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Considerando que as práticas sociais e as práticas discursivas se entrelaçam, este trabalho visa investigar como o discurso das sentenças judiciais em casos de violência contra a mulher representa e constrói o fenômeno da violência de gênero e a identidade da mulher.
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A Imagem da Mulher no Discurso Jurídico: Um Olhar
Sobre os Processos de Agressão.
Cláudia Madalena FEISTAUER1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Resumo: Considerando que as práticas sociais e as práticas discursivas se entrelaçam, este trabalho visa investigar como o discurso das sentenças judiciais em casos de violência contra a mulher representa e constrói o fenômeno da violência de gênero e a identidade da mulher. Para tanto, serão utilizados os postulados da Análise do Discurso, uma vez que situando a mulher na sociedade não se pode prescindir de uma análise que leve em conta a exterioridade e a historicidade. A mulher na sociedade brasileira vem ao longo dos séculos protagonizando situações de exclusão, discriminação e violência. A imagem da mulher como ser inferior, circunscrita ao espaço do lar com papéis bem determinados: esposa, mãe, “rainha do lar” da qual se espera atitude submissa se consolidou ao longo dos séculos e persiste até os nossos dias. A prática jurídica, como as demais práticas sociais, é uma prática discursiva de poder, relacionada com os conceitos de classe, raça, gênero. Assim, serão analisadas as formações discursivas do discurso jurídico dos processos que relatam agressões contra a mulher buscando-se explicitar os efeitos de sentido presentes no discurso visto que as palavras possuem uma opacidade de sentido que pode e deve ser explicitada. Um dos temas fundamentais em torno das questões teóricas e operacionais da Análise do Discurso são as formações discursivas. Segundo Foucault (1986), uma formação discursiva caracteriza-se por manifestar um conjunto de regularidades de temas, objetos de discurso, conceitos e tipos de enunciação. Numa formação discursiva, esses elementos interrelacionam-se, reconhecem-se, transformam-se e existem condições sob as quais os objetos de discurso são dados a conhecer. Os discursos que circulam veiculam ideologias, isto é, visões de mundo, crenças, formas de pensar sobre o mundo e sobre os homens, que manifestam de maneira mais, ou menos explícita, interesses de variada ordem que dizem respeito aos sujeitos sociais. Palavras-chave: Análise do Discurso, Mulher, Discurso Jurídico.
1 Claúdia Madalena Feistauer é professora de Linguística da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus
XX Brumado, Mestre em Estudos da Linguagem e Doutoranda em Linguística pela PUC-RS
16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher – www.16diasbrumado.blogspot.com Pág. 2
Seus malabarismos mágicos manipulam marionetes Meninas, mães, madres, marquesa e ministras.
Madalenas ou Marias Marinas ou madonas
Elas são manhãs ou madrugadas Mártires ou massacradas
Mas sempre maravilhosas, essas moças melindrosas Mergulham em mares e madrepérolas, em margaridas e miosótis
E são marinheiras e magníficas. Mimam mascotes.
Multiplicam memórias e milhares de mementos. Marcam suas mudanças.
Momentâneas ou milenares, mudas ou murmurantes, Multicoloridas ou Monocromáticas (...)
Merecem o mundo e não migalhas. São monumentos em movimento, esses milhões de mulheres maiúsculas.
Orlandi (2003) define o objeto da Análise do Discurso como o “discurso”. O étimo
do vocábulo discurso dá idéia de curso, percurso, de correr por, de movimento. Como se
fosse um rio, o discurso, dessa forma, remete à circulação de enunciações na sociedade.
Portanto, devem-se considerar os elementos que têm existência no social, assim, podendo
estar relacionado tanto à História quanto à Sociologia, a Análise do Discurso vai buscar, na
verdade, o sentido ou sentidos produzidos pelo sujeito ao elaborar um discurso, as suas
intenções e a forma como é recebido por quem ouve ou lê suas palavras. Por isso Pêcheux
(1969) define discurso como “efeito de sentidos entre interlocutores”.
O elemento essencial para a Análise do Discurso (AD) é o sujeito, pois é a partir
dele que surgem os discursos, embora ele não seja o centro do seu discurso e não tenha
poder de decisão, escolha e estratégias de produção discursiva, na concepção da AD. O
sujeito age como alguém que pensa ter o domínio sobre o que diz, mas na verdade, é o
inconsciente e as ideologias de cada um que determinam os discursos.
Segundo Foucault (1986), os discursos que circulam veiculam ideologias, isto é,
visões de mundo, crenças, formas de pensar sobre o mundo e sobre os homens, que
manifestam de maneira mais, ou menos explícita, interesses de variada ordem que dizem
respeito aos sujeitos sociais.
Sendo a AD um dispositivo privilegiado de análise, o discurso jurídico interessa à AD
já que o Discurso pode ser entendido como a prática social de produção de textos. Isto
significa que todo discurso é uma construção social, não individual, e que só pode ser
analisado considerando seu contexto histórico-social; significa ainda que o discurso reflete
uma visão de mundo determinada, necessariamente, vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à
sociedade em que vive(m).
De acordo com Orlandi (2003, p. 15):
16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher – www.16diasbrumado.blogspot.com Pág. 3
A Análise do Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana.
Partindo do pressuposto de que a linguagem é um instrumento de poder e por meio
dela valores são reforçados ou transformados, através dela são transmitidas as
representações do mundo, de realidade, do/a produtor/a do texto.
Nesse sentido, vale mostrar o poder da linguagem na produção, manutenção e
mudança das relações sociais de poder, demonstrar como por meio da linguagem uns
dominam os outros.
Essa dominação fica evidente nas relações entre homens e mulheres. A mulher
historicamente sofreu um processo de exclusão.
“Estereótipos, preconceitos e discriminações de gênero estão presentes em nossa cultura e profundamente inculcados nas (in)consciências; são, portanto, absorvidos também pelos operadores do Direito e refletidos em sua práxis jurídica” (PIMENTEL, 1998, p. 203).
Os homens constróem o conceito de masculinidade através de crenças culturais
enraizadas na sociedade centralizadas na idéia de como o homem não deve ser: “homem
não pode ser frágil”, “homem não chora”, “homem não fala de sentimentos”, etc. Assim,
eles têm que cumprir uma série de expectativas culturais, que, uma vez incorporadas, os
levam a manifestar o papel de comando que foi determinado para eles.
As mulheres por sua vez, historicamente aprenderam a calar, a não denunciar,
assumindo uma atitude conformista diante do sofrimento. A violência acontece em
escalada e se manifesta com maus-tratos físicos e/ou psicológicos e tem como objetivo
manter o poder e o controle da relação da pessoa violenta sobre a pessoa violentada. A
violência psicológica não deixa marcas aparentes e, portanto, é mais difíciI de ser
detectada. Expressa-se através de reprovações constantes e/ou indiferença. Mas todas
essas manifestações passam uma mensagem de menos valia da mulher e de sua não
legitimação como um ser com vontade própria.
O sistema jurídico reflete a situação de desvalorização da mulher na sociedade
como um todo, e reflete a visão masculina nas relações sociais. O homem sempre exerceu
o papel de dominador e para legitimar sua posição muitas vezes recorre à força física.
É principalmente no espaço doméstico que a violência contra a mulher ocorre, e é
cometida por parceiros, ou outras pessoas com quem as vítimas mantêm relações afetivas
ou íntimas, incluindo filhos, sogros, primos e outros parentes. Ela está intensamente
relacionada aos hábitos, costumes e comportamentos sócio-culturais. De tal maneira que,
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as próprias mulheres encontram dificuldade de romper com situações de violência, e entre
outras coisas, por acreditarem que seus companheiros têm direito de puni-las, se acham
que elas fizeram algo errado ou infringiram as normas que eles determinaram.
De acordo com dados apresentados por Piovesan apud Viola (2006), somente 2% dos
acusados em casos de agressão são condenados. Segundo pesquisa da Human Rights Watch,
a cada cem brasileiras assassinadas, 70 o são no âmbito de suas relações domésticas.
Estudo recente realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo indica
que apenas 10% das vítimas de violência sexual prestam queixa à polícia. Este reduzido
universo revela, de um lado, o desconhecimento de delegacias especializadas e, por outro,
o temor de humilhação e maus-tratos. Os motivos principais da violência, segundo a
pesquisa são o uso do álcool (45%) e o ciúme dos maridos (23%).
Dados da ONU demonstram que a violência doméstica é a principal causa de lesões
em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo, sendo que no Brasil uma a cada quatro
mulheres já foi vítima de violência doméstica. A violência doméstica compromete 14,6% do
Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina e 10,5% do PIB do Brasil.Ainda de acordo
com as mulheres que sofreram agressões, os maridos e companheiros foram os responsáveis
por 87% dos casos de violência doméstica. Em relação ao tipo de violência sofrida, 59%
apontaram a violência física, 11% sofreram violência psicológica e 17% já vivenciaram todos
os tipos de violência. Recentemente foi criada a Lei Maria da Penha que considera cinco
tipos de violência doméstica: a física, a moral, a psicológica, a patrimonial e a sexual. Vale
salientar que, que para 28% das mulheres agredidas a violência doméstica é uma prática
presente que traz uma sombra sobre a tranqüilidade do lar.
O discurso jurídico um discurso produzido na e para a sociedade, como outros
discursos, sofre influência dos acontecimentos sociais. Diante desse quadro, um estudo
sobre o discurso dos processos que contemplam a violência contra a mulher é fecundo.
Com o intuito de ilustrar a questão da imagem da mulher que é construída no discurso
jurídico, serão analisados dois processos de agressão contra mulheres na cidade de Poções
num passado recente (2005). A época dos fatos já denuncia que a violência contra a
mulher persiste como forma de manter o poder e o controle desde tempos imemoriais e
ainda está presente em nossos dias, seja de forma sutil ou explícita como no caso dos
processos.
No primeiro caso relatado, a vítima sofreu agressão física do namorado quando
estava numa boate conforme relato da vítima:
Disse que dia 08, sábado, por volta das 00:30 H a declarante se encontrava na Boate Nova Direção, próximo à Rua Primavera na companhia de uma conhecida por nome Luciana quando ao sair do banheiro se deparou com M. R. S, namorado da declarante, que a puxou
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para um lugar afastado da boate, a derrubou no chão e começou a desferir vários golpes no rosto também tentando estrangulá-la. Que só parou quando viu se aproximar um veículo seguindo com a declarante até uma outra rua onde parou e passou a bater com sua cabeça num poste dizendo “reza que você vai morrer”. Que a declarante passou a gritar por socorro e foi ouvida por um casal que passava. Que correram assim que ouviram o pedido de socorro da declarante, fazendo com que o autor a soltasse. (Termo Circunstanciado nº 379)
Quando interrogado M. R. S, declarou que agrediu L. S. S por desconfiar que a
mesma fazia uso de entorpecentes e que a encontrou com um cigarro de maconha nas
mãos. O mesmo declarou que não faz uso de bebida alcoólica e que nunca foi detido. A
imagem veiculada nesse discurso é de que o agressor é uma pessoa idônea, Já que nunca
foi preso e não usa álcool ou entorpecentes. No entanto, a vítima não foi descrita como
uma pessoa idônea em nenhum momento do processo.
A vítima L. S. S. declarou que o namorado já havia lhe agredido outras vezes.
Percebe-se aí o caso de silêncio. De acordo com Orlandi (1992) há muitas formas de
silêncio; entre elas estão o “silêncio imposto” e o “silêncio proposto”. O imposto
significa exclusão, e é forma de dominação, já o proposto vem do oprimido e representa
uma forma de resistência, e talvez caiba acrescentar que também pode significar uma
forma de defesa ou de auto-proteção. O silêncio de L. S. S. se enquadra no segundo caso.
Fica claro que a vítima calou para se proteger das represálias que possivelmente o
namorado faria caso ela revelasse as agressões. E só revelou por ter sua vida em perigo.
O resultado do processo é que a agressão não foi considerada grave como mostra o
texto do processo, no qual foi exposto que “efetivamente apesar da gravidade do fato,
constatado por registro fotográfico, que não se configura a lesão como grave”. Essa
constatação foi legitimada pelo fato de que no momento do exame de corpo de delito, a
vítima estava “consciente e fisicamente bem”. Como a vítima não se recorda do casal que
presenciou a agressão não houve testemunhas do fato, nas audiências seguintes, ela não
compareceu sendo o caso arquivado.
O outro caso de agressão ocorreu com I. J. S. que recebeu uma pauldada na cabeça
após uma discussão e que recebeu trinta pontos. O acusado V. B. N., que é vizinho e
compadre da vítima, admitiu o fato, mas alegou que a vítima o ofendera com palavras de
baixo calão. Em sua defesa o autor da agressão relatou que foi a primeira vez que a
agrediu que estava arrependido que não faz uso de álcool e entorpecentes. Nesse caso a
vítima não compareceu para o exame de corpo de delito, nem sequer retirou a guia de
encaminhamento. A testemunha do fato, filho do autor, não foi encontrada e após
intimações para audiências, o caso foi arquivado.
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Um ponto de confluência entre os dois é o fato das vítimas conhecerem seus
agressores, dado já constatado em pesquisas. Nos dois casos também à imagem dos
agressores é de homens idôneos, que não usam álcool e entorpecentes.
As vítimas só tem voz nos depoimentos, depois disso, as provas é que falam alto, as
testemunhas é que devem ser ouvidas. A figura da personagem principal – a mulher
agredida fica apagada. Pode-se depreender pelo discurso dos processos especialmente no
primeiro que a mulher está numa posição de pouca importância.
A estrutura material da língua permite que “sempre sob as palavras, outras
palavras [sejam] ditas” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28). Nesse sentido, as outras palavras
remetem à supremacia da força masculina que atinge mulheres de diferentes culturas,
raças, etnias, classes sociais.
Considerações Finais
Os discursos que circulam na sociedade veiculam ideologias, isto é, visões de
mundo, crenças, formas de pensar sobre o mundo e sobre os homens, que manifestam de
maneira mais, ou menos explícita, interesses de variada ordem que dizem respeito aos
sujeitos sociais.
O discurso jurídico também nutre as distinções de gênero. Os agentes jurídicos que
avaliam comportamentos sociais penalizam ou não certas condutas. A prática jurídica
responde às acusações de determinadas vítimas e não de outras.
Nos casos de violência contra a mulher observa-se que mesmo com o ordenamento
jurídico da Constituição Federal de 1988 que determina que todos são iguais perante a lei
na prática vê-se que a interpretação da lei está permeada pela subjetividade e por isso
muitas vezes há um deslocamento do direito a partir da ideologia à qual o jurista está
vinculado.
As vozes de mulheres que sofrem violência ressoam forte na sociedade mas seus
clamores não são ouvidos. São mulheres que sentem-se impotentes para reagir e
submetem-se às pressões externas que se expressam, principalmente, por meio de crenças
culturais e familiares. É nesse cenário que emerge o silêncio descrito por Orlandi. Para
Orlandi (1992), o silêncio o proposto produz uma ruptura desejada por ambos os lados, o
do opressor e o do oprimido.
Pode-se observar que a legitimidade do discurso sobre a mulher, veiculado nos
processos analisados adquire efeitos de sentido a partir de outros discursos que circulam
em sociedade e com os quais constitui laços, discursos esses que estabelecem alguns
papéis sociais que as mulheres deveriam ocupar.
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É preciso que esses discursos que aprisionam os indivíduos em comportamentos
baseados nas noções estereotipadas de gênero sejam desconstruídos para homens e
mulheres tenham uma nova visão do seu papel no mundo e das relações no processo de
construção de uma vida digna de ser vivida.
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Referências:
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Nº 19. Campinas: UNICAMPE, jul/dez, 1990.
FOUCAUL T, M. Formações discursivas e Formações de Objeto. Arqueologia do Saber. São
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08.10.2007.
ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes,
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Ed. Da Unicamp, 1992.
PIMENTEL et alii. Crime ou cortesia? Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: Uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
EDUNICAMP, 1997.
VIOLA Denise. Repúdio e Indignação à Violência Contra a Mulher em Guaianases, São
Paulo. Disponível no site: http://www.cemina.org.br. 5/8/2005. Acesso em 08.10.2007.