade de esprito, ou seja, seria

    desprovido de subjetivismo interior.

    Dessa forma, o homem de Homero caracterizado como incapaz de abstrao, bem

    como, sem conscincia de sua unidade fsica e espiritual no apresentaria tenses no esprito,

    deliberao, emoes parciais ou capacidade de reunir foras a partir de si mesmo como

    processo psicolgico -, j que o aumento de foras seria o resultado de intervenes externas,

    principalmente, divinas. (SNELL, 2003, p.42-44). Essas intervenes se tornam importantes

    mesmo em cenas nas quais o heri reflete, pois de acordo com Snell (2003), esse

  • 13

    desconheceria a verdadeira deciso prpria.

    Lesky (1961), ao refletir sobre o estudo de Snell, nos coloca que s poderamos

    atribuir responsabilidade ao homem de Homero se a qualidade do pessoal lhe fosse dada, no

    aparecendo, exclusivamente, como objeto da interveno divina, mas como pessoa. Segundo

    ele, o homem retratado por Homero no seria tomado como uma soma de corpo e alma, mas

    como um todo que, apesar de sofrer intervenes divinas, seria capaz de tomar uma deciso

    prpria.

    Assim, em Homero, mesmo havendo a interveno divina, pura e simples, a ao dos

    heris pode ser de dupla motivao, ou seja, uma motivao humana acompanhada da

    influncia divina, uma vez que o relacionamento das causas da ao no precisa ser,

    necessariamente, de mtua excluso. Alm disso, para Lesky, h tambm uma motivao

    exclusivamente humana sobre a qual Cunha Corra (1998), baseada em Dodds e Lesky,

    afirma que o heri homrico capaz de tomar deciso, evidente, havendo at uma frmula

    para express-la; a existncia de uma noo de responsabilidade evidencia-se pela

    necessidade que sente de reparar seu erro. (CUNHA CORRA, 1998, p.44).

    Vernant tambm se dedicou ao estudo da ao e responsabilidade humana e como

    vimos, assim como Snell, no acredita na existncia de delimitao entre ser humano e

    natureza, em Homero. Assim, o heri homrico, no apresentando a dimenso interior, no

    poderia ser dado como responsvel por suas aes, as quais teriam origem e resultado fora

    dele e seriam apenas consideradas exemplares e estereotipadas.

    Devemos atentar para o fato de que Vernant (2008), ao tratar das questes de

    responsabilidade sobre a ao, nos fala sobre a constituio da pessoa e da vontade que a

    pessoa vista em seu aspecto de agente, o eu visto como fonte de atos pelos quais ele no

    somente responsvel diante de outrem, mas tambm aos quais se sente preso interiormente.

    (VERNANT, 2008, p.25). Essa vontade se manifesta no ato da deciso e assim, a partir do

    momento em que um sujeito se decide por uma opinio ele se constitui como agente

    autnomo e responsvel. Portanto, considerando o pensamento grego antigo no qual o

    agente no seria individualizado, sendo fonte e centro da ao, no haveria ao responsvel.

    Vernant nos diz que squilo coloca seus heris no limiar da ao, diante da

    necessidade de agir (2008, p.27), em oposio a Homero e aos lricos. O heri, na tragdia,

    diante de duas opes e aps um debate interior, toma uma deciso, que segundo Snell (2003)

    seria livre e pessoal e faria com que o heri enfrentasse suas responsabilidades. Vernant

    (2008, p.27) critica esse pensamento de Snell uma vez que o papel das foras divinas

    subestimado, pois segundo o estudioso francs, as potncias estariam presentes no exterior e

  • 14

    no interior dos sujeitos, intervindo na deciso e coagindo escolha.

    Dessa maneira, na tragdia, a deciso tomada pelo agente no seria livre, mas

    engendrada por uma imposta pelos deuses, a necessidade (2008, p.27) e a

    deliberao do heri apenas verificaria a nica alternativa que se abre para ele, motivando-o a

    uma opo. Isso mostra no a livre escolha do sujeito, mas o reconhecimento dessa

    necessidade de ordem religiosa da qual a personagem no pode subtrair-se e que faz dela um

    ser forado interiormente (2008, p.28), o que no impede o sujeito assumir sua

    responsabilidade.

    Outros estudiosos, segundo Vernant, mesmo reconhecendo o papel importante das

    divindades na ao do heri trgico, mantm a autonomia do sujeito, dando espao para a

    motivao livre na deciso. Lesky retomado com sua teoria da dupla motivao, sabendo

    que, na epopeia, a ao pode admitir duas explicaes efeito de inspirao divina ou

    propriamente humana, estando os dois nveis quase sempre ligados.

    Assim, em squilo, o heri estaria em confronto com uma necessidade superior

    imposta, que o dirige, mas que por ele apropriada tornando-se sua ao ponto de querer o

    que levado a fazer - conferindo uma margem de livre escolha. Entretanto, esse agir na

    tragdia, apresentado por Vernant, do heri deliberar consigo mesmo e tambm contar como o

    desconhecido, no parece ser to diferente de casos de deliberao e ao de heris na pica -

    os quais foram discutidos por Lesky (1961) como Il. XI,402 ss. e que sero apresentados mais

    frente. O que no haveria na pica, de acordo com Cunha Corra (1998) seria o debate sobre

    as categorias de culpabilidade, das noes de inteno e responsabilidade (p.45), colocadas

    em cena pela tragdia.

    Segundo Vernant (2008, p.29) as formas da vontade entre os gregos seria baseada em

    uma deciso sem escolhas e responsabilidade, que independe das intenes, pois de acordo

    com A. Rivier o termo vontade usado para mostrar que o heri esquiliano no passivo,

    mesmo sendo privado de escolha, j que a dependncia em relao ao divino no submete o

    homem [] no inibe a vontade do homem [], pois que, ao contrrio, desenvolve sua

    energia moral, aprofunda seus recursos de ao [...] (RIVIER apud VERNANT, 2008, p.29).

    Toda a questo para Vernant procurar saber como os gregos entendiam a escolha e

    sua ausncia, e a responsabilidade com ou sem inteno, pois as nossas noes de vontade,

    livre escolha, responsabilidade e inteno no podem ser aplicadas diretamente mentalidade

    dos gregos em que apresentam valores diferentes.

    Dessa forma, em sua busca por definio de vontade, escolha e deciso, entre os

  • 15

    gregos, Vernant (2008) investigou, em Aristteles (tica Nicmaco, Paris: Louvain, 1959)

    os significados dos termos: , , , , , ,

    . A partir disso, conclui que a noo de vontade, se houvesse, estaria presa ao

    divino que a inspira, pois para ele essa noo estaria ligada existncia de atos humanos, que

    formariam uma conduta unificada; noo de indivduo como agente, de mrito e culpa

    pessoal; responsabilidade subjetiva e anlise de intenes e realizao de atos.

    A ao voluntria (), de acordo com Aristteles (E N), teria origem no

    prprio agente que conhece as circunstncias nas quais a realiza, enquanto que a ao

    involuntria () ocorreria pela ignorncia ou coero. Entre as aes voluntrias

    temos as passionais que so causadas pelo impulso () ou pelo desejo (),

    admitindo-se assim que crianas ou animais possam agir voluntariamente. Assim, para

    Aristteles, as aes originadas em ns so voluntrias, uma vez que se o homem o autor de

    seus atos e nele mesmo que devemos buscar as origens da ao.

    Entretanto, ao no reconhecer os conceitos de e geralmente traduzidos,

    desde Homero, como 'de bom grado' e 'constrangido' - como pertencentes categoria de

    vontade, Vernant (2008, p.30-31), ao contrrio de Aristteles, acredita que se algum age

    no apresenta uma ao intencional ou que seja realizada aps reflexo e deciso pois, mesmo

    que seja uma ao voluntria, ela surge do ou . A , que a ao

    sob forma de deciso, privilgio exclusivo do homem, enquanto ser dotado de razo

    tambm voluntria, mas privada s crianas e aos animais, pois, apesar de realizarem aes

    voluntrias, essas no so de (2008, p.30).

    Essa se apoia num desejo que racional, uma aspirao (),

    que com inteligncia busca o objeto prtico j apresentado alma pelo pensamento; alm

    disso, tem como antecedente um processo de deliberao () e por objeto tudo o que

    pode ser realizado pelo sujeito. A deliberao, por sua vez, pertence o intelecto prtico e diz

    respeito no ao fim (objeto de desejo), mas aos meios, que seriam nada menos que o objeto de

    deliberao e deciso, cabendo a ela avaliar as aes realizveis, ou seja, o que pode ser

    obtido atravs da agncia do sujeito. Assim, o objeto da seria algo que desejado

  • 16

    aps deliberao, o desejo de algo em nosso poder primeiro h a deliberao, depois a

    escolha e o desejo de acordo com ela, segundo Aristteles.

    Por outro lado, a , a aspirao penetrada de razo (2008, p.32), tem

    qualquer objeto e uma orientao para o fim da ao - o que move a alma para o bem e a faz

    pertencer ordem do desejo. A questo para Vernant (2008, p.32) est no fato de que essa

    funo desejante passiva, a aspirao orienta a alma para um fim racional, mas um fim

    que lhe imposto e que ela, a aspirao, no escolheu.

    Contudo, Cunha Corra (1998, p.47) diz que a deve querer e no escolher

    o que se quer o que parece ser bom e isso escolhido pelo homem -, e de acordo com

    Aristteles, o homem bom aspira ao bem, pois julga o que bom, do contrrio pode escolher

    errado devido a um julgamento equivocado.

    Segundo Vernant (2008, p.31), alguns estudiosos reconhecem na um

    livre poder de escolha de que disporia o sujeito em sua deciso, outros atribuem esse poder

    razo, que determinaria os fins da ao. Outros ainda identificam-na como um verdadeiro

    querer, uma capacidade de determinar-se, que permanece acima dos apetites, dirigidos ao

    prazer na e para o bem na . Todavia, baseando-se em Gauthier-Jolif,

    Vernant diz que essas consideraes no se sustentam, pois, seguindo Aristteles (E N

    113a17-20), a no seria independente das nicas faculdades que agem na ao

    moral: a parte desejante da alma ( ) e o intelecto ().

    Assim, para uma boa escolha ser feita seria necessrio um desejo e um princpio

    verdadeiro que se encontram diante de coisas boas e ms o que escolhido se deve ao fato

    de parecer bom e ser avaliado pela opinio do sujeito. No entanto, para Vernant a opo da

    no se d entre o bem e o mal, entre os quais teria livre poder de escolha. (2008,

    p.32), uma vez que, fixado um fim, a deliberao seria formada por julgamentos atravs dos

    quais a razo busca os meios prticos que levam a esse fim. Ao final da deliberao, o ltimo

    julgamento apresenta um meio no apenas como possvel, mas como imediatamento

    realizvel (2008, p.32).

    Dessa forma, em Aristteles, as formas de vontade e escolha, para Vernant, seriam

    necessrias e no livres, embora no seja uma necessidade externa e imposta ao agente, por

    uma divindade ou por outro, mas humana e interna. O livre poder de deciso ainda seria

  • 17

    estranho ao pensamento grego antigo, no aparecendo nas questes sobre ao responsvel,

    quer seja escolha deliberada ou ato de bom grado.

    Vernant (2008) no acredita que o agente possa ser um centro de deciso, ou seja,

    uma fonte de seus atos. Para ele, a aspirao e a deliberao implicam um impulso da alma

    em direo ao seu objeto (p.39), mas esse ltimo no seria a causalidade da ao do sujeito,

    pois

    O que pe o sujeito em movimento sempre um fim que orienta, como que

    do exterior, a sua conduta: seja o objeto para o qual tende espontaneamente

    seu desejo, seja o que a reflexo apresenta ao seu pensamento como um

    bem. Num caso, a inteno do agente aparece ligado e submisso ao desejo,

    no outro impelida pelo conhecimento intelectual do melhor. Mas, entre o

    movimento espontneo do desejo e a viso potica do bem, esse plano no

    aparece onde a vontade poderia encontrar seu campo prprio de aplicao e

    o sujeito poderia, no e pelo querer, constituir-se em centro autnomo de

    deciso, fonte verdadeira de seus atos. (VERNANT, 2008, p.39)

    Baseado em Aristteles, para quem a ao depende do prprio homem, o estudioso

    francs segue dizendo que esse , quando aproximado da frmula que mostra os seres

    vivos com o poder de mover-se a si mesmos (2008, p.39), no se apresenta como um eu

    pessoal, nem racional, o qual teria poder prprio de se opor s paixes. O se refere ao

    indivduo humano tomado no seu todo, concebido como o conjunto de disposies que

    formam seu carter particular. (p.40). Todavia, Aristteles no se questiona sobre o papel de

    diferentes foras na formao do carter individual, mesmo no ignorando o papel da

    natureza, legislao e educao, o que leva Vernant a dizer que o sujeito se apaga diante das

    coaes sociais. (p.40). O propsito de Aristteles moral, por isso bastava relacionar o

    carter e o indivduo, de onde surgiria a responsabilidade subjetiva do agente os atos teriam

    origem no homem, encontrando nele o princpio e a causa, causalidade essa negativa, j que

    quando no se pode atribu-la a uma causa exterior ela se encontra no homem, que agiria de

    boa vontade. (VERNANT, 2008, p.40-41).

    Assim, em Aristteles, a causalidade e a responsabilidade do sujeito no se referem

    vontade, mas tem uma assimilao do interno, do espontneo e do propriamente autnomo.

    Isso mostra que o indivduo, ao assumir a responsabilidade, por todos os atos de bom grado,

    permanece muito fechado nas determinaes de seu carter, muito estreitamente preso s

  • 18

    disposies internas que comandam a prtica dos vcios e das virtudes, para libertar-se

    plenamente como centro de deciso pessoal e afirmar-se, enquanto , em sua verdadeira

    dimenso de agente. (VERNANT, 2008, p.41).

    A partir disso, Cunha Corra (1998) questiona at que ponto poderamos colocar a

    vontade e a escolha desvinculadas do desejo e do intelecto, como Vernant, que, afim de

    reforar os argumentos, segue para um mtodo lexicogrfico, mostrando que, na Grcia

    antiga, no haveria termos que expressassem a vontade, livre arbtrio e ao voluntria.

    Dessa forma, assim como para Snell, o homem de Homero aqui age de acordo com

    uma compulso externa, no possuindo qualquer forma de vontade, conscincia de si e

    subjetividade, mas segue preceitos morais fixados pela tradio. Essa conscincia homrica,

    segundo Snell (2003), seria uma apreenso visual do objeto, uma vez que ela no existiria no

    homem como uma reflexo de si mesmo pois, apesar de ele poder refletir sobre seu ou

    , esses seria, apenas rgos fsicos e no partes do 'eu', visto como um todo.

    Baseando-nos nas consideraes feitas e buscando um melhor entendimento sobre as

    intervenes e de como isso afeta o pensamento em relao existncia ou no de

    responsabilidade sobre as decises e os atos, dividimos o trabalho em trs partes,

    considerando, inicialmente, duas concepes distintas: Snell (2003) para quem o homem, em

    Homero, no se concebia como origem das decises e atribua as aes a fatores externos;

    Lesky (1961) para quem a falta de uma palavra que rena os aspectos de e , no

    significa que o homem no se concebesse como unidade, pois essa seria expressa em falas e

    atos das personagens, havendo assim, uma motivao humana da ao.

    Dessa forma, faremos uma primeira parte, que poderia se dizer, explicativa da

    concepo de homem em Homero, na qual explicaremos sobre os rgos anmicos e o porqu

    de haver uma considerao sobre a falta de unidade espiritual, que levaria falta de

    sentimentos mistos, em um mesmo rgo, e reflexo sobre os atos. Em seguida, partiremos

    para as consideraes sobre os deuses na Ilada, seu modo de agir e as intervenes feitas.

    Nesse momento, refletiremos sobre o fato de existir uma ordem maior, um destino, sob o qual

    os deuses no tm poder de mudana, mas, ao mesmo tempo, esse mesmo destino se

    confundiria com a vontade de Zeus. Aps essas reflexes, caminharemos, enfim, para as

    questes de motivao dos atos e responsabilidade, uma vez que j teremos visto como so as

    intervenes divinas. Partiremos ento para averiguar se, mesmo com elas, o homem tambm

    realiza suas decises e se responsabiliza por elas.

  • 19

    Vale ressaltar que, para o presente trabalho, como no havia o intuito de propor uma

    nova traduo, para os termos ou trechos relevantes da Ilada que so usados como exemplo,

    ns utilizamos as tradues de Carlos Alberto Nunes (1951) e Frederico Loureno (2005), de

    acordo com o que achamos mais conveniente em termos de adequao ao trecho referido.

    1 - A CONCEPO DO HOMEM EM HOMERO

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    O homem homrico tem sido alvo de muitos estudos ao longo de anos, bem como

    suas ideias e seu modo de vida. Contudo, no podemos cair no erro de analis-lo sob uma

    perspectiva de nosso mundo e com nossas ideias. Devemos, portanto, compreender o mundo

    espiritual homrico e interpretar sua linguagem a partir do que encontramos no prprio

    Homero, e no cometer enganos de tom-la como uma linguagem que serviria a qualquer

    homem, pois existem noes que so muito usuais para ns que no eram poca retratada

    por Homero e vice-versa.

    Muitos equvocos ocorrem quando ns nos deparamos com palavras, que

    correspondem a termos mais gerais, como esprito, alma e corpo, os quais expressam a nossa

    concepo psicolgica do homem, pois procurar uma correspondncia exata, traduzindo-as

    com nossas noes, no seria correto. Contudo, no podemos pensar que essas noes no

    existiam em Homero, mas sim, que se encontravam de uma forma diferente da qual

    conhecemos.

    De acordo com Bruno Snell (2003), o homem homrico no via seus atos como

    resultados da ao voluntria e espiritual em unidade, mas isso no significa que eles no

    tivessem uma noo ou refletissem sobre o esprito. O lugar da concepo espiritual seria

    preenchido pela viso mtica do mundo, a qual, com o passar do tempo e desenvolvimento das

    ideias, conduziu o mundo grego antigo na formulao de uma concepo de alma, resultando

    em discusses morais, filosficas e religiosas, sobretudo na filosofia.

    Na Grcia, surgiram representaes do homem e seu pensamento, em pinturas e na

    literatura, que serviram de base para todo desenvolvimento intelectual posterior no ocidente.

    No entanto, segundo Snell (2003), a linguagem homrica estaria longe disso, uma vez que as

    lnguas primitivas no apresentavam abstraes, possuindo expresses que se voltavam para o

    concreto e o sensvel. Homero enfatizaria a linguagem das coisas concretas e no se

    preocuparia com as definies abstratas, apresentando a linguagem do singular e no do

    universal.

    Assim, a epopeia, que narra os grandes feitos e aes guerreiras dos homens no

    campo de batalha, enaltece o espetculo da vida de forma grandiosa, tendo o estilo, que se

    poderia dizer, da objetividade, de acordo com Snell (2003). Segundo Snell, quando Homero

    fala do corpo humano, o que lhe interessa a realidade concreta do mesmo, na diversidade de

    suas configuraes e limites. Todavia, precisamos compreender a forma como o homem

    retratado por Homero e qual noo de corpo e esprito esse mesmo homem apresenta. Essa

    noo interfere no modo em que vemos a capacidade de ao do homem, uma vez que, se

    considerarmos que ele no se via como unidade de corpo e alma para a realizao de seus

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    atos, ele apenas se encontraria aberto a intervenes e motivaes exteriores. Dessa forma, o

    homem de Homero no realizaria aes por si prprio nem assumiria responsabilidade por

    elas.

    Bruno Snell, em A descoberta do esprito (2003), estudou os diferentes verbos da

    viso, nos poemas homricos, e procurou compreender a percepo tica que o homem de

    Homero teria de si mesmo, chegando concluso de que nenhum desses verbos designaria

    propriamente a viso como funo especfica dos olhos, apenas modos concretos do ver.

    Dessa forma, os verbos de viso estariam ligados a uma maneira de ver determinada,

    com gestos ou sentimentos envolvidos na ao, assim como quando Aquiles diz a Ptroclo

    que esse chora como criana ao querer o colo da me e lagrimosa a contempla at que ela

    nos braos a tome ( , , Il. XVI,10 Trad.

    NUNES, 1950). O verbo tambm denota sentimentos tidos no ato de olhar e,

    segundo Snell (2003, p.22), tem um sentido especfico que depende do objeto que visto e

    dos sentimentos que o acompanham, assim como em Il. XIX,19

    (depois que se deleitou no esprito a olhar para seu

    esplendor - Trad. LOURENO, 2005).

    Ao longo do tempo, nas vrias tradies poticas, a maioria dos verbos deixou de ser

    usada assim que a lngua passou a expressar a funo visual com o uso de verbos objetivos

    (, ), percebendo os objetos por meio dos olhos. Todavia, vale ressaltar, como

    Paula Cunha Corra (1998) que Snell no discute os verbos , e , que no

    apresentariam aspectos palpveis da viso, e poderiam, assim, traduzir a funo ativa do ver

    que os outros verbos apresentados no trariam.

    A partir de seu estudo com os verbos, Snell viu que a funo prpria do olhar no

    seria muito importante para os heris homricos, os quais no apresentavam para ela nenhuma

    palavra especfica e, portanto, no a conceberiam como tal. Segundo o estudioso, as palavras

    usadas por Homero para designar a ao de ver nos mostra que o poeta no as compreendia

    como faculdade do olho de transmitir impresses. Portanto, podemos dizer que, enquanto

    faltava uma sntese para o entendimento da viso como algo uno, nesse perodo, Snell

    argumenta que a falta seria da anlise, a qual leva ao entendimento da viso como uma funo

    sensitiva.

    No entanto, no podemos concluir que esses verbos fizessem referncia apenas

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    modalidade do ver e no ao ver em si, pois no devemos considerar que os homens de

    Homero deixassem de lado meios de expresso que designavam a viso como faculdade

    humana de compreenso do mundo. Assim, seria mais fcil supor que esses verbos, que

    denotam a ao com o lado afetivo, estivessem relacionados a uma conveno do gnero

    pico que associava ao e emoo.

    Junto a essas concluses Snell questionou-se sobre a designao do corpo e do

    esprito em Homero, buscando o entendimento de um quadro do homem ou mundo homrico

    pela existncia de unidade corporal e espiritual, ou no. O estudioso ento iniciou a

    investigao sobre qual palavra, em Homero, designaria a ideia de corpo e poderia ser

    traduzida como tal; para tanto, os termos como , e foram sendo

    descartados, uma vez que a primeira usada na designao de cadver, a segunda faz

    referncia ao aspecto e estatura do corpo e no ao corpo em si e a ltima indicaria a

    superfcie do corpo enquanto limite - que pode ser ferido.

    Restariam apenas os plurais , e os que designam os membros

    (SNELL, 2003, p.24-26, 30-33) que, de acordo com o estudioso, seriam verdadeiros plurais

    que se referem aos membros em fora e velocidade, mas que poderiam ser usadas na forma

    singular. A partir disso, Snell nos diz que o corpo representado em Homero no apresentava

    unidade, pois as palavras usadas pelo poeta ao se referir a ele esto no plural e designariam os

    membros.

    Segundo Aristarco1 a palavra no designaria corpo vivo, apenas cadver, pelo

    menos Homero, utilizando a palavra em seu poema, no a usaria no sentido de corpo. Assim,

    para Aristarco o corpo vivo seria , mas Snell no considera esse termo, alegando ser um

    substituto insatisfatrio de corpo (2003, p.24), pois s ocorre na forma de acusativo de

    relao, estando restrito a algumas expresses que passam a ideia de estrutura ou forma

    (pequeno, grande, semelhante). Nesse sentido, Lesky (1961, p.8) prefere a expresso

    (fora de Telmaco) - que a seu ver se refere pessoa como um todo -, ao

    traduzir por corpo.

    Entretanto, segundo Cunha Corra (1998) representaria o corpo vivo em sua

    1 LEHRS, K. De Aristarchi studiis Homericis. G. Olms. Hildesheim, 1964.

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    totalidade e seria adequado como em Il. I,115, visto que, de acordo com Dictionaire

    Grec/Franais Anatole Bailly (1950), uma palavra neutra usada somente no nominativo e

    acusativo singular e siginifica corpo, tamanho e estatura ,

    (nem de corpo, nem de estatura, nem na inteligncia, nem nos

    lavores Trad. LOURENO, 2005).

    Na Ilada, em expresses que utilizariam a palavra corpo (denominado , no

    sculo V), Homero emprega - seja o termo usado apenas por uma questo de mtrica,

    correspondente a duas breves. O que importa atentarmos para o fato de que ele conserva o

    sentido de pele enquanto superfcie que limita o corpo e no de corpo propriamente dito.

    ,

    .

    A prpria malha, que o rei costumava trazer sobre o corpo

    Como anteparo, por certo, eficaz, foi, tambm, transpassada;

    Mas a epiderme somente esflorada ficou pelo dardo. (Il. IV,137-139 Trad.

    NUNES, 1950 )

    No entanto, o uso mais frequente o emprego de palavras no plural como (

    ,/

    . em ambos, logo, tocou, infundindo-lhes fora invencvel,/ leves lhes torna ele

    os membros, os braos e as pernas robustas. Il. XIII,60-61 Trad. NUNES, 1950) e

    ( . dos membros partisse a alma para a

    manso de Hades. Il. VII,131- Trad. LOURENO, 2005), que denotam a corporeidade do

    corpo. Carlos Alberto Nunes traduz por da existncia privado, o que daria o mesmo

    sentido, uma vez que os membros no mais se moveriam.

    Dessa maneira, Snell (2003) concluiu que o corpo do homem em Homero no era

    visto como unidade, mas sim, como uma pluralidade de membros. Esse fato foi relacionado

    com os verbos de viso, pois assim como nesses, se a funo no fosse reconhecida, no seria

    expressa, havendo uma conscincia de sua existncia. Faltaria, portanto, uma conscincia

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    unitria do corpo vivo o que faria a ateno ser centrada nas diferentes partes.

    No encontrando, nos poemas de Homero, um termo que designasse o corpo como

    um todo, Snell (2003) considerou que no haveria nenhuma palavra para esprito ou alma

    como unidade, pois para ele onde no existisse representao do corpo no poderia haver a da

    alma (SNELL, 2003, p.28). Assim, nos deparamos novamente com a dificuldade de traduo,

    pois Homero no conheceria uma palavra exata para tal; apesar disso, a concepo homrica

    de , usada mais tarde como alma que sente e pensa, no se encontra separada por um

    abismo das concepes posteriores, mas serve de matria prima para a evoluo ulterior.

    A seria o princpio de vida, o sopro que habita o homem e o mantm vivo, um

    fator explicativo para a passagem da vida para morte do ponto de vista dos que permaneciam

    vivos, segundo Snell. No entanto a no possui uma localizao precisa nem exerce

    atividade ou participa na conscincia do ser vivo.

    Homero nada nos diz a respeito do modo especfico de agir da no homem

    vivo, afirmando apenas que ela expirada ou sai pelas feridas ou narinas e segue para o

    Hades ( / com um sibilo, qual

    fumo, na terra/desaparece. Il. XXIII,100 Trad. NUNES, 1950) - como uma imagem do

    morto, uma sombra -, ou ainda, motivo pelo qual o guerreiro luta em um combate, podendo

    ser entendida como vida ( /

    A minha vida, sem dvida, vale bem mais do que quanto/ dizem que Troia possua Il.

    IX,401-402 Trad. NUNES, 1950).

    Devemos atentar que esse tipo de traduo nos sugere um sentido duplo de , o

    qual dissipado quando consideramos outras passagens como Il, XVI,453, que dificulta a

    relao de com o sentido de vida (

    Porm quando a alma e a vida o tiverem deixado- Trad. LOURENO, 2005). Com isso,

    temos a ideia de alento vital que abandona o homem na hora da morte e nos faz lembrar que o

    homem mortal ( , / uma alma,

    apenas, possui; que tambm mortal dizem todos Il. XXI,569 Trad. NUNES, 1950), ou

    seja, a palavra parece no estar ligada vida do homem, mas ao momento em que esse a

    perde. Notamos ainda que Homero no utiliza para se referir a esse mesmo alento,

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    enquanto permanece no homem vivo ou quando sua vida est por um fio, referindo-se a uma

    fora () que coloca o homem em ao (

    [at quando] no peito alento sentir e puderem os joelhos mover-se-lhe Il. X, 89

    Trad. NUNES, 1950).

    No encontro entre a de Ptroclo e Aquiles, no canto XXIII da Ilada, notamos

    que possui os traos figurativos do morto, mas destituda de suas caractersticas

    fsicas, sendo um vazio que no possui . Teramos, portanto, a noo homrica de

    na passagem do canto XXIII,103-104 ( /

    , - Ora a certeza adquiri de que no

    Hades, realmente, se encontram/ almas e imagens dos vivos, privadas, contudo, de alento. -

    Trad. NUNES, 1950.

    O termo ou possui vrios sentidos, estando, em algumas passagens,

    ligados aos sentimentos, enquanto em outras exprimem o que relacionado mente (sede de

    representaes). As so consideradas rgos fsicos e so traduzidas como diafragma

    - se atentarmos para o fato de que antes do sculo V a C. o intelecto era situado prximo ao

    corao. Mas em Homero, as seriam entranhas midas do trax, que abriam para um

    leque de estados de conscincia, pensamentos, impresses, emoes e atitudes psquicas onde

    encontramos a complexidade da experincia humana. Essa ideia defendida por Onians, que

    parece crer que as , na verdade, seriam os pulmes.

    Sendo assim, de acordo com Onians (1954), elas exerceriam mais ou menos a mesma

    funo que atribumos ao crebro, ou seja, o de sede das atividades anmicas - racional,

    emocional, sensria ou conativa. Buscando a localizao da sede da conscincia, o

    pesquisador demonstrou que as se encontravam na regio central do peito e no na

    parte de baixo - onde o diafragma separa os pulmes do abdmen -, e constatou que a

    atividade pulmonar, na poca, estava relacionada atividade mental, levando-o identificao

    de como pulmes.

    Alm disso, Onians indica a ausncia da palavra pulmo (), em Homero -

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    que aparece uma nica vez em Il. IV,528 - concluindo que essa no seria a palavra mais

    comum no uso mais geral para a designao dos pulmes, e que assim, preencheria

    esse vcuo, como sede da conscincia.

    Em Homero, a concepo usual da alma humana corresponderia a um tipo mais

    primitivo que seria a de almas corporais, pois a substncia da alma ou sua potncia se

    encontraria em partes do corpo. Essas partes, em si, no compreenderiam por completo a

    potencialidade da alma, e mesmo que a substncia da mesma possa ser encontrada no

    conjunto do corpo, ela designada de acordo com o lugar em que sua potncia se manifesta.

    Dessa forma, assim como o corpo no era concebido em unidade (membros e rgos)

    por Homero segundo Snell, a alma (espiritual anmico) tambm seria concebida como uma

    srie de rgos anmicos articulados, sedes de suas atividades distintas: - sede das

    emoes, que suscita movimentos e reaes (

    - com a lana de bronze, desejoso de o privar da vida. Il. V,852 Trad.

    LOURENO, 2005); - rgo do pensamento, sede dos conceitos (

    , mas no passou despercebido mente sbia de Zeus Il. XV,461 Trad.

    LOURENO, 2005); - sede emoo/reflexo (

    de nimo inquieto no peito, no pode tranquilo manter-se Il. XIII,280

    Trad. NUNES, 1950) que mais se aproxima de rgos fsicos, assim como (

    saltando-lhe dentro do peito o corao,com

    violncia Il. XIII, 281 Trad. NUNES, 1950). A no deve ser entendida como rgo

    anmico, em paridade a esses citados, a no ser quando ocorre uma confuso com ,

    como veremos a seguir.

    Devemos nos lembrar de que os poemas de Homero no so um tratado de

    psicologia, no qual as linhas divisrias entre as atividades anmicas esto previstas, e assim,

    no devemos querer construir uma psicologia do homem retratado pelo poeta, baseando-nos

    nas expresses para os rgos anmicos e em algum manual. Para ele, a vida anmica

    constitui, acima de tudo, uma unidade e os vrios termos, usados para design-la, no

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    representam um esforo de anlise consciente, mas tem sua origem na variedade de

    experincias que provocam seu uso.

    Em oposio s poucas informaes sobre a atuao da , Homero se revela

    muito explcito sobre as funes dos rgos anmicos, que, de certa maneira, preenchem a

    lacuna da falta de correspondncia entre a concepo da e a nossa noo de alma.

    O , cerne da vida e sede da coragem, em algumas passagens, abandona o

    homem na morte, podendo nos levar a consider-lo como alma em oposio (

    / , . dos membros o

    esprito/ rapidamente lhe foge, envolvendo-o funesta caligem. Il. XIII,671-672 Trad.

    NUNES, 1950). Devemos notar que, como rgo das emoes, tambm determina o

    movimento corporal e, de certo modo, abandona o corpo na morte, indo habitar o Hades, -

    sendo traduzido, algumas vezes por vida/ existncia (

    mas a ambos privou de vida, Il. VI,17 Trad. LOURENO, 2005). Contudo, o

    deixa os (a expresso que se refere aos ossos e membros), e com isso, o que dava

    movimento ao corpo desaparece, no existindo, assim, aps a morte.

    Segundo Onians (1954, p.50), o poderia ser definido como alento, uma

    conscincia dinmica que sofreria variaes de acordo as mudanas de sentimentos e

    pensamentos, os quais no eram separveis at ento, pois, nesse mesmo rgo, localizavam-

    se as atividades emotivas e intelectivas, assim como afirma Lesky, (1961, p.8). Portanto, o

    , interagindo com o ar externo dentro da (Il. VIII,202 [...] .)

    seria a sede das emoes, ativo e no mencionado aps a morte, j que abandona o corpo,

    cessando a conscincia e respirao. Dessa forma, poderamos consider-lo tambm como um

    princpio vital, que estaria ligado ao sentir e pensar do homem.

    H passagens nas quais e se confundem ou so permutveis e que so

    vistas como problemas de composio ou contaminao por outros trechos, a partir de

    equivalncia entre os termos como os apresentados por Snell (2003). Dessa forma temos Il.

    XXII,67-68 em que tirado dos ( /

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    [qualquer Dnao] me houver da existncia privado,/ com

    bronze agudo ferindo-me - Trad. NUNES, 1950) e Il. XXII,362 em que a que sai

    voando do mesmo lugar ( a alma dos

    membros saindo, para o Hades, baixou - Trad. NUNES, 1950).

    Snell nos explica isso como uma questo de correspondncia feita entre =

    e = . Sabendo que habitualmente a sai pela boca (

    / , . mas a

    alma humana, uma vez escapada do encerro dos dentes,/ no mais se deixa prender, sem

    podermos, de novo, ganh-la Il. IX,408-409 Trad. NUNES, 1950) ou pelas feridas (

    / , . a alma

    escapou-se depressa pela ferida/ aberta e a escurido cobriu-lhe os olhos Il. XIV,518 Trad.

    LOURENO, 2005), em seus estudos, Snell supe, em Homero, a equivalncia de e

    boca, uma vez que encontrou em Safo e Alceu como rosto.

    Esse tipo de problema ocorre em passagens como Il .VII,131 (

    . dos membros partisse a alma para a manso de Hades. - Trad.

    LOURENO, 2005), na qual o sai dos membros e vai para o Hades, o que, segundo

    Snell, teria sido uma contaminao por Il. XIII,671-672 ( /

    , .), que se refere aos e por Il. XVI,856 =

    XXII,362 ( ), em que a deixa os

    e vai para o Hades.

    No entanto, no haveria um grande problema na troca entre e , desde

    que reconheamos, como Onians (1954), que as duas noes apresentam diferentes funes

    nas categorias conhecidas por Homero, pois o muitas vezes descrito como rgo do

    pensamento e do sentimento, enquanto a refere-se vida do ser humano.

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    Segundo Onians (1954) o seria algo vaporoso, um sopro, e a poderia

    ser entendida como gasosamente insubstancial, embora visvel (1954, p.93). Dessa forma, a

    no seria o , propriamente, mas representaria outra coisa no homem vivo, algo

    gasoso ligado ao sopro - uma vez que sai pela boca ou feridas -, identificada como 'sombra',

    aps a morte. Contudo, mesmo no fazendo parte do significado de ser uma ausncia,

    mas considerando que pouco descrito, ele pde assumir a funo da na morte. Como

    o poema expressa a mentalidade coletiva e indefinida no h problemas com a ambiguidade e,

    dessa, forma, diferentemente da ideia de Snell, o no idntico , mas tambm

    no uma noo de todo separada, podendo ser confundido e at chegar a ser a mesma coisa.

    Alm disso, os termos e , e podem aparecer coordenados

    em uma mesma sentena ( e o corao e

    o nimo orgulhoso do parente refreado Il. IX,635 Trad. LOURENO, 2005) ou ora um

    ora outro como fonte de um prazer ou ao, por exemplo. Com isso, temos Il. IX,185-189, na

    qual o prazer sentido com a lira localizados no , mas tambm no .

    ,

    , [...]

    , .

    Chegaram s naus e s tendas dos Mirmides

    e encontraram-no a deleitar-se com a lira de lmpido som,

    bela e bem trabalhada, [...]

    Com ela deleitava o seu corao, cantando os feitos gloriosos dos homens

    (Trad. LOURENO, 2005)

    Assim tambm, quando Nestor repreende Agammnon por ter ofendido Aquiles, fala

    da influncia do do rei, enquanto esse coloca a causa de tudo em seu (Il.

    IX,108,119).

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    [...]

    , . [...]

    ,

    Na verdade eu prprio

    Tudo fiz para te dissuadir; mas tu cedeste ao teu esprito altivo [...]

    A ele deu resposta Agammnon, soberano dos homens:

    ancio, no foi com mentiras que narrastes meus desvarios.

    Fiquei desvairado, nem eu prprio posso o nego. [...]

    Visto que desvairei e cedi a funestos pensamentos. (Trad. LOURENO,

    2005)

    Encontramos outra dificuldade, na verificao dos limites entre os termos, quando

    nos deparamos com e o, havendo interferncias entre o rgo anmico, que gera os

    movimentos e se relaciona mais s emoes, e o rgo que recebe as impresses referindo-se

    mais ao intelecto. No entanto, como nos mostra Snell (2003), - sabendo que o pe o

    homem em ao -, em Il. XIV,61-62 usado , pois feito pedido de reflexo, ou seja,

    representao intelectual ( /

    Mas pensemos ns agora como se passaro estes trabalhos/ se que o pensamento ajuda. -

    Trad. LOURENO, 2005) ; enquanto em Il. II,409, o saber localizado no (sede das

    reaes anmicas), uma vez que no adquirido por conhecimento, mas por um

    pressentimento movido pela relao fraternal (

    / . Vem Menelau sem convite, o

    guerreiro de voz retumbante,/ pois bem sabia os cuidados que na alma do irmo se agitavam

    - Trad. NUNES, 1950).

    Poderamos dizer que o engano cometido por Snell (2003) se deve ao fato de ter

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    atribudo um valor conceitual ao que era apenas uma noo na mentalidade mtico- potica de

    Homero. Snell acredita que o (corao) e o o (mente) no devem ser entendidos

    como semelhantes s partes da alma sobre as quais nos fala Plato, porque no so integrados

    num todo - sendo rgos separados que no se distinguem dos rgos do corpo. Contudo,

    Onians nos mostra que o pensamento de Plato separava esses princpios e suas funes de

    uma forma mais clara que a mentalidade mtico-potica onde emoo e conao se

    relacionam igualmente.

    Alm disso, devemos nos lembrar de que o texto, como um todo, produto no s da

    elaborao potica, mas tambm do imaginrio coletivo que oferece vrios smbolos de

    significao, atribuindo sentido ao texto oral no s palavra isolada. Dessa maneira, no

    haveria problema em usar um termo no lugar do outro, pois o valor est no que se diz com ela,

    j que o pensamento de Homero parece no se preocupar com uma verdade eterna, mas uma

    que se apresente por meio da fala e mostre sua funo.

    Seguindo os estudos de Snell, entendemos que o seria o rgo do discernimento,

    um ver com percepo espiritual, ou seja, o esprito enquanto representaes claras que

    podemos encontrar em Il. XVI,688 em que se fala do o de Zeus ser o mais poderoso

    ( Mas a vontade de Zeus mais forte

    que o arbtrio dos homens - Trad. NUNES, 1950). Assim, a vontade de Zeus se coloca acima

    do livre arbtrio dos homens, tendo o deus supremo um olhar, um conhecimento muito claro

    sobre os fatos.

    O o pode designar sua prpria funo, o que denota a capacidade de ter ideias, a

    inteligncia vista em Il. XIII,730-733, em que a divindade concede faanhas guerreiras a uns e

    bom o a outros ( , [...]

    / que a um homem d o deus as faanhas guerreiras,

    [...] e no peito de outro coloca Zeus, que v ao longe,/ uma mente excelente - Trad.

    LOURENO, 2005). Isso nos leva a relacionar com o sentido posterior dado a o, - o de

    entendimento -, pois, como sendo funo permanente (capacidade de ter ideias) poderamos

    empregar a palavra inteligncia, tanto para esprito quanto para a sua atividade.

    Essa evoluo do sentido tambm ocorre com , que, a partir da designao

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    do rgo, passa a significar a vontade ou carter, e s vezes, um impulso concreto. Isso

    explicaria, segundo Snell (2003, p.39), a transio do rgo para sua funo e nos ajudaria a

    entender o composto como , que no pressupe para o valor abstrato, apenas o

    uso do rgo no lugar da funo, assim como na expresso sem cabea (capacidade de

    pensar) que designa a falta da funo de pesamento.

    Portanto, a falta de um conceito preciso de alma leva ausncia de distino clara

    entre o fsico e o psquico, sendo o homem de Homero no uma soma de corpo e alma, mas

    um todo do qual se destacam determinados rgos, mantendo uma relao entre a pluralidade

    do homem vivo e a unidade. No encontro de Aquiles com a de Ptroclo vemos que o

    corpo se apresenta como conjunto de partes, mas percebemos que a integrao do todo se

    desfaz no momento da morte, levando o cadver a ser fragmentado em relao ao corpo do

    homem vivo multiplicidade tanto no nvel anmico quanto corpreo.

    Dessa forma, as pernas geis seriam um rgo do homem, no do corpo do homem,

    bem como o um rgo do homem e no da alma do homem. Podemos assim, atribuir

    atividades anmicas a todo o homem ou a cada um de seus membros, pois ele era

    compreendido como unidade e um atuante que mantinha no seu todo a coerncia entre as

    partes. O eu expresso por expresses como minha fora poderosa, minha lana (

    Il. VI,126), minhas mos/braos ( Il. I,166), e a descrio do

    processo, pelo qual o guerreiro recobra os nimos, tambm apresenta um caminho fsico (

    / ,

    Isso dizendo, Posido, que a terra sacode, com o cetro/ em ambos, logo, tocou, infundindo-

    lhes fora invencvel Il. XIII,59 Trad. NUNES, 1950).

    O heri se mostra sensvel aos estmulos, tendo reaes violentas que repercutem em

    sensaes fsicas, pelas quais localiza determinados impulsos e sentimentos. Com isso, seu

    corao, enquanto rgo fsico pode ser transpassado, mas tambm bater agitado pela

    expectativa de um combate, ou o diafragma pode ser a sede da raiva, quando excitado por

    insulto ( , Na verdade no h

    raiva no corao de Aquiles: no quer saber. Il. II,241 Trad. LOURENO, 2005). Essas

    expresses dificultam a distino entre o fsico e o psquico e, embora a primeira significao

  • 33

    tenha sido fsica, elas passaram por evolues de ajustes contrrios.

    Segundo Snell (2003), o , em Homero, assim como o corao, seria um rgo

    das emoes anmicas que no se diferenciava dos rgos corporais, noo essa que mudou

    com os lricos a partir de novas concepes de e . Para ele, os lricos no

    concebiam a alma em relao aos rgos corporais e tendiam para uma ideia mais abstrata do

    anmico, chegando dicotomia corpo-alma. Em seus estudos, o autor se baseou em

    fragmentos de Aquloco, nos quais examinou um diferente tratamento dado ao e a

    (corao), que revelariam a abstrao atravs de expresses que Homero no

    conhecia.

    Homero conhecia o corao como rgo corporal fonte de coragem (

    / com igual corao e

    nimo se derramaram os Mirmides/das naus Il. XVI,266 - Trad. LOURENO, 2005) e

    tinha a ideia de que o homem ou seus podem se encher de (Il. XVII,573),

    (Il. I,103) ou (Il. XVII,211,499). Enquanto isso, Arquloco, segundo Snell

    (2003), usava a palavra no lugar dessas foras, dando um significado mais abstrato.

    No entanto, para Paula Cunha Corra (1998) os exemplos utilizados por Snell no parecem

    revelar uma noo mais concreta da alma, visto que em Il. X,244-245, pode ser

    colocado como a prpria coragem. ( /

    cuja coragem, nos grande perigos, e o esprito ardente/ sempre se

    afirmam - Trad. NUNES, 1950).

    Seria importante lembrarmos a observao feita por Dodds (1951) de que o ,

    no heri de Homero, tambm aparece como uma voz interior, podendo ser de origem natural

    ou divina. Com isso, o estudioso nos coloca que, para esse mesmo homem, o poderia

    se manifestar como duas vozes contrrias, aparecendo, portanto, como uma voz da

    conscincia, uma voz interior independente (1951, p. 24). Assim, o no seria nem a

    alma nem parte dela, mas um rgo independente que no era sentido como parte do eu.

  • 34

    Essa objetivao dos impulsos emocionais, segundo Dodds, deve ter levantado a

    ideia sobre a interveno psquica, que agiria no (

    / . Novamente combater, quando o

    corao no peito/o mandar e uma divindade o incitar Il. IX,702-703 Trad. LOURENO,

    2005) ou em um lugar fsico, como o diafragma ( ,

    ,/ Ento o desvario tomou-lhe a mente e deslassou-lhe os

    membros:/ estava ali de p, atordoado Il. XVI,805 Trad. LOURENO, 2005) ou peito e

    no diretamente sobre o homem.

    Vimos, portanto que o corpo humano, em Homero, no o mesmo que encontramos

    em Plato ou textos posteriores, mas sabemos que entendido como cadver, da

    mesma forma que no propriamente o sopro vital, mas, em relao com a morte, um

    duplo do morto - no apenas uma parte do ser humano, mas uma cpia do homem como um

    todo.

    Seguindo seus estudos, Snell (2003) afirmou que a alma em Homero no apresentava

    a unidade que, por sua vez, teria surgido com a filosofia. Contudo, vemos que a falta de

    palavras para designar corpo e as vrias usadas para alma no retira a unidade de sentido

    dessas noes na poesia pica, pois podemos admitir que elas fizessem parte da noo de

    homem, que as englobavam em unidade.

    A viso de alma oposta a fenmenos fsicos, ou seja, ilimitada e intensiva,

    encontrada pela primeira vez em Herclito, de acordo com Snell (2003), onde temos o homem

    , de pensamentos profundos, em uma dimenso do invisvel, enquanto em Homero

    ele , de muitos pensamentos, com noo de quantidade. O estudioso acredita que

    os rgos espirituais seriam apenas rgos nos quais no haveria nenhuma origem de emoo,

    pois a ao do esprito seria o resultado de foras que agem a partir do exterior.

    Devido a isso, Snell (2003) considera que os lricos tenham apresentado um novo

    homem e novo mundo, uma vez que teriam procedido a avanos no vocabulrio, indicando

    maior abstrao em relao alma e teriam conduzido dicotomia corpo-alma, que seriam

    concebidos em sua unidade. Essa dicotomia seria ignorada pelos homens em Homero, que no

    diferenciavam o espiritual do corporal, percebidos apenas na morte, e por isso, no

    conheceriam sentimentos mistos, nem reflexo com a prpria alma, pois as contradies no

  • 35

    ocorreriam em um nico rgo. Dessa maneira, Snell (2003) concluiu que faltava a esses

    homens um ponto central para que pudessem conceber como fonte de emoo e origem de

    decises, e, portanto, atribuam as iniciativas aos deuses ou agentes externos, no existindo a

    capacidade de ao prpria e a noo de responsabilidade humana.

    Estudiosos que seguem o pensamento de Snell enfatizam as transformaes na

    mentalidade grega: a de Homero, caracterizada pela falta de subjetividade interior e

    autoconscincia fragmentada, e a de Plato, onde encontramos as discusses sobre a alma

    imortal. Isso, para alguns estudiosos, indicaria que o surgimento de formas mais elaboradas

    no pensamento grego ocorreu como uma exploso do esprito subjetivo, o que segundo Cunha

    Corra (1998) deveria ser balanceado, investigando as causas sociais que contriburam para o

    surgimento de uma nova maneria de pensar.

    Para Vernant (1990, p. 333-346), o corpo, em Homero, tambm no seria unificado -

    apenas no cadver -, e sim, composto por rgos com funo fsico-psquicas, onde no h

    distino entre corpo e alma. Entretanto, o estudioso ao falar da mudana de sentidos de

    e , busca a formao de um novo conceito de alma em cultos margem da

    religio oficial. A deixa de ser a fumaa inconsistente de Homero e passa a ser uma

    fora no interior do homem vivo, com a consistncia de um ser real e, ao mesmo tempo,

    parte do homem imortal, unificada e divina.

    Assim, sendo realidade objetiva e experincia vivida na intimidade do sujeito, a

    permite, pela primeira vez, que o mundo interior se torne objetivo e inicie a construo

    das estruturas do 'eu', ou seja, uma elaborao do mundo das experincias internas diante do

    mundo exterior. A origem religiosa, segundo Vernant foi de grande importncia, uma vez que

    a descoberta da interioridade liga-se ao dualismo psico-somtico, no qual a alma definida

    como contrria ao corpo, e assim, ganha sua objetividade e existncia.

    Contudo, a alma, sendo divina, no exprimiria a singularidade dos sujeitos

    humanos e ligada ao (princpio divino) faria parte do que anima a natureza.

    Portanto, para Vernant, vemos que a noo de pessoa, nesse perodo, no diz respeito ao

    indivduo singular, nico, nem no que apresenta de humano em relao natureza; ela se

    orienta pela fuso dos particulares com o todo. Para ele, esses valores religiosos impediram

    a construo da noo de delimitao da pessoa, pois ela se prolongava na natureza, e assim,

    sem contornos, no se separava do mundo mtico nem se fixava.

    Em relao aos estudos da concepo do homem em Homero, Lesky (1961) retoma a

  • 36

    afirmao de que designaria o cadver, colocando que o corpo no seria tomado como

    um todo, mas suas partes que seriam consideradas. Ao falar da alma, o estudioso afirma que

    em Homero ela no aparece oposta ao corpo, uma vez que os rgos corporais e espirituais

    estariam relacionados da mesma forma com o 'eu'.

    Para Lesky (1961), a afirmao de Snell de que , e so rgos

    separados e apresentam funes especficas nos revela que algo parte, o fundamento

    de emoes da alma no homem vivo, referida e sentida como qualquer sensao corporal, de

    acordo com Otto Regenbogen (LESKY, 1961, p.7). Assim, no poderia ser colocada no

    mesmo nvel de ou como aspecto parcial da vida interior; alm disso, como

    Homero no diz nada a respeito da natureza da alma e seu comportamento nos homens vivos,

    no devemos buscar na uma base para as decises prprias do homem.

    Deveramos, portanto, segundo Lesky, construir uma psicologia do homem homrico

    que fosse baseada nas vrias expresses para rgos dos impulsos da alma, compreendendo

    melhor esse homem e suas contradies. Os estudos de E.L. Harrison (LESKY,1961, p.8)

    sobre as expresses trazem a cada uma dessas uma regio central e zonas marginais onde

    ocorrem interferncias, o que segundo Lesky seria importante para a construo do homem

    de Homero, podendo ser os termos trocados sem ocasionar grandes linhas de separaes,

    como feito por ele com as palavras , , e , no canto XX da Odissia.

    Assim, para Lesky (1961) a expresso (na mente e no

    corao, Il. XI,411 Trad. NUNES, 1950) que expressa algo complementar ao que

    entendemos por vida interior, ficaria estranha se comparada

    (tornando-lhe o esprito ao peito Il. XXII,475 Trad. NUNES, 1950), enquanto em Il.

    XVI,656 vemos que o uma parte da pessoa que pode ser estimulada (

    - Frio desnimo, logo, no peito de Heitor ele (Zeus)

    insufla Trad. NUNES, 1950). Encontramos ainda, em Od. IX,302, Odisseu rejeitando um

    plano sobre o qual ele se sobrepe e reflete em seu , por causa de seu

    , o que nos chama a ateno para um sentimento no originado apenas nas

  • 37

    emoes, mas antes no intelecto.

    Esses conceitos, pouco ntidos, no oferecem nenhuma definio para a pessoa como

    um todo, segundo Lesky. Esse todo seria algo a mais do que a simples soma das partes

    seguindo a definio do psiclogo Rohracher, para quem totalidades so conexes de

    componentes individuais, cuja influncia oposta leva a conexo a mostrar caractersticas

    diferentes das de cada um de seus componentes. (ROHRACHER apud LESKY 1961, p. 8).

    Pensando nisso que Lesky diz preferir a expresso , como j

    apresentado, por fazer referncia pessoa inteira. Entretanto, para ele, esses princpios no

    comprovam que o homem em Homero no se via sozinho em seus rgos, mas que possua

    uma personalidade completa.

    Lesky ainda lembra que Snell se baseou no fundamento de que a linguagem seria

    meio para a compreenso do que reconhecido pelo homem como objeto de pensamento, ou

    seja, o que refletido por ele, mas ressalta que buscar uma palavra exata para essa ao, em

    Homero, seria equivocado. O equvoco tambm ocorre quando se questiona sobre se a falta de

    representao do corpo como unidade, na pica, implicaria uma falta de conhecimento, por

    parte dos homens em Homero, ou se a ausncia de uma palavra para o pensamento ou deciso

    significaria a no capacidade desses homens elaborarem seus prprios pensamentos ou tomar

    decises.

    Assim, Lesky retoma Dodds (1951), que anteriormente, havia dito que o homem,

    nessa poca, no possuia o conceito de vontade, conduzindo falta de um desejo prprio, de

    uma vontade livre, mas nada o impediria de distinguir entre as aes que tivessem origem no

    'ego' daquelas que eles consideravam oriundas de interveno psquica.

    No entanto, Lesky nos chama ateno para o fato de que, apesar de alguns outros

    estudiosos considerarem o vocabulrio homrico suficiente para a determinao das

    caractersticas de seus homens, no deveramos buscar uma traduo para a palavra 'pessoa'

    no lxico homrico. Segundo esse estudioso, os homens de Homero pouco refletiam sobre a

    unidade da pessoa, mas o contrrio seria visto nas formas de lidar com ela, o que torna a ideia

    de partes do corpo mais uma confirmao do que negao.

    Seria assim frequente, na pica, o dilogo entre a pessoa e seus pensamentos,

    fazendo referncia ao e , no qual ela pode ser aquele que fala ou sobre quem se

    fala, como vemos em Il. XI,403 (

    Desanimado assim disse ao seu magnnimo corao: - Trad. LOURENO). De acordo com

  • 38

    Lesky, em ns mesmos algo move-se no interior, estimulando-nos ou impedindo-nos atravs

    de conversa com a voz interior. O estudiosos, baseando-se no ensaio de Rudolf Meringer,

    ressalta que no existe pensamento sem voz interior, sendo que, frequentemente, o

    pensamento est disfarado como palavra interior e assim, pensar, ouvir e falar internamente

    geralmente a mesma coisa. (MERINGER apud LESKY, p.10, 1961).

    Dessa forma, a caracterstica de falar sobre os fenmenos internos no questionaria a

    personalidade do falante, como podemos ver na j citada passagem Il. XI,403 ss - na qual

    Odisseu se dirige ao e o censura -, se considerarmos o sujeito como todo, implcito no

    uso da primeira pessoa e na indicao do verso 411 (

    - Enquanto assim ponderava no esprito e no corao - Trad.

    LOURENO), em que o poeta mostra algo unificado que move os pensamentos.

    O falante, portanto, para Lesky (1961), tomado como um todo, ao qual pertencem

    os rgos espirituais e nos quais ele se anima; ou seja, o homem de Homero no seria visto

    por uma diviso entre corpo e alma, mas um todo, no qual podemos encontrar determinadas

    partes - rgos, que vm da pessoa, de maneira espontnea. Assim, a expresso mais fcil para

    identidade da pessoa, atravs das frases de tratamento, seria o nome prprio, de acordo com

    Lesky (1961).

    Portanto, podemos dizer que, no homem retratado por Homero corpo, alma, ao e

    inteno esto unidos, uma vez que, para Cunha Corra (1998, p.34) se falta alguma palavra

    que rena os sentidos de , , no quer dizer, de maneira geral, que o homem

    dessa poca no tivesse conscincia de sua unidade. Assim, mesmo que no encontremos, na

    pica, uma reflexo sobre a 'pessoa', sua unidade estaria expressa nas falas e atos das

    personagens, pois Homero as representa como 'agentes unitrios'. Com isso, se a 'pessoa' for

    definida como a que organiza e rene atividades emotivas e intelectuais no indivduo, o

    simples emprego do pronome 'eu' implica, por si, tal noo. (CORRA, 1998, p.34).

    Essa ideia se coloca em oposio de Snell (2003), j apresentada, de que Homero

    desconhecia o verdadeiro ato de deciso humana, uma vez que, nas cenas de reflexo do

    heri, a interveno divina sempre uma parte importante e os rgos espirituais e

    seriam apenas rgos onde no podemos ver origem de nenhuma emoo, o que torna a

    ao do esprito um efeito de foras exteriores ao homem o qual se encontra sujeito a vrias

    foras. No entanto, no podemos retirar totalmente da ao humana a determinao pela

  • 39

    vontade prpria, pelo fato de os deuses terem a capacidade de interferir diretamente na

    conscincia humana.

    Homero, ao expressar o pensamento dos homens por meio de um dilogo com o

    ou , se limita a representar o raciocnio discursivo sem que isso implique algum

    problema ntimo ou conflito interno entre o homem e o rgo ao qual se dirige durante a fala.

    O homem homrico no distinguiria entre o que de si mesmo e do ambiente, entre o fsico e

    o psquico dentro de si. Como o fsico e o psquico no estariam claramente separados, a

    substncia da alma se encontraria no conjunto do corpo e se designaria com relao quelas

    partes do corpo, nas quais sua potncia mais evidente.

    A alma no seria vista como um princpio estruturante da personalidade ou atividade

    humana, sendo os homens motivados pelos deuses em suas deliberaes de forma natural,

    pois viveriam naturalmente com o divino. Assim, a interveno no interromperia a ordem das

    coisas, dando sentido aos acontecimentos do cotidiano, como por exemplo, o surgimento de

    uma nova fora ou um comportamento alm do esperado.

  • 40

    2 RELAO ENTRE HOMENS E DEUSES: CAPACIDADE DE AO DE ZEUS E

    DAS PARTES

    Na epopeia, vemos que h um entrelaamento entre as aes dos homens e dos

    deuses, na Ilada no mbito da guerra () e na Odissia durante o retorno para a casa

    () dos heris sobreviventes da guerra de Troia. Ambos os poemas apresentam um

    heri principal, que tem o apreo do poeta por seus grandes feitos, e lidam com a descrio

    dos hbitos gregos em relao morte, busca do ideal heroico, relao com os deuses e entre

    os homens.

    A epopeia se desenvolve no mbito dos deuses, que intervm nas aes, enquanto os

    homens se encontram sob uma viso de justia ligada aos deuses, designada pela palavra

    (lei divina), que significa no s o estatuto dado aos reis por Zeus, para administrar a

    justia, mas tambm tudo o que transformado em regra pela tradio. No incio da Ilada,

    estruturada a partir da clera de Aquiles, nos dito que todos os acontecimentos estariam de

    acordo com os desgnios de Zeus, ou seja, cumpririam sua vontade, o que se inicia com o

    sonho enviado a Agammnon e sua incitao ao ataque.

    Devemos notar que esse mesmo Zeus no tem permisso de salvar o prprio filho,

    Sarpdon, das determinaes do destino (Il. XVI, 458), alm de que, em outras passagens,

    como Il. VIII,69, Zeus aparece recorrendo balana, o que nos conduz ao pensamento de que

    a ao de pesar o destino equivale vontade divina. No mundo de Homero, no entanto, o

    destino no leva a um determinismo rgido, pois no s Zeus reflete sobre a possibilidade de

    salvar a vida de seu filho, como tambm vemos expressa a possibilidade de os homens

    sofrerem ou fazerem algo alm do que est determinado ( , ), quando

    Zeus fala do temor sobre o fato de Aquiles assaltar as muralhas e desafiar o destino (Il.

    XX,30).

    No poema homrico, mesmo com as referncias aos deuses e ao seu poder, no

    aparecem prodgios, mas nada acontece sem a presena das divindades. Essa aproximao

    ocorre de forma natural, uma vez que um deus inspira e desperta nimo no homem, dando

    nimo, fora e agilidade ao corpo humano. Entretanto, podemos notar momentos nos quais as

    foras humanas se concentram para deciso ou ao, mesmo que essas mudanas fossem

    vistas como manifestaes dos deuses. Estes, por sua vez, estariam presentes em todas as

    formas e estados da vida, pois o divino no se manifestaria com poder soberano, mas como

  • 41

    essncia do natural.

    Assim, no sendo o homem um mero instrumento nas mos dos deuses nem sua

    existncia tida como um palco da atuao divina, devemos buscar entender como se d a

    relao entre homens e deuses e de como a esfera divina influi na esfera humana compelindo-

    a ao. Precisamos, portanto, compreender como h um aparente 'poder total' dos deuses,

    pois o contrrio criaria uma contradio entre a identificao da divindade com a natureza e

    sua onipotncia: em determinadas situaes os deuses no podem intervir, pois o poder divino

    se encontra diante de um limite inabalvel.

    Na epopeia ainda notamos que a vontade ou plano de Zeus acompanha algumas

    personagens que no tiveram seus destinos cumpridos na guerra, mas os enfrentaro na volta

    para a casa, estabelecendo assim, que as mortes delas estariam traadas de acordo com um

    plano elaborado por Zeus (observado no ciclo pico) e relacionando a concepo de destino

    (, ) com a da morte ().

    O tema da vontade/plano de Zeus frequente no ciclo pico e vemos sua origem no

    desentendimento entre Prometeu e o cronida, relacionado vontade divina de eliminar todos

    os heris (semideuses - , ) da terra, como vemos em Hesodo (1978, fragmento

    24. 98-103). Assim, devemos atentar para a participao dos deuses nos poemas picos pois,

    se eles lidam com os desejos divinos porque os deuses tm alguma importncia na trama.

    Vemos, em Redfield (1975), que os deuses, na Ilada e Odissia, seriam divindades literrias,

    que estariam figurativizadas no texto e apresentariam suas caractersticas especficas descritas

    pelo poeta - seres das palavras.

    Os deuses da Ilada, por outro lado, so geralmente frvolos, criaturas

    inconstantes, cuja amizade ou inimizade, tem pouco a ver com justia

    humana. Eles no aparecem na narrativa como garantidores das

    normas humanas ou como as fontes do processo natural. Estes deuses

    Ilidicos podem usar os recursos da natureza trovo e terremoto

    mas eles no garantem um cosmos; suas intervenes so errticas e

    pessoais. Mais importante, os deuses da Ilada carecem de numen; eles

    so de fato a principal origem da comdia nos poemas. Ns podemos,

    eu penso, explicar essa diferena mais facilmente ao assumir que os

    deuses da Ilada pertencem ao mundo convencional do pico e foram

    entendidos como tal pela audincia. Exatamente como o pico fala,

  • 42

    no de homens, mas de heris, assim tambm ele narra histrias, no

    de deuses concebidos como reais, mas de deuses literrios.

    (REDFIELD, 1975, p.76)

    Contudo, seria um erro se considerssemos a ao dos deuses apenas no plano

    esttico e da tcnica potica, pois eles formariam um sistema de foras onde encontramos a

    totalidade da existncia humana. Os deuses de Homero tm um papel fundamental na trama e

    percebemos isso pela atuao que apresentam e que, muitas vezes, colabora para o

    seguimento do enredo, pois existem momentos em que sem a interveno divina no haveria

    continuidade. Um exemplo disso o encontro de Aquiles e Pramo (Il. XXIV,141 ss.), j que,

    na esfera humana e nos eventos em situao de guerra, o encontro entre os dois poderia ser

    considerado impossvel dentro das convenes em estado de combate, se no houvesse a

    interveno de um deus.

    Segundo Redfield (1975), os deuses em Homero carecem de numen, palavra

    traduzida do latim2 que significa divindade, vontade divina, e que pode ser relacionada com o

    grego que significa natureza divina, divindade. Enquanto divindade, o numen

    presena, fora, nome e essncia, como nos diz Torrano, em O sentido de Zeus: [...] Deuses

    imortais, enquanto presidem a destinos particulares e assinalam-se as sinas, dizem-se Numes

    (Damones) [...] (1996, p.141). Contudo, os heris homricos, apresentando uma

    preocupao religiosa, fazem oraes e sacrifcios e esperam receber ajuda e sorte dos deuses,

    o que seria difcil acontecer se os deuses fossem apenas literrios e carentes de divindade.

    Para Jasper Griffin (1980) os deuses e os mortos so o pano de fundo para a pica de Homero,

    no havendo o pico sem eles:

    [...] As epopeias homricas so poemas sobre as aes e o

    destino/runas de heris, mas ns vemos tudo neles falsamente se ns

    no o vermos contra o pano de fundo dos deuses e do morto. Os

    deuses esto em casa na radiante claridade do Olimpo, o morto est na

    escurido eterna; os homens vivem entre eles em um mundo no qual

    luz e trevas sucedem-se mutuamente. Os deuses gozam de eterna

    juventude e energia, os mortos esto sem poder ou atividade; os

    homens so capazes de ascender ao herosmo e podem ser

    2 CRETELLA JNIOR, J. & ULHA CINTRA, G. Dicionrio Latino-Portugus. So Paulo: Nacional, 1956.

  • 43

    semelhantes aos deuses, mas para todos os velhos e mortos so o

    destino final. Os deuses podem ser irresponsveis na ao e no

    necessitam temer nenhuma consequncia desastrosa; os homens esto

    dispostos de tal modo que o fim de todas as suas aes a partida da

    alma, lamentao, a partida de sua juventude e fora (GRIFFIN, 1980,

    p.162)

    Dessa forma, a ideia de Redfield sobre a carncia de divindade (dos deuses) perde

    seu sentido, uma vez que os homens esto sempre em atividade e possuem energia para

    executar suas aes, desastrosas ou no, nas quais os deuses fazem interferncias defendendo

    seus protegidos e punindo os transgressores da ordem. Pela citao acima, percebemos que h

    trs esferas de atuao no mundo dos heris homricos: o mundo dos deuses, cheio de brilho,

    o dos mortos na escurido e o dos homens vivos com um pouco de cada uma dessas

    caractersticas.

    Cada mundo recebe os habitantes considerando sua natureza e a condio de

    existncia da mesma e, por isso, a esfera de atuao dos seres que neles vivem pode ser

    dividida em: mundo dos imortais ( sem morte) formado pelos deuses (),

    mundo dos mortais (/ com morte) ao qual pertencem os homens ()

    e os semideuses (, com qualidades humanas e divinas) e mundo dos mortos -

    mundos esses que esto ligados.

    Na crena homrica, os mortos no deixam de existir, mas passam a ter uma

    existncia diferente das dos vivos, fator que levou esse reino a perder sua 'santidade', presente

    na crena anterior, e do qual os deuses olmpicos encontram-se separados por seu prprio ser

    ( [] , - morada medonha e

    bafienta, que os deuses odeiam Il. XX,65 - Trad. LOURENO, 2005). A morada de Hades

    causa horror aos olmpicos, principalmente na poca clssica, mas em Homero, eles no

    temem aproximao com um cadver ( ,

    / [...] - V tu agora, Febo amado, e limpa o

    negro sangue de Sarpdon [...] Il. XVI,667 Trad. LOURENO, 2005).

    Como dito no primeiro captulo, o corpo do homem recebe fora e nimo da

  • 44

    (alma), sem a qual o corpo pode ser considerado morto. Aps sua liberao por alguma

    abertura no corpo, a segue para o Hades (Il. XVI,856; XXII,362) onde considerada

    uma sombra do guerreiro (), uma imagem do morto ( Il. XXII,93-107), que

    vaga entre as outras almas aps receber os ritos fnebres. Aqui, podemos estabelecer uma

    aproximao entre os mortos e os deuses, pois ambos perduram e so superiores aos homens

    vivos, embora apenas os segundos possam ser felizes em si mesmos.

    O reino dos mortos, por sua vez, est localizado nos limites do Oceano, embaixo da

    terra3 e essa ideia de limites que traz a de invisibilidade. Nos poemas homricos, os limites

    so relacionados com a extenses da terra e do oceano, pois como a viso do homem no

    consegue alcan-las elas exprimem o ilimitado que tambm invisvel. Assim, esse limite

    exerce uma funo geogrfica que separa o reino dos vivos e o dos mortos, obedecendo a

    regras definidas: h a preocupao de permitir a entrada apenas da alma que recebeu os ritos

    fnebres, bem como no permitir que a mesma deixe o Hades e entre em contato com os

    vivos a no ser que seja nutrida com sangue das vtimas de sacrifcio (Il. XX,54-66).

    Dessa forma, a s poder se comunicar com os vivos recebendo sangue ou

    atravs de sonhos. Nesse ltimo caso, o contato estabelece a relao entre dois mundos muito

    parecidos, pois os sonhos e as almas so como fumaa, o que torna a relao possvel, visto

    que a de Ptroclo reclama os devidos rituais fnebres a Aquiles (Il. XXIII,65ss). No

    outro caso, h a ligao entre algo material e imaterial, como se a alma fosse capaz de voltar

    vida, por um instante.

    Vemos tambm que a natureza divina dos deuses no transmitida para seus filhos

    com mortais e por isso, os heris compartilham com os homens comuns a morte e com os

    deuses, a possibilidade de serem chamados divinos. Nesse ponto consiste a ambiguidade do

    carter heroico, pois, o heri est acima dos homens comuns, no chegando no entanto, a ser

    exatamente um imortal. Ele, portanto, nem homem nem deus, imbatvel, mas ao mesmo

    tempo chora.

    O heri seria a personificao de um ideal - a glria do guerreiro transformada em

    ao humana -, visto que a oposio entre o aspecto modelar do heri com excelncia e o

    aspecto humano de cidado que conduziu ao conflito entre Aquiles e Agammnon, logo no

    incio da Ilada. O grande heri da Ilada, Aquiles, tinha conscincia da mortalidade, o que

    3 Il. VI,19; VII,330; XIV,457; XX,54-66; XXIII,100-101

  • 45

    nos leva a pensar como Vernant (1979, p.33) que, para o heri, sua prpria existncia humana

    estaria em jogo e assim, o reconhecimento deveria ser de forma absoluta como seu risco, o

    que o conduz inflexibilidade.

    De um lado temos o chefe poltico com suas funes sociais, que Vernant (1979,

    p.41) considera efmero, de outro, a glria e prestgio do heri que morre no combate;

    enquanto um poder derivado do estatuto civil e militar o outro, distante de uma vivncia

    passageira, busca a morte e a imortalidade, ou seja, a imortalidade atravs da morte.

    Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta

    constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens

    celebraro como um modelo de 'glria imorredoura'. O que o heri perde

    em honras prestadas sua pessoa viva, ao renunciar longa vida para

    escolher a pronta morte, ele o torna a ganhar cem vezes mais na glria de

    que fica aureolada, por todos os tempos vindouros, sua personagem de

    defunto. [] Ultrapassar a morte tambm escapar da velhice [] Aos

    olhos dos homens vindouros, cuja memria habitar, ele se acha, pelo

    traspasso, fixado no fulgor de uma juventude definitiva. (VERNANT, 1979,

    p.41-44)

    Essa durabilidade diferencia a figura do heri do guerreiro e homem comuns. A

    distino se encontra nas aes que se tornam proezas heroicas, tanto pelo fato de o heri

    execut-las acima da capacidade humana, quanto por receberem auxlio de seus protetores

    divinos. Atravs dessas aes o heri busca honra e com uma morte honrada (bela morte -

    ), a glria imorredoura, fazendo seu nome permanecer entre as geraes, uma

    vez que, pela morte imposta a todos os mortais, sua ficar no esquecimento.

    Contudo, na Ilada, talvez no fosse correto afirmar que o heri se colocasse em

    risco absoluto, uma vez que a vida humana seria um bem natural e absoluto que no

    encontraria felicidade aps a morte. Dessa forma, esse risco de tornaria nulo, pois no poema

    tudo acorre de acordo com a lgica do mito, ou seja, conforme foi tecido pelo destino.

    Lembrando que o destino da morte se prende a cada um individualmente, Aquiles, que o

    heri exemplar, mais um carter do que uma pessoa, no seria quem nem realizaria suas

    proezas sem sua Moira particular. Ele estava, portanto, enredado pelo destino e sempre esteve

    ciente disso, preferindo uma vida breve a uma longa sem glria.

  • 46

    .

    ,

    ,

    ,

    ,

    , .

    Ttis, a deusa dos ps argentinos, de quem fui nascido,

    j me falou sobre o dplice Fado que Morte h de dar-me:

    se continuar a lutar ao redor da cidade de Troia,

    no voltarei mais ptria, mas glria hei de ter sempiterna;

    se para casa voltar, para o grato torro de nascena,

    da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida mui longa

    conseguirei, sem que o termo da Morte mui cedo me alcance. (Il. IX,410-

    416.Trad. NUNES, 1950)

    Poderamos pensar que a concepo dos deuses exemplifica a impossibilidade de

    perceber as noes de outro modo que no baseado na contraposio, visto as vrias

    limitaes da existncia humana, pois no a mesma raa dos deuses imortais e dos homens

    que caminham sobre a terra. ( /

    . Il. V,441-4422 Trad. LOURENO, 2005), ou os homens que

    comem o fruto da terra lavrada ( Il. VI,142 Trad.

    LOURENO, 2005) e esto submetidos morte ([ ]

    Il. III,322) se opem aos deuses que moram no Olimpo e tm a

    imortalidade.

    Entretanto, o que vemos na obra do poeta uma ligao entre humano e divino de tal

    forma que no poderamos compreend-los separadamente, mas sim como formas

    complementares que se fundam na oposio mortalidade (homens) e imortalidade (deuses).

  • 47

    Os deuses em Homero tm forma, sentimentos e paixes humanas, mas so imortais e

    possuem um poder sobre-humano, que os tornam superiores aos homens em fora, beleza e

    inteligncia.

    Porm, o epteto semelhante aos deuses ( Il. XXIV, 217), aplicado ao

    homem, s vezes, empregado de forma meramente decorativa, aparece, em outras passagens,

    com um sentido mais preciso e atribudo ao heri a quem um deus transmitiu sua fora em

    forma de qualquer qualidade.

    Todas as qualidades que tornam o homem um ser superior provm dos deuses: a

    beleza de Pris ( De nada te

    serviria a lira ou os dons de Afrodite Il. III,54 Trad. LOURENO, 2005), a fora de jax

    ( / ,

    jax, visto que o deus te deu fora e grandeza/ e sensatez, e com a lana s

    o melhor dos Aqueus Il. VII,288 Trad. LOURENO, 2005) ou a de Aquiles (

    , Se s excepcionalmente possante, porque

    um deus tal te concedeu Il. I,178 Trad. LOURENO, 2005), bem como as permanentes no

    homem superior (heri) ou as que, ocasionalmente, um deus infunde em seu favorito, no

    combate.

    Para melhor compreendermos essas relaes de afastamento e aproximao devemos

    buscar entender os homens, na Grcia Antiga, e os deuses, refletindo sobre sua essncia

    divina. Como notamos na frmula homrica os deuses que habitam o Olimpo ou (Zeus

    Olmpio ( - Il. XIII, 58), epteto aplicado a Zeus, a morada dos deuses () -,

    tambm chamados de celestes () - o Olimpo. Esses termos usados para se

    referir aos deuses nos ajudam a definir um de seus aspectos que se contrape condio

    humana, ou seja, a prp