A Imanência Do Exílio Utópico - O Mundo, De Jia Zhang-ke

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  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXI Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Natal, RN 2 a 6 de setembro de 2008

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    A imanncia do exlio utpico: ultrapassagem de fronteiras e territrios afetivos em O Mundo, de Jia Zhang-ke1

    Camila Vieira da SILVA2

    Universidade Federal do Cear, Fortaleza, CE

    Resumo

    O cinema do cineasta contemporneo chins Jia Zhang-ke est, antes de tudo, para alm da representao de fatos. Existe nele uma urgncia fundamental em inventar mundos possveis, abrir fendas ao que est posto, acionar novas conexes, escapar daquilo que j est constitudo. Para tanto, o cineasta se cerca de uma srie de procedimentos ou estratgias para acumular impresses, sensaes, antes do mero flagrante de um suposto real. Em O Mundo (Shijie), longa-metragem realizado em 2004, os protagonistas reinventam seus espaos de existncia, a partir da busca por uma espcie de exlio utpico. Ao explorar tais territrios afetivos por meio dos aparatos tecnolgicos, Jia Zhang-ke cria seu cinema de resistncia.

    Palavras-chave

    Cinema asitico contemporneo; Jia Zhang-ke; cidade-simulacro; territrios afetivos; sensorialidade.

    Corpo do trabalho

    Em qualquer comentrio da crtica especializada sobre o conjunto da obra do cineasta chins Jia Zhang-ke, torna-se difcil escapar da afirmao categrica de que ele seja um dos principais realizadores contemporneos, que melhor representa em seus filmes as transformaes scio-econmicas, bem como os efeitos da transio do regime comunista para o capitalista, na China atual. comum encontrarmos comentrios de que seus filmes oferecem um penetrante olhar sobre a sociedade chinesa ps-socialista ou sobre a natureza da realidade chinesa urbana na era da reforma.

    Tal constatao no de todo falsa. Nascido na provncia chinesa Shanxi em 1970, Jia Zhang-ke faz parte da chamada Sexta Gerao de cineastas da China, que

    1 Trabalho apresentado no NP Comunicao Audiovisual, do VIII Nupecom Encontro dos Ncleos de Pesquisas em

    Comunicao, evento componente do XXXI Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. 2 Mestranda em Comunicao pela Universidade Federal do Cear (UFC), na linha de pesquisa de Fotografia e

    Audiovisual, com o projeto de dissertao Imagens em Fluxo: Narrativas Sensoriais no Cinema Asitico Contemporneo do Incio do Sculo XXI. Pesquisa a sensorialidade na filmografia de Tsai Ming-liang, Hou Hsiao-hsien, Jia Zhang-ke e Wong Kar-wai. Esse trabalho de pesquisa foi realizado com apoio da Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (Funcap). E-mail: [email protected]

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    vivenciam o novo cenrio que rapidamente se instaura no Pas com o vertiginoso desenvolvimento capitalista, diferente da Quinta Gerao de realizadores nascidos nos anos 50, como Zhang Yimou e Chen Kaige, que ainda preocupavam-se em buscar a poesia de uma China milenar, perdida com a Revoluo Cultural empreendida por Mao Tse-Tung.

    No podemos ignorar que o contexto social em que se situa Jia Zhang-ke, de alguma forma, exera influncia no seu fazer cinematogrfico. Seus trs primeiros longas-metragens que formam uma trilogia Xiao Wu: O Batedor de Carteiras (Xiao Wu), de 1997; Plataforma (Zhantai), de 2000; e Prazeres Desconhecidos (Ren xiao yao), de 2002 foram produzidos sem qualquer apoio estatal e at hoje ainda no foram lanados comercialmente em seu Pas.

    O primeiro seu filme de concluso do curso de cinema na Academia de Cinema de Pequim e aborda a trajetria de um batedor de carteira que, recm sado da priso, retorna a seu vilarejo. O segundo dimensiona a abertura capitalista chinesa na dcada de 1980, inspirado segundo o cineasta na sua prpria histria e na de sua irm3. O terceiro abarca a rotina de dois jovens delinqentes em uma cidade em profunda transformao. Todos os trs filmes alimentam-se da intimidade de Jia Zhang-ke com seu lugar, com sua aldeia. O uso de atores no profissionais, da luz e do som natural em filmagens rodadas em locaes nas ruas marca a filmografia do cineasta.

    Em 2004, Zhang-ke consegue realizar O Mundo (Shijie), seu primeiro filme aprovado pelo governo, mais precisamente pelo Bureau de Cinema da China. Novamente, o argumento no surgiu do nada, mas de uma base real concreta. Zhang-ke ficara impressionado com as notcias da epidemia de Sars, doena respiratria aguda causada por um vrus que assolou a China, e imaginou Pequim completamente esvaziada4. Procurou fazer um filme que pudesse dar conta da atmosfera de isolamento pela qual a cidade passava naquele momento5.

    Sem dvida, o cinema de Jia Zhang-ke comprometido com suas origens. No entanto, tais contingncias, detalhes situacionais, determinaes histrico-sociais, no so suficientes para dimensionar aquilo que faz da filmografia deste cineasta algo carregado de uma fora singular ou pleno de profunda consistncia. Certamente, a

    3 Em entrevista publicada no livro Speaking in Images: Interviews with Contemporary Chinese Filmakers (Columbia

    University Press, 2005), Jia Zhang-ke confirma tal influncia. 4 Em 2003, o vrus da Sndrome Respiratria Aguda Severa (Sars) provocou uma epidemia em pases asiticos, que

    atingiu milhares de pessoas. O fato foi largamente comentado pela mdia na ocasio. 5 Cf. entrevista coletiva publicada em 02/11/2007 pelo site da 31 Mostra Internacional de So Paulo

    (http://www2.uol.com.br/mostra/31/p_jornal_550.shtml).

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    potencialidade criativa do cinema de Jia Zhang-ke no reside no mero retrato, no reflexo, ou na simples representao de uma China, que possa enquadr-lo sob o rtulo empobrecedor de um cineasta realista6.

    No se trata exatamente de perguntar de que maneira os filmes de Zhang-ke estabelecem pontes com o real, ou capturam o real, ou exercem alguma correspondncia com aquilo que se efetiva na vida cotidiana dos chineses. Acredito que tais questes so pseudo-problemas. Pois o cinema de Jia Zhang-ke est, antes de tudo, para alm da representao de fatos. Existe nele uma urgncia fundamental em inventar mundos possveis, abrir fendas ao que est posto, acionar novas conexes, escapar daquilo que j est constitudo.

    Se existe algum tipo de realismo na obra de Jia Zhang-ke, ele opera na tentativa de reter as experincias que os personagens estabelecem com o espao, mas no como forma de representao da realidade, como se atravs do filme pudssemos localizar a origem dos problemas da China atual. Recordando as notas sobre o cinematgrafo de Bresson, Zhang-ke no filma para ilustrar uma tese, tampouco para mostrar homens e mulheres limitados a seu aspecto exterior, mas para descobrir a matria da qual eles so feitos (BRESSON, 2005, p.41). O que est em jogo a sensibilidade a uma experincia, a uma atmosfera.

    Para tanto, o cineasta se cerca de uma srie de procedimentos ou estratgias para acumular impresses, sensaes, antes do mero flagrante de um suposto real. Em O Mundo, os personagens transitam pelo World Park, um parque temtico situado no sul de Pequim, que guarda rplicas em escala menor de 106 dos mais famosos monumentos de 14 pases do mundo. Os protagonistas so funcionrios do parque, como a danarina Tao, que namora o guarda Taisheng. Zhang-ke volta seu olhar para os que trabalham no local ou que esto a servio do programa de entretenimento do parque: seguranas, danarinos, atores, que migraram do interior da China para a capital, em busca de novas oportunidades.

    O cineasta ocupa um espao real o parque situa-se no sul de Pequim , mas para agenciar novas relaes. Seu filme no feito para um passeio dos olhos, mas para penetrar nele, para ser inteiramente absorvido por ele (BRESSON, 2005, p.75).

    6 Sobre a relao cinema e realidade, Jia Zhang-ke apresentou argumentos esclarecedores, em entrevista por e-mail a

    Felipe Bragana para o endereo eletrnico da Revista Cintica, publicada em junho de 2007 (http://www.revistacinetica.com.br/entrevistajia.htm): Como uma arte da fico, um filme tenta apresentar a realidade e, ao contrrio do que se poderia pensar, apresentar a realidade um ato de imaginao. A realidade no pode causar diretamente o sentimento de realidade. O que um filme meu tenta fazer no tentar achar a realidade como dado, mas o sentimento dela atravs dos personagens que nos levam a conhec-la.

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    No a toa que Jia preenche seu filme com grandes planos abertos e panormicas, para que possamos mergulhar nesta imagem suntuosa e exuberante (Fig.1).

    Fig. 1: panormica do espetculo comandado pelas danarinas do World Park

    No filme de Jia Zhang-ke, Pequim a cidade que tem a pretenso de reproduzir o mundo em sua totalidade, mas carrega em si mesma o que da ordem da superfcie. O parque parece reduzir espacialidades distintas e abarcar diferentes temporalidades em um s bloco de espao e tempo: Manhattan e o World Trade Center (As torres gmeas foram bombardeadas em 11 de setembro, mas ns ainda temos!, celebra um dos personagens) esto a poucos passos do Big Ben de Londres, que por sua vez est a poucos metros das pirmides do Egito, da Torre Eiffel parisiense. Faz-se importante lembrar a cena em que a danarina Tao desloca-se de trem pelo parque e avisa pelo celular ao namorado que estava indo para a ndia. Ela pode ver o Taj Mahal, sem sair de Pequim. D-nos um dia e lhe mostraremos o mundo, eis o slogan do parque, exposto em painel suspenso de non colorido.

    Em todas essas cpias ou simulacros de monumentos, a autenticidade est ausente, no possvel falar de um aqui agora que desdobra uma historicidade. Vemos os guardas de segurana do parque atravessar o espao de imitao das pirmides do Egito, com gales de gua. No deserto do World Park, no falta gua aos visitantes. Seguindo a linha de pensamento de Walter Benjamin em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Tcnica, o que se efetiva na reproduo a perda da aura. Os monumentos como cpias esto mais prximos dos habitantes de Pequim, mas tais cpias so colocadas em situaes impossveis para o prprio original (BENJAMIN, 1994, p.168).

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    Fig. 2: o World Park como cidade-simulacro

    No parque, no h nem mesmo uma disposio espacial das rplicas que possa obedecer a critrios que vo ao encontro da linearizao histrica de seus originais. Os espaos no conseguem condensar a leitura de um tempo no importa se determinado monumento um trao da Antigidade, da Idade Mdia, ou da Modernidade. Os prprios visitantes no exercem mais aquele ritual de culto (Fig.2). Turistas tiram fotografias em que encenam poses como tentativa de desinclinar a rplica da Torre de Pisa. Tao atravessa a ponte de Londres a cavalo. Por isso, O Mundo o lugar da celebrao do impossvel.

    Ao contrrio dos filmes anteriores de Jia Zhang-ke que desejavam apreender as marcas do tempo nos espaos transitados pelos personagens, O Mundo deixa se envolver pela superfcie da imagem, por aquilo que se d em trnsito, em fluxo, como mundo flutuante. Quando falo aqui de uma esttica do fluxo no pretendo me reportar apenas aquilo que diz respeito aos meios tecnolgicos como dispositivos de criao e o cinema de Jia Zhang-ke est longe de descartar isso, j que seus ltimos filmes foram rodados em digital7 mas tambm a uma esttica que coloca em cena a fluidez, a multiplicidade de estados possveis, aquilo que se intensifica como atmosfera, como o gasoso da imagem.

    7 Em Xiao Wu, Plataforma e Prazeres Desconhecidos, o cineasta filmou com cmeras baratas e leves como a mini-

    DV auxiliado pelo diretor de fotografia Yu Lik-wai. Em O Mundo, Jia usa o digital de alta definio e preenche com imagens exuberantes a tela de lado a lado, num formato 1:2.35. Cf. trecho da entrevista do cineasta a Folha de So Paulo, publicada em 31/10/2007 (http://ilustradanocinema.folha.blog.uol.com.br/arch2007-10-28_2007-11-03.html): Optei pelo digital nos filmes mais recentes pela velocidade. A digitalizao corresponde velocidade do mundo hoje; s o digital consegue captar a velocidade do que est acontecendo. E tambm pela questo esttica, por causa do que posso fazer em relao a cores e a efeitos especiais.

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    na materialidade de uma fala, de um olhar, de um gesto, que O Mundo absorve esse gasoso da imagem, aquilo que invisvel da imagem, mas que a atravessa. Jia Zhang-ke filma na cidade tudo o que no dela ou que nela se torna deslocado. um parque que coleciona fragmentos em miniatura do mundo. Desde o primeiro plano-seqncia feito com uma cmera na mo que acompanha o deslocamento de Tao do corredor para o camarim, gritando se algum tem um band-aid, ao plano panormico que se segue do espetculo de dana, com sua profuso de cores e formas, no palco do teatro do parque, O Mundo comea com aquilo que vai propor em todo seu percurso: sobrevoar de um regime de imagem a outro, entregando-se a um arejamento de planos de durao fluida, escorregadia, que no petrifica algo que est suspenso.

    Talvez esteja a a urgncia em filmar diferentes planos de corredores, vias expressas, tneis. So lugares estreitos ou amplos de passagem, de trnsito de fluxos. Os funcionrios do World Park percorrem todos os dias as rplicas dos famosos cartes-postais do mundo, mas jamais saem da China para visitar in loco os monumentos originais que so ali recriados. Eles se deslocam pelos espaos, mas paradoxalmente nunca saem do mesmo lugar.

    Essa simulao de uma mobilidade8 deixa transparecer um forte sentimento de exlio. O Mundo feito de personagens deriva, marcados por olhares distantes, que se sentem deslocados dos lugares em que habitam. So estrangeiros, seja trabalhadores de outras regies da China, como Irmzinha, que veio a Pequim com o amigo Sonlai para trabalhar como operrio de construo e arrecadar dinheiro para poder quitar suas dvidas, ou mesmo oriundos de outros pases, como a russa Anna, que de bailarina passa a se prostituir com o sonho de juntar dinheiro para procurar a irm, em Ulan Bator.

    Alguns deles conseguem se exilar de Pequim. o caso no s de Anna, mas tambm do ex-namorado de Tao que parte para a Monglia, e da estilista Qun, por quem Taisheng se interessa, que viaja Frana, em busca do marido que saiu da China ilegalmente. Vocs no tm o lugar onde meu marido est, responde Qun a Taisheng, que numa brincadeira frisou que no era preciso sair de Pequim para conhecer lugares franceses.

    Aqueles que permanecem em Pequim, como Tao e Taisheng, demonstram anseio de mudana. A danarina Youyou encontra estratgias para se tornar supervisora da companhia de teatro do parque. Em uma conversa num terrao de obras de

    8 O World Park inclui a rplica de uma aeronave que simula vo e que traz a bordo as bailarinas do grupo Cinco

    Continentes, vestidas de aeromoas.

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    construo repleto de vigas, Irmzinha e Tao observam um avio sobrevoar baixo. No conheo ningum que tenha viajado de avio, afirma Tao.

    Para compor um painel que abarque essa gama de personagens entretidos com suas aspiraes especficas, Jia Zhang-ke faz de sua cmera o dispositivo ideal de uma topografia coreogrfica, gestual. A cmera parece passear pelos espaos, escorrer horizontalmente em panormicas, recuar e avanar com seus travellings. Existe a uma potica de deslocamento, que o cineasta domina com exmia habilidade e que dota seu filme de uma plasticidade mpar, quase ttil.

    Seu filme pontuado por interttulos Veja o mundo sem sair de Pequim; Paris no subrbio de Pequim; Noite em Ulan Bator; Histria de Tquio; Sempre mudando o mundo que no cumprem a simples funo de legendas das imagens. Tais interttulos so em si mesmos novas imagens que tecem essa plasticidade que Jia Zhang-ke prope.

    No entanto, os momentos ntimos entre Tao e Taisheng so sempre filmados em planos de conjunto, enquanto em outros momentos nos encontros de Taisheng com Qun ou na cena da enfermaria - a cmera permite uma leve aproximao que nunca chega a um plano de detalhe. Os relacionamentos interpessoais so tomados pela fora dos ambientes. O que fica no ar uma sensao de no pertencimento, de frustrao com o aqui e o agora, da vontade de almejar outros territrios que escapem deste microcosmo onde os personagens transitam.

    No longa-metragem de Jia Zhang-ke, passeamos por diferentes mundos. O mundo dos monumentos do World Park; o mundo dos dormitrios estreitos, das lavanderias sujas e de paredes encardidas e da cozinha precria e outras instalaes internas do parque; o mundo externo ao parque, com suas avenidas largas, em que trafegam nibus lotados, carros, caminhonetes, txis e bicicletas.

    O World Park reafirma-se como o mundo marcado pelo controle, pela vigilncia. Taisheng consegue localizar a namorada, com a ajuda de uma simples troca de informaes com outro segurana, por meio de seu walk-talk. O guarda Erxiao rouba dinheiro das bolsas das danarinas do parque, mas logo descoberto pelos demais seguranas, que o demitem. nos corredores dos camarins do teatro do parque que o danarino Niu questiona insistentemente namorada Wei onde ela esteve durante o dia. A Motorola tem um novo modelo de rastreamento global, avisa a amiga de Wei ao rapaz.

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    Tal vigilncia acompanhada da constante necessidade de reiterar ao visitante seu posicionamento no espao, por meio de mensagens de saudaes por locutores eletrnicos, instalados nos trens, nos elevadores. como se o World Park se erguesse como uma torre de viglia de seus prprios personagens. No toa que vemos constantemente imagens panormicas do topo da Torre Eiffel, por exemplo.

    O que se passa fora da zona de viglia do parque? Do lado externo do World Park, algo diferente se sucede. Logo nos crditos iniciais, um mendigo percorre a margem de um grande lago, que isola o parque temtico de qualquer interveno externa. O mendigo pra e olha para a cmera. Ao longe, avistamos a cpia da Torre Eiffel (Fig. 3). Sabemos que ele jamais ter acesso quele mundo de simulacros do parque. Da mesma forma que Tao e Taisheng jamais sairo de Pequim.

    Fig. 3: o mendigo olha para a cmera

    Contudo, os protagonistas reinventam seus espaos de existncia, a partir da busca por uma espcie de exlio utpico. De alguma forma, aquilo que parte de um desejo ntimo dos personagens acaba se materializando no filme, principalmente durante as seqncias que inserem animao em flash (Fig. 4), cujos dispositivos so as mensagens de celular enviadas de um personagem a outro, providenciando encontros, momentos ou instantes de felicidade. A utopia fsica, imanente, vivenciada, enquanto dinmica de cena. Tais inserts animados revelam novos mundos imaginados, rotas de fugas outras, catapultadas por redes digitais de informao. uma experincia intensa possvel como espao virtual que se atualiza.

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    Fig. 4: animaes como criadoras de novos espaos de existncia

    Mais uma vez, no interessa a Jia Zhang-ke o registro ou a contemplao de um real. Tais intervenes grficas na imagem so recorrentes em outros filmes do diretor. O mesmo acontece no longa-metragem posterior a O Mundo, Em Busca da Vida (Still Life), de 2006, que insere a decolagem de um edifcio inteiro em computao grfica ou o sobrevo de um disco voador no cu cinzento de Shanxi, para dar conta da transformao pela qual a regio passava na poca da construo da usina hidreltrica de Trs Gargantas, no rio Yang-ts. A interveno na imagem aquilo que possibilita a potencializao de uma atmosfera como acontecimento.

    Quando Jia Zhang-ke insere tais animaes em momentos pontuais de O Mundo, ele pe em cheque a delimitao de fronteiras, como forma de produo de novos lugares por vir. Territrios imaginados com o toque de um celular. Tomando o conceito de comunidades imaginadas de que a pesquisadora Andra Frana se apropria, essas novas terras no so geogrficas, bem entendido, so territrios afetivos, sensveis, novos mapas de pertencimento e aflio translocais (FRANA apud MASCARELLO, 2007, p.398).

    Qual o lugar do personagem neste entrelugar imaginado? Percebe-se que h sempre movimento. Vestida de aeromoa, Tao sobrevoa a cidade como uma herona. Montado em seu cavalo, Taisheng galopa em velocidade. Aqui Zhang-ke apropria-se de uma das notas bressonianas de que a viso do movimento d felicidade (BRESSON, 2005, p.60). H um deslocamento para um lugar que atravessa os corpos dos personagens e que nem eles mesmos conseguem discernir qual .

    Ao explorar tais territrios sentimentais por meio dos aparatos tecnolgicos a referncia tambm inclui a cena em que Tao e Taisheng posam para um vo num tapete mgico eletrnico -, o cineasta chins encontra nestas estratgias uma maneira

    esttica de olhar e sentir o mundo, que compe um cinema de resistncia. O Mundo no a expresso representacional de territrios margem da ordem do capitalismo global, tampouco se resume a uma crtica globalizao, como muitos insinuam, mas a

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    abertura de novas sensibilidades que rompem com esquemas mecanizados de percepo. uma nova cartografia que aparece nesse cinema, uma outra espacialidade cinematogrfica, feita de disperses, deslocamentos, nomadismo (FRANA apud MASCARELLO, 2007, p.397-398).

    H algo em O Mundo que no da ordem de uma correspondncia, mas que se faz enquanto zona de indistino. O que dizer do plano-seqncia do banheiro da boate que parte do vmito de uma moa ao choro de Tao ao ver Anna? Como explicar aquele sof que queima do lado de fora da janela que Taischeng avista? O que acontece ali naquele momento em que Tao, vestida de noiva, caminha na direo do jorro de um chafariz que nos surpreende ao fundo da imagem? Ou com aquela moa que todas as manhs procura Erxiao com um copo vazio a ser preenchido com ch?

    No conseguimos encontrar palavras que descrevam o que na imagem permanece em suspenso e que possibilita o desaguar de um personagem a outro, de um bloco de sensaes a outro. Jia Zhang-ke herdeiro de Ozu, Bresson e Antonioni. De Ozu, abarcou os momentos singulares de silncio, que se intercalam aos rudos. De Antonioni, soube comungar de uma sensibilidade epidrmica com os espaos filmados. De Bresson, aprendeu a habituar o pblico a adivinhar o tudo do qual somente lhe damos uma parte. Tao e Taisheng esto mortos ou apenas o comeo? S nos resta adivinhar.

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