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Uni versi dade de São Paul o Fac ul dade de Fil osofi a, Let ras e C i ênci as Hu manas De part a me nt o de Let ras Mo dernas Progra ma de Pós- graduação e m Lí ngua e Li terat ura A le mã JÚLI O SATO A i magem e a pal avra e m Handke e W enders v. 01 São Paul o 2009

A imagem e a palavra em Handke e Wenders - USP · (código não verbal) e palavra (código verbal) na literatura e no cinema alemães, através de um recorte que resulta em obras

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Uni versi dade de São Paulo

Facul dade de Fil osofi a, Letras e Ci ênci as Hu manas

Departa ment o de Letras Mo dernas

Progra ma de Pós-graduação e m Lí ngua e Literat ura Al e mã

J ÚLI O SATO

A i mage m e a palavra e m Handke e Wenders

v. 01

São Paul o

2009

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Uni versi dade de São Paulo

Facul dade de Fil osofi a, Letras e Ci ênci as Hu manas

Departa ment o de Letras Mo dernas

Progra ma de Pós-graduação e m Lí ngua e Literat ura Al e mã

A I MAGE M E A PALAVRA EM HANDKE E WENDERS

Júli o Sato

Di ssertação apresent ada ao Pr ogra ma de Pós-

graduação e m Lí ngua e Literat ura Al e mã do

Departa ment o de Letras Modernas da Facul dade de

Fil osofia, Letras e Ci ênci as Hu manas da

Uni versi dade de São Paul o, para a obt enção do

títul o de Mestre e m Letras,

Ori ent adora: Profa. Dra. Claudi a S. Dornbusch.

v. 01

São Paul o

Junho de 2009

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Aos meus pais.

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AGRADECI MENTOS

À Pr ofa. Dra. Cl audi a Dor nbusch agradeço pel a di sponi bili dade, orient ação e bom hu mor

para encarar esse desafi o.

Pel as i dei as funda ment ais tant o para este trabal ho, quant o para fut uros estudos agradeço a

todos os professores que cruzara m meu ca mi nho, dentre eles a Profa. Dra. Mari a Cristi na

de Carval ho Costa, o Prof. Dr. Maur o Wilt on, o Pr of. Dr. Is mail Xavi er, da ECA, com os

quais frequent ei cursos dos progra mas de pós-graduação; o Prof. Dr. Hel mut Galle e a

Pr ofa. Dra. Aur ora Bernardi ni, da FFLCH, que partici para m de mi nha banca de

qualificação com vali osos direci ona ment os; a Profa. Dra. Rose Hi kiji, da Antropol ogi a,

pel a medi ação no EPOG e suas i ndicações de bibli ografia; e a Profa. Celeste Ri beiro de

Sousa pel os text os sobre Handke e conversas na ABRALI C.

À col ega de orient ação de mestrado, companheira de percurso nos est udos da pós-

graduação e grande a mi ga, Elisandra de Sousa Pedro, por t odos os mo ment os de aj uda, e

pel as vali osas opi ni ões.

Ao Gueber de Oli veira, pel a paci ênci a e por estar se mpre ao meu lado.

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RESUMO

Est a dissertação é frut o da pesquisa i nterdisci plinar acerca da coocorrênci a de i mage m

(códi go não verbal) e palavra (códi go verbal) na literat ura e no ci ne ma al emães, através de

u m recorte que resulta em obras de um ci neasta e um escrit or de língua alemã específicos.

Di scut o i nicial ment e al gu mas teorias que pode m lançar al guma l uz sobre o par pal avra-

i mage m. Post eri or ment e verifico o probl e ma da coocorrência a partir das obras escol hi das e

sua análise. Lanço um olhar sobre um fenômeno particul ar para encontrar nel e aquil o que é

geral no que di z respeit o ao uso da pal avra e da image m na obra de art e e na comuni cação,

passando pel a questão da facul dade poética que resi de, pot encial, em cada at o de li nguage m,

e m cada criação i magética ou li nguística, de qual quer manifestação hu mana de

comuni cação.

PALAVRAS- CHAVE: literat ura e ci ne ma, pal avra e i mage m, si gnos, Wenders, Handke.

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ABSTRACT

Thi s dissertati on is resultant of an i nterdisci pli nary research on co-occurrence of i mage

(non verbal code) and wor d (verbal code) i n Ger man literat ure and cine ma, consi dered

through t he anal ysis of two specific Ger man speaki ng aut hors: a writer and a fil mmaker.

Initiall y I discuss some theories t hat may shed some li ght on t he wor d-i mage questi on.

Then I verify t he proble m of t he co-occurrence based on t he selected wor ks and t heir

anal ysis. I put an eye on t he particul ar pheno menon i n order t o search for what is general i n

what ever concerns t he use of wor d and i mage i n the wor k of art and i n t he communi cati on,

goi ng t hrough t he question of t he poetic facult y that resi des, potentiall y, in each language

act, in each i magetic or linguistic creati on, i n any hu man communi cati on manifestati on.

KEY- WORDS: literat ure and ci ne ma, wor d and image, si gns, Handke, Wenders.

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ZUSAMMENFASSUNG

Di ese Ar beit ist Resultat ei ner i nterdiszi pli nären Forschung über di e Koexistenz von Bil d

(nonverbal e Sprache) und Wort (verbal e Sprache) in der Literat ur und i m Fil m, durch ei nen

spezifischen Ausschnitt von de m Wer k ei nes Schriftstellers und ei nes Fil me machers. Ich

erörtere anfangs ei ni ge Theorien, die et was Li cht auf das Paar Wort- Bild werfen können.

Danach diskutiere ich das Probl e m di eser Koexistenz aufgrund der ausge wählt en Wer ke

und i hre Anal ysen. Ich werfe ei nen Blick auf das spezifische Phäno men, um i n ihm et was

Al l ge mei nes in Beziehung auf die Anwendung von Bil d und Wort i m Kunst wer k und i n

der Ko mmuni kati on herauszufi nden, durch di e Frage der poetischen Eingenschaft, di e

pot entiell in jede m Sprechakt, in jeder bil dlichen oder li nguistischen Schöpf ung, i n jeder

menschlichen Ko mmunkati onsäußerung liegt.

SCHLÜSSEL WÖRTER: Literat ur und Fil m, Wort und Bil d, Zeichen, Handke, Wenders.

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Ich weiss jetzt,

was kei n Engel weiss.

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SUMÁRI O

PARTE 1 -- O RASCUNHO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

O ca mi nho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

Poe ma e fil me: o tema e sua j ustificati va . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

PARTE 2 -- O ESCRI TO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

I. LI TERATURA E CI NEMA, PALAVRA E I MAGE M:

À guisa de um ‘ ‘estado da arte’ ’ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

II. I NFÂNCI A

Al gumas consi derações acerca de textos de Peter Handke . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

a) A escrita da infânci a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

b) Poética ci ne mat ográfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

c) Canção do Ser- Cri ança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

III. O CÉU DE BERLI M E AS ASAS DO DESEJ O

Al gumas consi derações acerca de fil mes de Wi m Wenders . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

a) Berli m, 1987 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

b) O at o de ol har e o ser-criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

c) Da mi el e Mari on: sonho e reali dade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

d) Hu mani zação e cores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

PARTE 3 -- POST SCRI PTUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

I V. PALAVRA E I MAGE M: CONSI DERAÇÕES FI NAI S . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

BI BLI OGRAFI A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126

a) Li vros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126

b) Sit es da Internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134

c) Fil mes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134

Apêndi ce 1: Poe ma Li ed vo m Ki ndsei n . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138

Apêndi ce 2: Conversa entre os anjos Da mi el e Cassiel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

Apêndi ce 3: Outros poe mas -- Fal as da personage m Ho mer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Apêndi ce 4: Poe ma que i nicia o fil me A not ebook on clot hes and cities (1989) . . . . . . . . 144

Apêndi ce 5: Gl ossári o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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Í NDI CE DE FI GURAS

Fi gura 1 -- ‘ ‘ Mi nha mul her e mi nha sogra’ ’, do caricat urista W. E. Hill, 1915. Repr oduzi do e m

MONACO, Ja mes. Fil m verstehen. Ha mbur g: Rowohl t Taschenbuch Verlag, 1999. (p. 155) . . 29

Fi gura 2 -- 1ª cena de Asas do Desej o, no pri meiro segundo do fil me . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Fi gura 3 -- Crédit os i niciais do fil me Asas do desej o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

Fi gura 4 -- Crédit os i niciais do fil me Asas do desej o (cont.) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

Fi gura 5 -- Crédit os i niciais do fil me Asas do desej o (cont.) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

Fi gura 6 -- Crédit os i niciais do fil me (conti nuação) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

Fi gura 7 -- 1ª cena após os crédit os i niciais: nuvens (ângul o de bai xo para ci ma) . . . . . . . . . . 99

Fi gura 8 -- 2ª cena após crédit os i niciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

Fi gura 9 -- To mada aérea de Berli m, ângul o de ci ma para bai xo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

Fi gura 10 -- To mada aérea de Berli m, ângul o de ci ma para bai xo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

Fi gura 11 -- To mada aérea de Berli m, ângul o de ci ma para bai xo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

Fi gura 12 -- Mãe aj uda sua filha parapl égi ca a se vestir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 13 -- Em contraca mpo, o anj o Da mi el é vist o pela meni na . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 14 -- Novo contracampo para evi denci ar o contat o visual entre criança e anjo . . . . . . 101

Fi gura 15 -- Câ mera subj etiva (ol har de Da mi el, vendo os bri nquedos) . . . . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 16 -- Câ mera conti nua segui ndo os bri nquedos todos enfileirados . . . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 17 -- Câ mera conti nua segui ndo a fileira de brinquedos, expandi ndo . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 18 -- Câ mera mostra onde a fileira suposta mente ter mi na . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 19 -- Câ mera conti nua a direção apont ada pela fileira de bri nquedos: janela . . . . . . . . 101

Fi gura 20 -- Já e m outra posição, câ mera focaliza a janela e o ext eri or del a . . . . . . . . . . . . 101

Fi gura 21 -- Corte para t omada ext erna aérea (sai ndo pel a janel a pel o ar livre) . . . . . . . . . . 101

Fi gura 22 -- Os anj os Da miel ( Bruno Ganz) e Cassiel ( Ott o Sanders) conversa m no i nt eri or de um

carro, numa l oja de veícul os . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Fi gura 23 -- Da mi el na Bi blioteca Naci onal de Berli m . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Fi gura 24 -- Corte para o i nteri or do circo: personage m Mari on pendura-se no trapézi o . . . . . 104

Fi gura 25 -- Mari on fazendo acrobaci as . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

Fi gura 26 -- Da mi el enxerga Mari on e m cores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

Fi gura 27 -- Da mi el enxerga Mari on e m cores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

Fi gura 28 -- Da mi el enxerga Mari on e m cores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

Fi gura 29 -- Contraca mpo para Da mi el . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

Fi gura 30 -- Mari on dor mi ndo e m seu trailer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Fi gura 31 -- Mari on e m estado pré-hi pnagógi co . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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Fi gura 32 -- Sonho de Marion: anj o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Fi gura 33 -- Contraca mpo: corte para Mari on . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Fi gura 34 -- Da mi el ador mece sobre Mari on . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Fi gura 35 -- Da mi el e Marion se dão as mãos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

Fi gura 36 -- Mur o de Berlim, lado oci dent al. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 37 -- Da mi el acorda porque sua ar madura de anjo cai-l he sobre a cabeça. . . . . . . . . . 109

Fi gura 38 -- Da mi el vê que est á sendo observado por crianças. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 39 -- Contraca mpo para evi denci ar que as crianças estão vendo Da mi el caí do no chão. . 109

Fi gura 40 -- Da mi el passa a mão na cabeça, not a que a mes ma sangra, e vê o sangue e m sua mão.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 41 -- Da mi el experiment a o sabor do sangue. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 42 -- Da mi el pergunta os nomes das cores a um passant e. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 43 -- Da mi el experiment a um café, que comprou com um trocado que ganhou do passant e.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 44 -- Da mi el mostra-se feliz por experi ment ar estas sensações. . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 45 -- Da mi el experiment a um ci garro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

Fi gura 46 -- I mage m da estátua do anj o. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

Fi gura 47 -- Mari on fazendo acrobaci as pendurada a uma corda. Ao fundo, a asa do anj o através da

vi draça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

Fi gura 48 -- Mari on e m acrobaci as. Ao fundo, o anj o Cassiel (e m branco e pret o). . . . . . . . . 111

Fi gura 49 -- Da mi el bal ança a corda à qual Mari on está pendurada. . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

Fi gura 50 -- Sombra de Mari on sobre a parede, proj etada j usta ment e onde há uma pi nt ura de um

casal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

Fi gura 51 -- Mão de Da mi el escrevendo o poe ma, tal qual acontece no i níci o do filme. . . . . . 111

Fi gura 52 -- Enquant o ouvimos a voz de Da mi el, pode mos ver sua mão escrevendo aquil o que el e

est á dizendo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

Fi gura 53 -- Já se m a mão sobre as palavras, pode mos ler o fi m do poe ma, com u m si gnificati vo

pont o fi nal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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PARTE 1 -- O RASCUNHO

Uma breve apresent ação

Farei ent ão pel o menos três hist óri as, verdadeiras, porque nenhuma del as

ment e a outra. Embora uma úni ca, seri am mil e uma, se mil e uma noite

me desse m.

Cl arice Lispect or -- A Qui nta Hi st ória

Quando este trabal ho teve i níci o, ai nda ant es do meu i ngresso no programa de pós-

graduação e m Letras, nas conversas preli mi nares com mi nha orient adora, pensa mos j unt os

sobre um t e ma que não apenas esti vesse de acor do com a li nha de pesquisa à qual eu

oficial ment e me afiliaria -- no caso de ser aprovado nas fases de sel eção para o curso --

como ta mbé m quería mos que o objet o fosse como deve ser o de qual quer pesquisador:

apai xonant e.

Pai xão si gnifica, a um só te mpo, a mor, apego, ad mi ração, mas ta mbé m sofri ment o,

entrega e dedi cação. Desta segunda acepção se pode m citar como exempl os os ter mos

‘ ‘Pai xão de Crist o’ ’ e ‘ ‘Os sofri ment os do j ove m Wert her’ ’ (‘ ‘ Die Leiden des j ungen

Wert hers’ ’).

O obj et o escol hi do é múltipl o (porque i ncl ui um fil me e um poe ma),

consequent e ment e cont ém diferentes aprofundament os possí veis, os quais poderia m t er

si do levados a cabo, como diz Cl arice, e m mais projet os, em outros est udos, e m mil e uma

noites. Um recorte, no entant o, faz-se necessári o.

Chega mos, ent ão, a uma obra que são duas. O fil me Asas do Desej o e o poe ma

Canção do Ser- Cri ança são uma obra dupl a e m vári os senti dos: é um fil me e um poe ma; é

al e mão, mas di al oga com o mundo; te m pal avras, mas ta mbé m t e m i magens; é um obj et o

de est udos, mas també m se transfor mou numa paixão.

A seguir, um pouco deste est udo e dest a pai xão, rel atados ora cronol ogi cament e ora

at endendo a outras l ógi cas.

E que as mi nhas pal avras consi ga m ser i magens.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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O cami nho

No que tange a met odologi a, Déci o Vi eira Sal omon cl assifica a pesquisa científica

apenas entre e mpírica e não e mpírica. Est a últi ma, segundo o aut or, é a que se dá

‘ ‘predomi nant e ment e pelo processo deduti vo, por não ter a possi bili dade de verificação

e mpírica, recorrendo por isso à de monstração’ ’. A pri meira, por sua vez, ‘ ‘de manda o

mét odo i nduti vo: experiment o, observação de campo, survey etc.’ ’ (SALOMON, 2001: 300)

Ao separar as pesquisas apenas nestes dois tipos, Sal omon está col ocando nas do

tipo e mpírico os est udos sobret udo das ciênci as exat as e bi ol ógi cas, que necessita m, de fat o,

dest e ti po de abordage m.

A present e dissertação, por esse vi és, estaria necessaria ment e classificada no ti po

não e mpírico, pois pretende de monstrar aconteci ment os através de bibliografi a e de

i magens.

Por outro lado, esta de monstração de i magens ocorrerá na relação del as co m o fat o

e mpírico da obra de arte. Assi m, o que real ment e dará a t ônica deste est udo é uma mescl a

entre as duas classificações de Sal omon, mes mo que, ça va sans dire, predomi nando a

met odol ogi a não e mpírica sobre a e mpírica.

Já de acordo com Charles Peirce, a pesquisa e os mét odos de raci ocí ni o se di vi de m

e m dedução, i ndução, retrodução e anal ogi a (PEI RCE, 2005: 5-6). A pri meira é aquel a e m

que relações não expli cita ment e menci onadas são trazi das à t ona através do exa me de um

estado de coisas. A segunda, també m cha mada de i nferênci a, é aquela e m que parti mos das

concl usões acerca de um dado particul ar para uma assunção de orde m geral. A terceira é a

adoção provisória de u ma hi pót ese e m virt ude de sere m passí veis de verificação

experi ment al todas suas possí veis consequênci as, de tal modo que se pode esperar que a

persistênci a na aplicação do mes mo mét odo acabe por revel ar seu desacordo com os fat os,

se desacordo houver. E, por últi mo, a anal ogi a é a i nferênci a de que, nu m conj unt o não

muit o ext enso de obj et os, se estes estão e m concordância sob vári os aspectos, pode m muit o

pr ovavel ment e estar e m concordânci a ta mbé m sob um outro aspect o.

Se adot ar mos a classificação de Peirce, ent ão a present e pesquisa segue o mét odo

deduti vo de raci ocí ni o, pois partirá de um di agra ma, de uma descrição de um est ado de

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coisas como el e se dá, nas obras escol hi das e, a partir dest a descrição, a partir dest e

di agra ma, terá o objeti vo de deduzir concl usões.

Por fi m, segundo a tipol ogi a de abordagens met odol ógi cas de Elisabete Ada mi

Pereira dos Sant os, este trabal ho ta mbé m é consi derado deduti vo e se enquadra entre as

pesquisas dos ti pos descriti vo, document al, bi bliográfico e de est udo de caso (SANTOS,

2008) pois, confor me expost o aci ma, pretende-se exa mi nar a bi bli ografia a respeit o do

assunt o, aplicar conceit os funda ment ais ao caso de obras específicas e verificar possí veis

concl usões.

Assi m, o que ocorre na prática é que basica ment e di vi di o trabal ho três partes.

A pri meira del as -- O Rascunho -- é a i ntrodução que ora se apresent a, di vida entre

met odol ogi a (‘ ‘O ca mi nho’ ’) e explicações sobre o te ma e sua justificati va (‘ ‘Poe ma e

fil me’ ’).

A segunda parte -- O Escrit o -- entra na pesquisa propria ment e dita e di vide-se e m

três capít ul os, sendo o pri meiro del es teórico e os dois subsequent es de nat ureza prática.

No capít ul o teórico, trato daquil o que encontrei como sendo uma f ortuna critica, ora

identificando- me ora distanci ando- me de aut ores e teóricos com cuj os text os eu ti ve cont at o.

Reflit o sobre este st ate of art do meu obj et o e valho- me daquil o que acho mai s proveit oso

(por que este e não aquel e, critéri os de escol ha etc. estão det al hados no capít ul o

concernent e). Al é m da revisão da f ort una, outro obj eti vo deste capít ulo é traçar uma

teorização que nos aj udará sobret udo nos capít ulos práticos, posteri ores. É uma i ntrodução

ao te ma.

Em segui da, ai nda na segunda parte, há dois capítul os práticos. No pri meiro del es,

trat o da literat ura de Pet er Handke, não me prendendo excl usi va ment e ao poe ma específico

do recorte dado a este trabal ho. Anal oga ment e, no segundo destes capítul os da segunda

parte, introduzo i nfor mações sobre Wi m Wenders e sobre seu ci ne ma, focando bast ant e no

fil me específico do recorte, mas não reduzi ndo a análise apenas a ele. Dest es dois capít ul os,

sobressae m el e ment os que serão mais i mportantes adi ant e. Ou sej a, estes dois capít ul os,

que poderia m t er si do apenas as análises das obras, ant eci pa m opi ni ões e acha ment os que

serão út eis para a concl usão.

Na terceira e últi ma parte, apresent o o últi mo capít ul o, que concl uo as reflexões

teóricas e onde coment o mi nhas reflexões e concl usões sobre a mbos, literat ura e ci ne ma,

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pal avra e i mage m, Handke e Wenders, o fil me e o poe ma, e apresent o uma possí vel i dei a

de como encarar a coocorrência do códi go verbal e do não-verbal na obra de arte

multi mi diática.

Poe ma e fil me: o te ma e sua j ustificativa

A literat ura e o ci ne ma são disti nt os, poré m semel hant es, são arte, mas ta mbé m

técni ca. Nós nos proj etamos naquil o que le mos e ta mbé m naquil o a que assisti mos. Será

que o faze mos de maneira i gual nos dois casos? E quando as duas coisas ocorre m

si multanea ment e? Aqui va mos expl orar o processo pel o qual passa m essa proj eção, essa

percepção e essa aprendi zage m. O est udo se apoi a no bi nômi o da teoria (est udo dos

teóricos da literat ura e dos est udi osos do ci ne ma) e da prática (de monstração através de

obras), fazendo um recorte específico de um filme e de um poe ma que, confor me será

explicado no próxi mo item, exe mplifica m a questão que quero abordar.

Muit os est udos a respeito de literat ura e ci ne ma pr ocura m estabel ecer relações entre

u ma obra de ori ge m e sua realização e m outro meio ( medi um).

Por um l ado, temos um ‘ ‘movi ment o’ ’ parti ndo da literat ura rumo ao cine ma, por

outro, temos o contrário. Naquel e, obras literárias ganha m ‘ ‘adapt ação’ ’ na tela grande,

nesse o ci ne ma i nspira escrit ores a criare m li vros.

No movi ment o da literatura rumo ao ci ne ma, pode mos le mbrar que tant o há li vros

que apenas ‘ ‘inspirara m’ ’ fil mes como ta mbé m há li vros que fora m ‘ ‘adapt ados’ ’ para se

tornare m fil mes.

Um exe mpl o de ‘ ‘inspiração’ ’ é o fil me Movi mento em Falso ( Falsche Bewegung) de

1975,, do diret or Wi m We nders, cuj o roteiro foi escrit o por Pet er Handke, que se baseou,

por sua vez, no romance Os anos de aprendizagem de Wil hel m Mei ster (Wi l hel m Mei st ers

Lehrj ahre) (1795/ 96), de Goet he. Não se trata de u ma ‘ ‘tent ativa’ ’ de transpor para o mundo

das i magens uma narrativa feita ori gi nal ment e co m palavras, mas, ant es, é um fil me que,

di ga mos, ‘ ‘bebeu na fonte’ ’ da literat ura, e que se pretendeu ori gi nal desde sua concepção

pel o aut or.

Já um exe mpl o de ‘ ‘adaptação’ ’, para ficar mos ai nda com o mes mo ci neasta, é o caso

de A Letra Escarl at e (The Scarl et Letter), romance de Nat hani el Ha wt hor ne, ‘ ‘adapt ado’ ’

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també m por Wi m Wenders e m seu fil me homônimo A Letra Escarl at e ( Der scharl achrot e

Buchst abe).

O movi ment o inverso -- do ci ne ma para a literatura -- tem menos exe mpl os, mas

pode mos citar dois casos que vê m à me mória: O Pequeno Di ci onári o Amoroso, fil me da

ci neasta brasileira Sandra Wer neck, do ano de 1996, e livro homôni mo baseado no fil me,

de 1997, escrit o por José Robert o Torero; também pode mos nos le mbrar de 2001, A Space

Odi ssey, fil me do diretor norte-a meri cano St anl ey Kubri ck, do ano de 1968, e li vro

ho môni mo publicado no mes mo ano, escrit o por Art hur C. Cl arke (que escreveu o rot eiro

e m conj unt o com Kubri ck).

Pet er Zi ma (1995) organiza este tipo de infl uências que se realiza m entre literat ura e

ci ne ma e m dois ní veis princi pais, que se subdi vi de m e m três ti pos cada. No pri meiro ní vel

estão os ti pos de text o: Texte f ür Fil me (text os que eu cha mo de pré-fíl mi cos: fora m cri ados

se m a i ntenção de um dia sere m ‘ ‘adapt ados’ ’ ou de servire m de ‘ ‘inspiração’ ’ para fil mes);

Text e zu Fil men (text os també m pré-fíl mi cos, isto é, obras ta mbé m escritas, mas estas já

com a i ntenção de servire m de base para fil mes, como os roteiros, por exe mpl o, ou mes mo

romances que são escrit os já com i nt enção de uma fut ura ‘ ‘adapt ação fíl mi ca’ ’); e Text e über

Fil me (text os que eu cha mo de pós-fíl mi cos, sobret udo de crítica ou de ensaística sobre

ci ne ma). O segundo ní vel cont é m os segui nt es ti pos de obras: literarische Fil me (ao pé da

letra, fil mes literári os, isto é, fil mes realizados de uma for ma especi al da ‘ ‘adapt ação’ ’ de

obras literárias ou dra máticas); fil mische Literat ur (ao pé da letra, literat ura fíl mi ca, isto é,

ci ne ma baseado e m literat ura e/ ou teatro); e wechselseiti ge Ei nfl üsse z wischen Literat ur,

Theat er, Fil m (ao pé da letra, infl uência mút ua entre literat ura, teatro e ci ne ma, o que

confi gura a i nterse mi oticidade t ot al de uma obra).

De qual quer maneira, tant o no movi ment o da literat ura para o ci ne ma, quant o no

movi ment o contrári o, o que muit o se discut e é a quest ão da ‘ ‘fideli dade ou i nfi deli dade’ ’ da

‘ ‘adaptação’ ’, pal avra que será utilizada entre aspas, já que quando usamos este ter mo,

esta mos ta mbé m di zendo que houve uma ‘ ‘tradução’ ’ de um mei o ( medi um) para outro, e,

como t odos sabe mos, uma tradução se mpre é uma criação de al go novo ( mes mo quando o

pont o de ori ge m e o de desti no se l ocaliza m dentro do mes mo códi go ou do mes mo medi um,

como é o caso da tradução de um romance ou poe ma de uma lí ngua para outra, do al e mão

para o port uguês, por exempl o).

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Di t o isso, fica mais fácil explicar o te ma dest e trabal ho, já que não se trata ne m de

u m ‘ ‘ movi ment o’ ’ da literat ura rumo ao ci ne ma, ne m do i nverso. Ant es, o te ma dest a

pesquisa de mestrado é a construção de si gnificado através do uso da palavra (e m senti do

lat o, isto é, o λόγος [l ogos]) e m conj unt o com a i mage m visual (είκων [ícone]). Dit o de

outro modo: exa mi no a construção do si gnificado quando ela ocorre não apenas através da

literat ura e não apenas através do ci ne ma, mas si m na j unção dessas duas artes e dessas

duas técni cas, levando-se e m consi deração suas especifici dades, suas diferenças e suas

se mel hanças.

Se quiser mos estabel ecer uma pergunt a de pesquisa, ela seria especifica ment e a

segui nt e: ‘ ‘Como a pal avra e a i mage m constroe m si gnificado quando ocorre m j unt as?’ ’

Responder a esta pergunt a é i mportante porque, como diz Anat ol Rosenfel d

(1994: 17), ‘ ‘a maneira pel a qual é comuni cado um mundo i magi nári o pressupõe cert a

atit ude e m face deste mundo ou, contraria ment e, a atit ude expri me-se e m certa maneira de

comuni car’ ’ (grifo meu).

O aut or acrescent a que ‘ ‘nos [diferentes] gêneros [literári os], manifest am- se, se m

dúvi da, tipos di versos de i magi nári os e de atit udes e m face do mundo’ ’. Pode-se pensar que

també m é assi m nos diferentes mei os ( media) e m que os mundos i magi nári os são

comuni cados.

Para responder a esta pergunt a, o obj et o de estudo será uma obra que, como se

menci onou antes, ao mes mo te mpo, são duas: trata-se do fil me Asas do Desej o ( Der

Hi mmel über Berli n) do ci neasta e diret or ale mão Wi m Wenders, do ano de 1987; e do

poe ma Li ed vom Ki ndsein (que não foi traduzi do para o port uguês, ne m mes mo publicado

e m sua própria língua, mas que traduzire mos aqui como Canção do Ser- Criança) do poet a,

escrit or e dra mat urgo austríaco Pet er Handke. O poe ma ‘ ‘aparece’ ’ dentro do fil me. Est a

coocorrência é o objet o deste est udo.

No ent ant o, ant es de entrar mos na análise propria ment e dita, faz-se necessári o

levant ar al gumas quest ões preli mi nares, tais como:

‘ ‘O ci ne ma que, por nat ureza é uma li nguage m multicódi go, teria se mpre dentro de

si o ger me da literat ura? Em caso afir mati vo, uma discussão sobre as diferenças e

se mel hanças entre literatura e ci ne ma é i nócua?’ ’

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‘ ‘Existe a classificação de gêneros de ci ne ma ( western, comédi a, ação, ficção

ci entífica, romance, policial, suspense etc.). Pode mos encontrar i nfl uênci a de gêner os

‘literári os’ no ci ne ma, por exe mpl o, especifica ment e da poesia, ou então da prosa et c. ? Em

outras pal avras: existe um ci ne ma- prosa, um ci nema- poesi a?’ ’

Tai s quest ões se j ustificam, uma vez que, para analisar mos uma obra literária e uma

obra ci ne mat ográfica, precisa mos entender quais as diferenças e se mel hanças entre elas.

Al é m disso, outra razão para estas pergunt as é o fat o de que a obra literária present e

no fil me não é e m prosa, ou uma peça de teatro fil mada, mas si m um poema, ou sej a, uma

obra do gênero poético ou lírico, em sua coocorrência com uma obra dra máti co-narrati va

ou, se quiser mos, apenas narrativa (o fil me). Haverá um moti vo para esta escol ha por part e

dos aut ores? Est a escol ha estará li gada aos gêneros1

?

A hi pót ese é a de que não tenha si do ocasi onal esta escol ha por gênero lírico,

sobret udo e m sua forma escrita, forte ment e present e numa obra que, por ser

ci ne mat ográfica, poderia ter escol hi do não se val er del a.

E, sobret udo, a hi pót ese també m é a de que esta escol ha por poesia e escrita não as

confi gure como si mpl es el e ment os fíl mi cos, isto é, como mer os coadj uvant es com funções

específicas na narrativa, assi m como a de que esta escol ha por poesi a e escrita se deva ao

fat o de que elas são códigos, são medi a, mas ta mbé m são arte.

O fil me e o poe ma analisados neste trabal ho são exe mpl ares, embl e máticos no que

di z respeit o a esse processo de coocorrência (literat ura e ci ne ma ocorrendo não como um

e m direção ao outro, não um servi ndo de base ou i nspiração para o outro, servi ndo de

ori ge m para uma adaptação a um desti no, mas si m ocorrendo concomi t ant e ment e) e,

portant o, confi gura m o obj et o ideal para esta pesquisa.

Co mo vere mos no próxi mo capít ul o, muit os trabal hos versa m sobre adapt ação,

outros sobre al go que uma obra te m e m comum co m a outra, quando ambas est ão e m

diferentes medi a, assi m como há ta mbé m est udos acerca de λόγος e είκων, mas e m sua

mai oria, senão e m sua t otali dade, se mpre abordando a comparação, não a coocorrência.

1

Quando menci ono ‘ ‘gêneros literári os’ ’ est ou me referi ndo à ti pol ogi a de Anat ol Rosenfeld que, por sua vez,

é herdeira da classificação clássi ca arist ot élica, ou sej a, a di visão entre gênero lírico, gênero épi co e gênero

dra máti co. Não est ou, portanto, fazendo referênci a à ti pificação das for mas literárias (que al gu mas corrent es

cha ma m de gêneros, e m vez de for mas), sej a m elas o sonet o, a canção, o romance, o cont o, a crôni ca, a

novel a, a peça teatral etc. Sobre a classificação aqui usada, ver pri nci pal ment e o pri meiro capít ul o de

ROSENFELD, Anat ol. O teatro épi co. São Paul o: Perspectiva, 1994.

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Do pont o de vista das pesquisas feitas no Brasil, penso que este trabal ho sej a uma

contri buição ori gi nal aos est udos interdisci pli nares na área de Lí ngua e Literat ura Al e mã,

especi al ment e quando as duas disci pli nas seja m cine ma e literat ura.

Igual ment e, a lírica, pouco trabal hada e m rel ação à sua int erdisci pli nari dade com o

ci ne ma, será abordada de maneira aqui não menos ori gi nal.

No que di z respeit o à obra literária est udada, isto é, a de Pet er Handke, este trabal ho

é i mport ante no senti do da di vul gação de sua relevânci a poética, já que mui t o do que te mos

dest e aut or e m traduções brasileiras são as suas peças de teatro, tais como Insult o ao

público (peça de 1966), A hora em que não sabí amos nada uns sobre os outros (peça ‘ ‘não

falada’ ’, de 1966) entre tant as outras; e as narrativas de mai or popul ari dade no mundo t odo,

tais como Os vespões de 1966 (romance sobre o qual há uma dissertação de mestrado de

1985, també m defendi da e m Lí ngua e Literat ura Alemã, na USP), A mul her canhot a (1976),

Breve cart a para um l ongo adeus (19723), A ausênci a (1987), A repetição (1986), entre

outros; sendo quase nul a até hoje a crítica acerca da lírica de Handke, que está e m li vros

como Der Rand der Wörter de 1968 (cuj a tradução poderia ser ‘ ‘A mar ge m das pal avras’ ’) e

Innenwelt der Außenwel t der Innenwelt de 1969 (cuj a tradução poderia ser ‘ ‘O mundo

interi or do mundo ext erior do mundo i nt eri or’ ’ ou ‘ ‘ A i nteri ori dade da ext eri ori dade da

interi ori dade’ ’).

A caract erística que diferenci a o present e trabal ho dos de mai s que versa m acerca da

obra literária de Handke é a análise dest a obra e m sua relação com o ci ne ma, e não a

análise daquil o e m que a obra está i mpregnada de ele ment os ci ne mat ográficos. Ou sej a,

analisa-se aqui como a obra literária di al oga com a obra ci ne mat ográfica, e não o que a

obra literária te m de ci nemat ográfica.

Igual ment e, a caract erística que diferencia este dos de mai s trabal hos acerca de

literat ura e ci ne ma é a import ânci a, num uni verso tão multi mi diático como o de hoj e, da

pal avra e da i mage m, do λόγος e do είκων, e m sua coocorrência.

Há al guns trabal hos que se dedi cara m a quest ões si milares, a partir de pont os de

vi sta diferentes. Serão tratados no próxi mo capít ulo.

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PARTE 2 -- O ESCRI TO

Stille, du Urquell der Bil der!

Stille, du Großes Bil d!

Stille, du Mutter der Phantasi e!2

Pet er Handke -- Di e Abwesenheit3

I. LI TERATURA E CI NEMA, PALAVRA E I MAGE M:

À guisa de um ‘ ‘estado da arte’ ’

Est e capít ul o pretende for necer uma funda ment ação teórica, visando não apenas a

investi gar as duas manifestações artísticas -- literat ura e ci ne ma -- como fenômenos, mas

pri nci pal ment e i nstrument alizar a análise que será desenvol vi da nos capítul os post eri ores,

quando me debruçarei especifica ment e sobre os objet os de pesquisa, a saber, o fil me

Hi mmel über Berli n (‘ ‘Les ailes du désir’ ’/‘ ‘Asas do Desej o’ ’) do ci neast a al e mão Wi m

We nders e o poe ma Li ed vom Ki ndsei n (‘ ‘Canção do Ser- Cri ança’ ’) de Pet er Handke. Serão

levadas e m consi deração as diferenças e se melhanças entre os mei os cine mat ográfico e

literári o.

Al é m disso, este capít ulo dedi ca-se a uma revisão do estado da arte e, por isso

mes mo, visitará tant o os text os cuj o cont eúdo se apr oveitará no present e trabal ho, quant o os

text os cuj a li nha de raci ocí ni o não vai de encontro ao pont o de vista aqui expost o.

Repeti ndo, portant o, o que foi menci onado no capítul o ant eri or, será dada relevânci a

às quest ões li gadas à ocorrência da literat ura em conj unt o com a do ci ne ma, sua

coexistênci a, sua operação conj unt a, e não às questões de adapt ação. Procurare mos saber o

que a pal avra leva ao ci ne ma, e o que a i mage m traz à literat ura.

Lit erat ura e ci ne ma são arte e técni ca, como menci onei ant eri or mente. Ent ão

pret endo analisá-l os teorica ment e a partir destas duas perspecti vas: o fazer poético (ou

literári o) e o fazer ci ne mat ográfico, no que eles tê m e m comu m, tant o quant o no que el es

têm de di vergent e, especifica ment e dentro da obra escol hi da como obj et o de pesquisa.

2

Silênci o, font e ori gi nal das imagens! / Silênci o, oh grande i mage m! / Silênci o, mãe da fantasia! ( HANDKE,

Pet er. A ausênci a. Tradução: Lya Luft. Ri o de Janeiro: Rocco, 1989, p. 100.) 3

HANDKE, Pet er. Di e Abwesehneit. Frankfurt: Suhrka mp, 1987, p. 176.

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Al i ás, dizer que literat ura e ci ne ma são tant o arte quant o técni ca é tão l ugar-comu m

quant o rele mbrar que, para os gregos, arte e técnica são uma só coisa: τεχνή.

Le mbrando que o te ma deste trabal ho é, por sua nat ureza, interdiscipli nar, é

i mportante tent ar averi guar o que di ze m os est udos consagrados sobre o fazer poético e

sobre o fazer literári o.

No ent ant o, o recorte se faz nova ment e necessári o, já que tais est udos consagrados a

mi l hares de anos de literat ura e a pel o menos mais de um sécul o de est udo sobre ci ne ma

soment e pode m ser t omados com al gum critéri o.

Assi m sendo, ao i nvés de i niciar um capít ul o teórico fazendo um panora ma do

ci ne ma at é chegar mos ao obj et o fíl mi co desta pesquisa ( Wi m Wenders) e i gual ment e um

panora ma da literat ura até chegar mos ao obj et o literári o desta pesquisa (Pet er Handke),

tarefa que muit o provavel ment e resultaria e m enfadonha leit ura para meus i nterl ocut ores,

opt o por det er- me numa funda ment ação teórica que procure trilhar um cami nho que leve a

conceit os-chave para o ent endi ment o da relação entre λόγος e είκων nos obj et os de

pesquisa específicos.

Al guns trabal hos a respeit o fora m publicados no Brasil, que agora coment arei

breve ment e, para mostrar em que medi da o meu trabal ho se diferenci a del es.

No li vro Literat ura, Cine ma e Tel evisão (PELEGRI NI et al. 2003), há 5 ensai os:

‘ ‘Literat ura e ci ne ma, diálogo e recriação: o caso de Vi das Secas’ ’, de Randal Jonhson; ‘ ‘Do

text o ao fil me: a tra ma, a cena e a construção do ol har no ci ne ma’ ’ de Is mail Xavi er; ‘ ‘O

romance do sécul o XI X na televisão: observações sobre a adapt ação de Os Mai as’ ’, de

Héli o Gui marães; ‘ ‘Literat ura, ci ne ma e televisão’ ’, de Fl ávi o Agui ar; e ‘ ‘Narrati va verbal e

narrati va visual: possí veis aproxi mações’ ’, da organi zadora do vol ume.

Os t ext os de Randal Johnson, de Is mail Xavi er e de Héli o Gui marães est uda m o

fenômeno das adapt ações, que não é o caso do present e trabal ho, confor me menci onado

ant eri or ment e.

O ensai o de Fl ávi o Agui ar procura estabel ecer regras gerais que mostre m as

relações entre a narrativa no ci ne ma e na literat ura como, por exe mpl o, o fat o de que uma

‘ ‘i mage m estática cont ém e m si um processo narrati vo’ ’ assi m como u ma pal avra (o

exe mpl o que ele utiliza é a pal avra ‘ ‘bombeiro’ ’, para mostrar que ela já cont é m uma cert a

narrati vi dade) ou ai nda que ‘ ‘uma narração não é apenas um suceder de i magens; é,

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pot enci al ment e, a evocação de uma estrut ura que pode ser visualizada como uma

si multanei dade’ ’ (id. p. 118), assi m como acont ece com uma sucessão de palavras. O que se

segue a partir daí são també m comparações de ‘ ‘adaptações’ ’, que já não nos i nt eressa m

particul ar ment e aqui.

Já o pri meiro ensai o do livro, de aut oria de sua organi zadora, intit ulado ‘ ‘Narrati va

verbal e narrativa visual: possí veis aproxi mações’ ’ tem um tít ul o que parece oferecer mai or

convergênci a com o te ma dest a dissertação. Verificare mos se seu cont eúdo també m o faz.

Tâni a Pellegri ni propõe a ideia de que o surgiment o do ci ne ma e seu post eri or

desenvol vi ment o até os di as at uais trouxera m maneiras diferent es de enxergar o mundo, o

que provocou mudanças não apenas na maneira de perceber as i magens do dia-a-di a (já que,

segundo ela, passa mos a vi ver num mundo preponderant e ment e i magético, não apenas no

â mbit o das i magens visuais das artes não verbais, mas ta mbé m graças à televisão, à

linguage m publicitária, aos vi deogames etc.), co mo t a mbé m na maneira de se fazer

literat ura. A partir desta pr opost a, ela procura investi gar ‘ ‘sol uções narrativas’ ’ que tê m si do

adot adas nesta nova configuração de coisas.

Uma das concl usões a que ela chega é a de que o ci ne ma i ntroduz uma nova

maneira de ent ender o tempo, e se apoi a e m Henri Bergson para falar sobre a ‘ ‘inadequação

do rel ógi o como úni co mensurador do escoar das horas’ ’ (id., p. 20), pois o ol ho da câ mera

‘ ‘mostra que a noção do tempo que passa é i nseparável da experiênci a percepti va visual’ ’

(i d., p. 19), trazendo à literat ura, por exe mpl o, o fluxo de consci ênci a.

Se até aí, Pellegri ni trata do te mpo, outra conclusão a que ela chega refere-se ao

espaço, quando di z que na literat ura a narrativa está ‘ ‘irre medi avel ment e presa à lineari dade

do discurso, ao carát er consecuti vo da li nguage m’ ’, enquant o o ci nema t e m o espaço

‘ ‘ili mitada ment e fl ui do e di nâ mi co’ ’ em virt ude do ‘ ‘fluir vel oz das i magens’ ’ (id., p. 22).

A opi ni ão da aut ora pode ser relati vizada, cont udo, já que o ci ne ma ta mbém é li near

ao seu modo. Mes mo que o fil me use um fl ashback ou outros recursos de orde m não

cronol ógi ca para cont ar u ma est ória, ai nda assim, na mesa de edi ção o que é post o são

quadr os um após o outro, sequenci al ment e. E, depois, na sala de ci ne ma, o que será

apresent ado aos espect adores é ta mbé m uma sequênci a, di ga mos, de duas horas de duração

(ou mais, ou menos). Em outras pal avras, a f abul a pode não ser linear, mas o syuzhet

se mpre o é.

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A respeit o dest e assunt o, Davi d Bor dwell (1985) explica que o te mpo e o espaço são

instânci as que pratica ment e não pode m ser separadas na análise fíl mi ca, ne m na literári a e

que, apenas por uma abstração, pode mos pensar em u ma ou outra coisa separada ment e. El e

fala ai nda sobre a i mportant e disti nção, no caso das narrativas (fíl mi cas ou literárias) entre

fabul a e syuzhet, ist o é, enredo (est ória e m orde m cronol ógi ca, que pode ter duração de um

di a, de al guns mi nut os, de uma vi da i nteira, de u m sécul o ou mais e que, mes mo que não

seja apresent ada de maneira cronol ógi ca, o espect ador acaba organi zando-a assi m) e

narração ( maneira pel a qual a est ória é cont ada, que ne m se mpre segue uma orde m

cronol ógi ca, podendo ser cont ada de trás para frent e, em fl ashbacks, em fragment os,

desordenada ment e etc., e pode durar duas horas, por exe mpl o, num filme, e o te mpo da

leit ura de um li vro).

Est as explicações que se concentra m e m Bor dwell compl et aria m as conclusões de

Pellegri ni, da mes ma maneira que seria i nteressant e i ncl uir a visão de Eisenst ei n (2002b)

que, por sua vez, ao se referir à mont age m como o centro da criação de uma narrati va

fíl mi ca, explicita a artificiali dade da ‘ ‘criação do tempo e do espaço’ ’ para a percepção que o

espect ador terá ao assistir ao fil me.

Há, si m, uma diferença entre o ‘ ‘fluir’ ’ espaço-te mporal do ci ne ma e o da literat ura,

se pensar mos e m exe mpl os de i magens difusas, transposi ção e j ustaposi ção de i magens no

ci ne ma, exe mpl os e m que uma, duas, três ou mais cenas ou i magens aparece m umas sobre

as outras, exat a ment e ao mes mo te mpo4

.

Port ant o, Pellegri ni tem razão e m di zer que a relação espaço-t e mpo no ci ne ma é

diferente daquel a que ve mos na literat ura, mas não pel o moti vo do ‘ ‘fl uir vel oz das

i magens’ ’ (palavras da aut ora), e si m pel as possi bili dades dadas através do medi um

ci ne mat ográfico, que não necessaria ment e dize m respeit o à vel oci dade.

De qual quer maneira, alé m do te mpo e do espaço, Pellegri ni aborda ainda dois

temas que ela consi dera i mportantes na comparação entre literat ura e ci nema: o suj eito e a

linguage m.

4

Sobre isso, ver ‘ ‘Te mpo do espect ador e te mpo da i mage m’ ’ in: AUMONT, Jacques. A i mage m. 10ª ed. Trad.

Est el a dos Sant os Abreu e Cl áudi o C. Sant oro. Ca mpi nas: Papirus, 1993. (p. 161-163) e ‘ ‘ Mét odos de

mont age m’ ’ in EI SENSTEI N, Sergei. A for ma do fil me. Trad. Teresa Ott oni. Ri o de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ,

2002.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

- 15 -

Por ‘ ‘sujeito’ ’, Pellegri ni ent ende o narrador que, no ci ne ma, por vezes, é o ‘ ‘ol ho da

câ mera’ ’, criando a il usão de que a narrativa te m uma certa obj etivi dade, ilusão de que a

narrati va ‘ ‘conta-se por si mes ma’ ’, ilusão de que isso ocorre se m a intervenção de um

narrador, o que, segundo ela, encontra sua expressão na literat ura numa obra como Ulisses

de Joyce (exe mpl o dado pel a aut ora).

Por ‘ ‘linguage m’ ’, a aut ora ent ende o medi um do cine ma que é diferente daquel e da

literat ura naquil o que l he é técni co, e re met e a Benj a mi n para concl uir que esta diferença

nasce já com o surgi mento da fot ografia, que por sua vez havi a alterado ‘ ‘a pr ópria nat ureza

da arte’ ’ (id., p. 33), mas não chega a verdadeira ment e estabel ecer quais seria m as diferenças

entre a linguage m do ci ne ma e a da literat ura.

As quest ões espaço-te mporais apont adas por Tâni a Pellegri ni, assi m como as de

estrut ura narrativa mencionadas por Fl ávi o Agui ar, serão revisitadas quando da análise do

fil me e do poe ma desta pesquisa, mais adi ante. No mais, entretant o, os textos pode m servir

de subsí di o, confor me já citei, para aqueles que se dedica m ao fenômeno da ‘ ‘adapt ação’ ’, o

que não é o meu caso.

Recent e ment e foi publicado na revista Al etri a, da Uni versi dade Federal de Mi nas

Gerais, um arti go de autoria de André Soares Vieira, intit ulado ‘ ‘I mage m e visi bili dade na

narrati va de Pet er Handke’ ’5

, que expõe a presença de ele ment os ci ne mat ográficos e

i magéticos na narrativa do aut or est udado, mas especifica ment e t omando e m consi deração

dois text os: A mul her canhot a e Breve cart a para um l ongo adeus. O arti go apont a, com

efeit o, ele ment os que verifi quei presentes e m outros text os de Handke e que de monstrarei

mai s adi ant e, a saber: el e ment os si nest ésicos da literat ura de Handke, que nos dão a

i mpressão de estar mos assisti ndo a um fil me. No ent ant o, Vi eira (op.cit.) não t oca na

quest ão que procuro exami nar.

E, ai nda no Brasil, os recent es trabal hos que versa m sobre literat ura e cine ma, ou

mai s a mpl a ment e, sobre a relação entre λόγος e είκων são mais comu mente de soci ol ogi a,

antropol ogi a ou li nguística, abordando quest ões como a vi ol ênci a nas i magens e nas

pal avras, ou a dubl age m de fil mes etc.

5

VI EI RA, André Soares. ‘ ‘I mage m e visi bilidade na narrativa de Pet er Handke’ ’. In: Aletria -- Revist a de

Est udos de Literat ura, n° 14, jul-dez, 2006. Bel o Horizont e: POSLI T, Facul dade de Letras da UF MG.

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Uma recent e tese de dout orado foi defendi da em 2006 na Facul dade de Fil osofia,

Letras e Ci ências Hu manas da USP, no Departament o de Letras Modernas, sob o tít ul o

‘ ‘Contri buições para uma poética do maravilhoso: um est udo comparati vo entre a

narrati vi dade literária e cine mat ográfica’ ’. A tese basei a-se na análise de um fil me (no caso,

Mat ri x I, de 1999, com direção de Andy e Larry Wachowski) e de um cont o de fadas (a

saber, A Bel a e a Fera, em suas di versas variant es), naquil o que estas duas obras -- fil me e

cont o -- tenha m e m comu m, que, segundo a autora do est udo, é ‘ ‘o maravil hoso’ ’. Co mo

fil me e cont o não ocorre m e m conj unt o e não te mos aí a relação de coocorrência entre

λόγος e είκων, esta tese també m não se confi gura como uma base teórica para a present e

di ssertação.

Tr abal hos nest a li nha há al guns na USP: ‘ ‘Se miótica das adapt ações literári as no

ci ne ma e na televisão: análise de ‘ Car men’, de Carl os Saura’ ’ (tese de dout ora ment o e m

Li nguística, de Ant ôni o Ada mi, de 1994); ‘ ‘Ilumi nações da moderni dade: u ma ca mi nhada

com Ri mbaud’ ’ (tese de dout ora ment o e m Teoria Literária e Literat ura Comparada, de

Ma urí ci o Salles de Vasconcel os, de 1994); ‘ ‘Grande Sertão -- o romance transfor mado:

abor dagens do processo e a técni ca de Walt er George Durst na construção do rot eiro

televisi vo’ ’ (dissertação de mestrado e m Literat ura Brasileira, de Osvando José de Morais,

do ano de 1997); ‘ ‘O ci ne-romance e m Mari enbad’ ’ (dissertação de mestrado e m Letras, de

Arli ndo de Al mei da Jr., de 2003); ‘ ‘Paul o Le mi nsky: os ca mi nhos de uma poesia’ ’ (tese de

dout ora ment o e m Letras, de Sirley José Mendes da Sil va, de 1998); ‘ ‘Cali garis mos e m

Hi nke mann: descobri ndo Er nst Toller’ ’ (dissertação de mestrado e m Língua e Literat ura

Al e mã, de Cl áudi a Ti yoko Shi ma, de 2001); ‘ ‘A cor azul na literat ura alemã: os poe mas de

Geor g Trakl’ ’ (dissertação de mestrado de Cristi na Cali ol o, em Lí ngua e Lit erat ura Al e mã,

de 2008, abordando o par literat ura-pi nt ura); ‘ ‘Literat ura e pi nt ura: diál ogo int er medi al entre

Tho mas Mann e Hoff mann’ ’ (tese de dout ora ment o e m Lí ngua e Literat ura Al e mã, de

Ant oni o Walt er R. de Barros Jr., de 2008, abordando literat ura-pi nt ura).

Cel este Ri beiro de Sousa, professora de Lí ngua e Lit erat ura Al e mã na Facul dade de

Letras da USP, te m dois text os relevant es sobre Handke, sendo um sobre sua relação com a

crítica6

, text o que cont ém u ma análise sobre o breve romance Hist óri a de uma i nf ânci a

6

SOUSA, Cel est e H. M. R. ‘ ‘Entre tapas e beij os: Peter Handke e a crítica’ ’. In: Revista Brasileira de

Lit erat ura Co mparada. Bel o Horizont e: ABRALI C, 2002.

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(1990 [1981]), e outro sobre a ‘ ‘desterrit orialização do suj eito’ ’7

, característica que leva

Handke a ‘ ‘desgrudar’ ’ suas personagens e até seu narrador da base da linguage m e dei xá-

los se m l ugar, se m nome, se m territ óri o.

José Pedro Ant unes, professor de Lí ngua e Literatura Al e mã na Facul dade de Letras

da UNESP de Araraquara é responsável por vários est udos sobre Handke e traduções de

seus text os, mas ta mbé m no â mbit o mais literári o e menos ci ne mat ográfico, se m menção à

relação entre λόγος e είκων.

Na busca conti nuada por teorias que trate m do ci ne ma e da literat ura como art es que

pode m coocorrer, exami nei um li vro de Fuzellier cuj o títul o dei xava ant ever sua

convergênci a com o te ma: Ci né ma et littérat ure (FUZELLI ER 1964). Por moti vo de concisão,

verifi que mos apenas um dos capít ul os, o mais significati vo, també m a j ulgar pel o própri o

títul o do capít ul o: ‘ ‘Les rapports de la littérat ure et du ci né ma’ ’ (id., p. 107- 122), onde o

aut or se pergunt a o que pode o ci ne ma trazer à literat ura e vice-versa, exe mplificando que é

possí vel usar o ci ne ma co mo el e ment o di dático no ensi no da literat ura.

Curi osa ment e, Fuzellier não apenas não ret oma a col aboração possí vel do ci ne ma

com a literat ura, mas també m não concl ui quais seria m as col aborações da lit erat ura para o

ci ne ma, na medi da e m que ter mi na di zendo que muit o daquil o que se est udou sobre a

relação entre estas artes ficou no terreno da ‘ ‘adapt ação’ ’ (da qual ele própri o ta mbé m trat a

muit o deti da ment e neste livro) e explica que, se há um ti po de ci ne ma que consegue ‘ ‘fugir’ ’

dest e esque ma de ‘ ‘adaptação’ ’ (no qual, segundo el e mes mo, as obras literári as se col oca m

como ‘ ‘víti mas’ ’ da ‘ ‘ má adapt ação’ ’, ao passo que o ci ne ma acaba sendo e mpobreci do e m

sua mat éria), este tipo é o document ári o ci ne matográfico, ao qual ele co mpara a crítica

literária, dando a a mbos u m st at us de independênci a, um e m relação ao outro.

No mai s, Fuzellier dedi ca dois subcapít ul os ao que ele cha ma de Les di al ogues e La

psychol ogi e, onde defende que tant o as pal avras dos di ál ogos quant o as que descreve m o

psi col ógi co das personagens são aquil o que o ci ne ma ‘ ‘herdou’ ’ de mais i mport ant e da

literat ura, ele ment os que já era m usadas até no cine ma mudo, através das legendas entre

cenas.

7

SOUSA, Cel est e H. M. R. ‘ ‘A desterritorialização do sujeito do avesso da pós- moderni dade: o romance do

ho me m bo m de Pet er Handke’ ’. In: XIII Encontro Anpoll, 2000, Ca mpi nas. Sí nteses. Ni ter oi : Anpoll/ UFF,

1998. v. 1.

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No que di z respeit o à adapt ação fíl mi ca, entretant o, apesar de ser um li vro de 1964 e

de carecer de at ualização em al guns aspect os, trata-se de uma obra que pode aj udar àquel es

que se dedi que m à tarefa de comparar livros a fil mes.

Poré m, nova ment e, não se trata de uma teoria sobre a relação entre a literat ura e o

ci ne ma, quando ocorre m si multanea ment e. Parece- me, aliás, que este é um ti po de teori a

ai nda não expl orado, sej a porque a ocorrência de obras dest e tipo seja pequena se

comparada à ocorrência de adapt ações; seja porque, independent ement e do fat or

quantitati vo, o te ma não tenha ai nda suscitado i nt eresse dos críticos.

Por fi m, na esteira de trabal hos que possi vel ment e lançaria m l uz a esta pesquisa,

pude mos ter acesso a uma t ese de dout ora mento defendi da na Uni versidade de Kassel, na

Al e manha, e m 2007, de aut oria da brasileira Si mone Mal aguti, sob o título Wi m Wenders’

Fil me und i hre inter medial e Bezi ehung zur Literatur Pet er Handkes8

.

A j ul gar pel o títul o, aparente ment e poderia haver si nergi a, não fosse pelo fat o de

que, no capít ul o dedi cado ao fil me Hi mmel über Berli n, a aut ora i nsiste e m cl assificar os

text os de Handke (assi m como text os de Ho mer o, Rai ner Mari a Ril ke e Walt er Benj a mi n)

como sendo ‘ ‘pré-text os’ ’ (Prät ext e) que i nspiraram o fil me, o que é um pouco contradit óri o

com o que ela mes ma afir ma e m rel ação ao este e a outros fil mes do mes mo ci neasta.

Mal aguti explica que há quatro possi bili dades de apropriação, pel o fil me, de uma

obra literária, sendo el as Nachahmung (i mit ação), Evokati on (evocação) Transf or mati on

(transfor mação) e Transfigurati on (transfi guração). A pri meira é aquela pel a qual o fil me

pr ocura i mitar o li vro, isto é, o mes mo que outros est udi osos do te ma cha ma m ‘ ‘adapt ação’ ’.

Muit os fil mes col oca m este exat o ter mo e m seus crédit os: ‘ ‘Adapt ado de...’ ’. A segunda

cl assificação da aut ora -- a evocação -- está próximo daquil o que muit os outros cha ma m de

‘ ‘inspiração’ ’. É mais fácil identificar do que se trata quando, nova ment e, lembra mos que

al guns fil mes escreve m nos própri os crédit os o termo ‘ ‘Inspirado e m...’ ’ (‘ ‘inspirado e m u ma

hist ória verí di ca’ ’, ou ‘ ‘inspirado no li vro ...’ ’ etc.). Aqui, ao i nvés de o espect ador criar uma

esperança de que a obra ci ne mat ográfica esteja be m próxi ma da literária, já se sabe de

ant e mão que esta servi u apenas como uma font e, u ma i nspiração, uma i deia pri meira para a

criação daquel a. Os conceit os de transfor mação -- ou transfor mação i nterpret ati va

(i nterpretierende Transfor mati on) -- assi m como o de transfi guração não fica m muit o

8

Fil mes de Wi m Wenders e sua relação i nt er mi di ática com a literat ura de Pet er Handke.

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deli mit ados. Mas cita-se um exe mpl o para a transfor mação: Prospero’s Book (Pet er

Gr eena way, 1991), em que o fil me não se basei a ne m se inspira num t exto, mas si m e m

todos os text os da ci vilização oci dent al (‘ ‘bezieht sich doch auf alle Texte der westlichen

Zi vilisati on’ ’). Ta mbé m se menci ona que na transfi guração ou no Zusammenspi el todas as

possi bili dades de relação inter mi di ática ocorre m junt as, como uma bricol age m.

A aut ora dest e est udo diz que o fil me Hi mmel über Berli n é um ‘ ‘Bruch’ ’ (quebra)

do paradi gma de adapt ações literárias para ci nema feitas por Wenders, e que precisa de

u ma relati vização para ser ent endi do, e de novos conceit os para ser i nterpretado; ela di z que

a I mprovisati on (i mpr ovisação) é um dos novos conceit os a sere m usados para esse

ent endi ment o; e, no entant o, ela mes ma afir ma que

Wenders hat sich i n sei nem Hi mmel über Berli n (1987) vor allem der

fol genden literarischen Prätexte bedi ent:

(1) di e Gedi cht e „Li ed vom Ki ndsei n‘ ‘, „Prol og für eine Li ebe‘ ‘ und

„ Anr ufung der Welt‘ ‘ (1987) von Pet er Handke als primärer Prät ext

(2) Das Ge wi cht der Welt (1977) von Pet er Handke

(3) Über den Begriff der Geschicht e (1940) von Walter Benj ami n

(4) Dui neser El egi en (1923) von Rai ner Mari a Rilke

(5) Odyssee (um 700 v. Chr.) von Homer9

Mal aguti afir ma l ogo em segui da que os text os do item (1), de aut oria de Pet er

Handke, jamais fora m publicados na for ma de livro e, embor a seu manuscrit o est ej a

di sponí vel para visitação no Fil mmuseum e m Berlim, est es poe mas são mui to mais parte do

pr ópri o fil me do que uma ‘ ‘literat ura prévia’ ’, ‘ ‘à parte’ ’ do fil me.

Não se col oca e m dúvi da se a a mi zade de Wenders com Handke possi bilit ou ou não

ao ci neast a ale mão a leitura das obras do escrit or austríaco, como ta mbé m deve est ar aci ma

de questi ona ment os se We nders leu ou não leu os outros text os menci onados, pois se

consi derásse mos t udo que os ci neast as lee m, tudo que está ali ar mazenado e m seu

repert óri o literári o pessoal, transfor marí a mos todos os fil mes e m obras que fora m

9

Em seu Hi mmel über Berli n (1987), Wenders se servi u sobret udo dos segui ntes pré-text os literári os:

(1) os poe mas ‘ ‘Lied vo m Ki ndsei n’ ’, ‘ ‘Prol og für ei ne Li ebe‘ ‘ e ‘ ‘Anrufung der Welt‘ ‘ (1987) de Pet er Handke,

co mo pré-text o pri mári o

(2) Das Ge wi cht der Welt (1977) de Pet er Handke

(3) Über den Begriff der Geschi cht e (1940) de Walt er Benj ami n

(4) Dui neser El egi en (1923) de Rai ner Maria Ril ke

(5) Odissei a (cerca de 700 a. C.), de Ho mer o

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‘ ‘adaptadas’ ’ ou que ‘ ‘se servira m’ ’ (‘ ‘hat sich bedient’ ’, para usar o ter mo de Mal aguti) de

‘ ‘pré-text os literári os’ ’.

Nova ment e é i mport ante reforçar que não há di scordância -- e m absolut o -- na

quest ão de que Wenders tenha li do tais text os e tenha se i nspirado.

Poré m, cada ci neasta que já fez um fil me provavel ment e també m j á leu text os

outros quaisquer, que confi gurara m i nspiração -- muit as vezes até i nconscient e ment e -- para

suas criações. Todas as leit uras prévias que um cineast a fez e m sua vi da estarão, consci ent e

ou i nconsci ent e ment e presentes na feit ura de seus fut uros fil mes.

Hi mmel über Berli n não é uma adapt ação, ne m uma i nspiração e m text os literári os.

El e é um fil me que ‘ ‘dialoga’ ’ com a literat ura, e que a i ncl ui como códi go constit ui nt e da

linguage m ci ne mat ográfica que, por nat ureza, já é multi códi go.

Na tese citada se afir ma que muit o do que se produzi u e m Hi mmel über Berli n foi

i mpr ovisado pel o diret or e pel a equi pe. Est a afir mação se basei a nas entrevistas com o

diret or. Os própri os di álogos entre anj os e al gumas falas fora m envi adas por Handke a

We nders a distânci a1 0

. Poré m estas afir mações estão mais no ní vel do coment ário do que da

análise.

O poe ma foi escrit o para o fil me, e não antes del e. Assi m como a il uminação, o

fi guri no, o cenári o, a escol ha do elenco, os ensai os, a técni ca, a maqui agem, os operadores

de câ mera, os técnicos de som e t odo o aparat o necessári o à elaboração ci ne mat ográfi ca

també m fora m feit os para o fil me. O poe ma nasce quando o fil me nasce. São feitos j unt os.

Daí a i nadequação de menci onada tese como mat erial de apoi o para a present e

di ssertação.

Port ant o, na busca por uma ou mais teorias que pudesse m tratar do uso do códi go

verbal e do não verbal numa obra de arte, encontrei embasa ment o tant o na se mi ótica quant o

també m e m aut ores que tratara m da li nguage m da literat ura e da linguagem do ci ne ma do

pont o de vista estético e que não chegara m a estabel ecer relações entre uma e outra, mas

dei xara m o ca mpo arado para o planti o.

Dentre estes últi mos, escol hi teóricos que i nvestira m seu te mpo tant o no est udo da

literat ura quant o no do cine ma e, embora os text os surgi dos a partir deste investi ment o não

1 0

Sobre isso, ler ta mbé m WENDERS, Wi m. A lógica das i magens. Trad.: Maria Al exandra A. Lopes. Lisboa:

Edi ções 70, 1990

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seja m do ti po que engl oba conj unt a ment e os dois assunt os (que é o meu objetivo aqui),

mes mo assi m, o fat o de que um pensador se tenha debruçado sobre a literat ura, e m

det er mi nados text os e sobre ci ne ma noutros, nos per mitirá encontrar aí os ecos, a

intertext uali dade e a reflexão necessári os ao entendi ment o a que pretendo chegar.

Walt er Benj a mi n e Jean-Paul Sartre são, certa ment e, dois dest es teóricos que se

dedi cara m ao est udo tant o do fenômeno literário quant o do ci ne mat ográfico. Co m essa

escol ha eu não quero dizer, entretant o, que a mbos tenha m ent endi mentos pareci dos ou

convergent es e m quaisquer áreas do saber. Poré m, tant o Benj a mi n quant o Sartre

dedi cara m-se ao est udo das artes de maneira interdisci pli nar e publicara m t ext os que

versa m sobre ci ne ma e literat ura, mes mo que não especifica ment e (apenas sobre ci ne ma,

apenas sobre literat ura), mas tratando destes assunt os do modo que nos interessa aqui,

como vere mos.

Os text os de Benj a mi n mai s i mport antes para este est udo estão no li vro Magi a e

Técni ca, Art e e Política ( BENJ AMI N 1994): ‘ ‘A obra de arte na era de sua reproduti bili dade

técni ca’ ’ e ‘ ‘A doutri na das se mel hanças’ ’.

De Sartre, os escrit os rel evant es para esta pesquisa são Qu’est-ce que c’est l a

literat ure? (1948) assi m como o est udo d’ O I magi nári o (1996 [1940]) que i nvesti ga o

fenômeno da i mage m ment al que o ser humano cria e recria tant o no di a-a-di a quant o nas

artes (e aqui Sartre verifica os procedi ment os da literat ura e do ci ne ma, assi m co mo da

pi nt ura, da fot ografia etc.).

Ta mbé m é funda ment al o exa me dos text os de Edgar Mori n que, diferente ment e de

Sartre e Benj a mi n, não se debruçou especifica ment e sobre a teoria da literat ura, mas que

escreveu sobre a comunicação de uma maneira bastant e a mpl a (o que não dei xa de incl uir a

literat ura e o ci ne ma, e m senti do lat o), com seus escrit os O Ci ne ma ou O Ho me m

I magi nári o (1956) e Cultura de massas no sécul o XX: o espírit o do tempo (1975).

E entre os pri meiros de que eu tratava -- os semi oticistas -- encontrei subst ânci a

bast ant e para reflexões nos text os de Peirce (Semi ótica), Sant aella ( Matrizes da Li nguage m

e do Pensament o, Semi ótica Aplicada), Zil berberg ( Razão e Poética do Senti do), e outros,

que virão à baila cada um a seu mo ment o.

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Out ros aut ores serão citados na esteira dos já menci onados, à conveniênci a do

assunt o, quando necessári o, mas será mel hor citá-l os no mo ment o apropriado do que

estabel ecer t oda uma bi bliografia nesta i ntrodução.

Por fi m, mas não menos i mportante, pode mos voltar al guns sécul os, e lembr ar que

já Lessi ng, em seu Laocoont e (1998 [1766]) preocupou-se e m de monstrar as diferenças e

se mel hanças entre a linguage m verbal da poesi a e a linguage m não verbal, sobret udo da

pi nt ura1 1

.

Lessi ng defende a i dei a de que a poesi a supera a pi nt ura, porque esta últi ma não

pode i mitar o sofri mento e ne m o fei o1 2

como aquela. Explica també m que existe uma

li mitação te mporal1 3

para a pi nt ura, que não existe na literat ura, isto é, lá seria o ca mpo da

represent ação de um moment o estanque, aqui o da represent ação da ação e do movi ment o.

Ent ão ve mos que o debate no Laocoont e é at ual, mas precisa dial ogar com as novas

artes (fot ografia, ci ne ma) para chegar mos a algu ma concl usão a respeito do ‘ ‘rei no da

poesi a versus rei no das artes visuais’ ’. Mas se há algo no Laocoont e que conti nua mais at ual

do que qual quer outra discussão é a diferença entre os si gnos arbitrári os e os não arbitrári os.

E est e pont o é funda ment al, segundo explica Márci o Seli gmann- Sil va em seu t ext o de

introdução ao Laocoont e, pois Lessi ng diz, em seus paralipomena1 4

, que a utilização de

si gnos arbitrári os ou não arbitrári os deve ser feita de acordo com a nat ureza daquil o que se

for represent ar, ist o é, de acordo com uma ‘ ‘adequação icôni ca entre os si gnos utilizados e o

tema da i mitação’ ’ (LESSING 1998: 50).

Uma fi gura humana da dimensão de uma pol egada pode ser a i mage m de

u ma pessoa; mas já é de cert o modo uma i mage m simbóli ca [i.e., existe

abstração, M. S- S.]; nesse caso eu est ou mais consci ent e do si gno do que

da coisa si gnificada; eu tenho que pri meira ment e na mi nha i magi nação

1 1

A assunção de que a pri nci pal oposição feita e m Lessi ng sej a entre poesia e pi nt ura é relativa. O títul o do

livro dei xa ent ender que essa oposição seria, pri nci pal mente, entre poesi a e escult ura, já que o Laocoont e a

que Lessi ng se refere é tant o o do poe ma quant o o da escultura (aliás, esta escult ura encont ra-se reproduzi da

e m fot ografia na capa do livro, na edi ção de 1998). Porém, o subtítul o do livro de Lessi ng é Sobre as

front eiras da pi nt ura e da poesi a, e ve mos no cont eúdo do text o que esta tentati va de abarcar as art es de

maneira geral resulta na comparação entre a poesi a e a pi nt ura. 1 2

‘ ‘Seu artista pi ntava apenas o bel o; mes mo o bel o ordi nári o, o bel o de gêneros mais bai xos, constituía

apenas o seu obj et o casual, seu exercí ci o, sua distração. A perfei ção do obj et o mes mo nas suas obras deveri a

ext asi ar’ ’ (LESSI NG 1998: 89). 1 3

‘ ‘Se o artista só pode utilizar da nat ureza se mpre em transfor mação nunca mais do que um úni co mo ment o,

ta mbé m apenas a partir de um úni co pont o de vista; (...) ent ão é cert o que aquel e moment o úni co e úni co

pont o de vista desse úni co moment o não pode m ser escol hi dos de modo fecundo de mai s’ ’ (LESSI NG 1998: 99). 1 4

Text o de Lessi ng que não chegou a ser traduzi do integral ment e, do qual Seligmann-Sil va (tradut or do

Laocoont e) cita apenas trechos que el e coment a e traduz na introdução ao Laocoont e.

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el evar a figura reduzi da nova ment e à sua di mensão verdadeira [= um ní vel

a mais de tradução] e esse trabal ho da mi nha al ma, por mais que ele sej a

vel oz e fácil, ai nda assi m se mpre i mpede o sucesso da i nt ui ção do si gno.

[...] Que a pi nt ura utilize-se dos si gnos nat urais deve assegurar a ela uma

grande vant age m com relação à poesi a, que só pode utilizar para si si gnos

arbitrári os. ( LESSI NG 1998: 50).

E aqui Seli gmann- Sil va conti nua citando Lessi ng no text o dos parali pomena, que

não foi traduzi do e que, por isso, só é ‘ ‘acessível’ ’ através deste text o introdut óri o do

tradut or:

No ent ant o a mbas [pi nt ura e poesia] també m aqui não encontra m-se muit o

di stant es uma da outra, como poderia parecer numa pri meira i mpressão, e

a poesia não possui apenas si gnos arbitrári os, mas ant es ta mbé m mei os de

el evar [erhöhen] os si gnos arbitrári os até a di gni dade e a força dos

nat urais. No i níci o é cert o que as pri meiras línguas nascera m a partir das

ono mat opei as e que as pri meiras palavras i nvent adas possuí a m cert as

se mel hanças com as coisas expressadas. Se mel hant es pal avras existe m

ai nda agora e m t odas as línguas, e m mai or ou menor quanti dade,

confor me a língua mes ma esteja mais ou menos afastada das suas

pri meiras origens. A partir da utilização i nteli gent e dessas pal avras surge

o que se deno mi na de expressão musi cal na poesia. [...]. Isso mostra que

não falta m à poesia de modo al gum si gnos nat urais. Mas el a ta mbé m t e m

u m mei o de elevar os seus si gnos arbitrári os até o val or dos si gnos

nat urais, a saber, a metáfora. Uma vez que a força dos si gnos nat urais

consiste na se mel hança del es co m as coisas, ent ão ela i ntroduz no l ugar

dessa se mel hança -- que ela não possui -- uma outra se mel hança que a

coisa si gnificada possui com u ma outra, cuj o conceito pode ser reiterado

mai s facil ment e e de modo mais vi vaz. As co mparações pertence m

ta mbé m a esse uso das metáforas. [...]. ( LESSI NG 1998 : 50-51). (grifos

meus)

Co mo apont a Márci o Seligmann- Sil va, há um certo paradoxo nestas afir mações pois,

ao mes mo te mpo e m que Lessi ng vê a língua como um siste ma não-arbitrário (como afir ma

mai s tarde Saussure), já que te m suas ori gens na ono mat opei a, ele também afir ma que est a

confi guração da li nguage m verbal se distanci ou de sua ori ge m, durant e seu percurso, sua

existênci a. Assi m, ele parece afir mar que a linguage m verbal é, a um só te mpo, i gual e

diferente da li nguage m não verbal. Igual porque te m as mes mas origens (o fat o de

consistire m na se mel hança com a coisa referi da ou si gnificada), mas diferent e por que a

linguage m não verbal conti nua mais próxi ma desta ori ge m enquant o a linguage m ver bal

tende a se distanci ar del a.

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Est e mes mo paradoxo é abordado por Walt er Benj a mi n e m seu text o ‘ ‘A doutri na

das se mel hanças’ ’ ( BENJ AMI N 1994: 108-113) quando afir ma que as lí nguas são, e m mai or

ou menor grau, onomat opai cas, portant o mi méticas:

Em outras palavras: pode mos dar um senti do à frase de Leonhard, conti da

e m seu ensai o revel ador A pal avra: ‘ ‘Cada pal avra e a língua i nteira são

ono mat opai cas’ ’? A chave, que pela pri meira vez t orna essa tese

transparent e, está oculta no conceito da se mel hança extra-sensí vel. Se

ordenar mos várias pal avras das diferent es línguas, com a mes ma

si gnificação, e m t orno desse si gnificado, como seu centro, pode-se

verificar como t odas essas pal avras, que não tê m entre si a menor

se mel hança, são se mel hant es ao si gnificado sit uado no centro. Tal

concepção é nat ural ment e próxi ma das teorias mí sticas ou teol ógi cas, se m

com isso abandonar o â mbi to da fil ol ogi a e mpírica. Mas, como se sabe, as

teorias mí sticas da linguage m não se cont ent a m e m sub met er a pal avra

oral a seu ca mpo reflexi vo e preocupa m-se i gual ment e com a pal avra

escrita. É di gno de not a que esta pode esclarecer a essênci a das

se mel hanças extra-sensí veis, tal vez mel hor ai nda que certas confi gurações

sonoras da li nguage m, através da relação entre a i mage m escrita de

pal avras ou letras com o significado, ou com a pessoa nomeadora. Assi m,

a pal avra bet h te m o nome de uma casa. É, portant o, a se mel hança extra-

sensí vel que estabel ece a ligação não soment e entre o falado e o

intenci onado, mas ta mbém entre o escrit o e o i ntenci onado, e entre o

falado e o escrit o. E o faz de modo se mpre novo, origi nári o, irredutí vel.

( BENJ AMI N 1994: 111)

Na verdade, parece haver uma tent ativa de teorização se mi ótica por part e de

Benj a mi n neste trecho que não se resol ve muit o be m, já que a proxi mi dade ou se mel hança

que a li nguage m verbal possa ter ou não ter com o obj et o si gnificado pode resi dir tant o na

sua sonori dade, para a qual a j ustificati va seria a ori ge m ono mat opai ca das lí nguas, como

na sua escrita, para a qual (e isso Benj a mi n não discute) pode ta mbé m haver se mel hança, já

que os ‘ ‘alfabet os’ ’ antigos ti nha m l etras que não apenas desi gnava m os sons por sua

pr oxi mi dade ou se mel hança a objet os cuj o nome ti nha m aquel es sons, como t a mbé m

desi gnava m obj et os, coisas, pessoas, ani mais e até deuses (tais como o alfabet o assíri o, os

hi eróglifos egí pci os etc.).

É necessári o lembrar també m que as línguas cuj o códi go escrit o são ideogra mas

guarda m se mel hança entre si gnificado e coisa si gnificada muit o mais na escrita do que na

sua sonori dade ou e m sua possí vel relação ono matopaica de ori ge m. O chinês é o exe mpl o,

por excel ência, destas línguas. Vej a mos al guns poucos exe mpl os, e sua evolução:

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Gr afado

e m osso

Gr afado

e m

bronze

Sel o Ofi ci al Nor mal

Escrit o

pel o

comput ador

Sol 日

Lua 月

Mont anha 山

Água 水

Fogo 火

Tabel a adapt ada de A escrit a chi nesa1 5

O j aponês é, també m, em sua própria medi da, uma lí ngua que mant é m est a rel ação

com a ancestrali dade mi mética da li nguage m verbal -- no que di z respeit o à sua for ma

escrita -- já que é, assi m co mo o chi nês -- um i di oma escrit o e m i deogra mas. Cont udo, e isso

faz t oda a diferença, não apenas e m i deogra mas.

Di ferent e ment e da chi nesa, a escrita japonesa tem 3 alfabet os. Dois del es -- o

haragana e o kit akana -- represent a m sons. Não são exat a ment e fonê mi cos como o alfabet o

lati no (e outros), já que não possue m um grafe ma para cada fone ma, mas de toda maneira

re met e m-se à sonori dade da lí ngua, mais do que à sua relação mi mét ica com a coisa

si gnificada.

Est es dois alfabet os são si mplificações e, ao mesmo t e mpo, elaborações a partir do

conj unt o de caract eres chineses -- são os kanjis. Estes, por sua vez, di vi de m-se e m três ti pos:

as pict ografias, os sí mbolos e as i deografias ( ROWLEY, 2006: 11).

Ro wl ey cha ma de pi ct ografias os caract eres que se parece m muit o com os obj et os

que represent a m: 門 (portão). Eu os cha mari a de ‘ ‘ícones’ ’ (na pri meira acepção da pal avra

grega de onde a pal avra port uguesa ‘ ‘ícone’ ’ é oriunda = i mage m), pois eles guarda m co m a

coisa represent ada uma rel ação de i mitação i magética.

A segunda cat egoria, o aut or a cha ma de ‘ ‘sí mbolos’ ’, consi derando os caract eres que

utiliza m model os l ógicos para i ndi car noções mais abstratas: 上 (aci ma); 下( abai xo); 中

1 5

MENEZES Jr., Ant ôni o José Bezerra de. A escrita chi nesa. Uni versi dade de São Paul o. Facul dade de

Fil osofia, Letras e Ci ênci as Hu manas. Depart a ment o de Letras Orient ais, 2007, Apostila.

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( mei o). Eu os cha mari a de ‘ ‘índi ces’ ’, pois, a exempl o do que nos ensi na a se mi ótica, estes

caract eres chi neses/japoneses i ndi ca m al go, aponta m para al go.

Por fi m, ele se refere aos caract eres que cha ma de ideografias e de fonoi deografias.

No pri meiro grupo estão os caract eres que são for mados pel a combi nação de dois outros

caract eres dos que ele cha ma de pi ct ografias e sí mbol os (que eu cha mo de ícones e í ndices).

Exe mpl o: 日月( sol + l ua) = claro, bril hant e. No segundo grupo estão os caract eres que

combi na m um el e ment o que dá a i ndi cação da pronúnci a com um outro ele ment o que

sugere o ‘ ‘assunt o/te ma’ ’ do kanji. De acordo com o aut or citado, cerca de 80 % dos kanjis

japoneses pertence m a esta categoria. Exe mpl o: 木 si gnifica árvore; 材 significa tronco de

árvore ou si mpl es ment e madeira/recurso nat ural; 林si gnifica fl oresta; 森si gnifica sel va.

Pode mos fazer uma associ ação com o radi cal de pal avras e m port uguês e suas possí veis

deri vações. Exe mpl o: árvore e arvoredo, arborizar, arvorezi nha, arvorar-se etc. A pri nci pal

diferença entre o kanji e ao pal avra port uguesa é que aqui tant o a i dei a conti da na pal avra

quant o a sua for ma escrita se relaci ona m entre o subst anti vo pri mitivo e os subst anti vos que

del e se deri vara m, ao passo que, nos kanjis, esta relação não existe necessaria ment e. O

‘ ‘desenho’ ’ de uma árvore sozi nha ( 木) é li do como ki, ao passo que o desenho de duas

árvores j untas (si gnificando fl oresta = 林) é li do como hayashi. As pal avras ki e hayashi

não se parece m como árvore e arvoredo. Seus desenhos (seus kanjis), si m, parece m-se.

Port ant o, são muit o mais pareci dos com o par árvore e fl orest a (pois, nesse exe mpl o

específico, també m e m port uguês a i dei a per manece próxi ma, no mes mo ca mpo se mântico,

mas a realização sonora da pal avra é muit o distante).

O aut or dest e dici onário il ustrado não comenta o que ocorre aí, mas crei o que

pode mos concl uir al go mai s: os caract eres que ele classifica como i deografi as e como

fonoi deografias oscila m entre o que podería mos cha mar de ícones e sí mbolos, na se mi ótica.

As duas árvores dispostas j unt as ( 林) parece m querer si gnificar fl oresta (onde se

concentra m mais duas ou mais árvores). Ent ão, apesar de ser uma construção arbitrária e

soci al / convenci onal (típi ca do sí mbol o), esse desenho dei xa subent ender-se como uma

i mage m = um í cone (um εί κων). Já a disposi ção do ícone sol ( 日) j unto com o ícone l ua

( 月), para si gnificar bril hant e, quer parecer mais convenci onal, ist o é, sí mbol o e não ícone.

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Quando fala mos e m signos que são sí mbolos, não pode mos esquecer dos

ensi na ment os dei xados por Saussure, em cuj a esteira Bart hes explica que

A lí ngua (...) é uma i nstitui ção soci al e um siste ma de val ores. Co mo

instituição soci al, ela não é absol ut a ment e um at o, escapa a qual quer

pre meditação; é a parte soci al da linguage m; o indi ví duo não pode,

sozi nho, ne m criá-la, ne m modificá-la. Trata-se essenci al ment e de um

contrat o col eti vo ao qual te mos de submet er-nos e m bl oco se quiser mos

comuni car; alé m dist o, este produt o soci al é aut ôno mo, à maneira de um

jogo com as suas regras, pois só se pode manej á-lo depois de uma

aprendi zage m. (....) O aspect o i nstit uci onal e o aspecto siste mático est ão

evi dent e ment e ligados: é porque a língua é um siste ma de val ores

contrat uais (e m parte arbitrári os, ou para ser mais exato, i moti vados) que

resiste às modificações do indi ví duo sozi nho e que, consequent e ment e, é

u ma i nstituição soci al. ( BARTHES 1997: 17-18).

Sartre, por sua vez, defenderá a tese, mais radical, de que o si gno li nguístico é

necessaria ment e arbitrário e de que a i mage m não verbal é que mant é m a se mel hança com

a coisa de que ela é i mage m, pois

A mat éria do si gno [linguístico] é total ment e i ndiferent e ao obj et o

si gnificado. Não há nenhuma relação entre ‘ ‘o escritóri o’ ’, traços pret os

sobre uma fol ha branca, e o ‘ ‘escritóri o’ ’, obj et o compl exo que não é só

físico, mas ta mbé m soci al. A ori ge m da ligação é a convenção, e m

segui da, é reforçada pel o hábit o. (...) Entre a mat éria da i mage m física e a

de seu obj et o existe uma relação i nteira ment e di versa: elas são

se mel hant es. (...) A mat éria de nossa i mage m, quando ol ha mos um retrat o,

não é apenas esse e maranhado de linhas e cores de que fala mos para

si mplificar. É na reali dade uma quase-pessoa, com u m quase-rost o etc.

(...). (SARTRE 1996: 39).

E reforça a tese, dizendo que

Na si gnificação, a pal avra é apenas uma baliza; apresent a-se, despert a

u ma si gnificação, e essa significação não volta nunca sobre ela própri a,

mas avança para a coisa e dei xa cair a pal avra. Ao contrário, no caso da

i mage m de base psí qui ca, a intenci onali dade ret orna constant e ment e à

i mage m-retrat o. (SARTRE 1996: 40).

Não nos esqueça mos do porquê desta breve discussão sobre as escritas chi nesa e

japonesa: a quest ão da arbitrariedade ou não-arbitrariedade dos sistemas li nguísticos,

conf or me havi a si do discuti da por Lessi ng e por Benj a mi n, aci ma, cuj as opi ni ões pude mos

comparar com as de Sartre e Bart hes.

Não pret endo levar este assunt o à exaust ão, mesmo por que esta não é uma pesquisa

no ca mpo da se mi ótica (embora a se mi ótica venha a trazer i nstrument os para o seu

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desenvol vi ment o), ou sej a, não i ntenci ono provar a vali dade ou i nvali dade da tese

apresent ada por Benj a mi n, o que não apenas seria um trabal ho à parte, co mo t a mbé m não

seria o foco que nos i mporta. Portant o, o mais relevant e é que consi derare mos as

afir mações de que a i mage m (li nguage m não verbal) mant é m se mel hança com a coisa de

que ela é i mage m, ao passo que a pal avra (li nguage m verbal, tant o falada quant o escrita)

pode ter manti do ou não esta se mel hança e m sua ori ge m (não concl uire mos se si m ou não,

por ora).

Na citação de Bart hes, aci ma, existe um pont o funda ment al que ta mbé m não havi a

si do discuti do por Benjami n ou por Lessi ng: a questão da li nguage m ver bal como

instit uição soci al, como convenção, como contrat o col etivo.

Est e pont o nos per mite dei xar deli berada mente de lado a pol ê mi ca em que

estáva mos: se a linguagem verbal mant é m ou não se mel hança com as coisas si gnificadas

não i mport a na medi da e m que nos le mbrar mos de que, hoje e m di a, a criança, quando

nasce e começa a adquirir a linguage m verbal, adquire-a já na for ma de contrat o soci al (de

que trat ou Bart hes). O ser humano que está ‘ ‘chegando ao mundo’ ’ poderá apreendê-l o

soci al ment e através tanto da li nguage m verbal quant o das li nguagens não verbais, mas a

pri meira será, certa ment e, uma herança, um aprendi zado.

Nas afir mações de Sartre, ve mos que a pal avra (ou o si gno li nguístico) despert a uma

si gnificação, suscita-a, traz à t ona al go que está ausent e; ao passo que a image m ( ou si gno

não verbal) dá a coisa si gnificada para nós. É a diferença entre tell e show respecti va ment e.

Bor dwell ret oma Arist ótel es quando i ntroduz esta disti nção, lembrando que o grego

já classificava uma obra dependendo do mei o de i mitação (o medi um mes mo, ou seja,

pi nt ura ou li nguage m), o obj et o da i mit ação e o modo, a maneira pela qual ocorre a

i mit ação (como tal coisa é i mit ada). Assi m, segundo a classificação aristotélica, o poet a

pode i mitar através da narração (falando como si mes mo -- narrador -- ou ent ão como uma

personage m), ou pode dei xar as personagens falare m por si mes mas, sem i nt erferir. ‘ ‘The

basi c difference is bet ween telli ng and showi ng.’ ’ ( BORDWELL, 1985: 3).

É necessári o mant er estas i deias e m ment e para a análise que se seguirá nos

pr óxi mos capít ul os.

Tr at a mos até aqui da questão da nat ureza da li nguage m verbal e da li nguage m não

verbal, com a consci ência de não ter si do de uma maneira exausti va e não pret endendo

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chegar a concl usões no ca mpo da se mi ótica, mas fazendo pont es e m rel ação ao uso de uma

e de outra li nguage m, concl ui ndo que esse uso se faz soci al ment e.

Agora é preciso ai nda fal ar deste uso soci al das li nguagens verbal e não verbal

quando se trata de represent ação (no senti do usado por Auerbach e m Mi mesis), pois quando

se trata de arte, as linguagens são usadas de maneira diferente (daquel a e m que são usadas

no di a-a-di a).

Em O i magi nári o, Sartre expli ca que

a obra de arte é um anal ogon, tal qual a

i mage m ment al. ‘ ‘A obra de arte é um

irreal’ ’ (SARTRE 1996: 245). O exe mpl o é

u m retrat o pi nt ado num quadr o. Na medi da

e m que da mos i mport ânci a ao obj et o e m si,

passa m a aparecer a madeira, a tela, as

cores, as pi ncel adas; e a pessoa retrat ada

desaparecerá. O obj et o torna-se real. Na

medi da e m que viso a pessoa retratada, el a

me é ausent e, trata-se do irreal da citação

aci ma, um anal ogon da pessoa retratada.

Esse anal ogon, essa pessoa retratada irá

aparecer para mi nha consciênci a através de

u m ato meu, uma i ntencionali dade.

Fi gura 1 -- ‘ ‘ Mi nha mul her e minha sogra’ ’, do

caricat urista W. E. Hill, 1915. Repr oduzi do e m

MONACO, Ja mes. Fil m verstehen. Ha mbur g:

Ro wohlt Taschenbuch Verl ag, 1999. (p. 155)

Uma a mostra de que aquil o que eu vej o depende, se não i ntegral ment e como quer

Sartre, pel o menos depende e m parte da mi nha int enci onali dade é o desenho de W. E. Hill

reproduzi do aci ma. Podemos enxergar tant o uma senhora idosa com o perfil voltado para

nós, como pode mos ta mbé m visualizar uma j ovem que está, ao contrári o, virando o rost o

para trás, dei xando- nos ver tão-soment e sua mandí bul a esquerda, parte de seu quei xo, sua

orel ha esquerda e seu colo.

Al gué m poderia contra-argument ar que a i ntenci onali dade, neste desenho específico,

foi a do desenhista mui to mais do que a do recept or, já que a criação foi movi da pel o

obj eti vo de se fazer um desenho dúbi o.

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Mes mo assi m, um receptor poderia recusar-se a ver o dúbi o, e enxergar apenas a

vel ha ou então a j ove m, no desenho.

Al é m disso, um exe mpl o e m Sartre é o das i magens for madas pel as nuvens. Ali

certa ment e não houve uma i nt enci onali dade por parte de um desenhista, mas si m uma

intenci onali dade por parte do recept or. Muitas pessoas vêe m for mas si gnificativas a partir

dos for mat os das nuvens, enquant o outras pessoas vêe m t ão-soment e as próprias nuvens.

Sartre reforça ai nda a i dei a de que essa sensação de presença do ausent e não se dá,

através da mi nha i ntencionali dade, soment e no caso da pi nt ura fi gurati va. Ele exe mplifica

com o caso de quadros cubistas: posso não me remet er a al go que exista fora do quadr o, na

reali dade e mpírica; mas mes mo assi m, posso escol her cont e mpl ar as técni cas utilizadas

pel o pi nt or (nesse caso, o quadro não me é um anal ogon de nada, não me é um irreal) ou

ent ão opt ar por dei xar-me il udir pel as li nhas e for mas geométricas como se as mes mas

fosse m tridi mensi onais (nesse caso, mes mo que os obj et os ali pi nt ados não exista m na

reali dade e mpírica, ai nda assi m vej o profundi dades e relações espaci ais que não est ão de

verdade no quadro que, por sua vez, é plano). Os exe mpl os são muit os no caso das i magens

vi suais, ca mpo mais abordado por Sartre e m seu est udo d’ O I magi nári o. Entret ant o, há uma

menção muit o i mport ante acerca da li nguage m verbal, no que se refere à obra de arte: o

fil ósofo defende a i dei a de que os anal oga ocorrem i gual ment e no teatro e na literat ura, sej a

no romance seja na poesi a. Ele explica que o dra mat urgo, o poeta e o romancist a

constit ue m através dos anal oga verbais um objet o irreal. Mes mo um ator que, como a

pi nt ura, pode consi derar o seu própri o corpo co mo um anal ogon de uma personage m

i magi nária, pode ter uma atitude de crer ou de não crer e m sua personagem, ou sej a, pode

acreditar-se, no pal co, apenas como a pessoa de carne-e-osso que está ali dese mpenhando

u ma função de at or, ou pode acreditar-se, naquel e mo ment o, como sendo a própri a

personage m (confor me nossa atit ude perant e a pi nt ura). Sartre dei xa claro que, e m sua

opi ni ão, estas duas teses não se excl ue m, pois

se compreende mos por ‘ ‘crença’ ’ uma tese realizant e, é evi dent e que o at or

não col oca de modo al gum que ele é Ha ml et. Mas isso ta mbé m não

si gnifica de modo al gum que ele não se ‘ ‘mobilize’ ’ por i nteiro para

produzi-l o. El e utiliza t odos os seus senti ment os, suas forças, gest os como

anal oga dos senti ment os e dos comport a ment os de Ha ml et. Mas,

precisa ment e por esse motivo, irá irrealizá-los. Ele vive i nt eirament e num

mundo irreal. E pouco i mporta se chora real ment e, arrebat ado por seu

papel. Essas lágri mas (...) el e as apreende -- e o público com el e -- como

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lágri mas de Ha ml et, quer di zer, como anal oga de lágri mas irreais. Aqui

ocorre uma transfor mação se mel hant e àquel a que i ndicáva mos no sonho:

o at or é engoli do, tragado pel o irreal. Não é o personage m que se realiza

no at or, é o at or que se irrealiza e m seu personage m. (SARTRE 1996: 248-

249).

Se, por um l ado, na passage m aci ma d’ O i maginári o, Sartre explica o que há e m

comu m nas obras de arte, devi do a seu caráter irrealizante, sua quali dade de anal ogon, por

outro, em Qu’est-ce l a littérat ure? ele faz quest ão de di zer que, apesar de haver muit o e m

comu m entre as artes, precisa mos ta mbé m dei xar claro o que as diferencia: não apenas sua

for ma, mas ta mbé m sua mat éria. Na ori ge m de t oda vocação artística, dirá o filósofo, existe

u ma certa escol ha comu m entre os artistas, escol ha que só se diferenci ará depoi s, no

decorrer das circunst âncias, da for mação e do contat o com o mundo que cada artista vi er a

ter. É por isso que as artes (t odas elas) de uma mes ma época se i nfl uenciam mut ua ment e, e

são condi ci onadas1 6

pel os mes mos fat ores soci ais. E então Sartre coment a sobre o diál ogo

que existe entre as artes de diferent es medi a:

Mai s ceux qui veul ent f aire voir l’absurdité d’une théori e littéraire en

mont rant qu’elle est inapplicabl e à l a musi que doi vent prouver d’abord

que les arts sont parallèles. Or ce parallélis me n’existe pás. Ici, comme

part out, ce n’est pas seule ment l a f or me qui différenci e, mais aussi l a

mati ère ; et c’est une chose que de travailler sur des coul eurs et des sons,

c’en est une autre de s’expri mer par des mots. Les notes, les coul eurs, les

for mes ne sont pas des signes, elles ne renvoi ent à rien qui leur soit

éxt erieur. Bi en ent endeu, il est tout à f ait i mpossible de les réduire

strictement à elles- mê mes et l’i dée d’un son pur, par exe mpl e, est une

abstracti on : il n’y a, Merl eau- Pont y l’a bien montré dans l a

Phéno ménol ogi e de la percepti on, de qualité ou de sensation si

dépouillées qu’elles ne soient pénétrées de si gnificati on. Mai s le petit sens

obscur qui les habite, gai eté légère, ti mi de tristesse, leur de meure

i mmanent ou trembl e aut our d’elles comme une brumme de chal eur ; il

est couleur ou son. 1 7

(SARTRE 1948: 13).

1 6

Não pret endo de maneira al gu ma di zer que as artes são ‘ ‘condi ci onadas’ ’ por fat ores sociais. Est ou apenas

parafraseando Sartre, ‘ ‘re-col ocando’ ’ suas i deias aqui, para chegar a outro pont o, esse si m mai s i mportant e. 1 7

‘ ‘ Mas aquel es que quere m provar que uma teoria literária é absurda mostrando que a mes ma não se pode

aplicar à músi ca, be m, esses precisa m ant es de t udo provar que est as duas artes são paral el as. Ora, esse

paral elis mo não existe. Aqui, co mo t a mbé m nas outras artes, não é só a for ma que diferenci a, mas ta mbé m a

mat éria; trabal har com cores e sons é uma coisa, expri mir-se com pal avras é outra. As not as [ musi cais], as

cores, as for mas não são si gnos, não se refere m a nada que lhes sej a ext eri or. Cl aro, é impossí vel reduzi -l as

estritament e a elas mes mas e a ideia de um som puro, por exe mpl o, é uma abstração : não exist e, co mo

Merl eau- Pont y be m mostrou na Fenomenol ogi a da percepção, quali dade ou sensação tão despoj ada que não

sej a m penetradas de si gnificação. Mas o pequeno senti do obscuro que as habita, alegria passageira, tí mi da

tristeza, l hes per manece i manent e ou tre mul a ao redor delas como um vapor; ele é cor ou som.’ ’ (tradução

mi nha).

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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E conti nua, através de variados exe mpl os, passando pel a músi ca, pi nt ura, escult ura,

literat ura, para explicar que, na li nguage m não verbal, uma coisa si gnificada não existe, ela

é. Um pi nt or f az uma casa ao pi nt á-la e m sua tela, ele a cri a, ist o é, ele cria a própria casa,

u ma casa i magi nária, e não um si gno de casa. E esta casa criada, gerada, ela guarda t oda a

a mbi gui dade das casas reais (‘ ‘toute l’ambi guïté des maisons réelles’ ’). Ao passo que o

escrit or nos guia e m direção a um cortiço, por exe mpl o, e nos faz ver o sí mbol o das

inj ustiças soci ais, provoca nossa indi gnação etc. O pi nt or é mudo: ele nos apresent a um

cortiço, o qual jamais será um sí mbol o da miséria; seria necessári o que esse cortiço fosse

u m si gno, mas ele é a coisa. O pi nt or rui m procura pel o ti po, ele pi nt a o árabe, a criança, a

mul her, sendo que não existe ne m o árabe, nem a criança, ne m a mulher na reali dade

e mpírica, e ne m mes mo na tela de sua pi nt ura. É o que o bom pi nt or sabe, e ent ão el e

pr opõe um operári o, no qual estarão agl uti nados todos os senti ment os, todas as i dei as, e

u ma i nfi ni dade de coisas contradit órias. O pi nt or se ocupa das coisas. O escrit or se ocupa

das si gnificações. A partir disso, podería mos ent ender que, para Sartre, o pi nt or est á

ocupado com o showi ng enquant o o escrit or, com o telli ng, de Bor dwell.

Mes mo fazendo esta distinção, Sartre acredita que há outra diferenciação a ser feita:

acredita que o ca mpo dos signos é o da literat ura, como resumi aci ma, mas especifica ment e

o da prosa literária, pois a poesi a estaria no mes mo ca mpo da pi nt ura, escultura, música: o

das coisas. A j ustificativa que ele nos dá é a de que o prosador utiliza as pal avras (utiliza a

linguage m verbal) como instrument o, tal qual fazemos t odos no uso di ári o da lí ngua, para a

comuni cação ordi nária. O poet a, por sua vez, segundo Sartre, recusa-se a utilizar a

linguage m como i nstrument o. Não quere m no mear o mundo, não quere m no mear as coisas

que existe m no mundo, ne m quere m provar al guma reali dade ou de monstrar al guma coisa.

Assi m, concl ui Sartre, a poesi a não consi dera as pal avras como si gnos (que re met e m a

coisas si gnificadas), mas si m como as próprias coisas:

L’ homme qui parl e est au-dél à des mots, près de l’obj et; le poèt e est en

deçà. Pour le premi er, ils sont domesti ques; pour le second, ils restent à

l’ét at sauvage. Pour cel ui-là, ce sont des conventi ons utiles, des outils qui

s’usent peu à peu et qu’on jette quand ils ne peuvent pl us servir; pour le

second, ce sont des choses nat urelles qui croissent nat urellement sur l a

terre comme l’herbe et les arbres.1 8

(SARTRE 1948 : 19)

1 8

‘ ‘O home m que fala está além das palavras, pert o do objeto; o poeta está aqué m. Para o pri meiro, elas são

do mesticadas; para o segundo, conserva m-se no estado sel vage m. Para aquel e, são convenções út eis,

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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E defende que, na poesia, se estabel ece entre a pal avra e a coisa si gnificada uma

dupl a relação recí proca de se mel hança mági ca e de si gnificação. É necessário apenas fazer

u m l e mbret e de que, e mbora Sartre não menci one explicitament e, a prosa poética ta mbé m

deve ser consi derada como a poesi a.

Di scorda mos de Sartre, nest e pont o, na medi da e m que ele defenda o fat o de a

pi nt ura (ou artes visuais e m geral) e a poesi a se ocupe de coisas e não de signos, ao i nverso

do trabal ho com a pal avra (o prosador por exe mplo, ou o falant e comu m) que usa si gnos e

não coisas. Acredita mos, ant es, que tant o num quant o noutro caso, o que se col oca aí são os

si gnos, apenas diferent es ti pos de si gnos. Enquant o no pri meiro caso estaría mos fal ando

pri nci pal ment e de ícones e í ndices, no segundo estaría mos falando mais de sí mbol os, o que

vere mos adi ant e, ai nda nest e capít ul o. Al é m disso, utilizare mos estes conceit os e est a

di scussão com Sartre na análise que se segue nos próxi mos capít ul os, aplicando as

defi ni ções a respeit o de linguage m verbal e a respeit o de poesi a à análise do poe ma de

Handke e de al gumas falas poéticas do fil me, assim co mo me val erei das afir mações acerca

da li nguage m não verbal e das artes que a usa m para analisar as imagens, cenas e

sequênci as do fil me- obj eto.

A quest ão da se mel hança, ret omada na últi ma citação de Sartre, não apenas re met e

às pri meiras afir mações de Benj a mi n, como ta mbé m serão de i mport ânci a funda ment al para

ent ender o comport a ment o da personage m do anj o, Da mi el, em relação à personage m

Mari on, por que m el e se apai xona, e també m e m rel ação às crianças que aparece m no fil me

e no poe ma, se m falar no entendi ment o do te ma geral desta dissertação.

Em rel ação àquil o que há de si milar e de diferente na expressão artística tant o na

linguage m verbal quant o nas não verbais nos aj udará a ent ender o porquê de um poe ma t er

tant a i mport ânci a dentro de um fil me, a pont o de det er mi nadas sequênci as dest e fil me

sere m excl usi va ment e o própri o poe ma e m sua mat eriali dade (i mage m visual do poe ma

sendo escrit o, em vez de i magens da ação narrativa propria ment e dita).

Feitas estas observações acerca da i mage m, ret ome mos por um i nstant e a quest ão da

escrita chi nesa enquant o text o-i mage m ou i magem-t ext o.

i nstrument os que se usa m pouco a pouco e que j oga mos fora quando não serve m mai s; para o segundo, são

coisas nat urais que cresce m natural ment e na terra como a grama e as árvores’ ’ (tradução mi nha).

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Har ol do de Ca mpos não apenas organi za o li vro Ideograma (2000) como ta mbé m

partici pa del e com dois ensai os sobre o te ma de nosso i nt eresse. O ensai o ‘ ‘Fenoll osa

revisitado’ ’ fala da iconici dade dos si gnos da escrita chi nesa, explicando que el es ta mbé m

sofrera m um cert o distanci a ment o da coisa represent ada, assi m como os outros alfabet os,

de outras línguas, como o port uguês (ou o lati m, mes mo, se pensarmos no alfabet o

pr opria ment e dit o). Num alfabet o fonético, como o nosso, não sobrou absol ut a ment e

nenhu m traço de se mel hança entre a i mage m da letra (o desenho mes mo, o caract ere) e a

coisa si gnificada na Ant igui dade (quando letras era m deuses). No chi nês, entretant o, os

desenhos que se t ornaram caract eres da escrita era m baseados t otal mente na se mel hança

(ou si mil ari dade, que e m chi nês é o mes mo que se mel hança, segundo o autor) e, apesar da

si mplificação sofri da durant e a di nastia Chi ng, por orde m de seu pri meiro I mperador (cerca

de dois mil anos atrás), ou seja, apesar de os caract eres tere m passado a usar uma ‘ ‘espéci e

de estrut ura organi zada por traços, para deli near, de modo sutil mente sugesti vo, sua

se mel hança com os obj etos represent ados’ ’, ai nda assi m isso não si gnifica que el es tenha m

perdi do sua li gação com a coisa represent ada, não si gnifica que ‘ ‘os caracteres at uais ‘não

seja m baseados e m ícones’, mas que não mais t oma m a mera ‘si mil ari dade’ como ‘padrão’.

De si gnos ‘icôni cos’, eles se transfor mara m nu ma espéci e de ‘sí mbol os metafóricos’’ ’. (op.

cit., p. 14-15).

Est a mos di zendo que um caract er chi nês pode ser um si gno icôni co ou um sí mbol o

met afórico (pal avras de Har ol do de Ca mpos). O caract er chi nês é, a um só te mpo, uma

i mage m e uma pal avra, u m λόγος e um εί κων, exat a ment e o te ma dest a di ssertação. Ent ão

parece ser i mportante ent ender mos mel hor exatament e o que vê m a ser estes si gnos

icôni cos ou sí mbol os metafóricos. E para isso, precisa mos revisitar a defi nição de si gno1 9

.

Volt e mos a Saussure, que acreditava que a semi ol ogi a -- ciênci a que ai nda não

existia constit uí da e m seu te mpo, mas que ele previa e prescrevia -- devi a abarcar a

linguística, como sendo a ciênci a geral dos signos, enquant o esta última se dedi cari a

1 9

Co mo o present e trabal ho não é uma pesquisa sobre se mi ótica, ne m sobre linguística, ne m sobre filosofia

da li nguage m ou sobre o tema si gno per se, então fica claro que a introdução ao te ma do si gno -- e seus

desdobra ment os -- não será exausti va, ne m concl usi va. Ta mbé m não se espera que el a seja um apanhado geral

sobre si gno. Literat ura sobre se mi ótica propri a ment e dita está à disposição e m grande quanti dade e quali dade

e, para que m deseja responder a pergunt as específicas nesta área de pesquisa, as obras que consult ei pode m

conferir val or bi bli ográfico. Eu, no ent ant o, usarei os conceitos visitados na Se mi ótica de maneira aplicada,

se m perceber e m qual quer moment o a necessi dade de fazer aqui uma retrospecti va compl et a de t udo que j á se

disse e tudo que já se escreveu sobre si gno e sobre se mi ótica.

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especifica ment e ao est udo do si gno li nguístico. Em outras pal avras: enquant o a linguística

trataria dos si gnos verbais, a se mi ol ogi a trataria de t odos os si gnos, tant o os verbais quant o

os não verbais (SAUSSURE, 1995: 24). Assi m, o est udi oso suí ço defini u o si gno da

se mi ol ogi a como qual quer coisa que si gnifi que algo, e o si gno li nguístico, especifica ment e,

como al go que une não uma coisa a uma pal avra, mas si m um conceito a uma i mage m

acústica (i d., p. 79). O signo da se mi ol ogi a (ou da se mi ótica) é o mes mo que a ‘ ‘i mage m da

coisa’ ’ para Sartre (tant o para a linguage m verbal quant o para as não verbais). O aut or do

Curso Geral de Li nguística ai nda explica as caract erísticas que defi ne m o signo como tal:

arbitrariedade e lineari dade.

Rol and Bart hes, apesar de seguir Saussure, discorda deste últi mo no que diz respeit o

ao fat o de a Se mi ol ogi a abarcar a Li nguística, acreditando, ant es, no i nverso, já que mes mo

os si gnos não verbais, para sere m compreendi dos pel a ment e humana, precisa m

necessaria ment e ser compreendi dos através da li nguage m verbal ( BARTHES, 1996: 11-14).

Est e não pode ser o entendi ment o dest a questão, se levar mos e m consi deração um úni co

exe mpl o, o das pessoas sur das- mudas de nascença e que não adquire m a linguage m verbal,

mas pode m comuni car-se e inserir-se na vi da soci al com efeti vi dade: adquire m li nguage m.

Por outro lado, Bart hes ini cia uma di visão dos signos que irá mais de encontro às

teorias que quere mos alcançar para a aplicação no present e trabal ho. Pri meira ment e,

explica o teórico francês, ret omando Sant o Agostinho: ‘ ‘Um si gno é uma coisa que, al é m da

espéci e i ngeri da pel os senti dos, faz vir ao pensa ment o, por si mes ma, qualquer outra coisa’ ’

(SANTO AGOSTI NHO apud BARTHES, 1996: 39). Est a relação entre a coisa e o si gno são os

rel at a. E ent ão Bart hes jul ga i mport ante defi nir os si gnos segundo suas relações com as

coisas, segundo os rel at a, da segui nt e maneira:

1) a relação i mplica ou não a representação psí qui ca de um dos rel at a; 2)

a relação i mplica ou não uma anal ogi a entre os rel ata; 3) a ligação entre

os dois rel at a (o estí mul o e sua respost a) é i medi ata, ou não o é; 4) os

rel at a coi nci de m exatame nte, ou, ao contrário, um [rel at um]

‘ ‘ultrapassa’ ’ o outro; 5) a relação i mplica, ou não, uma li gação

existenci al com aquel e que dela se utiliza.(i d. p. 39-40) (negrit os meus).

Parti ndo destas ci nco possi bili dades, Bart hes faz um quadro si nóptico bast ant e

compl exo para tent ar dar cont a de ter mi nol ogi as usadas por Hegel, Jung, Peirce e Wall on,

que não reproduzire mos aqui, já que mais i mport ant e é a sua afir mação de que o

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si gno se mi ol ógi co ta mbé m é, como seu model o [que para Bart hes é o

si gno li nguístico], composto de um si gnificant e e um significado (a cor de

u m farol, por exe mpl o, é u ma orde m de trânsit o no códi go rodovi ári o),

mas del e se separa no ní vel de suas subst ânci as. Muit os siste mas

se mi ol ógi cos (obj et os, gestos, i magens) tê m uma substânci a da expressão

cuj o ser não está na si gnificação: são, muitas vezes, obj et os de uso,

deri vados pel a soci edade para fi ns de si gnificação: a roupa serve para

nossa prot eção, a comi da para nossa ali ment ação, ainda quando, na

verdade, sirva m t a mbé m para si gnificar. (id., p. 44) (negrit o meu).

É curi oso not ar que, na edi ção de 1996, durant e esta passage m, Bart hes faz uma

not a de rodapé para a palavra ‘ ‘i magens’ ’ em negrito na transcrição aci ma. Na not a, el e di z

que ‘ ‘Na verdade, o caso da i mage m deveria ficar reservado, pois a i mage m é

‘i medi at a ment e’ comunicant e, quando não si gnificant e’ ’. Esta nota nos é mai s relevant e do

que aquil o de que ela é not a, pois ela equi val e a dizer que a afir mação de Bart hes ali nha-se

com a de Lessi ng (a pi ntura ‘ ‘dá’ ’ a coisa, a literatura re met e-nos à coisa significada), com a

de Bor dwell (o teatro e o ci ne ma show, e a literatura tells al guma coisa) e com a de Sartre

(a i mage m visual já é a i mage m ment al daquela coisa ausent e de que el a é i mage m, ao

passo que a pal avra é uma i mage m ment al que suscita outra i mage m, faz ficar ausent e o

que está present e na pal avra).

O ent endi ment o de Jakobson ta mbé m parece com o de Bart hes no que diz respeit o à

superi ori dade da Li nguística sobre a Se mi ótica, sendo esta últi ma por eles consi derada uma

parte da pri meira.

Peirce não está de acordo com isso, acreditando ant es que a Se mi ótica é a ci ênci a

geral dos si gnos, dentro da qual está i nseri da a Li nguística. Mas mes mo assi m Jakobson

parece seguir a met odol ogi a da di visão triádica de Peirce quando escreve, e m seu

Li nguística e Comuni cação, que

quando se est udare m cui dadosa ment e as ideias de Peirce a respeit o das

teorias dos si gnos, dos signos li nguísticos e m particul ar, ver-se-á o

preci oso auxíli o que traze m às pesquisas sobre as relações entre a

linguage m [verbal] e os outros siste mas de si gnos. Sere mos ent ão capazes

de discernir os traços própri os do si gno li nguístico (JAKOBSON, edi ção

se m ano, p. 17)

Mai s i mport ante, no entant o, é o que o li nguista russo dirá, em seu Linguística.

Poética. Ci ne ma, quando, refleti ndo sobre os avanços ocorri dos desde Saussure (que queri a

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que fosse criada uma teoria ou ciênci a geral dos si gnos) chegando aos est udos até ali

e mpreendi dos (cont e mporâneos da obra cit ada), afir ma que

A rel ação entre a linguagem usual [verbal] e os de mais tipos de si gnos

pode ser tomada como um pont o de parti da para o respecti vo agrupa ment o.

Uma variedade de siste mas se mi óticos consiste de di versos substit ut os da

linguage m falada. É o caso da escrita, que é -- tant o ont ogenética quant o

filogenetica ment e -- uma aquisição secundária e opci onal quando

comparada ao discurso oral, uni versal ment e humano, e mbora às vezes os

aspect os gráfico e fôni co da linguage m sej a m ti dos pelos cientistas como

duas ‘ ‘substânci as’ ’ equi val ent es. (JAKOBSON, 1970: 16)

Quando menci ona a propriedade ont ogenética e a filogenética, Jakobson est á se

referi ndo provavel ment e aos conceit os de Vygotsky que classifica m as caract erísticas

hu manas que são da espéci e bi ol ógi ca humana (filogenética) e da experiênci a i ndi vi dual do

curso de uma vi da (ont ogenética) que as pessoas têm, ou sej a, o aut or explica que a escrita

não é nat ural como a língua falada é. E ele faz uma anal ogi a com os outros siste mas de

si gnos (não verbais), que ele consi dera i gual ment e não nat urais (artificiais).

Pode mos pensar que uma fot ografia, uma pi nt ura, um sofá, uma t el evisão ou um

si mpl es lápis são artificiais enquant o si gnos que se nos dão à percepção, por que fora m

construí dos ou fabricados. Já uma mont anha, uma nuve m, ou o sol se pondo no hori zont e

são ta mbé m si gnos2 0

não verbais (i magens que se dão aos sentidos, para serem captadas e

interpretadas), e não são artificiais, o que i nvali da o últi mo coment ári o.

O contrári o també m é verdadeiro: a linguage m verbal -- que Jakobson considera at é

aí como sendo nat ural (ont o e filogenética) pode ser artificial quando se fala m pal avras

invent adas, quando se usa m palavras com senti do diferente do convenci onal, enfi m, quando

se usa m outras funções da li nguage m que não a função denot ati va ou referenci al.

Uma t ese de dout ora ment o recent e ment e defendi da na Facul dade de Fil osofia,

Letras e Ci ênci as Hu manas da USP, i ntit ulada Iconof ot ol ogi a do Barroco Al emão, de

aut oria de Ant oni o Jackson Brandão (2008), aborda o par literat ura e fot ografia. No que di z

2 0

‘ ‘Se qual quer coisa pode ser u m si gno, o que é preciso haver nela para que possa funcionar como si gno?

Para Peirce, entre as infi nitas propri edades mat eriais, substanci ais etc. que as coisas tê m, há três propri edades

for mai s que l hes dão capaci dade para funci onar como si gno: sua mera quali dade, sua existênci a, quer di zer, o

si mpl es fat o de existir, e seu carát er de lei. Na base do signo, estão, como se pode ver, as três cat egori as

feno menol ógi cas. Ora, essas três propri edades são comuns a todas as coisas, Pela qualidade t udo pode ser

si gno, pela existênci a, t udo é si gno, e pela lei, tudo deve ser si gno. É por isso que t udo pode ser si gno, se m

dei xar de ter suas outras propriedades’ ’. (SA N T A E L L A , 2002: 12).

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respeit o à literat ura, o objet o tratado pel a tese é especifica ment e a poesia; e no que tange à

fot ografia, o aut or est udou a fundo a quest ão da image m, defendendo que:

(...) essa revol ução de per si não é nenhu ma novi dade para o homo sapi ens,

vi st o que o domí ni o i magético é a orige m do própri o ho me m enquant o ser

raci onal. Assi m, quando ele apreende e domi na a utilização da i mage m

e m benefíci o própri o, desenvol ve suas habili dades i ntel ect uais para poder

no mear os ele ment os da nat ureza. Dessa for ma, as próprias i magens

possi bilitaria m, a posteri ori (segundo a visão kantiana), a criação dos

inúmer os siste mas linguísticos existent es, não só para sere m meras

i magens e m nossa consciênci a, mas para que pudesse m ser fi xados e

corporificados a partir de ele ment os nat urais via μί μηζις ( mí mesis).

Ini cial ment e, essas i magens restri ngi a m-se a meros i ndí ci os rupestres que

fora m reestilizados, dando ori ge m a i magens disti ntas daquel as pri miti vas

que buscava m represent ar. Ocorre, portant o, a desaparição necessária

daquil o que a funda, pois o traço de represent ação pri meiro foi sendo

eli di do para t ornar-se pura represent ação ( Cf. Foucault, 1966, p. 33). Co m

a escrita fonética -- abstração t otal dos ele ment os da nat ureza por mei o da

consci ênci a humana -- o ho me m t e m o domí ni o pleno do λόγος (l ogos)

que del e se ori gi na e se encarna e m qual quer superfíci e que seu criador

queira. No ent ant o, o eu est ava fadado a não poder fugir mais de sua

própria i mage m e daquel as que criaria, como na construção de um text o.

( BRANDÃO, 2008: 10)

Conf or me ve mos na passage m aci ma, Brandão não se apoi a e m Lessi ng, Benj a mi n,

Sartre, Bart hes ou Jakobson, e si m e m Foucault, mas está de acordo com aquel es pri meiros

ao di zer que a linguagem não verbal é a pri meira (‘ ‘indí ci os rupestres’ ’), do pont o de vista

do registro escrit o, passando para a verbal (‘ ‘pura represent ação’ ’). É o mesmo que di zer que

o códi go da escrita humana era icôni ca, mas com o passar do te mpo t orna-se si mbólica.

Os ter mos icôni co e si mbólico, aliás, estão cal cados na teoria dos si gnos de Peirce,

que o subdi vi de e m si gno icôni co, si gno i ndiciário e si gno si mbólico, ou ainda quali-si gno,

si n-si gno, e legi-si gno.

Nos li vros Se mi ótica aplicada (2002) e Matrizes da li nguage m e do pensament o

(2005), Lúci a Sant aella explica as teorias do semi ótico norte-a meri cano, aj udando- nos a

ent ender o funci ona mento -- do pont o de vista se miótico -- das coisas e seus si gnificados.

El a explica, e m pri meiro lugar, que o que dá fundament o ao si gno são sua quali dade,

sua mera existênci a e seu carát er de lei. O exe mpl o da aut ora para a qualidade é uma cor,

u ma cor qual quer, se m consi derar mos e m quê ela está corporificada. Ela pode at é ter um

si gnificado que é uma lei (o pret o, por exe mpl o, como a cor do l ut o no Oci dent e). Poré m,

pri mor di al ment e a cor cont é m uma quali dade. Ela traz outras coisas à ment e. A cor azul-

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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cl ara, por exe mpl o, pode produzir uma cadei a associ ati va que faz le mbrar roupa de bebê,

céu et c. A cor propria ment e dita não é o céu ne m a roupa. Mas ela os sugere, por sua

quali dade. Pode ser uma cor, um cheiro, um aspecto etc. É o quali-si gno, ou ícone.

No que di z respeit o à existênci a, a aut ora explica que t odo existent e, tudo aquil o que

é, que ocupa um l ugar no te mpo e no espaço, si gnifica al go, está e m relação a outros

existent es, conecta-se a eles. Trat a-se do si n-si gno (onde ‘ ‘sin’ ’ quer dizer singul ar, exist ent e

úni co e m relação aos demai s), ou do í ndice.

Por fi m, e m rel ação à propriedade funda ment al da lei de um si gno, a explicação é a

de que se trata de uma abstração, que age sobre algo. É o caso, por exe mplo, das pal avras.

El as tê m força de lei, porque são uma abstração col eti va, ao mes mo te mpo i mposta e aceita

pel os i ndi ví duos daquel a col eti vi dade, por sere m convenções soci ais (leis). Ei s ent ão o legi -

si gno, ou sí mbol o.

Assi m, um í cone só pode sugerir ou evocar al go por que a quali dade que ele exi be se

asse mel ha a uma outra quali dade. Peirce di vidi u os ícones e m três ní veis: i mage m,

di agra ma e met áfora:

A i mage m estabel ece uma relação de se mel hança com seu obj et o

pura ment e no ní vel da aparênci a. I magens de um gat o, de um bosque, de

u ma praça pode m representar esses obj et os quando apresent a m ní veis de

si milari dade com o modo co mo os mes mos são visualment e percebi dos.

O di agra ma represent a seu obj et o por si milari dade entre as rel ações

internas que o si gno exi be e as relações i nternas do obj et o que o si gno

vi sa represent ar. O mapa do metrô de Londres, por exe mpl o, é um

di agra ma, pois a si milari dade com seu obj et o não se dá no ní vel das

aparênci as, mas no ní vel das relações i nternas.

A met áfora represent a seu obj et o por si milari dade no si gnificado do

represent ant e e do represent ado. Ao aproxi mar o si gnificado de duas

coisas i ndisti ntas, a met áfora produz uma faísca de senti do que nasce de

u ma i denti dade post a à mostra. É j usta ment e esse efeito que uma frase do

tipo ‘ ‘Ela te m ol hos de azeitona’ ’ produz. (SANTAELLA, 2002: 18)

Charl es Sanders Peirce usa o ter mo ‘ ‘substit ut o’ ’ para defi nir ícone: ‘ ‘Qual quer coisa

é capaz de ser um substitut o para qual quer coisa com a qual se asse mel he’ ’ (PEI RCE, 2005:

64), e explica ai nda que ‘ ‘a única maneira de se co muni car direta ment e uma i dei a é através

de um í cone; e t odo método de comuni cação i ndireta de uma i dei a deve depender, para ser

estabel eci do, do uso de um í cone’ ’ (id. ib.)

Ant es de prosseguir mos ru mo ao í ndice e ao sí mbol o, é i mportante ressaltar que est a

subdi visão dos ícones feita por Peirce, assi m como a própria noção de ícone serão

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funda ment ais para os próxi mos capít ul os do presente trabal ho. Sant aella conti nua sua

explicação sobre os três tipos de si gnos di zendo que o í ndi ce é be m diferent e do ícone, e

que isso pode ser evi denciado através do exe mpl o de uma fot ografia de uma mont anha:

A mont anha, cuj a i mage m foi capt urada na fot o, de fat o, existe fora e

independent e ment e da foto. Assi m, a i mage m que est á na fot o te m o

poder de i ndi car exat a mente aquel a mont anha si ngular na sua existênci a.

O que dá funda ment o ao índi ce é sua existênci a concreta. Para i ndi car a

mont anha, a fot o evi dent ement e ta mbé m precisa ser um existent e tant o

quant o a mont anha o é. (i d., p. 18-19)

Vi mos até aqui que os ícones e os í ndi ces (para Peirce e Sant aella) são i magens que

re met e m a outras coisas. Os pri meiros re met e m à quali dade de al go que está ausent e, mas

que se presentifica. Os segundos são uma i magem que i ndica al go concret o -- exist ent e --

que está ausent e, e també m o presentifica (para usar mos a ter mi nol ogia de Sartre, n’ O

I magi nári o, confor me discuti mos anteri or ment e). E, ‘ ‘se, no caso do ícone, não há disti nção

entre o funda ment o e o obj et o i medi at o, já no caso do í ndice essa disti nção é i mport ante’ ’

(i d., p. 19). Mais i mportante: o í ndi ce não necessaria ment e mant é m u ma rel ação de

se mel hança com seu obj eto.

No exe mpl o da fot ografia da mont anha e a própria mont anha, o í ndi ce é també m u m

ícone, pois os ní veis de si gno se mi st ura m e se alterna m, tendo mai or ou menor presença

e m casa si gno. Mas no exe mpl o clássico da se mi ótica para o que ve m a ser um í ndi ce -- a

fumaça como í ndi ce de fogo -- a fumaça e o fogo não mant é m nenhu ma relação de

se mel hança. A fumaça pode até exi bir al guns quali-si gnos icôni cos (ela é ci nza, é fl ui da, é

difusa etc.), mas sua relação com o fogo é outra: é i ndi cial. O í ndi ce é ‘ ‘parte de um outro

existent e, para o qual o índi ce apont a’ ’.

Já o sí mbol o -- ou terceiridade, para usar mos a termi nol ogi a do própri o Peirce -- t e m

u ma ação mais compl exa, por ser uma lei, uma abstração, uma convenção.

Se o funda ment o do sí mbolo é uma lei, ent ão o sí mbol o está plena ment e

habilitado para represent ar aquil o que a lei prescreve que ele represent e. O

hi no naci onal represent a o Br asil. A bandeira brasileira represent a o Brasil.

A Praça dos Três Poderes, em Brasília, representa os três poderes.

Convenções soci ais age m aí no papel de leis que faze m com que esses

si gnos deva m represent ar seus obj et os di nâ mi cos. (id., p. 20)

Os ter mos ‘ ‘represent ar’ ’ e ‘ ‘convenção’ ’ são defi nidoras do que é o sí mbol o.

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Sant aella faz ai nda um pont o para det er mi nar as diferenças entre ícone, índi ce e

sí mbol o com base nas diferenças dos objet os di nâmi cos e i medi at os de cada um.

O obj et o di nâ mi co é aquel a coisa à qual nos referi mos, à qual re met e mos quando

di ze mos al guma coisa. O obj et o i medi at o é o modo como o si gno representa, indi ca, se

asse mel ha, sugere ou evoca aquil o a que ele se refere. Ele te m uma função medi adora. O

exe mpl o da aut ora para diferenci ar o objet o dinâ mi co do i medi at o é a experi ênci a de

comparar a pri meira pági na de dois j ornais diferent es, em um mes mo dia. O obj et o

di nâ mi co de a mbos são os acont eci ment os mais recent es e i mportantes. O obj et o i medi at o é

a maneira pel a qual esse obj et o di nâ mi co é apresent ado.

O obj et o i medi at o de um ícone é se mpre um obj eto descriti vo. O de um í ndi ce é um

obj et o desi gnati vo, e o de um sí mbol o é um obj eto copul ante. O obj et o dinâ mi co ta mbé m

se di vi de e m três, mas e m vez de prosseguir mos discuti ndo as t eorias de Peirce

text ual ment e, a segui nte tabel a resume os aspect os pri nci pais que serão utilizados na

análise da obra da presente dissertação:

Verbo Funda ment o Si gno Obj eto

I medi ato

Obj eto

Di nâ mi co

Si gno e m

si

Rel ação co m o

objeto

Sugere Quali-si gno Í CONE Descriti vo Possí vel Abstrati vo

Si mil ari dade/

le mbrança entre o

si gno e o obj et o

Indi ca Si n-si gno Í NDI CE Desi gnati vo Ocorrênci a Concreti vo

Si mil ari dade entre

relações i nt ernas do

si gno e as relações

internas de seu

obj et o. Uma parte

de outra coisa.

Represent a Legi-si gno SÍ MBOLO Copul ant e Necessitante/

Ti po Col eti vo

Se mel hança

‘ ‘construí da’ ’ entre o

si gno e o obj et o,

sendo que esse

construct o se dá

soci al ment e.

Í CONE

I mage m Se mel hança por aparênci a

Di agra ma Si mil ari dade entre as relações internas

Met áfora Si mil ari dade entre o si gnificado do represent ant e e do represent ado

Os si gnos para Peirce não são ‘ ‘puros’ ’ e ‘ ‘estanques’ ’, incomuni cáveis entre si. Est a

di visão é uma mera abstração científica e, em certa medi da, di dática.

No li vro Se mi ótica (2005), o aut or enumera dez cl asses de si gnos, baseando-se nas

possí veis combi nações entre eles, tais como: si n-si gno icôni co (u m si gno que,

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subst anti va ment e, é um índice, mas que te m aspect os adj eti vos de ícone), ou ai nda legi-

si gno icôni co etc. Não é necessári o det al har mos as dez classes aqui, pois o pont o é outro.

Peirce le mbra que existe uma outra relação triádica: a do si gno, da coisa e m si (o

obj et o) e do i nt erpret ante:

Um Si gno, ou Represent âmen, é um Pri meiro que se col oca numa rel ação

triádi ca genuí na, tal com u m Segundo, deno mi nado seu Obj et o, que é

capaz de det er mi nar um Terceiro, deno mi nado seu Interpret ant e, que

assuma a mes ma relação triádi ca com seu Obj et o na qual ele própri o est á

e m relação com o mes mo Obj et o. (PEI RCE, 2005: 63)

Port ant o, é i mport ante mant er e m ment e a questão do Int erpret ant e para quando

iniciar mos a análise das obras.

O í cone é uma i mage m de seu obj et o, portant o, um εί κων (ícone = i mage m); o

índice é uma parte daqui lo de que é si gno, portanto um ζήμα (se ma); e um sí mbol o é uma

convenção, um ζύμβολον (sí mbol on), ou seja, aquel e que corre conj unta ment e, que vai

acompanhando por convenção. (i d., p. 63-76)

Peirce faz uma defi nição que não se pret endi a enquant o tal, porque consta apenas

como coment ári o, mas que resume o que quere mos saber:

Um í cone é um si gno que possuiria o caráter que o torna si gnificant e,

mes mo que seu obj et o não existisse, tal como um risco feit o a lápis

represent ando uma li nha geo métrica. Um í ndi ce é um si gno que de

repent e perderia seu caráter que o t orna um si gno se seu obj et o fosse

re movi do, mas que não perderia esse caráter se não houvesse i nterpret ant e.

Tal é, por exe mpl o, o caso de um mol de com um buraco de bal a como

si gno de um tiro, pois sem o tiro não teria havi do buraco; poré m, nel e

existe um buraco, quer tenha al gué m ou não a capacidade de atri buí-l o a

u m tiro. Um sí mbol o é um signo que perderia o caráter que o t orna um

si gno se não houvesse um int erpretant e. Tal é o caso de qual quer el ocução

de discurso que si gnifica aquil o apenas por força de compreender-se que

possui essa si gnificação. (id., p. 74)

Para efeito de ter mi nol ogi a, especifica ment e nesta dissertação, diferenciare mos a

i mage m que é um subtipo do ícone, cha mando-a de ícone-i mage m e, anal oga ment e, os

outros dois subti pos serão cha mados ícone-di agrama e ícone- met afora).

Assi m, quando menci onar mos ‘ ‘i mage m’ ’ pura ment e, estare mos nos referi ndo à

i mage m e m senti do lat o. Quando nos referir mos ao ícone-i mage m, estaremos fal ando do

ícone que represent a seu obj et o por se mel hança quase absol ut a.

Da mes ma maneira, quando se fizer menção ao ícone- met áfora, sabere mos que não

se trata da met áfora tradi ci onal ment e classificada como tal na ret órica e nas teori as

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literárias, mas si m do ícone que represent a seu obj et o por transferência ou transposi ção,

transporte.

Hans Belti ng (2005) -- aut or de ‘ ‘Por uma antropol ogi a da i mage m’ ’ -- defende, no

ent ant o, que a i mage m é mais do que o que a se mi ol ogi a consi dera, isto é, mai s do que

pode ser abarcado por signos, seja m el es ícones, índi ces ou sí mbol os. També m é mai s do

que a tradi ção dos est udos da i mage m l he atribui. Seu ent endi ment o de i mage m co mo

‘ ‘i mage m ment al’ ’ está próxi ma daquel a de Sartre, e m O I magi nári o.

Para o francês, a i mage m é uma represent ação de al go ausent e. Eu posso consi derar

a i mage m uma nova coisa (ausentificando o obj eto represent ado), ou como uma i mage m da

coisa (presentificando-a), o que depende de mi nha i ntenci onali dade (confor me discuti do

ant eri or ment e nest a dissertação).

Para o ale mão, a i mage m t a mbé m presentifica al go, poré m, ela ‘ ‘deve ser

identificada como uma enti dade si mbólica’ ’ (BE L T I N G 2005: 67). Há muitas outras

di scussões ai nda que são conduzi das pel o aut or, que não apenas discute os pri mór di os da

utilização do conceit o ‘ ‘image m’ ’ (pel os gregos, quando usara m pela primei ra vez o ter mo

εί κων), mas ta mbé m estuda a questão da i magem dos mort os, entre outras coisas. A nós,

poré m, i nteressa particular ment e o ent endi ment o da i mage m como ‘ ‘sí mbol o’ ’, e vere mos

logo adiant e por quê.

Di t o isso a respeit o das i magens, consi deradas si gnos, do pont o de vista da

Se mi ótica e, em sua pequena medi da, consi deradas como enti dades mentais, do pont o de

vi sta da Psicol ogi a, Fil osofia e da Antropol ogi a, le mbre mos o que di z a Retórica tradi ci onal

sobre a as pal avras que são i magens.

Ant oni o Candi do, n’ O estudo analítico do poe ma (1987) explica que, os ele ment os

do discurso, para os ret óricos, era m os adornos, di vi di dos por sua vez e m tropos e figuras.

Os tropos são de três tipos:

Os do pri meiro ti po serve m para si gnificar e ornar (alterando o senti do da pal avra e,

ao mes mo te mpo, atri buindo-l he um el e ment o de bel eza). São a met áfora, a alegori a, a

ironia, a met oní mi a, a metalepse, a ant ono mási a, a ono mat opei a e a hi pérbole.

Os do segundo ti po serve m para apenas si gnificar. A este tipo pertence m a

si nédoque e o epítet o.

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E os do terceiro ti po serve m apenas para ornar, ou seja, para acrescent ar um

el e ment o de bel eza à palavra. São a perífrase e o hi pérbat o.

Est as últi mas não di ze m respeit o ao si gnificado, e si m ao si gnificant e apenas. Por

isso não serão consi deradas dest e pont o e m diante. Serão analisados os tropos ou fi guras de

linguage m que t oca m na quest ão do si gno -- tanto e m sua parte si gnificante quant o e m sua

parte si gnificado. Assi m, nossa atenção estará voltada às fi guras do pri meiro e do segundo

gr upo.

Candi do discute que a met alepse é o nome de um antecedent e pel o do consequent e

(numa relação de ordem) e que ela é consi derada por al guns aut ores co mo sendo uma

si nédoque, e por outros co mo sendo uma met oní mia. Um exe mpl o citado pel o est udi oso é a

frase ‘ ‘O sol caíra’ ’ (em que o vocábul o ‘ ‘sol’ ’ estaria met oni mi ca ment e no lugar de ‘ ‘noite’ ’).

Co mo existe esta polê mi ca e m t orno do conceit o de met al epse, não nos prendere mos a ela,

pois tant o a met oní mi a quant o a si nédoque -- categorias dentro das quais a met al epse se

encai xa -- serão averi guadas e m mais det al he, o que garante que a própria quest ão da

met al epse será exa mi nada, seja aceitando uma corrente, seja aceitando a outra.

A ant ono mási a é o uso do acessóri o e m l ugar do nome própri o do i ndi víduo, dirá

Candi do. Ocorre, portant o, o mes mo que se passa com a met alepse: para al guns a

ant ono mási a é uma si nédoque, e para outros ela é uma met oní mi a. Dei xare mos est e tropo

també m como a met alepse para ser analisada como uma si nédoque ou como uma

met oní mi a.

A ono mat opei a é o uso de pal avras que exprime m o som nat ural da coisa que

pret ende m si gnificar. Candi do explica que, para muit os, ela não é um tropo, pois não traz

mudança da pal avra do seu senti do para outro. Ela estaria, para Lessi ng e Benj a mi n (como

vi mos ant eri or ment e) nos iníci os da li nguage m verbal, quando as pal avras estava m mai s

pr óxi mas de seu carát er de i mitação da reali dade, de seu caráter de μί μεζις.

A ironi a é usada quando expressões contrárias àquel as que se pensa são col ocadas

para causar um i mpact o. El a pode ser um sarcas mo, uma antífrase ou um eufe mi s mo. El a é

u m tropo que altera o si gnificado ori gi nal de uma pal avra para causar o efeito desej ado.

O exagero de um enunciado ou de uma pal avra para alé m dos li mites da verdade é o

que se cha ma de hi pérbole.

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A μεηαθορά ( met áfora), pal avra do grego anti go, pode ser traduzi da para port uguês

també m como ‘ ‘transporte’ ’, ‘ ‘transposi ção’ ’, ‘ ‘transferênci a’ ’. É o que acont ece, de fat o,

quando se constroi uma met áfora como, por exempl o, nos segui nt es versos:

Al s das Ki nd Ki nd war, [ Quando a criança era criança,

wußt e es nicht, dass es Ki nd war, el a não sabi a que ela era criança,

alles war i hm beseelt, tudo l he parecia ter al ma,

und alle Seel en waren ei ns. e t odas as al mas era m uma só.]

A ‘ ‘criança’ ’ neste poe ma não é necessaria ment e a criança concreta da reali dade

e mpírica que conhece mos. É, ant es, um represent âmen (na ter mi nol ogia de Peirce) que

evoca possí veis em seu lugar. Ist o é, o vocábulo ‘ ‘criança’ ’ pode até mes mo si gnificar

si mpl es ment e ‘ ‘criança’ ’, mas seu pot encial polissêmi co é sua vant age m, seu diferenci al, sua

mági ca. É um si gnificant e que transport a o interpret ante2 1

para inúmeros possí veis

si gnificados, pois

a met áfora consiste no transportar para uma coisa o no me de outra, ou do

gênero para a espéci e, ou da espéci e para o gênero, ou da espéci e de uma

para a espéci e de outra, ou por anal ogi a. ( ARI STÓTELES, 1993: 107)

A anal ogi a explicada por Arist ót eles ecoa nas explicações de muit os -- senão de

todos -- os teóricos da literat ura até hoje e m dia. Para Massaud Moi sés, por exe mpl o:

a met áfora seria uma pal avra-chave, ou pal avra catalisadora, ou palavra-

mat riz, cercada de pal avras secundárias ou dependentes, tudo compondo

‘ ‘at mosferas’ ’ poéticas. ( MOISÉS, 1996: 42)

Para o aut or de A análise literári a, uma met áfora ou pal avra-chave estará cercada

por outras pal avras secundárias que, por sua vez, resulta m do desdobra ment o da pal avra-

chave, realizando um processo circul ar: pal avras-chave se mpre estarão rodeadas de outras

pal avras que l he serão subor di nadas e l hes constitue m o prol onga ment o ou a mplificação.

Desse modo, a obra t oda de um poet a constituiria uma espéci e de ‘ ‘poli met áfora’ ’, ou

‘ ‘hiper met áfora’ ’, composta de todas as met áforas que colabora m na estruturação dos seus

poe mas. É o mes mo que Candi do (1996) cha ma de alegori a, portant o.

Podería mos agrupar a hipérbol e, a ironia, e a alegoria dentro de um grande grupo

cha mado met áfora, por enquant o.

No pri meiro grupo de tropos, temos ai nda a met oní mi a:

2 1

PEI RCE, 2005.

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é o e mprego do nome de u m obj et o por outro (relação de orde m): causa

pel o efeit o, si nal pela coisa si gnificada, possui dor pel a coisa possuí da,

conti nent e pel o cont eúdo, invent or pel a i nvenção ou vi ce-versa: vi vo do

meu trabal ho (não do produt o do...), as togas contra as espadas; as ar mas

de Hol anda; a vont ade do Céu, li Platão. ( CANDI DO, 1987: 83)

Por fi m, os tropos cha mados si nédoque2 2

e epítet o são aqueles que não transfor ma m

o si gnificado ori gi nal da palavra. São fi guras denot ati vas mais do que conot ati vas. São o

que são.

Co m rel ação à si nédoque, especifica ment e, há u ma certa pol ê mi ca e m torno de

como defi nir o ter mo, e um evi dent e desacordo entre al guns teóricos nos quais pude mos

nos debruçar por um i nstant e para averi guar esta quest ão.

Por um l ado, Candi do incl ui a si nédoque no grupo de pal avras denot ativas. Por

outro, muit os outros aut ores defende m que a si nédoque não é -- como o epítet o -- um tropo

denot ati vo, mas si m uma espéci e de ‘ ‘pri ma’ ’ da met oní mi a, portant o partici pant e do grupo

dos tropos conot ati vos. Exe mpl os de aut ores que defende m est a i dei a há vários.

Fi ori n (2002), por exe mplo, conceit ualiza a si nédoque como sendo

u m ti po de met oní mi a, e m que a relação entre os dois si gnificados é uma

relação de i ncl usão, que não dei xa de ser um ti po de conti gui dade, de

coexistênci a. Essa relação ocorre, quando um si gnificado i ndi ca a parte e

o outro, o t odo, um expressa o cont eúdo e o outro, o conti nent e, etc. Co m

efeit o, a parte está i ncl uída no t odo; o cont eúdo está i ncl uí do no

conti nent e. (p. 66)

Del euze (1983) vai alé m, quando defende que a sinédoque, por ser uma maneira de

expressar a reali dade através do pars pro t ot o, é um el e ment o constit utivo da li nguage m ( op.

cit., p. 112) e també m quando menci ona que a sinédoque pode ser agrupada j unt a ment e

com a met áfora e com a met oní mi a, por sere m t odas i gual ment e ‘ ‘tropos propria ment e dit os,

u ma pal avra t omada num senti do fi gurado [que] substit ui uma outra pal avra’ ’ (id., p. 206).

Para Umbert o Eco, no entant o, não apenas a sinédoque i ncl ui-se nos tropos

conot ati vos, como ta mbé m é a ‘ ‘ mãe’ ’ de outras fi guras, como a met áfora e a met oní mi a.

Est as duas, para o est udioso italiano, são ti pos de sinédoque. A discussão assi m conduzi da

2 2

Aut ores como José Lui z Fi orin (2002: 66) e Deleuze (1983: 112) consi dera m que a sinédoque seja um ‘ ‘tipo

de met oní mi a’ ’, em que ta mbé m ocorre a transposição de senti do através da parte pel o todo. Poré m, co mo

existe controvérsi a sobre o te ma, ficare mos, nest a dissertação, com a acepção de Antoni o Candi do, que

siste matiza t odos os tropoi e diferenci a cada um del es.

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e m Se mi ótica e filosofi a da li nguage m chega ao pont o de averi guar que não há muit o

senti do na disti nção entre sinédoque e met oní mi a:

Quant o à si nédoque, fala-se de ‘ ‘substituição de dois ter mos entre si,

segundo uma relação de mai or ou menor ext ensão’ ’ (parte pel o t odo, t odo

pel a parte, espéci e pel o gênero, si ngul ar pel o pl ural ou vice-versa),

enquant o para a met oní mi a se fala de ‘ ‘substituição de dois ter mos entre si,

segundo uma relação de conti gui dade’ ’ (onde conti guidade é um conceit o

bastant e vago porque compreende as relações causa/ efeit o,

conti nent e/cont eúdo, mei o por operação, lugar de ori ge m por obj et o

ori gi nári o, e mbl e ma por embl e matizado e assi m por di ant e). Em segui da,

ao se especificar que a sinédoque opera substituições no i nteri or do

cont eúdo conceit ual de um t er mo, enquant o a met oní mi a age fora del e,

não se ent ende por que /as vel as de Col ombo/ é sinédoque (vel a por

navi o) e / os lenhos de Colo mbo/ é met oní mi a (lenho como mat éria por

navi o como resultado for mado). Co mo se fosse ' conceit ual ment e'

essenci al para o navi o ter vel as e não ser de madeira. (p. 148-149)

Ta mbé m para Arli ndo Machado (2006) e Jakobson (1970), a si nédoque é um ti po de

met oní mi a (ou até mes mo vi ce-versa).

Volt ando a Ant oni o Candi do, pude mos verificar que a est udi osa da tradut ol ogi a,

Mari ane Lederer, parece ser, dentre os aut ores dessa rápi da revisão sobre os que se

ocupara m da si nédoque, u ma opi ni ão consonant e que quer ent ender este tropo como uma

maneira si mpl es ment e denot ati va de expressão:

Tout texte est un compromi s entre un explicite suffisamment court pour ne

pas l asser par l’énoncé de choses sues et un i mplicite suffisamment

évi dent pour ne pas l aisser le lecteur dans l’i gnorance du sens dési gné

par l’explicite. ( …) J’ai repris à l a rhét ori que le ter me de synecdoque

pour dési gner l a partie explicite du sens.2 3

(LE D E R E R, 1994, p. 58)

Dada a polê mi ca, e não obj eti vando sair do foco deste trabal ho (que ne m de l onge

pret ende lançar l uz a uma defi nição de si nédoque), escol here mos então deixar a si nédoque

de lado, consci ente mente. Se, para uns, ela é um tipo de met oní mi a, já trat are mos del a na

present e dissertação quando tratar mos da própria met oní mi a. Se, para outros, ai nda que

para a mi nori a, ela é uma fi gura denot ati va da linguage m, distant e da met áfora e da

met oní mi a, ent ão ela també m est á alé m do que al mej a mos aqui, que é investi gar mai s a

estas duas últi mas figuras naquil o que elas possam t er e m comu m com as i magens.

2 3

Qual quer text o é um co mpr omi sso entre ele ment os explícitos, relativa ment e breves para não fastidiar com a

enunci ação de fat os já conheci dos, e ele ment os i mplí citos sufici ent e ment e evi dent es para não dei xare m o

leitor na i gnorânci a do senti do desi gnado pel os ele ment os explícit os. ( …). Fui buscar à ret órica o ter mo de

si nédoque para desi gnar a parte explícita do senti do.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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Port ant o, pode mos agora defender a existênci a de três grandes grupos e um tropos

isol ado. Os três grandes estaria m di vi di dos entre met áfora (onde estão metáfora, alegori a,

ironia, a hi pérbol e), metoní mi a (com a própria met oní mi a, possi vel mente a met alepse e a

ant ono mási a) e as fi guras de li nguage m denot ativas, que não substit ue m ne m transport a m

senti dos.

Os tropos do grupo da met áfora tê m e m comu m a i mitação por se mel hança, a

anal ogi a. Os da met oními a estão agrupados e m função de seu caráter de substit uição por

conti nui dade, por orde m, por uma parte de um t odo, pel a i ndicação de uma coisa pel a outra,

por conti gui dade etc.

Out ras fi guras trata m de ‘ ‘dar o si gnificado’ ’ da maneira que ele já é, ou seja, são as

fi guras de li nguage m que usa m o mes mo si gnificado já existent e na reali dade e mpírica que

se quer represent ar. Portant o, usa m as regras que já são dadas para o uso das pal avras como

já se cost uma usar, como já é ‘ ‘o hábit o’ ’. Trat a-se do uso mais denot ati vo que conot ati vo da

linguage m. Mas deve mos nos le mbrar de que tal uso ta mbé m l ança mão de um co mpêndi o

de si gnificados hist órica e soci al ment e construí dos, de um arcabouço de experiênci as que

todo falant e de uma lí ngua herda como legado cultural e fil ogenético.

‘ ‘Solta’ ’ entre os grupos est á a onomat opei a, i mitação pura, que não pret ende ne m

fazer anal ogi a entre duas coisas, ne m anal ogia entre partes de duas coisas, e ne m

represent ar uma coisa conf or me o hábit o/convenção, e si m ela -- onomat opei a -- quer ser a

coisa e m si.

Fi nalizando este pri meiro capít ul o, portant o, podería mos di zer que o ícone da

Se mi ótica está para a met áfora da Teoria Literária, assi m como o índi ce está para a

met oní mi a, e o sí mbol o para a si nédoque. A metáfora é um quali-si gno, a met oní mi a um

si n-si gno, e a si nédoque, u m l egi-si gno. Massaud Moi sés, sobre isso, acredita que:

(...) a análise do si gnificante deve levar ao si gnificado, já que est á a seu

servi ço: te mos que analisar o si gnificant e para compreender o si gnificado;

parti mos se mpre do si gnificant e para o si gnificado, pois que não há outra

maneira de perquiri-l o.

Desse modo, a análise não deve ser da palavra pela pal avra, mas da

pal avra como i nter medi ário entre o leit or e um cont eúdo de i deias,

senti ment os e e moções que nela se coagul a. Ou, se preferire m, análise da

pal avra como veí cul o de co muni cação entre o escrit or e o público. Assi m

ent endi da, a pal avra surge como um í cone, ist o é, co mo obj et o gráfico

pl eno de senti dos, variável dentro de uma escal a compl exa de val or. E é

enquant o ícone, enquant o expressão de si gnificados vári os, que a pal avra

tem de ser analisada. ( MOI SÉS, 1996: 26)

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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Aqui ent ão chega mos a u m i nstrument al que quer parecer suficient e para a análise

das obras escol hi das no recorte do present e est udo.

Al é m das ferra ment as, cont udo, pude mos antecipar al gumas quest ões i mportant es,

tais como o fat o de o poe ma de Handke e m questão nunca ter si do publicado e m li vro, o

fat o de o fil me de Wenders ter si do não baseado em um ou mais li vros, mas si m t er si do

constit uí do j unta ment e co m a literat ura de Handke, no própri o mo ment o de feit ura do fil me,

e até o fat o de estes dois aut ores tere m discuti do passo a passo a construção do rot eiro de

maneira a a mal ga mar as imagens visuais e os trechos do poe ma.

Vej a mos agora, pois, u m pouco sobre cada u m dest es aut ores e suas obras

específicas, para l ogo depois nos debruçar mos nesse a mál ga ma, que se confi gura como o

obj et o desta pesquisa propria ment e dito.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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II. I NFÂNCI A

Al gumas consi derações acerca de textos de Peter Handke

Nasci do e m 1942 e m Griffen, Áustria, Pet er Handke não é apenas um escrit or

renomado, mas ta mbé m u m agitador cult ural e político, muitas vezes mais conheci do do

grande público por esta últi ma vei a do que pel a primei ra.

Ganhou dois prê mi os literári os i mport antes -- o Ger hard Haupt mann, e m 1967, e o

Geor g Büchner, em 1972 -- mas devol veu o últi mo e m 1992 e m prot est o contra o

bo mbar dei o e m territ ório sérvi o e a i ntervenção da OTAN na ex-Iugoslávia. Dentre as

ações que chocara m a opinião pública, no â mbit o da vi da pública e política -- deve-se cont ar

a sua visita ao funeral de Sl obodan Mil osevi c, ex- ditador sérvi o condenado pel o Tri bunal

de Hai a.

Est es dados são de nat ureza bi ográfica e estão aqui avent ados mai s para pr overe m

infor mação no ní vel de coment ári o -- por mera curi osi dade, se for o caso -- ao leit or do

present e est udo, do que para servire m de fonte ou alicerce para quaisquer das análises que

se seguirão. Ao contrário: não adept o da crítica genética, o aut or desta dissertação faz

quest ão de escl arecer que é mais i mportant e, por exe mpl o, lembrar das polê mi cas de orde m

cult ural e literária -- propria ment e estética -- e m que Handke esteve envol vi do desde os

iníci os de sua produção int elect ual.

Pol ê mi cas tais como a sua pal estra no Gr upo 47 (de que partici pava m t ambé m, à

época, Hei nrich Böll e Günt er Grass, entre outros), em que criticou ferrenha ment e a ent ão

pr osa de lí ngua ale mã, classificando-a de ‘ ‘tola’ ’ e ‘ ‘i mpot ent e’ ’ no que di z respeit o à

(i n)capaci dade criati va2 4

. Handke dei xou o grupo pel a sua incompati bilidade de ‘ ‘crenças

estéticas’ ’.

Est e tipo de comport a ment o de nosso aut or -- ai nda que não fosse público através de

notícias e m j ornais e/ ou entrevistas -- irão nos import ar e m pri meiro pl ano já que é al go

visí vel e m sua obra.

2 4

Notícia da Fol ha de São Paul o, de 21 de janeiro de 2008, disponí vel no link

htt p:// www1. fol ha. uol. com. br/fol ha/ilustrada/ ult 90u365455. sht ml

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a) A escrita da i nfânci a

‘ ‘¿Donde está el ni ño que yo fui,

si gue adentro de mí o se fue?

(...)

¿Por qué anduvi mos tant o tiempo

creci endo para separarnos?

¿Por qué no mori mos l os dos

cuando mi i nfanci a se murió?’ ’

(PABLO NERUDA. El libro de l as pregunt as.2 5

1974)

Christa Wolf i nicia seu Ki ndheits muster2 6

com os versos de Neruda vertidos para o

al e mão (não apenas os que fora m reproduzi dos aci ma, mas si m o poema i nt eiro). Est es

versos são, coi nci dent e ment e, de muita i mport ância para a análise da obra de Pet er Handke

intit ulada Ki ndergeschi cht e.

Todo adult o foi uma criança. Est a não é uma const atação i nocent e, óbvi a ou

desnecessária. Na i dade adulta, muitas pessoas esquece m-se de sua i nfânci a. Se não se

esquece m por compl et o (pois se le mbra m de episódi os aqui e ali, suscitados por al gum

el e ment o associ ativo), no mí ni mo pode mos di zer que os ele ment os i nfantis não faze m part e

const ant e ment e da vi da dos adult os. Não consci ent e ment e. E o mais paradoxal é que,

apesar de não nos dar mos cont a consci ent e mente dos ele ment os da nossa i nfânci a, apesar

de nós nos le mbrar mos apenas de vez e m quando de al guns acont eci ment os isol ados da

infância, ai nda assi m é aquil o que acont eceu na nossa infânci a e adol escênci a que, e m

grande parte, for ma o que somos hoj e, pois é a fase de mai or i ntensi dade do processo de

defi ni ção de que m eu sou face ao(s) outro(s):

Quando, pel o visor do berçári o, mostrara m a criança para o adult o, este

não vi u ali um recé m- nascido, mas si m um ser humano compl et o. (...) Por

trás do vi dro, o que l he apresent ava m não era uma ‘ ‘filha’ ’, ta mpouco um

‘ ‘descendent e’ ’, mas uma criança. O pensa ment o do ho me m foi: ela est á

cont ent e. Gost a de estar no mundo. O fat o e m si, a criança, se m qual quer

2 5

NERUDA, Pabl o. El libro de las pregunt as. Santiago de Chile: Edit orial Planet a, 1974. 2 6

Ki ndheits must er, ao pé da letra, significa ‘ ‘model o de infância’ ’ e é o títul o de um romance de me mória da

aut ora Christa Wolf. O subtítul o da obra é o que a caracteriza como romance, j usta mente: Ki ndheits must er:

ei n Roman (cf. Bi bli ografia).

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característica especi al, irradi ava sereni dade -- a i nocênci a era uma for ma

do espírit o!2 7

( HANDKE 1990: 9).

Nest a passage m ve mos que já no pri meiro ‘ ‘encontro’ ’ entre o adult o (personage m-

narrador, ou sej a, personage m-suj eit o) e a criança (o outro, personage m- outra, personage m-

obj et o), aquel e consi dera esta como um ser humano compl et o (ei n vollkommener Mensch),

mas isso é porque eles ai nda estão separados pel o Trenngl asschei be, met áfora para o

estranha ment o e distancia ment o entre eles.

Aqui, a pal avra Trennglasschei be (ao pé da letra, chapa de vi dro ou vidraça de

separação) si gnifica aquilo que ela de fat o é, ou sej a, o objet o vítreo, podendo ser ent endi da,

portant o, como um í cone-i mage m, mas ta mbém podendo ser ent endida co mo a i dei a

abstrata de separação e estranha ment o, conf or me menci ona mos aci ma, ou sej a,

funci onando como um í cone- met áfora. Nu ma sit uação, é mais forte a função denot ativa e,

na outra, a conot ati va. Na pri meira, o obj et o represent ado se dá aos nossos ol hos da ment e,

enquant o le mos o trecho do li vro. Na segunda, imagi na mos, somos transportados (através

do transporte, da met áfora) até outra si gnificação. Nest a passage m, o show ( mostrar) e o tell

(cont ar/relatar) de Bor dwell (1985) funci ona dupl ament e.

O que a lí ngua port uguesa, na tradução brasileira, não dei xa transparecer é a escol ha

do aut or que, e m al e mão, fica muit o clara: o outro que está do lado de lá do vi dro não é

u ma fil ha, ne m um descendent e, mas si m ei n Kind, subst anti vo neutro que denot a o grau

pri meiro do ser humano, o estági o no qual nós t odos ai nda somos i nocentes, um vazi o que

está pront o para ser preenchi do, mas não da maneira que os outros queira m preencher, e

si m de uma maneira compl exa e que leva Handke a fazer as reflexões que faz, não apenas

nest e li vro, mas e m outras obras.

Out ro mo ment o de perda da poetici dade do text o ori gi nal, quando traduzi do, é

quando se usa característica para substit uir Kennzeichen. O vocábul o alemão ta mbé m pode

si gnificar, si mpl es ment e, marca, caract erística, sinal (como e m si nal de nascença et c.). Mas

o subst anti vo pri miti vo, a partir do qual este é for mado, é a pal avra Zei chen que, por sua

vez, si gnifica desenho, signo. A outra parte do subst anti vo ve m do verbo kennen, que pode

2 7

No ori gi nal: Als de m Er wachsenen durch die Trenngl asschei be das Ki nd gezei gt wurde, erblickte er da

kei n Neugeborenes, sondern ei nen vollkommenen Menschen. (...) Hi nt er de m Gl as wurde i hm ni cht ei ne

‘Tocht er’ ent gegengehalten, oder gar ei n ‘ Nachkomme’, sondern ei n Ki nd. Der Gedanke des Mannes war: Es

ist zufrieden. Es ist gern auf der Welt. Allei n di e Tatsache Ki nd, ohne besonderes Kennzeichen, strahlt e

Heit erkeit aus -- di e Unschul d war ei ne For m des Geistes! (HANDKE 1981a: 9).

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ser traduzi do por conhecer. Di zer que a criança, quando nasceu e foi mostrada através do

Trenngl assschei be, não tinha nenhu m Kennzeichen é muit o mais do que dizer apenas que

el a não ti nha nenhu m si nal que a caract erizasse de maneira específica, diferenci ando-a das

de mai s crianças. É ta mbé m di zer que ela não tinha nenhu m i ndí ci o, nenhu m si gno,

nenhu ma pegada, nenhum rastro por onde podería mos seguir para encontrar, no fi m do

ca mi nho, a própria criança e m sua essênci a. Não o pode mos. Esta pal avra, assi m

e mpregada, é, ao mes mo tempo, um ícone e um índi ce, ou seja, uma met áfora (levando- nos

ao si gnificado diferent e daquel e que a pal avra denot ati va ment e traz) e uma met oní mi a (que

nos alça para o si gnificado de um t odo -- o caráter da criança, sua essência -- a partir de uma

parte -- seu si nal, sua marca.

Est a preocupação de Handke com o mo ment o da infância aparecerá mai s tarde e m

sua obra ( HANDKE; WENDERS 1987) quando escreve o poe ma usado no filme Hi mmel über

Berli n ( Asas do desej o) de Wi m Wenders, em 1987, do qual reproduzi mos aqui apenas a

pri meira estrofe, ou primei ro bl oco (o poe ma int eiro estará no capít ul o dedi cado à sua

análise e també m no Apêndi ce 1 do present e trabalho):

Li ed vo m Ki ndsei n Canção do Ser- Cri ança

Versos Pet er Handke Pet er Handke (tradução mi nha)

001 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

002 gi ng es mit hängenden Ar men, el a andava bal ançando os braços,

003 wollte der Bach sei ei n Fl uß, queri a que o ri acho f osse um ri o,

004 der Fl uß sei ei n Strom, e que o ri o f osse uma t orrent e,

005 und di ese Pfüt ze das Meer. e que essa poça fosse o mar.

006 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

007 wußt e es nicht, dass es Ki nd war, el a não sabi a que ela era criança,

008 alles war i hm beseelt, tudo l he pareci a ter al ma,

009 und alle Seel en waren ei ns. e t odas as al mas eram uma só.

010 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança, 011 hatte es von nichts ei ne Mei nung, el a não tinha opi nião sobre nada,

012 hatte kei ne Ge wohnheit, não tinha cost ume al gu m,

013 sass oft i m Schnei dersitz, sent ava-se com as pernas cruzadas,

014 lief aus de m St and, saí a correndo,

015 hatt e ei nen Wi rbel i m Haar ti nha um rede moi nho no cabelo

016 und macht e kei n Gesicht bei m fot ografieren. e não f azi a cara para ser fot ografada.

O poe ma nos di z que, quando se é criança, não se tem consci ência ne m de si mes mo

como criança ou como qual quer outra coisa. Quando eu sou criança, t udo me parece ser

u ma massa homogênea e m conj unt o comi go mes mo. Quando eu sou criança, ai nda não

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tenho opi ni ão for mada a respeit o das coisas à mi nha volta, não tenho hábitos (no senti do de

não estar ai nda afeit o às regras soci ais, aos si mulacros, às convenções, às i nstit uições). E

quando sou criança, não acho que sej a evi dent e a respost a para a pergunt a ‘ ‘que m sou eu?’ ’.

Eu pergunt o isso, e tant as outras coisas. Quando sou criança, eu me pergunto se t udo que eu

apreendo do mundo ( was ich sehe und höre und rieche2 8

) existe ou não, se é apenas mi nha

interpretação, se as coisas são como são etc.

A análise compl et a do poe ma será feita no próxi mo ite m.

Aqui, o poe ma e a narrati va estão sendo co mparados breve ment e pois sua

convergênci a de temas não é, acredit o, uma coi ncidênci a.

Assi m não apenas a narrati va Ki ndergeschichte2 9

, mas toda a tetral ogia na qual ela

se i nsere, a t ônica será a relação entre o suj eito e as coisas e pessoas (o mundo à sua volta)

e a apreensão de seus si gnificados por esse suj eito.

Est a tetral ogi a compõe-se dos li vros Langsame Hei mkehr (1979), Di e Lehre der

Sai nt e Vi ct oire (1980), Ki ndergeschi cht e (publicado e m 1981 e m al e mão e publi cado e m

port uguês no Brasil em 1990) e Über di e Dörf er (també m de 1981).

O pri meiro del es (Langsame Hei mkehr3 0

) dá o nome à tetral ogia inteira e cont a, em

terceira pessoa, a experiênci a da personage m Sor ger, um geól ogo, que sai de seu país rumo

ao ‘ ‘extre mo norte’ ’, para ganhar novas visões de mundo. As coisas t odas deverão ser

no meadas por ele e, inclusi ve, não há nomes geográficos (com al gumas exceções, como

Europa, por exe mpl o).

O extre mo nort e (‘ ‘Am Ende des Arbeitst ages in dem hell grau angestrichenen

Gi ebel holzhaus am Rand der vor allem von Indianern bevöl kerten Si edlung weit weg i m

hohen Norden des anderen Erdt eils’ ’3 1

, Langsa me Hei mkehr, pág. 9) pode ser identificado

como o Al asca, mas princi pal ment e como o l ugar se m palavras, onde as coisas não tê m

2 8

‘ ‘O que vej o e ouço e cheiro’ ’ (o que apreendo pel os sentidos do ol har, da audição e do olfato) (tradução

mi nha). 2 9

Hist ória de uma i nfânci a (segundo a tradução de Ni colino Si mone Net o, cf. bi bliografia) ou Hist ória de

crianças (tradução mi nha). 3 0

Lent o regresso ao lar (tradução mi nha). 3 1

‘ ‘Ao fi m do dia de trabal ho, na casa front eiriça de madeira caiada e m verde-claro, nos li mites da col ônia

habitada por i ndí genas, be m longe no extre mo nort e do outro lado da Terra’ ’ (tradução mi nha).

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no me e cuj a descrição se encontra na pri meira das três partes do li vro, i ntit ulada Di e

Vorzeitf or men3 2

.

Est as Vorzeitf or men parece m re met er a for mas (si gnificantes) se m cont eúdo

(si gnificado), portant o um t e mpo e m que não havia si gnos.

O geól ogo passa ai nda pel a ci dade uni versitária da costa oci dent al, identificável

como al gum l ugar na Califórni a, tal vez Los Angeles, nos Est ados Uni dos, e pela ci dade das

ci dades, (possi vel ment e Nova Iorque). É curi oso not ar que, quando ele vai para a Califórni a,

menci ona que está sai ndo do l ugar das coisas se m nome para voltar ao mundo dos nomes:

(...) zum nächst en Tag, an de m Val entin Sorger mit eine m Koff er aus de m

namenl osen, schon wi nt erlich dämmri gen Landstrich (...) in die Welt der

Na men zurückfl og. In der Uni versit ätst adt an der West küst e des

Konti nents (...) 3 3

( HANDKE 1984: 89).

Aí ve mos que o li vro faz um movi ment o di alético (até di al ógi co), já que Sor ger

pertenci a ori gi nal ment e ao mundo de coisas nomeadas (nasci do na Europa, tendo morado

e m ci dades grandes dos Est ados Uni dos), onde o indi ví duo se confor ma a regras de

relações pré-existent es a ele própri o ( mundo da cult ura), mas ele vai para um mundo se m

regras e se m nomes ( mundo da nat ureza), onde ele se vê necessaria ment e tendo de construir

estes nomes, estas classificações e estas relações, para post eri or ment e ret ornar (eis o tít ul o

do li vro) lent a ment e ao seu lar, passando pri meiro por ci dades que, mes mo sendo

estrangeiras, era m-l he mai s próxi mas, menos ‘ ‘estranhas’ ’ (na segunda parte do li vro,

cha mada Das Raumverbot3 4

, muit o sugesti va enquant o a proi bição do espaço, a deli mitação

do espaço, o cercea mento, a não-liberdade, pelo menos não a li berdade que havi a si do

experi ment ada no extremo nort e), até voltar para a Europa, na terceira e últi ma parte,

cha mada Das Gesetz, a lei, a met oní mi a das regras soci ais, das ligações fi xas e

cl assificações pront as. Aqui, ao intit ular a últi ma parte do li vro de ‘ ‘A lei’ ’ (sendo uma úni ca

lei), Handke i ndicial mente cria uma relação de conti gui dade entre a parte e o t odo, rel ação

que nos re met e de um dado concret o (a lei em sua for ma escrita, e dada aos ci dadãos) a

u ma i dei a muit o a mpl a, abstrata e convenci onal.

3 2

Poderí a mos traduzir Di e Vorzeitfor men aproxi mada mente como As for mas pri mordiais ou As for mas

ant eri ores ao tempo. Nu ma liberdade poética de tradução: As f or mas i me mori ais. 3 3

‘ ‘(...) no dia segui nte, no qual Val enti n Sorger, com uma mala, voou da região crepuscular sem nome, que já

entrava no i nverno de volta para o mundo dos no mes. Na ci dade uni versitária na cost a oest e do conti nent e

(...)’ ’ (tradução mi nha). 3 4

A Proi bição do Espaço ou A Pr oi bição Espaci al (tradução mi nha).

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Al é m dest as i nfor mações forneci das pel os capít ul os de Langsame Hei mkehr,

també m pode mos le mbrar que o narrador neste livro é o que cost umáva mos cha mar de

oniscient e, ou sej a, aquel e que ‘ ‘nos dei xa ver’ ’ tudo quant o ocorre com a personage m

Sor ger e com as outras personagens i gual ment e.

Pel a ti pol ogi a de Genette, podería mos di zer que o narrador de Langsame Hei mkehr

tem posi ção het erodi egética e focalização at orial, como no romance Der Prozeß de Kaf ka.

Pel o model o a mpli ado de Scheffel e Marti nez, o lugar é i ntradi egético. Ret omare mos est e

narrador e m breve.

A segunda obra da tetralogi a, Di e Lehre der Sai nte Vict oire 3 5

, diferente ment e, tem

u m narrador com posi ção homodi egética, focalização at orial e l ugar i ntradi egético, ou sej a,

o tradi ci onal narrador e m pri meira pessoa.

Rel at a a experiênci a do pr ópri o Handke na Provence, França, ao pé do mont e de

Sant a Vit ória, retratado e m quadr os por Cézanne mais de sessent a vezes, numa busca da

reali dade através da represent ação e da arte. O segundo li vro da tetral ogi a é compost o por

muit as reflexões estéticas de Handke através de suas próprias di vagações e de vári as

menções a outros artistas, pensadores e filósofos. A pri nci pal dessas reflexões re met e

justa ment e ao pont o princi pal da tetral ogia: o descentrar-se, morando e m outro lugar,

experi ment ando o novo, em busca do seu próprio eu, e o ret orno para esse eu, após a

experiênci a do diferente.

O últi mo li vro da tetral ogi a é Über di e Dörfer -- Dr amatisches Gedicht3 6

que, como

o própri o subtít ul o diz, é uma obra que é dramatisch, ou seja, é for matado para teatro,

graças à sua forte dra matici dade. Há personagens com fal as i ntercal adas e m diál ogos a

sere m encenados num pal co. Nesse senti do, o papel dese mpenhado pel o narrador é o da

justaposi ção entre os element os dra máticos, se m que ele -- narrador -- exponha qual quer fal a,

reflexão ou pensa ment o.

Aqui pode mos nova mente lembrar os conceit os menci onados no pri meiro capít ul o

da present e dissertação, quando nos ati ve mos à diferença entre show e tell de Davi d

3 5

‘ ‘A Doutri na de Sant a Vit ória’ ’ (tradução mi nha). 3 6

Über die Dörf er pode ser traduzi do como Pel os Povos (ou Povoados), poré m aqui a preposição ‘ ‘por’ ’ /

‘ ‘pelos’ ’ não te m a função de ‘ ‘em no me de’ ’ ou ‘ ‘a favor de’ ’, como se esse tít ul o si gnificasse que al go será

feit o pel os povos, e m no me dest es povos, para benefí ci o del es. Ant es, a preposição ale mã ‘ ‘über’ ’ signifi ca

‘ ‘por ci ma de’ ’, ‘ ‘por através de’ ’, ou sej a, trata-se de um relat o de al go que vai acont ecer e m movi ment o,

passando pel os povoados.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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Bor dwell, disti nção confir mada por Lessi ng, Sartre e outros aut ores, cada um à sua maneira,

com t er mi nol ogi as di versas.

A quarta obra da tetralogia de Handke, que pode mos consi derar como obra

concl usi va, é, portant o, u ma obra que shows em vez de tell, tal qual a pi nt ura que, por

exe mpl o para Lessi ng, col oca a coisa e m nossa frent e, ao contrári o da literat ura que retira a

coisa, torna-a ausent e para ent ão trazê-la de volta através da nossa i magi nação, quando

lemos e, ent ão, evoca mos a coisa que a pal avra faz trazer mos de volta.

Über di e Dörfer col oca a coisa di ante de nós -- espect adores, mas através de

pal avras, o que é ao mes mo te mpo um paradoxo e uma compl e ment aridade entre um e

outro modo de apresent ar al go.

Nest a obra, o que temos, na prática, são grandes monól ogos reflexi vos da

personage m pri nci pal, o que, junt a ment e com a composição e m versos justifica a outra

parte de seu subtít ul o Dramatisches Gedi cht (poema dra mático). Mas mais do que o fat o de

a obra ser escrita e m versos, sua j ustificati va para o subtít ul o resi de e m sua poetici dade,

ai nda que ti vesse si do escrit o e m prosa.

Nest es monól ogos do prot agonista Gregor, o pont o mais enfatizado é nova ment e o

ret orno ao lar, pois ele, que havi a abandonado a família para se t ornar uma pessoa be m

sucedi da profissi onal e financeira ment e, vê-se agora de volta à casa dos pais para resol ver

pendênci as referent es à herança e, pri nci pal ment e, referentes à relação com seu ir mão e sua

ir mã, que, aliás, é a parte mais compl exa para el e, e para nós, leit ores. A personage m

pri nci pal aqui també m foi experi ment ar o mundo exteri or, o estrangeiro, o diferent e,

aprendeu a renomear coisas e relações, e volta para o lar, para os seus, para si.

Já na Ki ndergeschi chte, o narrador oscila entre narrador-personage m, quando e m

raros mo ment os usa o eu para narrar, e entre o narrador distanci ado. Sabemos que o adult o

(personage m narrada por um narrador) é o própri o narrador, já que este está rel at ando

aquel es 9 anos passados com a fil ha a partir de um fl ashback. A pri nci pal diferença dest e

nosso caso para os fl ashbacks tradi ci onal ment e utilizados e m narrativas é o fat o de que,

aqui, a personage m pri ncipal já se vê tão distant e de si mes ma no passado, que consi dera a

si mes mo como um outro, e fala de si na terceira pessoa.

Se Langsame Hei mkehr é e m t erceira pessoa, Lehre der Sai nt e Vi ct oire e m pri meira,

Ki ndergeschi cht e e m primei ra e terceira, como nu ma j unção dos dois ant eri ores, o que

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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temos é a evol ução desse movi ment o narrat ol ógico e m Über di e Dörfer, ‘ ‘sem narrador’ ’.

Ist o é, na verdade há narrador ficci onal, mas não há narrador fictíci o, ou seja, a

apresent ação das coisas se dá como no teatro, gênero dra mático de Rosenfel d, e m senti do

subst anti vo, com grande poetici dade, ou seja, lírica no senti do adjeti vo ( ROSENFELD, 1994:

17- 18).

E, alé m desta evol ução que une t odas as quatro obras, també m ve mos que em t odas

as quatro aparece m passagens referent es a me mórias de infânci a:

Der gerade noch at embehinderte Mensch rannt e i n die wi edergewonnene

Luft hi naus, dreht e als ein Lebensbündel mehrere Runden ums Haus

herum und schri e wi e i n der ewi gen Ki nderzeit 3 7

( HANDKE 1984: 92).

Durch diese Anmerkung des Wi ssenschaftlers hat sich mi r, über das bl oße

Wi edererkennen hi naus, ein Bil d der Ei nheit zwischen mei ner ältest en

Vergangenheit und der Gegenwart gezei gt: In ei ne m weiteren Augenbli ck

‘des stehenden Jetzt’ sehe ich di e Leut e von damal s -- Elt ern, Geschwi ster,

und sogar noch di e Großelten -- verei nt mit den heuti gen, wi e sie sich

über mei ne Farbenangaben zu umliegenden Di ngen bel usti gen. Es

erschei nt geradezu als ei n Fa milienspi el, mi ch die Farben rat en zu l assen;

wobei freilich nicht die anderen di e Ver wirrten sind, sondern ich 3 8

( HANDKE 1980: 11)

Zu Stifters ersten Eri nnerungen gehört en die dunklen Flecken i n ihm 3 9

( HANDKE 1980: 14).

Noch vor de m Schul alter waren sie ei nmal einen ganzen Tag

verschwunden, und ich lief den Bach ab, bis jenseits des Nachbardorf es,

wo er schon i n den grossen Fl uss mündet e 4 0

( HANDKE 1981b: 12).

Se está clara a temática da i nfânci a, precisa ficar mais clara a quest ão relaci onada a

el a, ou seja, a construção de si gnificados pel a criança (abordada no Ki ndergeschi chte) e a

construção de si gnificados pel o adult o (abordada em t oda a tetral ogi a, inclusi ve na própri a

Ki ndergeschi cht e).

3 7

‘ ‘O ho me m há pouco ofegante correu para fora, para o ar reconquistado, como um fei xe de vi da deu mais e

mai s voltas e m t orno da casa e gritou como se estivesse ai nda na eterna época de criança’ ’ (tradução mi nha). 3 8

‘ ‘Através dest a observação do ci entista, graças a um mero reconheci ment o, mostrou-se para mi m uma

i mage m da uni dade entre meu passado mai s distante e meu present e: num mo ment o expandi do do ‘agora

per manent e’ eu vej o as pessoas de outrora -- pais, ir mãos, e até mes mo os avós -- reuni dos com as pessoas de

hoj e e m di a, e vej o como eles se di verte m co m mi nha bri ncadeira de col orir as coisas ao redor. Aparece agora

co mo um j ogo de fa mília, no qual mi nha tarefa é adi vi nhar as cores; onde ocorre que com cert eza não são os

outros que comet e m os erros, mas si m eu’ ’ (tradução mi nha). 3 9

‘ ‘Parte das pri meiras le mbranças de Stifter era m as manchas escuras nele própri o’ ’’ ’ (tradução: Cl audia

Dor nbusch). 4 0

‘ ‘Ai nda ant es da i dade escol ar, uma certa vez eles desaparecera m durante um dia inteiro, e eu corri riacho

aci ma, até chegar ao vilarej o vizi nho, onde el e desaguava no grande ri o’ ’ (tradução mi nha).

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Volt e mos, pois, à nossa Ki ndergeschi chte, e t ome mos um pouco de tempo para

verificar nova ment e e m que ela consiste, a começar por seu títul o.

Wol f escreve seu Ki ndheits muster e m 1979 e l he dá o subtít ul o Roman, dei xando

be m cl aro que se trata de uma obra ficci onal, independent e ment e da exist ênci a de

el e ment os tant o ficci onais quant o não-ficci onais (aut obi ográficos) na obra. Anal oga ment e,

o tít ul o Ki ndergeschi cht e, obra publicada por Handke e m 1981, ta mbé m pode ser analisado

a partir de uma perspectiva apenas ficci onal, já que se trata de uma Ki ndergeschi cht e.

Essa perspecti va estaria desconsi derando o fat o de que Geschi cht e e m ale mão t e m

dois usos, diferente mente do i nglês, por exe mpl o, que cont a com duas palavras diferent es:

st ory e hist ory4 1

. o que temos no tít ul o da obra analisada é, por si só, uma a mbi gui dade:

Ki ndergeschi cht e é um rel at o real, uma wirkliche Geschi cht e ou uma narração ficci onal,

u ma literarische Geschi cht e?

Pensando e m Handke como aut or consci ente de sua produção, quer nos parecer que

houve uma i ntenci onali dade del e para que esta ambi gui dade existisse mes mo. Afi nal, se el e

não quisesse assi m, publicaria a obra com o no me Ki ndergeschi cht e, ei n Roman ou

Ki ndergeschi cht e, ei ne Novelle, ou ai nda Ki ndheitsroman ou qual quer outra das tant as

escol has paradi gmáticas possí veis para esse si nt ag ma, dei xando mais claro, desde o títul o,

que se trata de obra ficcional, como foi feit o por Christa Wolf.

Houve uma certa resistênci a da crítica especi alizada na aceitação desta obra de

Handke por causa desta a mbi gui dade e por causa do estilo, pois os analistas coment ara m,

entre outras coisas, que a mera reprodução da realidade e o fat o de ser um rel at o mera ment e

aut obi ográfico, não a fazia m uma obra muit o be m recebi da:

Di e Textstelle charakt erisiert Ei genarten der neueren Arbeiten Handkes,

di e von der Kritik in der Regel besonders auf merksam, aber alles i n allem

ni cht besonders beif ällig registriert wurden (...)4 2

. (TI MPE 1985: 315)

O present e trabal ho, entret ant o, tem por obj etivo analisar a obra em quest ão

consi derando-a como obra de ficção e, diferent ement e dos críticos da época, coment ados

4 1

Em port uguês, havi a ta mbé m tal diferenci ação: estóri a, enquant o narração, ficção, em oposição a históri a,

enquant o relat o de acont eci ment o real, ou enquant o a ciênci a da hist ori ol ogi a / hist ori ografia. Est a disti nção

não é mai s aceita, pois e m port uguês o uso do ter mo est óri a foi oficial ment e aboli do. Poré m, nest a

dissertação, para efeit o de termi nol ogi a, usa-se o ter mo est óri a quando se trata de ficção. 4 2

‘ ‘O l ugar do text o caracteriza i di ossi ncrasi as dos novos trabal hos de Handke, os quais fora m registrados

pel a crítica, vi a de regra, com especi al atenção, mas, no fundo, não com muit a receptivi dade’ ’. (tradução

mi nha).

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por Karl Lorenz Ti mpe, pret ende mos aqui expl orar aquilo que é justamente beifällig4 3

neste

romance.

Um dos ele ment os que per mit e m que classifi quemos a obra como ficci onal é o fat o

de que o relat o se encontra entre parênt eses, isto é, inseri do dentro de u m quadr o, uma

mol dura, um Rahmen 4 4

, que serve ao leit or como uma proposta de que, ao se abrir a capa

do li vro, aceite-se um pact o ficci onal, sabendo-se estar diant e de uma obra narrati va

ficci onal. O pri meiro parênt ese ou a parte i nicial da mol dura é a segui nt e epígrafe:

‘ ‘Damit endet e der Sommer.

I m darauff ol genden Wi nt er...’ ’ 4 5

Al guns poderia m encontrar nessas frases o argument o de que o verão que acabara e

o i nverno que ali se i nicia, na narrativa, são descont ext ualizados, isto é, não se refere m a

u m t e mpo det er mi nado na reali dade, não tê m um ano, ou uma outra referência te mporal

qual quer que transfor me a st ory numa hist ory. E que, portant o, trata-se de uma obra

ficci onal.

Est e argument o não nos serve, já que qual quer outro relat o ficci onal també m pode

se servir do mes mo el ement o, desde as Märchen4 6

(‘ ‘es war ei nmal’ ’, ‘ ‘era uma vez’ ’, sem

dat a específica), até as narrativas cont e mporâneas.

A ênfase deve recair sobre uma outra caract erística, mais si mpl es, e també m mai s

i mportante: começando o text o com esse ele mento, fez-se um recorte. Não i mport a a dat a

real, ne m a ficci onal, mas há um recorte, uma edi ção, um mo ment o que o aut or t omou

como i ní ci o e outro, como fi m. O mo ment o fi nal é a segui nt e passage m:

(...) e a teste munha ocul ar, aqui e mais tarde, pensa e conti nuará pensando

na frase do poet a que deveria valer para qual quer históri a de uma criança

e não só para uma hist ória escrita: ‘ ‘Cantilena: eternizar a plenit ude do

a mor e de t oda felici dade apai xonada’ ’.4 7

( HANDKE 1990: 91)

E, alé m desse desfecho, o livro ter mi na real ment e com uma citação e m grego

cl ássico, retirada da VI ode olí mpi ca de Pí ndaro:

4 3

‘ ‘Di gno de aprovação’ ’, em referênci a ao text o de Ti mpe, menci onado ant es. 4 4

‘ ‘Rahmen’ ’ significa ‘ ‘quadro’ ’ ou ‘ ‘ mol dura’ ’, e é um conceito caro à teoria literária ale mã. 4 5

‘ ‘Com isso, ter mi nou o verão. / No i nverno segui nte...’ ’ (tradução mi nha). 4 6

‘ ‘Cont o de fadas ale mão’ ’. 4 7

No ori gi nal: (...) und der Augenzeuge denkt hier und später i mmer wi eder den Satz des Dichters nach, der

für jede Geschi cht e ei nes Kindes gelten sollte, nicht nur für ei ne geschriebene: ‘ ‘Cantilene: di e Fülle der

Li ebe und jedes lei denschaftlichen Gl ücks verewi gend ’ ’. ( HANDKE 1981a: 109)

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‘ ‘ ’ Όρζο, ηέχνον, δεύρο πάγκοι νον ’ες χόραν ’ί μεν θάμας ’οπι δεν ’ ’

4 8.

‘ ‘Ve m, criança, e segue mi nha voz para o ca mi nho e obj eti vo co mu m a

todos’ ’4 9

.

Na Ki ndergeschi cht e, o pai (o adult o, der Er wachsene) durant e nove anos est eve

preocupado e m pri meiro pl ano com a for mação, co m a educação e com a soci abilização de

sua fil ha, sofrendo sentiment os conflitant es, estando, de um lado, a tent ativa da construção

de uma personali dade úni ca e i ndependent e das regras soci ais e do estado de coisas e da

relações pront as que existe m entre as coisas e pessoas, e, de outro, a necessi dade da vi da

soci al e a i ncl usão do i ndi ví duo no col etivo, com t odas as suas consequênci as (conf or me

discuti do e m tant as outras obras, sobret udo em Kaspar, de 1967). Portant o é essa a

cont ext ualização necessária à citação de Pí ndaro, querendo di zer que o pai (ou a mãe, ou os

pais etc.), oferece um model o (segue mi nha voz) e mostra o ca mi nho para a soci edade

(ca mi nho e objeti vo comu m a t odos), mas mes mo assi m, a criança, o i ndi víduo é que m será

o aut or, o suj eito de sua pr ópria for mação, com as trocas que vi er a realizar com os outros

nesse processo.

A passage m ‘ ‘ve m, criança’ ’ é, por oposi ção, uma maneira de ent ender que que m

está falando não é criança. O ter mo ‘ ‘voz’ ’ é uma met oní mi a que si gnifica al go mai s a mpl o

e abstrat o do que a voz física, acústica: ela nos lança para a apreensão de i dei as como

liderança, condução, gui a, model o.

O no me Ki ndergeschi cht e te m ai nda uma outra probl e mática: teve seu tít ul o

traduzi do para o port uguês como Hi st óri a de uma i nf ânci a, mas se formos mais fiéis ao

ter mo, sabe mos que Ki nder está para cri anças/filhos(as) assi m como Geschi cht e est á para

hi st óri a, portant o, hist óri a de cri anças, que poderia variar e m port uguês para hist óri a

inf antil, hist óri a dos filhos. Tant o assi m, que na publicação de lí ngua espanhol a, o tít ul o

ficou como Hist ori a de ni ños. O tít ul o ori gi nal em al e mão não cont é m a pal avra i nfânci a

( Ki ndheit) pois não é Ki ndheitsgeschi chte, ou ai nda Geschi cht e ei ner Ki ndheit (essa

expressão si m per mitira a tradução feita por Si mone Net o). Esta probl e mática est á sendo

levada e m consi deração pela segui nt e razão: o títul o e m al e mão é mais si gnificati vo e

4 8

Ki ndergeschi cht e, 1981 e Hist óri a de uma i nf ânci a, 1990. 4 9

Tradução para o port uguês, segundo consta no artigo ‘ ‘Entre tapas e beijos: Peter Handke e a crítica’ ’ da

Pr ofa. Dra. Cel est e de Sousa, publicado na Revista Brasileira de Literat ura Co mparada, Bel o Horizont e, 2002.

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escl arecedor da obra do que sua tradução brasileira, pois apesar de se tratar da st ory de uma

úni ca criança (a filha do adult o) no enredo, ai nda assi m o pont o pri nci pal do enfoque do

present e trabal ho é o fato de que muit os dos ele ment os i mport antes da for mação dest a

criança são perfeita ment e visí veis na hist ória de qual quer criança, nas vi das das crianças e m

geral, ele ment os que mostra m como o ser humano, na infância, cria si gnificados para as

coisas e pessoas, para as relações e para t udo quant o o cerca. No trecho a seguir, por

exe mpl o, ve mos como se dá a construção de si gnificado e de val or:

Só ent ão, e com os movi ment os da alavanca do carri nho que transport a o

bebê por entre calçadas e ruas, é que esta passa a ser a ci dade nat al da

criança. As sombras das folhas, as poças de chuva e o vent o fri o da neve

são as marcas das estações, nunca tão nítidas assi m. 5 0

( HANDKE 1990: 12)

O narrador não nomei a nada, ne m as pessoas, ne m os lugares, ne m as cidades, tal

qual ocorre na pri meira das três partes de Langsame Hei mkehr (quando Sor ger est á no

Al asca, ou antes, no extre mo norte, aprendendo a classificar t udo, nomear tudo, apreender

tudo).

Est a passage m oferece muitas met áforas e met oními as, portant o muitas i magens: ‘ ‘o

carri nho que transporta o bebê’ ’ está levando- o para uma pequena transformação. O pr ópri o

carri nho é uma met áfora que nos eleva do conceito concret o de carri nho para o conceit o de

al go que está nos levando para outro local. E el e ta mbé m é uma metáfora no senti do

met ali nguístico do ter mo, já que ele é uma met áfora duas vezes ( met áfora = transporte).

Cal çadas e ruas são metoní mi as da ci dade. Tornar-se ci dade nat al da criança é uma

al egoria para mostrar que o objet o di nâ mi co ( PEI RCE, 2005) ou o referent e (JAKOBS ON, se m

ano), que é a ci dade, ainda se dá para a criança mera ment e como um si gnificant e, se m

si gnificado. Ela está, nesse passei o no carri nho de bebê, ganhando si gnificado pel a pri meira

vez. A ci dade está se transfor mando num si gno para a criança.

As sombras das fol has, as poças de chuva e o vento fri o da neve são ele ment os que

poderia m ser dei xados co mo met oní mi as ou í ndices (i ndicando as estações), mas Handke

explicita esta relação i ndi cial / met oní mi ca, verbalizando mes mo que tais ele ment os são

indíci os, marcas, si nais das estações do ano, nova ment e fazendo um exercí ci o

met ali nguístico.

5 0

No ori gi nal: Di ese wird so erst, und mit den Hebel bewegungen am Wagen zwischen Gehstei gen und

Straßen, di e Geburtsst at d des Ki ndes. Laubschatten, Regenlachen und Schneel uft stehen für di e noch ni e so

deutlichen Jahreszeiten ( HANDKE 1981a: 14)

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Em Ki ndergeschi chte, temos a hist ória de um pai e sua fil ha, desde o nasciment o da

meni na até a separação de seus pais. É um fl ashback porque o relat o é contado pel o própri o

pai que se vê de maneira distanci ada e não se cha ma de ‘ ‘eu’ ’, mas si m de ‘ ‘o adult o’ ’, ‘ ‘o

ho me m’ ’, assi m como cha ma a filha apenas de ‘ ‘a filha’ ’, ‘ ‘a criança’ ’, ‘ ‘a meni na’ ’.

Tr anscorre m nove anos durant e a narrativa, sendo que cada capít ul o é dedi cado a um dest es

anos. O pri meiro capít ulo não apenas retrata o mo ment o do nasci ment o da criança, mas

começa com a di vagação do narrador a respeito de si mes mo quando ai nda era um

adol escent e, um Heranwachsende e fazi a pl anos de ter um fil ho ou uma fil ha, ei n Ki nd,

assi m como fazi a ta mbém pl anos de ter uma esposa e um trabal ho, uma profissão. Est es

dois últi mos pl anos entret ant o era m nat urais, esperados, diferente ment e do pl ano de se

tornar pai, que era um desafi o, um planeja ment o mes mo, e por isso podemos di zer que no

começo do li vro o leit or recebe o progra ma da narração:

Um dos planos para o fut uro do adol escent e era o de mai s t arde vi ver com

u ma criança. Associ ava a isso a i deia de uma comunhão se m pal avras, de

u ma breve troca de ol hares, de um agachar-se, de uma risca irregul ar no

cabel o, de proxi mi dade e distância, em feliz har moni a. 5 1

( HANDKE 1990:

7).

Nesse fl ashback, nosso narrador volta a muit o antes do i níci o da narrativa, a qual se

inicia com o nasci ment o de sua filha, pois ele aí regri de até sua adol escênci a, quando revê

os pl anos que ti nha de ser pai, e como el e, àquel a época, ent endi a essa reali dade (a

pat erni dade), como uma gl ückliche Ei nheit, que e m port uguês teria encontrado uma

tradução mel hor se, ao invés de feliz har moni a, fosse feliz uni dade mesmo, pois é o que

Handke i ntenci onou não apenas aí, mas e m outras passagens que foram traduzi das da

mes ma maneira (com a pal avra har moni a, ao i nvés de uni dade).

Não é à t oa que, no decorrer dos nove anos desta narrativa, o nosso personage m-

narrador aprende que um pai e uma fil ha não apenas não terão o mesmo ent endi ment o

sobre o mundo, não apreenderão as coisas à sua volta de maneira i dêntica, mas ta mbé m não

são uma uni dade, mas sim suj eitos aut ôno mos. E isso está met aforizado na finalização do

livro:

5 1

No ori gi nal: Ei n Zukunftsgedanke des Heranwachsenden war es, später mit einem Kind zu leben. Dazu

gehört e di e Vorst ell ung von ei ner wortl osen Ge mei nschaftlichkeit, von kurzen Blickwechsel n, ei ne m Si ch-

dazu- Hocken, ei ne m unregelmäßen Scheitel i m Haar, von Nähe und Weit e in gl ücklicher Ei nheit. ( HANDKE

1981a: 14)

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Na pri mavera segui nt e, (...) a criança está e m pé num páti o arenoso di ant e

da casa. (...) e, através desses espaços, ela agora vai, nu m sopro sel vage m

e uni versal, até o fi m do mundo. (...) Nu ma chuvosa manhã do out ono

segui nt e, o adult o acompanha a criança um trecho até a escol a. (...).

Out ros alunos se aproxi ma m e a criança continua sozi nha com eles.5 2

( HANDKE 1990: 90).

Nós ve mos que esta constatação vai sendo feita pel o adult o, mas aos poucos, não de

u ma úni ca vez. A ele são necessári os os nove anos da pri meira fase de conví vi o com a

criança, até que esta se torne uma pré-adol escent e, para que ele, adulto, ent enda por

compl et o a aut ono mi a de cada um. No capít ul o 2, temos um esboço do que ele passa a

ent ender apenas mais tarde:

Mai s tarde, na pri mavera, a criança está sent ada sozi nha sobre o cavali nho

do carrossel. Em seu cont orno, a praça parece branca de espu ma co mo um

recife; só agora havi a parado de chover. Um pri meiro solavanco percorre

a roda que se põe e m marcha, e a criança, afastada do adult o de um modo

inteira ment e novo, ergue os ol hos por um i nstant e, mas l ogo se esquece,

nessa viage m circul ar, e já não te m mais os ol hos para qual quer outra

coisa. O home m, mais tarde, se le mbr ou de um mo ment o de sua própri a

infânci a, quando, certa vez, apesar de estar com sua mãe no mes mo quart o

pequeno, ele a sentiu l onge, a uma distânci a dilacerant e e aflita: como

aquel a mul her, ali, pode ser algué m diferente de mi m, aqui ? 5 3

( HANDKE

1990: 21-22).

Não reproduzire mos a versão ori gi nal, ale mã, aqui por mera concisão, mas mes mo à

parte de quaisquer possíveis probl e mas tradut ol ógi cos, o que precisa mos pri nci pal ment e

apreender aí é que Handke faz um resumo de toda uma teoria da alteridade e, ai nda, ao

mes mo te mpo, ext ernaliza a e moti vi dade de saber-se não i nteiro com sua fil ha, mas si m

parte, ou antes, por saber que são dois i nteiros de nenhu ma parte, não duas partes de um

inteiro. A met áfora do carrossel é perfeitamente associ ável à quest ão de que, vendo o

mo ment o present e (que para o narrador já é um mo ment o passado) da fil ha ali,

di stanci ando-se del e, é um mo ment o anál ogo àquel e mo ment o (um mo ment o no passado da

personage m, e no ultra-passado, cha me mos assim, do narrador-personage m) e m que el e

const ata que ele e sua mãe são pessoas diferentes. E quando menci onamos aqui que sua

fil ha está se distanci ando del e, não é no senti do emoci onal (pai e filha conflitant es, que não

se ent ende m, que não se dão), mas si m no senti do de separação entre suj eito e objet o, para

5 2

Por moti vo de concisão, daqui em di ant e, ao i nvés de citar o origi nal, menci onarei em nota de rodapé qual é

a pági na correspondent e do livro Ki ndergeschi cht e. Neste caso, o ori gi nal está e m HANDKE 1981a: 108. 5 3

Ori gi nal e m ale mão: HANDKE 1981a: 24.

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se t ornare m suj eito e sujeit o, mes mo que i nti mament e li gados pel a parte e moci onal (nesta,

não há distanci a ment o).

No capít ul o 3, ve mos esta const atação se i ntensificar:

Co m o te mpo, li mitada a sua casa e, cont udo, se m encontrar descanso nel a,

o home m perdeu fi nal mente t oda a sensi bili dade para as cores e as for mas,

como ta mbé m para as distânci as e a disposição dos objet os; via-se cercado

por eles naquel a mal dita penu mbra que l he t urvava a visão co mo se

fosse m espel hos cegos, enquant o a criança se moviment ava de um l ado

para o outro, obj et o i ndisti nto e m mei o a muitas coisas. Era a irreali dade e

irreali dade quer dizer: não existe o ‘ ‘você’ ’. 5 4

( HANDKE 1990: 36).

E ai nda:

Co mpreende mos, portant o, o adult o e dele nos compadece mos: com u ma

tal atenção, a criança aparece pela pri meira vez e m sua hist ória como um

suj eit o at uant e; e sua i ntervenção, e m como t odas as outras post eri ores e m

ocasi ões di versas, é como u m cont at o, front e a front e e ao mes mo t e mpo

tão perfeita ment e lacônico como o si nal para ‘continuar o j ogo’ de um

árbitro experi mentado (que é, particular mente, algué m deste mundo)5 5

.

( HANDKE 1990: 38).

Podería mos estender a citação de exe mpl os até o fi nal do li vro aqui, mas isso seria

desnecessári o, pois o que quere mos discutir é como o narrador-personage m utiliza a

estratégi a de distanci ar-se de si mes mo para ent ender-se mel hor no passado e no present e,

menci onando que até se compadece del e mes mo, uma vez que t oma noção de como os

suj eit os são at uant es, independent es e aut ônomos, e de como não há j uiz na relação entre as

pessoas, a não ser pel as regras e convenções sociais a que o nosso aut or não te m afei ção

al guma. O conflit o que se dá toda vez que o ‘ ‘eu’ ’ se enfrent a com o ‘ ‘outro’ ’ é, pois, o

conflit o de perceber que o ‘ ‘outro’ ’ també m é um ‘ ‘eu’ ’ que me encara co mo um ‘ ‘outro’ ’,

aut ono ma ment e. E o Ki ndergeschi che não é uma hist ória de crianças, ne m de adult os, mas

ant es a hist ória da relação entre o ‘ ‘eu’ ’ e o ‘ ‘outro’ ’. Assi m como t oda a tetral ogi a e m que

esta narrativa se i nsere.

5 4

Ori gi nal e m ale mão: HANDKE 1981a: 41-42. 5 5

Ori gi nal e m ale mão: HANDKE 1981a: 43.

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b) Poética ci ne mat ográfica

Auch dort ist die Lei nwand unsicht bar. Umso vordringlicher der Ton:

Knall und Fall, Schrei en, Toben, Bersten, Röchel n, Expl osi onen, noch und

noch, Knattern, Rattern, Todesgurgel n, Weiterknattern, -expl odi eren, und

so f ort. Ins Bil d kommt mi r dazu allei n das sprunghaft wechsel nde Li cht

auf den wi eder leeren St uhllehnen vor i hr, die Li chtsprünge auch an den

Seitenwänden des Ki nos, dazu di e stillen Bodenlicht er an den St uf en, f ür

jede Rei he ei ne St ufe, diese Li cht er wi e die ei ner Landebahn5 6

.

Pet er Handke -- Kali

Desde seus pri meiros text os, pel o menos desde os pri meiros mais conheci dos --

Insult o ao público (peça teatral de 1966), Os vespões (romance de 1966) e Peça f al ada

(peça teatral de 1966) -- Handke adot a uma post ura di ante dos espect adores, dos leit ores e

da critica: a da propost a de renovação se mpre ( SOUS A 2002), portant o i nicia aí um pr ocesso

que não cessará: a procura da li nguage m i deal para a escrita literária.

No i ní ci o, já havi a uma int ersecção entre literat ura e teatro de que Handke não abri a

e conti nua não abri ndo mão. E, no percurso desta procura pel a li nguagem i deal, o escrit or

realiza proj et os paralel os aos da literat ura e do teatro, fazendo não apenas roteiros de

ci ne ma e televisão, e peças radi ofôni cas, como també m fazendo seus próprios fil mes.

Doi s fil mes mais i mportantes de sua aut oria são O medo do gol eiro diant e do

pênalti em 1972, baseado no romance que ta mbém é de sua aut oria, e A mul her canhot a e m

1977, també m baseada em r omance del e própri o.

Isso se m falar das col aborações e m roteiros para ci ne ma5 7

, como a conheci da

parceria com Wi m Wenders, donde te mos o frut o que se traduz no obj et o de pesquisa dest e

trabal ho.

5 6

Ali ta mbé m a tela era i nvisí vel. Port ant o só dava para ouvir os sons: esta mpi dos e quedas, gritos, clamores,

quebraduras, agoni as, expl osões, se m parar, estal os, barul hos, estrangul a ment os, outros est al os, -expl ode m e

assi m por di ant e. Só me ve m à ment e a luz inconstant e sobre os braços das poltronas di ante dela, os pi cos de

luz ta mbé m nas paredes laterais do ci ne ma, e as silenci osas luzes do piso nos degraus, para cada fileira um

degrau, estas luzes como se fosse m u ma pista de aterrissagem. (tradução mi nha) 5 7

Handke escreveu o rot eiro adapt ado e diri gi u, em 1972, para televisão, o fil me Di e Angst des Tor manns

bei m Elf met er a partir do romance de sua aut oria. Em 1977, fez a adapt ação de outro romance seu para a tel a

grande, mant endo o tít ul o: Die linkshändi ge Frau. Em 1992, mais uma vez adapt ou um livro seu para ci ne ma,

dest a vez Di e Abwesehnheit. Em 1998, ele colaborou no roteiro adapt ado de Ci dade dos Anj os ( City of

Angels), versão de Holl ywood para o fil me Hi mmel über Berlin. Co m Wenders, Handke escreveu o rot eiro de

Hi mmel über Berli n (1987) e escreveu o rot eiro adapt ado de Falsche Bewegung (1975) que Wenders diri gi u.

Handke escreveu ai nda outros rot eiros, diri gi u e até mes mo atuou e m al guns fil mes.

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Assi m, Handke se mpre teve i nfl uências do ci ne ma que convergira m com sua busca

por uma li nguage m renovadora, capaz de t ornar o at o de escrever literaria ment e al go que

seja real ment e possí vel.

Nest a sua busca, poderia citar di versos text os nos quais ele ment os i magéticos e

ci ne mat ográficos aparece m, pois não são poucos. Entretant o, prefiro ater-me a dois text os

relevant es para esta pesquisa: o própri o poe ma, obj et o deste trabal ho; e o romance Hi st óri a

de uma i nf ânci a ( HANDKE 1990), que te m o mes mo te ma do poe ma: a criança (conf or me

vi mos no capít ul o ant eri or).

Para começar, ne m no romance e ne m no poe ma existe m nomes para as

personagens ou para o narrador ou para o eu-lírico. Nada é fi xo. No poe ma, a ‘ ‘criança

quando era criança não sabi a que era criança’ ’, assi m como no romance ‘ ‘um dos pl anos do

adol escent e era o de mais tarde vi ver com uma criança’ ’ etc.

Na pri meira pági na de Hi st óri a de uma i nf ância, o text o não apenas exe mplifica

esta falta de nomes, como ta mbé m traz di versas imagens:

Um dos planos para o fut uro do adol escent e era o de mai s t arde vi ver com

u ma criança. Associ ava a isso a i deia de uma comunhão se m pal avras, de

u ma breve troca de ol hares, de um agachar-se, de uma risca irregul ar no

cabel o, de proxi mi dade e distânci a, em feliz har moni a. A l uz dessa

i mage m recorrent e era a escuri dão, pouco ant es de começar a chover num

páti o vazi o, cobert o de areia grossa e cercado por uma guirlanda de

céspede, diant e de uma casa ja mais nítida, somente pressenti da pel as

costas, sob a espessa folhage m de árvores altas e largas, às vezes

sussurrant es. ( HANDKE 1990: 7).

A ‘ ‘comunhão de pal avras’ ’ à qual Handke se refere é tal vez a linguage m i deal a que

el e aspira literaria ment e, e um i ndí ci o dest a possibili dade é o fat o de que este parágrafo,

que exe mplifica como se dá a narrativa do li vro i nt eiro, é escrit o mais poética do que

pr osai ca ment e, embora não esteja e m versos: as pal avras são muit o mais figuras de ret órica

do que referent es para coisas referi das (denot ação). Vej a mos:

Pr oxi mi dade e distância mostra m perspecti va ci ne mat ográfica, ou perspecti va

i magética e m geral, se quiser mos, assi m como har moni a (e o ter mo no ori gi nal não é

Har moni e, mas si m Ei nheit, que si gnifica ao pé da letra união, uni dade, sendo que est e

ter mo reaparecerá várias vezes durant e a narrativa) re met e ao sentir-se uno com o Outro.

No que di z respeit o à i mage m ci ne mat ográfica (image m e m movi ment o, ou i mage m

narrati va), vej a mos que a própria pal avra ‘ ‘i magem’ ’ ( Bil d) aparece no trecho ‘ ‘A l uz dessa

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i mage m recorrente era a escuri dão’ ’, não apenas fazendo uma clara referênci a ao ci ne ma

(luz da i mage m = i magem pr oj etada através da l uz), como ta mbé m faz seu contrapont o (l uz

versus escuri dão). Este tema voltará di versas vezes:

No espaço entre a porta e a ca ma, o chão nu de li nól eo respl andece sob a

luz esbranqui çada e si bilant e do néon. Ao tre mul ar da l uz recé m-acesa, o

rost o da mul her já estava voltado (...) ( HANDKE 1990: 8).

(...) atrás del e, nada senão o espaço claro do céu, onde, à alt ura dos

cot ovel os estão no ent ant o niti da ment e desenhados raios e t urbil hões que

u m espect ador comparou co m os espírit os alados que, na arte de outrora,

pairava m ao redor das fi guras pri nci pais (...) ( HANDKE 1990: 14).

Gl ori oso di a de março a refletir o es malte branco de uma cozi nha vazi a da

ci dade desej ada que revel a ao l onge, diant e da janel a, os telhados tant as

vezes celebrados. Os modernos bot ões met álicos dos int errupt ores de l uz

ci ntila m (...) ( HANDKE 1990: 19).

Assi m como a ‘ ‘i mage m’ ’ també m reaparecerá:

(...) a i mage m dos dois corresponde a um quadro do pint or que mostra um

ho me m j ove m e m pé, a cabeça abai xada, à beira-mar, com as mãos

apoi adas nos quadris, como que m espera (...) ( HANDKE 1990: 14).

A t este munha ocul ar i mplora uma bênção para essa i mage m, ficando ao

mes mo te mpo i mpassí vel. El e sabe que e m t odo inst ant e mí stico se

encerra uma lei geral, cuj a for ma ele deve trazer à luz, e que só é váli da

pel a for ma que l he é adequada; e ele sabe ta mbém que li berar pel o

pensa ment o a sucessão de for mas de um t al instant e é a tarefa hu mana

mai s difícil de t odas. ( HANDKE 1990: 24).

Est as i magens, luzes, perspecti vas não per mi tem apenas que tracemos uma

correspondênci a entre a escrita de Handke e u m rot eiro de ci ne ma, uma descrição

por menori zada da cena conf or me el a deve ser filmada, mas ta mbé m as palavras utilizadas e

as construções escol hi das pel o aut or nos leva m a um uni verso de met ali nguage m onde el e

não apenas está narrando a hist ória de uma personage m, um ho me m que se vê sozi nho com

sua fil ha recé m- nasci da, mas ta mbé m faz uma discussão estética do at o de escrever,

explicando que a i magem pode ser vista, porque el a está lá, mas se esta image m ti ver de ser

traduzi da por pal avras, des mi stificando-se, esta será a tarefa ‘ ‘humana mais difícil de t odas’ ’.

Est e trecho parece re meter a Benj a mi n, quando o mes mo diz, em A doutri na das

semel hanças ( BENJ AMI N 1994), que na medi da em que a humani dade se distanci ou a

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linguage m e as artes de sua nat ureza mági ca ou religi osa, tornou-as ta mbém mai s distant es

da di mensão extra-sensível do ser humano, deixando-l hes próxi mas apenas a di mensão

sensí vel, tornando pequena ou rara a possi bili dade de passage m de uma para a outra.

Tal vez por esse moti vo Handke e mpregue a poesia, ou mel hor, a linguagem poéti ca,

mes mo quando escrevendo e m prosa: para resgat ar a di mensão extra-sensí vel da

comuni cação humana. Este é també m o obj eti vo quando o aut or não nomei a personagens e

lugares: a construção de si gnificados e nomes deve ocorrer e m conj unt o com o leit or.

Vej a mos o exe mpl o do poe ma Canção do Ser- Criança, através da análise de al guns

versos da últi ma estrofe:

085 Kei n sterbliches Ki nd Nenhu ma criança mort al

086 wur de gezeugt, foi gerada,

087 sondern ei n unst erbliches mas si m uma i mage m i mortal

088 ge mei nsa mes Bil d. u ma i mage m e m conj unt o.

097 Das Bil d, das wir gezeugt haben, A i mage m que nós gera mos

098 wi rd das Begl eit bil d será a i mage m que acompanhará

099 mei nes St erbens sei n. Mi nha mort e.

100 Ich wer de dari n gel ebt haben. Eu terei vi vi do nela.

Le mbre mo- nos do i ní cio do poe ma analisado breve ment e no capít ul o ant eri or,

quando vi mos que se trata de um eu-lírico refleti ndo sobre a nat ureza de ser criança

(‘ ‘Quando a criança era criança, queria que o riacho fosse um ri o, que o ri o fosse uma

torrente...’ ’).

A i mage m e m conj unt o que foi gerada, a i magem que nós gera mos e a image m na

qual eu terei vi vi do, nesses versos, alé m de tere m o poder polissê mi co de re met ere m a

di versos possí veis si gnificados met afóricos e metoní mi cos, têm ta mbé m o fat o de est are m

represent adas ori gi nal ment e e m al e mão, i di oma que não disti ngue quadro e i mage m:

The Ger man language i gnores t he difference bet ween pi ct ure and i mage,

whi ch, though it see ms t o be a lack of disti ncti on, nicel y connects ment al

i mages and physical artifacts to one anot her5 8

. ( BELTI NG, 2005)

Agora ve mos aqui as i magens t omando l ugar do pensa ment o i nfantil: não se gerou

u ma criança, mas si m uma i mage m; o eu-lírico será acompanhado por esta i mage m at é sua

5 8

A língua al e mã i gnora a diferença entre pict ure (quadro, fot ografia, pi nt ura, representação pict órica) e

i mage (i mage m), mas e mbora pareça ser uma falta de distinção, ela conect a be m as imagens ment ais aos

artefat os físicos. ( Tradução mi nha)

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mort e; e el e terá vi vi do dentro desta i mage m. Esta preferência pel a i mage m para mostrar,

ou antes de monstrar suas opi ni ões é paradoxal co m o fat o de Handke usar j usta ment e as

pal avras. No entant o, pode mos entender que ele use um mei o para subvertê-l o, tal qual fez

com o teatro, como explica Cel este Sousa:

(...) percebe que um text o escrit o não seria o veí culo apropriado para

investir contra o teatro, porque provavel ment e seria inócuo. Pensa, assi m,

no paradoxo de prot estar contra o teatro dentro do própri o teatro, não do

teatro e m si, consi derado como um val or absol ut o, mas do teatro vist o

como fenô meno hist órico. (SOUSA 2002: 84).

Tal vez prot estar contra a linguage m através de outro mei o seria i gual mente i nócuo,

ao que Handke reage usando a própria linguage m, para não só prot estar, mas ta mbé m

pr opor sua renovação.

Co mo explica André Soares Vi eira e m seu artigo publicado pel a revista Al etri a

( VI EI RA 2006), quando analisa A mul her canhota e Breve cara para um longo adeus, de

Handke:

Em u m mundo sat urado de i magens, o narrador aprende a cont e mpl ar os

acont eci ment os, nova conquista para um i ndi ví duo até ent ão i nsul ado e m

seu mundo, preso à vel ocidade da i nfor mação, ao zappi ng, ao ol har que

não consegue seleci onar a image m e, muit o menos, detê-la por uma fração

de segundo para admirá-la e, ent ão, nomeá-la, de for ma reflexi va. (...) Do

mes mo modo, [ Handke] percebe que a criança sent e-se mais à vont ade

di ant e dos si gnos e i magens da ci vilização, como se fosse m própri os da

nat ureza, do que e m relação à verdadeira nat ureza, est a represent ando

u ma font e de i nquietação e angústia para a mbos [para a criança e para o

adult o]. ( VI EI RA 2006: 87).

Assi m, para tratar da quest ão abrangent e do ‘ ‘fazer literári o’ ’, Handke escol he a

linguage m (λόγος) não apenas e m oposi ção a outros mei os como ci ne ma, teatro, rádi o, mas

també m e m oposi ção ao pr ópri o λόγος, na medi da em que não usa a pal avra para si gnificar,

mas si m para i ndicar, represent ar, transportar, tor nando mági co o processo de recepção

pel os leit ores, em suma, usando predomi nant e ment e a li nguage m poética, seja na prosa sej a

na poesi a e m versos. É o que ve mos e m outro poema de Handke, este mais anti go, de 1968,

també m se m tradução no Brasil:

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Der Rand der Wörter

Wi r sitzen a m Rand des Feldwegs und

reden.

Di e größt e Not ist lange vorbei, denn a m

Gl etscherrand lagern die Leichen ab.

Wer steht a m Rand des Feldes, a m Rand

des Hi ghways? -- Cary Grant!

Am Gr ubenrand liegt, vom Spat en

gespalten, ei n Engerli ng.

Der Rand des Schmut zflecks trocknet

schon.

Es wird bitter kalt, und de m Capt ai n Scott

fängt die Wunde vom Rand her zu eitern

an.

Am Rand der Erschöpfung reden wir alle

in Hauptsätzen.

Von den schmut zi gen Taschen des Tot en

haben di e Fi ngernägel des Pl ünderers

ei nen Rand.

Wi r sitzen a m Rand des Feldwegs, a m

Rand des Fel des, und reden, und reden.

Wo der Rand der Wört er sein sollte, fängt

trockenes Laub an den Rändern zu

brennen an, und di e Wört er krümmen sich

unendlich langsa m i n sich sel ber:

„ Di ese Trauerränder!‘ ‘

Di eser Rand der Trauer.

1968

A marge m das pal avras5 9

Est a mos sent ados à margem do ca mi nho do

ca mpo e conversa mos.

A mai or urgênci a já não existe faz te mpo,

pois os cadáveres estão na mar ge m da

gel eira.

Que m está à marge m do campo, à marge m

da aut o-estrada? -- Cary Grant!

À mar ge m da cova, parti da por uma pá, está

u ma larva de ver me.

A mar ge m da nódoa já está secando.

Ve m u m fri o arrepi ant e, e a feri da do

Capitão Scott começa a supurar a partir de

sua marge m.

À mar ge m do esgot a ment o todos nós

conversa mos por orações princi pais.

Dos bolsos i mundos do defunt o, as unhas

do saqueador ganha m uma mar ge m.

Est a mos sent ados à beira do ca mi nho do

ca mpo, à beira do ca mpo, e conversa mos, e

conversa mos.

Onde deveria ser a marge m das pal avras, é

onde começa a quei mar a fol hage m seca e m

suas beiradas, e as pal avras curva m-se e m

et erna lenti dão sobre si mesmas:

‘ ‘Estas unhas suj as!’ ’

Est a marge m da tristeza.

1968

O tít ul o deste poe ma é tão si gnificativo quant o seu cont eúdo e m versos: est ar à

mar ge m das pal avras não si gnifica estar e m um lugar onde não se pode usá-las. Si gnifica,

ant es, estar à parte del as, longe del as, mes mo que usando-as.

Ta mbé m deve mos nos le mbrar de que Rand em al e mão si gnifica marge m t ant o

quant o si gnifica li mit e, barreira, beira, bordo... Assi m, estar à mar ge m das pal avras é ao

mes mo te mpo est ar no li mite das pal avras, estar no l ugar onde elas não pode m chegar

por que estão conti das dentro de cert os li mit es.

As pal avras são um uni verso finit o, diria o mat e mático e o li nguista. Handke precisa

torná-l o i nfi nit o, como o faze m os poet as. E nova ment e lança mão não apenas da

5 9

Tradução mi nha.

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linguage m poética, através da qual um mundo cont é m vári os mundos, como t a mbé m volt a

a se referir ao mundo ci ne mat ográfico e a fazer uso das i magens icôni cas, quando se refere

aos cadáveres que já estão na mar ge m da gel eira, e a Cary Grant sentado à mar ge m do

ca mpo, e um ver me partido por uma pá à mar ge m de uma cova, e nos faz visualizar a feri da

do Capitão Scott, numa sequênci a ci ne mat ográfica e m que pode mos até imagi nar os cort es

de uma cena para outra, isto é, dos cadáveres para o rost o de Cary Grant, daí para a cova e

o ver me, e ent ão para a feri da de Scott.

O movi ment o do poe ma se parece com uma experiênci a relatada por Ei senst ei n

(2002b), através da qual se pergunt ou a uma plat eia de espect adores o que el es podi a m

di zer a respeit o da sequênci a de fot os que l hes ti nha m si do mostradas: uma fot o do rost o de

u m ho me m, uma fot o de um prat o de sopa, uma fot o de uma criança num cai xão. Todos

respondera m que se tratava de um rel at o da morte da fil ha de um senhor que estava triste.

Mas o que teria a ver o prat o de sopa com o resto? Al guns achara m que el e jant ava sopa

se mpre com a fil ha, e o prat o de sopa agora o fazia le mbrar da mort e da fil ha; outros

pensara m que havi a um veneno na sopa, moti vo da morte da fil ha etc. De qual quer maneira,

este experi ment o foi feito para provar que o ser hu mano ment al ment e constroi narrativas e

que mes mo uma i mage m estática pode ser narrada.

Handke parece querer nos fazer passar por um experi ment o como est e col ando

‘ ‘i magens’ ’ de coisas que poderia m estar muit o distant es umas das outras nest e poe ma

(corpos mort os na gel eira, Cary Grant, cova, Capitão Scott), mas que permi t e m construir a

narrati vi dade que tal vez já esti vesse intenci onada nas escol has feitas pel o poet a.

Fazendo uma pequena pesquisa de cont ext ualização, qual quer leit or pode verificar

que o Capitão Scott a que Handke se refere neste poe ma é, com efeit o, um pr ot agoni st a de

u m fil me de ci ne ma, a saber, A tragédi a do Capitão Scott 6 0

, que conta a hist ória de um

capitão que tent a sal var a vi da de i ndí genas norte-a meri canos na Ant ártida, passando por

muit as dificul dades, motivo pel o qual Handke tenha menci onado a feri da da personage m.

Igual ment e, a menção ao at or holl ywoodi ano Cary Grant à mar ge m ou à beira de

u ma estrada nos Est ados Uni dos (a típica hi ghway estaduni dense) pode se referir a um

fil me e m que Grant aparece à beira de uma estrada: Intriga Internaci onal 6 1

de 1959, em

6 0

Tít ul o ori gi nal: Scott of t he Ant arctic. Dir.: Charl es Frend. Ingl at erra, 1948, 111 mi nut os, cor. 6 1

Tít ul o ori gi nal: Nort h by Northwest. Dir.: Alfred Hit chcock. Estados Uni dos, 1959.

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que Grant é o prot agonista, mas não de uma história e m alt o- mar ou e m geleiras, e si m

como um ho me m que acaba sendo confundido com um espião i nternaci onal e as

consequênci as desta confusão se dão no desenrolar do fil me.

Não pretendo me estender na si nopse dos fil mes e muit o menos e m sua análise, pois

o obj eti vo não é fazer u ma nova pesquisa, mas ant es coment ar tão soment e que est es

el e ment os ci ne mat ográficos já estava m present es na poética de Handke desde muit o cedo,

lembrando que o poe ma é de 1968.

Quando Handke apont a que ‘ ‘à marge m do esgota ment o t odos nós conversa mos por

orações pri nci pais’ ’, ist o é, se m perí odos compostos, se m subordi nações ou coordenações

frasais, esta mos ‘ ‘economi zando’ ’ linguage m. O sofri ment o, o esgot a mento, o cansaço nos

leva m a um estado e m que a linguage m é supérfl ua.

Fi nal ment e, uma pergunta com uma respost a e mbuti da: ‘ ‘onde deveri a ser a mar ge m

das pal avras’ ’, ist o é, onde deveria ser o li mit e do λόγος, onde o discurso deve ter mi nar? A

respost a é ‘ ‘onde começa a quei mar a fol hagem seca e m suas beiradas, e as pal avras

curva m-se eterna e vagarosa ment e sobre si mesmas’ ’, ou seja, numa metáfora e m que a

fol hage m seca é a linguage m superada, cada folha é cada pal avra se m uso, ou com o uso

desgast ado, tal vez por causa da i ntensi dade do uso de i magens no coti di ano multi- mi di ático

e m que vi ve mos. A li nguage m verbal deve li mitar-se no mes mo pont o onde as pal avras

curva m-se sobre si mes mas, quei mando, dei xando de existir.

c) Canção do Ser- Cri ança

Fi z hoj e na escol a uma composi ção sobre o Di a

da Bandeira, tão bonit a, mas t ão bonit a... pois

at é usei pal avras que eu não sei be m o que

quere m dizer..

Cl arice Lispect or -- Poesi a (in Descoberta do

Mundo)

O poe ma Li ed vom Ki ndsei n de Pet er Handke ja mai s foi publicado e m for ma de

livro de poe mas ou de poe mas escol hi dos etc., tendo si do i mpr esso tão soment e no li vro

que é o roteiro do fil me. Não est ou menci onando esta i nfor mação se m moti vo al gum.

Pri meira ment e ela é i mportant e porque de monstra o quant o Handke quis que est e poe ma

ficasse vi ncul ado de fat o ao fil me. Al é m disso, ta mbé m menci onei isso para le mbrar que

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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este poe ma não apenas não foi publicado como tampouco foi traduzi do, isto é, não exist e

nenhu ma versão brasileira para o mes mo. Assi m sendo, t odas as traduções do poe ma que

aparece m nest e trabal ho são mi nhas.

Apesar de não ter si do publicado e m for mat o de li vro, mes mo assi m o poe ma

aparece, no li vro do roteiro ( HANDKE; WENDERS 2005), em for mat o de poe ma, como

esta mos acost umados a ver, ist o é, com estrofes e versos separados de maneira bast ant e

vi sí vel. As estrofes estão separadas por ‘ ‘aparições’ ’ do poe ma no fil me, isto é, não apenas

for mal ment e na escrita (no li vro do rot eiro), com t a mbé m por que há espaços de te mpo

entre os mo ment os e m que o poe ma é decl a mado ou proj et ado na tela.

Já com relação aos versos, pode mos ver que estão separados porque a grafia dos

mes mos é, como j á disse, bastant e clara na i mpressão no li vro.

Usarei aqui, para efeito de facilitação, a mes ma di visão do fil me, ou sej a, cada

‘ ‘moment o’ ’ em que aparece o poe ma no fil me foi transcrit o num bl oco (ou nu ma estrofe).

O bl oco 1 se dá no pri meiro segundo de fil me, ant es mes mo dos crédit os iniciais.

Em outras pal avras: é a pri meiríssi ma i mage m que ve mos quando assisti mos ao fil me: uma

mão segurando uma canet a se aproxi ma de uma fol ha e m branco de papel e começa a

escrever os versos 6, 7, 8 e 9 deste bl oco, mas a voz que ouvi mos começa do verso 1

pr opria ment e, e ter mi na só no verso 16. Ist o quer dizer que não há si ncroni a entre a voz que

lê o poe ma e a mão que o escreve.

Li ed vo m Ki ndsei n Canção do Ser- Cri ança

Versos Pet er Handke Pet er Handke ( Tradução: Júli o Sat o)

Est

rofe

1

001 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

002 gi ng es mit hängenden Ar men, el a andava bal ançando os braços,

003 wollte der Bach sei ei n Fl uß, queri a que o ri acho f osse um ri o,

004 der Fl uß sei ei n Strom, e que o ri o f osse uma t orrent e,

005 und di ese Pfüt ze das Meer. e que essa poça fosse o mar.

006 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

007 wußt e es nicht, dass es Ki nd war, el a não sabi a que ela era criança,

008 alles war i hm beseelt, tudo l he pareci a ter al ma,

009 und alle Seel en waren ei ns. e t odas as al mas eram uma só.

010 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

011 hatte es von ni chts ei ne Meinung, el a não ti nha opi nião sobre nada,

012 hatte kei ne Ge wohnheit, não ti nha cost ume al gum,

013 sass oft i m Schnei dersitz, sent ava-se com as pernas cruzadas,

014 lief aus de m St and, saí a correndo,

015 hatte ei nen Wi rbel i m Haar tinha um rede moi nho no cabel o

016 und macht e kei n Gesicht bei m fot ografieren. e não fazi a pose para ser fotografada.

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Não se trata, como se pode ver, de um poe ma extre ma ment e her mético e de et apas

difíceis de transpor, rumo a uma i nterpretação. Trat a-se ant es de uma manifestação a

respeit o da criança antes de sua i nserção compl et a nas regras soci ais da convi vênci a no

col eti vo, e ant es de os modos de apreensão do mundo estare m t ot al ment e i mpregnados

nest a criança. Em suma, trata-se daquil o de que fala explicita ment e o títul o, moti vo pel o

qual preferi (como mencionei ant es) traduzir ao pé da letra Lied vom Ki ndsei n por Canção

do Ser- Cri ança e m vez de Canção da Inf ância ou ai nda Canção das Cri anças. Pois

ent endo que o ‘ ‘ser criança’ ’, o estado e m que se encontra qual quer criança, quando se é

criança, é o que Handke procura estabel ecer como i mport ante no i níci o do poe ma, i ní ci o

este que parece querer que compreenda mos que quando uma cri ança ai nda é criança, el a

não te m ai nda uma consciênci a i magi nant e, se quiser mos usar os ter mos de Sartre (1996).

O fat o de que a criança não ti nha opi ni ão sobre nada si gnifica que t udo l he era

indiferente, assi m como o fat o de que ela não fazi a poses para fot ografias si gnifica que,

para ela, uma fot ografia é um obj et o, e não u ma represent ação, um anal ogon, como

explica mos na i ntrodução teórica no Capít ul o I deste trabal ho. Co mo Sartre explica:

pode mos escol her a realidade (no caso de uma foto, não ver a pessoa fot ografada, e si m o

obj et o f ot o, ist o é, aquela fol ha de papel com cores e linhas i mpressas nela) ou opt ar pel a

ficção do anal ogon (visar a pessoa fot ografada, sua represent ação, e i gnorar parcial ment e o

obj et o f ot o como coisa).

Al é m disso, não fazer pose para fot ografia si gnifica ai nda não si mul ar di ant e da

capt ação da i mage m, ou di ante do mundo.

Por outro lado, a criança tem a visão mági ca, a visão de que t udo possui u ma al ma

(‘ ‘tudo l he pareci a ter alma, / e t odas as al mas era m uma só’ ’). Isso converge com a vont ade

que a criança te m de que um ri o seja uma t orrent e, de que uma poça seja um mar i nt eiro. A

visão mági ca do mundo, a visão de que aquil o que apreende mos de fat o existe como tal, é a

vi são pri meira da humanidade, da criança, e també m é nossa visão no ci nema, e na poesi a.

O pr ópri o Mori n ai nda vai nos le mbrar de que ‘ ‘o liris mo, como nos mostra a poesia, serve-

se nat ural ment e das mesmas vi as e linguage m que a magi a.’ ’ Esta, diz ele, é a visão pré-

obj eti va do mundo, um est ado pré-subj eti vo de afetivi dade. Quando evol uí mos ao

antropocos mo morfis mo, o que te mos é o i magi nári o (através da relação subj eti va com o

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mundo), pois a evol ução ‘ ‘des magifica’ ’ o uni verso e i nteri oriza a magi a. Des magifica as

coisas, as pessoas, e nossa relação com el as.

Esse processo de ‘ ‘desmagificação’ ’ ou ‘ ‘des mistificação’ ’ se i nicia, no poe ma,

quando começa m as pergunt as de cunho fil osófico-existenci al, pelas quais a criança parece

tomar uma consci ênci a que antes ela não ti nha, confor me ve mos na estrofe 2, isto é,

segundo mo ment o e m que o poe ma volta a ser decl a mado no fil me (desta vez, se m ser

escrit o na tela, e si m apenas decl a mado), o que ocorre por volta de 8’30’’ de fil me:

Versos Ori gi nal Tradução

Est

rofe

2

017 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

018 war es die Zeit der fol genden Fragen: era o te mpo das segui nt es pergunt as:

019 Warum bi n ich ich und warum ni cht du? Por que eu sou eu e por que não (sou) você?

020 Warum bi n ich hier und warum ni cht dort ? Por que est ou aqui e por que não (est ou)

aí ?

021 Wann begann di e Zeit und wo endet der

Rau m?

Quando começou o tempo e onde ter mi na o

espaço?

022 Ist das Leben unt er der Sonne nicht bl oß ei n

Traum?

A vi da sob o sol não é merament e um

sonho?

023 Ist was ich sehe und höre und rieche Aquil o que eu vej o e ouço e cheiro

024 ni cht bl oß der Schei n ei ner Welt vor der

Welt ?

Não é mera ment e a aparência de um mundo

di ant e do mundo?

025 Gi bt es tatsächlich das Böse und Leut e, die

wi rklich die Bösen si nd?

Exi ste m de fat o o Mal e pessoas que são

real ment e más?

026 Wi e kann es sei n, dass ich, der ich bi n, Co mo pode ser que eu que sou eu,

027 bevor ich wurde, nicht war, ant es de me t ornar eu, não era eu,

028 und dass ei nmal ich, der ich bi n, e que em al gum mo ment o eu, que sou eu,

029 ni cht mehr der ich bi n, sei n werde? Não mais este eu que eu sou serei?

Quando a criança fazia pergunt as tais como ‘ ‘ Que m sou? Por que eu sou eu, e não

sou você?’ ’ etc., começa não apenas a ter uma apreensão do Outro. Não existe mai s a

concepção de que ‘ ‘todas as al mas são uma só’ ’.

Ant hony Gi ddens (2002: 49-56) explica que existe m quatro quest ões existenci ais

defi ni doras da identi dade, as quais, resumi da mente falando, seria m: a questão relaci onada à

pr ópria existênci a (sobretudo present e na criança); a questão que di z respeito não apenas à

nat ureza do ser como às relações entre o mundo exteri or e a vi da humana; a quest ão da

existênci a de outras pessoas (a questão do outro); e a questão da aut o-i denti dade (como o

indi ví duo vê-se a si mesmo).

Est as quest ões da identidade pode m ser reconheci das nos questi ona mentos que o

eu-lírico faz sobret udo nos versos 19 e 20 assi m co mo nos versos 26, 27, 28 e 29.

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Já nos de mai s versos, a discussão se volta à teoria da percepção: aquilo que eu

apreendo do mundo é real ment e o mundo, tal qual ele se dá à mi nha apreensão? Sartre nos

explica que nós apreende mos o mundo (fenômeno da percepção) e ent ão transfor ma mos

esta apreensão e m i magens ment ais (i magi nári o):

‘ ‘Toda consci ênci a col oca seu obj et o, mas cada uma à sua maneira. A

percepção, por exe mpl o, col oca seu obj et o como existent e. A i mage m

cont é m, do mes mo modo, um at o de crença ou um at o posi ci onal. Esse at o

pode t omar quatro, e soment e quatro for mas: pode colocar o obj et o como

inexistent e, ou como ausent e, ou como existent e em outra parte; pode

també m ‘neutralizar-se’, isto é, não col ocar seu obj eto como existent e.

Doi s desses at os são negações: o quart o corresponde a uma suspensão ou

neutralização da tese. O terceiro, que é positivo, supõe uma negação

i mplícita da existênci a nat ural e present e do obj et o. Esses at os posici onais

-- essa observação é capital -- não se acrescent a m à i mage m u ma vez

constit uí da; o at o posi ci onal é constit uti vo da consci ênci a da i mage m.

Qual quer outra teoria, além de ser contrária aos dados da reflexão, nos

faria cair de novo na ilusão da i manênci a.’ ’ (SARTRE 1996: 26)

A i mage m que eu construo de al guma coisa pode ser ou não ser exat a ment e i gual

àquel a coisa da qual ela é uma i mage m. Independent e ment e de existir ou não a i denti dade

entre a i mage m e a coisa i magi nada, a quest ão é que existe m estas duas atit udes da nossa

consci ênci a perant e o mundo: perceber e i magi nar.

Na percepção, segundo Sartre, existe um aprendizado, um processo. Est e processo

pode ter duração i ndefi nida, enquant o eu quiser perceber o objet o. Est a é a posi ção, por

exe mpl o, de Cézanne, ao retratar mais de 60 vezes, o mont e de Sant a Vitória, procurando

levar à exaust ão seu processo de percepção, de apreensão de uma reali dade. O que não

funci ona nesse processo -- e Handke aborda isso e m seu romance Di e Lehre der Sai nt e-

Vi ct oire -- é o fat o de que ao ‘ ‘col ocar’ ’ a pequena mont anha na tela de sua pi nt ura, Cézanne

já está passando do fenômeno da percepção para o da i magi nação. Logo, como saber se a

coisa percebi da te m uma identi dade com a coisa i magi nada? É a questão exist enci al com

que se depara o eu-lírico do nosso poe ma.

Volt ando para a pri meira discussão dest a estrofe -- a quest ão da identi dade -- eis

onde os dois sub-te mas converge m: eu busco mi nha própria i denti dade e me col oco como

diferente do Outro; em segui da, me pergunt o se aquil o que eu apreendo do mundo é

exat a ment e o que é; e ter mi no pergunt ando se eu sou real ment e eu mes mo e se al gum di a,

quando eu não existir mais, ai nda assi m eu conti nuarei sendo eu mes mo. O movi ment o que

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o poeta fez foi o de círcul o porque, agora, no final da estrofe, ele não duvi da apenas da

existênci a das coisas do mundo confor me ele as apreende; passa a duvidar de si mes mo

també m, como el e ‘ ‘se apreende a si mes mo’ ’, como el e ‘ ‘se aut o-percebe’ ’.

Por fi m, mas não menos i mportante, existe m duas pergunt as de cunho ético nest a

estrofe. Uma é ‘ ‘A vi da sob o sol não é mera mente um sonho?’ ’ e a outra é ‘ ‘Existe de fat o o

Mal e as pessoas que são real ment e más?’ ’.

Pode ser que estas pergunt as sirva m como pano de fundo para uma questão que se

cruza com a quest ão indivi dual de busca de identidade: uma quest ão coletiva de i denti dade,

no que concerne à ent ão di visão das Al e manhas e à descrença de al gumas pessoas na

possi bili dade de uma vida mel hor, uma vi da ‘ ‘sob o sol’ ’, tant o quant o u ma descrença no

fat o de que real ment e o ‘ ‘outro lado’ ’ seja o ‘ ‘lado mau’ ’. Uma pergunt a retórica (‘ ‘Exist e de

fat o o Mal ?) que quer, ant es de tudo, responder a si mes ma: não existe al gué m que sej a

excl usi va ment e bom, nem al gué m que seja excl usi va ment e mau. Não existe o ‘ ‘ Mal puro’ ’,

ist o é, aquel e que pode ter si do por tant o tempo ‘ ‘classificado’ ’ como mau só por est ar ‘ ‘do

outro lado’ ’.

Est e ti po de descrença e apatia acont ece, aparentement e, não apenas na ‘ ‘evol ução’ ’

da hist ória da di visão das Al e manhas, como també m no processo de tor nar-se adult o,

quando passa mos a duvidar de muitas coisas que nos era m ditas quando éra mos crianças.

Isso é o que será confir mado pel a próxi ma estrofe:

Est

rofe

3

030 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

031 wür gt e es a m Spi nat, an den Erbsen, a m

Mi l chreis,

Sentia ânsia com espi nafre, ervil has e arroz-

doce,

032 Und a m gedünst eten Bl umenkohl. E couve-fl or refogada.

033 Und i ßt jetzt das alles und nicht nur zur Not. E come agora t udo isso e não apenas por

obri gação.

034 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

035 er wacht e es ei nmal i n ei nem fre mden Bett Acor dou certa vez numa cama estranha

036 Und jetzt i mmer wi eder, E isso conti nua acont ecendo se mpre,

037 erschi enen i hm vi ele Menschen schön muit os seres humanos l he pareci a m bel os

038 Und jetzt nur noch i m Gl ücksfall, e agora só numa feliz coi ncidênci a,

039 stellte es sich klar ei n Paradies vor i magi nava clara ment e um Paraíso

040 Und kann es jetzt höchst ens ahnen, e pode agora ter apenas uma noção,

041 konnt e es sich Ni chts nicht denken não consegui a pensar no nada

042 und schaudert heut e davor. e hoj e estre mece di ant e disso.

043 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

044 spi elte es mit Begeisterung bri ncava com ent usias mo

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045 und jetzt, so ganz bei der Sache wi e da mals,

nur noch, e agora, tão envol vi da como outrora, só que

046 wenn di ese Sache sei ne Arbeit ist. quando se trata de seu trabalho.

A estrofe 3 é decl a mada (ta mbé m se m escrita aparecendo na tela, ist o é, diferent e da

estrofe 1 e pareci da com a estrofe 2) quando o anj o Da mi el está no circo onde trabal ha

Mari on, aos 57' de fil me. Há basica ment e crianças na pl at eia, onde se encontra ta mbé m

Da mi el, assisti ndo ao espet ácul o. Seu comport ament o é i dêntico ao das crianças: sorri e

de monstra uma alegria quase i nconti da, ol hando o espet ácul o e os artistas circenses com

muit o ent usi as mo. Seu ami go Cassi el o observa, de l onge.

Os versos desta estrofe, apesar de não trazere m pergunt as filosófico-existenci ais,

são bast ant e eni gmáticos, porque não tê m necessaria ment e a ver com a cena a que

assisti mos si multanea ment e.

A pont e que pode mos fazer entre o que ve mos e o que ouvi mos é o fat o de que o

cont eúdo do poe ma compara o comport a mento da criança e do adulto e m rel ação às

mes mas coisas: al guns ali ment os não era m do gost o da criança, mas ela os comi a, por

obri gação, ao passo que o adult o os come ta mbé m, mas não só por obrigação; a criança

dor mi u e m ca ma de estranhos, e o adult o també m, não havendo aqui diferença al guma entre

os dois comport a ment os, como e m relação à comi da; para a criança, os seres humanos era m

bel os, mas para o adulto, esta opi ni ão só é possí vel e m det er mi nados casos, se houver

‘ ‘sorte’ ’ em ‘ ‘encontrar’ ’ pessoas que seja m belas (e o si gnificado aqui, pode mos supor, é o

de bel eza interi or); a criança consegui a i magi nar como seria o Paraíso, poré m o adult o mal

consegue ter a noção do que venha a ser isso; a criança ficava envol vi da com sua

bri ncadeira, sua ati vi dade i nfantil, lúdi ca enquanto que o adult o ta mbé m se envol ve, mas

com seu trabal ho apenas.

Fazendo esta pont e, ve mos que o que está sendo descrit o é a perda da visão mági ca

da criança, no processo de t ornar-se adult o. Da mi el ent usias ma-se com est e tipo de visão do

mundo, diferent e de como os anj os e m geral (suposta ment e) veria m o mundo; como Cassiel,

aliás, deve ver o mundo, já que nesta cena ele aparece, como que para fazer o contrapont o

com Da mi el (lembre mo-nos de que Cassi el não aparece e m outras cenas ou sequênci as de

leit ura do poe ma at é aqui).

Os el e ment os que vê m sendo trabal hados no poe ma até este pont o parece m u ma

pr ogressão do mundo da criança para o mundo do adult o, poré m não com u ma visão

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‘ ‘evol uci onista’ ’, no sentido de que a evol ução nat ural seja dei xar de ver o mundo de

det er mi nada maneira (criança) para t ornar-se ‘ ‘mel hor’ ’ ao passar a enxergá-l o de outra

maneira (adult o), até mes mo porque Da mi el anseia pel a visão mági ca da criança e está, at é

aqui, em conflit o i nterno entre as duas atit udes possí veis.

Entret ant o, quando o filme est á com o te mpo aproxi mado de 85' , o poema faz um

tipo de ‘ ‘retrocesso’ ’ ou movi ment o circul ar, pois ret oma, aqui na estrofe 4 (versos de 47 a

52) os mes mos versos 17 a 22, da estrofe 2, acima. Isso se dá quando Da mi el vai até o

trailer de Mari on, que está ador meci da. Ele ta mbém se deita, parecendo també m ador mecer.

Te mos um corte para uma sequênci a que seria o sonho de Mari on. Da mi el está dentro dest e

sonho (possi vel ment e ele ta mbé m est aria sonhando). Enquant o ve mos esta sequênci a dos

dois se encontrando nesse a mbi ent e onírico (que est á descrit o e m mai s detal hes no capít ul o

dedi cado à análise do filme), ouvi mos nova ment e, ent ão, os segui nt es versos:

Est

rofe

4

047 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

048 war es die Zeit der fol genden Fragen: era o te mpo das segui nt es pergunt as:

049 War u m bi n ich ich und waru m ni cht du? Por que eu sou eu e por que não (sou) você?

050 War u m bi n ich hier und warum ni cht dort? Por que est ou aqui e por que não (est ou) aí?

051 Wa nn begann die Zeit und wo endet der

Rau m?

Quando começou o te mpo e onde ter mi na o

espaço?

052 Ist das Leben unt er der Sonne nicht bl oß ei n

Traum?

A vi da sob o sol não é merament e um

sonho?

A se mel hança entre os versos 17 a 22 e estes agora, de 47 a 52, é o fato de que

a mbos são decl a mados com voz fora de ca mpo (som off), mas diferença entre os dois

mo ment os é que, no primei ro, a voz que ouvi mos é de Da mi el e, no segundo, de Mari on.

Ist o é, Mari on está se fazendo pergunt as fil osófico-existenci ais tant o quant o Da mi el. As

mes mas pergunt as sobre identi dade e crença ou descrença na reali dade nortei a m a crise que

leva m as duas personagens a se encontrar.

O movi ment o de ret omada destes versos pode estar ligado a uma i dei a de reforço,

reafir mação de que estas são as quest ões pri nci pais e moti vadoras das circunst ânci as que

virão a seguir.

O fil me transcorre e Dami el deci de t ornar-se hu mano, o que ocorre com 92' de

duração da narrativa. Após experi ment ar sabor, temperat ura, cores etc., Da mi el -- agora

hu mano -- está pera mbulando pel as ruas de Berlim, quando ouvi mos a estrofe 5 do poe ma

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(nova ment e com voz fora de ca mpo, ist o é, som off, se m escrita). A voz é, de novo, de

Da mi el:

Est

rofe

5

053 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

054 genügt en i hm als Nahrung Apfel, Brot, era m-l he suficient es como ali ment o maçã,

pão

055 und so ist es i mmer noch. E conti nua sendo assi m.

056 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

057 fielen i hm di e Beeren wi e nur Beeren i n die

Hand

a moras caía m-l he na mão co mo só a moras

faze m

058 und jetzt i mmer noch, e conti nua sendo assi m hoje e m di a,

059 macht en i hm di e frischen Wal nüsse ei ne

rauhe Zunge as nozes l he dei xava m a lí ngua áspera

060 und jetzt i mmer noch, e ai nda é assi m,

061 hatte es auf jede m Berg die Sehnsucht nach

de m i mmer höheren Berg

e m cada mont anha ela [a criança] ansiava

pel a mont anha ai nda mais alta

062 und i n jeder St adt die Sehnsucht nach der

noch größeren St adt,

e e m cada ci dade, ansiava por uma ci dade

ai nda mai or,

063 und das ist i mmer noch so, e conti nua sendo assi m,

064 griff i m Wi pfel ei nes Bau ms nach den

Ki rschen i n ei ne m Hochgefühl

al cançava as cerejas na copa de uma árvore

e sentia orgul ho

065 wi e auch heut e noch, como ai nda hoj e

066 hatte Scheu vor jede m Fremden und hat sie

i mmer noch,

sentia ti mi dez di ant e de cada pessoa

estranha e ai nda sent e,

067 wart ete es auf den ersten Schnee und wartet

so i mmer noch. Esperava pel a pri meira neve e ai nda espera.

068 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

069 warf es ei nen St ock als Lanze gegen den

Bau m,

lançou um taco como lança contra uma

árvore,

070 und sie zittert da heut e noch. E el a [a lança] estre mece lá ainda hoj e.

Em contraparti da à estrofe 3, que comparava o comport a ment o da criança di ant e de

det er mi nadas coisas e o comport a ment o do adulto, diant e das mes mas coisas, havendo

confront os e dissonânci as entre os dois, agora na estrofe 5 o que te mos é uma repetição que

não precisa ser transcrita, pois está muit o clara na própria leit ura do poe ma: t odos os

el e ment os elencados desta vez são i ndiferent es à mudança de i dade, ou seja, tant o a criança

quant o o adult o sente m-se de maneira i gual perante eles (quando criança, maçã e pão

bast ava m como ali mento; e agora, adult o, continua m bast ando etc.). A cri ança já é um

adult o. Co m essa transformação, passa mos à fase final do poe ma, estrofe 6:

Est

rofe

6 071 Et was ist geschehen Al go acont eceu

072 es geschi eht i mmer noch. e conti nua acontecendo.

073 Es ist verbi ndlich! É al go necessári o!

074 Es war i n der Nacht, Foi durant e a noite,

075 und es ist jetzt am Tag. E agora é durant e o dia.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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076 Jet zt erst recht. Agora si m.

077 Wer war wer? Que m era que m?

078 Ich war i n i hr... Eu estava nela...

079 und sie war um mi ch. e ela estava ao meu redor.

080 Wer auf der Welt kann Que m no mundo pode

081 von sich behaupt en, afir mar real ment e

082 er war je mit ei ne m anderen já haver estado com outro

083 Me nschen zusa mmen? ser humano e m conj unção?

084 Ich bi n zusa mmen. Eu posso

085 Kei n sterbliches Ki nd Nenhu ma criança mort al

086 wur de gezeugt, foi gerada,

087 sondern ei n unst erbliches e si m uma i mage m i mortal

088 ge mei nsa mes Bil d. unificada.

089 Ich habe i n dieser Nacht Eu nessa noite

090 das St aunen gel ernt. aprendi o espant o.

091 Si e hat mi ch hei mgeholt, El a me trouxe para casa

092 und ich habe e eu encontrei

093 hei mgefunden. mi nha casa.

094 Es war ei nmal. Foi uma vez.

095 Es war ei nmal, Era uma vez,

096 und also wird es sei n. e assi m será.

097 Das Bil d, das wir gezeugt haben, A i mage m que nós gera mos

098 wi rd das Begl eit bil d será a i mage m que acompanhará

099 mei nes St erbens sei n. mi nha mort e.

100 Ich werde dari n gel ebt haben. Eu terei vi vi do nela.

101 Erst das St aunen Só o espant o

102 über uns zwei, sobre nós dois,

103 das St aunen o espant o

104 über den Mann und die Frau sobre o home m e a mul her

105 hat mi ch zum Menschen gemacht. me t ornou humano.

106 Ich... weiss... jetzt, Eu... sei... agora,

107 was... kei n... Engel... weiss.. o que... nenhu m... anj o... sabe...

Est a últi ma estrofe não é apenas decl a mada, mas ta mbé m aparece e m t ela, como

acont ece com a estrofe 1. A diferença pri nci pal é o fat o de que, no i níci o do fil me, a voz

que ouvi mos está compl et a ment e fora de si ncronia com o que está sendo escrit o, ao passo

que, aqui, os últi mos versos da estrofe 6 e a voz que os lee m estão e m consonânci a perfeita,

o que, confor me já menci onei, per mit e-nos i nterpret ar que no i ní ci o, havia, entre o te mpo

do narrar e o te mpo narrado, uma distânci a mai or do que agora.

Não são apenas os ele ment os fíl mi cos que nos dei xa m i nt erpret ar dest a maneira,

senão ta mbé m os literários: na estrofe 1, todos os verbos estão conj ugados no te mpo

passado, relatando um acont eci ment o do qual o eu-lírico está distanci ado; na estrofe 2, o

tempo do present e nos verbos não se refere m a acont eci ment os do ‘ ‘agora’ ’, mas si m a

quest ões existenci ais atemporais, tais como ‘ ‘por que eu sou eu?’ ’ ou ai nda ‘ ‘o mundo que eu

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percebo di ante de meus ol hos de fat o existe?’ ’; a estrofe 3 volta a usar o tempo passado,

como na estrofe 1, isto é, para relatar hábit os que a criança ti nha quando era ai nda uma

criança; a estrofe 4 é repetição de uma parte da estrofe 2, isto é, col oca quest ões

existenci ais.

A mudança ocorre na estrofe 5, quando o te mpo verbal oscila entre passado e

present e, não por uma incerteza, mas si m por uma contraposi ção, uma comparação das

coisas que era m e das coisas que são, e m relação ao eu-lírico que, ai nda aqui na estrofe 5,

apesar de já conseguir fazer essa comparação entre as ‘ ‘idades’ ’, ainda refere-se a si mes mo

na terceira pessoa, como nas estrofes 1, 3 e 4.

Fi nal ment e, voltando à estrofe 6, o que te mos não é uma oscilação de te mpos, como

na estrofe 5 (passado e present e alternando-se verso a verso), mas si m u ma evol ução: a

estrofe i nicia com verbos no passado e ter mi na com verbos no present e. Al é m disso, os

verbos conj ugados e m tempo passado do começo da estrofe se refere m a um passado muit o

recent e, pont uado por advérbi os temporais que nos localiza m, nos cont ext ualiza m, tais

como ‘ ‘algo acont eceu / foi durant e a noite’ ’, ist o é, não se trata mais de um passado re mot o,

não se trata mais de contrapor meu present e de adulto a um passado i nfantil.

A estrofe re met e à noite de a mor entre o agora ex-anj o Da mi el e Mar ion como

tendo si do o mo ment o de concl usão de sua transfor mação e m ser humano, não o i ní ci o

dest a transfor mação.

O i ní ci o se dá na estrofe 5, como vi mos, pois é a experiênci a sensí vel que Da mi el

tem pela pri meira vez senti ndo sabores, fri o, enxergando cores etc., que o i ntroduze m no

mundo humano e, ent ão, a noite de a mor com Mari on, a experiênci a do senti ment o, das

e moções, concl ui esta transfor mação que não é feita apenas das experiênci as sensí veis, mas

també m das extra-sensí veis, como as classifica Sartre (1996).

Os versos ‘ ‘Nenhu ma criança mort al / foi gerada, / e si m uma i mage m i mort al /

unificada’ ’ també m re metem à criação do i magi nári o ( SARTRE 1996) de Da mi el, opondo a

i mage m à visão da criança. Em segui da, a personage m de Da mi el explicita que a soma

dest as experiênci as é o espant o: ‘ ‘Esta noite eu aprendi o espant o’ ’, que é o fenô meno da

percepção.

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Est a estrofe cul mi na com as afir mações dos 7 últimos que, se quiser mos transcrever

linear ment e, dize m o segui nt e: ‘ ‘Só o espant o sobre nós dois, o espant o sobre o home m e a

mul her me t ornou humano. Eu... sei... agora o que. .. nenhu m... anj o... sabe...’ ’.

Est e é o mo ment o de maior i nteração, co-ocorrênci a, junção mes mo, entre o poe ma

e o fil me: especifica mente a frase ‘ ‘Eu... sei... agora o que... nenhu m... anj o... sabe...’ ’ só te m

reticênci as porque elas mar ca m o te mpo da escrita: o poe ma está acontecendo no exat o

instant e e m que a ação do fil me é a redação dest e mes mo poe ma. A pal avra ‘ ‘agora’ ’ col oca

tempo do narrar e tempo narrado e m si ncroni a. Cl aro que sabe mos que esta é uma obra

reprodutí vel e que se trata de uma cópi a de um negati vo que se vê na sal a do ci ne ma e,

portant o, se quiser mos ser radi cais, o te mpo narrado se mpre está distanciado, já que a obra

não é uma obra aberta, e si m está ter mi nada e passí vel de consumo por nós, espect adores /

leit ores. Entretant o, o cineast a parece querer provocar a il usão de que, após cont ar sua

hi st ória pessoal, Da mi el está concl ui ndo ‘ ‘agora’ ’ que a hist ória da transfor mação acabou,

nest e exat o mo ment o do ‘ ‘agora’ ’.

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III. O CÉU DE BERLI M E AS ASAS DO DESEJ O

Al gumas consi derações acerca de fil mes de Wi m Wenders

Por que ent ão escrever

Sobre o que est á mais que visto?

Mas o que t alvez ai nda ni ngué m sai ba

sej a o que eu própri o ai nda ignoro.

Será que vou conseguir

descobrir al guma coisa, escrevendo?

A mi nha profissão não é ‘ ‘expri mir- me por

[pal avras’ ’.

Não sou filósof o, ne m soci ólogo,

ne m psicól ogo, e por cert o não sou j ornalist a.

A mi nha profissão é ver e mostrar uma coisa

[vist a,

que t ambé m se pode t ornar narrativa ou escrit a,

mas em i magens, no ci ne ma.

Wi m Wenders -- Emoti on Pictures (p. 169)

Ne m médi co, ne m fil ósofo, ne m pi nt or, mas si m u m home m de ci ne ma. Após tent ar

três facul dades entre Al emanha e França, Wi m Wenders volta ao seu país nat al para est udar

Ci ne ma, e m Muni que.

Al é m dest as paragens, na Europa, o ale mão de Düssel dorf foi trabal har nos Est ados

Uni dos, depois volt ou nova ment e para a Al e manha, países entre os quais transita até hoje.

Anal oga ment e ao que havi a si do explicado na introdução sobre a literat ura de

Handke, no Capít ul o II, aci ma, també m aqui não se pret ende absol ut ament e traçar um

paral el o entre vi da e obra, ne m t a mpouco apresent ar uma bi ografia resu mi da. Trata-se,

ant es, de mer os coment ários, ai nda que sirva m para ent ender um pouco que o ci neast a e m

quest ão te m um gost o pel a estrada, pel a mudança, pel o novo, por descobertas. Est e gost o

está e m seus road movi es, mas ta mbé m (e mbora de um modo diferente) em nosso Hi mmel

über Berli n.

Segundo Francis Vanoye e Anne Goli ot- Lét é, analisar um fil me é ta mbé m sit uá-l o

nu m cont ext o, numa história. O obj eti vo dest e trabal ho, entretant o, é de nat ureza mai s

prática, conquant o pret ende mais analisar recortes do fil me -- por razões de concisão -- do

que analisá-l o por i nteiro. Mes mo assi m, se há um coment ári o relevant e acerca dest a

cont ext ualização, especifica ment e a respeit o de Wenders, ei-l o:

Assi m como nos romances, as obras pict óricas ou musi cais, os fil mes

inscreve m-se e m corrent es, em tendênci as e até e m ‘ ‘escol as’ ’ estéticas, ou

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nel as se i nspira m a posteriori. O ci ne ma da modernidade europei a, de

Jean- Luc Godard a Wi m Wenders e a Léos Carax, é um ci ne ma de

ci néfil os, que i ntegra m em suas obras pai néis i nteiros da hist ória do

ci ne ma através da prática da citação, do pastiche ou da paródi a. ( VANOYE;

GOLI OT- LÉTÉ 1994: 23).

É i mport ante, pois, manter em ment e, que o ci ne ma de Wenders, como afir ma m

Vanoye e Goli ot- Lét é, é condensado e cont é m i nú meras ‘ ‘infor mações’ ’ e ‘ ‘referênci as’ ’. No

caso específico do Asas do Desej o, va mos desde o existenci alis mo (com personagens que

pergunt a m: ‘ ‘Por que eu sou eu e não sou você?’ ’), até a questão da Segunda Grande Guerra

(com um ‘ ‘fil me dentro do fil me’ ’, em que Pet er Fal k, um ‘ ‘ex-anj o’ ’, agora at or, di ga-se de

passage m, represent ando a si mes mo, está participando das fil magens de u m docu ment ári o

e m Berli m, sobre a guerra, a certa alt ura do Asas do Desej o); passa mos da busca pel a

identi dade (personagens Mari on e Da mi el e m busca de seu ‘ ‘eu’ ’) à discussão entre pal avra

e i mage m (discussão do poe ma, de inúmeras cenas, e també m dos monól ogos da

personage m Ho mer, na Bi bli oteca Naci onal de Berli m ou numa praça destruí da); pode mos

analisar a quest ão do ‘ ‘fazer ci ne mat ográfico’ ’ (o fat o de o fil me ser e m pret o e branco, e

depois ficar col ori do, ou mes mo os coment ári os durant e a fil mage m do document ári o sobre

a guerra etc.) até a di visão da Al e manha e m duas (a apresent ação das i magens do Mur o de

Berli m di versas vezes, a passage m do anj o do lado orient al para o lado ocident al, quando se

torna humano etc.). Assi m, para evitar a profusão de possi bili dades de análise, darei

enfoque ao que mais nos i mporta aqui, particul ar ment e.

A literat ura e, pri nci palment e a literat ura e m sua for ma escrita visualizada, est á

present e e m muit os outros trabal hos de Wenders, de maneira que não apenas cha ma a

at enção como ta mbé m suscita a suspeita de que a pal avra, o λόγος seja muit o caro a est e

ci neasta, tant o quant o o εικών que, claro, é i ndispensável na feit ura dos fil mes.

Exe mpl os i mport antes nesse senti do são Paris, Texas, de 1984; O est ado das coisas

de 1982; Identi dade de nós mes mos, document ário de 1989; e pri nci palment e O céu de

Li sboa de 1994.

No pri meiro dest es exempl os, Paris, Texas, Wenders mostra a hist ória de Travis,

u m ho me m estaduni dense que abandonou a fa mília e passou a vi ver vagando pel o desert o

de seu país. No i ní ci o do fil me, esta personagem chega a um post o de gasoli na e l oj a de

conveni ênci a no desert o, onde entra e m busca de água e des mai a. Na cena que ant ecede o

des mai o, aparece pendurada numa col una uma l ousa onde está escrit o:

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‘ ‘The dust has come t o stay.

You can go,

or stay

or what ever’ ’.

Est e di zer é o progra ma do fil me, e est á escrit o, não por acaso, de maneira poética,

pri meira ment e por causa de sua for ma, e m versos, mas ta mbé m por causa de sua li nguage m

denot ati va. O pó, no poema, não si gnifica necessaria ment e o pó, senão o estado de coisas,

o mecanis mo pel o qual a vi da acont ece. Pode també m met aforizar a suj eira, o i ndesej ado.

De qual quer maneira, trat a-se de um sí mbol o, mai s do que um si gno. Seu uso poético

di stanci a seu si gnificado de seu si gnificant e, e passa a re met er a outras coisas,

polisse mi ca ment e.

Em O est ado das coisas, o ci neast a cont a met alinguistica ment e a hist ória de um

diret or de ci ne ma al e mão que está e m Port ugal com a sua equi pe (at ores, ci negrafistas,

diret or de fot ografia, rot eirista e outros) tentando fi nalizar um fil me de nome The

survi vors6 2

, poré m se m sucesso. O produt or deste fil me dentro do fil me é estaduni dense e

ni ngué m t e m notícias de seu paradeiro. El e não responde aos telefone mas do diret or que

deci de ir aos Est ados Unidos procurar por ele. No ínteri m, esse diret or e mprest a a uma das

atrizes um li vro intit ulado The Searchers, de Al ain Le may, que fora ent ão ‘ ‘adaptado’ ’ para

fil me de ci ne ma por John For d, com o mes mo títul o (e m port uguês, o filme foi traduzi do

para ‘ ‘Rastros de ódi o’ ’).

Nesse fil me, as pági nas do li vro são focalizadas pel a câ mera e m di versas

sequênci as. O som que acompanha tais i magens é a voz ora do diret or do fil me (dentro do

fil me) ora de uma das atrizes, com que m o li vro fica e mprest ado.

Os trechos li dos são os segui nt es:

Aos 16' 25'' de fil me, uma das atrizes do fil me dentro do fil me lê o títul o e a pri meira

pági na:

‘ ‘The Searchers’ ’ by Al ai n Le may

Thi s peopl e had a ki nd of courage t hat may be t he finest gift of man: t he

courage of those who si mpl y keep on, and on, doi ng t he next thi ng, for

6 2

Os sobrevi vent es, cont ando, por sua vez, a hist ória de ficção científica de seres humanos que estão num

pretenso fut uro l ongí nquo, onde não há mai s água e a terra est á desol ada, e está muit o difícil sobrevi ver. Est e

fil me dentro do fil me ( met adi egese) le mbra-nos ta mbé m um recurso literári o, usado por exe mpl o por

Cer vant es e m Don Qui xot e.

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beyond all reasonabl e endurance, sel dom t hi nki ng of the msel ves as

mart yred, and never t hi nki ng of the msel ves as brave. 6 3

Aos 19' 30'', mais um parágrafo:

The eveni ng li ght was unco mmonl y clear, better to see by t han t he full

gl are of the sun. He di dn’t see anyt hi ng t hat meant much. Not for a l ong

ti me. 6 4

E aos 32' 20'', o diret or do fil me dentro do fil me escreve, desolado, numa fol ha de

papel (a câ mera focaliza enquant o ele está escrevendo, tal qual acontece e m Asas do

Desej o), em for ma de poe ma, o segui nt e:

St ories

onl y exist

in st ories

( whereas life goes by

wi t hout the need

to t urn i nt o st ories).6 5

Fi nal ment e, aos 46' 05'' de fil me, o diret or do fil me dentro do fil me lê:

The t wisted re mai ns of the j uni per, blackened and sand-scoured, had

vaguel y t he shape of a man, or the wit hered corpse of a man. One ar m

see med upraised i n a writi ng gest ure of agony or perhaps of warni ng. But

not hi ng about it expl ai ned the awf ul si nki ng of the heart , the terri bl e

sense of i nevitabl e doo m that overpowered hi m each of t he ti mes he

encount ered t his shape. And Mart hi mself more ore less believed t hat t he

thi ng was some ki nd of si gn. An evil prophecy is al ways fulfilled.6 6

Ve mos que nest e fil me, o text o literári o ret orna repeti das vezes, quase co mo um

Leit motiv, mas tal vez mais recorrente e mais si gnificativo do que um Leit moti v, mai s como

o ei xo central do fil me, uma met áfora para o que assisti mos, pois o fil me segue cont ando a

6 3

‘ ‘Esse povo tinha uma espécie de corage m que talvez fosse o mel hor dom do homem. Era a corage m

daquel es que si mpl es ment e segue m e m frent e dão o próxi mo passo al é m de t oda resistência razoável

rara ment e consi derando a si mes mos como mártires e ja mais vendo a si mes mos como coraj osos.’ ’ (tradução

mi nha) 6 4

‘ ‘A luz do ent ardecer estava estranha ment e clara, e dei xava tudo mais nítido do que com o brilho do sol. Ele

não vi u nada que fosse muit o si gnificati vo. Não por muit o te mpo.’ ’ (tradução mi nha) 6 5

‘ ‘As hist órias / só existe m / nel as mes mas / (enquant o a vi da transcorre / se m a necessi dade / de virar

hist órias)’ ’ (tradução mi nha) 6 6

‘ ‘Os rest os ret orci dos do j uní pero, apret ejados e erodi dos pela areia, tinha m a vaga for ma de um home m, ou

do cadáver murcho de um home m. Um braço parecia erguido, num gest o desesperado de agoni a ou tal vez de

aviso. Mas nada explicava o peso terrí vel do coração, a terrível i mpressão de condenação i nevitável que se

apoderava dele cada vez que ele se deparava com a tal for ma. E o própri o Mart mais ou menos acreditava que

aquel e obj et o era uma espéci e de si nal. Uma profecia mal dita se mpre se cumpre.’ ’

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hi st ória dest e diret or que, ao vi ajar para os Est ados Uni dos, pri meira ment e não consegue

encontrar o produt or do seu fil me e, quando quase no fi m do fil me, encontra-o, i ni ci a com

el e uma conversa que o faz ent ender que o fil me que está tent ando diri gir, um ‘ ‘fil me de

arte’ ’, não gerará bil het eria, ne m l ucros, ne m propaganda, o que i mpediu o produt or não

apenas de mandar mais verbas para a fi nalização do mes mo, como ta mbém o dei xou co m

várias dí vi das, sendo procurado pel os credores gângst eres que o quere m assassi nar por sua

inadi mpl ência. Trata-se de um fil me a respeit o de u m fil me que, por sua vez, é a respeit o de

fazer ci ne ma. Curi osa ment e, quando o diret or está procurando pel o produt or e m Los

Angel es, passa pel a frente de um ci ne ma onde estão sendo afi xadas as letras que mostra m o

pr óxi mo fil me que entrará e m cartaz: The searchers. Met áfora não apenas de que aquel e

fil me The survi vors não poderia ser jamais fi nalizado, como ta mbé m met áfora do paradoxo

que existe entre a obra literária (ti da como obra de arte) e sua ‘ ‘adapt ação’ ’ fíl mi ca que não

pode, por vezes, dependendo da quest ão do mercado, ser feita de maneira muit o poética,

muit o artística, resultando num ‘ ‘fil me de arte’ ’, para o qual pel o menos segundo est e fil me

de Wenders, não há mercado. Tudo isso não é só mostrado, mas ta mbé m é escrit o.

O segundo exe mpl o é o docu ment ári o Identi dade de nós mes mos cuj o título ori gi nal

não pret ende tant a filosofia ( A not ebook on cl ot hes and cities, de 1989). Est e fil me trat a da

moda tant o como fenômeno mercantil (produto) quant o artístico (criação do estilista,

especifica ment e nesse caso, Yohji Ya ma mot o), e começa com uma reflexão do diret or,

reflexão esta que aparece nova ment e não apenas escrita na tela, como t a mbé m e m for ma de

poe ma, e m versos, reproduzi do e traduzi do no Apêndi ce 4 desta dissertação.

Pode mos di vi dir este ‘ ‘poe ma’ ’ ou esta ‘ ‘reflexão’ ’ de Wenders e m três grandes

bl ocos de discussão.

O pri meiro vai do que pode mos cha mar de verso 1 até o 39 trata de ser mos aquil o

que parece mos, ist o é, a quest ão fil osófica Sein x Schei n, ser x parecer, e o paradoxo

inerente a esta quest ão, já que a aparência e o nosso ent orno é t otalment e mut ável e

efê mer o.

Exe mpl os disso são os ter mos ‘ ‘Identity’ ’, ‘ ‘Bel ong’ ’, ‘ ‘Self’ ’ e ‘ ‘Recognize’ ’ e

pergunt as tais como ‘ ‘Is that what we call identity? The accord bet ween t he i mage weh ave

creat ed of oursel ves and. .. oursel ves? Just who is that, oursel ves?’ ’

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O segundo bl oco te mático vai do verso 40 até o 66 e trata exat a ment e do mes mo

assunt o tratado por Benja mi n e m seu text o ‘ ‘A obra de arte na era de sua reproduti bili dade

técni ca’ ’ (1994). Wenders, nesse bl oco, não exa mi na a questão tão a fundo quant o

Benj a mi n, mas ‘ ‘estica’ ’ a probl e mática até os di as mais at uais, entrando ( mes mo que

superficial ment e) na passage m da reprodução el etrôni ca para a reprodução di gital das

i magens: ‘ ‘I mages above all, change f aster and f aster’ ’; ‘ ‘Everyt hi ng is copy’ ’.

O t erceiro e últi mo bl oco de assunt o fala do papel da moda na constitui ção da

identi dade pessoal e col etiva, e compara este papel ao do ci ne ma, sob o mes mo enfoque.

Não me det erei à análise exausti va dest e poe ma-reflexão e ne m ao exa me de cada

u ma de suas partes pois, assi m como outros assuntos no present e trabal ho, est e é apenas um

exe mpl o da utilização da escrita poética por Wenders e m seus fil mes, e não um novo obj et o

de est udo a ser dissecado em t odas as suas possi bilidades.

O últi mo dos exe mpl os escol hi dos para de monstrar esta i dei a da escrita no ci ne ma

de Wenders é també m o mai s si gnificati vo. Trat a-se do fil me O céu de Lisboa, de 1994.

El e é mais si gnificati vo por dois moti vos: primei ra ment e porque estamos aqui

falando de poesi a propriament e dita, já que o que aparece na tela do ci ne ma não são

reflexões do própri o ci neast a e ne m literat ura em pr osa, mas si m poemas de Fernando

Pessoa, com sua escrita visualizada; e e m segundo l ugar, mas não menos i mport ante,

por que o títul o ori gi nal do fil me é Lisbon St ory ( Hist ória de Lisboa), mas e m países de

língua port uguesa o título ficou O céu de Lisboa.

Est e últi mo aspect o é comparável ao títul o do objet o de pesquisa deste trabal ho: Der

Hi mmel über Berli n -- o céu sobre Berli m. Est e títul o ficou Asas do desej o e m t odas as

outras línguas e m que foi ‘ ‘adapt ado’ ’ (Les ailes du désir; The wings of desire)

pr ovavel ment e porque o céu que paira sobre a cidade de Berli m ou a ci dade propri a ment e

dita não são o pri meiro foco dado ao fil me por que m assiste a ele e m outro país, onde a

percepção dos espect adores provavel ment e se voltaria mais para a questão da ‘ ‘hist óri a de

a mor’ ’ entre Da mi el e Mari on (do que para a hi st ória de Berli m, a separação pel o mur o

et c.). Assi m, o ter mo ‘ ‘asas’ ’ met oni mi ca ment e seria o própri o anj o, enquant o que o ter mo

‘ ‘desej o’ ’ conot aria o própri o desej o dest e anj o pela fi gura de Mari on, e o pr ópri o desej o de

tornar-se humano.

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Igual ment e, para um ‘ ‘não- port uguês’ ’, o fil me O céu de Lisboa pode ter mai s apel o

no que di z respeit o a uma hist ória qual quer que acont eceu naquel a ci dade, assi m co mo

poderia ter acont eci do em qual quer outra ci dade. Para um port uguês, entretant o, tratar do

céu e da at mosfera que cerca a ci dade de Lisboa, a relação com o ri o Tej o, figura recorrent e

na narração, entre outras coisas, são muit o mais import antes.

Assi m, para Port ugal, onde foi feit o o fil me, ele se cha ma O céu de Lisboa. Para a

Al e manha onde foi feit o o outro fil me, este se chama O céu de Berli m.

E e m a mbos, a poesia está present e como nunca. Vej a mos os trechos em que

Fer nando Pessoa ‘ ‘colabora’ ’ com Wenders na criação de si gnificados:

Aos 13' de fil me, o protagonista do fil me vê a segui nt e frase de Pessoa escrita e m

letras enor mes na parede do quart o:

‘ ‘Ah não | ser

eu t oda a | gent e

e t oda a | parte’ ’

Est e dizer se confunde com a sit uação do protagonista, por ser uma pessoa do

mundo e pel o fat o de a Eur opa ter se t ornado uma comuni dade, esta frase re met e a uma

outra, menci onada pel o prot agonista que estava, no i níci o do fil me, indo de carro da

Al e manha para Port ugal, passando pel os países front eiriços: ‘ ‘Europa ohne Grenzen’ ’

( Eur opa se m front eiras).

Aos 37' de fil me, o protagonista pega um li vro nas mãos e o abre numa pági na

qual quer. A câ mera focaliza esta pági na, onde temos o poe ma e m i ngl ês de um l ado e sua

tradução e m al e mão do outro:

Em al e mão, na pági na di reita do li vro

bilí ngue

Em i ngl ês (ori gi nal), do l ado esquerdo do

livro bilí ngue

XXI

Das bli ndgeborene Denken wei ß vom Sehen.

Sorgsam ert astet’s aus Konturen For men,

Läßt For m versteh’n als etwas, dessen Wesen

in irrige Dunkel heit der Tastsi nn klei det.

Doch woher, wenn vom Seh’n nicht, wei ß der

Tastsi nn,

dass Tast en ei n verschl oss’ner, leerer Si nn?

XXI

Thought was born bli nd, but Thought knows

what is seei ng.

Its caref ul touch whisperi ng f or ms from shapes,

Still suggests f or m as aught whose proper bei ng

Mere fi ndi ng t ouch wit h erring darkness drapes.

Yet whence, except from guessed si ght, does

touch teach

That touch is but a cl ose and empt y sense?

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

- 92 -

Mai s adi ante, aos 45' de fil me, nova ment e a cena da focalização das pági nas do

livro para que nós, espect adores, leia mos ao mes mo te mpo e m que ouvi mos a voz da

personage m e m sua leit ura:

In broad daylight even sounds shi ne,

on t he repose of the wi de fiel d t hey linger.

It rustles, the breeze silent.

I have want ed, like sounds, to live by t hi ngs

And not be t heirs, a wi nged consequence

Carryi ng t he real far.

Vi rando a pagi na, ele lê:

I listen wit hout looki ng and so see

Through t he grove ny mphs and f auns steppi ng a

maze

Bet ween trees t hat cast shade or dread, beneat h

Branches whi ch whisper as they feel my gaze.

But who was it, di d pass? No-one knows t hat.

I rouse up and hear t he heart beat --

That heart whi ch has i n it no room f or what

Is left after illusi on has leaked out.

Who am I, I who am not my own heart ?

Por fi m, aos 61' de fil me, ve mos o prot agonista ler em al e mão uma versão poéti ca

do segui nt e poe ma do heterôni mo Ál varo de Ca mpos:

Ali não havi a eletrici dade.

Por isso foi à l uz de uma vela mortiça

Que li, insert o na ca ma,

O que estava à mão para ler -

A Bí blia, em port uguês (coisa curi osa), feita para prot estant es.

E reli a "Pri meira Epíst ola aos Corí nti os".

Em t orno de mi m o sossego excessi vo de noite de provínci a

Fazi a um grande barul ho ao contrári o,

Dava- me uma tendênci a do choro para a desol ação.

A "Pri meira Epíst ola aos Corí nti os" ...

Relia-a à l uz de uma vel a subita ment e anti quíssi ma,

Wi e soll der Tastsi nn, sel ber unbefriedi gt,

wahrere Si nne ganz verstehen können?

Ei n Di ng, berührt, blei bt, hört Berührung auf,

bekannt und äußerlich i n der Eri nn’rung.

Ho w does mere t ouch, self-uncont ent ed, reach

For some truer sense’s whole intelligent ?

The t hi ng once t ouched, if touch be now

omitted,

St ands yet in me mory real and onward known,

So t he unt ouchi ng me mory of you.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

- 93 -

E um grande mar de e moção ouvi a-se dentro de mi m...

Sou nada...

Sou uma ficção...

Que ando eu a querer de mi m ou de t udo neste mundo?

"Se eu não ti vesse a cari dade. "

E a soberana l uz manda, e do alt o dos sécul os,

A grande mensage m com que a al ma é livre...

"Se eu não ti vesse a cari dade..."

Me u Deus, e eu que não tenho a cari dade! ...

Assi m como é difícil para o diret or de The survi vors, fil me dentro do fil me O est ado

das coisas, que se m o seu produt or e se m di nheiro tent a fi nalizar o filme e m Port ugal,

també m aqui, em O céu de Lisboa, o prot agonista se encontra e m dificul dades para aj udar a

ter mi nar o fil me. Pri meiro porque ele é o engenheiro de som que fora cha mado da

Al e manha por seu a mi go Friedrich, que por sua vez é o diret or, mas que está desapareci do.

Segundo porque mes mo quando Philli p (o protagonista, engenheiro de som) encontra

Fri edrich (o diret or), este di z não querer ter mi nar o fil me pois perdeu a crença no ‘ ‘fazer

ci ne mat ográfico’ ’ como ‘ ‘fazer artístico’ ’ e resol veu criar uma nova maneira de ‘ ‘capt urar as

i magens’ ’: dei xando a câmer a pendurada e m suas costas enquant o pera mbul a pel a ci dade,

não sofrendo portant o a interferência da escol ha consci ente, do ol har, do querer capt urar

u ma det er mi nada i magem ao i nvés de outra, do querer capt urar uma det er mi nada i mage m

de det er mi nado pont o de vista e não de outro. Assi m, as i magens se dão conf or me el as são

mes mo (segundo esta nova maneira de ent ender o ci ne ma, explicada por esse diret or ao seu

a mi go engenheiro de som).

Philli p, nosso prot agonista, entretant o, faz Friedrich entender que é j usta ment e o

ol har do diret or, suas escol has consci entes que são a arte do fazer ci ne matográfico.

Podería mos analisar por menorizada ment e t odos os poe mas menci onados para

mostrar como el es não apenas converge m com esta dialética do entendi ment o sobre o

pr ópri o ci ne ma, como ta mbé m, na verdade, dão essa t ônica ao fil me, sendo port ant o

indispensáveis à sua feit ura.

Será necessári o ter e m ment e estas caract erísticas que se repet e m nesses filmes t ant o

quant o no Asas do desej o para as consi derações finais.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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a) Berli m, 1987

O enredo de Asas do Desej o6 7

é ambi entado na Berli m pós-guerra, contando a

hi st ória de anj os que observa m o di a-a-di a da popul ação da ci dade ale mã divi di da, tent ando

conf ortar a soli dão e a depressão destas pessoas. Um dest es anj os, Da mi el, desej a t ornar-se

hu mano.

A partici pação dos anj os na vi da das pessoas é pura ment e espirit ual, não tendo el es

a possi bili dade de sentir verdadeira ment e o que os humanos sente m, ver co mo os humanos

vee m. Da mi el está entedi ado com esta ‘ ‘existênci a espirit ual’ ’ (geistliche Existenz),

acompanhando os seres humanos e m metrôs, avi ões, nas ruas, nos aparta ment os, mas

apenas como ‘ ‘teste munha’ ’, confor me menci ona em um dos di ál ogos co m seu a mi go, o

anj o Cassiel (vere mos adi ante um trecho dest e diál ogo que, por sua vez, está reproduzi do

integral ment e no Apêndice 2). Durant e seus percursos pel a ci dade, vagando mais ou menos

se m rumo, de passage m por um circo, Da mi el depara-se com Mari on, uma trapezista, por

que m el e ve m a se apai xonar.

Desde 1987, quando foi lançado o fil me, o céu sobre Berli m pode ter continuado o

mes mo, mas a ci dade mudou bastante. Na época, a ci dade estava di vi di da. Uma Berli m

mar cada pel a disput a do poder mundi al, pal co da bat al ha ideol ógi ca da Guerra Fria, pel o

menos até a queda do Mur o de Berli m, e m 1989:

Em t er mos de hist ória política, o perí odo dos anos 1960 a 1990 coi nci de

quase que exat a ment e com o da existênci a do muro de Berli m (1961-

1989). O Mur o foi mais que uma mera front eira entre dois países, foi o

sí mbol o da era da Guerra Fria e a ar ma na l uta contra o capitalis mo co m a

qual o soci alis mo real acabou se aut o-ani quilando. Co m o Mur o,

aument ara m as di vergências já existent es entre os dois estados al e mães

desde sua fundação e m 1949: a República Federal Alemã e a Repúbli ca

De mocrática Al e mã cristalizara m-se e m siste mas político-econô mi co-

soci ais muit o diferent es ( BOLLE 1994: 315-316).

Ai nda enquant o coment ário, diria que, ao final do fil me, uma frase pode ser li da no

céu de Berli m: "Fortsetzung f ol gt" (‘ ‘Conti nua’ ’). E de fat o conti nuou: em 1993, após a

queda do mur o, Wenders fez outro fil me de anj os: Tão Longe, Tão Pert o (In weiter Ferne

so nah), em que o anj o Cassiel ( Ott o Sander), que era a mi go de Da mi el e m Asas do Desej o,

6 7

A ficha técni ca dest e, assi m co mo a de outros fil mes, está na bi bli ografia.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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també m transfor ma-se em ser humano para poder observar de pert o as pessoas nas ruas de

Berli m. El e procura o ex-anj o de Asas do Desej o, agora um ho me m com fa mília (a esposa

Mari on, trapezista do primei ro fil me, e uma fil ha).

Est e seria, em poucas pal avras, o enredo ou diegese do fil me, enquanto gêner o

narrati vo no ci ne ma. Entretant o, esta mos mais preocupados com o que está por trás dest a

‘ ‘estória’ ’, o que está sendo si gnificado através de t oda a construção fíl mica e literária por

detrás. Esta mos e m busca daquil o que a mont agem e a narrativa encerra m. Mort en Ki ndr up

( KI NDRUP 1999) está ali nhado com nosso esforço de i nvestigação, quando di z e m seu arti go

que:

Narratives may be construed as a sort of bri dge bet ween bei ng embedded

in ti me and regardi ng oneself bei ng embedded in ti me, bet ween subj ective

ti me and cos mi c ti me (...) because all constructi ons of fiction necessarily

est ablish an access road t o the worl d whi ch t hey unf old (a worl d whi ch is

fictional, and t hat also applies to so-called aut hentic stori es). A worl d has

to be seen from some where in order t o be perceived as a human worl d.

In Wi m Wenders’s Wi ngs of Desire (1987), the access to t he human worl d

( Berli n of that ti me) is effected t hrough charact ers who do not percei ve i n

an ordi nary, human way. These charact ers (...) are i nvisi ble t o all adults,

chil dren can see t he m. (...) The angels (...) possess the (...) ability t o

communi cat e directly wit h the i nternal worl ds of human bei ngs. They are

abl e t o hear what peopl e thi nk, whi ch is represent ed in t he movie by t he

voi ces of indi vi dual human bei ngs i n t his endl ess monol ogue, t his stream

of consci ousness worki ng in all of us all the ti me. (...).

The angels write down and mut ually i nterchange t he (parts of) indi vi dual

st ories t hey wit ness. The angels t hemsel ves, however, have no i ndi vi dual

hi st ory.

(...) We f oll ow t wo different angels, Dami el and Cassiel, on t heir way

through t he spaces of the city, experienci ng t he m experience ordi nary

human bei ngs from wit hin. Thus we experience our own way of

experi enci ng t he worl d, seen from t he outsi de. This positi on trul y knows

everyt hi ng, knows all events, all secrets, all fates; it notices j ust how every

human bei ng is a prisoner of his own st ory and unabl e to see anyt hi ng but

that. But on t he ot her hand, this position does not itself know what it is

like t o be a prisoner of ti me, space, and causality. 6 8

6 8

‘ ‘As narrati vas pode m ser construí das como um tipo de ponte entre o ser encravado no tempo e o referir-se a

si encravado no te mpo, entre o te mpo subj eti vo e o te mpo cós mi co (...) porque t odas as construções de ficção

necessaria ment e estabel ece m uma estrada de acesso ao mundo que el es desdobra m (um mundo que é

ficci onal, e que ta mbé m se aplica àquil o que cha ma mos de hist órias autênticas). Um mundo te m de ser vist o

de al gu m l ugar para que seja percebi do como um mundo hu mano. No fil me de Wi m Wenders, Asas do

Desej o̧ de 1987, o acesso ao mundo hu mano ( Berli m de ent ão) é realizado através de personagens que não

possue m percepção de uma maneira ordi nária, humana. Estas personagens (...) são i nvisí veis para todos os

adult os, crianças pode m vê-l as (...) Os anj os (...) possue m a (...) habilidade de se comuni car diret a ment e co m

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Est a experiênci a de ver co m um novo ol har, mesmo que seja um pri meiro ol har, é o

que perseguire mos nest e trabal ho, no que di z respeit o ao processo pel o qual passa o anj o

Da mi el, em sua transformação e m ser humano, ou sej a, em seu nasci ment o e consequent e

iníci o de percepções sensoriais do mundo ao seu redor.

Para isso, va mos usar tant o a análise fíl mi ca (naquil o que é própri o ao cine ma, e

naquil o e m que o ci ne ma difere da literat ura e de outros gêneros narrativos ou dra mático-

narrati vos) quant o da análise literária (do pont o de vista da análise da narrati va

pr opria ment e dita). Assim, a análise tant o da forma quant o do cont eúdo não é apenas uma

opção de trabal ho, mas muit o mais uma necessidade, tendo-se e m vista a força que uma

tem sobre a outra, e consi derando-se as explicações de Eisenst ei n (2002b) sobre como

muit as vezes a for ma no ci ne ma det er mi na o conteúdo, o si gnificado dra mático-narrati vo.

Ro man Jakobson, para o ent endi ment o da for ma enquant o constitui nt e do

si gnificado no ci ne ma, diz que

Pars pro t ot o é o mét odo funda ment al da conversão cine mat ográfica dos

obj et os e m si gnos. A ter minol ogi a da cenarização, co m os seus ‘pl anos

médi os’, ‘pri meiros planos’, ‘pri meiríssi mos pl anos’, é nesse senti do

bastant e i nstruti va. O ci nema trabal ha com fragmentos de te mas e com

fragment os de espaço e de tempo de diferent es grandezas, muda-l hes as

proporções e entrelaça-os segundo a conti gui dade ou segundo a

si milari dade e o contraste, ist o é: segue o ca mi nho da met oní mi a ou o da

met áf ora (os dois tipos funda ment ais da estrut ura cine mat ográfica).

(JAKOBSON 1970).

Ao fi m dest e item dedicado ao ci ne ma de Wenders, deve mos salient ar que est as

defi ni ções não são mera ret órica ne m mer os coment ári os met ali nguísticos sobre o que é ou

o que não é o ci ne ma ou a ‘ ‘feit ura de fil mes’ ’, mas está tratando da construção do

si gnificado no ci ne ma em geral, assi m como pret ende mos tratar da construção do

si gnificado no fil me aqui est udado e m particul ar.

os mundos i nt ernos dos seres hu manos. El es conseguem escut ar o que as pessoas pensa m, o que é

represent ado no fil me pelas vozes dos seres humanos i ndi viduais num monól ogo i nt er mi nável, este fluxo de

consciênci a funci onando e m todos nós se m parar. (...). Os anj os anot a m e troca m entre si as (partes de)

hist órias indi vi duais que el es teste munha m. Os anj os mesmos, entretant o, não tê m u ma hist ória indi vi dual.

(...) Aco mpanha mos dois anjos diferent es, Da mi el e Cassiel, em seus ca mi nhos pel os espaços da ci dade,

vendo-os experi ment are m como os seres humanos ordi nários a partir do i nt eri or dest es seres humanos. Assi m,

experi ment a mos nossa própria maneira de experi ment ar o mundo, vist o de fora. Est a posição real ment e

conhece t udo, sabe t odos os event os, t odos os segredos, t odos os desti nos; ela not a até como cada ser hu mano

é um prisi oneiro de sua própria hist ória e incapaz de ver qual quer coisa alé m del a. Mas, por outro lado, est a

posi ção mes ma não sabe como é ser um prisi oneiro do te mpo, espaço e causali dade.’ ’ (tradução mi nha).

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b) O ato de ol har e o ser-cri ança

A pri meira coisa que guardei na me móri a f oi um vaso de l ouça vi drada,

chei o de pit ombas, escondi do atrás de uma port a. Ignoro onde o vi,

quando o vi, e se uma parte do caso não desaguasse noutro posteri or,

jul gá-l o-i a sonho. Tal vez ne m me recorde be m do vaso: é possível que a

i mage m, bril hant e e esguia, per maneça por eu a ter comuni cado a

pessoas que a confir maram. Assi m, não conservo a lembrança de uma

alf ai a esquisit a, mas a reprodução del a, corroborada por i ndi ví duos que

lhe fixaram o conteúdo e a for ma. De qual quer modo a aparição deve ter

si do real.

Gr aciliano Ra mos -- Infância

Fi gura 2 -- 1ª cena de Asas do Desej o, no pri meiro

segundo do fil me

O fil me te m um t ot al de 2: 02: 18

(120' 18'' ), cont ando desde a apresent ação

com os crédit os i niciais, até o últi mo dos

crédit os fi nais.

Ant es mes mo dos créditos i nici ais

que cost uma m aparecer ant es da pri meira

i mage m ou cena, e m Asas do Desej o te mos

u ma sequênci a que podería mos cha mar de

pré-apresent ação. Trat a-se de um fragment o

do poe ma de Peter Handke, Li ed vom

Ki ndsei n ( Canção do Ser- Criança6 9

), sendo

e m parte decl a mado e e m parte cantado pel o

pr ot agonista Da mi el (papel do at or Br uno

Ganz).

Aco mpanha a decl a mação uma i mage m de uma fol ha de papel e m branco, onde o

anj o vai escrevendo o poe ma, enquant o o decl a ma/cant a.

Quant o a este poe ma, é i mportant e notar, em pri meiro l ugar, que a voz off da

personage m Da mi el não é si ncroni zada com o text o sendo escrit o na i mage m da cena: há

u m descompasso, aparentement e irrelevant e.

Em segundo l ugar, mas tão relevant e quant o, é o fat o de que há versos cantados (e m

itálico), com rit mo e musicali dade, ao i nvés de apenas decl a mados, dando- nos a níti da

i mpressão de que se trata de um fl uxo de consciênci a: a parte falada parece ser o anj o, de

consci ênci a dita adulta, descrevendo como é uma criança, quando ela é criança; ao passo

6 9

Opt ei por traduzir Lied vom Ki ndsei n ao pé da letra: Canção do Ser- Cri ança, ao invés de Canção da

Inf ânci a, porque esta escol ha te m consequênci as para a análise que segue.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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que os versos cantados parece m ser a criança que existe dentro do anj o, parece m não ser

u ma consci ênci a adulta refleti ndo sobre os gest os e atit udes típicos de uma criança, mas

si m a criança -- ela própria -- falando (cant ando) sobre seu di a-a-di a, sobre seu jeit o de ser,

não havendo reflexão a respeit o, não sendo esta ação mais do que si mpl es entret eni ment o

pueril e expressão de vont ades tal vez tolas (a criança queria que a poça d’água fosse um

mar, e queria que t udo fosse ani mado, e que t odos fosse m um só etc.), mas que, vere mos,

não são tão t olas assi m.

Há uma cl ara rupt ura quando se diz que a criança não fazi a pose para fotografias,

pois é um verso que começa cant ado (fluxo de consci ênci a da criança) e ter mi na

falado/ decl a mado pel a voz da própria personagem. É nessa rupt ura tão abrupt a que est a

pré-apresent ação dá passage m ao i níci o ‘ ‘clássico’ ’ do fil me, que são os crédit os i niciais.

Ouve-se ent ão, uma música relati va ment e fúnebre de vi oli no e vi ol oncel o, com

al guns sons espaçados de pi ano. À medi da que a músi ca avança, aparece m os crédit os.

Al guns poucos estão reproduzi dos abai xo:

Fi gura 3 -- Crédit os i ni ciais do

fil me Asas do desej o Fi gura 4 -- Crédit os i ni ciais do

fil me Asas do desej o (cont.)

Fi gura 5 -- Crédit os i ni ciais do

fil me Asas do desej o (cont.)

Not a-se que (i) há ausênci a de cor (já uma i ndicação que o fil me poderá ser e m

pret o-e-branco, o que de fat o é, quase que por inteiro) e que (ii) alé m dos nomes dos

responsáveis por música, edi ção etc., escrit os e m branco sobre o fundo pret o, há ta mbé m

pequenos riscos brancos que parece m al eat óri os (como rabiscos mes mo) e ao mes mo t e mpo

como se fosse m o rascunho das letras que estão nítidas, ou seja, parece m t ent ati vas de uma

escrita que acabou ficando como mer os rabiscos (convi vendo com a escrita propria ment e

dita).

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Est e quadro, com est e crédit o do

títul o do fil me, desaparece lent a ment e

dando l ugar ao céu mesmo da ci dade, num

jogo de mise-en-cadre, que faz pensar que

u m pl ano é a tradução do outro (pri meiro a

pal avra, depois a i mage m, a mbos

si gnificando a mesma coisa), mas

si multanea ment e nos dá a i dei a de um

pri meiro ca mpo para um j ogo que virá e m

segui da de ca mpo-contraca mpo: o nome

Céu sobre Berli m enquant o part e do fil me

que nos faz le mbrar que isso é um fil me e

que esta mos assi nando u m ‘ ‘contrat o’ ’ para

entrar mos mo ment anea ment e e m sua

‘ ‘realidade ficci onal’ ’, que ol ha para o céu,

que parece ser o objet o de visão de al gué m,

Fi gura 6 -- Crédit os i ni ciais do fil me (conti nuação)

Tít ul o do fil me e m ale mão: Der Hi mmel über Berli n

( O Céu sobre Berli m)

Fi gura 7 -- 1ª cena após os crédit os i ni ciais: nuvens

(ângul o de bai xo para ci ma)

e e m segui da ve mos um ol ho que poderia estar olhando para o céu do pl ano ant eri or, e e m

segui da ai nda aparece a i mage m da ci dade (vi são aérea, ol hando para bai xo), como

contraca mpo do ol ho (o ol ho estava ol hando para o céu, e e m segui da olhou para bai xo).

Se m medo de uma overint erpret ati on, pode mos ainda le mbrar que a Fi gura 5 até le mbra o

for mat o de um ol ho humano, pois o ter mo Der Himmel über seria a parte superi or e Berli n

seria a parte i nferi or deste ol ho.

Fi gura 8 -- 2ª cena após créditos i ni ciais

No pri meiro capít ul o de seu li vro A

I mage m, Jacques Au mont ( AUMONT 1993) nos

explica a i mport ânci a do ol ho enquant o órgão

sensorial e de percepção para o ser humano no

que di z respeit o à construção da reali dade

daquil o que está e m t orno de cada um.

A cena é um ol ho que mira o céu de Berli m. Nesta i mage m de Wenders, não te mos

apenas um exe mpl o de construção clássica de ci ne ma por ter mos ca mpo-contraca mpo com

a ci dade (o ol ho do anj o Da mi el é focalizado pela câ mera para que o público possa saber

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que m é o suj eito do ol har, numa tí pi ca subj etivação de câ mera, pois i medi atament e se passa

a uma cena de visão de ci ma para bai xo, focalizando as ruas de Berli m, si gnificando que

aquil o que esta mos vendo é o que a personage m está vendo).

Fi gura 9 -- To mada aérea de

Berli m, ângul o de ci ma para bai xo

Fi gura 10 -- To mada aérea de

Berli m, ângul o de ci ma para bai xo

Fi gura 11 -- To mada aérea de

Berli m, ângul o de ci ma para bai xo

A sequênci a (fi guras 8, 9 e 10) que mostra as ruas dá uma i dei a de labirint o, uma

noção de que a personage m está neste labiri nt o e que precisa encontrar uma saí da, uma

sol ução para um probl ema. É i mport ante not ar que confor me a sequênci a se move, não há

u ma saí da aparente. A câmer a se posi ci ona de uma maneira tal neste plano que o espect ador

sente-se como num l abirint o se m saí da de fat o.

Em segui da, uma pequena sequênci a e m que se mostra como as crianças enxer ga m

o anj o (diferent e ment e dos humanos) e como se dá esta i dentificação entre anj o e crianças.

Uma pequena garot a atravessando a rua ol ha para ci ma e, num j ogo de ca mpo-

contraca mpo, subj eti va-se a i mage m passando-se ao pl ano do anj o sobre a i greja (trat a-se

do ol har da garot a). Em segui da, um corte para a rua nova ment e, desta vez para um ôni bus

onde estão duas outras meni nas, uma di zendo para a outra ‘ ‘Guck mal!’ ’ (Ol he!), apont ando

para ci ma e, quando o ônibus começa a se mover, u ma vez mais te mos ca mpo-contraca mpo,

cortando para o plano em que o anj o está sobre a igreja. Dest a vez a câmer a se move da

esquerda para a direita, dando a nós, espect adores, a noção de que esta mos dentro do ôni bus

(e que adot a mos o ol har das meni nas), e que este está e m movi ment o. Corta-se para uma

asa e m movi ment o, como que atestando de que a fi gura que está lá no alt o de fat o é um

anj o. Há ai nda duas outras crianças: uma num ti po de macacão própri o para carregar bebês,

nas cost as de um pai; outra na garupa da bi cicleta de uma mãe. O anj o consegue ouvir ora o

pensa ment o do pai ora o da mãe, mas não se comuni ca com est es adult os. São as crianças

que consegue m ol há-l o, o que faze m fi xa ment e, co m as cabeças caí das para trás, mirando o

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alt o. Uma vez mais, com o ca mpo-contraca mpo, o ol har para o alt o fi xa-se num avi ão que

está passando e, numa ‘ ‘conti nui dade de cena’ ’ ( VANOYE; GOLI OT- LÉTÉ 1994: 25), cort a-se

para o i nteri or deste avião. A câ mera move-se no corredor focalizando passageiros, para

sobre uma pequena menina, que ol ha fixa ment e para ‘ ‘nós’ ’ (subjeti vação da i mage m): com

ca mpo-contraca mpo corta-se para o anj o Da mi el em pri meiro pl ano (alvo do ol har da

meni na). Ocorre aí de novo uma i dentificação entre anj o e criança.

A câ mera vai fechando no se mbl ant e da personage m do anj o e fazendo ca mpo-

contraca mpo com a meni na, aproxi mando-se cada vez mais num close-i n no anj o,

reiterando esta i dentificação.

Aos 8’35’ ’ de fil me, temos mai s uma parte do poema, nova ment e com versos apenas

decl a mados, e outros cantados. Trat a-se da segui nte sequênci a:

Fi gura 12 -- Mãe

aj uda sua fil ha

parapl égi ca a se

vestir

Fi gura 13 -- Em

contraca mpo, o

anj o Da mi el é vist o

pel a meni na

Fi gura 14 -- Novo

contraca mpo para

evi denci ar o

cont at o visual entre

criança e anj o

Fi gura 15 -- Câ mera

subj eti va (ol har de

Da mi el, vendo os

bri nquedos)

Fi gura 16 -- Câ mera

conti nua segui ndo

os bri nquedos t odos

enfileirados

Fi gura 17 -- Câ mera

conti nua segui ndo a

fileira de

bri nquedos,

expandi ndo

Fi gura 18 -- Câ mera

mostra onde a

fileira suposta ment e

ter mi na

Fi gura 19 -- Câ mera

conti nua a direção

apont ada pela

fileira de

bri nquedos: janela

Fi gura 20 -- Já e m

outra posição,

câ mera focaliza a

janela e o ext eri or

del a

Fi gura 21 -- Cort e

para t omada ext erna

aérea (sai ndo pel a

janela pel o ar li vre)

Aqui nós descobri mos, em pri meiro lugar, que existe uma certa consci ência do anj o

Da mi el que está fora del e, isto é, alé m de sua personage m.

Por um l ado, no i níci o do fil me, podí a mos consi derar que, na cena de sua mão

escrevendo o poe ma e sua voz decl a mando- o (ou cant ando-o) si multanea ment e, tratava-se

de sua voz off (já que ele estava e m cena, se m est ar presente na i mage m mostrada).

Por outro, ve mos agora que ele está e m cena e també m sua i mage m est á sendo

mostrada (uma vez que ele faz ca mpo-contraca mpo com a meni na que parece poder

enxergá-l o, assi m como as de mais crianças), e é nesse mo ment o mes mo que ouvi mos o

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poe ma voltar à t ona no fil me, se m que ele o esteja pronunci ando. Pode ser, port ant o, uma

voz i nteri or (o pensa ment o do anj o que estaria sendo ouvi do pel os espectadores), ou uma

voz over do própri o Dami el (ou de sua consci ênci a), mas não naquel e tempo ne m naquel e

espaço narrados, e si m nu m fut uro da narração, tal vez. Est a últi ma possi bili dade é mai s

re mot a, dado que o fil me não é um fl ashback e não caract eriza um personage m- narrador.

Fi que mos, portant o, com a voz i nteri or do prot agonista, a voz que faz reflexões.

Nest e mo ment o, temos nova ment e a duali dade entre a voz adulta reflexi va que

decl a ma al guns versos e m contraposi ção à voz apenas expressi va (e não reflexi va) da

criança que é o anj o mes mo, present e nos versos que são mais cantados e possue m mai s

rit mo (verificar estrofe 2 do poe ma Canção do Ser- Cri ança, confor me item II. c) dest a

di ssertação, aci ma).

Not a mos que na sequênci a e m que o poe ma está sendo decl a mado / cant ado (e m

itálico), existe uma i nt eração com a meni na que está sendo arrumada / vesti da por al gué m

(tal vez sua mãe).

Curi osa ment e, o ol har da meni na leva o ol har do anj o até um pl ano de pequenos

bri nquedos enfileirados, nu ma fila i ncl usi ve bastant e ext ensa, todos se enca mi nhando para

o mes mo desti no que vai sendo segui do pel a câ mera até chegar mos final ment e à janel a

entreaberta e, através dela, a câ mera vai buscar a i mage m do pl ano exterior, para onde

temos ent ão um corte. A met áfora aí parece ser a de que o cresci ment o, a aprendi zage m e a

tomada de consci ênci a vão do mundo i nteri or para o ext eri or, num processo que é l ongo por

nat ureza.

Aqui já é possí vel notar al guma construção de si gnificado, relaci onando est e

pr ogresso à pri meira parte do poe ma (que abre o fil me), na qual se enfatiza muit o a falta de

consci ênci a da criança e sua pronti dão di ante do mundo, para captá-l o, apreendê-l o como se

fosse pel a pri meira vez.

Agora, mes mo os versos cant ados são uma reflexão bastante mais requi nt ada do que

seria nor mal para uma criança, com quest ões existenci ais (como ‘ ‘que m sou eu, que m era eu

ant es de eu ser eu mes mo?’ ’), e quest ões de alteridade (como ‘ ‘por que eu sou eu e eu não

sou você?’ ’), para não fal ar das quest ões fil osóficas (como ‘ ‘quando começou o te mpo e

onde ter mi na o espaço?’ ’ ou ai nda ‘ ‘existe o mal ?’ ’ et c.).

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Est e últi mo trecho dei xa transparecer confor mi dade com uma certa tristeza na vi da

(‘ ‘Um l ugar ao Sol nessa vi da não é apenas um sonho?’ ’), o que vai convergir e

si multanea ment e vai entrar e m confront o com duas outras cenas.

Fi gura 22 -- Os anj os Da mi el (Br uno Ganz)

e Cassi el ( Ott o Sanders) conversa m no

interi or de um carro, numa l oja de veícul os

Nu ma del as, aos 11’54’ ’, Da mi el e Cassi el

estão conversando dentro de um carro, no i nt eri or de

u ma l oja de carros. Ambos saca m de suas pequenas

cadernet as onde faze m anot ações sobre a observação

da vi da de seres humanos. Ao passo que Cassi el

cont a coisas grandi osas tais como as Oli mpí adas de

15 anos ant es, ou a viage m nu m bal ão sobre a

ci dade, feita por um home m 200 anos ant es, Dami el

concentra-se no relat o de acont eci mentos

corri queiros, coti dianos. tais como uma mul her que,

repenti na ment e, resol ve fechar seu guarda-chuva no mei o de uma te mpestade, ficando t oda

ensopada.

Est e paradoxo entre o tipo de relat o de um e de outro mostra-nos o quant o o

pr ot agonista desta narração está i nteressado naqui lo que é mais humano e menos di vi no, o

quant o está ent ediado de sua existênci a que, embora eterna, li mita-o nas possi bili dades de

percepção da realidade.

Já na cena que te mos aos 18’38’ ’, na bi bli ot eca

onde os anj os cost uma m ouvir a leit ura dos humanos e

interagir de certa for ma com o i magi nári o criati vo e

intelect ual da humani dade, Da mi el mostra nova ment e

seu tédi o ao querer manusear a canet a que est á sendo

utilizada por uma moça que faz anot ações.

Ironi ca ment e, a fol ha que está sobre a mesa enquant o

Fi gura 23 -- Da mi el na Bi bli oteca

Naci onal de Berli m

el a faz anot ações traz o títul o Das Ende der Welt (O fi m do mundo), sendo aparent e ment e o

no me de uma músi ca, com partit uras e m segui da.

Dur ant e t oda esta parte do fil me, ou sej a, pouco mais do que os pri meiros 20' , te mos

o que pode mos chamar de cont ext ualização e j ustificação dos senti ment os de

descont enta ment o e de vazi o que t oma m nosso prot agonista.

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c) Da mi el e Mari on: sonho e reali dade

Apenas aos 23’40’ ’ temos a pri meira sequênci a-chave para nossa i nterpret ação,

quando Da mi el tem mais um mo ment o de i nteração com uma criança, mas mai s i mport ant e

que isso, leva seu ol har a um circo que está na ci dade. O ol har é construí do pri meiro através

de um j ogo de ca mpo-contraca mpo entre o anj o e a criança, e e m segui da através de uma

subj eti vação da i mage m quando te mos, por últi mo, o rost o do anj o, mirando fi xa ment e um

pont o. A i mage m se aproxi ma através de um zoom-i n e é como se atravessásse mos o túnel

junt o com Da mi el, chegando ao i nt eri or do circo, numa met áfora de cami nho, processo,

transfor mação.

Já no i nteri or do circo, te mos a i mage m da heroína: Mari on, a trapezista do circo,

u ma j ove m t ão entediada quant o Da mi el, mas por moti vo diferente, ele por falta de vi da, no

senti do de vi vaci dade, e ela por falta de um amor, mes mo sendo uma pessoa chei a de

vi vaci dade. Um possui o que o outro busca, e vice-versa. A vi vacidade do trapézi o

apai xona Da mi el, quase o enfeitiça i medi ata mente. É quando te mos a primei ra sequênci a

e m cores do fil me t odo.

Fi gura 24 -- Cort e para o i nt erior do

circo: personage m Mari on pendura-

se no trapézi o

Fi gura 25 -- Mari on fazendo

acrobaci as

Fi gura 26 -- Da mi el enxerga Mari on

e m cores

Fi gura 27 -- Da mi el enxerga Mari on

e m cores

Fi gura 28 -- Da mi el enxerga Mari on

e m cores

Fi gura 29 -- Contraca mpo para

Da mi el

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A se mel hança entre estas duas personagens se dá através de di versos recursos

utilizados por Wenders: a escol ha da profissão da heroí na na di egese (conf or me rot eiro de

Pet er Handke), por ser uma ati vi dade que a mantém posi ci onada no alto, assi m co mo os

anj os; há a escol ha de seu fi guri no como de um anj o, com asas postiças at é; há a l ona do

circo pi nt ada de cor azul por dentro, tal qual fosse o céu.

Te mos di ant e de nossos ol hos a construção ci nemat ográfica de um anj o através da

represent ação desta mulher. O si gnificado t odo se construi u através da percepção de

el e ment os si gnificativos.

É quase como se um anjo soment e pudesse se apai xonar por uma criat ura angelical.

Paradoxal ment e, o que mai s atrai o anj o naquela criat ura angelical é sua humani dade, não

sua ‘ ‘angelici dade’ ’.

Exi ste m t a mbé m várias outras caract erísticas e m torno da personage m de Mari on

que poderia m ser consi deradas como atraent es para Da mi el, tais como o fat o de que el a é

u ma artista e de que, por esse moti vo, está no centro das atenções dos outros, ou ai nda o

fat o de que uma artista circense tem um cert o aspect o de inati ngí vel, na di visão entre

apresent ador e plat eia, no esque ma do espet ácul o.

Aos 23’40’ ’ do fil me é o mo ment o e m que Da mi el visl umbra o circo. Dos 25’12’ ’

aos 25’22’ ’ se dá a parte col ori da, com Mari on no trapézi o. É a pri meira parte do fil me que

possui cor, a pri meira parte do fil me e m que Dami el está tendo de fat o alguma percepção

do mundo à sua volta, tal qual os humanos tê m.

Anal oga ment e, ocorre uma aproxi mação já dentro do trailer de Mari on, al guns

mi nut os mais tarde (ela ter mi na seu ensai o no trapézi o, dei xa a l ona do circo, diri ge-se ao

seu trailer, e é segui da pelo anj o se mpre a observá-la e m t odos os seus passos).

Aos 29’25’ ’ Mari on entra no trailer, começa a refletir sobre sua própria vi da, escol he

u m disco e, ai nda com pensa ment o reflexi vo, começa a despir-se, e aos 33’ 42’ ’, a i mage m

torna-se nova ment e col orida. Aos 34’22’ ’, Mari on distrai-se com as esferas de mal abares,

como que se confor mando com o estado de coisas que se apresent a. É o fi m da sequênci a

col ori da, com a fusão desta i mage m com a da próxi ma cena.

Há di versas outras passagens no fil me que podería mos decupar, mas assi m como foi

dit o no i níci o deste trabal ho, o i nt uit o é fazer a análise apenas de recortes mai s

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si gnificati vos que provavel ment e tenha m si do pensados para a construção do si gnificado

para o prot agonista.

Assi m, saltare mos agora para os 81’32’ ’ do filme, quando te mos uma cena de

Mari on dor mi ndo, e tendo um sonho.

Acont ece uma fusão entre a i mage m do rost o de Mari on e as asas de um anj o, com

u ma cena resultant e bastant e esfumaçada, até que se tem a visão mais clara do anj o Da mi el.

Cort e e m plano e contra-plano para Mari on, aos 81’ 46’ ’, desta vez, já de pé, ca mi nhando

dentro de seu própri o sonho. Embora se m cor, esta sequênci a é alta ment e si gnificati va,

por que Mari on dest a vez é que m est á decl a mando o poe ma. Não existe m versos cant ados

e m oposi ção aos decl a mados, o que denot a mais cl ara ment e que, diferente de Da mi el que

está passando pel o processo comu m às crianças, que é o processo do aprendi zado e das

pri meiras percepções do mundo ao seu redor, Mari on, ao contrári o, apenas reflete, já de

maneira adulta, não necessaria ment e aprendendo ou apreendendo al guma coisa.

Sartre, em seu O i magi nári o dedi ca um capít ul o inteiro às i magens hi pnagógi cas,

isto é, aquel as que estão no li mi ar entre sonho e reali dade. Co mo este não é um trabal ho de

interpretação psicanalítica e como o vi és que dou à interpret ação é muit o mai s a de que o

sonho é uma met áfora da i dentificação entre Dami el e Mari on, crei o que nos i mport a e m

pri meiro l ugar o que se pode depreender desta cena, lembrando Sartre, numa outra

passage m:

A cont e mpl ação estética é u m sonho provocado, e a passage m para o real

é um aut êntico despertar. Já se fal ou muit o na ‘ ‘decepção’ ’ que aco mpanha

o ret orno à reali dade. Mas isso não explicaria por que esse mal-est ar

persista, por exe mpl o, após a audi ção de uma peça realista e cruel; nesse

caso, a reali dade deveria ser apreendi da como tranquilizadora. Na

reali dade, esse mal-estar é i gual ao que a pessoa que dor me t e m ao

despertar: uma consci ênci a fasci nada, bl oqueada no imagi nári o, vê-se de

repent e libertada pela interrupção brusca da peça da sinfoni a e ret oma

subita ment e cont at o com a existênci a. Não é preciso mais nada para

provocar o fasti o nauseant e que caract eriza a consci ênci a realizant e.

(SARTRE 1996: 251).

Pode mos entender que a met áfora da identificação entre as duas personagens

també m re met a, met ali nguistica ment e, à sit uação dos espect adores que estão assisti ndo ao

fil me e, como se estivesse m sonhando, cont e mpl a m esta se mi -reali dade, ficção

intenci onada.

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Fi gura 30 -- Mari on dor mi ndo em

seu trailer

Fi gura 31 -- Mari on e m est ado pré-

hi pnagógi co

Fi gura 32 -- Sonho de Mari on: anj o

Fi gura 33 -- Contraca mpo: corte

para Mari on

Fi gura 34 -- Da mi el ador mece sobre

Mari on

Fi gura 35 -- Da mi el e Mari on se dão

as mãos

O que ouvi mos durant e esta sequênci a são os versos da estrofe 4 (verificar item III. c)

dest a dissertação). O própri o Da mi el já havi a decl a mado esses versos ant eri or ment e no

fil me (estrofe 2), poré m, parece que, quando Dami el diz ‘ ‘Quando a criança era criança’ ’,

el e está se referi ndo a si mes mo, tent ando ter consci ênci a dest e processo de percepção no

qual ele procura se i nserir, ao passo que, quando Mari on di z a mes ma frase, ela est á se

referi ndo ao processo, e não a si mes ma. Est a sequênci a ter mi na aos 82’10’ ’, com Da mi el e

Mari on dando-se as mãos, numa cena clara mente dial ogando com outra obra de arte: a

pi nt ura que represent a Deus e o home m fazendo cont at o, no int eri or da abóbada da Capel a

Si sti na, de Mi chelangel o.

d) Hu mani zação e cores

Chega mos assi m à sequênci a mais cont undent e e compr obat ória de que o anj o

Da mi el está no processo de criação de si gnificados, procurando apreender o mundo, tal

qual uma criança. Trata-se da sequênci a que te m iní ci o aos 87’26’ ’ do fil me, em que ele est á

conversando com seu ami go, o anj o Cassiel, fal ando das possi bili dades de se t ornar

hu mano, e Cassiel, quando tent a persuadi-l o do contrári o, ol ha para trás e vê que exist e m

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pegadas de apenas uma pessoa no ca mi nho que os dois percorrera m, ou seja, as pegadas de

Da mi el que já é naquel e instant e um ser humano, capaz de dei xar pegadas, numa met áfora

de que o home m não apenas consegue perceber o mundo pel os senti dos e criar si gnificados

conf or me ocorre esta recepção, mas ta mbé m pode fazer uma hist ória, deixar um l egado de

si gnificados, contri buir de al guma maneira, deixar uma marca, diferente dos anj os que

tent a m i nt eragir, mas que não pode m dei xar marca al guma de sua existênci a e m l ugar

al gum, e m pessoa al guma. No exat o i nstant e e m que Cassiel ent ende (gera ent endi ment o e

cria si gnificado) que Da mi el t ornou-se humano, este vai gradati vament e aparecendo

col ori do.

Co mo últi ma i nteração física entre os anj os, Cassiel t oma Da mi el ao col o e carrega-

o como que o sabendo um anj o caí do. Outras i nterações entre eles poderão acont ecer, mas

apenas, di ga mos, ‘ ‘espiritual ment e’ ’.

Conti nua mos na mesma sequênci a, se m Cassiel, e estando Dami el caí do

desacordado no chão, à beira do Mur o de Berlim, o qual está t odo pi ntado por grafites,

pi chações e desenhos alegres, dest oando met aforica ment e com o si gnificado pesado de

separação e conflit o que o mur o deveria ter.

Da mi el desperta com sua própria ar madura de anj o sendo derrubada sobre si. Ol ha

para ci ma, mas não te mos ca mpo-contraca mpo com o céu, subj eti vando o ol har do ex-anj o,

pois o céu já não é mais si gnificati vo. O ol har para ci ma é apenas um ol har para o passado

desi mport ant e.

Entret ant o, quando Da mi el ol ha para frent e, aí sim t e mos corte para o contraca mpo

onde estão crianças cochi chando a respeit o daquel e home m estranha ment e dor mi ndo no

chão de um l ugar tão frio e desol ado. Elas hi potetiza m que ele esteja bêbado, pois é a

criação de si gnificado possí vel para aquelas crianças, dado seu repert ório a respeit o de

exe mpl os como aquel e que estão vendo, vi venciando, percebendo. O ca mpo-contraca mpo

era m necessári os aí, pois as crianças são muit o represent ati vas para Da mi el, agora humano.

El as represent a m o fut uro, por sere m crianças; represent a m que ele se i dentifica mai s com

el as e menos com o céu, porque agora se t ornou humano (e as crianças ta mbé m são

hu manas); e, alé m disso tudo, a i dentificação ocorre assi m como no poe ma de Handke, e m

que o anj o se vê como criança no processo de percepção do mundo e criação dos

si gnificados.

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Fi gura 36 -- Mur o

de Berli m, lado

oci dent al.

Fi gura 37 -- Da mi el

acorda porque sua

ar madura de anj o

cai-l he sobre a

cabeça.

Fi gura 38 -- Da mi el

vê que está sendo

observado por

crianças.

Fi gura 39 --

Contraca mpo para

evi denci ar que as

crianças estão

vendo Da mi el caí do

no chão.

Fi gura 40 -- Da mi el

passa a mão na

cabeça, not a que a

mes ma sangra, e vê

o sangue e m sua

mão.

Fi gura 41 -- Da mi el

experi ment a o

sabor do sangue.

Fi gura 42 -- Da mi el

pergunt a os no mes

das cores a um

passant e.

Fi gura 43 -- Da mi el

experi ment a um

café, que compr ou

co m u m trocado

que ganhou do

passant e.

Fi gura 44 -- Da mi el

mostra-se feliz por

experi ment ar estas

sensações.

Fi gura 45 -- Da mi el

experi ment a um

ci garro.

As cenas i mport antes que se segue m são:

Da mi el ol hando para um lado da rua, esta aparent ement e se m fi m, e depois para o outro

lado, que ta mbé m parece não ter um pont o final, estando ele na met ade dest e ca mi nho

infi nito, como uma metáfora para di zer que, mes mo humano, a vi da não te m um

começo e ne m um fi m, é u m percurso na eterni dade.

Da mi el t ocando sua cabeça com a mão e dando-se cont a de que está sangrando, ol ha

verdadeira ment e espant ado seu própri o sangue na mão, experi ment a-o levando a mão à

língua, const ata que o sangue te m cor e gost o.

Da mi el encontra um passante, pergunt a sobre a cor do sangue, const atando que é

ver mel ho (o passant e até pergunt a se ele está ferido, mas ele não está se i mport ando

com isso e conti nua com outras quest ões), pergunta sobre a cor de várias personagens

curi osos pi nt ados no ent ão Mur o de Berli m, e vai aprendendo t odas aquel as cores.

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Ganha uma es mol a do passant e para um café, e degust a o café como uma experi ênci a

real ment e nova, surpreendent e e i ni gualável. Trata-se de uma cena muit o si gnificati va,

no entant o não há sequer uma pal avra dita nel a. A expressão do at or mostrando que

aquel a experiênci a para ele é uma realização, o sí mbol o de haver alcançado al go

dispensa falas, tal qual Pet er Handke fez e m sua peça para teatro ‘ ‘A hora em que não

sabía mos nada uns sobre os outros’ ’ ( Di e St unde, i n der wir nichts vonei nander

wusst en), uma peça se m fala al guma.

Quando se encontra pel a segunda vez com o at or Pet er Fal k (já havi a m se encontrado

u ma vez, quando Da mi el ai nda era anj o, cena na qual Pet er Fal k sente a presença de

Da mi el, conversa com el e, se m cont udo poder ouvir respost a ou obter qual quer

interação na época e m que o anj o ai nda não tinha como vi venci ar a mat éria), e

experi ment a um ci garro, recebe al gumas ‘ ‘dicas’ ’ sobre a vi da e aprende que Pet er Fal k

també m era um anj o caído. Dest as dicas, a mais vali osa aparent a ser a de que não

adi ant aria que ele, Pet er Fal k, ensi nasse ou cont asse t udo a Da mi el, pois o i mport ant e

na experiênci a vi vi da era exat a ment e vi vê-la por si mes mo, passar por t odas as coisas,

experi ment ar e vi venci ar tudo, aprender.

Depois disso, temos a sequênci a na qual Da mi el pr ocura por Mari on se m, no entant o, a

encontrar, o que vai acont ecer um pouco adiante, na apresent ação musi cal de uma banda

nu m bar. O encontro dá-se de uma maneira ao mesmo t e mpo surpreendent e e já esperada.

Da mi el já conhecia Marion por observá-la, e ela o conhecia de seu sonho. Assi m,

a mbos procurava m-se mas se m necessaria ment e ter uma certeza que iria m se encontrar

al gum di a, o que ocorre naquel e mo ment o. Mari on faz, nova ment e, uma reflexão fil osófica,

e fica m j unt os. Uma última sequênci a i mport ant e é a que está abai xo.

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Fi gura 46 -- I mage m da est át ua do

anj o.

Fi gura 47 -- Mari on fazendo

acrobaci as pendurada a uma corda.

Ao fundo, a asa do anj o através da

vi draça.

Fi gura 48 -- Mari on e m acrobaci as.

Ao fundo, o anj o Cassi el (e m

branco e pret o).

Fi gura 49 -- Da mi el balança a corda

à qual Mari on est á pendurada.

Fi gura 50 -- So mbra de Mari on

sobre a parede, projet ada j ust ament e

onde há uma pi nt ura de um casal.

Fi gura 51 -- Mão de Da mi el

escrevendo o poe ma, tal qual

acont ece no i ní ci o do fil me.

Focaliza-se a fa mosa estát ua de anj o para se i ntroduzir a cena e m que está Mari on

pendurada a uma corda, no alto, enquant o Da mi el está segurando e girando est a mes ma

corda. Ironi ca ment e o efeit o ci ne mat ográfico nos dei xa ver aí que Mari on virou o anj o de

Da mi el, pois ela está agora no alto, onde ele costumava ficar e observar a ci dade, de ci ma

de edifíci os ou estrut uras elevadas. El e, por outro lado, está no chão. A cena é col ori da.

Mas Cassiel aparece num dado mo ment o, soment e ele e m pret o e branco dentro da cena,

bast ant e pequeno e m comparação com o pl ano t odo.

Enquant o assisti mos a esta sequênci a, ouvi mos a voz de Da mi el decla mando a

estrofe 6 do poe ma.

Al gu mas vezes te mos a impr essão de que Da mi el está falando essas frases enquant o

gira a corda na qual Marion está pendurada. Entretant o, em outros mo ment os, a câ mera

focaliza-o enquant o ele está nessa tarefa com a corda, e pode mos então not ar que el e não

está falando. Ta mbé m não está pensando, pois sua expressão denot a que ele est á

concentrado e m Mari on.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

- 112 -

E é ent ão que te mos a cena do i ní ci o

do fil me: a mão (que agora sabe mos ser de

Da mi el) com uma caneta escrevendo a fal a

que esta mos a ouvir si multanea ment e. Isso

revel a, afi nal, que aquela cena i ntrodut óri a

ao fil me, com o poema, é ele própri o,

Da mi el, narrando sua experiênci a recé m-

vi vi da.

Não apenas ent ende mos aí que o

narrador é o prot agoni sta, como t a mbé m

que aquela voz over é sua própria voz.

Apr ende mos ai nda que a busca pel o

aprendi zado de Da mi el passava por vári as

fases, incl ui ndo a experiênci a do sexo com

Mari on (‘ ‘ estava dentro del a, e ela ao redor

de mi m’ ’), mas pri nci palment e a geração de

i magens através das quais ele vai

apreendendo senti dos de coisas.

Fi gura 52 -- Enquant o ouvi mos a voz de Da mi el,

pode mos ver sua mão escrevendo aquil o que el e está

di zendo

Fi gura 53 -- Já se m a mão sobre as palavras, pode mos

ler o fi m do poe ma, com u m significati vo pont o fi nal.

Te mos nova ment e a i mportânci a do ol har que també m estava be m no iní ci o do

fil me, o ol ho de Da mi el observando as coisas, mas ai nda com suas li mit ações. A

i mportânci a do ol har como pri nci pal órgão de percepção dentre os senti dos hu manos é um

dos grandes ganhos de Da mi el ao se t ornar humano, afi nal.

El e nos explica, quase que di datica ment e, que as experiênci as precisa m ser vi vi das

para que o aprendi zado e a construção de sentido acont eça m. Nada progri de e não se

constroi conheci ment o através do i gual, mas si m através do diferent e, através do NOVO,

pois é o espant o, o surpreendent e, ‘ ‘das St aunen’ ’ que move a percepção. Mes mo que o

obj et o a ser aprendi do sej a al go já conheci do de al guma maneira, podemos ai nda assi m,

reaprendê-l o, seja uma coisa, uma pessoa, um conceit o, uma i dei a, sempr e te mos como

torná-l o novo se reconstruir mos seu si gnificado.

Al é m disso, temos a frase de Ho mer, o ex-anj o (vere mos mais det al hes adi ant e)

falando da necessi dade da narrativa no mundo moderno (‘ ‘ Mostre m- me os homens e

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mul heres e crianças, que me procurarão, a mi m, seu narrador, seu cant or e condut or, porque

el es precisa m de mi m, como nunca precisara m de nada no mundo’ ’), conf or me expli ca

Edgar Mori n, em seu li vro Cult ura de massas no sécul o XX: o espírit o do te mpo:

Assi m, feita de modo estético, a troca entre o real e o imagi nári o é, se be m

que degradada (ou ai nda que subli mada ou de masi ado sutil), a mes ma

troca que entre o home m e o alé m, o home m e os espírit os ou os deuses

que se fazia por i nter médi o do feiticeiro ou do cult o. A degradação -- ou o

supre mo requi nt e -- é precisa ment e essa passage m do mági co (ou do

reli gi oso) para a estética. No decorrer da evol ução, a poesia se afast ou da

magi a (encant a ment o e invocação), a literat ura se afast ou da mit ol ogi a:

desde al guns sécul os, a músi ca, a escult ura, a pi nt ura, se afastara m por

compl et o da reli gião; a finali dade cult ural ou rit ual das obras do passado

se atrofi ou ou desapareceu progressi va ment e para dei xar e mer gir uma

fi nali dade propria ment e estética; assi m nós re move mos estát uas e quadros

dos te mpl os para museus, re movendo de um só gol pe as si gnificações das

anunci ações e das crucificações. O mundo i magi nári o não é mais apenas

consumi do sob for ma de ritos, de cult os, de mit os reli gi osos, de festas

sagradas nas quais os espíritos se encarna m, mas també m sob for ma de

espet ácul os, de relações estéticas. Às vezes, até as si gnificações

i magi nárias desaparece m; assi m, as danças modernas ressuscita m as

danças arcaicas de possessão, mas os espíritos não estão nel as. Todo um

set or das trocas entre o real e o i magi nári o, nas soci edades modernas, se

efet ua no modo estético, através das artes, dos espet ácul os, dos romances,

das obras ditas de i magi nação. ( MORI N 1975: 66).

O fat o de que as danças pode m existir, mas os espírit os não estão mais lá, é o al erta

que Ho mer dá, isto é, We nders e Handke dão, a respeit o da produção ci ne mat ográfi ca e

literária de massas, se m a devi da preocupação com a mat éria de que são feitas a mbas as

artes.

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PARTE 3 -- POST SCRI PTUM

I V. PALAVRA E I MAGE M: CONSI DERAÇÕES FI NAI S

Erzähl e, Muse, vom Erzähl er, de m an den Weltrand

verschl agenen ki ndlichen

Ur alten und mache an i hn kenntlich den Jeder mann.

Mei ne Zuhörer si nd mit der Zeit zu Lesern geworden und sie sitzen nicht mehr i m Kreis, sondern f ür sich, und ei ner wei ß nichts vom anderen.

Ei n Greis bi n ich

mi t ei ner brüchi gen Sti mme aber di e Erzähl ung

hebt i mmer noch an aus der Tiefe

und der leicht geöff nete Mund

wi ederholt sie, so mächti g, wi e mühel os,

ei ne Lit urgi e,

bei der ni emand ei ngewei ht

zu sei n braucht,

wi e di e Wört er und Sätze ge mei nt si nd

7 0.

O poe ma aci ma é decl amado no fil me Asas do desej o, precisa ment e aos 20’, pel a

personage m Ho mer. O text o é clara ment e i nspirado na Odisséi a de Homer o, mas não

reproduz os versos ori gi nais gregos, os quais dizem, na verdade, o segui nt e:

O ho me m cant a- me, ó Musa, o multifacetado, que mui tos mal es padeceu,

depois de arrasar Trói a, ci dadel a sacra. Vi u ci dades e conheceu cost umes

de muit os mort ais. No mar, inúmeras dores ferira m-l he o coração,

e mpenhado e m sal var a vi da e garantir o regresso dos companheiros. Mas

não consegui u cont ê-l os, ainda que abnegado. Perecera, víti mas de suas

presunçosas l oucuras. Crianções! Forrara m a pança com a carne das vacas

de Héli o Hi péri on. Este os pri vou, por isso, do di a do regresso. Das muit as

façanhas, Deusa, filha de Zeus, cont a-nos al gumas a teu critéri o.

( HOMERO. Odisséi a: Tel emaqui a. v. 1. Tradução: Donal do Schül er. Port o

Al egre: L&P M, 2007.)

7 0

Narra, Musa, sobre o narrador, / aquel e que é à marge m do mundo / é lançado / aquele antiquíssi mo i nfantil

e faz nele / o conheci do de todo mundo. / Meus ouvi nt es, co m o te mpo, / transfor mara m-se e m l eit ores e não

se sent a m mai s e m círcul o, mas si m sozi nhos, um não sabe nada do outro. / Um anci ão eu sou, / com u ma voz

frágil, / mas a narração / ergue-se ai nda / da profundeza / e a boca leve ment e aberta / repete-a, tão

poderosa ment e, / quant o se m esforço, / uma lit urgia, / na qual ni ngué m precisa / ser i ni ciado, / tal como as

pal avras e frases / são i nt enci onadas. (tradução mi nha)

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- 115 -

O aut or grego pede i nspiração à musa para narrar a est ória de Odisseu, se m, no

ent ant o, lament ar-se pel a não existênci a de um público que l he dê atenção e que ouça seu

relat o. O pri nci pal foco é o narrado, ist o é , o relato.

Em Asas do desej o, por outro lado, a personagem e m quest ão la ment a o fi m das

narrati vas, sobret udo orais, mas mant é m a esperança de que elas continue m t endo sua

i mportânci a. O foco não é o obj et o narrado, mas si m o at o de narrar: co mo narrar, para

que m et c.

Ho mer é um ex-anj o7 1

que fica pera mbul ando pela Bi bli oteca Naci onal de Berli m e

outras partes da ci dade. Seus pensa ment os são ouvi dos, em deter mi nada alt ura do fil me,

pel os anj os (assi m como estes ouve m t a mbé m os pensa ment os de todas as personagens,

conf or me vist o ant eri orment e). O te mor e també m a frustração de Ho mer são pel a a

i mi nência do fi m da ficção.

Mas o movi ment o é di alético, afi nal, pri meiro havi a a cult ura do corpo (a

narrati vi dade se dava de for ma oral, se m registro escrit o, e os ouvi nt es reuni a m-se e m roda);

depois esta tradi ção ganhou uma for ma nova: a escrita (e com el a, a erudi ção da cl asse

bur guesa como di z Gi nzbur g (apud CO S T A 2002); e com o ci ne ma, volta mos a nos reunir

para ouvir uma hist ória ser cont ada. De uma maneira ou de outra, nós se mpre

(...) desenvol ve mos a ficção como for ma peculiar de experi ment ar a vi da,

a qual está present e já nas pri meiras manifestações expressi vas da criança

-- nos j ogos, nos cont os e nas i nvenções i nfantis. Um espaço de nosso

uni verso si mbólico que, embora mant enha relação muit o estreita com a

reali dade, a traduz sob forma de um distanci a ment o met afórico, poético,

intenci onal e i ntersubj eti vo. À medi da que ati ngi mos a i dade adulta,

adot a mos uma atit ude cada vez mais raci onal e l ógica como base de

nossas relações diant e da vi da e dos outros, relegando a experiênci a

ficci onal para espaços mais recôndit os ou para áreas consi deradas de

menor i mportânci a -- o lazer, o entreteni ment o e o espet ácul o. ( COSTA

2002: 29-30).

No caso de Hi mmel über Berli n, não apenas esta mos falando de um ret orno ao

mo ment o pri mevo de cont ação de hist órias, em que as pessoas se reuni am e m roda para

ouvir. Al é m de proporci onar esse ret orno às ori gens, porque é um fil me, uma peça

ci ne mat ográfica, também est a obra busca na poética tant o literária quant o i magéti ca, um

7 1

Sabe mos que m são os ex-anjos através de uma peculiaridade do enredo: tant o a personage m Ho mer (que

pera mbul a pela Bi bli ot eca Naci onal) quant o a personage m Pet er Fal k (que est á na Al e manha para at uar nu m

fil me sobre a Segunda Grande Guerra) são pessoas que pressent e m ou at é mes mo sent e m a presença das

personagens dos anj os Da mi el e Cassi el.

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ret orno ao poder da pal avra na narração, no sentido de a pal avra ser mais do que pal avra,

ser ta mbé m i mage m.

Est a parece ser a busca de Pet er Handke e m sua literat ura, tant o na obra est udada

especifica ment e nest a pesquisa, quant o as outras.

Anal oga ment e, e m Hi mmel über Berli n, assim co mo e m outros filmes seus,

We nders visi vel ment e expõe uma met odol ogi a de trabal ho que quer transfor mar as i magens

e m mais do que apenas ícones-i magens (conforme vi mos no Capít ul o I, ant eri or ment e),

mas si m ícones-di agra mas e ícones- met áforas.

Freud di zia que Art hur Schnitzler consegui a, num cont o, trazer à t ona t udo que sua

psi col ogi a tent ava explicar, tent ava explicitar. O poder das i magens na li nguage m poética,

ou seja, os si gnos ali transfor mados e m coisas outras al é m de elas mesmas, e mpossa m a

pal avra de um poder explicitador muitas vezes mais convi ncent e do que pági nas e pági nas

de discurso -- cha me mo-lo mais uma vez assi m -- denot ati vo.

‘ ‘Uma i mage m val e mais que mil pal avras’ ’ reza o ditado já popul arizado no mundo

todo, sobret udo no jargão j ornalístico que procura pel o furo de reportagem co m u ma fot o

bast ant e cha mati va e ‘ ‘represent ati va’ ’ da mat éria escrita. Hoj e e m di a, na vel oci dade da

Internet, os ví deos invade m t odas as pági nas de sites, bl ogs, portais e jor nais, porque se

val e m da crença de que serão mais compet ent es na trans mi ssão de mensagens do que o

text o escrit o.

O exe mpl o por excel ência deste ditado é uma foto -- bast ant e conheci da -- de um

garot o num estádi o, assisti ndo à derrot a da Seleção Brasileira num j ogo de fut ebol. O

garot o está chorando, e m cl ose-i n na fot o. De fat o, esta i mage m di z mais que mil pal avras

(denot ativas), porque ela não é apenas uma i mage m qual quer. Ela é uma met oní mi a que,

não apenas traz à t ona -- por conti gui dade -- o sofri ment o de pel o menos alguns mil hões de

compatri ot as, como ta mbé m carrega e m si um grande apel o de proj eção e identificação.

Tal vez não tenha mos um ditado i nversa ment e correspondent e -- ‘ ‘uma pal avra val e

mai s do que mil i magens’ ’ -- si mpl es mente pel o fat o de vi vermos nu ma era

hege moni ca ment e i nundada por i magens. Mas esse ditado faria t odo o senti do se

comparásse mos à fot o do garot o no parágrafo aci ma, por exe mpl o, uma pal avra como

‘ ‘marge m’ ’ no cont o ‘ ‘A terceira mar ge m do ri o’ ’, de Gui marães Rosa. É o mes mo que

acont ece com a pal avra ‘ ‘marge m’ ’ (‘ ‘Rand’ ’) em ‘ ‘ Der Rand der Wörter’ ’ de Handke,

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analisado nest a dissertação. E ta mbé m o que acont ece com as pal avras ‘ ‘criança’ ’ (‘ ‘Ki nd’ ’)

e ‘ ‘anj o’ ’ (‘ ‘Engel’ ’) no poe ma Li ed vom Ki ndsei n, do escrit or austríaco.

Tant o na literat ura, seja el a poesi a ou prosa poética, quant o no ci ne ma, ve mos que

as i magens são os alicerces que os t orna m obras de arte, porque os diferenci a m da

linguage m coti diana e eleva m os siste mas, subvertendo-os e ao mes mo te mpo confir mando-

os.

Subverte-os porque faz uma pal avra não ser ela mes ma e, ao mes mo te mpo, ser ela

mes ma; e porque, i gual ment e, torna uma i mage m al go mais do que ela mesma.

Confir ma- os porque usamos os própri os siste mas para ultrapassá-l os.

Os siste mas tê m val or de uso, confere m à lí ngua e às linguagens um carát er

utilitári o. É isso que quere mos ultrapassar. Mas, quando o faze mos, não esta mos fazendo

apenas a ultrapassage m do que já estava dado. Vej a mos: quando da mos a uma pal avra um

senti do outro que aquele de seu contrat o soci al, quando faze mos isso també m co m u ma

i mage m, t ornando-a o represent âmen de al go mai s do que aquil o que ela de fat o seria,

esta mos ao mes mo te mpo e mpregando-as e m seu senti do literal, denot ativo, que já est ava

ali, pront o para ser ‘ ‘usado’ ’ (no senti do utilitarista).

Cri ar uma met áfora, uma met oní mi a, tant o no campo do l ógos quant o no do ei kon,

não apenas transfor ma a i mage m ori gi nal e a pal avra ori gi nal e m coisas novas; a coisa que

a i mage m j á era e m si e a coisa que a pal avra já era e m si també m conti nua m ali. Est e é um

ní vel de evol ução da li nguage m a que se pode chegar quando se produz numa e noutra

linguage m de maneira artística, com uma i ntenci onali dade artística.

Handke e Wenders ‘ ‘usa m’ ’ a linguage m dentro da previsi bili dade do siste ma

herdado hist órica e cultural ment e, mas ta mbé m -- e pri nci pal ment e -- dão às pal avras e

i magens novos senti dos, através das met áforas e met oní mi as, através dos ícones e í ndi ces

que preenche m as suas obras.

Sant aella (2005: 296-299) di vi de os ti pos de discurso entre descrição, narração e

argument ação, col ocando a poesia no pri meiro grupo. Dest a classificação, ela di vi de cada

tipo e m três subcategori as, sendo a da descrição -- que nos interessa e m particul ar -- di vi di da

entre descrição qualitativa, descrição i ndi cial e descrição conceit ual. A pri meira é o l ugar

dos ícones, a segunda o dos í ndices e a terceira a dos sí mbol os.

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A aut ora rele mbra que os ícones -- na descrição qualitati va -- são o ti po de signo que

se asse mel ha com a coisa represent ada, a pont o de poder suscitar no i nterpret ant e sensações

anál ogas às que o obj et o e m si suscitaria.

Há uma preocupação e m relação à sonori dade dos poe mas analisados neste trecho

do li vro da se mi oticista, mas mais i mport ante que isso é a afir mação de que

O argu ment o central dessa tese propõe que as construções paratáticas e os

esque mas paralelísticos i nspirados e m uma l ógi ca de correlação, que são

própri os da escrita chi nesa, parece m coi nci dir co m os modos de

composi ção da poesia ocident al. Esse model o chi nês, transfor mado por

Pound e m mét odo ideogrâmi co de compor e m met áfora ci ne mat ográfica

por Eisenstei n, foi expandido por Harol do de Ca mpos na convergênci a da

função poética de Jakobson, dos anagra mas saussurianos e dos di agra mas

icôni cos de Peirce. O que está i mplícit o no model o chinês é um outro ti po

de l ógi ca verbal que opera por agenci a ment os analógi cos comandados

pel a força de atração que as quali dades exerce m sobre os mat eriais

linguísticos e m j ogo. Quanto mais a poesia ca mi nha no rompi ment o das

a marras da estrut ura linear do códi go verbal, mai s o ca mpo de

virt uali dades qualitati vas da linguage m fica à mostra. ( SANTAELLA, 2005:

297)

Assi m sendo, deve mos ret omar al gumas i dei as expost as no pri meiro Capítul o dest a

di ssertação.

Uma del as é a que defende que a linguage m verbal é dúbi a no que di z respeit o à sua

ori ge m e à sua mat erialidade, pois seu estado primei ro de evol ução se paut ou na i mit ação

para ent ão post eri or mente perder esse caráter mi méti co ( BENJ AMI N, 1994) e t ornar-se

convenci onal, si mbólica. Isso ocorreu tant o na li nguage m verbal oral -- e m que a

ono mat opei a, por i mitação, assi mil ou os primei ros sons e pal avras que, depoi s,

di stanci ara m-se de seu obj et o, desasse mel hando-se del e; como ta mbé m na li nguage m

verbal escrita -- e m que os desenhos, as i nscrições rupestres, os hi eróglifos e os i deogra mas

chi neses (entre outros model os de registro escrit o) tivera m i ní ci o i mitando a reali dade

e mpírica, para soment e com o te mpo separar-se em mai or ou menor grau desta mi mese,

chegando ao ní vel do contrat o soci al pura mente estabel eci do e aprendido como códi go

( BARTHES, 1997).

Out ra i dei a do Capít ul o I é a defesa -- por vári os teóricos, sobret udo por Lessi ng --

de que a linguage m verbal e a linguage m não verbal estão t otal ment e separadas tant o e m

sua mat éria quant o e m seu uso / emprego, sendo que a pri meira cont a, relata, faz vir à

ment e, ao passo que a segunda dá a coisa e m si, mostra, exi be ( LESSI NG, 1998 [1766]), ou

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seja, a pi nt ura e a escultura, assi m como mais tarde a fot ografia e o ci ne ma são li nguagens

que mostra m (show) o obj et o, e a literat ura (ou a comuni cação verbal em geral) comuni ca

cont ando, relatando (tell) sobre o obj et o ( BORDWELL, 1985)

Resu mi ndo (e si mplificando bastant e), esta mos perante três afir mações:

- a de que os si gnos icôni cos e a descrição qualitati va são o lugar da poesia, por

sere m os ícones si gnos que se asse mel ha m aos objet os represent ados por eles;

- a de que as linguagens em geral são i mitação em sua ori ge m, mas convenção e m

seu estado at ual, evol uí do; e

- a de que as linguagens verbal e não verbal difere m na maneira como se refere m ao

obj et o represent ado.

Va mos procurar ent ender estas três afir mações.

Co m respeit o à pri meira del as, va mos nos lembrar dos objet os desta pesquisa:

Por exe mpl o, no poe ma Canção do Ser- Cri ança, confor me vi mos, o verso ‘ ‘wollte

der Bach sei ei n Fl uß, der Fl uß sei n ei n Strom’ ’ (queria que o riacho fosse um ri o, e o ri o

u ma t orrente) tem, ao mes mo te mpo o si gnificado denot ati vo e o conot ati vo.’ ’

Ta mbé m no fil me, a cena que está, nesta dissertação, reproduzi da através da fi gura 8,

não mostra apenas a i mage m de um ol ho. Confor me vi mos, há uma relação met oní mi ca.

Mas conti nua sendo o olho.

A fi gura poética ‘ ‘Fl uß’ ’ e a i mage m visual do ‘ ‘ol ho’ ’ são ele mentos que se

transfor ma m e m i magens, mas que se mant ê m dentro do ‘ ‘contrat o’ ’ ( BARTHES, 1997), pois

É a i mage m poética que nos faz compreender por que a descri ção

qualitati va i magética é aquel a que mais fiel ment e retrata o est ofo a mbí guo

de que o i nstant âneo do real se nutre. (SANTAELLA, 2005: 299)

Em rel ação à segunda afir mação, va mos nos le mbrar de que, est udando lí ngua lati na

e fil ol ogi a români ca, qual quer pessoa pode chegar à concl usão de que há muit as pal avras

abstratas e m port uguês, hoj e e m dia, que vi era m de subst anti vos concret os da sua lí ngua de

ori ge m. Tais subst anti vos concret os ou i dei as concret as e m l ati m pode m t a mbé m t er

ori gi nado al gumas pal avras que represent a m obj et os concret os e m português, mas que

re met e m a i dei as abstratas e gerais. Um exe mpl o disso é o subst anti vo português ‘ ‘porta’ ’,

obj et o que usa mos para abrir e fechar um a mbi ente. Quando os romanos tinha m uma pl ant a

arquitet ôni ca para construir uma casa e queriam de marcar exat a ment e onde as paredes

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seria m construí das, dois ho mens segurava m um tronco ou cabo de madeira, ficando um na

frent e do outro, com o tronco sobre um dos ombr os. Dest e tronco ou cabo, no pont o

equi distant e entre os dois homens que o segurava m, ficava outro cabo, direci onado at é o

chão, com a pont a i nferior mais fi na. O obj et o parecia, portant o, uma letra ‘ ‘T’ ’. Os ho mens

iam andando com esse obj et o sobre os ombr os, sul cando a terra, para i ndicar onde ficaria

u ma parede, por exe mpl o. Onde essa parede precisava ser i nterrompi da por que ali ficari a

u ma passage m, um t erceiro home m -- o arquiteto, coordenando a obra -- gritava para os

ho mens: ‘ ‘Porta!’ ’, do verbo ‘ ‘portare’ ’ que si gnifica ‘ ‘erguer’ ’, ‘ ‘levant ar’ ’, ‘ ‘carregar’ ’. Assi m,

os construt ores saberia m que aquele pequeno trecho no chão que não estava sul cado ficari a

se m parede sobre ele. O verbo concret o ‘ ‘portare’ ’, em sua for ma conj ugada no i mperati vo,

transfor mou-se post eri orment e na idei a geral de porta que te mos hoj e. Mes mo quando não

há a porta (objet o que abre e fecha), mas si m apenas a passage m, ai nda assi m a cha ma mos

de porta. Ela é mais que o obj et o que tranca mos ou destranca mos: é a i deia.

Uma lí ngua pode, portant o, adot ar um movi mento circul ar, ou espiral, no que di z

respeit o à menci onada ‘ ‘evol ução’ ’ do icôni co para o si mbólico. O verbo ‘ ‘portare’ ’ em l ati m

já era um si gno si mbólico -- convenci onal, contrat ual -- e através de um pr ocesso

met oní mi co, até mes mo poético, o si mbólico transfor mou-se e m icôni co nova ment e. E hoj e

e m di a, a ‘ ‘porta’ ’ já é simbóli ca nova ment e. Mas pode ser usada num senti do transferi do,

met aforizado, se assi m quiser mos, voltando a adquirir um carát er icôni co ou i ndicial.

Parece-nos que a descrição qualitati va -- icôni ca -- é o l ugar da poesi a, mas não

apenas del a, e si m de t odo processo comuni cacional com um caráter poético, um carát er

criati vo.

Or a, a pal avra te m uma pal avra; te m a si mes ma; e desta for ma, se o

ho me m é um senti ment o ani mal, a pal avra é, da mes ma for ma, um

senti ment o escrit o. (...) Existe uma correspondênci a entre a pal avra e o

ho me m. Percepção é a possi bilidade de adquirir informação, de si gnificar

mai s: ora, uma pal avra pode aprender. Quant o mais não si gnifica hoj e a

pal avra eletrici dade do que si gnificava ao te mpo de Frankli n? Quant o

mai s não si gnifica hoj e o ter mo pl anet a do que ao te mpo de Hi parco?

Est as palavras adquirira m infor mação, tal como o faz o pensa ment o de um

ho me m através de uma percepção ulteri or. Mas não há aqui uma diferença,

dado que um ho me m faz a pal avra, e a pal avra nada significa senão aquil o

que al gum ho me m a fez si gnificar para esse homem? Ist o é verdade,

poré m dado que o home m pode penar apenas por i nter médi o das pal avras

ou outros sí mbol os ext ernos, as pal avras poderia m replicar dizendo: Você

nada si gnifica senão aquil o que l he ensi na mos e ist o apenas na medi da e m

que você se diri ge a algu ma pal avra como a int erpretant e de seu

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pensa ment o. Portant o, de fat o, os homens e as pal avras educa m-se

reci proca ment e uns aos outros; todo aument o de i nformação do ho me m é

ao mes mo te mpo o aumento da i nfor mação de uma pal avra e vice-versa.

(PEI RCE, 2005: 307-308)

Em rel ação à terceira afirmação, deve mos concordar que, como vi mos e m Lessi ng e

Sartre, no Capít ul o I, a diferença resi de sobret udo na mat eriali dade de cada li nguage m, de

cada arte. Mas Sartre mes mo le mbra que o que as une é a i ntenci onali dade, uma moti vação

criadora.

Assi m, quando Wenders e Handke expõe m uma personage m que é um anj o e que

desej a t ornar-se humano para aprender e apreender o mundo através de sua percepção

sensória ‘ ‘humana’ ’, mostrando tant o através das i magens do ci ne ma quant o através das

pal avras poéticas presentes no fil me, como se pode m criar significados para det er mi nados

si gnificant es alé m daquel es que a tradi ção já consagrou no uso utilitário de a mbos os

siste mas -- verbal e não verbal, os aut ores estão ao mes mo te mpo de monstrando uma t ese de

que a i ntenci onali dade criati va -- met afórica e met oní mi ca -- das artes é um pont o e m

comu m a t odas elas.

E, alé m da nossa percepção sensória, prática, física e concreta, deve mos nos lembrar

també m que nosso entendi ment o sobre o mundo se dá ta mbé m através de processos

psi col ógi cos, que ta mbém est ão present es no filme e no poe ma analisados, assi m co mo

deve m estar present es em t oda obra de arte.

No capít ul o ‘ ‘A al ma do ci ne ma’ ’, do li vro O Ci ne ma ou O Home m Imagi nári o

(MO R I N 1957), ve mos que a li gação entre nós e o mundo obj etivo se dá, necessaria ment e,

através de uma relação subj eti va que passa por processos de identificação e de proj eção.

Os processos de projeção são o aut omorfis mo, o antropo morfismo e o

desdobra ment o. O processo de i dentificação é o cos mo morfis mo. E o processo de proj eção-

identificação é o antropocos mo morfis mo. Resu mi da ment e, no processo de proj eção

cha mado aut omorfis mo, eu me proj et o e m t udo (tudo é puro para os puros, e tudo é i mpur o

para os i mpur os); no antropomorfis mo, eu proj eto mi nhas caract erísticas (humanas) e m

tudo quant o não é humano; fi nal ment e no processo de proj eção cha mado desdobra ment o,

ocorre a alienação (até estados psí qui cos alterados como a al uci nação, por exe mpl o, são um

pr ocesso de desdobra ment o: me vej o fora de mi m). Já no processo de identificação

(cos mo morfis mo), absorvo o mundo ao me i dentificar com el e. E, por fim, no processo de

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antropocos mo morfis mo, não apenas me i dentifico com o mundo, mas també m co m os

outros seres humanos, passando por uma i dentificação t otal e passando por t odos os

pr ocessos tant o de identificação quant o de proj eção.

Mori n nos dirá que estes processos psicol ógi cos todos pode m ser ou subjeti vos ou

mági cos. Retifi que mos, poré m, que t odo processo psicol ógi co é subj etivo, i ncl usi ve os

mági cos, pois t udo, absol ut a ment e t udo no processo de apreensão do mundo passa,

necessaria ment e, pel o ho me m que o percebe. Mas, voltando à teoria de Mori n,

concorde mos que exist e, si m, diferença entre os processos pura e si mpl es ment e subj eti vos e

os processos subj etivos mági cos: naquel es criamos nosso i magi nári o a partir da nossa

relação subj eti va com o mundo alta ment e cont ami nada por nosso repertóri o i ndi vi dual e

col eti vo já acumul ado, o que pode ‘ ‘trair’ ’ nossa percepção, pois dependemos dos nossos

senti dos e dessa bagage m; nos processos mágicos, cada coisa é o que ela é, se m a

interferência de uma i nterpret ação que me leve const ant e ment e a encontrar a ‘ ‘conot ação

das coisas’ ’.

Co mo di z Mori n, ‘ ‘historica ment e, é a magia o pri meiro estági o, a visão

cronol ogi ca ment e pri meira da criança ou da humani dade na sua i nfânci a e, e m certa medi da,

do ci ne ma: t udo começa, se mpre, pel a alienação...’ ’ (MO R I N 1957), pois a criança não faz

ai nda os processos psicol ógi cos subj eti vos de ‘ ‘defor mação’ ’ da reali dade obj eti va como

faze mos. Em compensação, ai nda não cria val ores e j ul ga ment os, não se apropria daquel a

reali dade subj etiva mente e não cria seu i magi nári o. Nova ment e, ao que di z Mori n

acrescent e mos ai nda que a criança apropria-se si m subj eti va ment e, poré m de maneira

defi niti va ment e diferente e menos ‘ ‘conta mi nada’ ’ que o adult o, afi nal o repert óri o e a

identi dade da criança são inci pi entes ai nda.

Esse processo psicol ógico mági co (da criança) é aquele pel o qual passa o anj o

Da mi el até se t ornar hu mano. É aquel e pel o qual passa m t a mbé m as crianças. Daí a

identificação entre elas e os anj os. A visão mágica do mundo, a visão de que aquil o que

apreende mos de fat o existe como tal, é a visão pri meira da humani dade, da criança, e

també m é nossa visão no ci ne ma, e na poesia.

O pr ópri o Mori n ai nda vai nos le mbrar de que ‘ ‘o liris mo, como nos mostra a poesi a,

serve-se nat ural ment e das mes mas vi as e linguage m que a magi a.’ ’ Esta, di z ele, é a visão

pré-obj eti va do mundo, um estado pré-subj etivo de afeti vi dade. Quando evol uí mos ao

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antropocos mo morfis mo, o que te mos é o i magi nári o (através da relação subj eti va com o

mundo), pois a evol ução ‘ ‘des magifica’ ’ o uni verso e i nteri oriza a magi a. Des magifica as

coisas, as pessoas, e nossa relação com el as.

O senti ment o do a mor é uma proj eção-i dentificação por excel ênci a, um pr ocesso

pr oj eção-i dentificação supre mo, pois ‘ ‘identifica mo- nos com o ser amado, com suas

al egrias e tristezas (...), nel e nos proj eta mos. (...) As suas fot ografias, as suas bugi gangas

(...), tudo está penetrado pela sua presença. Os obj et os i nani mados estão i mpregnados da

sua al ma e obri ga m- nos a a má-l os’ ’ (MO R I N 1957) e por isso, por exe mpl o, Da mi el rouba

u ma pedra do trailer de Mari on (ai nda que a roube apenas magi ca mente, já que a pedra

conti nua lá, e o que o anj o leva consi go é apenas a i dei a mági ca da pedra e m suas mãos,

pois verdadeira ment e não pode ne m sequer t ocar a pedra). É por isso també m que o anj o

evol ui e m sua relação subj eti va com o mundo, tornando-se humano na medi da e m que

evol ui seu a mor por Marion.

Mari on -- ela própria -- també m oscila entre moment os mági cos e subj eti vos. Os

mági cos ela vi venci a quando está no espet ácul o (afi nal, no espet ácul o, como acaba mos de

ver, o estado psicol ógi co mági co afl ora e m detriment o do subj eti vo) e també m quando el a

sonha a certa alt ura do fil me (não por acaso, sonha com Da mi el), pois o sonho é, ta mbé m,

u m mo ment o e m que nossa percepção subj eti va que defor ma a reali dade obj eti va dá lugar,

e m mai or ou menor grau, à percepção mági ca das coisas e do mundo à nossa volta.

Por fi m, o mais surpreendent e dest e fil me-poema é o fat o de que a li nguage m

ci ne mat ográfica tant o quant o a poética fora m col ocadas a servi ço da cri ação de um

si gnificado mági co para nós, espect adores, na medi da e m que o ci nema nos per mit e

sonhar acordados e entrar no estado pré-obj eti vo de percepção, ou seja, no estado mági co

da nossa psi que, através do escuro da sala de cine ma e do pact o ficci onal que faze mos

quando entra mos nel a, ou quando ‘ ‘entra mos num poe ma’ ’, pois ‘ ‘no espet ácul o, tudo passa

facil ment e do grau afetivo ao grau mági co (ou no sonho)’ ’ (id., ib.).

‘ ‘Recebendo’ ’ este poema-fil me ou este fil me-poe ma, passa mos pelo mes mo

pr ocesso de evol ução da vi são mági ca para a visão subj eti va pel o qual passa m as crianças,

pel o qual passou o anj o Da mi el. Nós, recept ores da obra, graças à maneira pel a qual ela foi

concebi da, trilha mos os mes mos passos, pri meirament e aceitando a ficção do anj o na terra,

depois i dentificando-nos com el e ou com seu ami go Cassi el, ou com quaisquer das

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inúmeras personagens anôni mas, ou com Mari on, ou com o te ma geral da fábul a, passando

já a um processo de cos mo morfis mo e, por último, quando Da mi el se tor na humano e,

portant o, acaba a magi a, passa mos a nos proj etar-i dentificar pelo processo de

antropocos mo morfis mo, ou sej a, pel a visão subjeti va, não mai s mágica, pois não o

ent ende mos mais como um anj o, ne m ent endemos mais Mari on como um espet ácul o.

Ent ende mo-l o como um home m buscando a felici dade e m sua vi da. Entende mo-l a como

u ma mul her buscando a felici dade e m sua vi da. E ent ende mos a a mbos como um ho me m e

u ma mul her procurando ser felizes um com o outro.

Não é uma coi nci dênci a que j usta ment e estas duas personagens se i dentifi que m.

Tant o um como a outra ti nha m os mes mos conflit os i nteri ores de identi dade. E isso

converge com a i dei a de que nós procura mos, e m geral, ficar próxi mos de pessoas com

caract erísticas próxi mas das nossas, com que m possa mos j usta ment e nos identificar.

Para Da mi el, particul arment e, a questão é mui to mais relevant e, já que el e não

apenas não possuía uma i denti dade, como també m não possuí a ne m mes mo os

instrument os para alcançá-la, como um corpo, por exe mpl o:

O ‘ ‘corpo’ ’ parece uma noção si mpl es, particul ar mente se comparado a

conceit os como ‘ ‘eu’ ’ e ‘ ‘aut o-i denti dade’ ’. O corpo é um objet o e m que

todos te mos o pri vilégi o de vi ver ou somos condenados a vi ver; font e das

sensações de be m-estar e de prazer, mas ta mbé m das doenças e das

tensões. Entretant o, (...) o corpo não é só uma enti dade física que

‘possuí mos’, é um siste ma de ação, um modo de práxis, e sua i mersão

prática nas i nterações da vi da coti diana é uma parte essenci al da

manut enção de um senti do coerent e de aut o-i denti dade’ ’. ( GI DDENS 2002:

95).

O fat o de que, ao ganhar um corpo, passar pel as experiênci as t odas por que passou,

Da mi el tenha resol vi do rel atar t udo através do poe ma, confir ma ai nda que:

Fi ca claro que a aut o-i dentidade , como fenômeno coerent e, supõe uma

narrati va -- a narrati va do eu é explicitada. Mant er um di ári o e trabal har

nu ma aut obi ografia são recomendações funda ment ais para sust ent ar um

senti do i ntegrado do eu. (i d.: 73).

A aut obi ografia é uma i ntervenção correti va no passado, e não uma mera

crôni ca de event os passados. Um de seus aspect os, por exe mpl o, é

‘ ‘acalent ar a criança que fomos’ ’. (id.: 72).

Fi nal ment e, lembre mos que assi m que aparente ment e a probl e mática se soluci onou,

a últi ma fala do fil me é a voz de Mari on di zendo ‘ ‘Nous sommes embarqués’ ’ ( Nós

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e mbarca mos), fazendo tant o uma menção a uma conti nuação desse fil me (conti nuação est a

que será o fil me Tão perto, t ão longe de Wenders, fil mado post eri or ment e, e m 1993), como

també m uma conti nuação no senti do fil osófico de que a evol ução do estado mági co para o

estado subj eti vo e, portant o, para a criação de suas i denti dades, é apenas o começo, j á que a

identi dade não é ne m pode ser um caráter hist órico e estanque da personali dade de um

indi ví duo, mas si m um estado e m const ante mut ação e passí vel das i ntervenções do própri o

suj eit o tant o quant o do mundo sensí vel: as coisas e as pessoas ao seu redor. A literat ura

tant o quant o o ci ne ma pode m auxiliar neste percurso.

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ASAS do desej o ( Der Hi mmel über Berli n). Direção: Wi m Wenders. Pr odução: Anat ol e

Dau man e Wi m Wenders. Intérpretes: Bruno Ganz ( Da mi el), Sol vei g Do mmarti n ( Mari on),

Ot t o Sander ( Cassiel), Curt Bois ( Ho mer), Peter Fal k (Pet er Fal k), Hans Marti n Stier

( Ho me m à beira da morte), Si gurd Rachman (Sui ci da), Beatrice Manows ki (Prostit uta),

Laj os Kovács ( Técni co de Mari on), Bruno Rosaz (Pal haço); Rot eiro: Pet er Handke e Wi m

We nders. Músi ca: Jürgen Kni eper. Al e manha: Argos Fil ms / Road Movi es Fil mpr odukti on

Gmb H / West deutscher Rundf unk, 1987. 1 DVD ( 130 mi nut os), son., leg., wi descreen,

P&B e col or.

O AMI GO a meri cano (Der ameri kanische Freund). Direção: Wi m Wenders. Produção:

Rénée Gundel ach e Margaret Menégoz. Int érpretes: Dennis Hopper, Bruno Ganz e outros.

Rot eiro: Wi m Wenders e Patrícia Hi ghs mit h. Música: Jürgen Kni eper. Al emanha / França:

Ar gos e Reverse Angl e: 1977. 1 DVD (120 mi nutos), son., leg., letterbox, col or.

BUENA Vi st a Social Club ( Buena Vist a Soci al Cl ub). Direção: Wi m Wenders. Produção:

Ul rich Felsberg e Deepak Nayar. Int érpret es: Luis Barzaga, Joachi m Cooder, Ry Cooder,

Juan de Marcos González, Juli o Al bert o Fernandez, Ibrahi m Ferrer, Carl os Gonzál ez,

Rúben Gonzál ez, Sal vador Repilado Labrada, Pi o Leyva, Manuel Puntillita Li cea. Rot eiro:

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Wi m Wenders. Músi ca: Ry Cooder e outros. Cuba: Road Movi es Fil mpr odukti on, 1999. 1

DVD ( 100 mi nut os), son. , leg., fullscreen, col or.

O CÉU de Lisboa (Lisbon St ory). Direção: Wi m Wenders. Produção: Ulrich Felsberg.

Intérpret es: Rüdi ger Vogl er, Patrick Bauchau, Teresa Sal gueiro e outros. Rot eiro: Wi m

We nders. Músi ca: Madredeus. Al e manha / Portugal: Road Movi es Fil mpr odukti on /

Reverse Angl e Li brary Gmb H, 1994. 1 DVD (99 mi n), son., leg., wi descreen ana mórfico,

col or.

DER HI MMEL über Berlin, ei n Fil mgedi cht7 2

. Direção: Wi m Wenders. Produção: Anat ole

Dau man e Wi m Wenders. Intérpretes: Bruno Ganz ( Da mi el), Sol vei g Do mmarti n ( Mari on),

Ot t o Sander ( Cassiel), Curt Bois ( Ho mer), Peter Fal k (Pet er Fal k), Hans Marti n Stier

( Ho me m à beira da morte), Si gurd Rachman (Sui ci da), Beatrice Manows ki (Prostit uta),

Laj os Kovács ( Técni co de Mari on), Bruno Rosaz (Pal haço); Rot eiro: Pet er Handke e Wi m

We nders. Músi ca: Jürgen Kni eper. Al e manha: Argos Fil ms / Road Movi es Fil mpr odukti on

Gmb H / West deutscher Rundf unk, 1987. 1 DVD (130 mi nut os), son. , se m l eg. (fil me

ori gi nal i mportado, edi ção come morati va), wi descreen, P&B e col or.

O ESTADO das coisas (Der St and der Di nge). Di reção: Wi m Wenders. Produção: Paul o

Br anco, Pi erre Cottrell, Lil yan Sieverni ch e Birgit Lel ek. Intérpretes: Isabelle Wei ngarten,

Rebecca Paul y, Jeffrey Ki me, Geoffrey Carey, Ca milla Mora, Al exandra Auder e outros.

Rot eiro: Wi m Wenders e Robert Kra mer. Música: Ji m Jar musch e Jürgen Kni eper.

Port ugal / Est ados Uni dos: Ar gos e Wi m Wenders Producti on, 1982. 1 DVD (116 mi nut os),

son., leg., wi descreen, P&B.

FAHRENHEI T 451 ( Fahrenheit 451). Direção: François Truffaut. Produção: Le wi s M.

Al l en. Intérpretes: Julie Christie, Oskar Wer ner e outros. Rot eiro: François Truffaut. França:

Vi neyard Fil ms Lt d., 1966. 1 DVD (111 mi nut os), son., leg., wi descreen, col or., baseado

no romance homôni mo de Ray Bradbur y.

A LETRA escarlate. ( Der scharl achrot e Buchstabe). Direção: Wi m Wenders. Produção:

Paul o Branco, Pi erre Cottrell, Lil yan Sieverni ch e Birgit Lel ek. Intérpretes: Sent a Berger,

Hans Christian Bl ech, Lou Cast el e outros. Rot eiro: Tankred Dorst, Ursula Ehl er, Ber nar do

Fer nández e Wi m Wenders. Músi ca: Jürgen Knieper. Al e manha: Ar gos e Wi m Wenders

Pr oducti on, 1972. 1 DVD (85 mi nut os), son., leg., wi descreen, col or., baseado no romance

ho môni mo de Nat ani el Ha wt hor ne.

O LI VRO de cabeceira (The pill ow book). Direção: Pet er Greena way. Produção: Kess

Kasander. Int érpret es: Vivian Wu, Ken Ogat a, Ewan Mc Gr egor e outros. Rot eiro: Pet er

Gr eena way. Japão: Kasander & Wi g man, Woodl i ne Fil mes e Al pha Fil ms, 1996. 1 DVD

(120 mi nut os), son., leg., fullscreen, col or.

7 2

Nest a edi ção come morativa da Art haus, adiciona m ao título Der Hi mmel über Berlin ( O céu

sobre Berli m) uma espéci e de subtít ul o: ei n Fil mgedicht von Wi m Wenders (um poe ma fíl mi co de

Wi m Wenders).

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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ESTRELA solitária ( Don’t come knocki ng). Di reção: Wi m Wenders. Produção: Pet er

Schwarzkopff. Intérpretes: Sa m Shepard, Jéssica Lange, Tom Rot h, Gabriel Mann, Sarah

Poll ey, Fairuza Bal k, Eva Mari e Sai nt. Rot eiro: Wi m Wenders e Sa m Shepard. Músi ca: T-

Bone Bur nett. Estados Uni dos: Reverse Angl e Pr odukti on, 2005. 1 DVD (123 mi nut os),

son., leg., wi descreen, color.

I DENTI DADE de nós mes mos ( A not ebook on clot hes and cities). Direção: Wi m Wenders.

Pr odução: Wi m Wenders e Ulrich Felsberg. Int érpretes: Yohji Ya mamot o (como el e

mes mo) e outros. Rot eiro: Wi m Wenders. Músi ca: Jürgen Kni eper. França / Japão: Reverse

Angl e Li brary Gmb H, 1989. 1 DVD (81 mi nut os), son., leg., wi descreen, col or.

J ANELA da al ma. Di reção: João Jardi m e Walt er Carval ho. Produção: Fl ávi o R.

Ta mbelli ni. Docu ment ário com: José Sara mago, Her met o Paschoal, Wi m Wenders, Evgen

Bavcar, Oli ver Sacks e outros. Rot eiro: João Jardim. Músi ca: José Mi guel Wi sni k. Brasil /

Est ados Uni dos / França / Inglaterra: Est údi o Ravi na Fil ms, 2002. 1 DVD (73 mi nut os),

son., leg., wi descreen, color.

MAI S estranho que a ficção (Stranger than fiction). Direção: Marc Fost er. Produção:

Nat han Kahane, Joe Drake e Eric Kopel off. Intérpret es: Maggi e Gyllenhaal, Dusti n

Hoff mann, Queen Latifah, Will Ferrell, Emma Tho mpson e outros. Rot eiro: Zach Hel m.

Músi ca: Britt Dani el. Estados Uni dos: Col umbi a Pi ct ures e Mandat e Pi ct ures, 2006. 1 DVD

(112 mi nut os), son., leg., wi descreen, col or.

MOVI MENTO e m falso ( Falsche Bewegung). Direção: Wi m Wenders. Produção: Ber nd

Ei chi nger e Pet er Genée. Intérpret es: Nat assja Ki nski ( Mi gnon), Rüdi ger Vögl er ( Wil hel m),

Hans Christian Bl ech (o vel ho), Hannah Schygulla ( Therèse) e outros. Rot eiro: Pet er

Handke. Músi ca: Jürgen Kni eper. Al e manha: Argos e Wi m Wenders Producti on Gmb H,

1975. 1 DVD (99 mi nutos), son., leg., wi descreen, col or., baseado no romance ‘ ‘ Wil hel m

Mei st ers Lehrjahre’ ’ ( Os anos de aprendi zage m de Wil hel m Mei ster) de Johann Wolfgang

Goet he.

NO DECURSO do te mpo (I m Lauf e der Zeit). Di reção: Wi m Wenders. Produção: Wi m

We nders. Intérpretes: Rüdi ger Vögl er, Hanns Zischler e outros. Rot eiro: Wi m Wenders.

Músi ca: Axel Li ndst ädt. Al e manha: West deutscher Rundf unk e Wi m Wenders Producti on

Gmb H, 1976. 1 DVD (168 mi nut os), son., leg., widescreen, col or.

PARI S, Texas ( Paris, Texas). Direção: Wi m Wenders. Produção: Wi m Wenders.

Intérpret es: Sa m Shepard, Harry Dean St ant on, Nat assja Ki nski, Dean Stockwell e outros.

Rot eiro: Sa m Shepard. Músi ca: Ry Cooder. Estados Uni dos: Reverse Angl e Gmb H, 1984.

1 DVD (122 mi nut os), son., leg., wi descreen, col or.

I N WEI TER Ferne so nah. Direção: Wi m Wenders. Produção: Ulrich Felsberg e Wi m

We nders. Intérpretes: Ot to Sander, Pet er Fal k, Horst Buchhol z, Nast assja Ki nski, Hei nz

Ruh mann, Br uno Ganz, Sol vei g Do mmarti n, Rüdi ger Vogl er e Wille m Dafoe. Rot eiro:

Wi m Wenders, Ulrich Zieger e Ri chard Reiti nger. Al e manha: Reverse Angle, 1993. 1 DVD

(140 mi nut os), son., se m legendas, wi descreen, P&B e col or.

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TOKYO Ga ( Tokyo Ga). Direção: Wi m Wenders. Produção: Chris Siever ni ch e Wi m

We nders. Intérpretes: Chishu Ryu, Yuharu At suta, Wer ner Herzog e outros. Rot eiro: Wi m

We nders. Músi ca: Di ck Tracy e Laurent Petitgand. Japão: Ar gos e Wi m Wenders

Pr oducti on Gmb H, 1985. 1 DVD (91 mi nut os), son., leg., wi descreen, col or.

UM TRUQUE de l uz ( A trick of light). Direção: Wi m Wenders. Produção: Vi et Hel mer e

Wol f gang Langsfel d. Document ári o com Nadi ne Buett ner, Luci e Hurt gen-Skl andanowsky,

Geor ge Inci, Udo Ki er, Ot t o Kuhnl e e outros. Rot eiro: Wi m Wenders. Músi ca: Laurent

Petit gand. Al e manha: Wi m Wenders Producti on, Ano?. 1 DVD (79 mi nut os), son., leg.,

fullscreen, B&P e col or.

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Apêndi ce 1: Poe ma Li ed vo m Ki ndsei n

Li ed vo m Ki ndsei n Canção do Ser- Cri ança

Versos Pet er Handke Pet er Handke ( Tradução: Júli o Sat o)

Est

rofe

1

001 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

002 gi ng es mit hängenden Ar men, el a andava bal ançando os braços,

003 wollte der Bach sei ei n Fl uß, queri a que o ri acho f osse um ri o,

004 der Fl uß sei ei n Strom, e que o ri o f osse uma t orrent e,

005 und di ese Pfüt ze das Meer. e que essa poça fosse o mar.

006 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

007 wußt e es nicht, dass es Ki nd war, el a não sabi a que ela era criança,

008 alles war i hm beseelt, tudo l he pareci a ter al ma,

009 und alle Seel en waren ei ns. e t odas as al mas eram uma só.

010 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

011 hatte es von ni chts ei ne Meinung, el a não ti nha opi nião sobre nada,

012 hatte kei ne Ge wohnheit, não ti nha cost ume al gum,

013 sass oft i m Schnei dersitz, sent ava-se com as pernas cruzadas,

014 lief aus de m St and, saí a correndo,

015 hatte ei nen Wi rbel i m Haar tinha um rede moi nho no cabel o

016 und macht e kei n Gesicht bei m fot ografieren. e não fazi a caret a para ser fot ografada.

Est

rofe

2

017 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

018 war es die Zeit der fol genden Fragen: era o te mpo das segui nt es pergunt as:

019 Warum bi n ich ich und warum ni cht du? Por que eu sou eu e por que não (sou) você?

020 Warum bi n ich hier und warum ni cht dort ? Por que est ou aqui e por que não (est ou)

aí ?

021 Wann begann di e Zeit und wo endet der

Rau m?

Quando começou o tempo e onde ter mi na o

espaço?

022 Ist das Leben unt er der Sonne nicht bl oß ei n

Traum?

A vi da sob o sol não é merament e um

sonho?

023 Ist was ich sehe und höre und rieche Aquil o que eu vej o e ouço e cheiro

024 ni cht bl oß der Schei n ei ner Welt vor der

Welt ?

Não é mera ment e a aparência de um mundo

di ant e do mundo?

025 Gi bt es tatsächlich das Böse und Leut e, die

wi rklich die Bösen si nd?

Exi ste m de fat o o Mal e pessoas que são

real ment e más?

026 Wi e kann es sei n, dass ich, der ich bi n, Co mo pode ser que eu que sou eu,

027 bevor ich wurde, nicht war, ant es de me t ornar eu, não era eu,

028 und dass ei nmal ich, der ich bi n, e que em al gum mo ment o eu, que sou eu,

029 ni cht mehr der ich bi n, sei n werde? Não mais este eu que eu sou serei?

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Est

rofe

3

030 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

031 wür gt e es a m Spi nat, an den Erbsen, a m

Mi l chreis,

Sentia ânsia com espi nafre, ervil has e arroz-

doce,

032 Und a m gedünst eten Bl umenkohl. E couve-fl or refogada.

033 Und i ßt jetzt das alles und nicht nur zur Not. E come agora t udo isso e não apenas por

obri gação.

034 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

035 er wacht e es ei nmal i n ei nem fre mden Bett Acor dou certa vez numa cama estranha

036 Und jetzt i mmer wi eder, E isso conti nua acont ecendo se mpre,

037 erschi enen i hm vi ele Menschen schön muit os seres humanos l he pareci a m bel os

038 Und jetzt nur noch i m Gl ücksfall, e agora só numa feliz coi ncidênci a,

039 stellte es sich klar ei n Paradies vor i magi nava clara ment e um Paraíso

040 Und kann es jetzt höchst ens ahnen, e pode agora ter apenas uma noção,

041 konnt e es sich Ni chts nicht denken não consegui a pensar no nada

042 und schaudert heut e davor. e hoj e estre mece di ant e disso.

043 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

044 spi elte es mit Begeisterung bri ncava com ent usias mo

045 und jetzt, so ganz bei der Sache wi e da mals,

nur noch, e agora, tão envol vi da como outrora, só que

046 wenn di ese Sache sei ne Arbeit ist. quando se trata de seu trabalho.

Est

rofe

4

047 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

048 war es die Zeit der fol genden Fragen: era o te mpo das segui nt es pergunt as:

049 War u m bi n ich ich und waru m ni cht du? Por que eu sou eu e por que não (sou) você?

050 War u m bi n ich hier und warum ni cht dort? Por que est ou aqui e por que não (est ou) aí?

051 Wa nn begann die Zeit und wo endet der

Rau m?

Quando começou o te mpo e onde ter mi na o

espaço?

052 Ist das Leben unt er der Sonne nicht bl oß ei n

Traum?

A vi da sob o sol não é merament e um

sonho?

Est

rofe

5

053 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

054 genügt en i hm als Nahrung Apfel, Brot, lhe era m suficient es como ali ment o maçã,

pão

055 und so ist es i mmer noch. E conti nua sendo assi m.

056 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

057 fielen i hm di e Beeren wi e nur Beeren i n die

Hand

a moras enchi a m-l he a mão como só a moras

faze m

058 und jetzt i mmer noch, e conti nua sendo assi m hoje e m di a,

059 macht en i hm di e frischen Wal nüsse ei ne

rauhe Zunge as nozes l he dei xava m a lí ngua áspera

060 und jetzt i mmer noch, e ai nda é assi m,

061 hatte es auf jede m Berg die Sehnsucht nach

de m i mmer höheren Berg

e m cada mont anha ela [a criança] ansiava

pel a mont anha ai nda mais alta

062 und i n jeder St adt die Sehnsucht nach der

noch größeren St adt,

e e m cada ci dade, ansiava por uma ci dade

ai nda mai or,

063 und das ist i mmer noch so, e conti nua sendo assi m,

064 griff i m Wi pfel ei nes Bau ms nach de m

Ki rschen i n ei ne m Hochgefühl

al cançava uma cereja na copa de uma árvore

e sentia orgul ho

065 wi e auch heut e noch, como ai nda hoj e

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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066 hatte Scheu vor jede m Fremden und hat sie

i mmer nocht,

sentia ti mi dez di ant e de cada pessoa

estranha e ai nda sent e,

067 wart ete es auf den ersten Schnee und wartet

so i mmer noch. Esperava pel a pri meira neve e ai nda espera.

068 Al s das Ki nd Ki nd war, Quando a criança era criança,

069 warf es ei nen St ock als Lanze gegen den

Bau m,

lançou um taco como lança contra uma

árvore,

070 und sie zittert da heut e noch. E el a [a lança] estre mece lá ainda hoj e.

Est

rofe

6

071 Et was ist geschehen Al go acont eceu

072 es geschi eht i mmer noch. e conti nua acontecendo.

073 Es ist verbi ndlich! É al go necessári o!

074 Es war i n der Nacht, Foi durant e a noite,

075 und es ist jetzt am Tag. E agora é durant e o dia.

076 Jet zt erst recht. Agora si m.

077 Wer war wer? Que m era que m?

078 Ich war i n i hr... Eu estava nela...

079 und sie war um mi ch. e ela estava ao meu redor.

080 Wer auf der Welt kann Que m no mundo pode

081 von sich behaupt en, afir mar real ment e

082 er war je mit ei ne m anderen já haver estado com outro

083 Me nschen zusa mmen? ser humano e m conj unção?

084 Ich bi n zusa mmen. Eu posso

085 Kei n sterbliches Ki nd Nenhu ma criança mort al

086 wur de gezeugt, foi gerada,

087 sondern ei n unst erbliches e si m uma i mage m i mortal

088 ge mei nsa mes Bil d. unificada.

089 Ich habe i n dieser Nacht Eu nessa noite

090 das St aunen gel ernt. aprendi o espant o.

091 Si e hat mi ch hei mgeholt, El a me trouxe para casa

092 und ich habe e eu encontrei

093 hei mgefunden. meu lar.

094 Es war ei nmal. Foi uma vez.

095 Es war ei nmal, Era uma vez,

096 und also wird es sei n. e assi m será.

097 Das Bil d, das wir gezeugt haben, A i mage m que nós gera mos

098 wi rd das Begl eit bil d será a i mage m que acompanhará

099 mei nes St erbens sei n. mi nha mort e.

100 Ich werde dari n gel ebt haben. Eu terei vi vi do nela.

101 Erst das St aunen Só o espant o

102 über uns zwei, sobre nós dois,

103 das St aunen o espant o

104 über den Mann und die Frau sobre o home m e a mul her

105 hat mi ch zum Menschen gemacht. me t ornou humano.

106 Ich... weiss... jetzt, Eu... sei... agora,

107 was... kei n... Engel... weiss.. o que... nenhu m... anj o... sabe...

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Apêndi ce 2: Conversa entre os anjos Da mi el e Cassiel

Ori gi nal ale mão (grifos meus):

Da mi el: Ei ne Passanti n, die mitten i m Regen

den Schir m zusammenkl appt e und sich naß

werden ließ... Ei n Schül er, der sei ne m Lehrer

beschri eb, wi e ei n Farn aus der Erde wächst,

und der st aunende Lehrer... Ei ne Bli nde, di e

nach i hrer Uhr t astete, als sie mi ch spürt e...

Es ist herrlich, nur geisti g zu leben und Tag

für Tag f ür die Ewi gkeit von den Leuten rei n,

was geistig ist, zu bezeugen -- aber manchmal

wi rd mi r mei ne ewi ge Geistexistenz zuvi el. Ich

möcht e dann ni cht mehr so ewi g

drüberschweben, ich möchte ei n Ge wi cht an

mi r spüren, das die Grenzenl osi gkeit an mi r

auf hebt und mi ch erdf est macht. Ich möcht e

bei jede m Schritt oder Wi ndst oß „Jetzt‘ ‘

und... „Jetzt‘ ‘ und „Jetzt‘ ‘ sagen können und

ni cht wi e i mmer ‘ ‘seit je’ ’ und „i n Ewi gkeit‘ ‘.

Si ch an den freien Pl atz am Kart entisch

setzen, begrüßt werden, auch bl oß mit ei ne m

Ni cken. Di e ganze Zeit, wenn wi r schon

ei nmal mitt aten, war es doch nur zum Schei n:

haben uns i m nächtlichen Ri ngkampf mit

ei ne m von denen zum Schei n di e Hüft e

ausrenken l assen, haben zum Schei n ei nen

gesessen, haben getrunken... und gegessen

zum Schei n, haben uns Lämmer brat en und

Wei n auf wart en l assen... draußen bei den

Zelten i n der Wüst e, nur zum Schei n! Ni cht,

dass ich j a gleich ei n Ki nd zeugen oder ei nen

Baum pfl anzen möcht e, aber es wäre doch

schon et was, bei m Nachhausekommen nach

ei ne m l angen Tag... wi e Phili p Marl owe di e

Kat ze zu f üttern. Fi eber haben, schwarze

Fi nger zum Zei gungsl esen, sich nicht i mmer

nur am Geist begeistern, sondern endlich an

ei ner Mahlzeit, ei ner Nackenli ni e, ... ei ne m

Ohr. Lügen! Wi e gedruckt! Bei m Gehen das

Knochengerüst an sich mit gehen spüren.

Endlich ahnen, st att i mmer alles zu wissen.

„Ach‘ ‘, und „Oh‘ ‘ und „Ah‘ ‘ und „Weh‘ ‘

sagen können, st att „Ja und amen‘ ‘!

Cassiel: Ja, und sich ei nmal auch begeistern

können am Bösen. Von den Passant en i m

Vorbei gehen alle Dämonen der Erde auf sich

übertragen und endlich hinaus i n die Welt

Tradução mi nha, grifos meus:

Da mi el: Uma passant e que fechou seu

guarda-chuva no mei o de uma chuva e se

dei xou mol har... Um al uno que descreveu para

o seu professor como uma sa ma mbai a brot a

da terra, e o professor abis mado... Uma cega

que apal pou seu rel ógi o ao sentir mi nha

presença... É magnífico vi ver só

espirit ual ment e e dia após dia teste munhar o

que é espiritual das pessoas por t oda

et erni dade -- mas às vezes mi nha existênci a

et erna me é de mais. Eu gostaria de não apenas

ficar fl ut uando eterna ment e por aí, gostaria de

sentir um peso sobre mi m, um peso que

acabasse com a mi nha falta de li mit e e me

tornasse terreno. Eu gost aria de poder, a cada

passo ou a cada gol pe de vent o, dizer „agora‘ ‘

e „agora‘ ‘ e „agora‘ ‘, ao invés de „desde

se mpre‘ ‘ e „na eterni dade‘ ‘. Sent ar-se a uma

mesa de cartas na praça, ser cumpri ment ado,

mes mo que apenas com um gest o. O te mpo

inteiro desde que agi mos aqui se mpre foi

soment e por aparênci a: em l utas à noite

desvencil har uma ci ntura apenas por

aparênci a, sent ar-se por aparênci a, beber

por aparênci a, comer por aparênci a, assar

cordeiros e t omar vi nho, por aparênci a... lá

fora nas tendas no desert o, só por aparênci a.

Não quero di zer com isso que eu queira criar

u ma criança ou pl ant ar uma árvore, mas seria

já al guma coisa chegar e m casa após um

longo di a... como Phili p Marl owe, ali ment ar o

gat o. Ter febre, ter os dedos escureci dos pel a

leit ura do j ornal, não se ent usias mar apel as

pel o espírito, mas ta mbé m por uma refeição,

u m cont orno de uma nuca, uma orel ha.

Me ntir! Co mo (se esti vesse) depri mi do! Sentir

o mover dos ossos ao cami nhar. Fi nal ment e

supor, ao i nvés de se mpre saber t udo. Poder

di zer „Oh‘ ‘, Ah‘ ‘ e „Ai‘ ‘ ao i nvés de apenas

„Si m e a mé m‘ ‘!

Cassi el: Si m, e poder de repent e ent usias mar-

se com o mal. Ser cont a mi nado pel os

de môni os de t odos os passant es quando el es

passare m por você e fi nal ment e sair pel o

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jagen... ei n Wil der sei n!

Da mi el: Oder endlich zu spüren, wi e es ist,

under de m Tisch di e Schuhe auszuzi ehen und

di e Zehen auszustrecken, barf uß, so.

Cassiel: Allei n blei ben! Geschehen l assen!

Ernst blei ben! Wil d können wi r nur i n de m

Maß sei n, wi e wir unbedingt ernst blei ben.

Ni chts weiter tun als anschauen, sammel n,

bezeugen, begl aubi gen, wahren! Geist

bl ei ben! I m Abst and bleiben! I m Wort

bl ei ben!

mundo e m caça... tornar-se u m sel vage m!

Da mi el: Ou fi nal ment e sentir como é tirar os

sapat os e mbai xo da mesa e esticar os dedos

dos pés, pés descal ços, assim.

Cassi el: Ficar sozi nho! Dei xar acont ecer!

Per manecer séri o! Podemos ser sel vagens

apenas na medi da e m que per manece mos

necessaria ment e séri os. Nada al é m de

observar, col eci onar, teste munhar,

reconhecer, sal vaguardar! Per manecer

espírit o! Per manecer excluí do! Per manecer

e m pal avra!

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Apêndi ce 3: Outros poe mas -- Fal as da personage m Ho mer

Ori gi nal em ale mão:

Erzähl e, Muse, vom Erzähl er,

de m an den Weltrand verschl agenen ki ndlichen

Ur alten und mache an i hn

kenntlich den Jeder mann. Mei ne Zuhörer si nd mit der Zeit zu Lesern

geworden und sie sitzen nicht mehr i m Kreis,

sondern f ür sich, und ei ner wei ß nichts vom

anderen.

Ei n Greis bi n ich mi t ei ner brüchi gen Sti mme

aber di e Erzähl ung

hebt i mmer noch an aus der Tiefe

und der leicht geöff nete Mund wi ederholt sie, so mächti g,

wi e mühel os,

ei ne Lit urgi e, bei der ni emand ei ngewei ht

zu sei n braucht, wi e di e Wört er und Sätze

ge mei nt si nd.

Tradução ( mi nha):

Narra, Musa, sobre o narrador,

aquel e que à marge m do mundo

é lançado,

aquel e anti quíssi mo i nfantil, e faz nele

o conheci do de t odo mundo.

Me us ouvi ntes, com o te mpo, transfor mara m-

se e m l eitores e não se sent am mai s e m

círcul o, mas si m sozi nhos, um não sabe nada

do outro.

Um anci ão eu sou,

com uma voz frágil,

mas a narração

ergue-se ai nda

da profundeza

e a boca leve ment e aberta

repete-a, tão poderosa ment e,

quant o se m esforço,

u ma lit urgia,

na qual ni ngué m precisa

ser i niciado,

tal como as palavras e frases

são i ntenci onadas.

Ori gi nal em ale mão:

Nur noch die Römerstraßen...

führen i ns Weite, nur noch die ältesten Spuren führen weiter.

Wo ist hier di e Paßhöhe?

auch das Fl achl and, auch Berlin hat ja

sei ne verborgenen Paßhöhen, und dort erst fängt mei n Land,

das Land der Erzähl ung, an.

Warum sehen nicht alle schon als Ki nder di e Pässe, Pf orten und Durchschl üpf e

unt en auf der Erde und oben i m Hi mmel ? Würde sie jeder sehen,...

gäbe es ei ne Geschi chte ohne Totschl ag

und Krieg.

Tradução ( mi nha):

Só as ruas de Ro ma...

ai nda leva m ao l onge,

só as mais anti gas estradas leva m mai s longe.

Onde está a passage m [que tinha aqui]?

també m a planície, també m Berli m te m

suas passagens secret as,

e soment e lá começa mi nha terra,

a terra da narrativa.

Por que t odos não vee m como as crianças

as passagens, port ões e vi elas

sob a terra e no céu?

Cada um conseguiria vê-l os,...

se existisse uma hist ória se m assassi nat o

e guerra.

Ori gi nal em ale mão:

Nennt mir di e Männer und Frauen und Ki nder,

di e mi ch suchen werden,

mi ch, i hren Erzähl er, Vorsänger und Tonangeber, weil sie mi ch brauchen, wi e sonst

ni chts auf der Welt.

Tradução ( mi nha):

Mostre m- me os homens e mul heres e

crianças, que me procurarão, a mi m, seu

narrador, seu cant or e condutor, porque eles

precisa m de mi m, como nunca precisara m de

nada no mundo.

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Apêndi ce 4: Poe ma que i nicia o fil me A not ebook on clot hes and cities (1989)

Ori gi nal e m i ngl ês: Tradução confor me aparece na legenda do

DVD:

01 You li ve wherever you live,

02 you do what ever work you do,

03 you tal k however you talk,

04 you eat what ever you eat,

05 you wear what ever cl ot hes you wear

06 you l ook at what ever i mages you see …

07 YOU’ RE LI VI NG HOWE VER YOU CAN.

08 YOU ARE WHOEVER YOU ARE.

09 ‘ ‘Identity’ ’ …

10 of a person,

11 of a t hi ng,

12 of a place.

13 ‘ ‘Identity’ ’.

14 The word itself gi ves me shi vers.

15 It rings of cal m, comf ort, cont ent edness.

16 What is it, identit y?

17 To know where you belong?

18 To know your self worth?

19 To know who you are?

20 How do you recogni ze identit y?

21 We are creati ng an i mage of oursel ves,

22 we are atte mpti ng t o rese mbl e t his i mage …

23 Is that what we call identity?

24 The accord

25 bet ween t he i mage we have creat ed

26 of oursel ves

27 and … oursel ves?

28 Just who is that, ‘ ‘ourselves’ ’?

29 We li ve i n t he cities.

30 The cities live i n us …

31 ti me passes.

32 We move from one cit y to anot her,

33 from one country t o another.

34 We change languages,

35 we change habits,

36 we change opi ni ons,

37 we change cl ot hes,

38 we change everyt hi ng.

39 Everyt hi ng changes. And fast.

40 I mages above all,

Você mora onde mora,

faz o seu trabal ho

você fala o que você fala,

come o que você come,

veste as roupas que veste,

ol ha para as i magens que vê...

VOCÊ VI VE COMO PODE VI VER.

VOCÊ É QUE M VOCÊ É.

‘ ‘Identidade’ ’...

de uma pessoa,

de uma coisa,

de um l ugar.

‘ ‘Identidade’ ’.

Só a pal avra já me dá calafrios.

El a le mbra cal ma, confort o, satisfação.

O que é a i denti dade?

Conhecer o seu l ugar?

Conhecer o seu val or?

Saber que m você é?

Co mo você reconhece i dentidade?

Cri a mos uma i mage m de nós mes mos,

e esta mos tent ando nos parecer com esta

i mage m.

É isso que cha ma mos de i denti dade?

A reconciliação entre a i mage m que cria mos

de nós mes mos

e... nós mes mos?

Mas que m seria esse ‘ ‘nós mes mos’ ’?

Nós mora mos nas ci dades.

As ci dades mora m e m nós...

o te mpo passa.

Muda mos de uma ci dade para outra,

de um país para outro.

Tr oca mos de i di oma,

troca mos de hábit o,

troca mos de opi ni ão,

troca mos de roupa,

troca mos t udo.

Tudo muda. E rápi do.

Sobret udo as i magens.

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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41 change faster and faster

42 and t hey have been multipl yi ng at a

43 hellish rate si nce t he explosi on

44 t hat unl eashed t he electroni c i mages

45 t he very i mages whi ch are now

46 repl aci ng phot ography.

47 We have learned t o trust

48 t he phot ographi c i mage.

49 Can we trust the electroni c i mage?

50 Wit h pai nti ng, everyt hi ng was si mpl e.

51 The ori gi nal was uni que, and

52 each copy was a copy, a forger y.

53 Wit h phot ography and then fil m,

54 it began t o get complicated.

55 The ori gi nal was a negative.

56 Wit hout a pri nt, there was j ust the opposite.

57 Each copy was t he ori ginal.

58 But now, wit h t he electroni c i mage,

59 and soon t he di gital,

60 t here is no more negative

61 and no more positive.

62 The very noti on of t he origi nal is obsol ete.

63 Everyt hi ng is copy.

64 All distincti ons have beco me arbitrary.

65 No wonder t he i dea of identit y

66 fi nds itself in such a feebl e state.

67 Identit y is ‘ ‘out’ ’.

68 Out of fashi on.

69 Exactl y.

70 Then what is en vogue,

71 if not fashi on itself?

72 By defi nition, fashi on is al ways ‘ ‘in’ ’.

73 Identit y and fashi on.

74 Are t he t wo contradi ct ory?

75 Fashi on?

76 I’ll have not hi ng of it.

77 At least, that was my first reacti on

78 when t he Centre Georges Pompi dou,

79 i n Paris,

80 asked me t o make a fil m

81 i n t he cont ext of fashi on.

82 The worl d of fashi on?

83 I’ m i nterested i n t he world,

84 not in fashi on.

85 But maybe I was t oo quick

86 t o put down fashi on.

87 Why not exa mi ne it

88 like any ot her i ndustry?

89 Li ke t he movi es, for exampl e.

90 Maybe fashi on and ci nema

El as muda m cada vez mais rápi do

e se multi plica m nu m rit mo

infernal desde a expl osão

que desencadeou as i magens eletrôni cas

as mes mas i magens que agora

est ão substit ui ndo a fot ografia.

Aprende mos a confiar

na i mage m fot ográfica.

Pode mos confiar na eletrônica?

No t e mpo da pi nt ura, tudo era si mpl es.

O ori gi nal era úni co, e

toda cópi a era uma cópia, uma falsificação.

Co m a fot ografia e o ci ne ma,

a coisa começou a se compl icar.

O ori gi nal era um negati vo.

Se m uma a mpliação, só existia o opost o.

Cada cópi a era o ori gi nal.

Mas agora, com a i mage m el etrôni ca,

e e m breve, com a di gital,

não existe mais negati vo

ne m positivo.

A própria i deia de ori gi nal ficou obsol eta.

Tudo é cópi a.

Todas as disti nções se tornara m arbitrárias.

Não admira que a i deia de identi dade

est eja tão enfraqueci da.

Identi dade está fora.

Fora de moda.

Exat a ment e.

Ent ão o que está na moda

senão a própria moda?

Por defi nição, a moda está se mpre na moda.

Identi dade e moda.

Seria m coisas contradit órias?

Moda?

Não quero saber.

Pel o menos, essa foi a mi nha pri meira reação

quando o Centre Georges Po mpi dou,

e m Paris,

me encomendou um fil me

dentro do context o da moda.

O mundo da moda?

Est ou i nteressado no mundo,

não na moda.

Mas tal vez eu ti vesse desprezado

a moda rápi do de mais.

Por que não exa mi ná-la

como qual quer outro ra mo?

Co mo o ci ne ma, por exe mplo.

Tal vez a moda e o ci ne ma

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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91 have somet hi ng i n common.

92 And somet hi ng else:

93 t his fil m woul d gi ve me the opport unit y

94 t o meet someone who had already

95 aroused my curi osit y,

96 someone who wor ked i n Tokyo.

Tenha m al go e m comu m.

E outra coisa:

est e fil me me daria a oportuni dade

de conhecer al gué m que já tinha

despertado a mi nha curi osidade,

al gué m que trabal hava e m Tóqui o.

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Apêndi ce 5: Gl ossári o

Ca mpo: A i mage m do fil me é percebi da, a um só tempo, como uma superfície plana (real)

e como um fragment o de espaço e m três di mensões (i magi nári o) (AR N H E I M 1932 [apud

AU M O N T 2003]). O campo é a porção de espaço tri di mensi onal que é percebi da a cada

instant e na i mage m fíl mi ca (...).(AU M O N T 2003: 42).

Contraca mpo: O ‘ ‘contraca mpo’ ’ é uma fi gura de decupage m que supõe u ma alternânci a

com um pri meiro pl ano então cha mado de ‘ ‘ca mpo’ ’. O pont o de vista adot ado no

contraca mpo é i nverso daquel e adot ado no pl ano precedent e, e a fi gura for mada dos dois

pl anos sucessi vos é chamada de ‘ ‘ca mpo-contraca mpo’ ’. Tal fi gura bastante tradi ci onal foi

com frequênci a variada, por exe mpl o, ligando dois planos segundo pont os de vista a 90°

(ou a 180°, o que, na concepção cl ássica, sempr e foi consi derado algo a se evitar).

(AU M O N T 2003: 62).

Corte móvel: Conceit o propost o por Gilles Del euze para defi nir, a u m só te mpo, a

i mage m- movi ment o e o pl ano ci ne mat ográfico. O movi ment o que o ci ne ma dá à i mage m

modifica as posi ções respecti vas das partes de um conj unt o, ‘ ‘que são co mo seus cortes,

cada uma i móvel e m si mes ma; no entant o, o movi ment o é ele própri o o cort e móvel de um

todo cuj a mudança ele expri me’ ’. Quant o ao pl ano, ‘ ‘é o movi ment o, considerado e m seu

dupl o aspect o; transl ação das partes de um conj unto que se est ende no espaço, mudança de

u m t odo que se transfor ma na duração (...).(AU M O N T 2003: 65).

Corte seco: Cha ma-se de corte seco a passagem de um pl ano a outro por uma si mpl es

col age m, se m que o raccord sej a marcado por um efeit o de rit mo ou por uma trucage m

(...).(AU M O N T 2003: 66).

Decupage m: A decupage m é, ant es de t udo, um instrument o de trabal ho. O ter mo surgi u

no curso da década de 1910, com a padroni zação da realização dos filmes e desi gna a

‘ ‘decupage m’ ’ em cenas do rot eiro, pri meiro estágio, portant o, da preparação do fil me sobre

o papel; ele serve de referênci a para a equi pe técni ca. Co mo muitas pal avras, ela passa do

ca mpo da realização ao da crítica. Ela desi gna, então, de modo mais met afórico, a estrut ura

do fil me como segui mento de planos e de sequênci as, tal como o espectador atent o pode

perceber. É nesse senti do que André Bazi n utiliza a noção de ‘ ‘decupage m cl ássica’ ’ para

opô-la ao ci ne ma fundado na mont age m; encontrare mos a mes ma oposi ção e m Jean- Luc

Godar d. A defi nição é retrabal hada (e t ornada mai s abstrata) por Noël Burch (1969) e a

corrent e ‘ ‘neofor malista’ ’. O conceit o de decupagem, opost o ao senti do técni co e prático, é

defi ni do então como ‘ ‘a feit ura mais í nti ma da obra acabada, a resultant e, a convergênci a de

u ma decupage m no espaço e de uma decupage m no te mpo’ ’. (AU M O N T 2003: 71).

Fusão[ ou fundir]: Ter mo técnico que desi gna o apareci ment o ou desapareci ment o obti da

por uma variação da exposi ção. Variando o di afragma, pode-se obter tal efeit o de li gação

entre duas i magens direta ment e na tomada de cena, mas, por razões de co modi dade e de

precisão, ele é quase sempr e realizado e m l aborat óri o. A fusão é ant eri or ao ci ne ma, pois

el a existia como técnica de encadea ment o das placas de lant ernas mági cas; ela apareceu,

portant o, be m cedo como modo de li gação dos quadr os nos fil mes pri mitivos. As fusões

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Di ssert ação de mestrado de Júli o Sat o

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pertence m à banda i mage m, constit ue m, poré m, u m mat erial visual que não é fot ográfico:

‘ ‘Uma cortina, uma fusão são coisas visí veis, mas não são i magens, represent ações de

al gum obj et o; uma i mage m desfocada, uma acel eração não são e m si mesmas fot ografias, e

si m modificações feitas em f ot ografias’ ’ (ME T Z apud AU M O N T). Étienne Souri au já havi a

precisado que o mat erial vi sí vel das transcrições é se mpre extradiegética. A fusão manifest a

a presença da enunci ação, ela pode, portant o, desempenhar o papel de uma mar ca, próxi ma

de um dêitico, ou, de outro pont o de vista, de uma pont uação. (AU M O N T 2003: 138-139).

Pl ano: Geral ment e propõe m-se três defi nições do ter mo: 1) A i mage m do fil me é i mprecisa

e proj etada e m uma superfície plana: é a ori ge m da pal avra ‘ ‘plano’ ’, que desi gna, portant o,

o pl ano da i mage m. Tendo e m vista que essa i mage m represent a um certo ca mpo, o pl ano

da i mage m é paralel o a uma i nfi ni dade de outros planos i magi nári os, dispost os ‘ ‘em

pr ofundi dade’ ’ ao longo do ei xo da t omada de cena. Dir-se-á que um obj eto se encontra no

pl ano de fundo, ou e m pri meiro pl ano (a expressão ‘ ‘plano de frent e’ ’, mais l ógica, não é

corrent e), confor me esteja mais ou menos afastado e m aparência; 2) Em um cert o númer o

de expressões, a pal avra ‘ ‘plano’ ’ é consi derada substit ut o aproxi mati vo de ‘ ‘quadr o’ ’ ou

‘ ‘enquadra ment o’ ’. É o caso e m t odo o vocabul ário da escal a dos planos, ou na expressão

‘ ‘plano fi xo’ ’, que desi gna uma uni dade de fil me durante a qual o enquadra ment o per manece

fixo e m rel ação à cena fil mada (é o ‘ ‘contrário’ ’ do ‘ ‘ movi ment o de câ mera’ ’); 3) Por

ext ensão, a pal avra chegou a desi gnar uma i magem fíl mi ca unitária, tal como percebi da no

fil me proj etado. Trat a-se, ai nda aí, de uma noção de ori ge m e mpírica: o plano é, no fil me

ter mi nado, o que resta de uma t omada efet uada no mo ment o da fil mage m. Co mo a t omada,

el e se caract eriza, ant es de t udo, por sua conti nuidade, e, apesar de seu caráter taut ol ógi co,

sua defi ni ção só pode ser a segui nt e: ‘ ‘um plano é qual quer seg ment o de fil me

compreendi do entre duas mudanças de plano’ ’. (...)(AU M O N T 2003: 230-231).

Pl ano-sequênci a: Co mo o ter mo i ndica, trata-se de um pl ano bast ante longo e articul ado

para represent ar o equivalent e de uma sequênci a. Em pri ncí pi o, conviria, portant o,

di sti ngui-l o de pl anos longos, mas onde nenhu ma sucessão de acont eci ment os é

represent ada (...). Tal distinção, poré m, no mais das vezes, é difícil, e geralment e fal a-se de

pl ano-sequênci a quando u m pl ano é suficient e ment e l ongo (...).(AU M O N T 2003: 231).

Pont o de vista: Se excetuar mos um senti do hoj e obsol et o (‘ ‘lugar onde uma coisa deve ser

col ocada para ser be m vista’ ’), a língua da a essa expressão três registros de si gnificação,

todos três atestados na teoria do ci ne ma: 1) Um lugar, real ou i magi nári o, a partir do qual

u ma represent ação é produzi da. É o pont o do qual um pi nt or que utiliza a perspecti va li near

or gani za o seu quadro; é també m, no ci ne ma, o pont o i magi nári o, event ualment e móvel, do

qual cada pl ano foi fil mado. Esse pont o de vista é com frequência i dentificado com o ol har,

e, e m um fil me narrativo, a quest ão será saber se esse ol har pertence a al gué m: a um

personage m (pl ano ‘ ‘subjetivo’ ’), à câ mera, ao aut or do fil me ou a seu enunci ador ou

‘ ‘mostrador’ ’ (...); 2) ‘ ‘A maneira particul ar como uma quest ão pode ser consi derada’ ’ [que

não é o caso da acepção adot ada nest e trabal ho (J. S.)]; 3) Uma opi ni ão, u m senti ment o a

respeit o de um obj et o [que não é o caso da acepção adot ada neste trabal ho (J. S.)].

(AU M O N T 2003: 237).

Raccord: Co mo sugere m as conot ações do ter mo (que evoca a mecâni ca ou o trabal ho com

encana ment os), é no cine ma mais i ndustrial, o de Holl ywood na época clássica, que é

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aperfeiçoada a prática de raccord, ou seja, de um tipo de mont age m na qual as mudanças de

pl anos são, tant o quant o possí vel, apagadas como tais, de maneira que o espect ador possa

concentrar t oda sua atenção na conti nui dade da narrativa visual. (...)(AU M O N T 2003: 251).

So m i n: A font e do som ( pal avra, ruí do ou música) é visí vel na tela (som si ncrôni co).

(VA N O Y E; G O L I O T -LÉ T É 1994: 47-48).

So m fora de ca mpo ou so m over: A font e do som não é visí vel na i magem, mas pode ser

sit uada i magi naria ment e no espaço-te mpo da ficção mostrada (som di egético). (VA N O Y E;

GO L I O T-L É T É 1994: 47-48).

So m off: emana de uma font e i nvisí vel sit uada num outro espaço-tempo, que não o

represent ado na tela (som extra-di egético ou heterodi egético). (VA N O Y E; G O L I O T-

LÉ T É 1994: 47-48).